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Capa: Après le bain, óleo sobre tela de William-Adolphe Bouguereau (1825–1905)
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Júlio César Ribeiro Vaughan (1845 — 1890)
A CARNE. Júlio Ribeiro. Pará de Minas, MG, Brasil: VirtualBooks Editora, 2017.
ISBN: 9781521769577
CDD- B869 Literatura brasileira. Romance.
A CARNE
Júlio Ribeiro
Ao
Príncipe do Naturalismo,
Emílio Zola.
Aos
meus amigos:
Luiz de Mattos,
M.H. de Bittencourt,
J.V. de Almeida e
Joaquim Elias;
ao
distinto fisiólogo
Dr. Miranda Azevedo
O.D.C.
Júlio
Ribeiro
A. M.
Emile Zola
Je ne suis pas téméraire, je n’ai pas la prétention de
suivre vos traces; ce n’est pas prétendre suivre vos traces que d’écrere une
pauvre étude tant soit peu natulaliste. On ne vous imite pas, on vous admire.
“Nous nous échauffons, dit Ovide, quand le dieu que vit
en nous s’agite”: eh bien! Le tout petit dieu qui vit en moi s’est agité, et
j’ai écret La Chair.
Ce n’est pas l’Assommoir, ce n’est pas
Une chandelle n’est pas le soleil, et pourtant une chandelle éclaire.
Quoi qu’il en soit, voici mon oeuvre.
Agréerez-vous la dédicace que je vous en fais? Pourquoi
pas! Les rois, quoique gorgés de richesses, ne dédaignent pas toujours les
chétifs cadeaux des pauvres paysans.
Permettez que je vous fasse mon hommage complet, lige, de
serviteur féal en empruntant les paroles du poète florentin:
Tuduca, tu signore, tu maestro.
St. Paul, le 25
janvier 1888
Jules
Ribeiro.
Capítulo I
O doutor Lopes Matoso não foi
precisamente o que se pode chamar um homem feliz.
Aos dezoito anos de sua vida, quando
apenas tinha completado o seu curso de preparatórios, perdeu pai e mãe com
poucos meses de intervalo.
Ficou-lhe como tutor um amigo da
família, o coronel Barbosa, que o fez continuar com os estudos e formara-se em
direito.
No dia seguinte ao da formatura, o
honesto tutor passou-lhe a gerência da avultada fortuna que lhe coubera,
dizendo:
– Está rico, menino, está formado, tem
um bonito futuro diante de si. Agora é tratar de casar, de ter filhos, de
galgar posição. Se eu tivesse filha você já tinha noiva; não tenho, procure-a
você mesmo.
Lopes Matoso não gastou muito tempo em
procurar: casou-se logo com uma prima de quem sempre gostara e junto à qual
viveu felicíssimo por espaço de dois anos.
Ao começar o terceiro, morreu a esposa,
de parto, deixando-lhe uma filhinha.
Lopes Matoso vergou à força do golpe,
mas, como homem forte que era, não se deixou abater de vez: reergueu-se e
aceitou a nova ordem de coisas que lhe era imposta pela imparcialidade brutal
da natureza.
Arranjou de modo seguro seus negócios,
mudou-se para uma chácara que possuía peno da cidade, segregou-se dos amigos e
passou a repartir o tempo entre o manusear de bons livros e o cuidar da filha.
Esta, graças às qualidades da ama que
lhe foi dada, cresceu sadia e robusta, tomando-se desde logo a vida, a nota
alegre do eremitério que se constituíra Lopes Matoso.
Visitas de amigos raras tinha ele,
porque mesmo não as acoroçoava: convivência de fama não tinha nenhuma.
Leitura escrita gramática aritmética, álgebra,
geometria, geografia, história, francês, espanhol, natação, equitação,
ginástica, música, tudo isso Lopes Matoso exercitou a filha porque em tudo era perito:
com ela leu os clássicos portugueses, os autores estrangeiros de melhor nota, e
tudo quanto havia de mais seleto na literatura do tempo.
Aos quatorze anos Helena ou Lenita, como
a chamavam, era uma rapariga desenvolvida, forte, de caráter formado e
instrução acima do vulgar.
Lopes Matoso entendeu que era chegado o
tempo de tomar a mudar de vida, e voltou para a cidade.
Lenita teve então ótimos professores de
línguas e de ciências; estudou o italiano, o alemão, o inglês, o latim, o
grego; fez cursos muito completos de matemáticas, de ciências físicas, e não se
conservou estranha às mais complexas ciências sociológicas. Tudo lhe era fácil,
nenhum campo parecia fechado a seu vasto talento.
Começou a aparecer, a distinguir-se na
sociedade.
E não tinha nada de pretensiosa, bas
bleu: modesta, retraída mesmo, nos bailes, nas reuniões em que não de raro
se achava, ela sabia rodear-se de uma como aura de simpatia escondendo com arte
infinita a sua imensa superioridade.
Quando, porém, algum bacharel formado de
fresco, algum touriste recém-vindo de Paris ou de Nova Iorque queria
campar de sábio, queria fazer de oráculo em sua presença, então é que era
vê-la. Com uma candura adoravelmente simulada, com um sorriso de desdenhosa
bondade, ela enlaçava o pedante em uma rede de perguntas pérfidas, ia-o pouco a
pouco estreitando em um círculo de feno e, por fim, com o ar mais natural do
mundo, obrigava-o a contradizer-se, reduzia-o ao mais vergonhoso silêncio.
Os pedidos de casamento sucediam-se:
Lopes Matoso consultava a filha.
– É ia despedindo, meu pai, respondia
ela. Escusa que me consulte. Já sabe, eu não me quero casar.
– Mas, filha, olha que mais cedo ou mais
tarde é preciso que o faças.
– Algum dia talvez, por enquanto não.
– Sabes que mais? estou quase convencido
de que errei e muito na tua educação: dei-te conhecimentos acima da bitola
comum e o resultado é ver-te isolada nas alturas a que te levantei. O homem
fez-se para a mulher, e a mulher para o homem. O casamento é uma necessidade,
já não digo social, mas fisiológica. Não achas, de certo, homem algum digno de
ti?
– Não é por isso, é porque ainda não
sinto a tal necessidade do casamento. Se eu a sentisse, casar-me-ia
– Mesmo com um homem medíocre?
– De preferência com um homem medíocre.
Os grandes homens em geral não são bons maridos. Demais, se os tais senhores
grandes homens escolhem quase sempre abaixo de si, por que eu, quê, na opinião
de papai, sou mulher superior, não faria como eles, escolhendo marido que me
fosse inferior?
– Sim, para teres uns filhos palermas…
– Os filhos puxariam por mim: a
filosofia genésica ensina que a hereditariedade direta do gênio e do talento é
mais comum da mãe para o filho.
– E do pai para a filha, não?
– De certo, e por isso é que eu sou o
que sou.
– Lisonjeira!
– Lisonjeiro é papai que quer à fina
força que eu seja moça prodígio, e tanto tem feito que até eu já começo
acreditar. Voltando ao assunto, sobre casamento temos conversado, não falemos
mais nisso.
E não falaram. Lopes Matoso ia
despedindo os pretendentes com grandes afetações de mágoa – que a menina não
queria casar, que era uma original, que ele bem a aconselhava, mas que era
trabalho baldado, mil coisas enfim que suavizassem a repulsa.
Sempre no mesmo teor de vida chegou
Lenita aos vinte e dois anos, quando um dia amanheceu Lopes Matoso a queixar-se
de um mal-estar indescritível, de uma opressão fortíssima no peito. Sobreveio
um acesso de tosse, e ele morreu de repente sem haver tempo de chamar um
médico, sem coisa nenhuma. Matara-o congestão pulmonar.
Lenita quase enlouqueceu de dor: o
imprevisto do sucedido, vácuo súbito e terrível que se fez em torno dela, a
superioridade e cultura do seu espírito que refugia a consolações banais, tudo
contribuía para acentuar-lhe o sofrimento.
Dias e dias passou a infeliz moça sem
sair do quarto, recusando-se a receber visitas, tomando inconscientemente, a
instâncias dos fâmulos, algum ligeiro alimento.
Por fim reagiu contra a dor pálida,
muito pálida nas suas roupas de luto, ela apareceu aos amigos do pai, recebeu
os pêsames fastidiosos do estilo, procurou por todos os meios afazer-se à vida
solitária que se lhe abria, vida tristíssima, erma de afetos, povoada de
lembranças dolorosas. Tratou de dar direção conveniente aos negócios da casa, e
escreveu ao coronel Barbosa, avisando-o de que se retirava temporariamente para
a fazenda dele.
Os negócios da casa nenhuma dificuldade
ofereciam: a fortuna de Lopes Matoso estava quase toda em apólices e ações de
estradas de ferro. Sendo Lenita, com era, filha única, não havia inventário,
não havia delonga alguma judicial.
A resposta do coronel Barbosa não se fez
esperar – que fosse, que fosse quanto antes; que sua velha esposa entrevada
folgara doidamente com a notícia de ir ter junto de si uma moça, uma
companheira nova; que com eles só morava um filho único, homem já maduro,
casado, mas desde muito separado da mulher, caçador, esquisitão, metido consigo
e com os seus livros; enfim que se não demorasse com aprontações, que
atabulasse, e que marcasse o dia para ele a ir buscar.
Uma semana depois estava Lenita
instalada na fazenda do velho tutor de seu pai: tinha levado consigo o seu
piano, alguns bronzes artísticos, algum bibelots curiosos e muitos
livros.
Capítulo 2
Pior do que na cidade, horrível foi a
princípio o isolamento de Lenita na fazenda.
A velha octogenária, além de entrevada,
era muito surda. O coronel Barbosa, pouco mais moço do que a mulher, sofria de
reumatismo, e, às vezes, passava dias e dias metido na cama. O filho, o
divorciado, estava caçando havia meses no Paranapanema.
O trabalho da fazenda era dirigido por
um administrador caboclo, homem afável, mas ignorantíssimo sobre tudo o que não
dizia com a lavoura.
Lenita comia quase sempre só na
vastíssima varanda; depois de almoçar ou de jantar ia conversar com o coronel,
e fazia esforços incríveis para conseguir fazer-se ouvir da velha que,
resignada e risonha, aumentava com a mão trêmula a concha da orelha para
apanhar as palavras.
Tal entretenimento cansava a moça, e ela
recolhia-se logo aos seus cômodos para ler, para procurar distrair-se.
Tomava um livro, deixava; Tomava outro,
deixava; era impossível a leitura.
Apertava-lhe, constringia-lhe o ânimo a
lembrança do pai. E tudo lhe fazia lembrar – uma passagem marcada a unha em um
livro, uma folha dobrada em outro.
Saía, ia de novo conversar, tornava a
voltar, tomava a sair, era um inferno.
A mulher do administrador, carinhosa já
por índole, recebera do patrão recomendações especiais a respeito de Lenita.
A todo o momento eram copos de leite
quente, copos de garapa, café, doces, frutas.
Lenita ora recusava, ora aceitava uma ou
outra coisa, indiferentemente, só por comprazer à boa mulher.
O coronel Barbosa dera a Lenita uma sala
independente, um quarto amplo com duas janelas e uma alcova; pusera-lhe às
ordens, para seu serviço especial, uma mulatinha esperta, de alta trunfa e cor
deslavada, e também um molecote acaboclado, risonho, de dentes muito brancos.
Lenita, por vezes, passava horas e horas
à janela, contemplando as pendências da fazenda.
Estava esta a meia encosta de um outeiro
a cuja balda corria um ribeirão. Em frente estendia-se o grande pasto. A
monotonia de verdura clara era quebrada aqui e ali pelo sombrio da folhagem
basta de alguns paus-d’alho, deixados propositadamente para sombra, e pelo
amarelo sujo das reboleiras de sapé. Ao fundo, de um lado, em corte brusco, a
mata virgem, escura, acentuada, maciça quase, confundindo em um só tom mil
cores diversíssimas; de outro em colinas suaves, o verde-claro alegre e
uniforme dos canaviais agitados sempre pelo vento; mais além, os cafezais
alinhados, regulares, contínuos, como um tapete crespo, verde-negro, estendido
pelo dorso da morraria. Em um ou outro ponto, a terra roxa de pedra de ferro,
desnudada, punha uma nota estrídula de vermelho-escuro, de sangue coagulado.
E sobre tudo isso, azul, diáfano, puro,
cetinoso, recurvava-se o céu em uma festa de luz branca, vivificante,
mordente…
Quando se embruscava o tempo a paisagem
mudava: o céu pardacento, carregado de nuvens plúmbeas, como que se abaixava,
como que queria afogar a terra. O revestimento verde perdia o brilho,
empanava-se, amortecia em um desfalecimento úmido.
Lenita deu em sair, em passear pelas
cercanias, ora a pé, acompanhada pela mulata, ora a cavalo, seguida pelo
rapazinho.
Mas o exercício, a pureza do ar, a liberdade
do viver da roça, nada lhe aproveitou.
Uma languidez crescente, um esgotamento
de forças, uma prostração quase completa ia-se apoderando de todo o seu ser:
não lia, o piano conservava-se mudo.
Com a morte do pai, parecia ter-se-lhe
transformado a natureza: já não era forte, já não era viril como em outros
tempos. Tinha medo de ficar só, tinha terrores súbitos.
Ia para o quarto da entrevada,
recostava-se em uma cadeira preguiçosa e aí se deixava ficar quieta horas e
horas, mal respondendo às perguntas solícitas do coronel.
Quando voltava para os seus aposentos,
tomada em caminho por um pavor inexplicável, agarrava-se trêmula à mulata.
Não podia comer, tinha um fastio
desolador, cortado por desejos violentos de coisas salgadas, de coisas
extravagantes.
Sobrevieram-lhe salivações constantes,
vômitos biliosos quase incoercíveis.
Uma manhã não se pôde levantar.
Acudiram apressados o coronel e a mulher
do administrador; abeiraram-se do leito, instando com a enferma para que
tomasse um chá de erva-cidreira, um remédio qualquer caseiro, enquanto não
vinha o médico que se tinha mandado chamar a toda a pressa.
Quando este chegou estava Lenita
abatidíssima: emaciada, lívida, com os olhos afundados em uma auréola cor de
bistre, comprimia o peito, estertorava sufocada. Uma como bola subia-lhe do
estômago, chegava-lhe à garganta, estrangulava-a. No alto da cabeça, um pouco
para a esquerda tinha uma dor circunscrita, fixa, lancinante, atroz: era como
se um prego aí estivesse cravado.
E seu sistema nervoso estava irritadíssimo:
o mais ligeiro ruído,
o jogo de luz produzido pelo abrir da
porta arrancava-lhe gritos.
O doutor Guimarães, médico já velho, de
fisionomia inteligente e bondosa, aproximou-se da cama, examinou a enferma
detidamente, em silêncio, sem tomar-lhe o pulso, sem incomodá-la na mínima
coisa, baixando-se muito, com as mãos cruzadas nas costas, para ouvir-lhe a
respiração, para escutar-lhe os gemidos, para atentar-lhe nas contrações da
face.
– Quando começou isto, coronel?
perguntou.
– Doente tem ela estado desde que aqui
chegou, mas assim, ruim, é só hoje.
– Sufoco! acudam-me! gritou de repente
Lenita e, revolvendo-se, escoucinhando, dilacerava a camisa com as mãos ambas,
arranhava o peito. Um rubor súbito, vivíssimo, colorira-lhe o rosto,
brilhavam-lhe os olhos de modo insólito.
– Sei o que isto é, disse o médico;
tenho pela frente um conhecido velho, não me dá cuidado, volto já.
E saiu.
Poucos minutos depois reapareceu,
trazendo uma seringuinha de Pravaz.
– Dê-me o braço, minha senhora, vou
fazer-lhe uma injeção, e verá como daqui a pouco nada mais há de sentir.
Lenita estendeu a custo o braço nu, e o
doutor, tomando-o, pôs-se a beliscá-lo morosamente, demoradamente, em um lugar
só, na altura do bíceps; depois segurando a parte malaxada entre o dedo índice e
o polegar da mão esquerda, com a direita fez penetrar por baixo da pele a
agulha do instrumento e, calcando no cabo do pistão, injetou todo o conteúdo do
tubo de vidro.
Lenita, apesar de seu estado de
irritabilidade nervosa, nem pareceu sentir.
O efeito foi pronto. Dentro de pouco
tempo as faces desçoraram, cessaram as crispações nervosas dos membros,
cerraram-se os olhos, e um suspiro de alívio entumeceu-lhe o peito.
Adormeceu.
– Deixemo-la assim, disse o médico,
deixemo-la dormir, quando acordar estará boa. Todavia vou receitar: não
dispenso para estes casos o meu brumoreto de potássio.
E saíram nos bicos dos pés. Junto de
Lenita ficou a mulher do administrador.
Capítulo 3
Realizou-se o prognóstico do médico.
Lenita, após um comprido sono, acordou
calma, com os nervos sossegados, com os músculos distendidos, soltos. Mas
estava abatida, mole, queixava-se de peso na cabeça, de grande cansaço. Passou
dois dias na cama, e só ao terceiro pôde levantar-se.
O apetite foi voltando aos poucos, e
suas refeições foram sendo tomadas com prazer, a horas regulares.
Podia-se dizer que entrara em
convalescença do cataclismo orgânico produzido pela morte do pai.
E Lenita sentia-se outra, feminizava-se.
Não tinha mais gostos viris de outros tempos, perdera a sede de ciência: de
entre os livros que trouxera procurava os mais sentimentais. Releu Paulo e
Virgínia, o livro quarto da Eneida, o sétimo do Telêmaco. A
fome picaresca de Lazarilho de Tortnes fê-la chorar.
Tinha uma vontade esquisita de
dedicar-se a quem quer que fosse, de sofrer por um doente, por um inválido. Por
vezes lembrou-lhe que, se casasse, teria filhos, criancinhas que dependessem de
seus carinhos, de sua solicitude, de seu leite. E achava possível o casamento.
A imagem do pai ia-se esbatendo em uma
penumbra de saudade que ainda era dolorosa, mas que já tinha encanto.
Passava horas e horas junto da
entrevada, conversava com o coronel, por vezes ria.
– Isto vai melhor, muito melhor, dizia o
bom do homem. É pôr-se você por aí alegre,
filhinha. O mundo é assim mesmo: o que
não tem remédio remediado está.
Uma tarde, achando-se só em sua sala,
Lenita sentiu-se tomada de uma languidez deliciosa, sentou-se na rede, fechou
os olhos e entregou-se à modorra branda que produzia o balanço.
Em frente, sobre um console, entre
outros bronzes que trouxera, estava uma das reduções célebres de Barbedienne, a
da estátua de Agasias, conhecida pelo nome de Gladiador Borghese.
Um raio mortiço de sol poente, entrando
por uma frincha da janela, dava de chapa na estátua, afogueava-a, como que
fazia correr sangue e vida no bronze mate.
Lenita abriu os olhos. Atraiu-lhe as
vistas o brilho suave do metal ferido pela luz.
Ergueu-se, acercou-se da mesa, fitou com
atenção a estátua: aqueles braços, aquelas pernas, aqueles músculos ressaltantes,
aqueles tendões retesados, aquela virilidade, aquela robustez,
impressionaram-na de modo estranho.
Dezenas de vezes tinha ela estudado e
admirado esse primor anatômico em todas as suas minudências cruas, em todos os
nadas que constituem a perfeição artística, e nunca experimentara o que então
experimentava.
A cerviz taurina, os bíceps encaroçados,
o tórax largo, a pélvis estreita, os pontos retraídos das inserções musculares
da estátua, tudo parecia corresponder a um ideal plástico que lhe vivera sempre
latente no intelecto, e que despertava naquele momento, revelando brutalmente a
sua presença.
Lenita não se podia arredar, estava
presa, estava fascinada.
Sentia-se fraca e orgulhava-se de sua
fraqueza. Atormentava-a um desejo de coisas desconhecidas, indefinido, vago,
mas imperioso, mordente. Antolhava-se-lhe que havia de ter gozo infinito se
toda a força do gladiador se desencadeasse contra ela, pisando-a, machucando-a,
triturando-a, fazendo-a em pedaços.
E tinha ímpetos de comer de beijos as
formas masculinas estereotipadas no bronze. Queria abraçar-se, queria
confundir-se com elas. De repente corou até à raiz dos cabelos.
Em um momento, por uma como
intussuscepção súbita, aprendera mais sobre si própria do que em todos os seus
longos estudos de fisiologia. Conhecera que ela, a mulher superior, apesar de
sua poderosa mentalidade, com toda a sua ciência, não passava, na espécie, de
uma simples fêmea, e que o que sentia era o desejo, era a necessidade orgânica
do macho.
Invadiu-a um desalento imenso, um nojo
invencível de si própria.
Robustecer o intelecto desde o
desabrochar da razão, perscrutar com paciência, aturadamente, de dia, de noite,
a todas as horas, quase todos departamentos do saber humano, habituar o cérebro
a demorar-se sem fadiga na análise sutil dos mais abstrusos problemas da
matemática transcendental, e cair de repente, com os arcanjos de Milton, do
alto do céu no lodo da terra, sentir-se ferida pelo aguilhão da carne,
espolinhar-se nas concupiscências do cio, como uma negra boçal, como uma cabra,
como um animal qualquer… era a suprema humilhação.
Fez um esforço enorme, arrancou-se do
feitiço que a dementava, e, vacilante, encostando-se aos móveis e às paredes,
recolheu–se ao seu quarto, fechou com dificuldade as janelas, atirou-se vesti
sobre a cama.
Jazeu imóvel largo espaço.
Uma umidade morna, que se lhe ia
estendendo por entre as coxas, fê-la erguer-se de súbito, em reação violenta
contra a modorra que a prostrara.
Com movimentos sacudidos, nervosos,
atirou o xale, desabotoou rápida o corpete, arrebentou os coses da saia preta e
das anáguas, ficou em camisa.
Uma larga mancha vermelha, rútila, viva,
maculava a alvura da cambraia.
Era a onda catamenial, o fluxo sanguíneo
da fecundidade que ressumava de seus flancos robustos como da uva esmagada
jorra o mosto nubente.
Mais de cem vezes já a natureza se tinha
assim nela manifestado, e nunca lhe causara o que ela então estava sentindo.
Quando aos quatorze anos, após um dia de
quebramento e cansaço, se mostrara o fenômeno pela primeira vez ela ficara
louca de terror, acreditara-se ferida de morte, e, com a impudícia da
inocência, correra em gritos para o pai, contara-lhe tudo.
Lopes Matoso procurara sossegá-la – que
não era nada; que isso se dava com todas as mulheres; que evitasse molhadelas,
sol, sereno, que dentro de três dias, ou de cinco ao mais tardar, havia de
estar boa, que se não assustasse da repetição todos os meses.
Com o tempo, os livros fisiologia
acabaram de a edificar. em Püss aprendera que a menstruação é uma muda
epitelial do útero, conjunta por simpatia com a ovulação, e que o terrível e
caluniado corrimento é apenas uma consequência natural dessa muda.
Resignara-se, afizera-se a mais esta
imposição do organismo, assim como já estava afeita a outras. Somente, para
estudo de si própria, começara de marcar, com estigmas de lápis vermelho, em
calendariozinhos de algibeira, as datas dos aparecimentos.
Anoiteceu.
A mulata a veio chamar para a ceia.
Encontrou-a deitada, encolhida, aconchegando-se nas roupas.
Perguntou-lhe se estava doente, ao saber
que efetivamente o estava, saiu, avisou o senhor, trouxe as suas cobertas e
travesseiros, arranjou uma cama no tapete, ao pé do leito, quedou-se solícita
para o que fosse preciso.
O coronel, cheio de cuidados, veio à
porta do quarto interrogar Lenita.
Que não era nada, respondeu ela, que
aquilo não passava de uma indisposição sem consequências, que havia de acordar
boa no dia seguinte.
– Menina, você sabe que agora seu pai
sou eu. Se precisar de alguma coisa, franquezinha, mande-me chamar a qualquer
hora, não receie me incomodar. A pobre da velha lá está aflita, amaldiçoando o
tolhimento que a faz não prestar para nada. Não quererá você um chá de salva,
um pouco de vinho quente?
– Obrigada, não quero coisa nenhuma.
– Bem, bem, já a deixo
dormir.
E saiu.
Lenita adormeceu. A princípio foi um
dormitar interrompido, irrequieto, cortado de pequenos gritos. Depois
apoderou-se dela um como langor, um êxtase que não era bem vigília, e que não
era bem sono. Sonhou ou antes viu que o gladiador avolumava-se na sua peanha,
tomava estatura de homem, abaixava os braços, endireitava-se, descia, caminhava
para o seu leito, parava à beira, contemplando-a detidamente, amorosamente.
E Lenita rolava com delícias no eflúvio
magnético do seu olhar, como na água deliciosa de um banho tépido.
Tremores súbitos percorriam os membros
da moça; seus pêlos todos hispidavam-se em uma irritação mordente e lasciva,
dolorosa e cheia de gozo.
O gladiador estendeu o braço esquerdo,
apoiou-se na cama, sentou-se a meio, ergueu as cobertas, e sempre a fitá-la,
risonho, fascinador, foi-se recostando suave até que se deitou de todo,
tocando-lhe o corpo com a nudez provocadora de suas formas viris.
O contato não era o contato frio e duro
de uma estátua de bronze; era o contato quente e macio de um homem vivo.
E a esse contato apoderou-se de Lenita
um sentimento indefinível; era receio e desejo, temor e volúpia a um tempo.
Queria, mas tinha medo.
Colaram-se-lhe nos lábios os lábios do
gladiador, seus braços fortes enlaçaram-na, seu amplo peito cobriu-lhe o seio
delicado.
Lenita ofegava em estremeções de prazer,
mas de prazer incompleto, falho, torturante. Abraçando o fantasma de sua
alucinação, ela revolvia-se como uma besta-fera no ardor do cio. A tonicidade nervosa
o erotismo, o orgasmo, manifestava-se em tudo, no palpitar dos lábios túmidos,
nos bicos dos seios cupidamente retesados. Em uma convulsão desmaiou.
Capítulo 4
Lenita voltava à saúde a olhos vistos.
Levantava-se cedo, tomava um copo de
leite quente, dava um passeio pelo campo, almoçava com apetite, depois do
almoço sentava-se ao piano, tocava com brio peças marciais, alegres,
movimentadas, de ritmo sacudido.
Ia ao pomar, comia frutas, trepava em
árvores.
Jantava, ceava, deitava-se logo depois
da ceia, levava a noite de um sono.
Tomara-se garrida: mirava-se muito ao
espelho, cuidava com impertinência do alinho do vestir, tomava os cabelos, que
eram muito pretos, com flores de cor muito viva.
Abusava de perfumes: a sua roupa branca
recendia a vetiver, a sândalo, a ixora, a peau d’Espagne.
Corria, saltava, fazia longas excursões
a cavalo, quase sempre a galope, estimulando o animal com o chicotinho, com o
chapéu, de faces rubras, brilhantes os olhos, cabelos soltos ao vento.
Caçava.
Um dia calmoso, depois do almoço, tomou
uma espingardinha Galand de que habitualmente usava, atravessou o pasto, enfiou
por um carreadouro sombrio, através de um vasto trato de mata virgem.
Seguiu distraída, em cisma, avançou
muito, foi longe.
De repente prendeu-lhe a atenção um
murmurejar de águas, doce, monótono, à esquerda.
Tinha sede, teve desejo de beber, tomou
para lá, seguindo uma trilha estreita.
Parou assombrada ante o cenário
majestoso que a pouca distância se lhe adregou.
No fundo de uma barroca muito vasta
erguia-se um paredão de pedra negra, musgoso, talhado a pique: por sobre ele
atirava-se um jorro de água que ia formar no talvegue da barroca um lagozinho
manso, profundo, cristalino.
Escadando por sobre o açude natural que
fechava a barroca pelo lado, baixo, derivava-se a água, sonorosa, fugitiva.
No espelho calmo do lago refletia-se a
vegetação luxuriante que o emoldurava.
Perobas gigantescas de fronte escura e
casca rugosa; jequitibás seculares, esparramando no azul do céu a expansão
verde de suas copadas alegres; figueiras brancas de raízes chatas, protraídas a
estender ao longe, horizontalmente, os galhos desconformes como grandes membros
humanos aleijados; canchins de folhas espinhentas, a destilar pelas fibras do
córtex vermelho-escuro um leite cáustico, venenoso; guaratãs esbeltos, lisos no
tronco, muito elevados; taiúvas claras; paus-d’alho verdenegrosos,
viçosíssimos, fétidos; guaiapás perigosos abrolhados em acúleos lancinantes e
peçonhentos; mil lianas, mil trepadeiras, mil orquídeas diversas, de flores
roxas, amarelas, azuis, escarlates, brancas -, tudo isso se confundia em uma
massa matizada, em uma orgia de verdura, em um deboche de cores que excedia,
que fatigava a imaginação. O sol, dardejando feixes luminosos por entre a
folhagem, mosqueava o solo pardo de reflexos verdejantes.
Insetos multicolores esvoaçavam
zumbindo, sussurrando. Um sorocoá bronzeado soltava de uma caneleira seu sibilo
intercadente.
Uma exalação capitosa subia da terra,
casava-se estranhamen-te à essência sutil que se desprendia das orquídeas
fragrantes: era um misto de perfume suavíssimo de cheiro áspero de raízes de
seiva, que relaxava os nervos, e adormecia o cérebro.
Lenita hauriu a sorvos largos esse
ambiente embriagador, deixou-se vencer dos amavios da floresta.
Apoderou-se dela um desejo ardente,
irresistível, de banhar-se nessa água fresca, de perturbar esse lago calmo.
Circunvolveu os olhos, perscrutou toda a
roda, a ver se alguém a poderia estar espreitando.
– Tolice! pensou, o coronel não sai, o
administrador e os escravos estão no serviço, no cafezal, não há ninguém de
fora na fazenda. Demais, nem isto é caminho. Estou só, absolutamente só.
Depôs a espingarda e junto dela o chapéu
de palha, de abas largas, que a protegia nesses passeios, começou a despir-se.
Tirou o paletozinho, o corpete
espartilhado, depois a saia preta, as anáguas.
Em camisa, baixou a cabeça, levou as
mãos à nuca para prender as tranças e, enquanto o fazia, remirava complacente,
no cabeção alvo, os seios erguidos, duros, cetinados, betados aqui e ali de uma
veiazinha azul.
E aspirava com delícias, por entre os
perfumes da mata, o odor de si própria o cheiro bom de mulher moça que se
exalava do busto.
Sentou-se, cruzou as pernas, desatou os
cordões dos borzeguins Clark, tirou as meias, afagou corrente, demoradamente,
os pezinhos os breves em que se estampara tecido fino do fio de Escócia.
Ergueu-se, saltou das anáguas, retorceu-se um pouco, deixou cair a camisa. A
cambraia achatou-se em dobras moles, envolvendo-lhe os pés.
Era uma formosa mulher.
Moreno-clara, alta, muito bem lançada,
tinha braços e pernas roliças, musculosas, punhos e tornozelos finos, mãos e
pés aristocraticamente perfeitos, terminados por unhas róseas, muito polidas.
Por sob os seios rijos, protraídos, afinava-se o corpo na cintura para alargar-se
em uns quadris amplos, para arredondar-se de leve em um ventre firme,
ensombrado inferiormente por velo escuro abundantíssimo. Os cabelos pretos com
reflexões azulados caíam em franjinhas curtas sobre a testa indo frisar-se
lascivamente na nuca. O pescoço era proporcionado, forte, a cabeça pequena, os
olhos negros vivos, o nariz direito, os lábios rubros, os dentes alvíssimos, na
face esquerda tinha um sinalzinho de nascença, uma pintinha muito escura, muito
redonda.
Lenita contemplava-se com amor-próprio
satisfeito, embevecida, louca de sua carne. Olhou-se, olhou para o lago, olhou
para a selva, como reunindo tudo para formar um quadro, uma síntese.
Acocorou-se faceiramente, assentou a
nádega direita sobre o joelho esquerdo erguido, lembrando, reproduzindo a
posição conhecida da estátua de Salon, da Venus Accroupie.
Esteve, esteve assim muito tempo: de
repente deu um salto, atufou-se na água, surgiu, começou a nadar.
O lago era profundo, mas estreito.
Lenita ia e vinha, de uma margem para a outra, do paredão ao açude, do açude ao
paredão. Passava por sob o jorro e dava gritos de prazer e de susto ao choque
duro da massa líquida sobre o seu dorso acetinado.
Virava de costas e deixava-se boiar, com
as pernas estendidas, com o ventre para o céu, com os braços alargados, movendo
as mãos abertas, vagarosamente, por baixo da água.
Voltava-se e recomeçava a nadar, rápida
como uma flecha.
Um calafrio avisou-a de que era tempo de
sair da água.
Saiu com o corpo arrepiado, gélido, a
tiritar. Quedou-se ao sol, em uma aberta, esperando a reação do calor,
soltando, torcendo, sacu-dindo os cabelos. De seu corpo desprendia-se um
vaporzinho sutil, uma aura tênue, que a envolvia toda.
O calor do sol e o seu próprio calor
enxugaram-na de pronto. Vestiu-se, espalhou pelas costas os cabelos ainda
molhados, pôs o chapéu, tomou a espingarda, e partiu para casa, a correr,
trauteando um trecho dos Sinos de Comeville.
– Oh! meus pecados! Gritou o coronel ao
vê-la chegar, alegre, risonha, com os cabelos úmidos. Pois o é esta louquinha
que se foi banhar no poço do paredão!
Aquilo é água gelada… Com certeza
pilhou um formidável resfriamento!
– O que eu pilhei foi um formidável
apetite: hoje ao jantar hei de comer por quatro.
– Ó moleque, anda, vai, traz conhaque lá
de dentro, depressa.
– O coronel vai beber conhaque?
– Você vai beber conhaque.
– Nunca provei tal coisa.
– Pois agora há de prová-lo, é o único
meio de fazermos as pazes.
Veio o conhaque, um conhaque genuíno,
velho, de 1848. Lenita bebeu um calicezinho, tossiu. Lagrimejaram-lhe os olhos,
achou forte mas gostou; repetiu.
Capítulo 5
Chegara o dia de principiar a moagem.
Já de véspera tinham os negros andado em
uma faina a varrer a casa no engenho, a lavar os cochos e as bicas, a arear, a
polir as caldeiras e o alambique, com grandes gastos de limão e cinza.
Mal amanhecera entrou-se a ver no
canavial fronteiro uma fita estreita de emurchecimento que aumentava, que
avançava gradualmente no sentido da largura. Era o corte que começara. As
roupas brancas de algodão, as saias azuis das pretas, as camisas de baeta
vermelha dos pretos punham notas vivas, picantes, naquele oceano de verdura
clara, agitadas por lufadas de vento quente.
No casarão do engenho, varrido, asseado,
quatro caldeiras e o alambique de cobre vermelho reverberavam polidos,
refletindo a luz que entrava pelas largas frestas. As fornalhas afundavam-se
lôbregas, escancarando as grandes bocas gulosas.
A água, ainda presa na calha, espirrava
pelas juntas da comporta sobre as línguas da roda, filetes cristalinos. As
moendas brilhavam limpas, e os eixos e endentações luziam negros de graxa.
Compridos cochos e vasta resfriadeira abriam os bojos amplos, absorvendo a luz
no pardo fosco da madeira muito lavada.
Ao longe, quase indistinto a princípio,
mas progressivamente acentuado, fez-se ouvir um chiar agudo, contínuo,
monótono, irritante. A crioulada reunida em frente ao engenho levantou uma
gritaria infrene, tripudiando de júbilo.
Eram os primeiros carros de cana que
chegavam.
Arrastados pesadamente por morosos mas
robustos bois de grandes aspas, avançavam os ronceiros veículos estalando,
gemendo, sob a carga enorme de grossas e compridas canas, riscadas de verde e
roxo.
Carreiros negros, altos, espadaúdos,
cingidos na altura dos fins por um tirador de couro cru, estimulavam, dirigiam
os ruminantes com longas aguilhadas, com brados ostentóricos:
-Eia, Lavarinto! Fasta, Ramalhete! Ruma,
Barroso!
Os carros entraram no compartimento das
moendas. Negros ágeis saltaram para cima deles, a descarregar. Em um momento
empilharam-se as canas, de pé, atadas em feixe com as próprias folhas.
Fez-se fogo na fornalha das caldeiras,
abriu-se a comporta da calha, a água despenhou-se em queda violenta sobre as
línguas da roda, esta começou de mover-se, lenta a princípio, depois acelerada.
Cortando os atilhos de um feixe a golpes
rápidos de facão, o negro moedor entregou as primeiras canas ao revolver dos
cilindros. Ouviu-se um estalejar de fibras esmagadas, o bagaço vomitado picou
de branco o desvão escuro em que giravam as moendas, a garapa principiou a
correr pela bica em jorro fano, verdejante. Após pequeno trajeto foi cair no
cocho grande, marulhosa, gorgolante, com grande espumarada resistente.
Os negros banqueiros, empunhando
espumadeiras de compridos cabos, tomaram lugar junto às caldeiras.
Levada por uma bica volante, a garapa
encheu-os em um átomo. A fornalha esbraseou-se, escandesceu, irradiando um
calor doce por toda a vasta quadra. As espumadeiras destras atiravam ao ar em
louras espadanas o melaço fumegante, que tornava a cair nas caldeiras,
refervendo, aos gorgolões.
Dominava no ambiente aroma suave,
sacarino, cortando espaços por uma lufada tépida de cheiro humano áspero, de
catinga sufocante exalada dos negros em suor.
O coronel gostava da lavoura de cana;
vencendo o seu reumatismo, passava os dias da moagem sentado em um banco de
cabriúva alto, largo, fixo entre duas janelas, a distância razoável das
caldeiras. Dirigia o trabalho, tomando o ponto ao melaço em um tachinho de
cobre muito limpo, muito areado, remexendo com uma pá o açúcar na esfriadeira,
quando este, transvazado os reminhóis por uma bica volante especial, aí parava,
coalhando-se por cima em crosta amarela, quebradiça.
Lenita não saía do engenho; tudo queria
ela saber, de tudo se informava.
O coronel passava por verdadeiros
interrogatórios – quais os meses do plantio da cana; que tempo levava esta na
terra até ficar pronta para o corte; quando e quantas vezes devia ser carpida;
como se cortava; que era baixar, que era levantar o podão; quais
os sinais de maturidade; como se conhecia a cana passada; que era carimar;
por que tinha menos viço e mais doçura a cana de terra safada; como se
plantavam as pontas.
Entrava em detalhes de lavoura, tomava
notas; sabia que um alqueire agrário paulista tem cem braças cinquenta; que a
Quarta essa área, em relação à lavoura de canas, chama-se quartel; que
um quartel de terra própria, em anos favoráveis, dá de quarenta a cinquenta
carros de canas; que um carro de canas boas produz cinco arrobas de açúcar; que
o açúcar sem barro, mascavo, faz mais conta em comércio do que o açúcar com
barro, alvo; que o barro é suprido com vantagem pelo estrume bovino.
Subia ao tendal, contava as formas, duas
em cada pau; computava o produto em açúcar das quatro tarefas de cada
dia; calculava o que haviam de produzir, em aguardente, os resíduos, a espuma,
o mel; avaliava a capacidade dos caixões, dos estanques, dos vasos de tanoa de
grande arqueação; punha-se ao fato dos preços; comparava os do ano corrente com
os dos nove anos anteriores do decênio; generalizava, induzia, chegava a
conclusões positivas sobre a renda do município em futuro próximo, dada mesmo a
eliminação do fator servil.
O coronel admirava-a. Um dia disse-lhe:
– Com uma mulher como você é que eu
devia ter casado.
Pobre eu não sou, mas estaria podre de
rico se a tivesse tido para minha administradora desde os meus princípios. Inda
se eu tivesse um filho ou um neto da sua idade para se casar com você…
– Por falar em filho, quando vem o seu
que está em Paranapanema? perguntou Lenita.
– Eu sei lá? Aquilo é esquisitão, sempre
foi. Mete-se com os livros e fica meses sem sair do quarto. De repente vira-lhe
a mareta, e lá se vai ele para o sertão, põe-se a caçar e adeus! Não se lembra
mais de nada.
– É casado, parece-me ter ouvido dizer.
– Desgraçadamente.
– Onde está a mulher?
– Na terra dela, em França.
– Com que, então, é francesa?
– É, ele casou-se por
extravagância em Paris; no fim de um ano nem ele podia suportar a mulher, nem
ela a ele. Separaram-se.
– Não sabia que seu filho tinha estado
na Europa.
– Esteve, esteve lá dez anos; quando
voltou até já falava mal o português.
– Em que países esteve?
– Um pouco em toda a parte: esteve na
Itália, na Áustria, na Alemanha,
foi que parou mais tempo: demorou-se lá, aprendendo com um tipão que afirma que
nós somos macacos.
– Darwin?
– Exatamente.
– Então seu filho é homem muito
instruído?
– É, fala umas poucas línguas, e conhece
bastantes ciências. Sabe até medicina.
– Deve ser muito agradável a sua
companhia.
– Há ocasiões em que é de fato, há
outras em que nem o diabo o pode aturar. Está então com uma coisa que ele chama
em inglês… um nome arrevesado.
– Blue devils?
– Há de ser isso. Então você também
pesca um pouco da língua dos bifes?
– Falo inglês sofrivelmente.
– Bem bom, quando Manduca vier e
estiverem de veneta, temperarão língua para matar o tempo.
– Estimarei muito ter ocasião de
praticar.
E Lenita daí em diante pensou sempre,
mesmo a seu pesar, nesse homem excêntrico que, tendo vivido por largo espaço entre
os esplendores do mundo antigo, a ouvir os corifeus da ciência, a estudar de
perto as mais subidas manifestações do espírito humano; que, tendo desposado
por amor, de certo, uma das primeiras mulheres do mundo, uma parisiense, se
deixara vencer de tédio a ponto de se vir encafuar em uma fazenda remota do
oeste da província de São Paulo, e que, como isso lhe não bastasse, lá ia para
o sertão desconhecido a caçar animais ferozes, a conviver com bugres bravos.
Sabia que era homem de quarenta e tantos
anos, pouco mais moço do que lhe morrera o pai.
Figurava-o em uma virilidade robusta
que, se já não era mocidade, ainda não era velhice; emprestava-lhe uma plástica
fortíssima, atlética, a do torso do Belvedere; dava-lhe uns olhos negros,
imperiosos, profundos, dominadores. Ansiava por que lhe chegasse a notícia de
que ele vinha vindo, de que já tinha pedido os animais para transportar-se da
estação à fazenda.
E continuava na sua alegria progressiva:
a saudade do pai já não era dolorosa, era apenas melancólica.
Bebia garapa, mas preferia-a picada.
Gostava muito de chupar canas: que era melhor do que garapa, dizia; que a cana
descascada, torneada a canivete, triturada pelos dentes tinha um frescor, uma
doçura especial, que o esmagamento pelas moendas lhe tirava.
Detestava o furu-furu, mas em
compensação adorava o ponto, o puxa-puxa. Quando o melaço começava na
esfriadeira a engrossar, a cobrir-se de espuma amarela, ela corria-lhe o índice
da mão direita pela superfície quente, tirava urna dedada grande, lambia-a com
prazer dando estalinhos com a boca, fechando os olhos. Um dia um preto que
tinha a seu cargo guiar a carroça de bagaço para o bagaceiro, e que trazia ao
pé esquerdo uma grande pega de ferro, falou-lhe:
– Sinhá, olhe como está esta perna; está
toda ferida. Ferro pesa muito, fale com sinhô para tirar.
E mostrava o tornozelo ulcerado pela
pega, fétido, envolto em trapos muito sujos.
– Mas que fez você para estar sofrendo
isto?
– Pecado, sinhá; fugi.
– Era maltratado, estava com medo de
apanhar?
– Nada, sinhá: negro é mesmo bicho ruim,
às vezes perde a cabeça.
– Se você me promete não fugir mais, eu
vou pedir ao coronel que mande tirar o ferro.
– Promete, sinhá: negro promete, palavra
de Deus! Deixa estar. São Benedito há de dar a sinhá um marido bonito como
sinhá mesmo.
E deu uma grande risada alvar.
Lenita gostou do bom desejo e do
cumprimento e sorriu-se.
De tarde falou ao coronel – que aquilo
não tinha razão de ser, que era barbaridade, uma vergonha, uma coisa sem nome,
que mandasse tirar o ferro.
– Ai, filha! você não entende deste
riscado. Qual barbaridade, nem qual carapuça! Neste mundo não existe coisa
alguma sem sua razão de ser. Estas filantropias, estas jeremiadas modernas de
abolição, de não sei que diabo de igualdade, são patranhas, são cantigas. É
chover no molhado – preto precisa de couro e ferro como precisa de angu e
baeta. Havemos de ver no que há de parar a lavoura quando esta gente não tiver
no eito, a tirar-lhe cócegas, uma boa guasca na ponta de um pau, manobrada por
um feitor destorcido. Não é porque eu seja maligno que digo e faço estas
coisas; eu até tenho fama de bom. É que sou lavrador, e sei o nome aos bois.
Enfim, você pede, eu vou mandar tirar o ferro. Mas são favas contadas – ferro
tirado, preto no mato.
A moagem continuava, o canavial se ia
convertendo em palhaça: à verdura clara viva, sucedia um pardo tosco, sujo,
muito triste. O vento esfregava as folhas mortas, ressequidas, arrancando delas
um som áspero de atrito, estalado, metálico, irritadíssimo.
O bagaceiro crescia, avultava: na
brancura esverdinhada punham notas escuras os suínos, bovinos e muares que aí
passavam o dia, mastigando, mascando, esmoendo. De repente armava-se uma grande
briga; ouviam-se grunhidos agudos, mugidos roucos, orneios feros. Uma dentada
oblíqua, um guampaço, uma parelha de coices tinha dado ganho de causa ao mais
forte.
O odor suave do primeiro ferver da
garapa no começo da moagem se acentuara em um cheiro forte, entontecedor, de
açúcar cozido, de sacarose fermentada que se fazia sentir a mais de um quarto
de légua de distância.
Capítulo 6
Terminara a moagem, ia adiantada a
primavera.
A flora tropical rejuvenescera na muda
de todos os anos: os gomos, os brotos, a fronde nova rebentara pujante, aqui de
um verde-claro deslavado, veludoso, muito tenro; ali lustrosa vidrenta, cor de
ferrugem; além rubra. Depois tudo isso se expandira, se robustecera, se
consolidara em uma verdura forte, sadia, vivaz.
A natureza mudara de toilette e entrara no período dos
amores.
Irrompia a florescência com todo o seu
luxo de formas, com toda a sua prodigalidade de matizes, com todo o seu
esbanjamento de perfumes.
Por sobre os cafezais escuros atirara
ela, com suave mono-tonia, um lençol de corolas alvíssima, deslumbrante.
Na mata toda árvore, todo arbusto, toda
planta tomava-se de estranha energia.
As flores, em uma abundância impossível,
comprimiam-se nos galhos, empurravam-se, deformavam-se. No quebrantamento
volúpia amorosa pendiam, reviravam os cálices, entornavam no ambiente ondas de
pólen, de pulverulência fecundante.
À lascívia da flora se vinha juntar o
furor erótico da fauna.
Por toda a parte ouviam-se gorjeios e
assobios, uivos e bramidos de amor. Era o trilar do inambu, o piar do macuco, o
berrar do tucano, o grasnar gargalhado do jacu, o retinir da araponga, o chiar
do serelepe, o rebramar do veado, o miar plangente, quase humano dos felinos.
A essa tempestade de notas, a esse
cataclismo de gemidos cúpidos, sobrelevava o regougo áspero do
cachorro-do-mato, o guincho lancinante, frenético do cará-ará perdido na amplidão.
A folhagem tremia agitada, esbarrada,
machucada. Insetos brilhantes, verdes como esmeraldas, rubros como rubins,
revoluteavam em sussurro, agarravam-se frementes. Os pássaros buscavam-se,
beliscavam-se, em vôos curtos, fortes, sacudidos, com as penas arrufadas. Os
quadrúpedes retouçavam perseguiam-se, aos corcovos, arrepiando o pelo.
Serpentes silvavam meigas, enroscando-se em luxúria aos pares.
A terra casava suas emanações quentes,
ásperas, elétricas com o mormaço lúbrico da luz do sol coada pela folhagem.
Em cada buraco escuro, em cada fenda de
rocha, por sobre o solo, nas hastes das ervas, nos galhos das árvores, na água,
no ar, em toda a parte, focinhos, bicos, antenas, braços, élitros desejavam-se,
procuravam-se, encontravam-se, estreitavam-se, confundiam-se, no ardor da
sexualidade, no espasmo da reprodução.
O ar como que era cortado de relâmpagos
sensuais, sentiam-se passar lufadas de tépida volúpia. Sobressaía a todos os
perfumes, dominava forte um cheiro acre de semente, um odor de cópula, excitante,
provocador.
Lenita estava preguiçosa. Internava-se
na mata e, quando achava uma barroca seca, uma sombra bem escura, reclinava-se
aconchegando o corpo na alfombra espessa de folhas mortas, entregava-se à
moleza erótica que estilava das núpcias pujantes da terra. Voltava à casa,
estendia-se na rede, com uma perna estirada sobre outra, com um livro que não
lia caído sobre o peito, com a cabeça muito pendida para trás, com os olhos
meio cerrados, e assim quedava-se horas e horas em um lugar cheio de encantos.
Pensava constantemente, continuamente,
sem o querer, no caçador excêntrico do Paranapanema, via-o a todo o momento
junto de si, robusto, atlético como o ideara, dialogava com ele.
Ficara cruel: beliscava as criolinhas,
picava com agulhas, feria com canivete os animais que lhe passavam ao alcance.
Uma vez um cachorro reagiu e mordeu-a. Em outra ocasião pegou num canário que
lhe entrara na sala, quebrou-lhe e arrancou-lhe as pernas, desarticulou-lhe uma
asa, soltou-o, findo com prazer íntimo ao vê-lo esvoaçar miseravelmente, com
uma asa só, arrastando a outra, pousando os cotos sangrentos na terra pedregosa
do terreiro.
O escravo, a quem ela fizera tirar o
ferro do pé, fugira de fato, como tinha previsto o coronel: um dia voltou
preso, amarrado com uma corda pelos lagartos dos braços, trazido por dois
caboclos.
Que não havia remédio, disse o coronel,
que dessa feita o negro tinha de tomar uma funda mestra por ter abusado do
apadrinhamento de Lenita, que ia tomar a pôr-lhe o ferro, e que não o tiraria mais
nem à mão de Deus Padre.
Lenita, muito de adrede, não intercedeu.
Sentia uma curiosidade mordente de ver a aplicação do bacalhau, de conhecer de
vista esse suplício legendário, aviltante, atrozmente ridículo. Folgava imenso
com a ocasião talvez única que se lhe apresentava, comprazia-se com volúpia
estranha, mórbida na ideia das contrações de dor, dos gritos lastimados do
negro misérrimo que não, havia muito lhe despertara a compaixão.
Disfarçadamente, habilmente, sem tocar
de modo direto no assunto, conseguiu saber do coronel que o castigo havia de
ter lugar na casa do tronco, no dia seguinte, ao amanhecer.
Passou a noite em sobressalto, acordando
a todas as horas, receosa de que o sono imperioso da madrugada lhe fizesse
perder o ensejo de ver o espetáculo por que tanto anelava.
Cedo, muito escuro ainda, levantou-se,
saiu, atravessou o terreiro, e, sem que ninguém a visse, entrou no pomar.
Do lado de leste era este fechado pela
fila das senzalas, cujas paredes de barro cru erguiam-se altas, inteiriças, muito
gretadas.
Havia uma casa mais vasta duas vezes do
que qualquer outra: era a casa do tronco.
A essa chegou-se Lenita, encostou-se e,
tirando do seio uma tesourinha que trouxera, começou a abrir um buraco na
parede, à altura dos olhos, entre dois barrotes e duas ripas, em lugar
favorável, donde já se protraía um torrão muito pedrento, muito fendido, meio
solto.
A tesourinha era curta, mas reforçada,
sólida, de aço excelente, de Rodgers. A obra avançava, Lenita trabalhava com
ardor, mas também com muita paciência, com muito jeito. O aço mordia, esmoía o
barro friável quase sem ruído. Um rastilho de pó amarelado maculava o vestido
preto da moça.
Deslocou-se o torrão, e caiu para
dentro, dando um som surdo ao tombar no chão fofo, de terra mal batida.
Estava feito o buraco.
Lenita retraiu-se, ficou imóvel,
sustendo a respiração.
Após instantes estendeu o pescoço,
espiou. Nada pôde ver: estava muito escuro dentro. Ouvia-se um ressonar alto,
igual.
Passou-se um longo trato de tempo.
O brilho das estrelas empalideceu. Uma
faixa de luz branca desenhou-se ao nascente, ruborizou-se, purpurejou inflamada
com reflexos cor de ouro. O ar tornou-se mais fino, mais sutil e a passarada
rompeu num hino áspero, desacorde, mas alegre, festivo, titânico, saudando o
dia que despontava.
Ouviu-se o sino da fazenda vibrar muito
sonoro.
Lenita tomou a espiar: a casa do tronco
já estava clara.
A um canto espalmava-se um estrado de
madeira engordurado, lustroso pelo rostir de corpos humanos sujos. As tábuas
que o constituíam embutiam-se em um sólido pranchão de cabriúva, cortado em
dois no sentido do comprimento: as duas peças por ele formadas justapunham-se,
articulando-se de um lado por uma dobradiça forte, presas de outro por uma
fechadura de ferrolho. Na parte superior da peça fixa e na inferior da móvel
havia piques semicirculares, chanfrados, que, ao ajustarem-se essas peças,
coincidiam, perfazendo furos bem redondos, de um decímetro mais ou menos de
diâmetro.
Era o tronco.
Sobre o estrado, de ventre para o ar,
com as pernas passadas, pouco acima dos tornozelos, nos buracos dos pranchões,
envolto em uma velha coberta de lã parda, despedaçada, imunda, tinha
atravessado a noite o escravo fugido.
Dormira, ao bater do sino acordara.
Segurando-se a um joelho com as mãos
ambas, sentara-se por um pouco, espreguiçara, volvera a deitar-se, com os
membros doloridos, resignado.
Abriu-se a porta, e entrou o
administrador seguido por um dos caboclos que tinham trazido o preto.
– Olá, seu mestre! gritou o caboclo,
olhe o que aqui lhe trago: chocolate, café, berimbau. E a correia na ponta do
pau. Vai chuchar cinquenta para largar da moda de tirar cipó por sua conta. Não
sabe que negro que foge dá prejuízo ao senhor? Olhe só este pincel, está
tinindo, está beliscando!
E sacudia ferozmente o bacalhau.
É um instrumento sinistro, vil,
repugnante, mas simples.
Toma-se uma tira de couro cru, de três
palmos ou pouco mais de comprimento, e de dois dedos de largura. Fende-se ao
meio longitudinalmente, mas sem separar as duas talas nem em uma, nem outra
extremidade. Amolenta-se bem em água, depois se torce e se estira em uma tábua,
por meio de pregos, e põe-se a secar. Quando bem endurecido o couro, adapta-se
um cabo a uma das extremidades, corta-se a outra, espontam-se as duas a
canivete, e está pronto.
O administrador abriu o tronco, o negro
ergueu-se bafo, trêmulo, miserável.
Sob a impressão do medo como que se lhe
dissolviam as feições.
Caiu de joelhos, com as mãos postas, com
os dedos nodosos enclavinhados.
Era a última expressão do rebaixamento
humano, da covardia animal.
Infundia dó e nojo.
– Pelo amor de Deus, seu Mané Bento,
nunca mais eu fujo!
E chorava desesperadamente.
– Não faça barulho, rapaz, respondeu o
administrador. São ordens do senhor, hão de ser cumpridas.
– Vá chamar o sinhô!
– O senhor está deitado, não vem, não
pode vir cá. Deixe-se de história, arreie as calças e deite-se.
– Nossa Senhora me acuda!
– Você não chama por Nossa Senhora
quando trata de fugir, gritou impaciente o caboclo. Vamos, vamos acabar com
isto, ande.
O infeliz volveu os olhos em torno de
si, como procurando uma aberta para a fuga. Desenganado, decidiu-se.
Com movimentos vagarosos, tremendo
muito, desabotoou a calça suja, deixou-a cair, desnudou as suas nádegas
chupados de negro magro, já cheias de costuras, cortadas de cicatrizes.
Curvou as pernas, pôs as mãos no chão,
estendeu-se, deitou-se de bruços.
O caboclo tomou posição à esquerda,
mediu a distância, pendeu o corpo, recuou o pé esquerdo, ergueu e fez cair o
bacalhau da direita para a esquerda, vigorosamente, rapidamente, mas sem
esforço, com ciência com arte, com elegância de profissional apaixonado pela
profissão.
As duas correias tesas, duras, sonoras,
metálicas, quase silvavam, esfolando a epiderme com as pontas aguçadas.
Duas riscas branquicentas, esfareladas,
desenharam-se na pele roxa da nádega direita.
O negro soltou um urro medonho.
Compassado, medido, erguia-se o
bacalhau, descia rechinante, lambia, cortava.
O sangue ressumou a princípio em gotas,
como rubins líquidos, depois estilou contínuo, abundante, correndo em fios para
o solo.
O negro retorcia-se como uma serpente
ferida, afundava as unhas na terra solta do chão, batia com a cabeça, bramia,
ululava.
– Uma! duas! três! cinco! dez ! quinze!
vinte! vinte e cinco!
Parou um momento o algoz, não para
descansar, não estava cansado; mas para prolongar o gozo que sentia, como um
bom gastrônomo que poupa um acepipe fino.
Saltou por cima do negro, tomou nova
posição, fez vibrar o instrumento em sentido contrário, continuou o castigo na
outra nádega.
– Uma! duas! três! cinco! dez ! quinze!
vinte! vinte e cinco!
Os uivos do negro eram roucos,
estrangulados: a sua carapinha estava suja de terra, empastada de suor.
O caboclo largou o bacalhau sobre o
estrado do tronco e disse:
– Agora uma salmorazinha para isto não
arruinar.
E, tomando da mão do administrador uma
cuia que esse trouxera, derramou o conteúdo sobre a derme dilacerada.
O negro deu um corcovo; irrompeu-lhe da
garganta um berro de dor, sufocado, atroz, que nada tinha de humano. Desmaiou.
Lenita sentia um como espasmo de prazer,
sacudido, vibrante; estava pálida, seus olhos relampejavam, seus membros
tremiam. Um sorriso cruel, gelado, arregaçava-lhe os lábios, deixando ver os
dentes muito brancos e as gengivas rosadas.
O silvar do azorrague, as contrações os
gritos do padecente, os fiar de sangue que ela via correr embriagavam-na,
dementavam-na, punham-na em frenesi: torcia as mãos, batia os pés em ritmo
nervoso.
Queria, como as vestais romanas no ludo
gladiatório, ter direito de vida e de morte; queria poder fazer prolongar
aquele suplício até à exaustão da vítima; queria dar o sinal, pollice verso,
para que o executor consumasse a obra.
E tremia, agitada por estranha sensação,
por dolorosa volúpia. Tinha na boca um saibo de sangue.
Capítulo 7
Havia quase uma semana que estava
chovendo continuamente. As matas alegres, viçosas, muito lavadas reviam água
pela fronde. O tapete espesso de folhas mortas, que cobria o solo nas matas,
estava ensopado, desfeito, ia-se reduzindo a húmus. A terra nua nos caminhos,
limosa, esverdeada nos taludes e nas rampas, empapada, semilíquida no leito
plano, cortada longitudinalmente pelas trilhas dos carros, batida, revolvida,
amassada pelos pés dos animais, ora alteava-se em almofadas de lama, ora
cavava-se em poças de água barrenta, amarela em uns lugares, em outros cor de
sangue. Corria o enxurro torrentoso, rápido, enxadrezado nos declives; manso,
espraiado em toalhas, banhando as raízes das gramíneas no chato, no descampado.
Os campos eram brejos, os brejos lagos.
No pomar as laranjeiras pendiam os
grelos em um desfalecimento úmido; as ameixeiras, as mangueiras, os
pessegueiros, os cajueiros viçavam muito lustrosos. O céu pardo, como que
descido, parecia muito perto da terra.
O ribeirão transbordando roncava em
marulhos.
Lenita sentada, encorujada na rede, com
as pernas cruzadas, à chinesa, levava a maior parte do dia a ler,
conchegando-se no xale, friorenta, aborrecida, esplenética.
Rememorava por vezes as mudanças, as
alternativas fisio-psíquicas por que tinha passado na fazenda, onde não
encontrara uma pessoa de sua idade, de seu sexo ou de sua ilustração a quem
comunicar o que sentia, que a pudesse compreender, que a pudesse aconselhar,
que a pudesse fortalecer nessa terrível batalha dos nervos.
Analisava a crise histérica, o erotismo,
o acesso de crueldade que tivera. Estudava o seu abatimento atual irritadiço,
dissolvente, cortado de desejos inexplicáveis. Surpreendia-se amiudadas vezes a
pensar sem o querer no filho do coronel, nesse homem já maduro, casado, a quem
nunca vira; sentia que lhe pulsava apressado o coração quando falavam nele na
sua presença. E concluía que aquilo era um estado patológico, que minava um mal
sem cura.
Depois mudava de pensar: não estava
doente, seu estado não era patológico, era fisiológico. O que ela sentia era o
aguilhão genésico, era o mando imperioso da sexualidade, era a voz da carne a
exigir dela o seu tributo de amor, a reclamar o seu contingente de fecundidade
para a grande obra da perpetuação da espécie.
E
lembrava-lhe a ninfomania, a satiríase, esses horrores com que a natureza se
vinga de fêmeas e machos que lhe violam as leis, guardando uma castidade
impossível; lembrava-lhe o horror sagrado que aos povos da Grécia e Roma
inspiravam esses castigos de Vênus.
Entrevia
como em uma nuvem as ninfas gregas de Dictynne, as vestais romanas, as
odaliscas molitas, as monjas cristãs pálidas, convulsivas, com os lábios em
sangue, com os olhos em chamas, a contorcerem-se nos bosques, nos leitos
solitários; a morderem-se loucas, bestiais, espicaçadas pelos ferrões do
desejo.
Desfilavam-lhe
por diante, lúbricas, vivas, palpáveis quase, Pasifae, Fedra; Júlia, Messalina,
Teodora, Impéria; Lucrécia Borgia, Catarina da Rússia.
Um
dia entrou na sala o coronel.
–
Grande novidade! Aí me vem o rapaz… rapaz é um modo de falar, o velho, o
caçador do Paranapanema.
–
Seu filho?
–
Sim. Também era tempo, eu já estava com saudades.
–
Mas não preveniu, não pediu condução…
–
Pois eu não dizia? aquilo é assim mesmo, é espeloteado. Não quer, não sabe
esperar; não está para demoras. Alugou animais no Rio Claro, e aí vem vindo.
–
Como soube?
–
Por um caboclo que partiu de lá ao amanhecer, e que agora passou por aqui.
–
Então seu filho vem tomando esta chuvarada?
–
Isso para ele é um pau para um olho, está acostumado.
–
A que horas acha que chega?
–
São seis léguas de caminho. Ele de certo saiu depois do almoço, às 10 horas.
Como a estrada está ruim, gastará umas seis ou sete horas. As quatro, às cinco
horas ao mais tardar, rebenta por aí. O que eu quero saber é se você quer
jantar às horas do costume ou se concorda em que o esperemos.
–
Havemos de esperar, boa dúvida!
O
coronel saiu.
Lenita
saltou lesta da rede, correu ao seu quarto, penteou-se com desvanecimento,
ergueu os cabelos, prendeu-os no alto da cabeça; deixando a nuca bem a
descoberto. Espartilhou-se, tomou um vestido de merinó afogado, muito singelo,
mas muito elegante brincos, broche, braceletes de ônix, calçou sapatinhos Luiz
XV, cuja entrada muito baixa deixava ver a meia de seda preta com ferradurinhas
brancas
peito, à esquerda, pregou duas rosas pálidas, meio fechadas, muito cheirosas.
–
Bravo! que linda que está a senhora D. Lenita! bradou o coronel, entusiasmado
ao vê-la. Pena é que esteja gastando cera com ruim defunto: o rapaz não é
rapaz, e ainda, por mal de pecados, é beco sem saída.
Lenita
corou um pouco, riu-se.
–
Vamos, vamos lá para dentro: quero que a velha a veja nesse reto. Francamente,
está bonita a fazer virar a cabeça ao próprio Santo Antão! Como lhe assenta a
você essa roupa preta afogadinha! Sim, senhora!
Ia
quase anoitecendo.
A
chuva caía forte, compassada, ininterrompida: em todas as depressões de terreno
estancava-se a água; por todos os declives corria ela em torrentes, em
borbotões, em jorros, em filetes.
No
alto do morro fronteiro, cortado pela estrada, assomaram dois cavaleiros e uma
besta de canastrinhas.
Vagarosos,
escorregando a cada passo na ladeira lamacenta, lisa, começaram a descer
procurando a fazenda.
A água da chuva, pulverizada no ar,
esbatia-lhes os contornos em urna como atmosfera cinzenta, riscada obliquamente
pelo peneirar dos pingos grossos.
O
coronel viu-os por uma janela, através dos vidros emba-ciados.
–
Lá vem Manduca, disse.
Coitado!
vem como um pinto !
Lenita
parou o movimento brando da cadeira de balanço, largou o Correio da Europa que
stava lendo, deixou cair os braços sobre as coxas, recostou a cabeça no
espaldar, quedou-se imóvel, muito pálida, quase desfalecida. O sangue
refluíra-lhe ao coração que batia descompassado.
Chegaram
os viajantes.
Ouviu-se
o tinir de freios sacudidos nervosamente pelas cavalgaduras, depois o chapinhar
pesado de botas ensopadas, enlameadas, e o arrastar sonoro de esporas no
pedrado do alpendre.
O
coronel, trôpego, correu ao encontro do filho.
–
Que raio de tempo! Disse este ao entrar na ante sala, batendo duro os pés na
soleira da porta, e tirando a capa de borracha que foi pendurar a uma
estaqueira. Adeus, meu pai, vosmecê bom, eu vejo; minha mãe na mesma, não?
–
Tudo na forma do costume.
E
você? boas caçadas? boa saúde?
–
Caçadas esplêndidas, hei de lhe contar. Saúde de ferro, a não ser a maldita
enxaqueca que me não larga, e que neste momento mesmo me está atormentando de
modo horroroso. Vou lá dentro ver minha mãe, e sigo para o meu quarto: deve
estar pronto. Mande o Amâncio levar-me uma chaleira de água a ferver, e uma
pouca de farinha mostarda, para eu tomar um pedilúvio sinapizado.
–
Você não jantou, e de certo almoçou mal : coma alguma coisa que há de fazer-lhe
bem.
–
Comer! mal de mim se comesse estando de
enxaqueca.
–
Que maçada! Eu e a Lenita que o estávamos esperando para jantar…
–
Lenita! Quem é Lenita?
–
É a neta do meu velho amigo Cunha Matoso, filha do meu pupilo, o doutor Lopes
Matoso, que morreu logo depois que você foi para o Paranapanema. Não recebeu a
minha carta nesse sentido?
–
Recebi, lembra-me muito o Lopes Matoso. Com que então a filha está agora aqui?
–
Está, coitada. Não pôde ficar na cidade, era-lhe muito dolorosa a falta do pai.
Vem cá, Lenita, vem ver o meu filho. Chama-se Manuel Barbosa.
Lenita
veio da sala, adiantou-se para o recém-chegado, cumprimentou-o com uma
inclinação da cabeça.
Ele
tirou o seu chapéu alagado, retribuiu o cumprimento.
–
Um seu criado, minha distinta senhora. Desculpar-me-á não apertar-lhe a mão:
estou imundo, estou que é só barro da cabeça aos pés.
Manuel
Barbosa era homem de boa altura, um tanto magro. A roupa molhada colava-se-lhe
ao corpo, acentuando-se as formas angulosas. Cabelos desmesuradamente grandes,
empastados, correndo água, cobriam-lhe a testa, escondiam-lhe as orelhas. As
barbas grisalhas, crescidas, davam-lhe um aspecto inculto, quase feroz. Com a
enxaqueca estava pálido, muito pálido, baço, terroso. Piscava muito os olhos
para furtar-se à ação da luz. Tinha as pálpebras batidas, trêmulas, e muitos
pés de galinha encarquilhavam-lhe os cantos externos dos olhos.
Lenita,
desapontadíssima, mirava-o com uma curiosidade dolorosa.
–
Minha senhora, continuou ele, sinto imenso que vossa exce-lência tenha esperado
por mim para jantar, e que a minha negregada enxaqueca prive-me hoje do prazer
de sua companhia. Queira conce-der-me licença.
E varou para o interior, sacudidamente,
brutalmente, fazendo soar as esporas, deixando no assoalho as marcas úmidas das
botas enlameadas. O coronel acompanhou-o.
Lenita
recolheu-se ao seu quarto, bateu as janelas, não quis jantar, não quis cear,
respondeu quase com desabrimento ao coronel, que insistia com ela para que
fosse à mesa comer uma asa de frango, uma talhadinha de presunto, algum doce ao
menos.
Sacou
do peito com violência as duas bonitas rosas, atirou-as ao chão, calcou-as aos
pés, esmurregou-as, despiu-se freneticamente, aos pinchos, arrancando os botões
arrebentando os colchetes.
Com
um movimento de pernas rápido, sacudido, fez voar longe os sapatinhos,
atirou-se à cama encolheu-se como uma bola, mordeu os braços, despediu num
pranto convulso.
Chorou,
soluçou por muito tempo. Esse descarregamento nervoso aliviou-a; acalmou-se,
sossegou.
Entrou
a refletir.
Conceber
um ideal, pensava ela, anima-lo como uma mãe amima o filho, ajeita-lo, vesti-lo
cada dia com uma perfeição nova, e, de repente, ver a realidade impor-se
esmagadoramente prosaica, chatamente bruta, bestialmente chata!
Idealizar
um caçador de Cooper, um Nemrod forte até diante de Deus, um atleta musculado
como um herói da antiguidade, e ver sair pela frente um sujeito pulha,
enlameado, velho, de melenas intonsas e barbas grisalhas, um almocreve, um
arneiro que quase a tratara mal!
E
ainda por cima juraria que ele tresandava a cachaça: sentira-lhe a bifada
quando ele falou.
Mas,
em suma, que lhe importava a ela esse homem, com quem nunca conversara, que
nunca sequer tinha visto, cuja existência até pouco ignorava?
Pois
não havia ela em tempo desprezado a corte assídua de uma nuvem de pretendentes?
E
nesse momento mesmo, debaixo de certo ponto de vista, não estava até melhor,
relativamente a coisas do coração? Sem pai, sem mãe, sem irmãos, emancipada,
absolutamente senhora de si, rica, formosa, inteligente, culta, bastava-lhe
mostrar-se na cidade, ou melhor,
deixar-se admirar para tronejar, para ser soberana, para receber ovações, para
haurir, a saciedade, o incenso da lisonja. Por que teimar em permanecer na
fazenda?
–
Se era a necessidade orgânica, genésica de um homem que a torturava, por que
não escolher de entre mil um marido forte, nervoso, potente, capaz
de satisfazê-la, capaz de sacia-la?
E
se um lhe não bastasse, por que não conculcar preconceitos ridículos, por que
não tomar dez, vinte, cem amantes, que lhe matassem o desejo, que lhe
fatigassem o organismo?
Que
lhe importava a ela a sociedade e as suas estúpidas convenções de moral?
Mas
a cor amarelenta de Manuel Barbosa, seus olhos piscos, seus cabelos por cortar,
sua barba repugnante, sua roupa molhada!
E
o fartum de pinga, a bifada?
Não
lhe podia perdoar, odiava-o, tinha vontade de esbofeteá-lo, de cuspir-lhe no
rosto.
Era
um contrassenso; estar sempre a recair, a ocupar-se de uma criatura vulgar,
comuníssima, que lhe não merecia ódio, com a qual não valia a pena perder um
pensamento.
Voltaria
para a cidade… não, iria São Paulo, fixar-se-ia aí de vez compraria um
terreno grande em um bairro aristocrático, na Rua Alegre,
Chá, construiria um palacete elegante, gracioso, rendilhado, à oriental, que
sobressaísse, que levasse de vencida esses barracões de tijolos, esses
monstrengos impossíveis que por aí avultam, chatos, extravagantes, à
fazendeira, à cosmopolita, sem higiene, sem arquitetura, sem gosto. Fá-lo-ia
sob a direção de Ramos de Azevedo, tomaria para decoradores e ornamentistas
Aurélio de Figueiredo e Almeida Júnior. Trastejá-lo-ia de jacarandá preto, encerado,
com esculpidos foscos. Faria comprar nas ventes de Paris, por agentes
entendidos, secretárias, mesinhas de legítimo Boule. Teria couros lavrados de
Córdova, tapetes da Pérsia e dos Gobelins, fukusas do Japão. Sobre os
consolos, sobre os dunquerques, em vitrinas; em armários de pau ferro
rendilhado, em étageres, pelas paredes,
por toda a parte semearia porcelanas profusamente, prodigamente – as da China
com o seu branco leitoso, de creme, com as suas cores alegres suavissimamente
vívidas, as do Japão, rubro e ouro, magníficas, provocadoras, luxuosas,
fascinantes; os grés de Satzuma, artísticos, trabalhos árabes pelo estilo,
europeus quase pela correção do desenho. Procuraria vasos, pratos da pasta
tenra de Sévres, ornamentados por Bouchet, por Armand, por Chavaux pai, pelos
dois Sioux; contrapor-lhes-ia as porcelanas da fábrica real de Berlim e da
imperial de Viena, azuis de rei aquelas, estas cor de sangue tirante a
ferrugem; enriquecer-se-ia de figurinhas de Saxe, ideais, finamente acabadas,
deliciosíssimas. Apascentaria os olhos na pátina untuosa dos bronzes do Japão,
nas formas tão verdadeiras, tão humanas da estatuária grega, matematicamente
reduzida em bronze por Colas e Barbedienne. Possuiria mármores de Falconet,
terracotas de Clodion, netskés, velhís-simos, rendilhados,
microscópicos, prodigiosos. Mirar-se-ia em espelhos de Veneza, guardaria
perfumes em frasquinhos facetados de cristal da Boêmia. Pejaria os escrínios,
as vide-poches de jóias antigas, de
crisó-litas e brilhantes engastados em prata, de velhos relicários de ouro do
Porto.
Teria
cavalos de preço, iria à Ponte Grande, à Penha à Vila Mariana em um huit-ressorts
parisiense sem rival, tirado por urcos pur-sang, enormes, calorosos, de
cor escura, de pelo muito fino.
Far-se-ia
notar pelas toilettes elegantíssimas,
arriscadas, escandalosas mesmo.
Viajaria pela Europa toda, passaria um
verão
Petersburgo
Havia de voltar, de oferecer banquetes;
havia de chocar pala-dares, habituados ao picadinho e ao lombo de porco,
dando-lhes arenques fumados, caviar, perdizes faisandées, calhandras
assadas com os intestinos, todos os mil inventos dos finos gastrônomos do velho
mundo: seus convivas haviam de beber Johannisberg, Tokai, Constança, Lácrima
Christi, Chatêau Iquem, tudo quanto fosse vinho caro, tudo quanto fosse vinho
esquisito.
Teria
amantes, por que não? Que lhe importavam a ela as murmurações, os diz-que-diz-que da sociedade brasileira,
hipócrita, maldizente. Era moça, sensual, rica – gozava. Escandalizavam-se,
pois que se escandalizassem.
Depois,
quando ficasse velha, quando se quisesse aburguesar, viver como toda a gente,
casar-se-ia.
Era
tão fácil, tinha dinheiro, não lhe haviam de faltar titulares, homens formados
que se submetessem ao jugo uxório que lhe aprouvesse a ela impor-lhes. Era pedir
por boca, era só escolher.
Capítulo 8
Cessara
a chuva, estava um tempo esplêndido. A luz branca do sol coava-se por um ar
muito fino em um céu muito azul, sem uma nuvem. A natureza expandia-se alegre
como um enfermo que volta à vida, como um convalescente.
Lenita
levantou-se de boa saúde, mas aborrecida, contrariada. A lembrança do Manuel
Barbosa torturava-a. Ter de encontrar-se com ele a todas as horas, à mesa, na
sala, vê-lo passear pela casa, pelo terreiro, vê-lo refestelar-se, bamboar-se
nas cadeiras de balanço, com as melenas, com as barbas grisalhas… era
horroroso.
Quando a chamaram para almoçar foi cheia
de displicência, contrariadíssima. Atara os cabelos negligentemente,
envolvera-se em um xale, ao desdém, sem se espartilhar, sem se apertar sequer.
Calçara chinelos.
Entrou
na varanda com os olhos baixos, resolvida a não encarar o antipático comensal.
A
mesa estava o coronel.
–
Bom dia, Lenita, então, como vai isso agora? muito desapontada com o rapaz,
não? Pois olhe, ele ainda fê-la melhor: partiu hoje de madrugada para a vila.
Tinha
um negócio urgente a tratar, pelo menos foi o que disse: chegou e saiu. A
enxaqueca dele é assim, atormenta-o que é um desespero, mas com uma hora de
sono passa sem deixar vestígios.
–
Estimo muito que tenha sarado, respondeu Lenita secamente e pensou baixo: que
durma um dia até não acordar mais. Um animal daqueles o melhor que pode fazer é
morrer, é rebentar. O mundo é da força e também da beleza, porque em suma a
beleza é uma força. As barbas! as barbas! Que leve o diabo a ele, mais a elas.
E
ficou muito contente por não ter de ver, por não ter de aturar Manuel Barbosa,
ao menos esse dia.
Demais
estava resolvida, não havia de ficar muito tempo na fazenda, partiria logo para
a cidade e de lá para São Paulo.
Almoçou
com prazer, tocou piano, deu um grande passeio a pé, jantou, só pensou
ou três vezes, isso mesmo com menos indignação, sem ressentimento, indiferente
quase, achando-se apenas ridícula a si própria por tê-lo arvorado um herói
durante um longo acesso de extravagância histérica. Era um pobre diabo,
caipirão, velhusco, achacoso. Caçava por caçar, sem intuição poética,
bestialmente, como qualquer caboclo. Bebia pinga. Verdade era que tinha estado
na Europa, mas ter estado na Europa não muda a constituição a ninguém. Ele era
o que ela devia esperar que ele fosse, um tipo muito sem imponência, reles,
abaixo até da craveira comum.
Ao
anoitecer recolheu-se, começou a arrumar os seus bronzes, os seus bibelots de marfim, de porcelana.
Envolvia-os cuidadosamente, amorosamente em papel de seda, arranjava-os no
fundo de um enorme baú americano que trouxera, calçava-os, protegia-os com
jornais velhos fuxicados, com guardanapos, com lenços, com pequenas roupas.
Tinha cuidados meticulosos, maternais, de amadora apaixonada. Por vezes
esquecia-se a remirar embevecida uma jarrinha de Sévres, uma estatueta
primorosa: no auge do entusiasmo beijava-a.
Alta
noite, muito tarde, estando já deitada ouviu um tropear de animais, passos de
gente, tinidos de esporas.
–
Aí chega o bruto, disse consigo, e continuou a pensar na sua ida próxima para a
cidade, e de lá para São Paulo.
O tempo estava firme: a uma noite limpa,
estrelada, fria, sucedera um dia como o da véspera, luminoso, assoalhado.
Lenita
levantou-se muito cedo, tomou um copo de leite, deu um passeio pelo pasto. De
volta entrou no pomar a ver os figuinhos novos, os cachos tenros das vides.
–
De uma laranjeira-cravo, que se erguia folhuda desde o chão, viçosa,
esparramada, esfuziou de súbito um
tico-tico.
Tem
ninho, pensou consigo Lenita, e começou a procurar, abrindo, afastando os
ramos.
Deteve-se,
aspirou o ar: sentia um cheiro bom de sabonete Legrand e de charuto havana.
Deu
volta à laranjeira e topou com Manuel Barbosa que se encaminhava para ela,
risonho, palacianamente curvado, na mão direita o chapéu, na esquerda um cravo
rubro, perfumado, esplêndido.
Perto
o charuto, que ele deitara fora, desprendia uma espiral de fumo, azulada,
tênue.
Lenita
parou confusa, atônita, sem saber o que pensasse.
O
homem que aí vinha não era o Barbosa da véspera, era uma transfiguração, era um
gentleman em toda a extensão da
palavra.
A
testa alta, estreita, lisa, mostrava-se a descoberto, com uma zona muito alva à
raiz do cabelo: esse, cortado, à meia cabeleira, recurvava-se a frente em uma
elegante pastinha à Capoul, a que dava certo realce muitos fios cor de prata. O
rosto era regularíssimo, estava muito bem barbeado. À palidez da véspera
sucedera uma cor sadia de pele clara, mordida, bronzeada pelo sol. A boca, de
tipo saxônio puro, encimada por um bigode cuidadosamente aparado e seu tanto ou
quanto grisalho, abria-se em um sorriso bondoso e franco, mostrando dentes
fortes, regulares, muito limpos. Estatura esbelta, pés delicados, mãos muito
bem feitas, muito bem tratadas.
Trazia
um costume folgado de casimira dará, gravata creme, camisa alvíssima, de
colarinho deitado, mostrando em toda a sua força o pescoço robusto. Na lapela
do veston tinha uma rosa de cheiro muito repolhuda.
Chegou-se
a Lenita polidamente, graciosamente.
–
Minha senhora, triste juízo há de vossa excelência ter feito de mim anteontem.
Quando estou com enxaqueca deixo de ser homem, torno-me urso, torno-me
hipopótamo. Quer fazer-me a honra de aceitar este cravo? Olhe, dê-me licença,
eu sou um velho, podia ser seu pai.
E
com uma familiaridade confiada prendeu a flor no cabelo da moça.
Depois,
afastando-se dois passos, mirou-a, entortando a cabeça, com ares de entendedor,
e disse:
–
Que bem que vai esse vermelho vivo nos seus cabelos pretos. Está linda.
O
olhar que coava por entre as pálpebras semicerradas de Barbosa era tão doce,
tão paterna, a sua fala era tão untuosa, que Lenita não se revoltou, não
repeliu a ousadia. Sorriu-se e perguntou:
– Está agora perfeitamente bom, não tem
cansaço da viagem, não tem ressaibos da moléstia?
– Oh! não. Viagens não me fatigam, e a
minha enxaqueca, em passando, passou, não deixa vestígios. Quer aceitar o meu
braço?
– Vamos dar uma volta pelo pomar, fazer
horas para o almoço?
Lenita
acedeu.
Em
um instante, como por ação elétrica, seus sentimentos se tinham transformado:
aos ardores pelo homem ideal da cisma histérica, à antipatia pelo homem real da
antevéspera, entrevisto em circunstâncias desfavoráveis todas, sucedera aí
nesse lugar, repentinamente um afeto calmo e bom que a subjugava, que a prendia
a Barbosa. Achava nele que era de bonomia superior, de familiaridade
comunicativa que lhe lembrava Lopes Matoso.
Passearam,
conversaram muito. Falaram principalmente de botânica. Barbosa estabeleceu um
confronto detalhado entre a flora do velho mundo e a do novo; entrou em
apreciações técnicas; desceu a minudências de sua própria observação pessoal. À
alternativa matemática das estações do ano na Europa contrapôs a magnificência
monótona da primavera eterna brasileira. Fez notar que lá domina nas matas o
exclusivismo de uma espécie, que há bosques só de carvalhos, só de castanhos,
só de álamos, ao passo que cá acotovelam-se, emaranham-se em pequeno espaço cem
famílias, diversíssimas a ponto de não se encontrarem, muitas vezes, dois
indivíduos da mesma variedade em um raio de mil metros. Abriu uma exceção em
Minas e no Paraná para a Araucaria brasiliensis, abriu exceções para as
palmeiras intertropicais, a que chamou legião. Lenita acompanhou-o com interesse
sumo, revelando conhecimento aprofundado da matéria, fazendo-lhe perguntas de
entendedora. Citou Garcia D’orta, Brótero e Martius, criticou Correia de Melo e
Caminhoá, confessou-se, em relação a espé-cies, sectária, ardente de Darwin,
cujas opiniões radicou a estima entre ambos; quando entraram para almoçar
estavam amigos velhos.
–
Olá? disse o coronel, da porta, ao vê-los chegar de braço dado. Muito bom dia !
Leve o diabo as tristezas. Com que amiguinhos, era o que eu esperava. Mas
vamos, vamos para dentro, que já não é sem tempo; o almoço arrefece de uma vez;
há meia hora que está na mesa.
–
Sim, senhor, meu pai, a Exma. senhora dona Helena é para mim uma surpresa, uma
revelação. Sabia-a muito bem educada, mas supunha-a bem educada, como o são em
geral as moças com especialidade as brasileiras – piano, canto, quatro dedos de
francês, dois de inglês, dois de geografia e… pronto! Pois enganei-me: a
Exma. senhora dona Helena dispõe de erudição assombrosa, mais ainda, tem
ciência, verdadeira, é um espírito superior, admiravelmente cultivado.
–
É por demais bondoso o: senhor Manuel Barbosa, volveu Lenita visivelmente
satisfeita.
–
Olhem vocês uma coisa, acabem-me com essas excelências, com essas senhorias.
É Lenita para cá, Manduca para lá e… toca! Cerimônias só para a
igreja: a num me fazem elas mal aos nervos, até agravam-me o reumatismo. Vamos
almoçar.
Daí
e Barbosa não se deixaram: liam juntos, estudavam juntos, passeavam juntos,
tocavam piano a quatro mãos.
Na
sala do coronel armaram um gabinete de física eletrológica.
A
velha quadra de paredes corcovadas, carequentas, povoou-se estranhamente de
instrumentos científicos moderníssimos, nos quais o brilho fulvo do latão
envernizado se casava ao preto baço das partes enegrecidas, à transparência
cristalina dos tubos de vidro multiformes, ao lustroso da madeira brumida dos
suportes, à verdura fresca da seda das bobinas.
Botelhas
de Leyde, jarras enormes, agrupadas em baterias formidáveis, máquinas de
Ramsden e Holtez, pilhas compartimentos Kruikshank e de Wollanston, pilhas
enérgica de Grove, de Bunsen, de Daniell, de Leclanché; pilhas elegantíssimas
de bicromato de potassa, acumuladores de Planté, bobinas de Ruhrnkorf, tubos de
Geissler, reguladores de Foucault e Duboscq, bugias de Jablochkff, lâmpadas de
Edson, telefones, telégrafos, tudo isso por aí protraía as formas esquisitas,
fosco, diáfano, reverberante a um tempo; absorvendo, refrangendo, refletindo a
luz de mil modos diferentes.
A
eletricidade sussurrava, multiplicavam-se por toda parte faíscas azuladas,
ouviam-se estalidos secos, tintinações sonoras de campainhas.
O
ar estava picado de um cheiro acre, irritante, de ácido azo-tico e de ozone.
Barbosa
e Lenita, ocupados, embebidos em experiências, trocavam palavras rápidas, quase
ásperas, como dois velhos colegas.
Davam-se
um ao outro ordens breves, imperiosas. De repente um deles batia o pé, contraía
o rosto, piscava duro, sacudia o braço: era que tinha havido um descuido,
punido logo por um choque. O coronel espiava da porta.
–
Que a sua sala estava convertida em senzala de feitiçarias, afirmava ele, que
de repente havia de vir um raio e espatifar aquelas burundangas todas.
Aos
convites instantes de Lenita e do filho para que chegasse a ver de perto os
efeitos luminosos da eletricidade no vácuo, as colorações brilhantes produzidas
nos tubos de Geissler, recusava-se – que lá não entraria nem por um decreto;
que para livrar-se por toda a sua santa vida do desejo de investigar
eletricidades, bem lhe bastavam dois choques que apanhara uma feita, na estação
telegráfica.
A
observação de que a eletricidade lhe podia ser útil para a cura do reumatismo,
contestava que se curasse quem quisesse com tal medicina, que ele não.
Satisfeita
a curiosidade científica de Lenita quanto ao estudo experimental da
eletrologia, que ela dantes só aprendera teoricamente, passaram à química e à
fisiologia. Depois foram à glótica, estudaram línguas, grego e latim com
especialidade: traduziram os fragmentos de Epicuro, o De Natura Reram de
Lucrécio.
Em
estudos, em conversações que eram prolongamentos dos estudos, em passeios e
excursões campestres, voava o tempo. Levantavam-se muito cedo, estendiam os
serões até muito tarde. Uma vez o moleque, que fora buscar o correio, trouxe
para Barbosa um volume lacrado. Era a exposição das teorias transformistas de
Darwin e Haeckel por Viana de Lima. Lenita ficou doida de contente com a
novidade escrita em francês por um brasileiro. Começaram a leitura depois da
ceia, prolongaram-na pela noite adiante, e embeveceram-se a tal ponto que o dia
os surpreendeu.
Ao
empalidecer a luz das velas com os primeiros albores do dia, foi que deram
acordo de si. Riam muito, recolheram-se desapontados aos seus aposentos, não
dormiram. Compareceram ao almoço e depois dele continuaram com a leitura.
À
noite, quando depois de despedir-se de Barbosa, entrava para o quarto, Lenita
despia-se, concentrando o pensamento, refletindo sobre o seu estado de
espírito, achava-se feliz, notava que tinha afetos brandos por tudo que a rodeava,
que via a natureza por um prisma novo. Sentia, com uma ponta de remorso, que
lhe ia esquecendo o pai. E parecia-lhe interminável o que restava da noite, o
que ainda faltava para tomar a ver Barbosa.
Deitava-se,
aconchegava-se, procurava adormentar o cérebro, repelindo, baralhando as ideias
que se apresentavam. Adormecia.
Cedo,
muito cedo, ao amiudar dos galos, acordava: erguia-se de pronto, alegríssima;
escovava os dentes cuidadosamente, mirava-os com desvanecimento ao espelho,
chegando muito a luz à boca, arregaçando muito os beiços para ver as gengivas;
refrescava a epiderme do busto com uma larga ablução fria, umedecia, perfumava
o cabelo com água de violetas, penteava-os com esmero, substituía a camisola de
dormir por uma camisa finíssima de cambraia crivada; apertava-se, vestia-se com
garridice; limava, espontava, alisava, coloria, brunia as unhas.
E
tudo isso pensando em Barbosa, antegostando a delícia do momento de vê-lo, de
ouvir-lhe a voz em um bom dia afetuosíssimo, jubiloso; de apertar-lhe a
mão, de sentir-lhe o contato quente.
Barbosa
já não era moço, pouco dormia, poucas horas de sono lhe bastavam.
Deitava-se,
procurava ler, mas debalde. A imagem de Lenita interpunha-se entre ele e o
impresso. Via-a junto de si, absorvia-se em contemplá-la nessa semi-alucinação,
falava-lhe em voz alta, desesperava, depunha o livro ou o jornal, estendia-se,
virava-se, revirava-se, adormecia, acordava, riscava fósforo, olhava o relógio,
via que era noite, tomava a adormecer, tomava a acordar, e assim continuava até
que amanhecia, até que chegava a hora de levantar-se.
–
Que não sabia o que aquilo era, pensava. Admiração por talento real em uma
moça, por faculdades inegavelmente superiores em uma mulher? Possível. Mas em
Paris trabalhara ele muito tempo com madame Brunet, a tradutora sapientíssima
de Huxley; com ela fizera centenares de dissecações anatômicas, com ela
aprofundara estudos de embriogenia; respeitava-a, admirava-a; e nunca sentia
junto dela o que sentia junto de Lenita. E todavia madame Brunet não era feia,
bem ao contrário. Não, aquilo não era simples admiração. Mas que diabos, era
aquilo então? Amor verdadeiro, com objetivo definido, carnal também não era: ao
pé de Lenita ainda não tivera desejo algum lascivo, ainda não sofrera o pungir
do espinho da caule. Tivera em tempo uma paixão que o levara à tolice suprema
do casamento, mas isso passara; tinha-se até divorciado da mulher com cujo
gênio se não tinha podido harmonizar. Casto, era-o até certo ponto: só
procurava relações genésicas, quando as exigências fisiológicas do seu
organismo de macho se faziam sentir, imperiosas, ameaçando-lhe a saúde. E não
ligava a isso mais importância do que o exercício de uma outra função qualquer,
do que satisfação de uma simples necessidade orgânica. Mas que era então o que
sentia por Lenita? Amizade no rigor do termo, como de homem para homem, e até
de mulher para mulher, não era: a amizade é impossível entre pessoas de sexo
diferente, a não ser que tenham perdido todo o caráter de sexualidade. Amor
ideal, romântico, platônico? Era de certo isso. Mas ridículo, santo Deus? que
oceano de ridículo! Quebradeiras sentimentais na casa dos quarenta, quando a
enduração do cérebro já não permite fantasias, quando a luta pela vida já tem
morto as ilusões?
O
caso era que não podia estar longe da moça, que só junto dela vivia, pensava,
estudava, era homem. Estava preso, estava aniquilado.
Capítulo 9
Quebrara em Santos uma casa comissária
importantíssima.
O coronel perdia na quebra cerca de
trinta contos.
– Que aquela praça era uma cova de Caco,
uma Calábria disse ele ao saber da notícia, um dia de manhã: que comiam o
fazendeiro por uma perna; que misturavam o café bom, mandado por ele, com o
café de refugo, com o café escolha comprado ao desbarato; que essa honestíssima
manipulação chamavam bater, fazer pilha, no que tinham carradas
de razão porque era mesmo uma batida de dinheiro, uma verdadeira pilhagem de cobres, que davam contas de
venda ao fazendeiro como e quando muito bem lhes parecia, e que diabo havia de
se ver grego para verificar a exatidão de tais contas; que à custa do
fazendeiro comia o intermediário, comia a estrada de ferro com as suas tarifas
de chegar, comia o governo com os velhos e novos impostos, comia a corporação
dos carroceiros, comia a três carrilhos o comissário, comia o zangão ou o
corretor, comia o exportador, comiam todos. Que afinal, para coroar a obra,
para evaporar o restinho de cobre que ficava, lá vinha a santa da quebra, a
bela da falência casual, já se deixava ver, porque onde há guarda-livros peritos
ninguém quebra fraudulentamente.
Ficou decidido que Barbosa partiria no
dia seguinte para Santos, a ver se conseguia salvar alguma coisa do naufrágio.
Logo depois do almoço conversou ele por largo espaço com o pai, discutiu, fez
contas, ajustou condições, dispôs as bases da negociação e, montado a cavalo,
foi à fazenda do vizinho mais próximo, major Silva com quem era necessário
entender-se, porque também era interessado no negócio.
Ao dizer-lhe adeus Barbosa, Lenita
sentiu-se fazer em torno dela um vácuo imenso, certa muito embora de que a
ausência era só até à tarde.
A ideia de outra ausência, da ausência
futura, da ida para Santos torturava-a.
Como lenitivo à sua mágoa, quis ela
própria fazer a mala de Barbosa, pretextando que não ficaria bom o arranjo
pelas mãos descuidosas de uma escrava.
Seguiu a mucama encarregada da roupa
branca, entrou pela primeira vez no quarto de Barbosa.
Ao fundo uma cama estreita de solteiro,
estendida, com lençóis e fronhas muito alvas; junto da cabeceira um criado-mudo
de tampo de mármore, e sobre ele um castiçal de alfenide com um coto de vela de
estearina, uma fosforeira de prata e um número de Diário Mercantil; ao
alcance da mão uma mesa vasta, forrada de baeta verde com alguns livros,
aprestos para escrever, dois revólveres, um punhal japonês e uma fotografia de
Sarah Bernhardt; aos pés da cama um mancebo para roupa, com muitos braços.
Pelas paredes, nos espaços deixados por um lavatório e uma enorme cômoda,
botelhas entrançadas de vime, facões, armas finas, de caça e de alvo, de
carregar pela boca, de retrocarga, de repetição, mareadas por Pieper, por
Habermann, por Greener, por Fruwirth. Um armário, uma cadeira preguiçosa e
várias cadeiras simples completavam o trastejamento.
Entrando, Lenita sentiu-se tomada de
embaraço inexplicável. Seu pudor revoltava-se, parecia-lhe que respirava
indecência naquele aposento de homem.
Correu-se de pejo, corou e com voz mal
segura perguntou à mucama pela roupa branca de Barbosa.
A mucama abriu uma cômoda, tirou dela e
empilhou sobre a cama camisas brancas engomadas, camisas de dormir de flanela
macia, ceroulas de linho alvíssimo, toalhas, lenços brancos e de bretanl1a,
lenços de seda de cor, meias de fio de Escócia.
Foi buscar e colocou junto da cama uma
grande mala inglesa de bojo elástico de fole; no couro preto, punha uma nota
viva, um pedaço de papel encardido com o letreiro – Tamar, cabin.
Desafivelou as correias, abriu-a em duas.
Lenita forrou um dos compartimentos com
uma toalha de algodão mineiro finíssimo, crivada, franjada em abrolhos, e, com
esse cuidado meticuloso, com esse jeito peculiar às mulheres moças, começou a
arrumar peça sobre peça, perfumando cada uma com um borrifo de essência Vitória
vaporizada.
Na candidez dos linhos destacava-se, em
notas cruas, o vermelho-sangue, o azul-de-rei dos lenços de seda, o ouro-fosco,
o verde-garrafa, o preto-lustroso das meias de fio de Escócia.
A mucama saiu, passou a outro quarto
para trazer umas roupas de casimira que Barbosa lhe dissera querer levar.
Lenita ficou só. Foi a tirar a última
camisa de sobre a cama e notou que, no retesado da coberta, havia um
afundamento apenas visível sobre a travesseira rendada uma depressão mais cava.
Depois de feita a cama, Barbosa com certeza nela se estendera a descansar.
Inconscientemente, automaticamente,
atraída, puxada pelos nervos, Lenita pôs as mãos no colchão fofo, curvou-se,
aproximou a cabeça.
Da travesseira, misturando-se a um aroma
suave de água de Lubin, desprendia-se um cheiro animal bom, de corpo humano,
são, asseado.
Lenita, haurindo essa emanação sutil,
sentiu quer que era elétrico abalar-lhe o organismo: era um anseio vago, uma
sede de sensações que a torturava. Quase em delíquio, deixou-se cair de bruços
sobre a cama, afundou o rosto na travesseira, sorveu a haustos curtos, açodados,
o odor viril, esfregou, rostiu os seios de encontro ao fustão áspero da colcha
branca.
Sentia quase o mesmo que sentira na
noite da alucinação com o gladiador, um prazer mordente, delirante, atroz, com
estranhas repercussões simpáticas, mas incompleto, falho.
Trincou nos dentes a cambraia da fronha,
gemendo, ganindo em contrações espasmódicas.
– Eah! gritou a mucama que entrava,
sinhazinha está com ataque! e, atirando sobre a cadeira a roupa que trouxera,
correu para ela, ergueu-a nos braços, sacudiu-a com força.
Lenita acalmou-se sem demora: estava
pálida, trêmula, tinha os olhos muito brilhantes, a boca pegajosa, a fala
travada.
– Não é nada disse, foi uma vertigem, já
passou. Vá buscar um copo d’água.
– Sinhazinha, ponderou a mucama, o que lhe fez mal foi o cheiro forte
do vidro que vassuncê estava pondo na roupa: a mim também me tonteou. Cuidado.
E saiu.
À tarde, Barbosa, quando voltou da
fazenda do major Silva, estranhou a Lenita. Ela não o procurava, não lhe
falava, mal respondia às suas numerosas e reiteradas perguntas.
Contra o costume recolheu-se cedo, antes
da ceia, pretextando incomodo.
Barbosa despediu-se do pai e da mãe: não
os queria ir acordar de madrugada, e contava partir antes de amanhecer.
Entrou para o quarto mas não pôde dormir.
A viagem que tinha de fazer contrariava-o imenso. Não sabia como passar ausente
de Lenita. As poucas horas que estivera na fazenda do major Silva tinham-lhe
parecido eternidades.
Viera a galope. E mais, para coroar a
obra, os modos bruscos da moça.
Acabou de arrumar a mala.
– Sim, senhor, disse, a Marciana
arranjou isto muito bem. Está admirável, até com gosto,
com arte. Mas, onde diabo foi ela buscar
essência Vitória? Cheira que é uma delícia. Fez jus a cinco mil-réis, há de
tê-los.
Tirou do armário uma garrafa de
conhaque, bebeu um cálice, acendeu um charuto.
Entrou a pensar.
–
Que teria Lenita? Teria adoecido assim de repente? Regras, aquilo de certo eram
regras: lota mulier in utero bem disse Van Helmont. Mas não era que
estava mesmo apaixonado pela rapariga? Tinha graça!
Puxou com força uma fumaça, e continuou
a pensar!
– Era casado, era quase um velho. Onde
iria parar aquilo?.. Não levava a fatuidade ao ponto de crer que a rapariga
estivesse apaixonada também pela sua respeitável pessoa… mas, em suma, por
que não? Muitos velhos tinham inspirado paixões. A mulher de Lesseps era uma
mocinha nova, quase uma criança, e casara por paixão. E demais ele, Barbosa,
não era velho, era homem maduro apenas. Dado que o que havia entre ele e Lenita
não fosse, como não podia mesmo ser, uma mera afeição de camaradagem, uma
simples estima recíproca, que havia ele de fazer? Casar com Lenita não podia,
era casado. Tomá-la por amante? Certo que não. Preconceitos íntimos não os
tinha: para ele o casamento era uma instituição egoística, hipócrita,
profundamente imoral, soberanamente estúpida. Todavia era uma instituição velha
de milhares de anos, e nada mais perigoso do que arrostar, contrariar de chofre
as velhas instituições; elas hão de cair, sim, mas com o tempo, a mesma
lentidão com que se formaram, e não de chofre, como u relâmpago. A sociedade
estigmatizava o amor livre, o amor fora do casamento; força era aceitar o
decreto antinatural da sociedade. Demais, seu pai tivera Lopes Matoso em conta
de filho; tinha a Lenita em conta de neta: um escândalo magoá-lo-ia
profundamente, matá-lo-ia talvez.
Sentou-se junto à mesa, quebrou em um
cinzeiro a cinza do charuto, apoiou o cotovelo do braço esquerdo sobre o joelho
correspondente, encostou a cabeça no rebordo interno da mão, engolfou-se em
cisma, tirando fumaça sobre fumaça.
Após largo espaço ergueu-se, atirou fora
a ponta do charuto, entrou a passear nervoso de um para outro lado.
– Não, exclamou de repente, é preciso
que isto acabe, há de acabar.
Deitou-se.
Às três horas ergueu-se sem ter
conciliado o sono, chamou o pajem, mandou-o encilhar os animais, lavou-se,
vestiu-se, calçou botas, calçou luvas, envergou o guarda-pó, pôs o chapéu,
tomou às pressas uma xícara de café, que uma preta lhe trouxe, saiu, montou a
cavalo e, acompanhado pelo pajem, seguiu jornada.
Lenita também não dormira.
O cheiro humano masculino que respirara
na travesseira de Barbosa fora realmente um veneno para os seus nervos.
Sentia-se de novo presa do mal-estar do histerismo antigo. Tinha anseios, tinha
desejos, mas anseios, desejos acentuados, visando a objetiva certo. Ela ansiava
por Barbosa. ela desejava Barbosa.
A seus olhos avultara ele, tomara
proporções novas, realizara-lhe o ideal. Deixara-se subjugar, dominar pelo
físico robusto e nervoso, pela pujante e culta mentalidade de Barbosa.
A fêmea altiva, orgulhosa, mas cônscia
da sua superioridade, encontrava o macho digno de si: a senhora se fizera
escrava.
Ao ouvir o estrupido dos animais na
partida, Lenita abriu a janela, ergueu a vidraça, acompanhou com o olhar os
vultos dos dois cavaleiros que se iam perdendo nas brumas da madrugada.
Notou que paravam, que se voltava o
cavaleiro da frente, cujo guarda-pó muito claro punha uma nota muito branca no
nevoeiro matutino.
Seria por um dos mil pequenos incidentes
de viagem que paravam? seria para contemplar Barbosa ainda mais uma vez, a casa
em que ela ficara? seria uma despedida?
Sem o querer, inconscientemente, Lenita
apinhou os dedos, levou-os à boca, atirou um beijo ao espaço.
E desatinada, ardendo em pejo, muito
embora certa de que ninguém a vira, fechou a janela arrojou-se à cama desatou
em pranto convulso.
Despontou o sol, trazendo dia radiante,
lindíssimo.
Lenita ergueu-se, vestiu-se às pressas,
saiu a dar uma volta pelo pomar, deixando intactos o copo de leite e a xícara
de café que lhe levara a servente.
O ar fino da manhã puríssima, saturado
das emanações balsâmicas das árvores abafava-a, sufocava-a: parecia-lhe que
respirava chumbo.
A luz do sol, a dourar a verdura mole do
campo, era crua e incomparável a seus olhos. Achava algo de hostil na
vegetação, em tudo.
Era-lhe odiosa a imobilidade dos cerros
vizinhos, das montanhas que ao longe divisava. Um terremoto, um cataclismo que
desmoronasse as serranias, alteando os vales, derramando os rios, convulsionando
tudo, iria muito melhor ao seu estado de espírito do que essa calma da
natureza, bárbara, estúpida.
Figurava-se-lhe estar dentro de um
círculo de altas muralhas de aço brunido, cujo diâmetro se fosse a cada
instante estreitando. Tudo lhe falava de Barbosa, tudo lhe recordava.
Aqui era a laranjeira-cravo junto da
qual o vira, como em um avatar, como em uma transfiguração, risonho,
franco, comunicativo, sob o aspecto que em um momento a cativara.
Ali era um grupo de ameixeiras, que
servira de assunto a uma preleção de botânica industrial. Lembrava-lhe muito
bem – ameixeira da Índia, ameixeira do Canadá, nomes impróprios,
origens falsas. A árvore é autóctone da China e do Japão, onde vive em estado
selvagem, é a eriobotria, Mespilus japonica. Está destinada a um
grande papel no futuro, quando este país se tomar industrial. A geleia que
produz não tem competidora, e a sua aguardente, coobada, levará de vencida a
famosa kirchwasser.
Além era um renque de ananazeiros, a
cujo respeito a exposição luminosa e fácil de Barbosa lhe tirara muitas
dúvidas. Como lhe vivia na memória a descrição que ele fizera – bromelia
arianas, família das bromeliáceas; folhas em corimbos, duras,
quebradiças, alfanjadas, de perto de metro, às vezes, guarnecidas de acúleos; flor
vermelha ou roxa, a emergir de um cálice duro, cor de sangue, em pecíolos
longos de vinte a trinta centímetros; fruto lindo, pinhiforme, verde,
branquicento, dourado, vermelho, constituído por uma série de bagas em hélice,
soldadas, unificadas umas com as outras, em escamas orladas de pequenas folhas
escarlates, coroado tudo por um penacho espinhento. Abacaxi, nanâ,
macambira, onore, uaca, achupala, naná-iacua,
chamava-se no continente sul-americano essa fruta adorável que, em 1514,
Fernando, o Católico, declarou, na Espanha a primeira fruta do mundo. Gonzalo
Hernandez, Lery, Benzoni descreveram-na em suas obras; Cristóvão Acosta deu-lhe
o nome que hoje tem. Conta nada menos de oito variedades; penetrou na África
até às margens do Congo, na Ásia até o coração da China: é soberbo em
Pernambuco, mas onde atinge a perfeição em forma, em aroma, em gosto, onde
chega a ser divino é no Pará.
Ainda além um mamoeiro…
E Lenita sacudiu a cabeça, interrompendo
desesperada o seu curso de ideias; os ensinamentos de Barbosa, a sua erudição,
o que ela reproduzia, mais lhe acendravam o desalento da saudade.
Não o podia crer ausente: ele lá estava,
lá devia estar na sala do coronel, a arranjar um aparelho elétrico desmanchado:
ou na varanda, a procurar em grossos léxicos uma raiz grega ou sânscrita. Sim,
lá devia estar dentro, fazendo uma das coisas do costume. Quem sabe se
precisava dela para o ajudar…
E correu. Antes de chegar ao portão
parou. Tolices, Barbosa estava longe, partira, ela o vira partir.
A essa hora já tinha andado umas duas
léguas, seis mil braças, treze mil e duzentos metros: cada minuto afastava-o
dela cento e dez metros. No outro dia, às seis horas e dez minutos,
precisamente, da tarde, deveria estar, estaria em Santos, a quarenta e cinco
léguas, a trezentos quilômetros, a trezentos mil metros!
Recolheu-se abatida, mal almoçou jantou ainda pior.
Ao entardecer, quando o sol, no
descambar, derramava sobre a terra torrentes de luz amarela, suave, cor de
ouro-velho, projetando ao longe, gigantescas, as sombras dos animais, das
árvores, das casas, dos cerros, Lenita com o peito opresso, a arfar em fôlegos
curtos, foi sentar-se em um bosquezinho denso de amoreiras, sobre um alcantil,
à beira do ribeirão.
Oculta pelo tramado da folhagem, ela
abrangia um vasto trato de terreno no arco de círculo percorrido pelo raio
visual. Na verdura veludosa do pasto, punham notas fortes grandes vacas muito
pretas, malhadas de branco.
Um touro andaluz, vermelho, mugia ao
longe, escarvando a terra. Um rebanho de ovelhas fuscas de cabeças e pernas
muito negras pascia irrequieto, às cabriolas, tosando a grama aqui e ali.
Quase a seus pés, sob o alcantil das
amoreiras, o riacho espraiava-se em uma corredeira rasa, sobre fundo de
seixinhos alvos. Um capão de mato ralo começava à beira da água, indo morrer a
pequena distância.
Lenita contemplava o amplo cenário,
abstrata, distraída, imersa em cisma, olhando sem ver. Um mugido fero, ao
perto, chamou-a à realidade.
O touro tinha-se aproximado de uma vaca
muito gorda, cuja cria, terneira alentada, pastava já longe, deslembrada quase
da teta.
Chegara-se farejando ansioso, cheirava o
focinho da vaca, cheirava-lhe o corpo todo: erguera cabeça aspirando
ruidosamente o ar, mostrando, no arregaçar luxurioso da beiça, a gengiva
superior desdentada; soltara um berro estrangulado.
Fora o que Lenita ouvira.
O touro lambeu a vulva da vaca com a
língua áspera, babosa, e depois, bufando, com os olhos sanguíneos esbugalhados,
pujante, temeroso na fúria do erotismo, levantou as patas dianteiras, deixou-se
cair sobre a vaca, cobriu-a, pendendo a cabeça à esquerda, achatando o
perigalho de encontro ao seu espinhaço.
A vaca abriu um pouco as pernas
traseiras, corcovou-se, engelhou a pele das ilhargas para receber a fecundação.
Consumou-se esta em uma estocada rubra, certeira, rápida.
Era a primeira vez que Lenita via,
realizado por animais de grande talhe, o ato fisiológico por meio do qual a
natureza viva se reproduz.
Espírito culto, em vez de julgá-lo
imoral e sujo, como se praz a sociedade hipócrita em representá-lo, ela achou-o
grandioso e nobre em sua adorável simplicidade.
Um assobiar requebrado e terno que se
fazia ouvir no riacho fê-la voltar para esse lado. Olhou, viu a Rufina, uma
crioula nova de seios pulados e duros, de dentes muito brancos.
Chapinhava na água rasa da corredeira,
de cabeça alta, risonha, erguendo as fraldas muito alto; descobrindo-se até o
púbis, mostrando as coxas grossas, musculosas de um negro mate arroxado.
A assobiar sempre, avançou até o começo
da corredeira, onde o álveo se afundava um tanto, sofraldou-se mais, prendeu a
roupa à cinta, curvou-se, imergiu as nádegas na água murmurosa, e, às mãos
ambas, procedeu a uma ablução de asseio, tônica ao mesmo tempo e excitante.
Depois, com água a escorrer em filetes
lustrosos pela pele escura, baça, internou-se no capão.
Ouvia-se-lhe sempre o assobio
requebrado.
Não levou muito e outro assobio
respondeu-lhe.
Por uma trilha do ancantil oposto um
preto, moço, vigoroso, desceu a correr, atravessou rápido a corredeira,
internou-se por sua vez no capão.
Cessaram os assobios.
Lenita ouviu um murmurar confuso de
vozes intercortadas, viu agitarem-se uns ramos e, pelos interstícios dos
troncos, por entre o emaranhado dos galhos, lobrigou indistintamente uma como
luta breve, seguida pelo tombar desamparado, pelo som baço de dois corpos a
bater a um tempo no solo arenoso do matagal.
Lenita mais compreendeu do que viu. Era
a reprodução do que se tinha passado, havia momentos, mas em escala mais
elevada: à cópula, instintiva, brutal, feroz, instantânea dos ruminantes,
seguia-se o coito humano meditado, lascivo, meigo, vagaroso.
Abalada profundamente em seu organismo,
com a irritação dos nervos aumentada por essas cenas cruas da natureza,
torturada pela carne, mordida de um desejo louco de sensações completas, que
não conhecia, mas que adivinhava, Lenita recolheu-se titubeando, fraquíssima.
O coronel tinha passado a noite mal, com
um acesso de reumatismo; conservara-se todo o dia na cama.
Lenita foi vê-lo, demorou-se pouco,
retirou-se para o seu quarto, fechou-se por dentro.
Capítulo 10
Já tinha anoitecido.
Não havia luar, mas a noite estava
clara. Na transparência escura do céu tropical as estrelas empastavam-se em um
amontoamento inverossímil, como punhados de farinha luminosa em tela muito
negra.
No terreiro, varado, em frente às
senzalas, uma fogueira crepitava alegre, espancando a escuridão com seu brasido
candente, com suas línguas de chamas multiformes, irrequietas.
Os negros tinham acabado uma carpa nesse
dia, e o coronel dera-lhes permissão para folgar, mandando ao mesmo tempo que o
administrador lhes fizesse uma larga distribuição de aguardente.
Ao som de instrumentos grosseiros
dançavam: eram esses instrumentos dois atabaques e vários adufes.
Acocorados, segurando os atabaques entre
as pemas, encarapitados, debruçados neles, dois africanos velhos, mas ainda
robustos, faziam-nos ressoar, batendo-lhes nos couros, retesados, às mãos
ambas, com um ritmo, sacudido, nervoso, feroz, infrene.
Negros e negras formavam um vasto
círculo agitavam-se, permeavam, compassadamente, rufavam adufes aqui e ali. Um
figurante, no meio, saltava, volteava, baixava-se, erguia-se, retorcia os braços,
contorcia o pescoço, rebolia os quadris, sapateava em um frenesi indescritível,
com uma tal prodigalidade de movimentos, com um tal desperdício de ação nervosa
e muscular, que teria estafado um homem branco em menos de cinco minutos.
E cantava:
Serena pomba, serena;
Não cansa de serená!
O sereno desta pomba
Lumeia que nem meta!
Eh! Pomba! eh!
E a turba repetia em coro:
Eh! Pomba! eh!
A voz do cantor, fresca modulada de um
timbre sombrio, coberto, tinha uma doçura infinita, um encanto inexprimível.
Fechando-se os olhos, não se podia crer
que sons tão puros saísse a garganta de um preto, sujo, desconforme, hediondo,
repugnante.
A resposta coral, melopeia inarmônica,
mas cadenciada em quebros de uma tristeza suavíssima, repercutia pelas matas no
silêncio da noite, com uma grandiosidade melancólica e estranha.
A letra nada dizia; a toada, o canto era
tudo.
E os atabaques retumbavam, rufavam os
adufes, desesperadamente.
O dançarino, sempre a cantar, sempre
naquela agitação, naquela coreomania estupenda, percorria a roda sem sustar-se
para retomar alento, sem dar mostras de cansado. Em sua testa baça não brilhava
uma baga de suor.
De repente, vendo um tição inflamado na
mão de um companheiro, asiu-o, entrou a descrever com ele no ar figuras caprichosas,
círculos, elipses, oitos de algarismo. Bateu-o no chão, espalhou na roda
milhares de faúlas… O entusiasmo ascendeu ao delírio.
O dançarino deitou fora o tição,
arrojando-o longe com impulso vigorosíssimo. Depois afrouxou, moderou um pouco
os movimentos. Entreparou ante um dos da roda, bamboando-se, fazendo-lhe
gaifonas, como que reptando-o para que saísse ao terreiro.
O desafiado aceitou a provocação,
saiu-lhe ao encontro, dançando, saracoteando-se, também.
Eh! Pomba! eh! – gemia o coro.
Os figurantes, que eram então os dois,
começaram de girar em torno do outro, atacando-se perseguindo-se, fugindo, como
duas borboletas amorosas. Recuaram, depois avançaram de frente, lento,
medindo-se. Deixaram pender os braços, afastaram as cabeças, protraíram os
ventres, curvando as pemas, fizeram estalar uma embigada artística, sonora,
retumbante, que se ouviu longe.
Eh! pomba! eh! – continuava a gemer o
coro.
O primeiro figurante embarafustou-se por
entre os companheiros, rompeu a roda, sumiu-se, deixando só o sucessor que
continuou na faina com a mesma galhardia.
Os que não dançavam, que não tomavam
parte no samba, grupavam-se aos magotes, acotovelando-se; olhavam em silêncio,
enlevados, absortos.
Do solo batido pelo tripudiar de tanta
gente erguia-se uma nuvem de pó, avermelhada pelo clarão da fogueira.
A garrafa de aguardente andava de mão em
mão: não havia copos; bebiam pelo gargalo.
Ao cheiro de terra pisada, de cachaça,
de sarro de pito, sobrelevava dominante um cheiro humano áspero, aliáceo, um
odor almiscarado forte, uma catinga africana, indefinível, que doía ao olfato,
que cortava os nervos, que entontecia o cérebro, sufocante, insuportável.
Enquanto se dançava no terreiro, Joaquim
Cambinda, escravo octogenário, inútil para o trabalho, estava sozinho, sentado
em um cepo, ao pé de um fogo de lenha de perova, no paiol velho abandonado, que
a rogo seu lhe fora concedido para morada.
Era horroroso esse preto: calvo,
beiçudo, maxilares enormes, com as escleróticas amarelas, raiadas de laivos
sanguíneos, a destacarem-se na pele muito preta. Curvado pela idade, tardo,
trôpego, quando se erguia e, envolto na sua coberta de lã parda, dava alguns
passos, similhava uma hiena fusca, vagarosa, covarde, feroz, repelente. Tinha
as mãos secas, aduncas; os dedos dos pés reviravam-se-lhe para dentro,
desunhados, medonhos.
O paiol velho formava uma vasta quadra
de telha vã de chão de terra, esburacado. A um canto um chalo de paus roliços,
com uma esteira, um travesseiro negro e lustroso, umas traparias imundas: era a
cama do africano. Por baixo do chalo, no desvão escuro, punha uma nota branca
um urinol velho de louça ordinária, desbeiçado, com um arquipélago de incrustações
úricas no fundo muito fétido, nauseabundo. Junto do chalo, uma caixa de pinho,
cuja fechadura nova, envernizada, destacava-se muito lustrosa na madeira
carunchada, enegrecida pela fumaça. Em outro canto, fronteiro ao chalo, sobre
uma mesa coxa, um oratório vetusto, de gonzos enferrujados, gastos, roído de
ratos em vários lugares, muito ensebado. Pelas paredes, saquinhos de boca
amarrada, samburás, porungas de pescoço, guampas boi cartolas antiquíssimas,
sobrecasacas arcaicas, de três pontas na lapela, do tempo do rei. Por todo o
chão, abóboras, pepinos maduros, espiga de milho com casca, cabos de
instrumentos de lavoura, cepos de madeira, cascas de ovos, talos de couve,
montes de cisco.
A
porta estava apenas cerrada: abriu-se e entrou uma negra ainda moça, magra,
baixinha, de olhos fundos, olhar febril. Estava vestida de cores muito
espantadas, saia amarela, casaco vermelho. Tomou a bênção a Joaquim Cambinda, e
foi sentar-se em silêncio junto do fogo.
Um a um, vieram outros pretos e pretas.
Entravam, davam louvado ao velho, e, silenciosos, acomodavam-se sobre
cepos, ao pé do fogo: ao todo dez.
Quando completo esse número, Joaquim
Cambinda disse:
– Féssa póta1.
A negra que primeiro chegara
levantou-se, cumpriu a ordem, voltou a sentar-se em seu lugar.
Reinou silêncio por largo espaço.
Fora ouvia-se o coro retumbando na
noite:
Eh! Pomba! eh!
Joaquim Cambinda acendera um cachimbo de
longo canudo, e fumava tranqüilo, sem parecer dar fé dos circunstantes.
Cerca de meia hora levou absorto, com os
olhos cerrados meditando, cochilando, a puxar fumaças, morosamente, preguiçosamente.
Quando se consumiu o carrego do
cachimbo, sacudiu as cinzas, bateu-o bem, cuidadosamente, soprou-lhe o canudo,
encostou-o à parede. Ergueu-se e, lento, titubeante, monstruoso, caminhou para
o oratório, chegou, abriu-lhe as folhas da porta de par em par, tirou para fora
duas velas de cera que estavam dentro, em castiçais de latão, riscou fósforos,
acendeu-as, iluminou o interior do nicho, revestido de papel de prata, mareado.
Dois eram os divos desse mesquinho e
sórdido laranjo: um São Miguel de gesso, cambuto, retaco, muito feio, muito
pintado de excretos de moscas; e um manipanço, tecido inteirinho de cordas
finíssimas de embira, hediondo, pavoroso, mas admirável pelos detalhes anatômicos,
estupendo como obra de paciência.
Os negros ergueram-se todos, reverentes.
-Zelómo, disse Joaquim
Cambinda, ussê penso bê nu quê ussê vai
fazê, lapássi?
–
Penso, mganga.
–
Intonsi, ussê qué mêmo si rissá ni rimanári ri San Migué rizáma?
– Qué, mganga.
Que era muito bom, explicou Joaquim
Cambinda na sua meia língua, pertencer um preto à irmandade de São Miguel das
Almas, mas que também era perigoso; que quem não tinha peito não tomava mandinga;
que o branco queria, por força, saber o segredo dos irmãos de São Miguel, e que
para isso surrava o preto, mas que o preto que revelava o segredo de São Miguel
morria sem saber de quê. Fez o neófito beijar os pés de São Miguel, fê-lo
beijar os cornos do Satanás a ele sotoposto, fê-lo beijar as partes genitais do
manipanço; ditou-lhe juramentos solenes, cominou-lhe penas terríveis no caso de
infração. Recebeu dele dinheiro, trinta mil-réis, seis notas de cinco mil-réis,
que estavam no bolso da calça, muito enleadas em um lenço de chita muito sujo.
Passou à parte doutrinaria, entrou a iniciá-lo na arte terrível dos feitiços e
dos contras, a dar-lhe meios de matar, de curar. Ensinou-lhe que a semente do
mamoninho bravo (Datura stramonium), socada, macerada em aguardente,
cega, enlouquece, mata dentro de poucas horas; que osso de defunto, cuja carne
caiu de podre, raspado e posto em uma comida qualquer, produz amarelão
incurável; que o sapo verde do mato virgem, sufocado a fogo lento, dentro de
uma panela nova coberta por testo novo, morre largando uma espumarada branca,
com a qual, diluída em água, se produz uma hidropisia necessariamente mortal;
que as folhas do jaborandi (Pilacarpus pinnatifolius), pisadas,
reduzidas a massa, aplicadas aos sovacos, produzem suares e salivação, curam
muitas moléstias; que a raiz de Guiné (Mappa graveolens) e a nhandirova
(Fieuillea cordifolia) são contras poderosís-simos para todas as coisas
feitas.
Ensinou mais uma infinidade de
superstições, medonhas umas, outras muito ridículas: que a mão ressequida de
uma criancinha morta sem batismo é um talismã precioso para conciliar o amor;
que uma lasca de pedra de ara, furtada a uma igreja, fecha o corpo, toma-o
invulnerável a tiros de arma de fogo, a pontaços de arma branca; que café coado
com água de banho por fralda de camisa de mulher, ou por fundilho de ceroula de
homem, sem lavar, capta a simpatia, amansa o gênio bravo; que corda de
enforcado faz ganhar dinheiro ao jogo; que uma figa de raiz de arruda,
arrancada em sexta-feira maior, é remédio soberano de quebranto, de mal de olhado;
que, para inutilizar um mestre feiticeiro, para tirar-lhe o poder, é preciso
surrá-lo com uma vara de fumo e quebrar-lhe na cabeça três ovos chocos.
Passou a curar o neófito, fechar-lhe
o corpo, a anestesiá-lo para não sentir castigos físicos: mandou que se
despisse, que se pusesse de quatro pés, como uma besta. Murmurando palavras
inconexas, frases de engrimanço, untou-o com uma pomada rançosa que tirou de
uma latinha muito oxidada, borrifou-o com uma água de uma porunga que
desprendeu da parede. Disse-lhe que era preciso repetir a operação em mais seis
sextas-feiras, para que o encanto ficasse completo, e o corpo insensível de uma
vez.
Para provar com fatos o seu poder, para
demonstrar a eficácia dos seus sortilégios, chamou a preta magra, a primeira
que viera. Acudiu ela, aproximando-se ligeira, muito contente.
Passou-se uma cena estranha.
Joaquim Cambinda tirou do oratório uma
agulha de coser sacos, comprida, acerada e, tomando o braço esquerdo da preta,
atravessou-o de parte a parte, em vários lugares, por várias vezes, sem que
ressumasse uma pinga de sangue: a paciente olhava curiosa para o braço, sem dar
a mínima mostra de dor.
Joaquim Cambinda largou a agulha,
afastou-se um pouco, baixou-se, fitou-a de modo particular, por sob a pálpebra,
com a pupila brilhante, fixa como a de um réptil.
A rapariga soltou um grande grito, e
levou as mãos ambas ao peito.
A bola! a bola! Sufoco! exclamou.
E caiu desamparada, com os olhos
esbugalhados, em alvo, com a boca torta, com os membros contorcidos por
convulsões tetânicas.
Estenderam-se-lhe, inteiriçaram-se os
braços, os punhos viraram-se para fora; os dedos fecharam-se, penetrando quase
as unhas nas palmas das mãos; a língua estava negra e pendente, betada aqui e
ali por fios de baba escumosa.
E revolvia no solo, aos saltos, como uma
cobra cortada aos pedaços.
De súbito largou um berro entrecortado,
gutural, rouco, que nada tinha de humano. Deu uma estremeção, curvou-se para
trás, assumiu a forma de um bodoque retesado, quedou-se imóvel, dura, firme, em
uma posição impossível: por uma parte tinha o alto da cabeça apoiado ao solo,
e, por outra, os dois pés que assentavam em cheio, um pouco separados; ao todo
três pontos de apoio.
Os punhos continuavam cerrados, e os
braços tesos, ao longo do corpo. A rigidez era cadavérica mais ainda, marmórea,
metálica.
Joaquim Cambinda sorria-se medonhamente.
Com uma agilidade que desmentia o seu
vagar, o seu tolhimento costumeiro, e de que ninguém o teria julgado capaz,
trepou de um salto sobre essa esquisita ponte humana.
Com os olhos reluzentes; como o clarão
do fogo a refletires-lhe na calva negra, polida mostrando os dentes amarelos em
esgares diabólicos, ele pulava, tripudiava sobre o estômago, sobre o ventre,
sobre o púbis da convulsionada.
Ela não se abalava, não se mexia sob o
impulso dos pés, sob a ação do peso do monstro: semelhava uma ponte de arco,
feita de cantaria.
Joaquim Cambinda desceu, foi a um canto
buscar um cabo de picareta, e com ele entrou a bater-lhe duro no peito, no
ventre.
Os golpes sucediam-se, crebros, com um
som baço, abafado, como se fossem dados em um saco de trapos.
De súbito a vítima desinteiriçou-se,
recobrou moleza vital, recaiu no solo pesadamente, em atitude humana.
Inundavam-lhe o rosto grossas camarinhas
de suor.
Os assistentes estavam aterrados.
O tétrico hierofante desses horrendos
mistérios tinha apagado rapidamente as velas, tinha fechado o oratório, estava
de novo silencioso, sentado em um cepo, atiçando o fogo.
A rapariga dormia, dormia profundamente,
respirando alto, em estertores.
Fora, o samba continuava; ouvia-se
tutucar dos atabaques, e o estrupido surdo dos pés; sonoro, melancólico,
plangente, repercutiu o estribilho:
Eh! Pomba! eh!
Capítulo 11
Havia muitos dias que Barbosa partira, e
apenas tinha escrito uma carta ao coronel, sobre negócios, na qual lhe dava
esperanças de salvar trinta por cento do material comprometido.
A princípio Lenita mandava o moleque à
vila todos os dias buscar o correio. Muito antes da hora de ele voltar, já ela
estava à porta a espiá-lo. Quando no alto do morro despontava o seu vulto,
vestido de algodão branco, sacudido pelo chouto de um burrinho ruço velho, a
pôr uma mancha de alvadia e movediça no amarelo baço do caminho, ela corria à
porteira da cerca, a encontrá-lo.
Tomava com mão febril o surrãozinho de
sola em que vinha a correspondência, abria-o, e, como só caíssem jornais,
perguntava nervosa, trêmula, afagando ainda um resto de infundada esperança:
– E as cartas, onde estão as canas?
É indescritível o seu desapontamento, a
sua cólera mesmo ao ouvir a resposta do moleque, voz lenta, doce, meio cantada,
indiferente: – Carta não tem.
Aborreceu-se, não o mandou mais à vila
buscar o correio, e, quando ele, de si próprio, lhe ia entregar os jornais,
dizia ela com mau modo: – Ponha lá em cima da mesa.
Um dia, a destacar-se no emaranhamento
de letra miúda de um maço de Jornal do Comércio, viu ela uma carta volumosa,
empanturrada. O sangue refluiu-lhe todo ao coração quando reconheceu a letra de
Barbosa no subscrito liso, do papel diplomata:
Ilma.
Exma. Sra.
D. Helena
Matoso.
Vila de
*** Província de S. Paulo.
Arrancou-a violentamente da mão do
moleque, deixando cair por terra os jornais, que não curou de erguer:
acolheu-se ao seu quarto, apenando-a de encontro ao seio.
Fechou a porta por dentro, à chave; semicerrou
as janelas, deixando apenas interstício por onde entrasse a luz necessária. Não
queria ser vista, não queria que ninguém a pudesse incomodar.
A tremer, com as mãos tactas, despedaçou
o envelope, impacientemente, brutalmente quase.
A carta constava de muitas folhas de
papel paquete, pelure d’oignon, cobertas de letra cursiva em todas as
laudas, tudo numerado muito em ordem.
Lenita leu:
Santos, 22 de janeiro
de 1887.
Minha prezada
companheira de estudos.
Aqui estou, pela
primeira vez em minha vida, no porto de mar de nossa província, em Santos,
terra cálida, úmida, sufocante, preferida por Martim Afonso aos feiticeiros
arredores da baía de Guanabara. Os reverendos Kidder e Fletcher, no livro que
publicaram sobre o Brasil, deram-se a perros para descobrirem a razão da
preferência e… ficaram
jejum. O
Afonso preferido isto ao Rio de Janeiro? Tudo levava a crer que era o contrário
que se devia dar. Que rasgo de intuição genial, que vista interna miraculosa
teria revelado ao colonizador português a superioridade imensa desta zona
vicentina em que há terra roxa, em que há um clima sem rival para a lavoura,
sobre a orla limítrofe, de terra vermelha, árida, sequiosa ? E o caso é que sem
razão aparente, sem dados aceitáveis, houve a preferência, e quê , essa
preferência criou a primeiro . província do Brasil, e quiçá o primeiro dos
pequenos estados livres do mundo.
Eu me vejo em apuros,
mas é para dizer o que vem a ser esta nesga do litoral em relação à climatologia;
é para achar-lhe um termo de comparação.
Falam no Senegal: o
Senegal é mais quente, valha a verdade, mas não é tão abafado. Lá respira-se
fogo, mas respira-se. Aqui não se respira nem fogo, nem coisa nenhuma. O ar é
pesado, oleoso; parece que lhe falta algum elemento, isso quando não há o vento
célebre que os noroeste: quando sopra, reina esse semoum africano, esse
vendaval-peçonha, Santos é miniatura do inferno: Imagine-se um tufão dentro de
um forno.
Os dias são horríveis:
se há chuva, o que é raro, o sol queima, esbraseia a terra, a ponto de se
poderem fritar ovos sobre as pedras das calçadas. Mas ainda há coisa mais
horrível do que dias, são as noites. A atmosfera queda-se, morre. Olha-se para
as flâmulas dos navios, imóveis; para as franças das árvores, imóveis; para os
leques das palmeiras imóveis. A gente a asfixiar no irrespirável e morto
parece-se com os mamouths que se encontram inteiros nos gelos ela Sibéria, ou
com esses insetos mumificados, há milhares de anos, na transparência dourada do
âmbar amarelo. É uma situação aflita; desespera, tira a coragem, dá vontade de
chorar, lembra os horrores da Treva de Byron.
A vida aqui é uma
negação da fisiologia, é um verdadeiro milagre: não há hematose perfeita, as
digestões são laboriosíssimas, sua-se como no segundo grau da tísica pulmonar,
como na convalescença de febres intermitentes. Eu, se fosse condenado a degredo
em Santos, já não digo por toda a vida, mas por um ano ou dois, suicidava-me.
Mas, que peixes! que
esplêndidos mariscos! As pescadas amarelas, uma delícia! as garoupas divinas!
Comi em França ostra de Cancale, de Merennes, de Ostende; comi a ostra rosácea
do Mediterrâneo, a ostra lamelosa da Córsega: nada disso se pode compa-rar à
ostra de Santos. Tenra, delicada, saborosíssima, ela apresenta essa coloração
verde, esbatida, tão apreciada pelos finos gourmets: Moquim Tandon,
Valenciennes, Bory de St. Vicent, Gaillon, Priestiey, Berthelot inventaram mil
teorias cerebrinas para explica-la, e todavia ela é apenas um sintoma de
moléstia, é devida a um estado mórbido, a uma anasarca de molusco.
Tão detestável é a
terra, o clima em Santos, quanto apreciável é o peixe, quão superior é o homem:
maus fatores a darem produtos excelentes, verdade paradoxal, mas verdade
irrecusável, absoluta.
O povo santista é
polido, afável, obsequioso, flanco: a riqueza que lhe proporciona o comércio de
sua cidade fá-lo generoso, até pródigo. E tem nervo, tem brio: é o único povo
que eu julgo capaz de uma revolução nesta pacata província. Não há muito em uma
questão de abastecimento de água ele deu mostras de si…
Gosto, gosto imenso, em
Santos, tanto do peixe como do homem.
Um pouco de estudo
agora, para não perder-se o costume, para voltarmos a nossa marotte, à nossa telha.
A costa do Brasil, como
muito bem faz observar o conde de Lahure em sua obra sobre este país, oferece
desde a ilha do Maranhão até Santa Catarina uma singularidade notável: é
debruada em toda a sua extensão por dois fundos altos, por dois arrecifes, que
a bordam, que lhe constituem um como molhe natural, que a garantem da
impetuosidade elas ondas, continuamente agitadas no Atlântico sul-americano.
Um desses arrecifes, o
que está mais chegado à costa, é uma como cinta de rochas que envolve o
litoral. Em lugares rasga-se até o fundo do mar; em lugares ergue-se, mas não
lhe chega à superfície, em lugares está de nível como ela; em lugares alteia-se
sobre ela até grande elevação.
São os recorres dessa penedia
que formam todas as embocaduras, todas as baías, todos os portos, todas as
abras da costa brasileira.
O segundo
aparcelamento, como que uma barbacã, do primeiro, está em distância de oito a
quarenta quilômetros da costa, em profundeza irregular, quase sempre fraca
Os pontos descobertos
constituem ilhas, algumas elevadíssimas: as Queimadas, os Alcatrazes, o Monte
de Trigo são saliências do contraforte externo; a ilha do Enguá-Guaçu ou de
Santos, a do Guaíbe ou de Santo Amaro, a da Moela, a encantadora ilhota das
Palmas, são os picos do arrecife interno.
E que serão esses
parcéis, essas duas cintas de rochas, senão o aparecimento, as primeiras
prostrações, ainda marinhas, da Serra do Mar, chamada aqui Serra do Cubatão,
Serra de Paranapiacaba. A cordilheira vem dos abismos do oceano, surde, emerge,
levanta-se abrupta, fecha o horizonte com seus visos alterosos, que lá se
enxergam ao fundo, cobertos de nuvens, a entestar com o céu, como barbaçãs,
como muralhas de um castelo titânico.
Meditemos um pouco;
reconstrua o raciocínio o que o homem não pode ver no espaço breve de sua vida
curta.
O mar outrora banhava a
raiz da serra, e os ventos do largo, encanados pelas bocainas, suscitavam
maretas temerosas na planície onde hoje corre, arfando, a locomotiva.
As aluviões, os enxurros da cordilheira, grossos de terra,
rolando seixos enormes, em luta com a força das marés que se encrespavam em
macaréus, foram depositando sedimentos, detritos, em torno dos cúcleos
penhascosos do Guaíbe e do Monserrate. No volver de milhares de séculos o fundo
alteou-se, emergiu as ondas, constituiu as vastas planuras do sopé da serrania.
Vasas moles ao princípio, lamarões, brejos marinhos, essas planícies foram-se
cobrindo de mangues verdes, de siruvas e, depois, de outras vegetações mais
alentadas: formaram terrenos sólidos, cortados de muitos esteiros.
A planície santista, bem como toda a planície da costa
brasílica, é uma conquista da cordilheira
E essa conquista continua ainda, continuará indefinidamente,
de dia, de noite, a todas as horas, a todos os momentos; lenta, imperceptível
mas intérmina, incessante; não há tréguas na luta entre a terra e o mar.
As margens dos esteiros, chamados aqui rios, aproximam-se cada
vez mais, o fundo sobre. Pelo canal da Bertioga passou, à larga, a frota de
Martim Afonso, passava até há bem pouco tempo o vapor costeiro Itambé: hoje o
pequeno rebocador Porchat passa com dificuldade, vira com perigo, por
vezes encalha.
Em santos, junto da cidade, não existe mar no sentido rigoroso
do termo: existe um estuário de água salobra, que tende a diminuir, que se vai
fazendo raso todos os dias. E não há obviar-lhe.
O famoso e protelado
cais, caso se construísse, seria um pano quente: melhoraria o porto por uns
pares de anos, afinal ficaria inutilizado. O fundo vai ganhando, há de ganhar
de uma vez; o passado aponta o futuro. Debalde o oceano refluído, repulsado,
concentra as forças sobre outro ponto e ataca São Vicente. Ganhou uma aparência
de vitória, é verdade: sobre a antiga povoação de Martim Afonso, ameaça a
moderna: mas lá está o inimigo, a montanha, para detê-lo, para sustá-lo, para
repeli-lo, com avalanches de pedras, com médão de lodo.
E há exemplos disso,
recentes na história geográfica do velho mundo: Luiz lX de França embarcou-se
em Aigues-Mortes, para as Cruzadas, duas vezes, uma em 1248; outra em 1269;
Aigues-Mortes demora atualmente a seis quilômetros do mar. A cidade de Adria
sobre o canal Bianco,
derivativo do Pó, está hoje a trinta quilômetros do Adriático; pois era banhada
por ele, foi ela até que lhe deu o nome.
Em tais condições não
admira o noroeste, não admira o calor de Santos.
O vento largo, o vento
de sudeste encana-se por entre as cordilheiras de Santo Amaro e do Monserrate,
revoluteia pela planície, vai à cordilheira e de lá, repelido, reboja, volta,
mas não volta só. Vem misturado, confundido com o vento quente do interior, com
o vento aquecido nas terras roxas do oeste, aquecido no vasto platêau de
Piratininga. É o famoso, o temido, o execrado noroeste.
Ora ajunte-se o calor
químico, o calor desenvolvido pela fermentação de incalculáveis massas de
detritos orgânicos, em uma planície vastíssima rodeada, quase fechada por
montanhas; tome-se em consideração que esse calor só é absorvido em parte
mínima pelos paredões da cordilheira, que é refletido, convergido por eles
sobre Santos; atenda-se a que a vizinhança do mar tende sempre a elevar a
temperatura da atmosfera, e cessará a admiração de que seja isto aqui o quinto
cúmulo térmico do globo, de que em assuntos da calidez só preste obediência a
Abissínia, a Calcutá, a Jamaica e ao Senegal.
É curiosa Santos como
cidade, tem cor sua, inteiramente sua. As casas são quase todas construídas de
alvenaria, com soleira e portas de granito lavrado.
O ar, salitroso pelas
emanações marinhas, ataca, rói, carcome a pedra. Não há ver aí superfícies
lisas. tudo é áspero, caraquento, semidecomposto.
Sobre grande parte dos
telhados viceja uma vegetação aérea, forte, vivaz, gloriosa.
Vista do mar, do
estuário, a cidade é negra: black town lhe chamam os ingleses.
Os enormes vapores
transatlânticos alemães, os esquisitos e bojudos carregadores austríacos, as
feias barcas inglesas e americanas de costado branco, os mil transportes de
todas as nações, entram pela ria, encostam-se à praia, varam quase em terra,
afundam as quilhas no lado negro, constelado de cascas de ostras, de ossos, de
cacos de louça, de garrafas, de latas, de ferros velhos, dessas mil imundícies
que constituem como que os excrementos de uma povoação. Comunicam com a terra
por pranchões lisos, ou canelados a tabicas.
Pelas ruas vai e vem,
encontra-se, esbarra-se um enxame de gente de todas as classes e de todas as
cores, conduzindo notas de consignação, contas comerciais, cheques bancários,
maços de cédulas do tesouro, latinhas chatas com amostras de mercadorias.
Enormes carroções articulados, de quatro rodas, tirados por muares possantes, transportam
da estação do caminho de ferro para os armazéns, e deles para as pontes, para o
embarcadouro, os sacos de loura aniagem, empanturrados, regurgitando de café.
Homens de força bruta, portugueses em sua maioria, baldeiam-nos para bordo,
sobre a cabeça, de um a um, ou mesmo dois, em passo acelerado, ao som, por
vezes, de uma cantiga ritmada, monótona, excitativa de movimento como um toque
de corneta.
Nos armazéns, vastos
cimentados, manobrando pás polidas, gastas pelo uso, batem o café, fazem pilhas,
cantando também.
E não deixam de ter
cena elegância bárbara, com um saco vazio, sobre a cabeça, à laia de capelhar,
moda árabe, talvez reminiscência inconsciente atávica.
Na praia, a poucos
metros da água, um como mercado pantopolista: sobre mesas sólidas, de mármore,
estendem-se alinhadas, com reflexos de aço, de prata, de ouro, os peixes
admiráveis do lagamar e do alto – as tainhas gordas, de focinho rombo; os
paratis que são diminutivos delas; as corvinas corcovadas, pardas; os galos
espalmados, magros; os pargos de dentes e de beiços redondos, carnudos; as
pescadas do alto, fulvas, enormes; os linguados, vesgos, delicados; as solhas,
linguados gigantescos, macias, chatas; as garoupas, de cor de ferrugem, de
olhos esbugalhados, atarracadas, escondendo sob formas brutas, um mundo de
delícias gastronômicas; as pescadinhas brancas, argênteas, com um fio de ouro
verde a sulcar-lhes os flancos os bugres lisos, visguentos, feios; os camarões,
brancos, arroxados, com longas barbas, em rodas, sobre tampas de vime; os
caranguejos, pelados, morosos, batendo uns nos outros a couraça sonora; os
siris azulados.
Em torno a casa, sob os
beirais do telhado, sob toldos de pano,
ao ar aberto, pilhas de laranjas, de ananases, de melancias, de goiabas,
de cocos, de cachos de bananas, mil espécies de frutas em uma abundância
fastidiosa, desanimadora, com um cheiro enjoativo de madureza passada; grãos,
legumes, hortaliças, raízes, ervas de tempero, tomates, pimentas; quadrúpedes e
aves, domésticas e selvagens, leitões, quatis, perus, tucanos; conchas,
caramujos, esteiras, cordas, quinquilharias, uma babel, um bricà-brac infernal.
Às três horas começa de
cessar o movimento: a população emigra para São Vicente e para a Barra. À tarde
a cidade está silenciosa, deserta, morta. Há todos os dias uma transição crua,
brusca, da agitação para o marasmo, que dá tristeza.
Eu subi ao Monserrate.
É uma eminência de
cento e sessenta e cinco metros, quase a prumo, coroada por uma igrejinha
branca, o que se pode imaginar de mais pitoresco, de mais singelamente
grandioso, de mais encantador.
Sobe-se por um caminho
acidentado.
O que se vai desenrolando aos olhos durante a
ascensão é simplesmente maravilhoso. A planície estende-se ao longe, nivelada
pela natureza, coberta de uma alcatifa de mangue; a cidade, em quarteirões
regulares, paralelogramáticos, ocupa o sopé do morro, betada de ruas de
calçamento pardo, manchado aqui e ali por maciço verde de árvores, por uma
palmeira esguia; ao fundo, de um e outro lado a serra do continente; fronteiras
as colinas abruptadas de Santo Amaro. O ancoradouro, o pego do Canehu e outros
largos do estuário semelham chapas de aço polido, com as quais põem notas de
vários tons os pontões desgraciosos, os navios que estão sobre ferro. As
canoas, os escaleres resvalam como insetos ligeiros; uma outra vela pica de
branco a escuridade metálica da superfície da água, e o sol ilumina tudo com
sua luz dourada muito suave.
Os esteiros embebem-se
pela verdura fofa dos mangais, um deles, muito sinuoso, afunda-se visível por
espaço longo, fraldeia a colina cônica chamada Monte Cabrão,
some-se, reaparece muito longe, refletindo a luz do sol, torna a sumir-se. É o
canal histórico da Bertioga.
À direita uma
imensidade azul que parece vir do infinito, que dir-se-ia um desdobramento do
horizonte, avança arfando, em estos chega, beija a praia, morre em uma ourela
de espuma alva, móvel, murmurosa… Salve, oceano, alma pater,
laboratório da vida terráquea, povoador do planeta!
Ah! Lenita.’ imagine: o
oceano – a força, o ataque; a terra – a firmeza, a resistência; o ar –
hematose, a vida; o sol – o calor, a luz, a fecundação,- tudo em porfia de
prodigalidades, a construir, a ornar um cenário vasto de struggle for life,
de luta pela existência, no qual se debatem, se fogem, se perseguem, se matam,
se devoram todos os seres da criação, o zoófito, o molusco, o entomazoário, o
vertebrado!
Aqui, nestas alturas,
sob a imensidade do céu, a dominar a imensidade das águas é que sente-se
grande, é que sente-se orgulhoso o antropóide falante que arranca a esponja do
abismo, que paralisa a força incalculável do cetáceo, que fulmina a andorinha
perdida na amplidão, que avassala o oceano, que escraviza o raio, que rasga os
véus do espaço, que desvenda os mistérios do infinito!
Oh! eu a queria, aqui,
junto de mim; eu queria ler-lhe a fixidez concentrada do olhar, no descoramento
de face a profundeza da impressão que em espírito como o seu produz uma cena
como esta!
Paulo minora canamus; agora terre à
terre.
Esta carta vai um pouco
de arrepio com as leis da cronologia; eu inverti a sucessão dos fatos, comecei
pelo fim, falei de Santos, e calei a viagem.
Faço amende honorable,
vou reparar a falta.
Até a capital nada
havia para mim de novo: conheço de há muito todos os caminhos de ferro, todas
as estradas de rodagem que a ligam ao interior da província;
estudei bem e até com
interesse porque dela sou acionista, a
estrada de Ferro Leste, impropriamente chamada Estrada do Norte.
Da capital a Santos foi
que rolei em pleno desconhecido, foi que se me deparou assunto novo de estudo.
Os campos famosos de
Piratininga constituem um platêau que coleia suave, em outeiros mansos,
emoldurado à direita pelos cabeços longínquos da Serra do Cubatão, à esquerda
pelos visos azulados da Cantareira, pelos picos verdoengos do Jaraguá.
De leste a oeste, um
pouco ao norte da cidade, rola o Tietê profundo, negro, taciturno, formando um
vale extensíssimo, muito largo.
A conformação atual
desse vale, a turfa pantanosa que o constitui em grande parte, o alagamento
anual que nele se opera, tudo atesta que ele foi em tempo um lago enorme,
sinuoso, semeado de ilhas, um mar de água doce, que ia talvez até Moji das
Cruzes.
A serra da Cantareira e
a vertente norte da serra do Cubatão deram batalha aluvial ao mediterrâneo
doce, venceram-no, entupiram-no: o vale do Tietê é a conquista. As correntes de
águas perenes conglobaram-se, aunaram-se, cavaram leitos, formaram os rios que
hoje retalham a planície.
Vi de relance o casarão
que se está fazendo para comemorar independência, ou melhor, para comemorar…
por que não dizê-lo ? para comemorar o desarranjo funcional que levou o Senhor
D. Pedro de Bragança e apear-se ali, às quatro horas da tarde do dia 7 de
setembro de 1822.
Não há ver nestas
paragens aflora maravilhosa das nossas zonas do oeste, os perovões, as batalhas enormes,
os jequitibás de cinco metros de diâmetro: a vegetação arborescente é enfezada,
baixa, quase anã. Não é basta, contínua: forma reboleiras, restingas, capões,
ilhas de verdura, no amarelado pardo do campestre interminável.
Esta região é
considerada estéril, maninha: nada mais injusto. Verdade é que não vinga aqui o
cafeeiro, que a cana é somenos a de Capivari e mesmo a de Santos, que o
algodoeiro não se pode comparar com o de Sorocaba; mas, por Deus! nem só café,
açúcar e algodão é riqueza.
A vinha medra de modo
assombroso: com uma cultura inteligente, com uma poda antecipada, poderia ela
produzir em princípios de dezembro, evitando as chuvas de janeiro que lhe águam
os bagos, que lhes deturpam os racimos.
outrora baldias, de que ninguém fazia caso, há vinhedos formosíssimos plantados
por italianos. A vista alegra-se com a simetria das parreiras, o coração
rejubila com a ideia de uma prosperidade imensa, geral, em futuro não remoto,
por todos os ângulos de nosso… de nossa província eu ia escrevendo estado.
As hortaliças são
enormes: um dia destes vi eu uma couve vinda de São Paulo que era um monstro de
desenvolvimento: tinha folhas de cinquenta centímetros de diâmetro menor;
media-lhe o caule muito mais de dois metros.
E por que não há de se
cuidar do trigo? os antigos cuidaram com sucesso:
pão de trigo da terra. Ninguém ignora o que a agricultura científica tem feito
das landes infecundas da Gasconha. Pois os campos de Piratininga não admitem
confronto com as landes da Gasconha: são-lhes infinitamente sublimados.
E a indústria pastoril?
Que riqueza imensa a se oferecer espontânea.
De São Bernardo em
diante a planície muda de aspecto. Os capões, as restingas vão-se convertendo em
um matagal basto, contínuo, verde-negro. Aqui e ali, no dorso de uma colina, no
cabeço de um outeiro, rubro, semelhante a uma escoriação, serpeia o leito de um
caminho. Na chã que se vai gradualmente alteando destacam-se as gramíneas,
moitas de plantas baixas, de folhas escuras, de flores roxas, muito grandes.
De um e de outro lado
do trem perpassam, fogem sombras compactas, fortes: são os primeiros topes da
serra. Em vários lugares desnuda-se o granito lavado pelo enxurro, arrebatado
pelas brocas do mineiro, esfacelado pela marreta do britador.
Em todas as árvores
veem-se parasitas, de flores escarlates, de folhas lustrosas.
A máquina, arfando, em carreira vertiginosa,
arrastando o tender, arrastando a longa cauda de carros, triunfante, rumorosa,
sobe, galga, vence, domina, salva o declive áspero, rola em terreno plano. O ar
torna-se mais fino, mais úmido, a luz mais viva, mais mordente.
À esquerda, rápidas,
como que levantadas, emergidas súbitamente, alteiam-se montanhas, visos, picos,
paredões, agruras, despedaçamentos de cordilheira.
À direita, em
anfiteatro pelo dorso escalavrado de uma eminência, casebres miseráveis; sobre
o rechano uma igrejinha rústica, desgraciosa, malfeita, com três janelas, com
dois simulacros de torres, a picar de branco o azul do céu e o escuro da mata.
É o alto da serra.
Em frente, a alguns
decâmetros, abre-se, rasga-se um vão, uma clareira enorme, por onde
se enxerga um horizonte
remotíssimo, um acinzentamento confuso de serras e céu, que assombra, que
amesquinha a imaginação.
Começam aí os planos
inclinados por onde, sob a ação das máquinas fixas, sobe e desce a vida social
da São Paulo moderna, os carros de passageiros e os vagões de mercadorias.
Ao ganhar-se o declive,
ao começar-se a descida, a cena torna-se grandiosa, imponente.
De um lado, peno, ao
alcance quase da mão, alturas imensuráveis, talhadas a pique, cobertas de
liquens, de musgos, tapando, fur-tando o céu à vista; pelos grotões desses
fraguedos rolam cascatas sussurrantes, alvas, espumosas, já esfuziando em filetes,
já encanando-se em jorros, já espadanando em toalhas.
Do outro lado, ao
longe, a amplidão, a serra, em toda a sua magnitude selvática.
Às montanhas que entestam
com o céu sotopõem-se montanhas que vão também assentar sobre montanhas. Em
paredões aprumados umas, arredondadas em cabeços outras, em pirâmides regularíssimas
ainda outras, elas abatem, acabrunham o espírito com a enormidade de sua massa
Dir-se-ia que foi aqui a escalada dos céus pelos gigantes, que se feriu nestas
paragens a pugna tremenda em que os filhos do céu sufocaram a golpes terríveis,
de toda a some de armas, a tiros de raios, a arremesso de montanhas inteiras, a
revolta tremenda dos filhos da terra.
Pelo sopé dessas moles
imanes, corre um vale profundíssimo, a que vão ter roladores medonhos, algares
vertiginosos, precipícios assassinos.
Uma vegetação abeberada
de umidade, cerrada, basta, emaranhada, inextricável, cobre, afoga o dorso da
serrania. Não há ver aqui os picos escalvados das cordilheiras do velho mundo:
tudo está coberto por um tapete anegrado, fosco: de longe parece relva, ao
perto são árvores desconformes.
Nesse verdejar sombrio
a canaleira de folhas avermelhadas põe notas alegres, claras: o ipê florescida
pica-o de amarelo cru. As palmeiras, em uma abundância monstruosa, incrível,
obscena acentuam: na massa confusa o desenho saliente de suas copas estreladas.
Ao longe, na crista
cerúlea, indistinta, do mais elevado contra-forte, um floco longo de neblina
branqueja muito vivo, como o véu de uma uranide colossal, roto, esgarçado na
doce violência de um debate amoroso.
Perto, atiro de pedra,
árvores esbeltas ostentam, no mesmo galho, flores brancas e flores roxas, de
pétalas carnudas, cetinosas. A embaúva de folhagem escura e rebentos vermelhos
ergue ousada o seu tronco esguio, branquicento.
Os raios do sol
acendem, na fronde das árvores vizinhas, cintilações multicores, atiram sobre
as cascatas punhados de diamantes: ao longe absorvem-se, não têm reflexão.
Ao findar-se o quarto
plano inclinado, primeiro a contar do alto, antolha-se o viaduto da Grota
Funda, a vitória do atrevimento sobre a enormidade, do ferro sobre o vazio, da
célula cerebral sobre a natureza bruta.
imagine, Lenita, um
algar vasto; mais do que um algar vasto, uma barroca enorme; mais do que uma
barroca enorme, um abismo pavoroso, atravessado de parte a parte por uma ponte,
que parece aérea, apoiada em colunas altíssimas, tão esguias, tão finas, que,
vistas em distância, semelham arames.
Ao contemplar-se do
meio da ponte essa vacuidade assombrosa, os ouvidos zunem, a cabeça atordoa-se,
a vertigem chega, vem a nostalgia do aniquilamento, o antegosto do nirvana, o
delírio das alturas e faz-se mister ao homem uma concentração suprema da
vontade para fugir ao suicídio inconsciente.
À medida que se desce a
natureza muda; o ar toma-se espesso, pesado, quente, carrega-se de emanações
salitrados; começa de aparecer a vegetação do litoral, alastram-se pelas
encostas vastíssimos bananais.
Uma prostração de rocha
faz um cotovelo no plano inclinado da raiz da serra: ao dobrar-se esse
cotovelo, dá-se uma matação de cena em peça mágica. A paisagem abre-se,
rasga-se de vez. Por entre contrafortes, por entre alturas de serrania, que se
erguem de um e de outro lado, como bastidores titânicos, alonga-se a perder de
vista uma planície extensa, chata, lisa, nivelada, pardacenta. De dois outeiros
à direita que, simétricos, redondos, suaves, emparelhados, lembram os seios de
uma virgem, parte uma linha horizontal, muito escura, muito tersa; é o mar, é o
oceano, cuja vista dá nome a serra – Paranapiacaba.
Um como sulco estira-se
pela planície, comando aqui e ali superfícies espelhantes de água sossegada:
por esse sulco vai e vem enorme, acaçapada, com um desconforme gliptodonte, uma
coisa chata, que desliza rápida, vomitando fumo: o sulco é a linha férrea; o
gleptodonte, a locomotiva.
Embaixo, no começo da
planície, divisa-se um amontoamento de vagões que semelha um bando de
hipopótamos adormecidos ao sol.
Quando o homem para e
contempla das alturas o escalejar da serrania, o vale cortado de algares, a
planície, o litoral, a linha do mar a confundir-se com o céu; quando atenta nas
forças enormes que entram em jogo no âmago e na crosta da terra, na água que a
banha, no ar que a comprime, na luz que a ilumina, na vida que a rói; quando
por generalização alarga o quadro e considera o planeta inteiro; quando dele
passa para os planetas irmãos, para o sol, centro do sistema; quando conclui,
por indução irrecusável, que esse sol, esse centro é por sua vez lua, satélite
humilde de um astro monstruosamente imane, afogado na vastidão, desconhecido,
incognoscível para todo o sempre; quando pensa que ainda esse astro gravita em
torno de um outro que gravita em torno de um outro; quando reflete em que tudo
isso é uma cena minúscula do drama da vida universal, e que o teatro espantosamente
incompreensível dessa evolução intérmina é uma nesguinha insignificante da
imensidade do espaço, o homem sente-se mesquinho, sente-se pó, sente-se átomo,
e vencido, esmagado pelo infinito, só se compraz na ideia do não ser, na ideia
do aniquilamento.
A estrada de ferro
inglesa de Santos a Jundiaí é um monumento grandioso da indústria moderna.
De Santos a São Paulo
percorre ela uma distância de
Todas as obras de arte
dos terrenos planos são admiravelmente acabadas, são perfeitas.
Até à raiz da serra a
distância é de 21 quilômetros: há três pontes, uma das quais notabilíssima,
sobre um braço de mar chamado Casqueiro. Mede ela
iguais, assenta sobre pegões robustíssimos.
Da raiz da serra até o
rechano do alto, contam-se oito quilômetros. A altura é de
declive quase exato de dez por cento.
Como se calcam esses
desfiladeiros, essas agruras vertiginosas?
De modo simples.
Divide-se a subida da
serra em quatro planos uniformes de dois quilômetros cada um. Para uma tração,
empregou-se um sistema adotado em algumas minas de carvão da Inglaterra.
Máquinas fixas de grande força recolhem e soltam um cabo fortíssimo, feito de
fios de aço retorcidos. Presos às duas pontas desse cabo giram dois trens: um
sobe, outro desce. A agulha de um odômetro indica com exatidão matemática o
lugar do plano em que se acha o trem, indica o momento de encontro de ambos
eles. Um brake
de força extraordinária permite suspender-se a marcha quase instantaneamente, e
um aparelho elétrico põe os trens em comunicação imediata com as respectivas
máquinas fixas. O cabo, resfriado ao sair por um filete de água, corre sobre
roldanas que se revolvem veniginosas, com um ruído monótono, metálico, por
vezes fome, por vezes muito suave.
O serviço é regular e
tão bem feito, que em grandes extensões há um único jogo de trilhos a servir
tanto para a subida como para a descida. Funciona a linha há mais de vinte e um
anos e ainda não se deu um só desastre. Pasmoso, não ?
Em cada uma das quatro
estações de máquinas fixas há cinco geradores de vapor, três dos quais sempre
grandes rodas estriadas que engolem e soltam o cabo, as bielas de ferro polido
que as movem, os mancais de bronze, os excêntricos em que o ferro rola sobre
bronze com atrito doce, tudo está limpo, luzente, azeitado, funcionando como um
organismo são. Chaminés enormes, que se enxergam de longe, feitas de cantaria
lavrada em rústico, atiram aos ares balcões de fumo, enovelados, densos.
Os desbarrancamentos
são remendados a alvenaria; todas as águas perenes, todas as torrentes pluviais
estão dirigidas, encanadas, por calhas de pedra, de tijolos, de juntas tomadas,
por bicames de madeira. Há encanamentos subterrâneos feitos em granitos, gradeados
de ferro, que fazem lembrar os calabouços dos solares feudais.
Na serra de Santos a
obra do homem está de harmonia com a terra em que assenta; a pujança previdente
da arte mostra-se digna da magnitude ameaçadora da natureza.
O viaduto da Grota
Funda é simplesmente uma maravilha. Mede em todo o comprimento
menos
Tem 10 vãos de
e um de 45 entre duas cabeceiras de cantaria; assenta sobre colunatas de ferro
engradadas (treiilages)
e sobre um pegão do lado de cima. A mais elevada colunata, contando a base, tem
a inclinação geral, dez por cento ou pouquíssimo menos. Começou-se esta obra
assombrosa em 2 de julho de 1863; em março de 1865 assentaram-se-lhe as
primeiras peças de ferro; em 2 de novembro do mesmo ano atravessou-a o primeiro
trem, 2 de novembro, dia de defuntos, os ingleses não são supersticiosos.
Uma empresa hors ligne,
esta companhia de estrada de ferro. O resultado foi além da mais exagerada
expectativa otimista. O governo geral garantiu cinco por cento sobre o capital
empregado na construção, e o provincial dois. De há muito, porém, que a
companhia prescindiu de garantia, e que distribui dividendos fabulosos.
Ganham, ganham muito
dinheiro, ganham riquezas de Creso os ingleses, e merecem-nas. O progresso
assombroso de São Paulo, a iniciativa industrial do paulista moderno; a rede de
vias férreas que leva a vida, o comércio, a civilização a Botucatu, a São
Manuel, ao Jaú, ao Jaguera, tudo se deve à Saint Paul Rail Road, à Estrada de
ferro de Santos a Jundiaí
Rule, Bribnnial Hurrah for the English!
já que o nosso governo não presta para nada.
Vai longa esta cana:
preciso é pôr-lhe termo.
Estirei-me, porque
escrevendo-lhe afigura-se-me tê-la ao meu lado, e eu desejei prolongar o mais
possível a figuração…
Estou velho, e todo o
velho é mais ou menos autoritário e pedante. Ora a Lenita pôs-se no vezo de
condescender com o pendor da idade, escutou-me, deu-me atenção, puxou-me pela
língua… Aguente-se, pois, com a caceteação, com a seca para falar
classicamente; a culpa é sua.
Não sinto saudade da
nossa convivência, de nossas palestras aí no sítio. – a expressão saudade tem
poesia demais e realismo de menos. O que há é necessidade, é fome, é sede da
companhia de quem me compreenda, de quem me faça pensar… da sua companhia.
Imagine que eu levo
todo o santo dia e parte da noite a falar só em café, mas em café sob o ponto
de vista comercial, em embarques, em saques,
de mim, se o não fizer: aqui quem se afasta deste tema, quem não discute
comércio de café, passa por idiota.
Uma explicação
necessária, antes de terminar. Fui minucioso, talvez demais, em descrever a
serra, os planos inclinados, as obras de arte da companhia inglesa. Como diabo,
fiz eu tanta observação, onde fui apanhar tantos dados? Em uma descida rápida,
vertiginosa, em uma descida pelo trem ? Não era possível. Uma inspiração, uma
comunicação espírita? Nada disso. Confesso com modéstia que são humanos os
meios de informação de que disponho: a ciência infusa foi privilégio dos
apóstolos, de Santo Tomás, de Ventura de Raulica, e ainda hoje o é do abade
Moigno e do imperador do Brasil. A mim me não armarão processo esses santos
personagens por empecer-1hes no direito. Nem mesmo me posso gabar de uma
simples sugestão mental, de um reles ensinamento hipnótico. Pairo em regiões
menos elevadas, aprendo o que sei de modo mais grosseiro. Um dia destes, nada
tendo aqui a fazer, fui ao alto da serra e de lá vim a pé, vendo, observando,
estudando. Aí está como foi. Fico anelando pelo dia que julgo próximo de ir
dar-lhe um hands-shake forte, enérgico, à inglesa.
Manuel Barbosa…
Lenita leu a carta com impaciência: os
detalhes, os dados exatos, as apreciações científicas de Barbosa sobre Santos,
sobre a serra irritavam-na: passou por aquilo tudo rapidamente, nervosamente,
sem aprofundar, como quem percorre um catálogo. Procurava o que houvesse de
íntimo sobre a sua pessoa, qualquer coisa que revelasse, que atraiçoasse o
estado afetivo do espírito de Barbosa.
Demorou-se muito na leitura dos trechos
finais: teve um prazer vivíssimo, indizível ao ler que Barbosa a supunha, a
figurava ao lado de si, e que se prazia nessa figuração. Repetiu as frases
silabificando, quase deletreando, com o olho esquerdo fechado, com a atenção
concentrada. Gostou imenso da maneira brusca por que terminava a carta.
O semidelíquio erótico que tivera no
quarto de Barbosa fora a confirmação de uma suspeita: reconhecera que amava a
esse homem, loucamente, perdidamente.
Ante a brutalidade do fato, ao pungir
gozoso e acerbo da revelação da carne, revoltara-se com orgulho, esquivara-se
em último assomo de resistência, evitara a Barbosa na véspera da partida.
A insônia da noite, o vácuo enorme que a
ausência de Barbosa lhe produzira em volta, a necessidade fatal em que se
reconhecera de tê-lo junto de si para viver, desejo dele que a mordia, o ganho
de causa que levava esse afeto novo sobre o amor profundo que votara ao pai, a
Lopes Matoso; que tudo isso a convencera de que não podia recalcitrar, de que a
resistência lhe era impossível.
Com a resolução rápida dos espíritos
decididos, aceitara o jugo, submetera-se à paixão, confessara-se vencida.
Era o mais difícil.
Em curvar-se, de si própria é que ela
tinha vergonha, uma vez cônscia de estar curvada, pouco lhe fazia que o mundo
inteiro a visse nessa posição.
Amando, mas sem estar de todo vencida,
lutaria, defender-se-ia até à morte contra o que desejava, isso em uma alcova,
em um recinto vedado a todos os olhos; entregue, derrotada perante o seu foro
íntimo, avaliava em nada o escândalo, desprezava a opinião, era capaz de
submeter-se ao vencedor em público, no meio de uma praça, como as prostitutas
de Hyde-Park.
Amava a Barbosa confessara-o a si
própria: era capaz de lho dizer a ele, era capaz de o proclamar à face do
mundo.
E indignava-se, achava-o tímido, queria
que ele a adivinhasse, que lhe retribuísse o amor, que sentisse por ela o que
ela sentia por ele, que se confessasse por sua vez subjugado, cativo.
Amar ela, Lenita, a um homem, e não ver
esse homem a seus pés rendido, aniquilado, absorvido?! Impossível.
Releu a carta, mas releu com atenção,
meditadamente estudando. As apreciações originais de Barbosa, o seu modo profundamente
individual de ver as coisas, o entusiasmo comunicativo a que se entregava por
vezes, tudo isso reproduzia-o, aviventava-o no escrito, ao ponto de que a
Lenita parecia-lhe tê-lo junto a si, ouvir-lhe a voz, sentir-lhe o hálito.
As teorias sobre a formação da planície
santista e sobre o enchimento do vale do Tietê fizeram-na pensar, recordar-se.
Tinha estado uma vez
São Vicente
fatos que Barbosa consignava eram exatos, as explicações que deles oferecia
eram plausíveis.
Lenita admirava-lhe cada vez mais a
flexibilidade do talento, que a tudo se abalançava, que para tudo tinha criterium,
que de tudo decidia com justeza.
A admiração pelas faculdades
intelectuais elevadíssimas de Barbosa envolvia-se mansamente, naturalmente,
para uma admiração pelas suas formas, para um desejo de seu físico, que a
dementava a ela, que a punha fora de si.
Compreendia então perfeitamente a
história bíblica da mulher de Putifar. A vista segura que o escravo hebreu José
revelara ter das coisas, a sua alta capacidade administrativa, a sua
intransigência, a sua energia, a sua modéstia, prendera a atenção da formosa
egípcia; mirando-lhe as formas franzinas, esbeltas de efebo, deixara-se cativar
e, ardente, banca, provocara-o, agarrara-o.
E Lenita entusiasmava-se por essa mulher
tão estigmatizada em todos os tempos, e todavia tão adoravelmente carnal, tão
humana, tão verdadeira: compreendia-a, justificava-a, revia-se nela.
Capítulo 12
O feitor preto viera dizer a Lenita que
uma fruiteira na mata em frente estava ajuntando muito pássaro.
A moça mandou que abrisse uma picada
desde o carreadouro até à fruiteira, fez limpar a sua espingardinha
Galand, carregou duzentos cartuchos e, no dia seguinte, de madrugada, seguida
por sua mucama, foi pôr-se à espera.
Não tinha caído muito orvalho, e grande
era a cerração.
O caminho coberto por uma camada
veludosa de areia fina, amarelenta, embebia-se pela neblina espessa que afogava
a terra. A selva formava um maciço negro, compacto. Uma ou outra árvore isolada
no pasto transparecia por entre o nevoeiro, como um espectro gigantesco.
Sentia-se um frio seco, picante, sadio.
De repente Lenita percebeu o que quer que era , retouçando na areia levemente
úmida do carninho, a vinte metros de distância.
Sustou o passo, levou a arma à cara e,
rápida, quase sem pontada, desfechou.
– Que foi que atirou, D, Lenita?
perguntou a mulata.
– Vá ver, que lá está ainda bulindo,
volveu a moça, e fazendo gangorrear o cano da arma, meteu-lhe novo cartucho.
Com efeito, um animal qualquer
estrebuchava convulso, raspava a areia, atirava-a longe.
A rapariga aproximou-se cheia de receio,
retraindo o corpo, estendendo o pescoço.
– E candimba! gritou jubilosa, e,
baixando-se, apanhou uma soberba lebre que, ferida na cabeça, ainda não acabara
de morrer.
Lenita tomou da rapariga a macia alimária,
examinou-a com volúpia orgulhosa de caçadora apaixonada e triunfante,
afagou-lhe o pelo sedoso, passou-o de encontro ao rosto; depois meteu-a em uma
bolsa de malhas, entregou-a com cuidado à mulata.
Ia clareando o dia; rareava o véu de
neblina. O negror indeciso da mata transmutava-se
as moitas festivas das taquaras, os penachos luzidios dos palmitos, as copas
opulentas das paineiras, revestidas literalmente de um tapete cor-de-rosa, pela
infloração precoce.
Perfumes agudos de orquídeas fragrantes,
refrescados pelas brisas matutinas, deliciavam o olfato, sem irritar e sem
atormentar os nervos.
Ouvia-se o gorjear dos pássaros, o
zumbir dos insetos que, em hino festivo, saudavam o despontar do dia.
Lenita e a mucama penetraram na mata: aí
tudo era escuro, tudo era treva. O diminuto orvalho, caído durante a noite, se
condensara nas folhas, e pingava, batendo docemente, surdamente, na camada de
folhas secas que juncava o solo.
Os pulmões hauriam à larga o oxigênio
puro, expirado da vegetação ambiente.
As duas companheiras caminharam pelo
largo carreadouro, até que chegaram a uma peroveira alta, de junto a qual
partia a picada, entranhando-se pelo mato, à esquerda. Por aí enveredaram,
seguiram, até que pararam junto de uma caneleira esguia, em frutificação temporã.
Dominava o silêncio, quebrado apenas
pelo gotejar manso e raro da orvalhada tênue.
Lenita mandou que a mucama se afastasse
um pouco, que se sentasse, que se escondesse junto de outra árvore qualquer.
Olhou para cima.
A folhagem da caneleira recortava-se
indecisa no céu obscuro: de súbito acentuou-se, amarelou em partes, como se a
tivesse borrifado um jato de ouro líquido; beijara-a o primeiro raio de sol do
dia nascente.
Por cima já luz, vida; por baixo ainda
escuridade, mistério.
Uma sombra escura cortou veloz o espaço:
era um jacuguaçu. Pousou, balançando-se, em um dos galhos baixos. Ao assentar
colheu vagaroso as asas que trazia pandas, librou-se ainda nelas, fechou o
leque formosíssimo da longa cauda, estendeu o pescoço, cauteloso à direita e à
esquerda.
Após momentos de observação, trepou pelo
galho, marinhou aos pulos por entre a folhagem, sumiu-se, surgiu no pino da
copa, mostrando, banhada de sol, a sua barbela rubra.
Lenita, pálida de emoção, com o seio a
arfar, com os nervos frouxos, sentindo dobrarem-se-lhes as pernas, olhava,
contemplava extática a ave elegantíssima.
Fazendo um esforço de vontade, aperrou a
arma, ergueu-a lentamente, molemente, pô-la
em mira.
Não desfechou, não teve ânimo: retirou-a
da cara, e pôs-se de novo a contemplar o alector.
De repente seus olhos brilharam em um
como relâmpago negro, contraíram-se-lhe as feições, seus dentes brancos
morderam o lábio rubro, e, fria, resoluta, ela encarou pela segunda vez a
espingarda, fez pontaria, puxou o gatilho, o tiro partiu.
O jacu, fulminado, revirou, despencou,
veio bater no chão com um som baço, abafado.
Saltando como um felino, Lenita
empolgou-o trêmula de felicidade e prazer; ergueu-o à altura do rosto,
soprou-lhe as penas salmilhadas do peito, queria ver-lhe os ferimentos. Com
volúpia indizível sentia umedecerem-se-lhe os dedos no sangue tépido que escorria.
A arma ainda estava descarregada, quando
ouviu-se um vôo forte, sacudido, estalado.
Lenita levantou o olhar.
No mesmo galho, de onde derrubara o
jacu, uma pomba legítima fazia brilhar ao sol em reflexos furta-cores o seu
colo gracioso.
Lenita abriu ligeiro a espingarda,
carregou-a, levou-a à cara, fez fogo, e a nova vítima caiu ferida, pererecando
em desespero, nas vascas da agonia.
A mucama, com os olhos brilhantes, com
as feições expandidas pelo entusiasmo, acudiu a meter na bolsa os pássaros
mortos.
– Uma pomba e um jacu, D. Lenita!
exclamou cheia de júbilo.
– Silêncio!
No galho fatal um tucano acabava de
pousar: virava e revirava, para um e para outro lado, o seu grande bico
esponjoso. Era uma maravilha o efeito de suas penas dorsais a contrastarem
negras com o alaranjado soberbo da gorja, com o vermelho-vivo do peito: ao
vê-lo ostentando ao sol ardente do trópico os esplendores dos seus matizes,
dir-se-ia um ente fantástico, uma flor animada, viva, que viera voando de uma
região desconhecida, que se fixara naquela árvore.
Um tiro certeiro de Lenit fê-lo tombar,
e depois a outro, mais outro e a araçaris, e a pavôs, e a aves de bico redondo
– uma carnificina, uma devastação.
Eram quase dez horas: o sol ia em alto,
derramando torrentes de luz, enlanguescendo, a beijos de fogo, as folhas largas
do caetê, as folhas cordiformes da periparoba. No céu muito azul esgarçavam-se
nuvens muito brancas, e nesse festival de cores alegres punha uma nota negra um
corvo solitário, perdido na amplidão.
Fazia calor.
– São horas, já passa até de horas de
almoçar, disse Lenita. Vamo-nos embora, amanhã voltaremos.
– Que caçadão, D. Lenita. Dezenove
pássaros grandes e uma lebre. Não perdeu um tiro.
– Eu nunca perco tiro, respondeu a moça
com fatuidade.
– Então é como eu, disse urna voz por
trás de ambas, também não perco tiro.
Era Barbosa.
A espingarda caiu das mãos de Lenita:
com o coração relaxado, incapaz de injetar sangue nas artérias, descorada,
quase sem ver, ela teve de encostar-se ao tronco liso da caneleira, para não
tom-bar desamparada.
– Que é isto, minha senhora; que é isto,
Lenita? acudiu Barbosa, segurando-a solícito.
– Tive um tal susto… murmurou a moça mal
recobrada.
– Perdoe-me, fui imprudente. O desejo
que tinha de vê-la, o prazer de causar-lhe uma surpresa… perdoe-me, sim?
E tomou-lhe as mãos frias que apertou
nas suas.
– Perdoar-lhe? Se eu lhe agradeço tanto
o ter-me antecipado um pouco o gosto de vê-lo. Como pôde chegar a esta hora da
tarde?
– É que vim a cavalo, para ganhar
algumas horas. Caminhei a noite toda. Quando cheguei a Jundiaí, ontem, já não
alcancei o trem. Tinha de estar lá, à espera, até agora: não tive paciência.
– Não escreveu, não deu parte de que
vinha…
– Eu não esperava terminar os negócios
anteontem, como terminei. Os homens estavam teimosos, tinham-se encastelado na
sua proposta. De repente, quando eu menos esperava, mudaram de acordo, cederam,
aceitaram as minhas condições, e ficou tudo acabado.
– Satisfatoriamente?
– O mais satisfatoriamente que era
possível esperar.
– Meus parabéns sinceros.
– Obrigado. Mas que mortandade, que São
Bartolomeu! Arrasou a passarada. Cáspite! Araçaris, tucanos, pombas, sabiacis,
um jacu e um serelepe… não, não é serelepe, um candimba, uma lebre, e grande!
Sim senhora! É uma Diana.
E com ares de amador entusiasta
examinava as peças de caça.
-Diga-me, perguntou-lhe a moça, como se
chamam estes pássaros verdes, de bico redondo?
– Chamam-se sabiacis.
– No Brasil os psitacídios serão
representados somente por arás e papagaios?
–
são.
– Quantas espécies temos de papagaios
?
– Ao certo, que eu saiba, seis: tuins,
periquitos, cuiús, sabiacis, que são estes, baitacas e papagaios propriamente
ditos.
– E de arás?
– Quatro: tirivas, araguaris, maracanãs
e araras.
– Ao todo, dez?
– Que eu conheço; no sertão pode haver
mais.
– Lá ia eu com a minha marotte
científica! Basta, basta de ornitologia. Deve ter chegado cansadíssimo e morto
de fome.
– Cansado, não; com algum apetite, sim.
– Pois vamos, vamos almoçar.
– Confesso que almoçarei com prazer.
E seguiram. Era imensa a alegria de
Lenita, a gratidão mesmo em que se achava para com Barbosa por tê-la vindo
surpreender na mata, por não tê-la esperado
lisonjeada em seu orgulho de mulher. E mais, Barbosa esquecera ou fingira
esquecer os justos, mas injustificáveis arrufos da véspera da partida. Amava e
adquirira a convicção de que era correspondida.
No percurso da picada que mundo, que
infinidade de pequenos gozos! Aqui um tronco podre, deitado, a transpor; ali,
um ramo espinhoso a evitar; uma ladeira íngreme, escorregadia a subir. Barbosa,
nessas dificuldades, ajudava-a, tomava-lhe a espingarda, dava-lhe a mão. Ela
deixava-o fazer, aceitava-lhe o auxilio, não porque se sentisse fraca, porque
precisasse; mas para dar-lhe a ele o papel de forte, de protetor. Achava uma
delícia inefável em ser mulher para que Barbosa fosse homem. A voz máscula,
doce, de Barbosa acariciava-lhe o ouvido, acalentava-lhe o cérebro, envolvia-a
em uma como atmosfera de harmonia e amor.
Insensivelmente, sem darem fé da
distância chegaram à casa. Esperava-os na porta o coronel.
– Com que então não foi difícil
encontrar a Lenita, gritou ele.
E atentando na caça: Deixa ver isso,
rapariga! Ih! que razoural No mato não ficou pássaro! Esta menina! Olhe, você
devia ter nascido homem… e quem sabe se você não é mesmo homem?
Lenita corou até às orelhas.
O coronel não se deu por achado da
inconveniência.
– Vamos, vamos almoçar, que Manduca deve
estar a tinir: fez a loucura de caminhar a cavalo a noite toda. Vamos!
O almoço correu bem, mas terminou
desagradavelmente. Quando estavam tomando café com leite, terminação
obrigatória do almoço rural paulista, entrou na sala uma preta velha,
assustada.
-Acuda, sinhô! disse, Maria. Bugra está
morrendo!
– Onde está ela? Que é que tem?
perguntou surpreso o coronel.
– O que ela tem eu não sei. Está aí na
sala de fora, eu a man-dei trazer para aí.
O coronel levantou-se, saiu a ver,
aflito, trôpego. Barbosa e Lenita seguiram-no.
Na sala de entrada, sobre urna marquesa
forrada de couro, encostando-se a um travesseiro de marroquim que fora
encarnado, estava uma preta fula ainda moça.
Estertorava com a face tumefata, com os
tendões do pescoço retesados; os olhos protraíam-se das órbitas; as pupilas
enormemente dilatadas tinham feito desaparecer os limbos do íris. Das
comissuras dos lábios contraídos e deformados escorriam fios de baba, viscosos,
resistentes, translúcidos.
O coronel abeirou-se da enferma,
tomou-lhe o pulso.
– Veja isto, Manduca, que pensa você?
Barbosa aproximou-se por sua vez,
procurou sentir o calor da preta na pele do rosto, encostando-lhe o dorso da
mão, achou-a fria; tateou-lhe o pulso, encontrou-o débil, espaçadíssimo;
beliscou-a, ela não pareceu dar acordo disso.
– Como principiou esta moléstia?
perguntou ele à preta que tinha ido dar parte.
Eh! sinhô moço! Maria estava no paiol,
debulhando milho, muito sossegada. De repente entrou a queixar de ansiedade,
levantou, andou vira-virando, entrou a gritar, a falar as coisas à toa. Batia
com a cabeça, escumava, queria morder gente, parecia mesmo que estava louca.
Depois perdeu o sentido, caiu, ficou assim como está. Eu mandei trazer para
aqui, fui chamar sinhô.
– Sim ! Faz muito tempo?
– Não, sinhô moço, foi agora mesmo.
– Comeu ela ou bebeu alguma coisa?
– Ela almoçou, há de fazer duas horas.
– Não bebeu nada?
– Bebeu café, uma meia tigela.
–
Donde veio o café?
– Veio da senzala de pai Joaquim.
– Joaquim Cambinda?
– Sim, sinhô moço.
Barbosa foi ao seu quarto e, após breve
demora, voltou com um frasquinho a meio de um líquido claro como água. Pediu
uma colher; trouxeram-lhe. Chamou e enferma, junto do ouvido:
– Maria!
A negra não respondeu.
– Maria! repetiu ele em voz mais alta.
A preta tentou sair do estado soporoso
em que se achava, procurou levantar a cabeça, não conseguiu; deixou-a recair
pesadamente no travesseiro, proferindo uns sons inconexos, semi-inarticulados.
De sob as suas roupas exalava-se um cheiro fétido de matérias fecais.
Barbosa, vendo que nada poderia obter,
que a vontade estava ali aniquilada, passou o frasquinho ao coronel.
– Vou abri-lhe a boca com a colher;
vossa mercê despejará dentro o conteúdo deste vidro.
– Todo?
– Todo; é uma dose forte de emético;
convém fazê-la vomitar. Introduziu com algum custo o cabo da colher entre as
arcadas dentárias da doente, e, fazendo dele uma alavanca, descerrou-lhe os
queixos.
– Agora, meu pai !
O coronel vazou dentro da boca,
entreaberta à força, o líquido do vidrinho.
– Engula! gritou Barbosa.
A negra fez um esforço, deu um safanão
violento, a colher saltou longe, e o líquido, revessado, caiu sobre a marquesa,
correu para o soalho. A deglutição era impossível.
– Não será bom mandar chamar o doutor
Guimarães?
– Inútil, meu pai; nada há a fazer neste
caso.
– Assim mesmo…
– O doutor Guimarães só poderia estar
aqui à noite, e dentro de uma hora a preta já terá morrido.
– Manduca, olhe…
– Sei o que isto é, meu pai; não há
mesmo nada a fazer.
O coronel voltou triste para a sala de
jantar; Lenita e Barbosa com ele.
Sentaram-se junto de uma janela
abatidos: a moléstia da preta lançara-os em um desânimo profundo, em uma
apreensão de vagas ameaça de perigos desconhecidos.
Entreolhavam-se, não ousando arriscar um
dito, uma palavra.
E todavia essa reserva pesava-lhes,
era-lhes incomportável o silêncio.
Quebrou-o Barbosa.
– Meu pai, a Maria Bugra morre, e sabe
vossa mercê de que morre ela?
– Tenho medo de o saber.
– Vejo que me compreendeu.
– Morre do que têm morrido vários
escravos aqui na fazenda, morre envenenada.
– É bem possível.
– Não é possível, é certo.
– Lembra-se da morte do Carlos, da do
Chico Carreiro, da do Antônio Mulato, da Maria Baiana?
– Perfeitamente!
– Não apresentaram eles os mesmos
sintomas que apresentou e está apresentando agora a Maria Bugra?
– Homem, com efeito! Apresentaram.
– Excitação violenta mas passageira,
delírio, depois paralisia quase completa, face túmida, conjuntivas injetadas,
olhos saltados, dilatação de pupilas, deglutição impossível, queda de pulso,
esfriamento geral, incontinência de urina e de fezes?
– Exato.
– Pois tudo isso, estou convencido, é
consequência da ingestão de um veneno terrível, infelizmente muito comum entre
nós, a atropina.
– Muito comum entre nós, a atropina?!
– Sim senhor.
– Pois a atropina não se tira da
beladona?
– Também se tira da beladona.
– E onde encontrar a beladona? No Brasil
só pode haver beladona em algum horto botânico.
– Meu pai não conhece aquilo que ali
está? E Barbosa apontou para um vasto trato de terreno, coberto de plantas
baixas, escuras, de folhas repicadas, de flores brancas, em forma de trombeta.
– Conheço, respondeu o coronel, é
figueira do inferno, mamoninho bravo, um veneno terrível, dizem. Mas você falou
em atropina.
– Cientificamente a figueira do inferno
chama-se Dotura stramonium: extrai-se dela um alcalóide venenosíssimo, a
que se chama doturina: Ladenburg, porém, e Schmidt verificaram nestes últimos
tempos que a daturina é pura e simplesmente a atropina, a mesma letal atropina
que se obtém da beladona.
– E a sua convicção é…
– Que Maria Bugra morre envenenada por
uma decocção fortíssima de sementes de datura, e, consequentemente, por
atropina.
E tem suspeita de quem tenha sido o
propinador do veneno?
Não tenho suspeita, tenho certeza.
– Quem pensa que foi?
– Joaquim Cambinda.
A esta acusação precisa, formal,
convicta, o coronel baixou a cabeça. Pensava Barbosa tinha razão. Perdera a
fazenda vários escravos mortos todos de uma moléstia esquisita, que apresentava
invariavelmente o mesmo cortejo de sintomas. E isso começara depois de que
viera Joaquim Cambinda. Esse preto, tinha-o ele recebido com outros em herança
de uma tia, já velho, incapaz de trabalhar. Nunca exigira dele serviço;
dera-lhe até para morar, a pedido seu, um paiol largado, independente, no fundo
do terreiro. Tempos havia, morrera na fazenda um feitor branco: a viúva,
lembrava-lhe bem, tinha feito um berreiro enorme, infernal, dissera que o
marido sucumbira a coisa feita, acusara terminantemente a Joaquim Cambinda. Não
dera ele, coronel, importância à acusação, e essa acusação ressurgia, feita
agora por seu filho, homem inteligente, ilustrado, muito sisudo.
– Em que se estriba você para inculpar o
negro velho? Perguntou após minutos de meditação.
– Em muita coisa. Primeiro, os fatos, os
envenenamentos indiscutíveis, e que só começaram de dez anos a esta parte,
depois que Joaquim Cambinda veio para a fazenda: eu cá não estava, mas por
informações acho-me ao corrente de tudo. Em segundo lugar a fama de mestre
feiticeiro que tem ele em todo o município: varias pessoas de critério
têm-se interrogado a esse respeito. Depois, surpreendi-o eu mesmo, outro dia, a
secar cabeças de cobra, raízes de cicuta e de guiné, sementes de datura. E
mais… ele tinha seus agravos de Maria Bugra…E Barbosa acentuou estas
palavras, olhando para Lenita.
– É verdade, sei, até já tive de tomar
providências por causa disso. Mas são presunções apenas…
– Que, reunidas, fazem convicção.
– Precisamos de tirar isto a limpo.
– É o meu modo de entender: não podemos
deixar correr à revelia uma coisa de tanta gravidade.
Realizaram-se as previsões de Barbosa: o
estado soporoso de Maria Bugra passou para coma, e o coma para morte.
À tarde, ao escurecer, depois da
revista, o coronel mandou chamar Joaquim Cambinda.
O medonho negro veio arrastando os pés,
escorando-se em um bordão, a rojar pelo solo a imunda coberta parda, de que
sempre usava.
Chegou, entrou na ante-sala, largou o
bordão a um canto. O cadáver de Maria Bugra aí estava, sobre a marquesa, no
meio da quadra, inteiriçado, coberto por um lençol fino que lhe desenhava as
formas duras, angulosas. Quatro velas de cera alumiavam-no lúgubremente,
casando os seus clarões aos últimos clarões do dia.
Por entre o cheiro acre de vinagre
ferrado e o cheiro enjoativo da alfazema queimada, percebia-se um cheiro
fétido, um fartum de carne podre, de decomposição cadavérica.
Joaquim Cambinda entrou, olhou com
indiferença para a defunta, dirigiu-se ao coronel que, junto com Barbosa, aí o
esperava.
– Vá sãos cristo, sinhô. Sinhô mandou
chamar negro velho, negro velho está aqui, disse na sua algaravia bárbara,
horripilante, impossível de reproduzir.
– Sabe quem está ali morta, Joaquim?
– Sei, é Maria Bugra.
– De que morreu, não sabe?
– De suas moléstias dela.
– Que moléstias?
– Eu não sei, eu não sou doutor.
– Então você não sabe, não é doutor? Não
sabe Também de que morreu a Maria Baiana, o Antônio, o Carlos, o Chico
Carreiro?
– Como quer sinhô que eu saiba?
– Se você não confessar tudo o que tem
feito, aqui, direitinho mando-o acabar a bacalhau, sô feiticeiro do diabo!
– Ah! Sinhô! Feiticeiro, negro velho,
que não tarda a ir dar contas a Deus do feijão que ele comeu!
– Deixe-se de histórias, de mamparras,
vamos ! Com que matou você a Maria Bugra?
– Não matei com coisa alguma, sinhô.
Como hei de eu confessar uma coisa que eu não fiz?
– Se fez ou se não fez é o que vamos já
saber. Pedro, João, venham cá, agarrem-me este patife.
À porta a negrada acotovelava-se curiosa
estendendo uns o pescoço por sobre os ombros dos outros.
Os dois pretos chamados abriram caminho,
empurrando os companheiros, entraram na ante-sala.
– Segurem-me este tratante, conduzam-no
à casa do tronco.
Eu já lá vou. Levem o bacalhau e uma
salmoura forte.
– Que é que sinhô vai fazer comigo?
inquiriu rápido Joaquim Cambinda.
– Você vai ver.
– Sinhô, Joaquim Cambinda nunca apanhou
de bacalhau…
– Vai apanhar agora; será então a
primeira vez.
Operou-se uma revolução medonha
ele para longe de si a coberta esfarrapada, endireitou o busto derreado, ergueu
a cabeça, cerrou os punhos e encarou o coronel. Cintilavam-lhe os olhos, os
beiços arregaçados deixavam ver os dentes.
– Ahl você quer saber, eu digo: fui eu
mesmo que matei Maria Bugra.
– E por que a matou você?
– Porque ela comia o meu dinheiro, e me
enganava com a crioulada nova.
– E os outros, o Carlos, a Maria Baiana,
o Chico Carreiro, Antônio Mulato?
– Fui eu mesmo que matei a todos.
– E por quê?
– Maria Baiana pelo mesmo motivo que me
fez matar Maria Bugra. Os outros para fazer mal a sinhô.
– Para me fazer mal? Por quê? Pois você
não é o mesmo que forro? Exijo eu algum serviço de você? Não lhe dou moradia,
roupa, comida? Por que me quer mal?
– Já que principiei a falar, irei até o
fim. Sinhô é bom para mim, é verdade, mas sinhô é branco, e obrigação de preto
é fazer mal a branco sempre que pode.
– Matar-me cinco escravos!
– Cinco! Só crioulinhos mandei eu embora
dezessete. Negro grande, nem se fala: Manuel Pedreiro, Tomaz, Simeão, Liberato,
Gervásio, Chico Carapina, José Grande, José Pequeno, Quitéria, Jacinta,
Margarida, de que é que morreram? Fui eu que matei todos.
Ergueu-se grande sussurro de entre o
grupo de negros. Ouviam-se gritos, imprecações.
– Agora também você está mentindo: José
Pequeno morreu picado de cobra.
– Qual cobra! A cobra que o picou não
tinha veneno. E ele morreu, mas da beberagem que eu lhe dei para curar.
– Mas todos esses pobre diabos eram
pretos como você. para que os matou?
– Para sinhô ficar pobre: eu queria ver
sinhô se servir por suas mãos.
– E a mim nunca pretendeu você matar?
– Matar, não: fazer penar só.
– Então sempre me queria fazer alguma
coisa?
– Queria fazer! Eu fiz mesmo.
– Fez? Que é que me fez você?
– Esse seu reumatismo, sinhô, então que
é? Entrevamento de sinhá velha donde vem? E o negro deu uma gargalhada feroz.
O coronel ficou aterrado.
– Levem, levem daqui esta serpente!
gritou Barbosa. Metam-no no tronco, não quero mais vê-lo. Vai para a vila
amanhã. Os negros apoderaram-se de Joaquim Cambinda, que não ofereceu
resistência, rodearam-no, levaram-no a empurrões para o meio do terreiro!
– Então foi você que matou meu pai !
dizia um.
– Minha mãe ! bradava outro.
– Meus três filhinhos tão bonitos, que
entraram a inchar de repente, na cabeça e na barriga, a amarelar e que morreram
com as perninhas finas como pernas de rã! lamuriou uma negra e, tomando do chão
um caco de telha, bateu com ele na cara do feiticeiro.
Foi como que um sinal.
Os negros todos achegaram-se a Joaquim
Cambinda, uns davam-lhe punhadas, outros escarravam-lhe, outros atiravam-lhe areia
nos olhos.
– Peste do diabo! Coisa ruim!
– Feiticeiro do inferno!
– Enforque-se já este demônio!
– O melhor é queimar!
– Que se queime! Que se queime!
E numa confusão horrorosa foram
arrastando o desgraçado.
Ao pé do paiol estava um montão de sapé
seco, e junto dele uma mesa velha de carro, com uma roda só, desconjuntada,
meio podre.
Em um momento amarraram o mísero sobre
essa mesa de carro, apesar da resistência louca que ele então procurou fazer, a
pontapés, a coices, a dentadas.
Trouxeram sapé, aos feixes, encheram com
ele o vão que ficava por baixo da mesa.
– Querosene! gritou uma voz, tragam
querosene!
Um moleque correu ao engenho, e de lá
voltou com uma lata quase cheia.
Um preto tomou-lha, subiu à mesa do
carro, começou a despejar petróleo sobre Joaquim Cambinda: o líquido corria em
fio farto, claro, transparente, com reflexos azulados, ressaltava do peito
piloso do negro, da sua calva lustrosa, embebia-se-lhe nas roupas imundas,
misturado, confundindo com o suor que manava
olhos do miserável revolviam-se sangrentos, seus dentes rangiam, ele bufava.
– Fósforos! Fósforos! Quem tem fósforos?
perguntou o preto, depois que esvaziou a lata, e que fez desaparecer Joaquim
Cambinda sob um montão de sapé.
– Eu! acudiu a negra que dera princípio
ao motim, e estende-lhe uma caixa de fósforos.
O preto saltou abaixo, tomou-a,
abaixou-se, riscou um fósforo, protegeu-lhe a chama com a mão em forma de
concha, encostou-o ao sapé, junto do chão.
Ergueu-se uma fumarada espessa,
azul-claro por cima, cor de ferrugem por baixo; a chama cintilou em compridas
línguas gulosas, lambeu, rodeou a mesa do carro, chegou ao sapé de cima e ao
corpo do negro. As roupas deste, embebidas em petróleo, fizeram uma como
explosão, inflamaram-se repentinamente. Ele soltou um mugido rouco, sufocado,
retorceu-se frenético…
Tudo desapareceu num turbilhão
crepitante de fogo e de fumo.
As faúlas voavam longe, e o vento
carregava a distâncias enormes as moinhas carbonizadas.
Sentia-se um cheiro acre, nauseabundo de
chamusco, de gorduras fritas, de carnes sapecadas.
Capítulo 13
Até 1887 vivia-se em pleno feudalismo no
interior da província de São Paulo.
A fazenda paulista em nada
desmerecia do solar com jurisdição da Idade Média. O fazendeiro tinha nela cárcere
privado, gozava de alçada efetiva, era realmente senhor de baraço
e cutelo. Para reger os súditos, guiava-se por um código único – a
sua vontade soberana. De fato estava fora do alcance da Justiça: a lei escrita
não o atingia.
Contava em tudo e por tudo com a
aquiescência nunca desmentida da autoridade, e, quando, exemplo raro,
comparecia à barra de um tribunal por abuso enorme e escandalosíssimo de poder,
esperava-o infalivelmente a absolvição.
O seu predomínio era tal que às vezes
mandava assassinar pessoas livres na cidade, desrespeitava os depositários de
poderes constitucionais, esbofeteava-os em pleno exercício de funções, e ainda…
era absolvido.
Para manter o fazendeiro na posse de
privilégios consuetudinários, estabeleciam-se praxes forenses, imorais e
antijurídicas. Em Campinas, por exemplo, todo o crime cometido por escravos,
fossem quais fossem as circunstâncias, era sistematicamente desclassificado; a
condenação, quando se fazia, fazia-se no grau mínimo; a pena era comutada em
açoites, e o réu entregue ao senhor, que exercia então sobre ele sua vindita
particular.
O sucesso pavoroso, o linchamento atroz
do feiticeiro pelos escravos da fazenda, não transpirou e, se transpirou, se
alguma coisa chegou aos ouvidos das autoridades da vila, elas não se moveram.
O coronel, homem bom, compassivo,
horrorizara-se a princípio com o fato que não pudera impedir; afinal entendera
que o que não tem remédio está remediado, achara até que o exemplo não havia de
fazer mal. Barbosa, conquanto tivesse passado boa parte de sua vida na filantrópica
Albião, era filho de fazendeiro, como tal tinha sido criado: não
estranhara, pois, o sucesso, gostara até da solução que ele trouxera a um caso
complicado e gravíssimo.
A atmosfera de tristeza, de desalento,
que um sucesso trágico gera sempre, foi-se pouco a pouco dissipando.
O viver da fazenda entrou logo em seus
eixos: dir-se-ia até havia melhoramento, que se estava mais à vontade. Joaquim
Cambinda inspirava medo, ninguém se atrevia a proferir uma palavra contra ele,
e, todavia, exceto um pequeno número de adeptos de suas práticas, todos o
odiavam. A sua morte, como a de todo tirano, fora um motivo de júbilo geral,
alargara todos os pulmões que bebiam ar então a haustos largos. Desaparecera o
perigo invisível e temeroso que a todo o instante a todos ameaçava.
A fruiteira continuava a ser
muitíssimo frequentada por pássaros de espécies várias, por serelepes e até por
ouriços caixeiros.
Lenita ia por diante com as suas razzias
matinais. Acompanhava-a então Barbosa, que lhe deixava todo o prazer das
caçadas, reservando-se o trabalho. Era ele quem ia buscar as aves mortas, quem
perseguia e apanhava as que caiam ainda vivas. Tendo achado um carreiro batido
de caça, a alguma distância da caneleira, escolheu um lugar que lhe pareceu
apropriado, limpou-o em bom espaço, deitou milho, fez uma ceva. Ao terceiro dia
notou com prazer indizível que a caça acudia, que o milho estava comido. Em
pouco tempo teve de renová-lo: tinha acabado. Entendeu que era tempo de
construir um reparo. Fê-lo quadrangular, grande bastante para duas pessoas.
Tapou-o em roda com palmas de guarirova, arranjou dentro um assento de varas,
sólido, relativamente cômodo. Cravou no chão forquilhas para encostar as
espingardas, dispôs olheiros por onde pudesse espreitar a caça. Antegostava a
surpresa agradabilíssima que ia causar a Lenita, o arrebatamento, o êxtase em
que ficaria ela, ao defrontar pela vez primeira com caça de importância com
caça de grande pelo.
Deixou passar alguns dias para que a
caça se familiarizasse com a choça, e, quando entendeu ser tempo azado, mandou
acordar a Lenita bem de madrugada, muito antes da hora do costume. Saíram. Para
atravessar o carreadouro e a picada, Barbosa teve de ir riscando fósforos;
estava escuro como breu. Ao chegarem junto da caneleira ainda tudo era trevas.
A copa das árvores formava uma pasta compacta, negra, indistinta do negror do
céu. Lenita tinha sono, bocejava. A mucama encolhia-se toda, aconchegando-se no
xale.
– Parece que perdemos hoje a hora, que
viemos cedo demais, disse Lenita.
– Viemos a hora precisa, respondeu
Barbosa.
– Os pássaros não começarão a vir nem
nesta uma hora.
– Que venham quando quiserem: nos hoje
não estamos cá por amor de pássaros.
Então por amor de que estamos?
-Vai ver. Marciana, você fica aqui.
Sente-se, não faça a mínima bulha. Agora D. Lenita venha comigo.
– Onde vamos nós?
– Vai ver, tenha paciência.
A moça, intrigada ao último ponto,
deixou-se guiar silenciosa, dócil. Barbosa ia adiante, mostrando o caminho: ora
dava-lhe a mão, ora afastava um ramo, para que lhe não batesse no rosto.
Chegaram à ceva.
– Entre, Lenita, disse Barbosa,
colocando-se ao lado da porta do reparo, com modo tão cortês; como se a
estivera convidando para chegar ao buffet em um salão de cotillon cerimonioso,
aristocrático.
Lenita entrou confiadamente,
resolutamente, naquele antro lôbrego, onde nada se podia divulgar.
Barbosa entrou também, riscou um
fósforo, mostrou o banco a Lenita, fê-la sentar, dispôs-lhe a espingarda sobre
a forquilha, assestou-lhe sobre a ceva, sentou-se ao lado da moça.
– Mas isto que vem a ser, afinal de
contas?
– É uma ceva. Agora silêncio, e
esperemos.
No recinto, fechado pelo tapume espesso
de palmas ainda verdes, havia um conchego relativo. Lenita, com as mãos
agasalhadas em luvas de lã, envolta e water-proof de casimira encorpada,
sentindo o calor doce de Barbosa, achava-se bem. Hauria o ar puro, fresco, da
mata, respirava as emanações de guarirova, essas emanações irritantes de
palmeiras, que adormentam o cérebro em uma lubricidade mística. Ouvia coar delícias
o pingar manso e monótono de orvalho na camada de folhas secas. E
despercebidamente o tempo ia passando. Amanheceu. A luz penetrou na mata, deu
tom aos troncos, coloriu a folhagem, alumiou o chão pardecento e varrido da
ceva, no qual o amarelo do monte de milho punha uma nota muito clara.
De repente Barbosa deu com o joelho em
Lenita.
Um anima pequeno, esguio, elegante,
emergia do mato, e avançava cauteloso, alongando o corpo fino. Chegou ao milho,
retraiu-se, encolheu-se, fugiu aos corcovos, sumiu-se, reapareceu e, sempre
arisco, sempre desconfiado, principiou a comer. Pouco a pouco perdeu o receio,
ergueu as patas dianteiras, sentou-se sobre as traseiras, e, tomando uma espiga
entre as mãozinhas, começou a roê-la com apetite, vorazmente.
Lenita, com o coração a bater
descompassado, descorada, quase sem consciência, como por instinto venatório,
aperrou a arma, fez pontaria, desfechou.
O tiro restrugiu pela mata, repercutiu
com um baque seco nas quebradas distantes.
A clareira encheu-se de fumo.
A moça e Barbosa saíram correndo a ver o
resultado do tiro.
Junto do milho, com o pelo arrufado,
percorrido a espaços por uma crispação fraca, estava o animal, atravessado de
banda a banda pela chumbada mortífera.
Era uma cutia.
Ao vê-la ferida, prostrada, a exalar o
derradeiro débil alento, o prazer de Lenita foi tão intenso, que
dobraram-se-lhe as pemas, e ela caiu de joelhos, erguendo para Barbosa um olhar
repassado de gratidão.
Levantou-se, largou a espingarda, tomou
o animal, sopesou-o com ambas as mãos, a tremer, dementada pelo triunfo, em
arrancos de risos nervosos.
– Agora é irmos para a choça, que não
tarda a vir mais caça, disse Barbosa e, raspando terra com os pés, cobriu o
sangue e o pelo que havia no chão; depois ergueu a espingarda de Lenita,
apresentou-lhe e pediu-lhe a cutia para levar.
– Leve-me a espingarda, eu quero levar a
cutia, respondeu a moça.
Instalaram-se de novo na choça. Lenita
carregou a espingarda, sentou-se, pôs a cofia diante de si, apoiou as pontas
dos pés no seu corpo macio, cravou na ceva olhares vigilantes, cobiçosos,
sôfregos.
Não esperou muito. Ouviu-se um estalar
de ramos quebrados, e, um logo após outro, apresentaram-se dois vultos escuros,
grandes, dois enormes porcos de eixo branco. Entraram no limpo da ceva
confiados, lentos, mansos, caminharam direito ao milho, trombejando, foçando,
fazendo estalar os dentes. Pararam, puseram-se a comer tranquilamente,
descuidosamente.
Lenita engatilhou a espingarda, quis
metê-la
Barbosa
– Não se mova, segredou-lhe rapidamente,
ao ouvido. Estamos em perigo sério.
– Em perigo?
Os dois porcos continuavam a trincar, a
esmoer o milho, sem suspeitar da vizinhança de gente.
Passaram-se dez minutos, dez séculos de
ansiedade para Lenita.
Barbosa lento, cauteloso, sem fazer o
mínimo rumor, como uma sombra, tirou a espingarda de Lenita, e pôs em lugar a
sua, uma arma excelente de Pieper, canos shoke-rifled, calibre 12.
– Atire com esta disse em voz baixa que
mal Lenita o pôde ouvir, não tenha receio, não dá coice.
Lenita armou os dois cães, premendo os
gatilhos para que não estalassem os gafanhotos nos dentes das nozes, levou a
arma à cara e, quase sem apontar, disparou um tiro e outro imediatamente.
Os estampidos das cargas fortíssimas
ribombaram pela mata de modo pavoroso: a fumaça enevoou a ceva, tapou tudo;
sentia-se o cheiro forte, bom, de sulfureto de potássio, de pólvora queimada.
Lenita impaciente, incapaz de conter-se,
quis sair. Barbosa a reteve.
– Cuidado! disse, esperemos que se
dissipe a fumaça. O caso é sério. São queixadas.
– Então foi a queixadas que eu atirei?
– Foi, e felizmente não há bando, são só
dois.
– Se houvesse bando?
– Estaríamos perdidos.
– São assim perigosos?
– Em bando, no mato, piores do que onça.
Por amor das dúvidas, dê-me a espingarda, quero carregá-la.
Demoradamente foi-se dissipando o fumo.
Barbosa e Lenita saíram. Junto do milho o chão estava escarvado, via-se muito
sangue. De dentro do mato, de pequena distância, vinha um como grunhido, um
ronco lastimado.
Barbosa ordenou a Lenita que se deixasse
ficar e, com a espingarda armada, pronto a dar fogo, entranhou-se no mato, do
lado donde vinham os grunhidos. Não teve que andar muito: a pouco espaço, perto
um do outro, jaziam os dois porcos, alcançados ambos pelos tiros certeiros de
Lenita. Um estava morto, o outro estertorava enfraquecido nos arrancos da
agonia.
– Albo notanda dies lapillo!
Venha Lenita, venha ver o que fez! gritou Barbosa.
Lenita, apressada, correu sem se
importar com os ramos que lhe açoitavam, que lhe arranhavam o rosto, sem dar fé
dos espinhos que lhe rasgavam a roupa. Chegou-se: ao dar com as suas vítimas,
perdeu de todo a cabeça, teve uma como vertigem, soltou um grande grito,
atirou-se a Barbosa, abraçou-o freneticamente. Depois caiu em si, retraiu-se
confusa, desapontadíssima, correu a examinar os queixadas.
Baixou-se junto do que estava morto,
examinou-lhe detidamente, minuciosamente: os cascos aguçados, as cerdas duras,
longas, as orelhas tesas, a tromba lisa, os olhos pequeninos, sanguíneos, os
colmilhos oblíquos, o queixo branco. Tirou as luvas, premiu-lhe, esvurmou-lhe a
glândula tumefata das cadeiras, fez correr o líquido lácteo, catinguento.
– Foi feliz, disse Barbosa, risonho. Fez
uma proeza de que se não podem gabar muitos caçadores velhos.
– E ao senhor o devo! Obrigada!
Havia tanta doçura, tanto sentimento no
modo por que Lenita disse essa frase, que Barbosa sentiu um calafrio
percorrer-lhe o dorso. Foi-lhe preciso uma violência enorme sobre si próprio,
para conter-se, para impedir-se de atirar-se à moça, de cobri-la de beijos.
– Então, perguntou ele, voltarmos ao
reparo, a esperar mais caça?
– Não, respondeu Lenita, queixadas com
certeza não vêm mais, e seria profanar o dia e a espingarda atirar a caça
inferior. Como havemos de levar estes monstros?
Eu mando um preto buscá-los com um
cargueiro.
– A cutia ao menos eu quero levar.
– Pois levaremos a cutia.
– Aquele porco menor não quer morrer.
Vamos nós dar-lhe mais um tiro?
– Não vale a pena, ele morre logo. Está
muito mal ferido.
– Mas são mesmo queixadas?
– E dos maiores.
– Boa carne?
– Excelente, melhor ainda que a do
tateto.
– Em que se diferencia o queixada do
tateto?
– O queixada, Dycotylus torquatus,
vive só na mata virgem, é maior e muito mais feroz do que o tateto, Dycotylus
labiatus, que é pequeno, medroso e que vive às vezes na capoeira. A nota,
porém, característica que os distingue é ter o queixada o queixo branco, como
está vendo.
– E é daí que lhe vem o nome?
– Exatamente. Então, vamos?
– Com franqueza, estou sem ânimo de
separar-me das minhas soberbas vítimas. Mas vamos.
E foram.
A ceva ficou deserta por muito tempo. De
súbito, pequenino, atrevido mesmo pela sua insignificância, surdiu um rato,
chegou-se sem cerimônias, entrou a roer o milho, o germe somente, o coração.
Depois veio outro, e outro, um bando. O sol, coando um raio por entre a folhagem,
ateava ao monte de milho solto e de espigas descascadas um incêndio de reflexos
cor de ouro.
Rojando em ondulações por entre as
plantas rasteiras da mata, entreparando num lugar, escutando em outro, veio
avançando para a ceva uma cobra de grande talhe. Tinha o dorso fusco, sem
brilho, maculado de losangos escuros, quase negros. A cabeça era chata, o
focinho tronco, como que aparado, com duas fossazinhas tapadas, duas ventas
falsas. De cada olho partia um traço escuro que ia fenecer no pescoço. A cauda
terminava em um como rosário curto, de contas cómeas, ocas, achatadas, que, ao
rastejar do animal deixavam escapar um ruído leve, quase imperceptível, do
pergaminho fuxicado.
Chegou, viu os ratos, parou, foi-se
torcendo em espiral, formou um rolo, donde emergia, atenta, vigilante, a
pavorosa cabeça. O olhar negro luzente, gélido, tinha uma fixidez fascinadora.
A língua lúrida, comprida, fina, bífida, açoitava o ar em rápidas lambidelas.
Um dos roedores percebeu o réptil, fitou-o aterrado, encolheu-se, enovelou-se,
arrepiou o pêlo, começou a chiar lastimosamente, miseravelmente. Os outros
desapareceram.
Continuava a fascinação.
O desgraçado rato tremia. Começou de
mover-se às guinadas, dando saltos irregulares, atáxicos. Não fugia, avançava
para a cobra. Chegou-se-lhe muito perto. O rolo hediondo distendeu-se rápido,
como uma mola de relógio, que se escapa do tambor, deu um bote. O animalzinho,
ferido pelo dente fulmíneo, virou de costas. Dentro de um minuto estava morto.
A cobra desenrolou-se então de uma vez,
estendeu-se ao comprido, abriu, escancarou uma boca enorme, começou a deglutir
a presa, desarticulando as mandíbulas para dar passagem ao corpo relativamente
volumoso…
Depois, saciada, farta, com o repasto a
formar um bolo visível exteriormente no abdome dilatado, foi deslizando, lenta,
preguiçosa, em busca de um abrigo, até que chegou ao reparo, entrou,
enrodilhou-se embaixo do banco de varas, e aí começou o sono comatoso da
digestão equídnica.
– Lenita passou o dia contentíssima, a
lembrar-se a todo o momento da sua brilhante façanha venatória. Fechava os
olhos, via as cevas, os queixadas. Estava satisfeita consigo, estava orgulhosa.
O jantar foi alegre.
Louro, coberto de rodelas de limão, apetitoso,
tentador, figurou nele o lombo de um dos queixadas. A peça, nobre, a cabeça, la
hure, desossada magistralmente por Barbosa, que, como o velho Dumas, era
perito em culinária, campeou em um prato travessa, imponente, majestática,
fragrante, cativadora.
– Hoje morro de indigestão, e é você
quem me mata, Lenita, dizia o coronel, repetindo pedaço sobre pedaço. Há que
anos que me não encontro com porco-do-mato! Essa cabeça está divina; como
ela… só o lombo!
Logo depois do café, ela, Barbosa e a
mucama seguiram para a ceva.
Muito embora seja quente o dia na mata
há sempre frescor. A luz não era crua, mordente, como em uma campina rasa;
esbate-se, quebra-se, dá aos contornos dos objetos um aveludado mole, uma
languidez suavíssima. Os sons se abrandam, tomam um como timbre murmuroso. Na
mata domina a todas as horas o que quer que é de vago
mistério.
Lenita, nessa atmosfera balsâmica,
sadia, achava-se feliz. Ao bem-estar gozoso, indefinível, que gera a boa
digestão de um repasto suculento, juntavam-se alegrias de mente, a consciência
de que seu amor por Barbosa era correspondido, o triunfo esplêndido,
inesperado, incrível sobre duas temerosas feras. Fora por traição que as matara
a tiro, escondida…embora! Na luta terrível da vida toda a arma aproveita. A astúcia
é uma força. A espingarda de bala explosiva é que equipara o homem ao
rinoceronte: para mostrar coragem irá o homem atacar o rinoceronte sem
espingarda de bala explosiva? As alimárias da selva não se deixam aproximar,
fogem mal farejam a vizinhança do homem; o homem só consegue tê-las em alcance
escondendo-se, dissimulando-se: pois, para ser leal, irá o homem avisá-las a
gritos de que se acha presente? A força é uma contração da fibra muscular, o
pensamento é uma irritação da célula nervosa: por que não empregar uma contra a
outra? Na batalha da existência, seja qual for a arma a empregar, o que impor é
não ficar vencido: o vencedor tem sempre razão. Os queixadas tinham morrido.
Lenita estava triunfante: o cérebro vencera o músculo mais uma vez. O fato era
esse, o mais não entrava em linha de conta.
Barbosa quedou-se ao pé da caneleira, a
estudar umas epífitas que descobrira sobre um tranco carcomido.
– Então não vem? perguntou-lhe Lenita.
– Já não. Leve consigo a Marciana, que
pode ajudá-la no que for preciso. Perigo não existe mais: queixadas só havia
aqueles, desguaritados de uma vara que por aqui estanciou, há meses. O administrador
conhecia-os, já os tinha visto quando andou a tirar madeiras.
– Então até logo.
– Até já, eu não me demoro.
Lenita seguiu com Marciana por um pouco;
mandou que ela se quedasse ali, junto de uma árvore, ao alcance da voz, às
ordens; chegou-se à ceva, espiando de longe, cautelosa. A ceva estava deserta.
Entrou no reparo, sentou-se, dispôs a
espingarda, começou a esperar.
Um bando de urus vinham-se aproximando;
por duas vezes ouviu ela perto o seu harpejo aflautado, sonoro, intercadente.
Mostraram-se, invadiram a ceva. Eram doze. Uns deitaram-se, desidiosos,
dispépticos, arrufando as penas, espojando-se; outros entraram a comer
gulosamente, sofregamente.
Lenita fez um movimento para erguer-se,
e pisou em uma coisa mole, que achatou sob a pressão do seu pé. Ao mesmo tempo
quase, uma como chicotada surrou-lhe as pemas, e ela sentiu no peito do pé
esquerdo um ligeiro prurido, um pequeno ardor.
Fez-se um reboliço nas palmas do tapume,
ao rés-do-chão, e ouviu-se o chocalhar áspero, nervoso, irritante, como de uma
vagem seca de fava, em vibração frenética.
A um canto do reparo, armada pronta para
novo bote, estava a cascavel. Os olhos pequeninos, fixos, luzentes como
diamantes negros, pareciam despedir relâmpagos gelados. O extremo da cauda,
erguido verticalmente, tremia como o badalo de uma campainha elétrica, como um
jato de vapor a escapar-se de um conduto estreito.
Lenita sentia-se ferida, conheceu o
perigo em que estava. De um salto saiu do reparo, atirou-se para o limpo da
ceva.
Os urus fizeram uma revoada temerosa,
fugiram em todas as direções.
Com admirável presença de espírito,
Lenita sentou-se no chão, descobriu a
perna, tirou o sapato e a meia.
Na pele alvíssima do peito do pé viam-se
dois arranhões paralelos, pequenos, de pouco mais de um centímetro de
comprimento.
Lenita espremeu-os, limpou-os de uma
como serosidade amarela que continham, tirou a fita que prendia a trança,
amarrou a perna, acima do tornozelo, apertou muito a atadura.
Depois gritou pela rapariga, mandou que
chamasse Barbosa a toda pressa.
Barbosa não se demorou.
Ao dar com Lenita, pálida, sentada no
chão da ceva, sem espingarda, com o pé descalço, ficou pasmado, não sabendo o
que pensar.
– Que tem, Lenita, que lhe aconteceu,
perguntou acercando-se, ansiado.
– Estou picada de cobra.
– Não me diga isso, não brinque assim.
– É sério.
– Onde é que está picada?
– Aqui no pé, veja.
– Sabe que cobra foi?
– Cascavel.
Barbosa empalideceu; por um momento
ficou como atordoado.
Dominou-se, porém, logo ajoelhou-se,
tomou o pé de Lenita entre as mãos, examinou detidamente.
– Não há de ser nada; disse.
Nenhuma veia importante foi tocada. A
precaução que tomou de atar a perna com esta fita foi excelente. Agora, nada de
acanhamento, entregue-se a mim deixe-me fazer o que entendo.
Tirou do bolso um charuto, trincou-o nos
dentes, mascou-o, encheu a boca de tabaco dissolvido em saliva, tomou de novo o
pé de Lenita, com respeito, com adoração quase, chegou-lhe a boca, entrou a
sugar-lhe a ferida a sorvos vagarosos, contínuos, fortes.
Cuspiu, renovou o tabaco, repetiu a
operação.
– É curioso, disse Lenita, eu nada
sinto, nada absolutamente; é como se não tivesse sido picada.
– Mas tem certeza mesmo de que foi
cobra, de que foi cascavel?
– Ora! Escute lá. Ouve?
No reparo continuava a chocalhada
sinistra.
Barbosa tomou a espingarda, aperrou-a,
aproximou-se do reparo, olhou pela porta, levou a arma à cara, fez fogo. Depois
entrou e saiu logo com a cobra, morta, suspensa pela cauda. Tinha de seis a
sete palmos, era muito grossa, um crótalo medonho, um monstro.
– Lenita, disse Barbosa, atirando o
réptil ao chão, seria fazer-lhe injúria dissimular a gravidade do que
aconteceu. Mas as providências tomadas dão-nos quase ganho de causa: você com a
atadura impediu em tempo a circulação do sangue, e por conseguinte a absorção
do veneno; eu suguei a ferida, e retirei o que era ainda possível retirar.
Sente alguma coisa agora?
Apenas um pouco de turvação na vista.
– Vamos para casa. Vou seguir um
processo racional de curativo, e espero vê-la logo risonha e alegre, outra vez,
aqui na ceva. Não tire, não deixe afrouxar o amarilho da perna.
Foram. Lenita em caminho teve duas
vertigens, quase caiu. Em algumas subidas ásperas Barbosa carregava-a. Marciana
acompanhara-os levando as espingardas. Chegaram. Lenita despiu-se, deitou-se.
Tinha frio, sentia sonolência.
Barbosa foi ao seu quarto e de lá voltou
com uma garrafa de rum: abriu-a, encheu um cálice grande, fê-lo beber a Lenita,
inteirinho de uma vez.
– Bom, temos meio caminho andado. Agora
toda a docilidade, sim?
Lenita aquiesceu com um gesto triste.
Barbosa assentou-se à beira da cama,
levantou discretamente uma parte das cobertas, tomou o pé ferido de Lenita,
desfez o atilho da perna. Um vinco em circulo afundava-se lívido, um pouco
acima do tornozelo. O pé estava inchado.
Esfregou por algum tempo a pele,
restabelecendo a circulação; tomou depois a pôr a ligadura.
Lenita entrou a ficar ansiada, aflita.
– Dói-me a cabeça, foge-me de todo a
vista, confundem-me as ideias.
-Tome mais um cálice de rum, é preciso.
– Torno, mas escute, diga-me uma coisa
com franqueza, eu vou morrer, não?
– Não, não morre. Eu respondo pela sua
vida.
– Não morro! Diz isso para me animar. Eu
bem sei o que é veneno ofídico.
– Também eu, e por isso afirmo que não
morre.
– Seja. Em todo o caso quero lhe dizer
uma coisa, chegue-se aqui bem perto.
Barbosa aproximou a cabeça do rosto da
moça.
– A minha convicção é que morro e eu não
quero morrer sem lhe contar um segredo.
– Diga, Lenita, diga o que quiser,
confie em mim, sou seu amigo.
– Amo-o, Barbosa, amo-o muito…
Barbosa teve um deslumbramento.
Dominou-se, curvou-se, beijou Lenita na testa, castamente, paternalmente.
– Pobre menina!… Mas não morre! Tome
mais um cálice de rum, sim?
– Ora, o primeiro já me atordoou.
– É mesmo para isso, tome.
Lenita ergueu-se, bebeu a custo, recaiu
pesadamente sobre o travesseiro.
– Tenho sono… quero dormir…
E fechou os olhos.
Barbosa velou-lhe à cabeceira quase a
noite toda: de meia em meia hora desfazia-lhe o atilho da perna e, depois de
ter restabelecido a circulação por um pouco, tomava a apertá-lo: a moça não
dava acordo. Inconscientemente, a dormir, murmurando palavras inconexas;
ingeriu mais dois cálices de rum que lhe fez beber Barbosa, meio à força.
Pela madrugada despertou, chamou a
mucama. Barbosa retirou-se discretamente, Lenita tornou logo a adormecer.
Quando amanheceu Barbosa interrogou a
mucama:
– D. Lenita urinou?
– Urinou, sim, senhor.
– Deitou você fora a urina?
– Não, senhor, está ali no vaso, dentro
do criado-mudo.
– Vá buscar.
A rapariga trouxe o vaso: estava acima
de meio de uma urina carregada, sanguinolenta.
– D. Lenita suou?
– Não reparei, não senhor.
– Vá ver. Se tiver suado, troque-lhe a
roupa, e traga-me aqui a camisa molhada.
Dentro de dez minutos a rapariga voltou
com o camisolão de dormir, que tirara de Lenita, úmido, levemente tinto em
alguns lugares, de um vermelho deslavado.
Ao meio-dia a moça acordou.
Estava fresca, bem disposta, sentia-se
com apetite.
Barbosa mandou vir um caldo de frango,
suculento, grosso, fê-la tomar uma xícara dele e beber um cálice de vinho
velho.
O coronel, informado do que acontecera,
estava aflitíssimo.
– Vegetalina, por que não lhe deu vegetalina?
É um grande remédio.
– Grande remédio é o álcool, respondeu
Barbosa. A vegetalina e outros quejandos específicos devem o efeito, que se
lhes atribui, ao álcool em que são administrados.
– Olhe que a vegetalina tem arrancado
muita gente da sepultura.
– E como se dá a vegetalina, não me
dirá?
– Em cachaça forte, de vinte e quatro
graus.
– Ora aí está. Lenita não tomou
vegetalina, e eu a considero livre de perigo.
– Tinha pouco veneno a cascavel, era
pequena?
– Era enorme.
– E Lenita, acha você que esteja livre
de perigo?
– Ela teve a boa inspiração de atar a
perna; chupei-lhe as feridas: pouco veneno foi absorvido.
– Você chupou? E pôs fumo na boca? Não
tinha alguma fístula na gengiva, alguma escoriação na língua?
– Felizmente tenho a boca perfeitamente
sã.
– E que lhe deu você a beber?
– Álcool excelente, rum de Jamaica.
– Só?
– Só
– Hum! não sei…
– O meu tratamento foi todo racional:
pus em prática o que aprendi de Paul Bert, que o aprendeu de Claude Bernard.
Vossa mercê conhece bem o jogo da circulação. O sangue hematoso nos pulmões
vai, pela veia pulmonar, armazenar-se nos compartimentos esquerdos do coração:
daí sai pela aorta, corre pelo sistema arterial, vivifica todo o organismo,
chega aos capilares, transfunde-se, toma carregado de resíduos pelas veias,
entra na aurícula direita do coração, recolhe os elementos reparadores trazidos
pelas veias subclávias, passa para o ventrículo respectivo, volta a depurar-se,
a reoxigenar-se nos pulmões, e assim por diante, sempre. Ora muito bem. No caso
de uma infecção qualquer de veneno, de uma mordedura de cobra por exemplo, há
três fases, três etapas indefectíveis: primeira, dissolve-se o veneno
nos humores animais que se encontram na ferida; segunda, penetra o veneno nas
veias e é levado ao coração; terceira, põe-se o veneno em contato com os
elementos orgânicos do corpo por meio da torrente arterial. Meu pai sabe que o
que constitui venenosa uma substância qualquer não é a sua qualidade, mas sim a
sua quantidade: um miligrama de estricnina não é venenoso para o homem porque,
tomado de uma vez, não o mata: um litro de conhaque é venenoso para ele porque,
tomado de uma vez, fulmina-o. Um veneno que se elimina antes de exercer ação
tóxica deixa de ser veneno. No caso de mordedura de cobra, para que o veneno produza
efeito mortífero, é preciso que a sua eliminação seja desproporcional, é
preciso que seja menor do que a absorção: é indispensável que haja acumulação
no sangue. Pois bem: o veneno está na ferida, mas não pode subir, que lhe
impede uma ligadura. Impossível prolongar tal estado, traria a gangrena. Força
é desfazer o atilho, deixar subir o sangue e com ele o veneno. Desfaz-se,
deixa-se aos poucos, porém, de modo que o veneno que entra com o sangue não
seja suficiente para produzir ação letal, de modo que seja eliminado antes que
venha outra quantidade que, somada com ele, possa produzir essa ação. Assim,
pois, solta-se a ligadura, aperta-se de novo, toma-se a soltar, toma-se a
apertar, até que todo o veneno tenha percorrido o corpo e tenha sido eliminado
sem efeito mortífero. O álcool excita os nervos, aviva a torrente circulatória;
ajuda, portanto, facilita a eliminação.
– E há exemplos de curas realizadas com
esse processo?
– Inúmeros. Claude Bernard salvava,
quando queria, animais que ele próprio tinha ferido com flechas curarizadas. Na
província do Rio uma amigo meu foi picado por um surucucu enorme, e eu salvei-o
seguindo este tratamento.
– Então a Lenita?…
– É o meu segundo caso de cura: julgo-a
tão livre de perigo agora como estava ontem, antes de ser picada.
– Posso vê-la?
– Por certo.
Entraram no quarto. Lenita estava
sentada na cama, com as pemas encruzadas à chinesa, por debaixo das cobertas.
Alegre, radiante, tinha esse ar de triunfo que têm todos os doentes escapos de
moléstia grave. Um lenço de cambraia alvíssima, dobrado em tira, cingia-lhe a
cabeça como um diadema, fazendo sobressair o brilho dos olhos, o negror dos
cabelos, o doirado pálido das faces. Uma camisa de dormir, afogada, de seda
crua, mal dissimulava nas pregas largas e moles a linha dura dos seios.
– Então, com que, pronta para outra!
disse o coronel. Pois escapou de boa! É no que dão as caçadas. Podia estar
morta a esta hora!
– Mas estou viva.
– E não ganhou medo ao mato?
– Não, ganhei experiência.
Serei vigilante, cautelosa para o
futuro: não assentarei o pé em um lugar qualquer sem o ter examinado bem
primeiro. E, realmente, mais foi o susto. Olhe eu tive um pouco de dor de
cabeça, enfraquecimento geral, sonolência: sofrer, sofrer mesmo, não sofri.
– Foi feliz, acertou com bom médico.
Lenita volveu para Barbosa um olhar
doce, repassado de gratidão.
Capítulo 14
O veneno da cobra, parece, deixara
viciado o sangue de Lenita.
Sentia-se ela tomada de acessos súbitos
de fraqueza moral, exatamente como nos primeiros tempos de sua vinda para a
fazenda.
Deixara de caçar, deixara de ler;
extinguira-se-lhe a sede de ciência.
Sentava-se a toda a hora na rede ou em
uma cadeira de balanço e imergia
Às vezes encostava-se à mesa,
debruçava-se, pegava em um lápis, em uma flor, em um objeto qualquer, e
virava-o, revirava-o, batia com ele em ritmo estranho, durante tempo largo, com
os olhos parados, sem expressão na face, como se estivesse a um milhão de
léguas das coisas da terra.
Barbosa, por sua parte, tomara-se
reservado; a confissão de amor que Lenita lhe fizera acanhava-o a ele.
Insensivelmente deixara-se prender em um
laço de que não cogitara, que nem sequer suspeitara. Achava-se em posição
escabrosa. Amava a Lenita doidamente, perdidamente; sabia que era dela amado;
ouvira-lhe a ela própria. Que mais? Ou cortar de vez tudo, fazer as malas,
embarcar-se para a Europa, ou tomar-se abertamente amante da rapariga. A flirtation
sentimental, platônica, naquele caso, era uma imbecilidade, um cúmulo de
ridículo.
E Barbosa passava a maior parte do tempo
em visitas e jogos pela vizinhança ele que dantes não jogava, que não visitava
a ninguém.
Andava pelo mato, de espingarda; mas a
espingarda era um pretexto; ele não caçava.
Uma tarde, ao descambar do sol,
sentou-se cansado à raiz de uma figueira branca, no centro da mata virgem,
olhou para cima maquinalmente; viu um enorme quati-mundé, que o espiava da bifurcação
de um galho, fazendo-lhe gaifonas com o longo focinho pontiagudo. Como se não
bastasse a tentação, ouviu-se um batido de asas forte, volumoso, e um macuco
gigantesco veio empoleira na figueira, bem por cima do quati. Pousou,
achatou-se em um galho, sacudiu-se, aconchegou-se, encolheu a cabeça, soltou
três pios altos, seguidos, compassados. Barbosa não prestou atenção nem ao
quadrúpede, nem à ave. A sua espingarda continuou imóvel entre os joelhos.
Por diante dos olhos, em uma como visão
betitifica, esvoaçava-lhe a imagem de um pé, do pé de Lenita, branco, cetinoso,
brevíssimo, com unhas róseas transparentes, e veias azuladas.
E ele beijara esse pé, mais do que isso,
ele sugara lentamente, por muito tempo, tendo na mão o calcanhar adorável,
redondo, rubro, onde a pressão de seus dedos deixava marcas muito brancas.
Sentia o saibo da pele fina, veludosa,
ameaçada de morte, mas cheia de vida. Seus lábios como que tinham memória,
recordavam-se.
E o beijo paternalmente parvo que lhe
dera na testa ao confessar-lhe ela o amor que lhe tinha. Ainda lhe hauria o
perfume natural dos cabelos, o hálito fresco, lácteo, são, como o que vem da
boca de um bezerro novo.
Por que não aceitar esse amor que se
impunha, que se dava, que se oferecia? Não procurara ele a Lenita, viera ela a
seu encontro, cônscia da situação, sabendo que ele era casado, que a não
poderia nunca desposar legitimamente.
E sem rebuços, com prudência castíssima,
fizera uma confissão que as mulheres nunca querem ser as primeiras a fazer.
Gracejo não tinha sido, a ocasião não era para gracejos.
Que mal adviria ao mundo de que se
enlaçassem, de que se possuíssem, de que se gozassem um homem e uma mulher que
se amavam?
Não se podia casar com Lenita? Que tinha
isso? Que é o casamento atual senão uma instituição sociológica, evolutiva como
tudo o que diz respeito aos seres vivos, sofrivelmente imoral e muitíssimo
ridícula? O casamento do futuro não há de ser este contrato draconiano,
estúpido, que assenta na promessa solene daquilo exatamente que se não pode
fazer. O homem, por isso mesmo que ocupa o supremo degrau da escada biológica,
é essencialmente versátil, mudável. Hipotecar um futuro incerto, menos ainda,
improvável, com ciência de que a hipoteca não tem valor, será tudo quanto
quiserem, menos moral. Amor eterno só em poesias piegas. Casamento sem divórcio
legal, regularizado, honroso, para ambas as partes, é caldeira de vapor sem
válvulas de segurança, arrebenta. Encasacas-se, paramenta-se um homem,
atavia-se, orna-se de flores simbólicas uma mulher: e lá vão ambos à igreja, em
pompa solene, com grande comitiva: para quê? Para anunciar em público, em
presença de quem quiser ver e ouvir, a repiques de sino e som de trompa, que
ele quer copular com ela, que ela quer copular com ele, que não há quem se
oponha, que os parentes levam muito a bem… Bonito! E a multidão de badauds,
velhos e moços, machos e fêmeas, de olhos encarquilhados e dentes à mostra em
riso alvar, dando-se cotoveladas maldosas, segredando obscenidades! Seria
ridículo, se não fosse chato, sujo.
O amor é filho da necessidade tirânica,
fatal, que tem todo o organismo de se reproduzir, de pagar a dívida do
antepassado segundo a fórmula bramática. A palavra amor é um
eufemismo para abrandar um pouco a verdade ferina da palavra cio. Fisiologicamente,
verdadeiramente, amor e cio vêm a ser uma coisa só. O início primordial do amor
está, como dizem os biólogos, na afinidade eletiva de duas células diferentes,
ou melhor, de duas células diferentemente eletrizadas. A complexidade
assombrosa do organismo humano converte essa afinidade primitiva, que deveria
ter sempre como resultado uma criança, em uma batalha de nervos que,
contrariada ou mal dirigida, produz a cólera de Aquiles, os desmandos de
Messalina, os êxtases de Santa Teresa. Não há recalcitrar contra o amor, força
é ceder. À natureza não se resiste, e o amor é natureza. Os antigos tiveram uma
intuição clara da verdade quando simbolizaram em uma deusa formosíssima implacavelmente
vingativa, na Vênus Afrodite, o laço que prende os seres, a alma que lhes dá
vida.
Lenita se lhe oferecia, pois bem, ele
seria o amante de Lenita.
E Barbosa ergueu-se robustecido, forte,
como quem acaba de tomar uma resolução definitiva, caminhou apressadamente para
casa.
Quando chegou era quase noite, já estava
escuro.
Entrou no seu quarto, largou a
espingarda e a patrona, riscou fósforos, acendeu uma vela, lavou as mãos.
Saiu.
No corredor, ao chegar à ante-sala, deu
com alguém: era Lenita.
– Oh ! exclamou ele.
As mãos de ambos como que se procuravam
no escuro: encontraram-se, entrelaçaram-se.
Barbosa puxou Lenita para si, quis
beijá-la na boca, não teve ânimo, beijou-a ainda na testa.
Lenita abandonava-se, entregava-se,
molemente, sem resistência.
No corredor tudo eram trevas: Barbosa
não via a chama negra da volúpia que torvelinhava nos olhos da moça; não lhe
via a palidez das faces, o rubor dos lábios, a arfarem tímidos, mendigando
beijos; não lhe via o quebramento langue de pescoço.
A resolução tomada fraqueou, cedeu:
sentiu-se Barbosa sem coragem, sem desejos, sem virilidade mesmo. Batia-lhe o
coração desordenado, como o de um seminarista que pela vez primeira se acha a
sós com uma mulher da vida.
De repente, afastou Lenita de si com
gesto brusco, fugiu desatinado.
Ouviu-se um soluço triste, dorido, que
vinha das trevas do corredor.
A ceia dessa noite correu cheia de
constrangimento: nem Barbosa olhava para Lenita, nem Lenita para Barbosa.
Comiam, ou antes, fingiam comer em silêncio.
– Esta menina precisa de tomar remédios,
disse o coronel, reparando no abatimento, no apetite quase nulo de Lenita.
Depois da tal história da cobra deixou de ser o que era. Se tivesse usado da
vegetalina, o caso seria outro.
Veio o chá: quando acabaram de tomá-lo,
Barbosa levantou-se, deu boa-noite ao pai, despediu-se de Lenita em voz sumida,
sotur-na, cerimoniática; chamou-lhe minha senhora.
Recolheu-se.
Lenita ainda conversou por algum tempo
com o coronel. Seguia, fingia seguir bem o assunto, fazendo observações,
multiplicando perguntas, afetando muito interesse. De repente deixava escapar
uma exclamação forte, descabida, deslocada, que nada tinha com o que estava
tratando. Caía em si! procurava homologar o que dissera, atrapalhava-se,
confundia-se. Dava estremeções súbitos, como quem recebe inesperadamente uma
alfinetada. Corava, empalidecia, tinha na voz um timbre esquisito.
– Menina, sabe você de uma coisa, disse
o coronel, vá se acomodar: você não está boa. Se eu não tivesse visto que você
quase nada comeu, diria que a ceia lhe tinha feito mal. Ande, vá se deitar,
procure dormir.
Lenita obtemperou sem replicar.
Foi para o seu quarto.
Um banho momo, em que se demorou, não
serviu para acalmar-lhe os nervos, muito pelo contrário. Arrepiava-se ao
perpassar da esponja, ao sentir as suas próprias mãos; a água tépida irritava-a
como se fosse um contato humano estranho.
Saiu, enxugou-se em uma toalha felpuda,
grande, vestiu uma camisa branca de cambraia finíssima, deitou-se por sobre as
cobertas, de costas, bem estendida, com as mãos entrançadas por baixo da cabeça,
com uma perna por cima da outra.
A cambraia mole, semitransparente,
desenhava-lhe as formas esculturais do busto, do ventre, das coxas, e toda essa
alvura de pele e de tela sobressaía, realçada pelo vermelho-escuro do damasco
da colcha. O tempo passava.
Do quarto de Lenita ouvia-se bater
compassado, lento, o pêndulo do velho relógio francês da ante-sala.
Deu dez horas, deu onze, deu meia-noite.
Cada pancada do badalo na campainha soava muito distinta, muito, vibrante.
Lenita mudava de posição, revolvia-se na
cama, não dormia não podia adormecer.
Uma obsessão mordente subia-lhe da
periferia do corpo, comprimia-lhe o coração, atordoava-lhe o cérebro.
Sentia picadas na pele, tinha calafrios,
zuniam-lhe os ouvidos.
Sugando-lhe as feridas feitas pelos
aguilhões da cobra, Barbosa retirara um veneno, mas deixara outro. Lenita nunca
mais cessara de sentir a sucção morna, demorada, forte, dos lábios de Barbosa
em torno às picadas, no peito do pé. A sensação estranha, deliciosa,
incompatível que produzira essa sucção perdurava, vivia; mais ainda,
multiplicava-se, alastrava. Era um formigamento circular que lhe trepava pelas
pemas, que lhe afagava o ventre, que lhe titilava os seios, que lhe comichava
os lábios.
E ela queria Barbosa, desejava Barbosa,
gania por Barbosa.
Esperar até amanhecer: uma! duas! três!
quatro! cinco! seis horas! Ouvir o tic-tac
do relógio, lento, medido, regular, igual, metálico; monótono, impiedoso;
ouvi-lo sessenta vezes por minuto, três mil e seiscentas vezes por hora, vinte
e uma mil e seiscentas vezes nas seis horas que faltavam para amanhecer?
Impossível!
Ergueu-se e, descalça, em camisa,
inconsciente, louca, abriu a porta, atravessou a sala, abriu a outra porta,
saiu na ante-sala, enfiou pelo corredor, parou junto à porta do quarto de
Barbosa, a escutar.
E nada ouvia.
Dentro, fora, dominava um silêncio
profundo, quebrado apenas pelas pulsações violentas do seu próprio coração.
Encostou o ouvido à fechadura, nada.
O seu ombro fez uma ligeira pressão
sobre a folha da porta, e esta cedeu, entreabriu-se, chiando ligeiramente.
Uma lufada de ar quente, saturada de
aroma de charuto havano, veio afagar-lhe o rosto, os seios, o busto quase desnudo
no decote grande da camisa.
Lenita perdeu completamente a cabeça,
entrou: em bicos de pés, sem fazer rumor, escorregando, deslizando, como um
fantasma, abeirou-se da cama de Barbosa.
Curvou-se, apoiou a mão no respaldo da
cabeceira, aproximou a sua cabeça do peito do homem adormecido, escutou-lhe a
respiração igual, hauriu-lhe o cheiro másculo do corpo, sentiu-lhe a tepidez da
pele.
Quedou-se por muito tempo nesse ambiente
entorpecedor. De súbito o braço com que se
encostava falseou; ela caiu pesadamente
sobre o leito.
Barbosa deu um estremeção, acordou
sobressaltado, sentou-se, estendeu as mãos, encontrou-a, asiu-a, perguntou
assustado:
– Quem é? Quem é?
A cútis morna, cetinosa da moça, macieza
da cambraia que a envolvia em parte, o perfume de penu d’Espagne que de
seu corpo exalava, não lhe permitiam dúvidas; mas ele recusava a evidência dos
sentidos, não podia crer. Achava absurda, monstruosa, impossível a presença de
Lenita em seu quarto, àquela hora, naquela quase nudez.
E, contudo, era real, ali estava: ele
sentia-lhe a carne quente, dura, palpava-lhe a pele híspida pelo desejo,
escutava-lhe o estuar do sangue, e o pulsar do coração.
Um tropel de ideias desordenadas
agitou-se-lhe, confundiu-se-lhe no cérebro excitado; o raciocínio ausentou-se,
venceu o desejo, triunfou a sugestão da carne.
Sentou-se rápido à beira da cama sem
largar a moça, puxou-a para si, cingiu-a ao peito, segurou-lhe a cabeça com a
mão esquerda, e, nervoso, brutal, colocou-lhe a boca na boca, achatou os seus
bigodes ásperos de encontro aos lábios macios dela, bebeu-lhe a respiração.
Lenita tomou-se de um sentimento inexplicável de terror, quis fugir, fez um
esforço violento para desenlaçar-se, para soltar-se.
Era o medo do macho, esse terrível medo
fisiológico que, nos pródromos do primeiro coito, assalta a toda mulher, a toda
fêmea.
Baldado intento!
Retinham-na os braços robustos de
Barbosa: em suas faces, em seus olhos, em sua nuca os beijos dele
multiplicavam-se: esses beijos ardentes, faminto queimavam-lhe a epiderme,
punham-lhe lava candente no sangue, flagelavam-lhe os nervos, torturava-lhe a
carne.
Cada vez mais fora de si, mais atrevido,
ele desceu à garganta, chegou aos seios túmidos, duros, arfantes. Osculou-os,
beijou-os, a princípio respeitoso, amedrontado, como quem comete um sacrilégio;
depois insolente, lascivo, bestial como um sátiro. Crescendo em exaltação,
chupou-os, mordiscou-lhes os bicos arreitados.
– Deixe-me! Deixe-me! Assim não quero!
implorava, resistia Lenita, com voz quebrada, ofegante, esforçando-se por escapar,
e presa, todavia, de uma necessidade invencível de se dar, de se abandonar.
De repente fraquejaram-lhe as pemas, os
braços descaíram-lhe ao longo do corpo, a cabeça pendeu-lhe, e ela deixou de
resistir, entregou-se frouxa, mole, passiva. Barbosa ergueu-a nos braços
possantes, pô-la na cama, deitou junto dela, apertou-a, cobriu-lhe os seios
macios com o peito vasto, colou-lhe os lábios nos lábios.
Ela deixava-o fazer, inconsciente, quase
em delíquio, mal respondendo aos beijos frementes que a devoravam.
E corria o tempo.
Barbosa não podia prestar fé ao que se
estava dando.
Descrente de mulheres, divorciado da
sua, gasto, misantropo, ele abandonara o mundo, retirara-se seus livros, com
seus instrumentos científicos, para um recanto selvagem, para uma fazenda do
sertão. Abandonara a sociedade, mudara de hábitos, só conservara, como
reli-quias do passado, o asseio, o culto do corpo, o apuro despretensioso do
vestir. Levava a vida a estudar, a meditar; ia chegando ao quietismo, à paz de
espírito de que fala Plauto, e que só se encontra no convívio sincero, sempre o
mesmo, dos livros, no convívio dos ausentes e dos mortos. E eis que a
fatalidade das coisas lhe atira no meio do caminho uma mulher virgem, moça,
bela, inteligente, ilustrada, nobre, rica. E essa mulher apaixona-se por ele,
força-o também a amá-la, cativa-o, aniquila-o. Faz mais: contra a expectativa,
tomando realidade o improvável, o absurdo, vem ao seu quarto, interrompe-lhe o
sono, entrega-se-lhe… Ele a tem entre os seus braços, lânguida, mole, roída
de desejos; aperta-a, beija-a…
E… nada mais pode fazer!
Não que o detenham preconceitos, receio
de consequências, não tem preconceitos, já não receia consequências. O que o
detém é um esgotamento nervoso de momento, uma impossibilidade física inesperada.
Debalde procura na concentração da
vontade o tom da fibra nervosa, o robustecimento do organismo…
Sente o ridículo da posição, desespera,
tem as mãos frias, banha-se em suor, chega a chorar. Afastou-se de Lenita,
dementado, louco, escalavrando o peito com as unhas.
– Não posso! Não posso! exclamou, ululou
desatinado.
Deu-se uma inversão de papéis: em vista
dessa frieza súbita, desse esmorecimento de carícias, cuja causa não podia
compreender, nem sequer suspeitar; no furor do erotismo que a desnaturava, que
a convertia em bacante impudica, em fêmea corrida, Lenita agarrou-se a Barbosa,
cingiu-o, enlaçou-o com os braços, com as pernas, como um polvo que aferra a
preia; com a boca aberta, arquejante, úmida, procurou-lhe a boca; refinada
instintivamente em sensualidade, mordeu-lhe os lábios, beijou-lhe a superfície
polida dos dentes, sugou-lhe a língua…
E o prazer que ela sentia revelava-o na
respiração açodada; no hálito curto, quente; era um prazer intenso, frenético,
mas… sempre incompleto, falho.
Barbosa arquejante tinha ímpetos de
levantar-se, de tomar uma pistola, de arrebentar o crânio.
Pouco a pouco operou-se uma reação.
Sentiu Barbosa que menos agitado lhe
circulava o sangue, que um calor doce se lhe expandia pelos membros, que o
desejo físico se despertava, dominante, imperativo.
Recobrou-se de vez da passageira
fraqueza, achou-se forte, potente, varão.
Com o ímpeto irresistível do macho em
cio, mais ainda, do homem que se quer desforrar de uma debilidade humilhosa,
retomou o papel de atacante, estreitou a moça nos braços, afundou a cabeça na
onda sedosa e perfumada de seus cabelos que se tinham soltado…
– Lenita!
– Barbosa!
E um beijo vitorioso recalcou para a
garganta o grito dorido da virgem que deixara de o ser…
Depois foi um tempestuar infrene,
temulento, de carícias ferozes, em que os corpos se conchegavam, se fundiam, se
unificavam; em que a carne entrava pela carne; em que frêmito respondia a
frêmito, beijo a beijo, dentada a dentada.
Desse marulhar orgânico escapavam-se
pequenos gritos sufocados, ganidos de gozo, por entre os estos curtos das
respirações cansadas, ofegantes.
Depois um longo suspiro seguido de um
longo silêncio.
Depois a renovação, a recrudescência da
luta, ardente, fogosa, bestial, insaciável.
Pela frincha da janela esboçou-se um
rastilho de luz tênue.
Era o dia que vinha chegando.
– Deixe-me! Deixe-me, Barbosa! É preciso
ir, está amanhecendo, está clareando.
– Não, não ! Ainda não ! Aquilo não é o
dia, é o luar.
– Vou ! Deixe-me, deixe-me.
E, fazendo um esforço violento, Lenita
escapou-se do leito e dos braços de Barbosa.
No desvão da porta entreaberta
enquadrou-se, por um momento, a sua sombra indecisa. Desapareceu.
Barbosa ergueu-se, vestiu-se
rapidamente, saiu, fechou a porta, tirou, guardou no bolso a chave.
Lenita do seu quarto ouviu-lhe,
contou-lhe as passadas que ressoavam fortes.
A moça estava com febre; tinha a cabeça
em fogo; sentia-se zonza, atordoada; via a todo momento discos luminosos, com
um núcleo que se alargava, cambiando de cores, passando do verde-escuro ao
vermelho-cobre; ardia-lhe a garganta, a boca estava peganhenta. No quarto
deserto de Barbosa o rastilho de luz, coado pela frincha da janela, ia bater
sobre a cama desarranjada: na alvura dos lençóis amarrotados punham notas muito
vivas algumas manchas de sangue frescas, úmidas, rubras.
Capítulo 15
Que lindo está o dia, exclamou o
coronel, chegando à porta que dizia para o terreiro. – Um tempo firme, sim
senhor!- Jacinto!
– Sinhô ! acudiu um preto velho.
– Para onde foi a gente hoje?
– Foi a cortar arroz, sim, sinhô.
– Onde está Manduca?
– Sinhô moço mandou ensilhar o rozilho,
e foi para a banda da vila, sim sinhô.
O coronel respirou à larga o ar fresco,
puro, da manhã resplendente. Dormira toda a noite, não tivera dores, estava bem
disposto. Queria expandir-se, queria conversar.
– Logo hoje que estou sequioso por uma
prosa é que me foge o Manduca, é que se deixa ficar na cama a Lenita! Forte
coisa! Vou fazer uma extravagância, vou dar uma volta pelo cafezal.
E mandou arrear uma égua velha, muito
mansa, andadeira, uma rede, dizia ele. Saiu, foi visitar o cafezal, coisa que
fazia raramente, uma ou outra vez por ano.
Quando voltou era quase meio-dia.
Perguntou por Barbosa, não tinha vindo; por Lenita, ainda estava deitada. Veio
com fome. Mandou pôr a mesa; enquanto esperava foi ao quarto de Lenita, bateu à
porta.
– Que é isto? perguntou. Temos macacoa?
– Macacoa, não; sono, respondeu a moça.
– Ainda estava dormindo?
– Acordei com o seu batido.
– Olhe, levante-se, venha-me fazer
companhia. O Manduca não sei para onde foi. Eu ainda não almocei, e não quero
almoçar sozinho.
– Já vou.
– Pois fico esperando; venha logo, que
estou com o estômago a dar horas.
A cabo de meia hora Lenita apareceu.
Estava pálida, macilenta: tinha as pálpebras vermelhas, os olhos batidos,
grandes olheiras. Veio embrulhada em uma peliça.
De quando em quando estremecia com um
calafrio. Sentou-se à mesa meio de lado, alquebrada, lânguida.
-Melhor cara traga o dia de amanhã!
Gritou o coronel ao vê-la. Parece e passou a noite no cemitério. Que é que
teve?
– Uma ligeira indisposição.
– Hum! Já eu estava vendo isso mesmo
ontem à noite. Ai moças, moças! Isso enquanto não casam… Que há de querer um
mingauzinho de cará?
– Não, obrigada.
– Olhe estas ervas…
– Obrigada.
– Um pedaço de fiambre?
– Fiambre… quero, mas pouco, sim?
O coronel serviu-lhe uma naca larga,
rósea, marmoreada de veios de gordura branca.
Lenita polvilhou-a de sal moído, comeu
com apetite.
– Está gostando de salgados, hein? Eu
quando digo… Mais uma naquinha, sim?
Lenita aceitou, mandou buscar ginger-ale,
bebeu um copo cheio.
Conversou com o coronel por cerca de
duas horas.
Ao cair da tarde sentiu-se fraca, tomada
de invencível soneira.
Recolheu-se, dormiu. Levantou-se ao
escurecer. Quando ia saindo do quarto, deu com Barbosa que, de pé junto de um
consolo, fingia examinar uma estatueta.
– Boa tarde, Lenita, disse ele com voz
trêmula, tímido, desapontado.
A moça não respondeu: com um arranco
nervoso tomou-lhe a cabeça entre as mãos, curvou-a, beijou-a sofregamente,
esquisitamente, no alto, afundando, sumindo o rosto nos cabelos curtos,
levemente crespos.
–
Lenita, segredou em voz sumida, tênue como sopro, é perigoso, podem vê-la,
encontrá-la. Eu virei é melhor.
– Aqui dorme a rapariga.
– Fácil é afastá-la sob qualquer
pretexto. Deixe as portas cerradas.
Foram para a sala de jantar.
O coronel já tinha feito acender o
lampião; estava de pé, junto à mesa, lendo a correspondência que minutos antes
tinha chegado da vila.
– Olhe, Lenita, disse, aí estão os seus
jornais, e também uma carta. Leia, leia logo a carta; é coisa que lhe
interessa.
– Sim! Como sabe?
– A letra do sobrescrito é mesma desta
que eu recebi. Leia.
– Que será? interrogou-se a moça,
rasgando o envoltório com gesto fatigado, aborrida. Desdobrou a folha de papel,
leu sem manifestar sentimento algum, com absoluta indiferença. Depois passou-a
aberta ao coronel.
-Ora! Exclamou, arrastando a voz, com
fastio.
– Então? Perguntou o coronel.
– Leia, está aí.
– Pois não é do Dr. Mendes Maia?
– É.
– E que lhe diz você?
– Eu digo… digo… não digo coisa nenhuma.
– Já se deixa ver que quer cala …
– Nem sempre consente. O Dr. Mendes Maia
perdeu o seu tempo, a sua retórica, o seu papel, a sua tinta e o seu selo. Eu
não me caso com ele.
– É um pedido de casamento? perguntou
Barbosa, ansiado.
– Em forma.
– E quem é esse Dr. Mendes Maia?
– Esse Dr. Mendes Maia é um bacharel em
direito, nortista; fez seu quatriênio, e está na corte, à espera de um juizado
de direito aqui na província.
– E donde o conhece D. Lenita?
– De Campinas. Estivemos juntos em um
baile, no Club Semanal, há de haver três anos. Dançou comigo, fez-me a corte
por duas horas, e agora pede-me em casamento.
– Meu pai também o conhece?
– Conheço: ele andou viajando por estas
bandas com um primo que queria comprar sítio de café. Veio-me recomendado de
São Paulo, e até pousou aqui, uma noite.
– Que espécie de homem é?
– E um bacharel em direito como a
maioria dos bacharéis
direito. Parece-me
tem um defeito capital, é nortista. No mais, não há que dizer. Lenita, que hei
de eu responder ao homem?
– Boa pergunta! Responda que eu não me
quero casar que agradeço muito a honra da proposta, e coisas e tal, uma tábua
cortês.
– Não valerá a pena pensar um pouco
antes de decidir a coisa assim de talho, sem remédio?
– Não há que pensar, não quero.
– Olhe que o rapaz, segundo me diz o meu
velho amigo Cruz Chaves, nesta outra carta que recebi, tem todos os requisitos
para um bom corte de noivo: é inteligente, honesto, morigerado, trabalhador,
econômico, bom católico, e muitas coisas mais. Fez o seu quatriênio como
promotor e juiz municipal, está à espera de um juizado de direito, como você
mesmo disse, e há de obtê-lo, porque dá-se com o Cotegipe e é muito protegido
pelo Mac Dowel. E tem seus cobres.
– O partido tenta, tenta, mas eu é que
me não deixo prender.
– Olhe que isto não vai a matar, não é
sangria desatada, pense primeiro, responda depois.
– Não há que pensar.
– Esta mocidade! Para que tomar decisões
de afogadilho, quando há tempo para refletir, para pesar todos os prós e iodos
os contras?
– A resposta agora, ou daqui a um ano há
de ser a mesma: não quero.
– Menina, ninguém deve dizer “deste
pão não comerei”.
– E nem tão pouco “desta água não
beberei”. Sabido, mas eu não quero mesmo.
– Bom, bom; não quer, não quer! Amanhã
lá segue a recusa: que se aguente o Dr. Mendes Maia.
Capítulo 16
Lenita despedira a mucama, e ficara a
dormir só no seu quarto. O coronel estranhou, não levou a bem tal resolução.
Que era perigoso, que podia ficar doente, ter um ataque alta noite, sem que
ninguém lhe acudisse.
Que não, respondeu Lenita, que estava
perfeitamente boa, que não havia ataque a recear; e mais, que a rapariga
ressonava forte, e que isso a impedia de dormir.
Por volta das onze horas vinha Barbosa,
mansamente, pé ante pé, entrava na sala, fechava a porta por dentro, a chave.
As ferragens cuidadosamente azeitadas
funcionavam veleiras, em atritos macios, suaves, sem o mínimo rangido.
A fechadura era das portuguesas antigas,
de chapas furadas coincidentemente: para evitar que alguém pudesse espiar pelo
buraco o que se passava na sala, espionagem aliás improvável, Barbosa pendurava
na chave o seu chapéu.
Em liberdade absoluta, perfeita, não se
contentava com o prazer material de possuir Lenita. Queria o pecado mental
inteligente, os mala mentis guadia de que fala Virgílio; queria
contemplar, comer com os olhos a plástica soberba do corpo da moça, ora em todo
o esplendor da incandescente nudez, ora realçado pelos atavios, pelas
extravagâncias da moda.
Despia-a, punha-a na posição de Vênus de
Milo, arranjava-lhe os braços, como conjecturam os sábios terem estado os da
estátua; enrolava-lhe um lençol de volta aos quadris, arrufava-lhe, em pregas
suaves, em panejamentos artísticos.
Depois arrancava-lhe esse último
vestuário, mudava-lhe a atitude: erguia-lhe o busto, avançava-lhe a arca do
peito, fazia sobressair o relevo insolente dos seios erguidos e duros.
Por meio de um refletor poderoso focava,
dirigia a luz branca de uma lâmpada belga, fazia cair sobre a moça uma toalha
de reflexos suaves e vivos, cientificamente combinados.
Afastava-se, aproximava-se, tomava a
afastar; mirava, estudava, gozava à Lenita, como Pigmalião à Galatéia, como
Michelângelo ao Moisés.
Chegava um momento em que se não podia
conter: com um grito rouco, áspero, sufocado, de bode em cio, atirava-se, ela
atirava-se também, e ambos caíam sobre um sofá, sobre o assoalho,
estreitando-se, mordendo-se, devorando-se.
Por vezes fazia com que Lenita se
frisasse, se espartilhasse, se enflorasse, se enluvasse, com todo o capricho,
com toda impertinência de uma leoa da moda, que se prepara para um baile do high-life,
para um sarau diplomático.
Ele ajudava-a, servia-lhe de camareiro,
orgulhoso, radiante.
Todo aquele aparato do mundus mulieris,
toda aquela expansão de garridice era para ele, para ele só, para mais ninguém.
E sentia o que quer que era do prazer
exclusivista, egoístico, do rei Luís da Baviera, a assistir em um teatro vazio,
como espectador solitário, único, a uma ópera de Wagner, majestosamente posta
em cena, divinamente cantada por artistas de primor.
Adorava a macieza tépida, perfumosa, da
pele nua de Lenita; mas, refinado em lubricidade, gostava de lhe premer as mãos
quando calçadas de luvas de pelica ou de peau de Suede; gostava do
contato quente dessas mãos, através das malhas das mitaines de retrós,
gostava de lhe sentir a viveza do corpo por entre as asperidades brandas das
rendas , por entre as flores relevadas do tule.
Em breve não lhe bastaram mais esses
desbragamentos noturnos, de paredes a dentro, clandestinos: quis moldura mais
larga para os seus quadros vivos, quis palco mais espaçoso para suas encenações
carnais, quis o amor ao ar livre, à luz do dia, em liberdade plena. A pretexto
de caçar, ia com Lenita todos os dias, afundava-se na mata.
Enquanto na estrada, deixava-a seguir,
ficava alguns passos atrás, para ver-lhe o remoinho agitado dos calcanhares na
fímbria roçagante do vestido de fazenda mole.
Esse movimento de saias estuoso,
contínuo, que ia em ondulações confundir-se com o bamboar das cadeiras,
causava-lhe uma excitação estranha, particularíssima.
Quando na mata se lhe deparava uma grota
profunda, uma barroca sombria, uma clareira afestoada de creciúmas, de
taquaras, parava.
Junto de um velho tronco, ao pé do leque
esmeraldino e ainda baixo de uma palmeira nascente, bem sob a ação de um feixe
de raios solares, colocava a moça despida, fazendo com gosto de artista, com
perícia de devasso prático, que lhe destacasse a alvura da pele banhada de luz,
no fundo verde da mata afogado na sombra. Lenita prestava-se a tudo com
docilidade de rainha complacente, de deusa satisfeita; deixava-se adorar,
recebia contente o culto de latria dirigido a sua carne.
Barbosa mirava-a, remirava-a,
voltando-lhe em torno; os círculos concêntricos que descrevia iam-se
estreitando como os de um açor em volta da preia: chegava-se, ajoelhava-se; e,
trêmulo, com a respiração açodada, beijava-lhe as unhas róseas e a pele branca
dos pés, erguia o busto, alteava-se ousado, osculava-lhe as coxas roliças,
pousava a cabeça de encontro ao ventre liso, aspirando, sorvendo, de olhos
semicerrados, as emanações sãs, provocantes, da carne feminina irritada.
Uma vez no coração da mata acudiu-lhe à
lembrança a Aurora de Michelângelo, que vira no túmulo dos Médicis. Uma
anfractuosidade de terreno fora a idéia acidentalmente associada, que lhe
avivara a memória.
Perto estava uma árvore velha coberta de
musgo: colheu-o às braçadas, fez um montão, alcatifou, alfombrou com ele a
acidentação do terreno que lhe recordara o mármore florentino.
Nervosamente, brutalmente, foi despindo
a Lenita: não desabotoava, não desacolchetava; arrancava botões, arrebentava
colchetes. Quando a viu nua, fê-la reclinar-se sobre o musgo, dobrou-lhe a
perna esquerda, apoiou-lhe o pé em uma saliência de pedra, dobrou-lhe também o
braço esquerdo, cuja mão, em abandono, foi tocar o ombro de leve, com as pontas
dos dedos; estendeu-lhe o braço e a perna direita em linha suave e frouxa, a
contrastar com a linha forte, angulosa, movimentada, do lado oposto.
Desceu um pouco, deitou-se de bruços e,
arrastando-se como um estélio.
Lenita desmaiou em um espasmo de gozo.
Uma noite Barbosa não foi ao quarto de
Lenita.
A moça passou em claro, ralada de
cuidados. Pela madrugada ergueu-se e, sem se importar com a possibilidade de
que alguém a visse, de que alguém a encontrasse, sem tomar precauções, foi ao
quarto de Barbosa, empurrou a porta, entrou.
O pavio da vela, quase inteiramente
gasta, afogava-se em um lago de estearina derretida, que se acumulara na
açucena do castiçal: a chama vasquejava, bruxuleava, ora iluminando vivamente o
quarto, ora desaparecendo, quase submergindo tudo em trevas.
Barbosa estirado de costas, na cama, com
as mãos a comprimir as têmporas, gemia. Lenita debruçou-se.
– Que tem? Que é isto? Perguntou-lhe.
– Não é nada, é a minha enxaqueca. Mas
retire-se, olhe que a vêem, vai amanhecer.
– Retirar-me, eu? Deixá-lo assim
sofrendo, só? Não me conhece.
– Conheço, conheço muito bem. Eu não a
repeliria, se me fosse precisa, se me fosse mesmo útil a sua presença. Mas nada
me pode fazer. Isto não é moléstia, é incômodo; eu não estou enfermo, tenho
dores.
– Quero ficar, eu não posso vê-lo
padecer sem ao menos procurar aliviá-lo.
– Nada conseguiria senão me afligir e me
agravar o sofrimento. Isto passa com o tempo, só com o tempo. Vá, peço-lhe, vá.
Lenita foi, muito contrariada.
Eram horríveis as enxaquecas de Barbosa.
Começavam por uma dor surda de cabeça.
Pouco a pouco acentuava-se urna displicência inexplicável em tudo e para tudo;
as forças abatiam-se, prostravam-se; o rosto ficava pálido, dilatava-se a
pupila do olho direito.
Penoso qualquer movimento, impossível
qualquer esforço: Barbosa tinha de procurar o leito forçosamente, fatalmente.
Um suor gélido umedecia-lhe, banhava-lhe a fronte. Do lado direito a artéria
temporal saltava tumefata, engurgitada: o globo do olho contraía-se, minguava
e, como se estivesse contundido, pisado, era sensível à mínima pressão. No alto
da cabeça havia um ponto doloso, a sensação como de um prego que aí estivesse
fincado. Cada pulsação, cada jato de sangue nas artérias era uma manelada que
parecia fazer estalar o crânio e afundar mais o prego. O estômago enchia-se de
bile. Uma fraqueza extrema, uma necessidade imperiosa de alimentos se fazia
sentir; mas à simples idéia da ingestão de qualquer coisa, exacerbavam-se os
sofrimentos todos. Na retina havia cintilações, moscas luminosas, subjetivas; o
menor ruído, como avolumado por um microfone infernal, tomava-se em fracasso,
em cataclismo de estrondo e dores no ouvido hiperestesiado. Não havia
concentrar a atenção, pensar. Se nesses momentos viessem dizer a Barbosa que um
incêndio devorava os seus livros preciosos, que seu pai e sua mãe pereciam nas
chamas, ele nada poderia fazer, nem sequer tentar um esforço: a vontade estava
abolida.
E durava, ia sempre até à noite esse
sofrer inenarrável, essa tortura de réprobo.
Amanheceu.
Logo que se abriam as portas, que
começou a vida da fazenda, voltou Lenita para o quarto de Barbosa, sentou-se-lhe
à cabeceira, inquirindo solícita do que havia a fazer, do que era possível
aproveitar em casos tais.
Que nada, que nada mesmo havia de
tentar, repetiu Barbosa impaciente; que aquilo era um estado nervoso especial,
hiperestético, só passava com o tempo, que à noite havia de estar bom.
Lenita com o tato indizível, com o jeito
especialíssimo que têm as mulheres para enfermeiras, arranjou-lhe as almofadas
e a traves-seirinha em uma posição que lhe deu alívio; foi ao armário, procurou
entre mil frascos, achou um quase cheio de xarope de cloral, trouxe, fez-lhe
tomar quase à força duas colheres de sopa, grandes, a transbordar.
Depois apalpou-lhe os pés, sentiu-os
frios, mandou vir uma botija com água quente, envolveu-a em uma toalha, pôs-lhe
sob eles, enrolou tudo em um cobertor, habilmente, quase sem incomodá-lo, como
se não fizesse movimentos.
Os gemidos de Barbosa foram esmorecendo
em um como queixume flébil, indistinto; cessaram, ele adormeceu.
Foi um sono longo, de duas horas pelo
menos.
A moça não arredou pé um minuto: sentada
à cabeceira, imóvel; em silêncio contemplava-o a dormir.
De repente ele acordou, sentou-se
rápido, fez sinal, ordenou-lhe com gesto impaciente, irritado que se retirasse.
Lenita não obedeceu.
Barbosa, pálido, com as feições
desfeitas, curvou-se, abriu desordenadamente, atabalhoadamente o criado-mudo,
tirou o vaso, colocou-o junto de si sobre a cama. Ajoelhou-se.
Abdome, estômago, diafragma, esôfago,
contraíram-se em uma náusea violenta: os zigomáticos distenderam-lhe a pele
descorada e macilenta do rosto, e um jato de bile amarela e espumosa golfou no
fundo do vaso, tingindo-lhe as paredes com os salpicos peganhentos.
Seguiu-se outro jato, e outro, e outro,
vinha a bile, sem esforço não mais amarela, não mais espumosa, porém verde,
líquida, linda até em sua pureza transparente.
Lenita, com dó profundo debuxado nas
feições, sustentava-lhe a testa mádida.
Extenuado, Barbosa deixou-se cair
pesadamente nos travesseiros, gemeu por um pouco, tornou a adormecer.
Lenita mandou retirar, lavar, trazer o
vaso: depois retomou o seu posto junto do enfermo, velando-lhe com amor o sono
sossegado.
Quando a chamaram para almoçar, foi em
bicos de pés, sem fazer o mínimo rumor.
À narração circunstanciada do incômodo
do filho, fez observar o coronel que lhe não dava aquilo cuidado, que o rapaz
era atreito a enxaquecas desde a meninice, que até tinha melhorado com a idade,
que os acessos iam ficando mais quarteados.
Lenita voltou para o quarto.
Ao virar do meio-dia, Barbosa acordou.
Estava bom, completamente restabelecido, sentia fome, mando vir comida.
Capítulo 17
Havia muito que tinha começado a nova
moagem: ia ela já quase em meio, quando se deu
um desastre. Um crioulinho deixou-se
prender nos cilindros do engenho e teve um braço esmagado.
Ao ver a mísera criança segura, atraída
pelo revolver lento, implacável, do mecanismo bruto, o pai dela, o negro
moedor, tomou uma alavanca de aço que achou à mão, entalou entre os dentes dos
rodetes.
Ouviu-se um grande estalo metálico, um
tinir sonoro de ferros partidos, o engenho parou.
Salvou-se a vida do negrinho, mas as
moendas inutilizaram-se; rodetes, pescoços, mancais, tudo ficou arrebentado.
Que fora uma caipora, que fora o diabo
aquele desastre em meio da moagem, disse o coronel arreliado. Lá pelo
crioulinho, não: era ingênuo, era 28 de setembro, ficasse aleijado, pouco
prejuízo havia. Que o azar era a interrupção da moagem, quando ia tudo correndo
tão bem, em um tempo como se não havia de ter outro. Que remendos no engenho
não queria, que de longa data andava. com ideias de reformar tudo aquilo, e que
ia reformar, embora levasse a casqueira a safra.
E ficou assentado que, no outro dia,
Barbosa havia de seguir para o Ipanema, a entender-se com o Dr. Mursa, sobre
planos e dimensões para a nova máquina que urgia ficasse pronta dentro de
poucos dias.
Lenita, ao saber da viagem, teve um
sobressalto, ficou pálida, quase desmaiou: lembrava-lhe o muito que sofrera com
a ida de Barbosa a Santos, quando ele não era ainda seu amante, quando ela nem
sabia sequer ao certo que o amava.
Como havia de ser então, que as coisas
se achavam em pé diversíssimo? Uma tortura inenarrável, impossível, o inferno.
E não foi.
Lenita ajudou a Barbosa nos seus
aspectos de viagem, sem sentir por forma alguma o que sentira da vez passada.
As expansões lúbricas, desenfreadas, a que ele se entregou na despedida
noturna, contrariaram-na, mortificaram-na, mesmo.
Admirava-se da transição brusca,
repentina que se lhe operara no espírito: sentia-se fria, indiferente,
aborrecida quase; achava-o a ele grosseiro, vulgar, impertinente, ridículo,
chato.
Na hora da partida apertou-lhe a mão;
viu-o montar a cavalo, dar de rédeas, seguir vagaroso em uma nuvem de pó que se
levantava da estrada; distinguiu-lhe o gesto de adeus que lhe fez ele ao
transpor o viso da colina, ao sumir-se-lhe da vista.
E não se entristeceu; em torno de si não
sentiu vácuo algum: achou-se até mais à vontade por ficar só, em companhia de
si própria, senhora de pensar, de agir em liberdade, sem sugestão.
Todavia era-lhe grata à vaidade a ideia
de que Barbosa ia cogitar ininterrompidamente nela, só nela; de que levava a
sua imagem estereotipada, viva, na memória; de que todo o pensamento, todo o
ato dele a ela se reportava, tinha-a por objetivo.
E, analista sutil, não se enganava sobre
os seus próprios sentimentos: no prazer que tinha com a sujeição de Barbosa,
descobria mais a satisfação do orgulho lisonjeado do que o contentamento do
amor correspondido.
Foi ao quarto de Barbosa, começou a pôr
em ordem as coisas dispersas, os livros e jornais que atravancavam a mesa, o
mármore do criado, as cadeiras.
Ninguém em casa, nem mesmo o coronel,
estranhava mais esses cuidados: a amizade estreita a intimidade que reinava
entre ela e Barbosa justificavam-na; todos achavam muito natural o papel de
econômico que ela a si chamara.
Nas senzalas, porém, o viver excêntrico
e liberdoso que ela levava com Barbosa já começava a servir de pábulo à
maledicência característica da raça negra: os pretos e principalmente as pretas
murmuravam, comentavam as caçadas improdutivas, sublinhavam ditos, aventavam
torpitudes.
Ao puxar uma gaveta da mesa de Barbosa,
para recolher as miudezas que achara dispersas, Lenita deu com uma caixinha
oblonga de tartaruga, incrustada de metal
e madrepérola.
Abriu-se por abrir, sem curiosidade.
Encontrou dentro quatro papéis dobrados, uma medalha muito oxidada de Nossa
Senhora da Aparecida, flores secas e várias bolinhas de lã branca, desfiada.
Fez-lhe espécie aquilo: que diabo
poderia ser? Barbosa não era religioso, a medalha não tinha explicação como coisa
dele. E as bolinhas de lã? Com certeza tinham caído de uma manta de malha, de
uma saída de baile, em que se envolvera, em que se agasalhara uma
mulher, para procurá-lo a ele na sua casa, no seu quarto, no seu leito. E as
flores secas? E os papéis? Ah! os papéis… Os papéis continham de certo a
chave do enigma davam a solução de tudo aquilo.
Desdobrou o primeiro, encontrou um anel
de cabelos castanhos, quase pretos, cetinosos, muito finos.
Desdobrou o segundo, era um bilhetinho
em poucas linhas: a letra bonita, fina, redonda, de mulher. Dizia:
Espero-o sábado sem
falta; se não vier zango-me. Não o esqueço um só momento. Adeus.
Lenita empalideceu, mordeu os beiços e,
trêmula, com os olhos a despedir chispas, abriu o terceiro papel, uma folha
grande, larga, de almaço Fiume. Estava escrita pela letra de Barbosa, um
cursivo feio, muito legível. Era
evidentemente uma série de impressões lançadas no papel sur place, no
momento mesmo em que se tinham produzido, inconexas, cortadas de reticências.
Lenita leu:
O trem ia partir.
Ela estava na
plataforma da Estação da Luz, com o marido, em bota-fora de não sei quem.
Olhou-me, eu a olhei;
ela baixou os olhos, uns grandes olhos verdes; corou. O braço esquerdo estava
passado no do marido enfastiadamente, aborrecidamente; o direito, em abandono,
pendia-lhe ao longo do corpo, fome, musculoso, muito branco. A mão estava sem
luva, era pequenina, bem feita, anho no anelar uma marquesa de muito brilho.
Levantou os olhos, encarou-me, tomou a baixá-los, avançou o pé direito, um
pezinho adorável, bateu com ele freneticamente, como se estivesse muito
contrariada. O marido disse-lhe o que quer que foi alemão, ela respondeu-lhe na
mesma língua. Saíram, eu segui-os. Tomaram o bonde que vinha de Santa Cecília.
Tornei a vê-la.
Era no Grande Hotel:
ela estava jantando, à mesa do centro. Dava-me as costas. Recostava-se na
cadeira, pendendo o corpo para a esquerda; a perna direita, passada por sobre a
esquerda, agitava-se com um movimento sacudido, nervoso; o pé muito pequeno,
estreitado em uma meia de seda carmezim, recurvando-se, descalçava em parte o
sapatinho Clark, mostrava o calcanhar redondo, diminuto, delicioso. O pé
esquerdo assentado firme no chão. O vestido rodeava, cobria pane da poltrona em
fartos panejamentos, e por sob ele entrevia-se uma orla de saia muito
branca. A aragem que entrava pelas
janelas altas agitava-lhe os crespinhos dourados da nuca. Levantou-se, rodando
para a esquerda, com o busto curvado, em um movimento gracioso, que pôs em
relevo a exuberância dos seios a avultarem reprimidos no corpete retesado, em
contraste provocador com a exigüida da cintura.
O quarto papel, amarelo, puído nas
dobras, continha uma poesia escrita também por letra de Barbosa.
Lenita leu:
M.I.
Não sei se és feia ou
bonita,
Segundo as regras da
arte;
Sei, sim, que gosto de
ver-te,
Que gosto até de
estudar-te.
Nas faces sedosas tuas
Não brilha o rubor das
rosas,
Retinge-as a palidez
Das compleições
biliosas.
Estranhas cintilações
Mordentes, frias,
geladas
Tens nos olhos baços,
vítreos,
Azuis, da cor das
espadas.
Teu lábio, sempre
agitado
De leve tremor nervoso
Parece ressumar sangue
Com sede infrene de
gozo.
Contorce-te as mãos
pequenas
Espasmo fabricitante
Tem não sei quê de
felino
Teu breve corpo
ondulante…
Queres então que eu te
diga
Meu sentir quando te
vejo ?
Amor não te tenho não;
Porém morde-me o
desejo.
A moça teve um deslumbramento: em seu
espírito, súbitamente iluminado, fez-se vácuo enorme, desmoronou-se fragorosa a
mole das ilusões.
Pensava – Barbosa era casado na Europa, ela
o tinha conhecido como tal, não podia exigir-lhe conta dos afetos que ele
voltara em tempo à esposa, das recordações que dela porventura conservasse.
Mas ali não se tratava da esposa,
tratava-se de três mulheres pelo menos – a dos cabelos que, escuros, tinham
naturalmente por correlativo olhos pretos ou castanhos; a do fragmento em
prosa, de olhos verdes; a da borracheira poética, de olhos azuis, cor de aço.
E quem sabe se não seriam seis ou mesmo
sete: o bilhete podia ser de uma outra; a medalha azinhavrada, de uma outra; as
flores secas, de uma outra, as bolinhas de lã branca, de uma outra ainda.
E que eram aquelas bolinhas de lã branca
senão lembranças, troféus amorosos, colhidos de certo em cama desfeita, sobre
lençóis ainda quentes, após uma noite de delírios eróticos?
Aquele homem era um devasso; um Dom João
de pacotilha, e ela, Lenita, não passava de uma das suas muitas amantes.
Quem lhe dizia a ela que uma dádiva sua,
que uma épave qualquer que lhe tivesse pertencido, não iria aumentar aquela
ignominiosa coleção.
Em que dera seu orgulho, o alto conceito
que ela formava do seu sexo, que ela formava de si própria!
Amante de um devasso, barregã de um
homem velho, casado, que guardava troféus das conquistas… Bonito! Esplêndido!
Estava castigada e achava justo o
castigo.
Tinha ido pedir à ciência superioridade
sobre as outras mulheres; e na árvore da ciência encontrara um verme que a
poluíra.
Quisera voar de surto, remontar-se às
nuvens, mas a carne a prendera à terra, e ela tombara, submetera-se; tombara
como a negra boçal do capão, submetera-se como a vaca mansa da campina. Revoltada
contra a metafísica social, pusera-se fora da lei da sociedade, e a consciência
castigava-a, dando-lhe testemunho de quanto ela descera abaixo do nível comum
da mesma sociedade.
É loucura quebrar de chofre o que é
produto de uma evolução de milhares de séculos. A sociedade tem razão: ela
assenta sobre a família, e a família assenta sobre o casamento. Amor que não
tenda a santificar-se pela constituição da família, pelo casamento legal,
aceito, reconhecido, honrado, não é amor, é bruteza animal, desregramento de
sentidos. Não, ela não amara a Barbosa, aquilo não tinha sido amor.
Procurara-o, entregara-se a ele por um desarranjo orgânico, por um
desequilíbrio de funções, por uma nevrose. Como a Fedra da fábula, como as
bíblicas filhas de Jó, como a histórica mulher de Cláudio, ela caíra sob o
látego da carne e, empurrada por um devasso ilustríssimo, resvalara ao
fundo do pego, à última estratificação da vasa. Não, ela não amara, ela não
amava a Barbosa. O que por ele sentira fora uma atração paulatina, gradual,
viciosa, mórbida. A primeira impressão que recebera, ao vê-lo, não tinha sido
boa; e as primeiras impressões é que fazem fé, porque são as que se produzem
instintivamente no espírito desprevenido. Nesse momento em que ficava
conhecendo a Barbosa como Barbosa realmente era, é que ela podia avaliar o
báratro em que se despenhara. Pomba inocente, procurara por seu pé o açor,
metera-se-lhe nas garras, e ele a conspurcara, não somente lhe arrancando a
virgindade, mas debochando-a em práticas infames para despertarem os sentidos
embotados…
Meteu tudo às pressas, desordenadamente,
na caixinha, atirou a caixinha para a gaveta, empurrou com violência a gaveta,
saiu, foi para seu quarto, entrou, fechou-se por dentro, atirou-se na cama;
desatou em pranto.
De repente ergueu-se.
Que era aquilo? perguntou-se a si
própria. Pois ela era mulher para chorar, para carpir-se, como qualquer
criadinha de servir, violentada pelo filho da patroa? Não ! Caíra, mas caíra
vencida por si, só por si, por seu organismo, por seus nervos. O homem não
entrava em linha de conta, não passava de mero instrumento: fora Barbosa; poderia
ter sido o administrador, poderia ter sido o velho coronel. Enquanto quisera,
gozara; estava saciada…
Uma ideia terrível atravessou-lhe o
cérebro.
De pouco tempo, de um mês a essa parte,
sentia-se modificar de modo estranho, moralmente, fisicamente: tomara-se
irritadiça, tinha impaciências febris. Uma nuga, um nada a punha fora de si.
Mal se alimentava: à simples vista da mesa posta, vinham-lhe engulhos, chegava
mesmo a vomitar. Aberrara-se-lhe o apetite, desejava coisas extravagantes. Uma
tarde vira um cacho de caraguatá à beira de um valo: quisera por força comer,
comera, queimara a boca com o sumo cáustico da fruta da bromeliácea.
Com pasmo grande, sem poder dar a razão
por que, via que Barbosa já lhe não inspirava admiração. As tiradas, as
dissertações científicas, aliás corretas, que lhe fazia enfastiavam-na: ela
achava-o desajeitado, vulgar, pretensioso; ganhava-lhe aversão; cria até perceber-lhe
no corpo e na roupa um cheiro esquisito, enjoativo, o que quer que era como
catinga de rato. Repugnavam-lhe as carícias dele, e, para chegar bem à verdade,
elas incomodavam-na, de fato, topicamente.
Acudiu-lhe o dizer de Rabelais – “Les
bêtes sur-leurs ventrées n’endurent jamais
te malê masculant”.
Estaria grávida?
Correu à cômoda, puxou uma gaveta, tirou
um calendariozinho de algibeira, percorreu os meses, virando as folhas com rapidez:
esta-vam a 20 de agosto, e o último dia marcado com uma cruzinha vermelha era o
dia de São Pedro, 29 de junho. Mediava um espaço de cinqüenta e dois dias…
Desabotoou o corpinho, desceu o cabeção
da camisa, fez sair o seio esquerdo, globuloso, duro: baixou a cabeça para
vê-lo, estendendo o beiço inferior. O auréolo, outrora róseo, imperceptível,
acentuava-se retrato, pardacento, constelado de papilas ouriçadas. Não havia
duvidar, estava grávida.
Sentiu ou julgou sentir que uma coisa
qualquer se lhe agitava, se lhe enovelava dentro do útero. No mesmo instante
apoderou-se dela um afeto imenso, indizível, por esse quer que fosse, que assim
ensaiava os primeiros movimentos na ante-sala da vida. Era o desencadear de uma
tempestade, de uma inundação nevrótica, que a invadia, que a alagavam como as
águas de um açude roto invadem e alagam a planície. No amor enorme de que se
via repassada, Lenita reconheceu o sentimento tão ridiculamente guindado ao
sublime pelo romantismo piegas, e todavia tão egoístico, tão humano, tão animal
– a maternidade.
– Que iria fazer? perguntou-se a si
mesma, e, sem hesitar, respondeu-se – levar a bom termo a gestação, parir,
criar, educar o filho, ver-se nele, ser mãe.
Dois dias se passaram sem que Lenita
saísse do quarto, senão para ir a uma ou outra refeição.
Ao almoço do terceiro dia, uma
quinta-feira, disse ao coronel que no domingo tencionava seguir para a vila, de
lá para a cidade, e da cidade para São Paulo; que seus tarecos estavam
arranjados, suas malas feitas; que precisava do carroção para conduzi-los, do trolley
para conduzi-la a ela; que, saindo bem cedo, chegaria a tempo, teria ainda
de esperar pelo trem, talvez uma hora.
– Que nova loucura era aquela? perguntou
o coronel. Que ia Lenita fazer a São Paulo, assim de repente, sem quê nem para
quê?
À insistência de Lenita, que a nada se
demoveu, fez ele sentir que ao menos era preciso esperar ela vir Barbosa do
Ipanema para levá-la; que, só, ela não podia, não devia ir; que ele, coronel,
ameaçado e até já principiando a sofrer de um insulto de reumatismo, achava-se
incapaz de uma vez para cumprir o dever de acompanhá-la.
– Que iria muito bem só com o moleque
até à vila, volveu Lenita inabalável; que na estrada de ferro não se fazia
mister companhia; que lhe era impossível deixar de ir.
As súplicas da entrevada, as instâncias
e amuos do coronel, de nada aproveitaram.
O carroção coma bagagem partiu no sábado
de tarde, e, no domingo cedo, Lenita de guarda-pó e chapéu de abas largas,
abraçou, chorando a velha; abraçou o coronel que soluçava como uma criança,
subiu para o trolley, seguiu.
– Rapariga, gritou-lhe de longe o
coronel, limpando os olhos, engasgado, você tem má cabeça, mas seu coração é
bom, e eu quero-lhe bem deveras. Em toda e qualquer emergência lembre-se de que
eu e seu avô fomos como irmãos, de que eu tive sempre a seu pai na conta de
filho. Para tudo, mas mesmo para tudo, aqui fica o velho.
E acrescentou consigo:
– Nalguma coisa haviam mesmo de dar as
físicas e as botânicas e as caçadas: foi nisto. Antes nunca esta rapariga se
lembrasse de ter vindo aqui para a fazenda, ou antes Manduca lá se tivesse
deixado ficar pelo Paranapanema. Agora é pegar-lhe com um trapo quente.
Capítulo 18
Seis dias depois da partida de Lenita
chegou Barbosa. De nada sabia ele: o coronel não lhe tinha escrito.
Desde que transpusera a crista do morro,
vinha alongando os olhares, à espera, a todo o momento, de divulgar o vulto da
moça uma janela no terreiro, em qualquer parte. Antegozava o prazer de vê-la
estremecer do júbilo ao enxergá-lo, de vê-la correr-lhe ao encontro pálida,
trêmula, convulsionada pela emoção.
Lembrava-se da noite, e tinha calafrios;
afastava, expediu da mente a lembrança do gozo, para também esquecer que lhe
era preciso esperar tantas horas.
E às janelas ninguém assomava. No pardo
sujo do terreiro esburgado, agitavam-se, passavam rápidas de uma para outra
parte manchas azuis e encarnadas: era um lote de crioulinhos a correr, a
bancar, vestidos de camisolas do baeta. Mais nada.
– Melhor, disse Barbosa consigo, vou
surpreendê-la na varanda, em prosa com o velho.
Desceu, chegou à porteira.
A crioulada reuniu-se em um magote, e,
alçando as mãos e tripudiando, começou de gritar uma melopéia cadente, afinada:
– Ai vem nhonhô! aí vem!
– Cala o bico, canalha! Barbosa,
cruzando nos lábios índice da mão direita.
A crioulada afeita a obedecer, emudeceu.
Ele apeou-se, descalçou as esporas,
atravessou o terreiro, entrou em casa, foi andando nas pontas dos pés até à
varanda.
Estava deserta.
Dirigiu-se ao quarto do pai. Encontrou o
coronel deitado, a gemer com o reumatismo. N chaise-longhe do costume
cabeceava a velha entrevada.
– Como vai, meu pai? Como está, minha
mãe?
E beijou a mão de um e a testa de outra.
– Na forma do louvável…respondeu o
coronel, sofrendo sempre… ai!… Este maldito reumatismo não larga… Como
foi você de viagem?
– Muito bem.
– O engenho?
– Vem aí, chega amanhã a estação.
– Assim, pois, é preciso que sigam os
carroções a esperá-lo, hoje mesmo?
– Basta que sigam amanhã.
– E veio coisa boa?
– Ótima. Algumas peças foram fundidas
especialmente; fize-ram-se os moldes sob meu risco.
– Muito bem, e quanto custou?
– Ficou barato; não anda em mais de três
contos.
– Ai !… Você já jantou?
– Não, senhor.
O coronel sentou-se com esforço, tirou
de sob o travesseiro uma chavinha, levou-a aos lábios, arrancou um assobio
estridente, prolongado.
– Sinhô, gritou de dentro uma escrava,
que logo assomou à porta do quarto.
– Nhonhô está aqui, e ainda não jantou.
– Sim sinhô, meu sinhô.
E, voltando-se rápida, desapareceu.
Barbosa não quis perguntar por Lenita.
Ela estava de certo no quarto. Ele lá iria ter com ela. Pediu licença ao pai
para sair: que se não demoraria, disse: que voltaria logo, para conversarem.
Chegou à sala de Lenita e sentiu um
grande aperto do coração ao ver os consolos despidos, sem um bronze, sem uma
estatueta, sem uma jarra de Sèvres, sem um defumador de Satzuma.
Foi à porta do quarto dormir,
empurrou-a, estava fechada a chave; foi ao outro quarto, vazio. Empalideceu-se,
encostou-se à ombreira da porta para não cair. Que era aquilo? perguntou-se.
Para onde tinha ido a moça?
Voltou aos aposentos do pai.
– Meu pai, onde está D. Lenita?
– Se realizou o que tinha na intenção,
está
em casa de um parente, do Fernandes Faria, ou qualquer hotel. Aquilo é uma
doidinha.
– Pois D. Lenita foi para São Paulo? !
exclamou Barbosa, como que recusando a evidência, como que fugindo à
brutalidade do fato.
– Se foi! Você a conhece pelo menos tão
bem como eu: e desencabritando, desencabrita mesmo: não há pegar-lhe.
Barbosa deixou-se cair em uma cadeira.
Não estava pálido, não estava lívido:
estava uma e outra coisa: tinha manchas cor de chumbo no rosto cor de terra.
Em suas feições havia alguma coisa da
expressão que deve Ter uma máscara de bronze, que, caída em uma fogueira,
começa a entrar em fusão.
Conservou-se sentado por muito tempo,
mal respondendo às perguntas do pai.
Chamaram-no para jantar; foi, sentou-se
à mesa, cruzou os braços sobre ela, afundou a cabeça no ângulo formado pelo
braço esquerdo, deixou-se ficar, imóvel.
Refletia.
Lenita ali não estava, não estava na
sala, não estava no quarto, não estava no terreiro, não estava no pomar, não
estava na fazenda. Ele a não veria mais, não lhe ouviria mais a voz suave, não
lhe beijaria mais os lábios corados, não lhe beberia mais a frescura do
hálito… Só… só… estava só !
Ela o provocara, ela se lhe oferecera,
ela o procurara, ela se lhe entregara, ela se prestara a todos os seus
caprichos, mansa, dócil, submissa, para depois assim abandoná-lo, a sós com as
lembranças, entregue à tortura da saudade!
Não, não era possível: Lenita ali
estava, do outro lado da mesa; não se fora…
Ergueu a cabeça, abriu os olhos
esgazeados e só viu diante de si a crioulinha servente, que abanava moscas,
movendo preguiçosa e mole, para a direita e para a esquerda, um ramo de alecrim
bravo.
Barbosa deixou cair de novo a cabeça,
continuou no cismar doloroso, como quem se praz a revolver em uma ferida o
ferro que a produziu.
Louco que fora!
Tinha tido dezenas de amantes, tinha
sido, era ainda casado, conhecia a fundo a natureza, a organização caprichosa,
nevrótica, inconstante, ilógica, falha, absurda, da fêmea da espécie humana;
conhecia a mulher, conhecia-lhe o útero, conhecia-lhe a carne, conhecia-lhe o
cérebro fraco, escravizado pela carne, dominado pelo útero; e, estolidamente,
estupidamente, como um fedelho sem experiência, fora se deixar prender nos
laços de uma paixão por mulher!
O tempo ia passando: o jantar
arrefecera.
Barbosa levantou-se.
– Nhonhô não janta? perguntou triste a
preta cozinheira que o observava da porta do corredor.
– Não, Rita, estou sem vontade, estou
doente.
Saiu, chegou à porta do terreiro,
circunspecionou os arredores.
Parecia-lhe morta a natureza: a paisagem
figurava-se-lhe um cadáver, vasto, enorme.
Do diafragma subia-lhe para o coração um
aperto constante, ininterrompido, doloroso, que lhe tolhia o fôlego, que o
sufocava.
Queria chorar; o pranto, julgava,
far-lhe-ia bem, seria um desabafo: impossível. Um ardor seco, febril,
queimava-lhe os olhos.
No imóvel do arvoredo secular, na calma
impassível das encostas amareladas, havia, ele pelo menos sentia, o que quer
que era de hostil: essa indiferença majestosa irritava-o, era como um escárnio
à angústia em que se estorcia seu espírito.
E tudo lhe fazia lembrar Lenita; na
ante-sala, a cuja porta estava, a vira ele pela vez primeira por entre as
torturas de uma enxaqueca; no pomar, de que avistava um ângulo, com ela tivera
a primeira entrevista; no pasto, que se lhe estendia entre os olhos, quantas
vezes não tinham passeado juntos; a mata fronteira, as caçadas, os pássaros, a
cutia, os porcos, a cascavel… ah! a cascavel! Por que não sucumbira Lenita ao
veneno da cobra? Por que a fizera ele viver? ! Morta naquele tempo, ela seria
apenas uma saudade doce, e não a lembrança voraz que o havia de matar.
Anoiteceu.
A escuridade, o silêncio, reprodução
cruel da escuridade e do silêncio das noites de outrora, das noites de amor,
que não mais voltariam acenderam-lhe, exacerbaram-lhe o pungir do sofrimento, o
rolar da soledade.
Lembrou-lhe o suicídio.
– Ainda não, disse: esperemos.
Entrou para o seu quarto, deitou-se, fez
uma injeção de morfina, dormiu.
No dia em que era esperado chegou o
maquinismo.
Barbosa desenvolveu uma atividade
febril.
Desengradou-o, armou-o, ele próprio.
Multiplicou-se, dividiu-se: fez-se carpinteiro, pedreiro, serralheiro,
maquinista.
Queria esquecer de dia, hipnotizava-se
com trabalho, de noite, com morfina.
Pronto o engenho, a moagem continuou.
Barbosa tomou-a a si, dirigiu o serviço.
O açúcar da fazenda criou fama.
– Eta! rapazinho destorcido! dizia o
coronel, é pau para toda a obra! Quem havia de dizer que ele entende mais de
fabricação do que eu que lido com cana desde que me conheço por gente? Quem
estuda sabe mesmo.
Mas… eu não ando contente com ele:
estes modos que ele agora tem não são naturais, ele não os tinha. Aquela
Lenita…
Em um dos dias da primeira quinzena de
outubro, o moleque trouxe da vila, na correspondência, duas cartas sobrescritas
por uma letra redonda, fina, bonita letra, letra de mulher.
Era de Lenita.
Barbosa a conheceu imediatamente.
Uma lhe era endereçada, outra ao
coronel.
Barbosa tomou a sua, abriu-a e, pálido,
muito pálido, com um ligeiro tremor a agitar-lhe as mãos, começou a leitura.
Dizia:
São Paulo, 5 de outubro
de 1887.
Ao Sr. Manuel Barbosa
envio muito saudar.
Mestre.
Ao chegar à fazenda,
surpreendeu-se de cerro com a minha partida um tanto brusca.
Procurou-lhe
explicação, não achou: nem eu. Lembro-lhe o que diz Spinoza: “A nossa
ilusão do livre-arbítrio vem de ignorarmos nós os motivos que nos dirigem”. No
caso desta minha partida, eu poderia bem crer que tinha livre-arbítrio. Demais
sou mulher, sou fantasque Quem vai discutir, explicar caprichos de mulher? Vale
infinitamente mais non ragionar di lor, guardar, passar.
Qual tem sido a minha
vida desde que vim da fazenda? Nem eu mesma sei.
Estudar, não tenho
estudado; fui sábia, fui preciosa tanto tempo, que achei de justiça dar-me o
luxo de ser ignorante, de ser mulher um poucochinho.
Mas, qual! ninguém é
sábio impunemente. A ciência é uma túnica de Dejanira: uma vez vestida,
gruda-se à pele, não sai mais. Quando se tenta arrancar, deixa pedaços de
forro, que é o pedantismo.
E a prova é estar-lhe
eu escrevendo, por não poder resistir ao prurido de comunicar as minhas impressões,
de conversar um bocadinho com quem me entenda.
Que saudades não tenho
eu às vezes das nossas palestras, das nossas lições, nas quais tanto se
dissipava a treva da minha ignorância à luz do seu profundo saber.
O passado, passado:
fomos como dois astros vagabundos que se encontraram em um recanto do espaço,
que caminharam juntos, enquanto foram paralelas as suas órbitas, e que ora
estão separados, seguindo cada qual o seu destino.
Vamos ao que serve.
São Paulo é hoje uma
grande cidade, dou-lhe, sem receio de erro, sessenta mil habitantes.
Dia a dia, para nome,
para sul, para leste, para oeste, está crescendo, está-se alastrando, é o que
mais é, está-se aformoseando.
Os horríveis casebres
dos fins do século passado e dos princípios deste vão sendo demolidos para dar
lugar a habitações higiênicas, confortáveis, modernas. Os palacetes do período
de transição, à fazendeira, à cosmopolita, sem arte, sem gosto, chatos,
pesados, mas solidamente construídos, constituem um defeito grave que não mais
desaparecerá. Obras, porém, há feitas, nestes últimos cinco anos, pelo
arquiteto Ramos de Azevedo, pelo italiano Pucci e por outros estrangeiros, que
são realmente primores de arte. Gosto imenso da Tesouraria da Fazenda que está
construindo Ramos de Azevedo: é um edifício que honra São Paulo pela severidade
e elegância do estilo, pela robustez que ostenta desde os profundíssimos
alicerces até o levantado coruchéu. Aquela mole enorme forma um todo compacto,
homogêneo, sem o mínimo defeito, sem uma trinca sequer de tassement. Quem viu o
que ali estava.. cruzes!.’.’ Para se avaliar o que era basta que se veja o
anual Palácio do Governo, da mesma procedência. Os manes do Sr. Florêncio de
Abreu podem se limpar as mãos à parede dos Campos Elísios, se é que os Campos Elísios
têm parede. Desmanchar a velha, a maciça, a histórica, a legendária construção
dos Jesuítas, para estender por ali fora aquele pardieiro medonho Não sei por
que não mandou botar abaixo também a capela… O Sr. de Parnaíba desvendou os
mistérios da cripta dos padres de Loyola, rasgando uma porta no andar da torre
dessa capela. À esquerda de quem entra, veem-se distintamente seis covas
sepulcrais, seis catacumbas, super-postas, em duas ordens, de três cada uma,
praticadas na grossura enorme da parede. Entraram já cadáveres os que ali
jazem, ou foram emparedados vivos, segundo a lei terrível do código secreto da
Companhia? Ao governo, ao bispo diocesano, incumbe, corre o dever de mandar
abrir aqueles jazigos, onde talvez se encontrem documentos importantes para a
história da província.
O Chá, lembra-se bem,
era mato quando eu estive com meu pai
populoso, constituído por um vasto enxadrezamento de ruas direitas e largas,
arejadas e mordidas de luz.
Há na cidade vários
calçamentos a paralelepípedos. O antigo, famoso largo de São Francisco está que
é um brinco.
A academia foi
reformada.
Talvez eu não tenha
razão; mas o caso é que eu a preferia exteriormente como ela era outrora. Tinha
pelo menos o mérito de representar o gosto arquitetônico dos religiosos que
dirigiram a colonização do Brasil. Hoje não representa coisa nenhuma, tem uma
aparência limpa, mas desgraciosa e até caturra.
No alastrar da cidade,
bairros unem-se, vão desaparecendo as soluções de continuidade predial: a Luz
já pega com o Brás pela rua de São Caetano.
O comércio tem-se
desenvolvido de modo assombroso, e a indústria segue-o de perto.
Há
móveis, de chapéus, de chitas, de bordados, de luvas, que rivalizam com as do
Rio, e que estabelecem concorrência séria aos produtos europeus.
Nas ruas de São Bento e
da imperatriz é enorme o acervo de lojas, e de armazéns, de casas bancárias, de
estabelecimentos de todo o gênero.
As vitrines das casas
de jóias entram em compita de riqueza e gosto: aqui a relojoaria suíça,
delicada, elegantíssima, ostenta os seus primores, os seus inexcedíveis
“Patek Philippe”, a par dos artefatos sólidos da relojoaria
americana, dos “Waltham” feitos a máquina, grossos, esparramados,
angulosos, profusa e desgraciosissimamente ornamentados. Ali a prata do Porto,
aereamente, maravilhosamente filigranada, casa sua alvura mate aos reflexos
fúlvos da ourivesaria francesa, às cintilações mágicas dos brilhantes
puríssimos do Brasil, dos diamantes coloridos do Cabo, dos rubis, das safiras,
dos topázios, das ametistas, das opalas irisadas. A luz brinca nos lavores dos
metais e nas facetas das pedrarias em um tal deboche de magnificência, que faz
lembrar os contos de fadas, a caverna de Aladim.
Entrei ontem em uma
casa de modas, a Mascote.
Atraíram-me a atenção
bronzes de Barbedienne, expostos em uma vitrine interior.
Alguns eram reproduções
dos que eu possuo, o hoplitodromo conhecido por gladiador Borghése, a Vênus de
Milo, a Vênus de Salona: outros eu ainda não conhecia, o menino da cesta, por
Barrias; a bacante do cacho, por Clodion.
Que bronze adorável
este; que verdade nos panejamentos! Que morbidez suave de postura.! No rosto o
metal parece ter o emaciamento, a transparência fosca da pele viva. Os olhos
como se cerram em um êxtase de volúpia…
Encomenda de Júlio
Ribeiro, um gramático que se pode parecer com tudo menos um gramático: não usa
simonte, nem lenço de Alcobaça, nem pince-nez, nem sequer cartola. Gosta de
porcelanas, de marfins, de bronzes artísticos, de moedas antigas. Tem, ao que
me dizem, uma qualidade adorável, um verdadeiro título de benemerência – nunca
fala, nunca disserta sobre coisas de gramático.
Veio receber-me um dos
proprietários da loja, rapaz afável, parisiense nos modos, flor na botoeira do
paletó, sorriso engatilhado.
Fiz alguns pedidos:
tomou nota deles, para mandar-nos a casa, o outro sócio, irmão creio,do
primeiro; moço grave, sério, de
fisionomia leal, sempre ao bureau, sempre a escrever, tipo acabado do português
antigo, trabalhador, honesto, pontual, pé de boi.
Em frente – a Casa
Garraux, vasta Babel, livraria em nome, mas verdadeiramente bazar de luxo, onde
se encontra tudo, desde o livro raro até a pasta de aço feita, passando pelo
Cliquot legítimo e pelos cofres a prova de fogo.
Lá fui ver a exposição
permanente.
Mal tinha eu entrado,
entrou também um grupo de homens, três ou quatro, se bem me lembra.
Era um sujeito
corpulento, coroado, limpo, no descambar da idade viril, ou melhor, no verdor
da velhice. O bigode farto, betado aqui e ali por um fio de prata, e as longas
costeletas acentuavam-se com nitidez no rosto fresco, caprichosamente
escanhoado. O cabelo dividia-se em pastinhas despretensiosas no alto da testa
vasta, ligeiramente redonda. Colarinho de pontas quebradas, gravata branca de
nó, colete fechado até o nó da gravata, fraque, flor enorme na lapela, calças
de casimira preta com listinha de seda branca, chapéu preto, alto, mole,
sapatos Clark, pince-nez.
Belo homem, Ramalho
Ortigão, já adivinhou.
Um dos que o acompanhavam
era um rapaz alto, cheio de corpo, alvo de cabelos castanho-claros, quase
louros, ondeados, de bigode crespo, de lábio inferior coroado, úmido; um
causeur adorável, que o mestre disse-me ter encontrado uma vez em Campinas, e a
quem eu fui apresentada um dia destes, em uma festa de anos, Gaspar da Silva.
Ramalho entrou em
conversas com um dos sócios da Casa Garraux: eu, fingindo que examinava um
livro, prestei-lhe toda atenção. Apanhei, dissequei, analisei cada uma de sua
palavras.
Voz agradável, bem timbrada;
pronúncia distinta, corretíssima; sotaque alfacinha puro, estranho, muito
estranho a ouvidos paulistas.
Ramalho Ortigão é
incontestavelmente um homem de combate, um grande escritor. Eu, porém, não
gosto dele. Acho-o trabalhado, limado, castigado demais; acho qu’il pose
toujours. Não escreve como Garrett, vazando a alma no papel: calcula o efeito
de cada palavra, de cada frase, como um jogador de xadrez calcula o alcance do
movimento de cada peça. Nos seus escritos há notas, há quantidades constantes,
que reaparecem fatalmente. Encontra-se sempre uma admiração exagerada por tudo
quanto é vigor muscular, por tudo quanto é manifestação de força humana física.
O estadulho, a bengala grossa são fato imprescindíveis das suas teorias de
moralização social. Afeta pelo asseio, pelo cuidado do corpo um culto que chega
a se tomar impertinente. Não perde ensejo de contar que se banhou, que se
barbeou, que mudou a roupa branca. Tanto repete, tanto insiste, que até parece
ter um secreto receio de que o não acreditem. Escreve ele um livro novo: os
seus leitores habituais já lhe conhecem, já lhe espe-ram as ficelles. Há de
falar por força nas malas, nos apeiros de toilette, nos desinfetantes, na
abundância de cuecas e peúgas. Tem frases feitas, uma por exemplo – todos os
seus estandartes, todas as suas bandeiras, todas as suas flâmulas, todos os
seus galhardetes, estão sempre a palpitar gloriosamente, estão sempre a bater
em palpitações gloriosas.
Os livros de Ramalho
Ortigão são excelentes, não há negá-lo, quer pelo fundo, quer pela forma. Bom
senso e correção de linguagem até ali: ensinam a pensar, e ensinam Português.
O que eu não creio é
que eles sejam um espelho, uma câmara escura para se estudar a individualidade
do autor.
Entendo que não se pode
ficar conhecendo a Ramalho Ortigão nem no Em Paris, nem nas Farpas, nem na sua
parte de Mistério da Estrada de Cintra, nem nas Caldas e Praias, nem nas
Impressões de Viagem, nem na Holanda, nem no John Bull: melhor do que em isso,
fotografa-se ele nos seus depoimentos sobre a questão Vieira de Castro.
Seja como for, ontem
foi para mim um grande dia: conheci um
grande homem.
Agora, nós: o que mais
de perto nos toca…
Seguiam-se algumas linhas
criptográficas, em uma cifra que Barbosa e Lenita tinham combinado, desde os
primeiros tempos de convivência.
Estou grávida de três
meses mais ou menos.
Preciso de um pai
oficial para nosso filho: ora pater est is quem instae nuptiae demonstrant.
Se tu fosses livre,
fazíamos justas na igreja as nossas nuptias naturais, e tudo estava pronto. Mas
tu és casado, e a lei de divórcio, aqui no Brasil não permite novo enlace: tive
de procurar outro.
“Tive de
procurar” é um modo de dizer: o outro deparou-se-me, ofereceu-se-me; eu me
limitei a aceitá-lo e ainda impus-lhe condições.
É o Dr. Mendes Maia.
Ao chegar aqui,
escrevi-lhe para a corte; ele veio imediatamente, tivemos trina conferência
larga, eu fui franca, contei-lhe tudo e… e… e nós nos casamos amanhã, às 5
horas da madrugada.. Pelo trem do Norte, que parte às 6, seguimos para a corte,
e da corte para a Europa no primeiro vapor.
Sei que te hás de
lembrar sempre de mim, como eu sempre hei de lembrar de ti: calembour à parte, o que entre nós passou não se ouvida
Não me guardes rancor.
Fomos um para o outro o que podíamos ter sido; nada mais, nada menos.
A criança, se for
menino, chamar-se-á Manuel; se for menina, Manuela.
A carta ainda continuava.
Barbosa, lívido, com as feições
horrivelmente contraídas, rasgou-a em dois movimentos,
atirou-a em um lamaçal, onde, com gáudio
infinito, chafurdavam alguns porcos.
– Rameira! Prostituta vil ! exclamou
ele.
– Sabe você que mais? perguntou-lhe o
coronel, que se aproximava. A Lenita casa-se! Escreveu-me, participando.
– A mim também escreveu ela.
– Sim? E ela a dizer que se não queria
casar… Fiem-se lá em mulheres! Aquela partida repentina não teve outra causa.
– Não teve, não, volveu Barbosa.
A tarde levou-a ele toda a pensar, a
malucar só consigo.
À noite não fez injeção de morfina,
passou em claro, nem sequer se deitou.
No dia seguinte, cedo, saiu, deu uma
volta pelo pomar, foi à mata, chegou à cova, demorou-se a contemplar os
destroços do reparo, as do milho que tinham nascido e morrido estioladas pela
sombra, sem produzir. Viu ainda por entre as folhas secas algumas vértebras,
algumas espinhas da cascavel.
Voltou, passou pela fruiteira, em
cuja copa uma araponga serrava estridulosa.
Viu no chão uma pena de jacu, desbotada
pela umidade, suja de barro.
Ergueu-se, contemplou-a muito tempo,
deixou-a cair.
Voltou para casa, não quis almoçar, pediu
um banho.
Despiu-se, entrou na banheira,
deitou-se, revolveu-se com delícia, na água tépida, aromatizada com vinagre de
Lubin.
Após muito tempo saiu, enxugou-se com
esmero, calçou ceroulas de linho, passadas a ferro, cheirosas, frescas, muito
macias.
Chamou dois pretos, mandou esvaziar,
retirar a banheira.
Foi à mesa, tomou uma garrafa de vinho
húngaro, doce, perfumoso, Rusti-Aszú; abriu-a, encheu um cálice, examinou de
encontro à luz a transparência cor de topázio queimado do precioso líquido,
cheirou-o, hauriu-lhe o bouquet, bebeu-o como fino entendedor, aos
golinhos, dando estalos com a língua.
Puxou uma gaveta, e dela tirou uma
caixinha oblonga de charão: abriu-a. Havia dentro uma seringuinha de vidro, uma
cápsula de porcelana, um escarificador de dez lâminas e um pequeno pote,
esquisito, bojudo, de barro preto, arrolhado cuidadosamente com um batoque de
madeira. Uma etiqueta em letras vermelhas sobre fundo amarelo denunciava-lhe o
conteúdo.
Barbosa dispôs tudo isso sobre o mármore
do criado.
Tomou o escarificador, fê-lo funcionar.
Nove das lâminas tinham sido quebradas de adrede: uma só estava intacta, e essa
cortava como uma navalha.
Barbosa largou o escarificador, pegou no
potinho, fez cair dele, na cápsula, uns grãos irregulares, escuros, com quebraduras
lustrosas.
Era curare.
De sobre a mesa tirou um moringue,
deitou na cápsula cerca de duas colheres de água, e, com o bico da seringa, foi
agitando, fazendo com que se dissolvesse o terrível veneno.
Quando inspissou-se a solução, assumindo
a cor carregada de café forte, Barbosa encheu com ela a seringa.
Tomou de novo o escarificador,
engatilhou-o, aplicou-o sobre a face interna do antebraço esquerdo, premiu o
botão.
Ouviu-se um estalo abafado.
Barbosa retirou o escarificador.
Um pequeno traço, fino como um cabelo,
desenhava-se-lhe negro na alvura da cútis.
Uma gotazinha de sangue ressumou,
marejou, redonda, rubro, brilhante, como um rubim.
Barbosa largou o escarificador e, a
sorrir, sem empalidecer pegou, segurou a seringa entre o índice e o médio da mão
direita, introduziu-lhe o bico afilado na cesura, meteu o polegar no anel da
haste, calcou firme, empurrou com força o pistão. O excesso do líquido injetado
espandanou, desenhando-lhe na brancura da pele um como aracnide sinistro.
Barbosa lançou no ourinol o resto do
conteúdo da cápsula, meteu-a com o potinho, com o escarificador, com a seringa
na caixa de charão, escreveu em um bilhete de visita – Cuidado, que isto é
veneno – pôs também o bilhete dentro, fechou a caixa, guardou-a na gaveta, foi
ao lavatório, molhou uma toalha, limpou o braço, voltou para a cama, deitou-se
de costas, ao comprido.
Passaram-se dois minutos.
Barbosa nada sentia, absolutamente nada.
Quis ver a cesura, tentou chegar o braço
à altura dos olhos. Não pôde. O membro paralisado recusava-se à ordem do
cérebro.
Tentou o mesmo com o braço direito, quis
mover as pernas: igual impossibilidade.
Tentou sacudir a cabeça, fechar e abrir
os olhos: sacudiu a cabeça, fechou e abriu os olhos.
Passaram-se mais alguns minutos.
Tentou de novo sacudir a cabeça, fechar
e abrir os olhos. Impossível. A paralisia era já quase completa, quase total.
E não sofria dor, constrangimento de
espécie alguma.
No terreiro abaixo, ao pé do engenho, os
pretos estavam a malhar um resto de fegão que ficara de julho. Cantavam. A
toada distante chegava a Barbosa, amortecida, em quebros suaves, como os das
vozes angélicas de um harmônium. Do teto pendia uma jardineira de vidro com um epidendron
fragans: Barbosa hauria com delícias os eflúvios embriagantes das flores da
orquídea.
Na boca tinha ainda o ressaíbo suave,
quente do vinho húngaro generoso.
A um canto do forro, aranhas domésticas
fabricavam as teias: Barbosa distinguia-lhes bem os movimentos hábeis das
pernas longas, esguias, nodosas, verdadeiros dedos de tísico.
Veio uma mosca, e pousou-lhe na face:
com uma hiperestesia que chegava a ser um padecimento, ele sentia o prurido das
patas do inseto. Quis enrugar a pele do rosto para afugentá-lo, não pôde.
E a percepção de tudo era clara, a
inteligência perfeita.
Lembravam-lhe, acudiam-lhe de tropel à
memória as metamorfoses mitológicas de homens, de mulheres em árvores, em
rochedos.
O sonho extravagante da imaginação
doentia dos poetas helenos era traduzido em realidade palpitante, era excedido
no domínio dos fatos pela ação misteriosa do veneno americano.
– Oh pensava Barbosa, não poder eu ditar
a alguém o que em mim se está passando, descrever o gosto desta morte gradual,
em que a vida esvai-se como um líquido que se escoa. Que sou eu neste momento?
Uma inteligência que sente e quer, presa em um invólucro morto, cativa em um
bloco inerte… O espírito, o conjunto das funções do cérebro, está vivo, dá
ordens; o corpo está morto, não obedece. Tenho um pé na existência e outro no
não-ser. Alguns minutos mais, e tudo estará acabado, sem sofrimento, sem dor…
Já entrevejo o nirvana búdico, o repouso do aniquilamento…
– Manduca! Manduca!
Era a voz do pai que o chamava.
Barbosa ficou triste: queria responder e
não podia.
– Teresa!
– Sinhô!
– Onde está Manduca? Você não o viu?
– Vi, meu sinhô. Ele está aí no quarto
dele. Estava se banhando. Ainda há pouco Pedro e José saíram com a banheira.
– Que diabo, não responde… Só se está
dormindo.
E o coronel dirigiu- se ao quarto,
entrou.
Ao dar com o filho nu da cintura para
cima, estendido de costas na cama, pálido, imóvel, olhos abertos, fixos, o
coronel deu um salto.
– Manduca! Que é isso Manduca?!
E agarrando, abraçando o filho,
sacudia-o nervosamente.
O corpo de Barbosa, flácido, quente,
cedia aos esforços do pai, como um cadáver antes da rigidez.
E o cérebro, ativo, lúcido, em exercício
pleno de funções, vivia, compreendia, sentia, tinha vontade, queria falar,
queria responder ao pai; mas já não tinha órgão, estava isolado do mundo.
– Meu filho morreu! Meu filho morreu!
bradou o coronel, e saiu desatinado, correndo com as mãos na cabeça.
A esses gritos deu-se um como milagre.
A velha entrevada firmou as mãos nas
guardas da chaise-longue, fez um esforço supremo, ergueu-se, caiu de
joelhos e começou a engatinhar para o quarto do filho, movendo as juntas quase
anquilosadas de um modo que seria ridículo, se não fosse horroroso.
Em camisa, em uma seminudez indecente,
escorregando pelo assoalho, às sacadas, aos solavancos, como um inseto
mutilado, foi, chegou onde estava o filho, abeirou-se-lhe da cama, levantou-se;
agarrou-se no colchão, guindou-se com dificuldade dolorosa, abraçou o corpo por
sua vez, colocou-lhe nos lábios os seus lábios de velha, mo-les, franzidos,
frios.
Aos beijos da mãe, beijos que não podia
retribuir, Barbosa sentiu-se tomado de um sentimento estranho de uma ternura
filial que nunca dantes conhecera.
Mãe! Pai!
Por que se não devotara com todas as
suas poderosas faculdades a minorar os sofrimentos daquele casal de velhos, a
suavizar-lhes as misérias da senectude?!
Descrente de amigos, descrente de
amantes, descrente da esposa, ateu, farto do mundo, enjoado até de si, fora
pedir aos gelos da ciência exclusivista a morte, a extinção dos últimos afetos.
Tomara-se egoísta, tomara-se cruel.
E tinha ainda o que lhe prendesse ao
mundo: tinha pai, tinha mãe, tinha a quem se devotar, tinha para quem viver!
Que vingança cruel a da natureza!
Entregara-o de mãos atadas aos caprichos
de uma mulher histérica que se lhe oferecera, que se lhe dera, como se teria
oferecido, como se teria dado a qualquer outro, a um negro, a um escravo de
roça, não por amor psíquico, mas para satisfazer a carne faminta…
Repleta, farta, essa mulher o
abandonara.
Nas cinzas quase frias das suas crenças
mortas ateara-se o lume do amor, o fogo da fé brilhara um momento, mas prestes
se extinguira, e a escuridão voltara mais tétrica.
Lenita fora procurar e achara um homem
vil que lhe vendia o nome para coberta do erro, que a aceitava por esposa,
desonrada, grávida…
Grávida… Ela estava grávida, ele ia ser
pai…
E ela fugia dele, levava-lhe o filho e
ainda o ludibriava, descrevia-lhe em cínica missiva as suas observações de
viajante, as suas impressões de artista! Fazia ainda mais, dava-lhe parte do
seu enlace com o minotauro prévio e consciente, informava-o de que o seu filho,
o filho dele, Barbosa, tinha de dar o nome augusto de pai a um homem sem brios,
a um chatim refece de honra.
E ele morria, por amor dessa mulher,
morria porque ela lhe quebrantara o caráter, morria porque ela o prendera nos
liames da carne, morria porque sem ela a vida se lhe tomara impossível…
Covarde!
O remorso personificado na figura
lastimosa e quase hedionda de sua desgraçada mãe ali estava sobre ele,
abraçando-o, devorando-o, bebendo-lhe os últimos alentos.
Oh ! ele queria viver!
E não era impossível.
Se houvesse quem entendesse de
fisiologia, quem estabelecesse a respiração artificial, até que fosse
completamente eliminado o veneno, arredar-se-ia a morte, a vida voltaria.
Mudassem as circunstâncias, outrem fosse
o paciente, e Barbosa salvava-o.
Mas por si, para si, nada podia fazer:
enclausurado no corpo, como o lepidóptero na crisálida, estava impotente,
estava aniquilado: nem sequer lhe era concedido o consolo triste de pedir, de
implorar o perdão da pobre mãe, da mísera entrevada, a quem a angústia curara
em um momento.
A placidez da morte sem dor, da morte
pela paralisia dos nervos motores, converteu-se em um suplício atroz, pavoroso,
para cuja descrição não tem palavras a linguagem humana.
Morto e vivo!
Tudo morrera: só vivia o cérebro, só
vivia a consciência e vivia para a tortura…
Por que não ter despedaçado o crânio com
uma bala?
A paralisia invadiu os últimos redutos
do organismo, o coração, os pulmões, sístole e diástole cessaram, a hematose
deixou de se fazer. Um como véu abafou, escureceu a inteligência de Barbosa, e
ele caiu de vez no sono profundo de que ninguém acorda.
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