Ler online: O RETRATO DE DORIAN GRAY Oscar Wilde

 

 

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Editora e Livraria Ltda

Título original inglês: The
Picture of Dorian Gray

Publicado pela primeira vez em
junho de 1890, na Lippincott’s Monthly Magazine.

Capa: Kythão

Tradução: João do Rio

Todos os direitos reservados,
protegidos pela lei 9.610/98.

Wilde , Oscar Fingal
O’Flahertie Wills  (Oscar Wilde) – 1854
  1900

O Retrato de Dorian Gray  (The Picture of Dorian Gray). Oscar Fingal
O’Flahertie Wills Wilde, ou simplesmente Oscar Wilde (Dublin, 16 de outubro de
1854 — Paris, 30 de novembro de 1900). Pará de Minas, MG: Editora VirtualBooks,  2014. 177p.

ISBN 9788579538445

Ficção inglesa. Romance.
Literatura inglesa. Título. Tradução: João do Rio

 

 

O RETRATO DE DORIAN GRAY

Oscar Wilde

 

NOTA

 

O Retrato de Dorian Gray apareceu no ‘Lippuicott’s Magazine’ em
1890. Foi, de súbito, o maior escândalo literário de que se tem memória. Os
jornais, numa crise de furor inaudito, diziam do romance os maiores horrores. E
consequentemente diziam também do autor.

Oscar Wilde escreveu várias cartas aos jornais em resposta aos
ataques. O romance apareceu em volume com maior número de capítulos e com
muitos cortes. Asseguram que Pater, o grande espírito dos Retratos imaginários,
que escreveu um artigo de louvor ao romance, corrigiu com Wilde as provas do
livro.

Os pormenores da história da vida de O Retrato de Dorian Gray,
artigos, ataques, respostas, foram publicados pelo editor Mason sob o título
Arte e moralidade.

O livro deu uma exasperante fama a Oscar Wilde. O admirável
artista teve de escrever para outra edição o Prefácio, que é sua teoria da arte
e uma resposta em epígrafes à obtusidade da crítica.

Em 1895, na ação judicial em que era réu, Dorian Gray voltou ao
escândalo. Leram no tribunal vários trechos da edição do ‘Lippuicott’s’,
interrogando Wilde a respeito. Ele foi quase sempre esplendidamente
impertinente. Apenas foi suficientemente comedido para que Dorian Gray não
parecesse uma confissão.

Essa confissão seria, em todo caso, uma antecipação. Quando o pai
de lorde Alfredo Douglas deixou no clube um bilhete dizendo que Wilde posava de
vicioso e comprometia o filho; quando lorde Alfredo Douglas, belo, tão belo que
parecia ter 16 anos, tendo vinte e tantos, exigiu que Wilde processasse o pai,
para pregar uma peça ao pai que se divorciara da esposa; quando eclodiu o
desastre que levou Wilde à prisão, o romance O Retrato de Dorian Gray já estava
escrito havia cinco anos. E é público que lorde Alfredo Douglas conheceu Oscar
Wilde muito tempo depois de surgir o romance.

De resto, tudo quanto Wilde escreveu era a história do que se iria
dar. E ninguém sabe quais dos três personagens principais do romance – Dorian,
lorde Harry e Basil – seria o Wilde. São os três decerto…

Os horrores ditos contra esse livro fascinador de nada adiantaram,
porém. ‘O Retrato de Dorian Gray’ é, há trinta anos, o livro de ficção mais
sensacional da Terra. A sua sedução persiste, é cada vez maior. Hoje passou a
ser o credo de uma estética nova na Terra inteira. Porque ‘O Retrato Dorian
Gray’ foi traduzido, assim como ‘Salomé’, em todas as línguas.

Achei necessário traduzir a esplêndida obra em português. A
tradução por circunstâncias independentes da minha vontade esteve oito ou nove
anos em provas. Ao revê-la, senti ainda útil publicá-la. ‘O Retrato Dorian
Gray’ é um dos mais belos livros. E integralmente belo.

Traduzir é servir. Consequentemente, trabalho de inferiores. Nunca
um homem de espírito traduz senão quando a sua admiração é culminante. Ainda
assim traduz mal. Sempre mal. A tradução tem o perdão de ser uma dádiva
generosa, apenas. Traduzi Oscar Wilde como um presente a quantos só podem ler
na nossa língua. Esses, através dos defeitos da tradução, serão tocados do
inebriante clarão da Beleza.

Não é quanto basta à generosidade do trabalho?

 

João do Rio

(Londres, 1919)

 

PREFÁCIO

 

Um artista é um criador de belas coisas.

Revelar a Arte ocultando o artista é o fim da Arte.

Crítico é aquele que pode traduzir d’outra forma ou com processos
novos a impressão deixada pelas belas coisas.

A autobiografia é ao mesmo tempo a mais alta e a mais baixa das
formas da crítica.

Aqueles que encontram intenções feias nas belas coisas são
corrompidos sem sedução. E isso é um crime.

Os que acham belas intenções nas belas coisas são cultivados.
Esses têm esperança.

Para os eleitos é que as belas coisas significam simplesmente a
Beleza.

Um livro não é moral ou imoral. É bem ou mal escrito. Eis tudo.

O desdém do século XIX pelo realismo parece a raiva de Caliban
vendo a própria face num espelho.

O desdém do século XIX pelo romantismo parece a raiva de Caliban
não vendo a própria face num espelho.

A vida moral do homem forma uma parte do assunto do Artista, mas a
moralidade da Arte consiste no uso perfeito de um meio imperfeito.

O Artista não deseja provar nada. Mesmo as coisas verdadeiras
podem ser provadas.

O Artista não tem simpatias éticas. A simpatia moral num artista
traz o maneirismo imperdoável do estilo.

O Artista vê e pode exprimir tudo.

Para o Artista pensamento e linguagem são instrumentos de uma
arte.

O vício e a virtude são materiais. Do ponto de vista da forma, a
música é o tipo das artes. Do ponto de vista da sensação, é a profissão do
comediante.

Toda Arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo. Aqueles que
procuram ver por baixo da superfície fazem-no por conta e risco.

O mesmo acontece aos que tentam penetrar no símbolo.

É o espectador e não a vida que a Arte realmente reflete.

A diversidade de opiniões a respeito de uma obra de arte mostra
que essa obra é nova, complexa e viável.

Quando os críticos diferem, o Artista está de acordo consigo
mesmo.

Podemos perdoar a um homem por ter feito uma coisa útil, enquanto
ele não a admira. A única desculpa de ter feito uma coisa inútil é admirá-la
intensamente.

A Arte é completamente inútil.

 

Oscar Wilde

I

 

Estava o
Studio impregnado do forte cheiro das rosas. Quando, por entre as árvores do
jardim, passava a leve viração, entrava pela porta aberta o odor dos lilases,
de mistura com o perfume mais sutil das madressilvas.

De um
canto do divã entre almofadas persas, onde habitualmente se estirava, fumando
inúmeros cigarros, lord Henry Wotton percebia perfeitamente o brilho das doces
flores cor de mel, cobrindo um ébano de galhos trementes, como cansados de
suportar o peso de tão faiscante esplendor. De vez em quando, sombras
fantásticas de pássaros desgarrados passavam além das translúcidas cortinas
abertas da larga janela, produzindo como que um efeito japonês momentâneo,
fazendo-o pensar na figura de jade pálido desses pintores de Tóquio, que, por
meio de uma arte necessariamente imóvel, tentam produzir a sensação da rapidez
e do movimento.

O zumbido
monótono das abelhas, por entre altas ervas não ceifadas, ou revoando em torno
de empoados e dourados ramalhetes de um isolado arbusto de madressilva, tornava
ainda mais opressiva essa grande calma. O surdo ruído de Londres lembrava a
nota ressoante de um órgão afastado.

No centro
da sala, em um cavalete, erigia-se o retrato, em tamanho natural, de um rapaz
singularmente formoso, e um pouco distante, achava-se sentado o próprio pintor,
Basil Hallward, cujo desaparecimento súbito, alguns anos antes, havia causado
viva emoção pública e provocado muitas conjeturas.

O pintor
olhava a graciosa e encantadora figura tão finamente reproduzida pela sua arte
e um demorado sorriso de prazer passava-lhe pela face. Subitamente, porém,
estremeceu e, cerrando os olhos, comprimiu com os dedos as pálpebras, como se
quisesse reter no cérebro algum estranho sonho de que receava despertar.

– Isso é
a tua melhor obra, Basil; a melhor coisa que até hoje fizeste, disse lord Henry
languidamente. É preciso enviá-la, no ano próximo, à exposição Grosvenor. A
Academia é muito grande e muito vulgar. Cada vez que lá vou, o excesso de
espectadores não me permite ver os quadros, o que é espantoso; ou melhor, o
excesso de quadros não me deixa ver os espectadores, o que é horrível!
Grosvenor ainda é o lugar mais conveniente…

– Não
pretendo mandá-lo a parte alguma – respondeu o pintor, sacudindo a cabeça de um
modo singular, que excitava o riso aos seus amigos de Oxford.  – Não, não o enviarei a nenhuma exposição.

Lord
Henry abriu mais os olhos, fitando-o com surpresa através das finas espirais de
fumaça azul que se desprendiam entrelaçadas da ponta de seu cigarro opiado.

– Não? E
por que, meu caro amigo? Que razão tens tu? Que estranhos tipos sois vós,
pintores! Revolveis o mundo para ganhar a reputação e, logo que a possuis,
quereis desembaraçar–vos dela! Isto é ridículo, pois se há alguma coisa no
mundo pior que o renome, é a privação desse renome. Um retrato como este te
colocaria acima de todos os jovens da Inglaterra e tornaria os velhos
ciumentos, se os velhos ainda pudessem sentir qualquer emoção.

– Eu sei
que rirás de mim – replicou o outro –, mas não posso realmente expô-lo. A essa
tela comuniquei muito de mim próprio.

Lord
Henry esticou-se, rindo, no divã…

– Eu
sabia que irias rir, mas pouco importa.

– Muito
de ti próprio!… Palavra, Basil, eu não te supunha tão presumido; seriamente,
não percebo a semelhança entre tua rude e forte figura, de cabeleira negra como
carvão, e esse jovem Adônis, cujo aspecto lembra uma combinação de marfim e
folhas de rosas. Temos aqui o próprio Narciso, ao passo que tu!… É evidente
que a tua face transpira inteligência e o resto… Mas, a beleza, a verdadeira
beleza acaba onde começa a expressão intelectual. A intelectualidade é por si
mesma exagerada e destrói a harmonia de qualquer semblante. No momento em que
se assenta para pensar, tudo é nariz, tudo é fronte ou coisa pior. Olha os
homens triunfantes na sua profissão científica, e observa como são realmente
horrendos! Excetuam-se, naturalmente, os da Igreja. Mas os da Igreja não
pensam. Um bispo de oitenta anos repete o que lhe ensinaram a dizer aos dezoito
e o resultado natural é que ele sempre conserva um ar de frescura. Teu jovem e
misterioso amigo, cujo nome nunca me disseste, mas cujo retrato realmente me
fascina, é outro que nunca pensou. Tenho certeza disso. É uma admirável
criatura sem cérebro, que aqui, sempre junto a nós, bem poderia, no inverno,
substituir as flores, e refrescar-nos a cabeça, no verão. Não te lisonjeies,
Basil, tu não te assemelhas nem de longe a ele.

– Tu é
que não me compreendes, Harry – respondeu o artista. Eu bem sei que não me
pareço com ele; sei perfeitamente. Não gostaria mesmo de me parecer. Dás de
ombros?… Eu te digo a verdade. A fatalidade pesa sobre as distinções físicas
e intelectuais, a mesma fatalidade que na história vai à pista dos erros dos
reis. É melhor não nos diferençarmos dos contemporâneos. A este respeito, os
feios e os tolos são os mais bem aquinhoados neste mundo. Podem assentar-se à
vontade e bocejar durante o espetáculo. Se nada sabem da vitória, o
conhecimento da derrota lhes é poupado. Vivem como quiserem viver, sem ser
perturbados, indiferentes e tranquilos. Não importunam quem quer que seja, nem
são importunados. Mas tu, Harry, com o teu título e a tua fortuna; eu, com
minha cabeça tal qual é, com a minha arte imperfeita quanto possa ser; Dorian
Gray, com sua beleza – nós todos sofreremos pelo que os deuses nos deram,
havemos de sofrer terrivelmente…

– Dorian
Gray? É o nome dele? – perguntou lord Henry, encaminhando-se para Basil
Hallward.

– Sim, é
o seu nome. Eu não tinha intenção de te dizer.

– E por
quê?

– Ora!
Não posso explicar-te. Quando amo intensamente alguém, nunca digo a outros o
seu nome. É quase uma traição. Aprendi a amar o segredo. Parece-me ser a única
coisa capaz de fazer-nos a vida moderna misteriosa ou maravilhosa. O que possa
haver de mais comum nos parecerá estranho, desde que alguém o oculte. Quando
deixo esta cidade, não me refiro ao destino que torno, porque, fazendo-o, perco
todo o meu prazer. É um mau hábito, confesso, mas que me faz sentir na vida
qualquer coisa de romanesco… Estou certo de que me julgarás doido, ouvindo-me
falar assim…

– Não–
respondeu lord Henry –. absolutamente, meu caro Basil. Tu, ao que parece,
esqueces que sou casado e que o único encanto do casamento está na vida de
decepção indispensável a ambas as partes. Nunca sei onde está minha mulher e
ela nunca sabe o que faço. Quando nos encontramos – o que sucede de tempos a
tempos, quando juntos jantamos fora, ou quando vamos à casa do duque – narramos
um ao outro as mais absurdas histórias, com o ar mais sério deste mundo. Nessa
ordem de ideias, minha mulher está acima de mim. Não se embaraça com as datas,
o que me acontece frequentemente. Ela, aliás, o percebe, mas não revela
surpresa, quando, às vezes, eu desejaria que revelasse.

– Não
gosto desse teu sistema de falar de tua vida conjugal – disse Basil Hallward,
dirigindo-se para a porta que abria sobre o jardim. Tenho-te na conta de ótimo
marido, envergonhado das próprias virtudes. És um tipo extraordinário. Nunca
dizes duas palavras de moral e nunca praticas um mau ato. Teu cinismo é
simplesmente uma afetação.

– Ser
natural é também uma afetação e a mais irritante que conheço – exclamou rindo
lord Henry.

Os dois
moços encaminharam-se juntos para o jardim e assentaram-se num longo banco de
bambu colocado à sombra de um bosquezinho de loureiros. O sol deslizava pelas
folhas polidas; na relva, brancas margaridas destacavam-se trêmulas.

Depois de
um silêncio, lord Henry puxou o relógio.

– Devo
retirar-me, Basil – murmurou –, mas, antes de partir, queria ouvir uma resposta
à pergunta que, há pouco, eu te fiz.

– Que
pergunta? – indagou o pintor com os olhos fixos na terra.

– Tu
sabes…

– Não
sei, Harry.

– Pois
bem, vou repeti-la. Preciso que me expliques porque não queres expor o retrato
de Dorian Gray. Quero conhecer a legítima razão.

– Já te
disse qual é.

– Não.
Disseste-me que não exporias esse retrato por haver nele muito de ti mesmo.
Isso é infantil…

– Harry,
– disse Basil Hallward, fixando os olhos do outro –  todo retrato pintado compreensivelmente é um
retrato do artista, não do modelo. O modelo é puramente o acidente, a ocasião.
Não é ele o revelado pelo pintor; é antes o pintor quem se revela na tela
colorida. A razão que me impede de exibir esse quadro consiste no terror de,
por meio dele, patentear o segredo de minha alma!

Lord
Henry pôs-se a rir…

– E qual
é ele?

– Eu te
contarei – respondeu Hallward sombriamente.

– Sou
todo ouvido, Basil.

– É bem
simples, Harry, e acredito que não o compreenderás direito. Talvez, apenas
acredites…

Lord
Henry sorriu; baixando-se, apanhou na relva uma margarida de pétalas róseas e,
examinando-a:

– Estou
bem certo de que compreenderei – afirmou ele, olhando atentamente o fiascozinho
dourado, de pétalas brancas. E quanto a crer nas coisas, eu creio em todas
elas, desde que sejam incríveis.

O vento
destacou algumas flores dos arbustos e as pencas de lilases balançaram-se
lânguidas no ar. Uma cigarra zumbiu estridulante junto ao muro e, como um fio
azul, passou uma fina libelinha, ouvindo-se o frêmito de suas cinzentas asas de
gaze. Lord Henry conservava-se silencioso, como se quisesse perceber as
pulsações do coração de Basil Hallward e cogitando no que ia passar-se.

– Ouve a
história – disse o pintor depois de algum tempo. Há cerca de dois meses, ia eu
a uma reunião em casa de lady Brandon. Bem sabes que nós, pobres artistas,
temos que aparecer na sociedade, uma vez por outra, exclusivamente para provar
que não somos selvagens. Com uma casaca e uma gravata branca, todo mundo, até
um agente de câmbio, pode conseguir a reputação de um ser civilizado.
Achava-me, pois, no salão, havia uns dez minutos, palestrando com viúvas de
dote, carregadas de ornato, ou fastidiosos acadêmicos, quando, de súbito,
obscuramente, percebi que alguém me observava. Dei meia volta e, pela primeira
vez, vi Dorian Gray. Nossos olhares cruzaram-se e eu me senti empalidecer.
Penetrou-me um singular terror… Compreendi que estava em face de alguém, cuja
simples personalidade era tão fascinante que, se eu me abandonasse, ela me
absorveria inteiramente, a minha natureza, a minha alma e até o meu talento.
Não gosto de influências na minha existência. Sabes, Harry, quanto a minha vida
é independente. Sempre fui senhor de mim mesmo, ou, ao menos, sempre o havia
sido até o dia do meu encontro com Dorian Gray. Então… mas não sei como
explicar-te isto… Qualquer coisa parecia dizer-me que minha vida ia
atravessar uma crise terrível. Tive a estranha sensação de que o destino me
reservava exóticos prazeres e pesares extravagantes. Intimidei-me e dispus-me a
deixar o salão. Não era a consciência que assim me fazia agir, mas havia uma
espécie de covardia na minha ação. Não achei outro meio de escapar.

-a consciência
e o acovardamento são afinal as mesmas coisas, Basil. A consciência é alcunhada
de firmeza. É tudo.

– Assim
não penso,  Harry, e creio que também
pensas diversamente.Entretanto, fosse qual fosse o motivo – talvez o orgulho,
porque sou muito orgulhoso – o fato é que me precipitei para a porta. Ali,
naturalmente, encontrei lady Brandon. ‘Não tem a intenção de partir tão cedo!’,
exclamou ela… Conheces o timbre agudo de sua voz?…

– Sim,
lembra-me em tudo um pavão, exceto na beleza – disse lord Henry – desfolhando a
margarida com seus longos dedos nervosos…

– Não
pude desembaraçar-me dela. Apresentou-me a altezas, a figuras de estrelas e
jarreteiras, a damas maduras, cobertas de tiaras gigantescas e com narizes de
papagaio… Falou de mim como do seu melhor amigo. Eu antes a vira uma vez
somente, mas ela decidira exibir-me. Creio que um dos meus quadros era então
objeto de grande sucesso e merecia referências dos jornais populares, que são,
como sabes, os estandartes da imortalidade no século XIX. Subitamente, eu me
encontrei face a face com o jovem cuja personalidade me havia tão singularmente
intrigado; quase roçamos um no outro e, de novo, nossos olhares se cruzaram.
Independentemente de minha vontade, não pude deixar de pedir a lady Brandon que
nos aproximasse por meio de uma apresentação.

“Talvez
nada houvesse nisso de temerário, mas era simplesmente inevitável. O certo é
que nos teríamos comunicado sem apresentação antecipada; quanto a mim tenho
disso a certeza, e Dorian, mais tarde, disse-me a mesma coisa; ele sentira
também que estávamos destinados a nos conhecermos.”

– E o que
te disse lady Brandon desse mancebo maravilhoso? – perguntou o amigo. Sei que
ela tem o sestro de fornecer o esboço rápido de cada um de seus convidados.
Certa vez, apresentou-me a um apoplético e corpulento ‘gentleman’, coberto de
ordens e fitas, e a respeito dele disse-me ao ouvido, de modo trágico, os mais
detalhados absurdos, que deveriam ser percebidos por todas as pessoas no salão.
Isso me pôs em guarda, sobretudo porque gosto de conhecer os homens por mim
mesmo. Lady Brandon trata seus convidados exatamente como um agente de leitões
em relação às suas mercadorias. Explica as manias e os hábitos de cada um, mas
se esquece naturalmente de tudo quanto poderia interessar-nos no personagem.

– Pobre
lady Brandon! Tu és severo com ela – observou Hallward negligentemente.

– Meu
caro, ela tentou criar um salão e só conseguiu abrir um ‘restaurant’. Como
poderia admirá-la? Mas, dize-me, que te confiou sobre Mr. Dorian Gray?

– Oh!
Qualquer coisa muito vaga neste gênero: “Belo rapaz! Sua pobre mãe e eu
éramos inseparáveis. Não me recordo bem do que faz, ou antes, receio… que
nada faça! Ah! Sim, toca piano… Ou é violino que toca, meu caro Mr.
Gray?”

Não
pudemos ambos reprimir o riso e imediatamente nos fizemos amigos.

– A
hilaridade não é absolutamente um mau começo de amizade e está longe de
traduzir um mau desígnio – disse o jovem lord comendo outra margarida.

Hallward
sacudiu a cabeça…

– Não
podes compreender, Harry –  murmurou ele
–, em que espécie de amizade ou de ódio o riso influi, nesse caso particular.
Tu não prezas ninguém, ou, se chegas a preferir alguém, este alguém não te
interessa.

– Como és
injusto! – exclamou lord Henry, levantando a aba do chapéu e olhando as
pequenas nuvens no céu, onde, como flocos de uma meada de seda luzente, fugiam
no profundo azul de turquesa.

– Sim,
horrivelmente injusto!… Estabeleço uma grande diferença entre as pessoas.
Escolho meus amigos pela sua boa cara, meus simples camaradas pelo seu caráter
e meus inimigos pela sua inteligência. Outro homem não saberia dar tanta
importância à escolha de seus inimigos; eu não tenho um só que seja um tolo,
são todos homens de certo poder intelectual e, portanto, todos me apreciam. É
talvez ocioso agir assim!

– Eu
também, Harry. Mas referindo-me à tua maneira de seleção, devo ser à tua vista
um simples camarada.

– Meu bom
e caro Basil, tu vales mais que um camarada…

– E menos
que um amigo: uma espécie de… irmão, suponho!

– Um
irmão!… Não! Pouco me importam os irmãos!… Meu irmão mais velho não quer
morrer e os mais moços querem, ao que parece, imitá-lo.

– Harry!
– protestou Hallward, num tom lamentoso.

– Meu
caro, eu não sou absolutamente sério. Mas não me posso coibir de detestar os parentes.
Isso vem, talvez, do fato de cada um de nós não poder suportar outras pessoas
possuidoras de iguais defeitos. Simpatizo, entretanto, francamente com a
democracia inglesa, na sua raiva contra o que ela chama de os vícios da alta
sociedade. A massa sente que a bebedeira, a estupidez, a imoralidade são sua
propriedade; e se algum de nós toma-lhe esses defeitos, parece-lhe uma caça
furtiva nos seus domínios… Quando o pobre Louthwark compareceu perante o
tribunal do divórcio, a indignação dessa mesma massa foi magnífica. Estou
convencido de que a décima parte do povo não vive como devia viver.

– Não
aprovo uma única palavra das que acabas de proferir e sinto, Harry, que não as
aprovas mais do que eu.

Lord
Henry acariciou a sua longa barba castanha talhada em ponta, e dando
pancadinhas na botina de couro fino com a sua bengala de ébano.

– Basil,
tu és bem inglês! E é a segunda vez que fazes essa observação. Comunica-se uma
ideia a um verdadeiro inglês – o que é sempre uma coisa temerária – ele nunca
procura saber se a ideia é boa ou má; dá apenas alguma importância ao fato de
descobrir o que se fica pensando de si próprio. Afinal, o valor de uma ideia
nada tem que ver com a sinceridade do homem que a exprime. Na verdade, temos
muita sorte quando a ideia é interessante em proporção direta com o caráter
falso do personagem, porque, neste caso, ela não será colorida por quaisquer
necessidades, desejos ou prejuízos deste. Entretanto, não me proponho a abordar
questões políticas, sociológicas ou metafísicas contigo. Estimo mais as pessoas
que seus princípios e estimo ainda mais as pessoas sem princípios, que qualquer
outra coisa no mundo. Conversemos ainda sobre Mr. Dorian Gray. Viste-o muitas
vezes?

– Todos
os dias. Não me sentiria feliz se não o visse cada dia. Ele me é absolutamente
necessário.

– Deveras
curioso! Supunha que não te ocupasses de mais nada, além da tua arte…

– Ele é
agora toda a minha arte – replicou o pintor gravemente. – Algumas vezes penso,
Harry, que não há senão duas eras de alguma importância na história do mundo. A
primeira é a da aparição de um novo processo de arte, a segunda será a da
constituição de uma nova personalidade artística. O que a descoberta da pintura
foi para os venezianos e a face de Antínoo para a arte grega antiga, Dorian
Gray me há de ser algum dia. Não é simplesmente por pintá-lo, por desenhá-lo ou
fazer dele bosquejos; tudo isso fiz antes. Ele vale muito mais que um modelo.
Não quero dizer que não me satisfaça com o que executei pela sua imagem, ou que
a sua beleza seja tal que a arte não possa reproduzi-la. Não há nada que a arte
não reproduza e sei muito bem que a obra por mim feita, após meu encontro com
Dorian Gray, é uma bela obra, a melhor da minha vida. Mas, de uma maneira
indecisa e curiosa – pasmarei se me compreenderes – sua pessoa sugeriu-me uma
maneira de arte inteiramente nova, um modo de expressão inteiramente novo. Vejo
as coisas diferentemente e penso-as diferentemente. Posso agora viver uma
existência que antes me estava oculta. “Uma forma sonhada em dias de
pensamento”, quem disse isso? Não me lembro; mas é exatamente o que me foi
Dorian Gray. A simples presença visível desse adolescente – pois ele só me
parece um adolescente, embora tenha mais de vinte anos – a simples presença
visível desse adolescente!… eu pasmarei, se puderes compreender o que isto
significa! Inconscientemente, ele define para mim as linhas de uma escola que
uniria a paixão do espírito romântico à perfeição do espírito grego. A harmonia
do corpo e da alma, que sonho!…Nós, na nossa cegueira, separamos estas duas
coisas para inventar um realismo vulgar e uma idealidade vazia! Ah! Harry! Se
pudesses conceber o que Dorian Gray representa para mim!… Deves lembrar-te
daquela paisagem, pela qual Agnew me oferecia uma soma tão considerável e da
qual eu não quis separar-me. É um dos meus melhores trabalhos. E sabes por quê?
Porque, enquanto o executava, Dorian Gray se conservava assentado a meu lado.
Qualquer sutil influência passou, então, dele a mim, e, pela primeira vez na
vida, surpreendi na paisagem esse não sei quê, sempre procurado e… sempre
falhado.

– Basil,
é espantoso! Preciso ver Dorian Gray!…

Hallward
levantou-se, deu uns passos pelo jardim… Um instante, depois parou…

– Harry,
disse ele, Dorian Gray, para mim, é simplesmente um motivo de arte; tu nada
verás nele; eu nele vejo tudo. Quando não o vejo e apenas o recordo, é que ele
se apresenta mais vivamente à minha imaginação. Como te disse, é uma sugestão
de nova espécie. Eu o descubro nas curvas de certas linhas, na adorável
sutileza de certas nuanças. É tudo.

– Então
por que não queres expor o seu retrato? – perguntou de novo lord Henry.

– Porque,
sem o querer, a ele transmiti a expressão de toda essa estranha idolatria
artística, de que nunca lhe falei. Ele nada sabe e nunca saberá. Mas o mundo
pode adivinhá-la e não quero descobrir minha alma aos baixos olhares
pesquisadores; meu coração nunca será sujeito a um microscópio… Há muito de
mim mesmo nesse trabalho, Harry, muito de mim mesmo!…

– Os
poetas não são tão escrupulosos como tu; sabem quanto a paixão utilmente
divulgada ajuda a venda. Hoje, um coração partido dá várias edições.

– Eu os
detesto por isso mesmo… – exclamou Hallward. – Um artista deve produzir belas
coisas, mas nada de si próprio lhes deve comunicar. Vivemos numa idade em que
os homens só compreendem a arte sob um aspecto autobiográfico. Perdemos o
sentido abstrato da beleza. Algum dia, hei de mostrar ao mundo o que isso é, e
por esta razão o mundo jamais verá o meu retrato de Dorian Gray.

– Penso
que tu andas errado, Basil, mas não quero discutir contigo. Só me ocupo da
perda intelectual… Dize-me: Dorian Gray gosta de ti?

O pintor
como que refletiu alguns instantes.

– Ama-me,
sim – respondeu depois de uma pausa –eu sei que ele me ama… Eu o lisonjeio
bastante, como se pode compreender. Acho um estranho prazer em lhe dizer
palavras que, noutro caso, sentiria imenso ter dito. Ordinariamente, ele é bom
comigo e passamos dias no atelier a falar de mil coisas. Uma vez por outra,
mostra-se horrivelmente desagradável e parece achar verdadeiro prazer em me
atormentar. Sinto, Harry, ter dado toda minha alma a um ser que a trata como
uma flor a por à lapela, uma ponta de fita para a sua vaidade, um ornato de dia
de verão…

– E os
dias de verão são longos… – insinuou lord Henry – Talvez te fatigues dele
mais cedo do que ele pensa. É um triste assunto para indagações, mas não se
pode duvidar que o espírito dura mais que a beleza. Isto explica porque tanto
nos custa instruirmo-nos. Precisamos, para a medonha luta da vida, de qualquer
coisa que persista, e enchemos o espírito de ruínas e fatos, na ingênua
esperança de conservar o nosso lugar. O homem bem informado: eis o moderno
ideal… O cérebro desse homem bem informado é uma coisa espantosa. E como uma loja
de ‘bric–à–brac’, onde pode haver relógios… poeira e muito objeto cotado
acima do devido valor.  Creio que serás o
primeiro a cansar… Um dia, olharás o teu amigo e ele te parecerá que já não é
o mesmo; não mais apreciarás a sua tez ou outra qualquer coisa… Hás de
condená-lo no teu íntimo e acabarás por pensar que se portou mal contigo. No
dia seguinte, tu te sentirás perfeitamente calmo e indiferente. Será
lastimável, porque isso te transformará… O que me disseste é romance, um
romance de arte – direi – e o mais desolador é que te deixará uma recordação
pouco romanesca.

– Harry,
não fales assim. Enquanto Dorian Gray existir, serei dominado pela sua
personalidade. Tu não podes sentir do mesmo modo que eu. Tu varias
frequentemente.

– Ah! Meu
caro Basil, é justamente por tal motivo que eu sinto. Os fiéis só conhecem o
lado trivial do amor; é a traição que conhece as tragédias.

E lord
Henry, riscando um fósforo numa caixeta de prata, começou a fumar com uma
placidez de consciência tranquila, com um ar satisfeito de quem houvesse
definido o mundo em uma frase.

Um bando
chilreante de passarinhos pousou no verde profundo das heras… Como uma
revoada de andorinhas, a leve sombra das nuvens passou sobre a relva… Que
encanto despertava esse jardim! Quanto – pensava lord Henry – deviam ser
deliciosas as emoções dos outros! Muito mais deliciosas que suas ideias,
parecia-lhe! O cuidado de sua própria alma e as paixões de seus amigos, tais
lhe pareciam ser as coisas notáveis da vida. Divertindo-se, ao pensar assim,
lembrava-se do ‘lunch’ abarrotante que lhe evitara a visita à casa de Hallward,
se houvesse ido à casa de sua tia, ali encontraria certamente lord Goodbody, e
toda a conversa rolaria sobre o sustento dos pobres e a necessidade de
estabelecer casas modelares de socorro. 
Ouviria cada classe pregar a importância de diferentes virtudes, que
nenhuma delas, bem entendido, punha em prática. O rico discorreria sobre a
necessidade da economia e o ocioso vaticinaria eloquentemente a dignidade do
trabalho… Que inapreciável sorte ter escapado a tudo isso! Subitamente, como
pensava em sua tia, veio-lhe uma ideia. Voltou-se para Hallward…

– Meu
caro, lembro-me…


Lembras-te de quê, Harry?

– Do
lugar onde ouvi referências a Dorian Gray.

– Onde
foi? – perguntou Hallward, carregando ligeiramente as sobrancelhas…

– Não me
olhes tão furioso, Basil… Foi em casa de minha tia, lady Agatha. Ela disse-me
que se relacionara com um jovem “maravilhoso”, que quisera
acompanhá-la em East End e chamava-se Dorian Gray. Posso assegurar-te que só me
falou dele como de um belo rapaz. As mulheres não formam juízo exato do que
pode ser um belo rapaz; as mulheres dignas, pelo menos… Ela me disse que ele
era muito sério e possuía um bom caráter. Eu, imediatamente, tive a ideia de um
indivíduo de lunetas, com os cabelos em pastinhas, a pele colorida,
requebrando-se sobre pés enormes… Estimaria saber que era o teu amigo.

– Pois eu
estimo que não tivesses sabido.

– E por
quê?

– Não
desejo que o conheças.

– Não
desejas que eu o conheça?!…

– Não…

– Mr.
Dorian Gray acha-se no atelier, senhor – disse o mordomo aparecendo no jardim.

– Agora
serás forçado a mo apresentar – exclamou rindo lord Henry.

O pintor
voltou-se para o servidor, que se conservava ao sol, piscando os olhos:

– Parker,
diga a Mr. Gray que espere; lá irei já. O homem inclinou-se e retirou-se.
Hallward fixou lord Henry.

– Dorian
Gray é o meu mais caro amigo – disse ele. – É uma simples e bela natureza. Tua
tia teve toda a razão em dizer dele o que me repeliste… Não mo estragues; não
o impressiones; a lua influente lhe seria perniciosa. O mundo é grande e está
cheio de gente interessante. Não me subtraias a única pessoa que empresta à
minha arte o encanto que ela pode possuir; minha vida de artista depende dele.
Presta atenção. Harry, eu te peço!…

O pintor
falava em voz baixa e as palavras como que lhe saíam dos lábios contra a
vontade…

– Quanta
tolice! – replicou lord Henry, sorrindo; e, tomando o braço de Hallward,
conduziu-o quase à força para a casa.

 

II

 

Ao
entrarem, perceberam ambos, Dorian Gray. Estava assentado ao piano, de costas
para eles, folheando um volume das ‘Cenas da Floresta’, de Schumann.

– Vou
levá-las emprestadas, Basil… , exclamou. Preciso estudá-las… São
encantadoras!

– Isso
depende do modo de posares hoje, Dorian…

– Oh!
Estou fatigado de posar e não preciso de um retrato de tamanho natural,
respondeu o adolescente, girando, com ar petulante, sobre o tamborete do
piano…

Um
ligeiro rubor cobriu-lhe as faces e fê-lo mudar de gesto, quando percebeu lord
Henry.

– Peço-te
perdão, Basil, mas não sabia que vinhas acompanhado.

– Dorian,
é lord Henry Wotton, um dos meus velhos amigos de Oxford. Dizia-lhe,
justamente, que és um admirável modelo e vens estragar tudo…

– Não
está, porém, estragado o meu prazer de encontrá-lo, Mr. Gray – disse lord Henry
adiantando-se e estendendo-lhe a mão. Minha tia muitas vezes me tem falado de
si. O senhor é um dos seus favoritos e receio que também seja… uma de suas
vítimas…

– Ah!
Presentemente, creio estar entre as suas más notas – replicou Dorian com um
trejeito gaiato de arrependimento. –Terça–feira última, prometera acompanhá-la
a um clube de Whitechapel e esqueci-me inteiramente da promessa. Devíamos fazer
ouvir um duo… ou melhor, três duos! Não sei o que me dirá; assusto-me com a
simples ideia de ir vê-la!

– Oh! Eu
o reconciliarei com minha tia. É-lhe muito dedicada e não creio que o caso
ofereça motivo para irritações. O auditório contava com um duo; quando minha
tia Agatha se achega ao piano, faz barulho por dois…

– É mau
para ela… e pouco gentil comigo – observou Dorian dando uma gargalhada.

Lord
Henry examinava-o… Ele era, decerto, extraordinariamente belo, com os lábios
escarlates finamente talhados, os claros olhos azuis, a cabeleira de cachos de
ouro. Tudo na sua face atraía a confiança, desde que nela não se descobria essa
candura de mocidade aliada à pureza ardente da adolescência. Sentia-se que o
mundo ainda não o havia poluído. Como surpreender que Basil Hallward o estime de
tal forma?…

– O
senhor é realmente bem sedutor para ocupar-se de filantropia, Mr. Gray, muito
sedutor…

E lord
Henry, estirando-se no divã, abriu a sua cigarreira.

O pintor
preparava febrilmente a palheta e os pincéis… Mostrava um ar aborrecido: quando
ouviu a última frase de lord Henry, lançou-lhe os olhos… Hesitou um instante,
mas, afinal, decidiu-se:

– Harry –
disse – preciso acabar hoje este retrato. Não terias vontade de ir-te
embora?…

Lord
Henry sorriu e contemplou Dorian Gray.

– Devo
partir, Mr. Gray? – perguntou ele.

– Oh!
Não, peço-lhe, lord Henry. Eu percebo que Basil está indisposto e não posso
suportá-lo quando faz má cara… Mas por que não me posso ocupar de
filantropia?

– Não sei
o que responder-lhe, Mr. Gray. É um assunto tão maçante, que dele só se pode
tratar seriamente… Não me vou, porém, desde que me convida… Tu, Basil, não
insistes na minha retirada, não é assim? Já me disseste muitas vezes desejar
descobrir alguém para tagarelar com os teus modelos…

Hallward
trincou os beiços…

– Já que
Dorian deseja, podes ficar. Seus caprichos são leis para todos, exceto para
ele.

Lord
Henry apanhou o chapéu e as luvas.

– És
muito bom, Basil, mas quero ir. Tenho uma entrevista com alguém no Orléans…
Adeus. Mr. Gray. Venha ver-me uma dessas tardes em Curzon Street. Pelas cinco
horas, estou geralmente em minha casa. Escreva-me, quando vier; ficarei
desolado se não me encontrar.

– Basil –
exclamou Dorian Gray –, se lord Henry Wotton se retira, eu também parto. Tu
nunca abres a boca quando pintas e é horrivelmente enfadonho ficar pregado em
um tamborete com o ar amável. Pede-lhe que fique. Eu insisto por que ele se
demore.

– Fica
então, para satisfazer-nos, Harry – disse Hallward, mirando atentamente o
quadro – É verdade, afinal, eu nunca falo nem escuto,quando trabalho, e
compreendo que isto deve ser desagradável aos meus infortunados modelos.
Peço-te que fiques!

– Mas que
pensará a pessoa à minha espera no ‘Orléans’?

O pintor
pôs-se a rir.

– Penso
que tudo se deslindará naturalmente… Experimenta, Harry… E agora, Dorian,
sobe ao estrado: não te mexas muito e não prestes atenção ao que te disser lord
Henry. Sua influência é má para todo o mundo, salvo para ele…

Dorian
Gray subiu ao estrado com o ar de um jovem mártir grego, mostrando uma ligeira
expressão de descontentamento a lord Henry, por quem já sentia certa
inclinação. Era tão diferente de Basil, ambos formavam tão delicioso
contraste… e lord Henry uma voz tão doce… Ao fim de alguns instantes,
disse-lhe:

– É
verdade que a sua influência chega a prejudicar tanto quanto quer, Basil?

– Ignoro
o que os homens entendem por uma boa influência, Mr. Gray. Toda influência é
imoral… imoral, sob o ponto de vista científico…

– E por
quê?

– Porque
considero que influir sobre uma pessoa é transmitir-lhe um pouco de sua própria
alma; esta pessoa deixa de pensar por si mesma, deixa de sentir suas paixões
naturais. Suas virtudes não são mais suas. Seus pecados, se houver qualquer
coisa semelhante a pecados, serão emprestados. Ela tomar-se–á eco de uma música
estranha, autora de uma peça que não se compôs para ela. O fim da vida é o
desenvolvimento da personalidade. Realizar a sua própria natureza, eis o que
todos procuramos fazer. Os homens, hoje, amedrontam-se a eles mesmos.
Esqueceram-se do maior de todos os deveres, do dever que cada um deve a si
próprio. Naturalmente, são caridosos. Nutrem o pobre e vestem os andrajosos,
mas deixam as suas almas famintas e andam nus. A coragem nos abandonou: é
possível que nunca a possuíssemos! O terror da sociedade, que é a base de toda
a moral, o terror de Deus, que é o segredo da religião – eis as duas coisas que
nos governam, e ainda…

– Volta a
tua cabeça um pouco mais para a direita, Dorian 
– disse o pintor embebido na sua obra e tendo descoberto na fisionomia
do adolescente um ar que nunca vira.

– E ainda
– continuou a voz musical de lord Henry num tom baixo, com a graciosa flexão de
mão que lhe era particularmente característica desde o colégio de Eton – creio
que se um homem quisesse viver plenamente, completamente, quisesse dar uma
forma a cada sentimento, uma expressão a cada pensamento, uma realidade a cada
sonho, creio que o mundo experimentaria tal impulso de alegria nova que nos
esqueceríamos de todos os males medievais para voltarmos ao ideal grego, talvez
mesmo a qualquer coisa mais linda e rica que esse ideal! O mais bravo, porém,
dentre nós tem medo de si próprio. A abjuração de nossas vidas é tragicamente
semelhante à mutilação dos fanáticos. Somos punidos pelo que negamos. Cada
impulso que tentamos sufocar persevera em nosso íntimo e intoxica-nos. O corpo
peca a princípio e satisfaz-se com o pecado, porque a ação é um modo de
purificação. Só conservamos a lembrança de um prazer ou a voluptuosidade de uma
saudade. Só quando cedemos a uma tentação nos desembaraçamos dela. Procure
resistir e sua alma há de aspirar doentiamente a tudo de que quiser
preservar-se, com a agravação do desejo por aquilo que todas as leis
monstruosas tomaram ilegal e monstruoso. Já se disse que todos os grandes
acontecimentos do mundo se acomodam no cérebro. É no cérebro, é aí somente, que
também tomam lugar os grandes pecados do mundo. Você, Mr. Gray, com a sua
candente mocidade e a sua cândida infância, há de ter lido paixões que o terão
espantado, pensamentos que já o encheram de terror, dias de sonho e noites de
sonho que, simplesmente recordadas, bastarão para fazer subir-lhe o rubor às
faces…

– Alto! –
pediu Dorian Gray, hesitante. Detenha-se! O senhor me embaraça. Não sei o que
responder-lhe. Tenho uma resposta a dar-lhe, mas não a encontro. Não fale!
Deixe-me pensar! Por favor! Deixe-me experimentar pensar!

Durante
quase dez minutos, Dorian conservou-se sem um movimento, com os lábios
entreabertos e os olhos estranhamente brilhantes. Parecia ter obscuramente
consciência de que nele atuavam influências ainda não sentidas, mas que lhe
pareciam vir inteiramente de si. As poucas palavras que lhe dirigira o amigo de
Basil – palavras pronunciadas sem dúvida casualmente e carregadas de paradoxos
propositais – haviam-lhe tocado alguma corda secreta, antes adormecida, mas que
ele sentia agora palpitar e vibrar.

A música
já uma vez o impressionara, assim, já o perturbara muitas vezes. Não é um novo
mundo, mas antes um novo caos o que ela desperta em nós…

As
palavras! As simples palavras! Como são terríveis! Quantas são límpidas,
fulgurantes ou cruéis! Bem quiséramos evitá-las. No entanto, que sutil magia há
nelas?… Dir-se–ia que dão uma forma plástica às coisas informes e que possuem
uma música própria, tão doce como a do alaúde ou a de um violino! As simples
palavras! Que há de mais real que as palavras?

Sim,
passaram-se fatos na sua infância que ele não conseguira compreender; agora os
compreendia. A vida se lhe apresentou de súbito ardentemente colorida.
Convenceu-se de que até então só havia caminhado através de chamas! Por que
nunca chegara a suspeitar disso?

Lord
Henry o espreitava, com um misterioso sorriso nos lábios. Conhecia o momento
psicológico do silêncio… Sentia-se vivamente interessado. Pasmava-se diante
da impressão súbita provocada pelas suas frases; lembrando-se de um livro que
lera aos dezesseis anos e que revelara o que até então ignorava, maravilhou-se
ao ver Dorian Gray passar por semelhante experiência. Ele apenas lançara ao ar
uma flecha. Esta alcançara o alvo?… Aquele rapaz era deveras interessante.

Hallward
pintava com notável firmeza de mão, o que o caracterizava. Ele possuía essa
elegância, essas delicadezas perfeitas que, em arte, procedem sempre da
verdadeira força. Não prestava atenção ao prolongado silêncio do ambiente.

– Basil,
estou cansado da posição – exclamou de repente Dorian Gray. – Preciso ir até o
jardim. O ar aqui está sufocante…

– Meu
caro amigo, sinto muito, mas quando pinto não penso em outra coisa. E nunca
posaste tão bem, estavas perfeitamente imóvel e eu colhi o efeito que buscava:
os lábios semiabertos e os olhos iluminados… Não sei o que poderia dizer-te,
Harry, mas é a ele, certamente, que deves essa maravilhosa expressão. Suponho
que ele te lisonjeou. Não deves tomar a sério uma palavra dita por ele.

– Ele não
me fez cumprimentos; e talvez seja esta a razão pela qual não quero crer no que
ele me diz.

– Ora!…
O senhor bem sabe que acredita em tudo quanto lhe disse – respondeu lord Henry,
mirando-o com seus olhos languescentes e sonhadores.

– Eu o
acompanharei ao jardim. Faz um calor insuportável neste atelier… Basil,
faze-nos servir qualquer coisa gelada, uma bebida qualquer de morangos.

– Fica a
teu gosto, Harry… Chama Parker pela campainha; logo que chegue, eu lhe
encomendarei o que quiseres… Tenho ainda que trabalhar no fundo do retrato,
daqui a pouco, irei juntar-me a vocês. Não me subtraias Dorian por muito tempo.
Nunca estive tão disposto a pintar. Será certamente a minha obra–prima… se
não for desde já.

Lord
Henry, passando-se ao Jardim, encontrou Dorian Gray com o rosto mergulhado em
um fresco molho de lilases, aspirando sofregamente o perfume como o de um vinho
precioso… Aproximou-se dele e pôs-lhe a mão na espádua…

– Muito
bem – disse-lhe – nada cura melhor a alma que os sentidos, como nada seria
melhor que a alma para sanear os sentidos.

O
adolescente tremeu, voltando-se… Trazia a cabeça descoberta; as folhas lhe
haviam desarranjado os cachos rebeldes e emaranhado os fios de ouro do cabelo.
Em seus olhos pairava como que essa espécie de terror que se descobre nos olhos
de alguém acordado em sobressalto… As narinas, finamente desenhadas,
palpitavam, e uma perturbação oculta avivava o carmim de seus lábios trementes.

– Sim –
continuou lord Henry – é um dos grandes segredos da vida: curar a alma por meio
dos sentidos e os sentidos com auxílio da alma. O senhor é uma admirável
criatura: sabe mais do que pensa saber, assim como julga conhecer menos do que
conhece.

Dorian
Gray tomou um ar triste e voltou a cabeça. Certamente, não podia deixar de
apreciar o belo e gracioso jovem que via à sua frente. A sua figura amorenada e
romanesca, cheia de certa expressão fatigada, interessava-o. Havia qualquer
coisa de absolutamente fascinante na sua voz lânguida e velada. As mãos,
frescas e brancas, mesmo lembrando flores, possuíam um encanto curioso. Tal
como a voz, elas pareciam musicais, pareciam ler uma linguagem particular.
Atemorizava-se e era vergonhoso temer… Fora necessário o aparecimento do
desconhecido para revelar-se a si mesmo. Conhecia, havia meses, Basil Hallward
e a amizade deste não o modificara. O outro passara pela sua existência e havia
lhe descoberto o mistério da vida. Que poderia, pois, amedrontá-lo assim? Ele
não era nem uma menina nem um colegial; era ridículo, na verdade…


Sentemo-nos à sombra – convidou lord Henry. Parker já nos trouxe o que beber e
se o senhor se conservar muito tempo ao sol, pode estragar a tez e Basil não
quererá depois pintá-lo. Não se arrisque a apanhar uma soalheira, não é
ocasião.

– Que
poderia acontecer? – perguntou rindo Dorian Gray, sentando-se no fundo do
jardim.

– É para
si uma questão da máxima importância, Mr. Gray.

– Ora!…
E por quê?

– Porque
o senhor possui uma juventude admirável e a juventude é a única coisa
desejável.

– Eu
pouco me incomodo.

– Pouco
se incomoda… agora. Um dia virá, quando estiver velho, enrilhado e feio,
quando o pensamento lhe houver sulcado a fronte com a sua garra e a paixão
marcado os seus lábios de estigmas desfigurantes, um dia virá – dizia – em que
se há de incomodar amargamente. Em qualquer parte por onde ande atualmente,
acha prazer. Será sempre assim? A sua figura é adoravelmente bela, Mr. Gray…
Não se contrarie, porque, de fato, a possui… E a Beleza é uma das formas do
Gênio, a mais alta mesmo, pois não precisa ser explicada; é um dos fatos
absolutos do mundo, como o sol, a primavera, ou o reflexo, nas águas sombrias,
dessa concha de praia que chamamos de lua; isso não pode ser discutido; é uma
soberania de direito divino e os que a possuem são feitos por ela príncipes…
Sorri? Ah! Não sorrirá tão facilmente, quando a houver perdido… Tem-se dito
que a beleza é apenas superficial, talvez seja, mas, em todo caso, é sempre
menos superficial que o Pensamento. Para mim, a Beleza é a maravilha das
maravilhas. Só os sujeitos acanhados não julgam pela aparência. O verdadeiro
mistério do mundo é o visível, nunca o invisível… Sim. Mr. Gray, os Deuses
lhe foram favoráveis. Mas o que os Deuses dão tornam a tomar depressa. Serão
poucos os anos que poderá viver, realmente, perfeitamente, plenamente; sua
beleza se esvairá com a mocidade e imediatamente lhe será fácil reconhecer que
não mais poderá contar com triunfos, senão viver dessas migalhas de triunfos,
que a memória do passado tornará mais amargas que as derrotas. Cada mês de vida
que se vai aproxima-o de qualquer coisa terrível. O tempo tem ciúmes de si e
castiga os lírios e as rosas. O seu rosto há de empalidecer, as suas faces hão
de escavar-se e os seus olhares hão de fanar-se. Sofrerá horrivelmente… Ah!
Aproveite a sua mocidade enquanto a possui!… Não esbanje o ouro dos seus
dias, ouvindo os tolos procurando sustar a inevitável decadência, e evite o
ignorante, o comum, o vulgar… É a aspiração doentia, o falso ideal da nossa
idade. Viva! Viva a maravilhosa vida de que dispõe! Não queira perder nada!
Busque sempre novas sensações!

Nada
receie… Um novo Hedonismo, eis o que pede este século. O símbolo tangível
pode estar em si. Nada há de relativo à sua personalidade que não possa
realizar. O mundo é seu por algum tempo!

Quando o
encontrei, percebi que o senhor ainda não tinha consciência do que é e do que
pode vir a ser… Havia em sua pessoa qualquer coisa tão particularmente
atraente, que senti o dever de revelá-la a si mesmo, no temor trágico de vê-lo
arruinado… por enquanto, sua mocidade tem tão pouco tempo a viver… tão
pouco!… As flores fenecem, mas reflorescem… Este ébano, pelo mês de junho do
ano próximo, estará tão florescente como agora. Dentro de um mês esta clematite
se revestirá de flores purpúreas e, de ano em ano, as suas flores de púrpura
darão vida ao verde de suas folhas. Nós, porém, jamais reviveremos a nossa
mocidade. As pulsações da alegria que em nós se avivam aos vinte anos vão se
enfraquecendo; fatigam-se os nossos membros e amortecem, carregados, os nossos
sentidos!… Todos nos transformaremos em odiosos polichinelos, perseguidos
pela recordação do que nos aterrou, pelas exóticas tentações que não soubemos
corajosamente satisfazer… Juventude! Juventude! Nada há neste mundo, além da
Juventude!…”

Os
grandes olhos abertos. Dorian Gray ouvia, transportado… Um ramo de lilás
tombou de suas mãos ao chão. Uma abelha lançou-se sobre ele, volteou ao redor
um momento, zumbindo, e percebeu-se um arrepiamento geral nos glóbulos
estelares das pequenas flores. Dorian contemplava-as com esse estranho
interesse que tomamos pelas mais insignificantes coisas quando estamos
preocupados com problemas que nos assustam, quando nos enfastiamos de uma nova
sensação para a qual não descobrimos a expressão, ou quando nos aterramos
perante uma ideia obcecante, à qual nos sentimos forçados a ceder… A abelha
retomou logo o seu voo. Ele percebeu-a pousando no cálice pintalgado de uma
‘campanilha tyriana’. A flor dobrou-se e balançou-se no ar, docemente…

Subitamente,
o pintor apareceu à porta do atelier e fez-lhe reiterados sinais… Puseram-se
a rir um para o outro…


Espero-os. Voltem… A luz está muito boa agora e podem trazer as bebidas.

Ergueram-se,
e, preguiçosamente, caminharam ao longo do muro. Duas borboletas verdes e
brancas volitavam em frente de ambos e em uma pereira ao canto do muro, um
tordo pôs-se a cantar.

– Está
satisfeito, Mr. Gray, por me haver encontrado?… – perguntou lord Henry
fixando o outro.

– Sim,
sinto-me agora contente e creio que sempre me sentirei contente por isso!


“Sempre!…” É um vocábulo terrível, que me faz estremecer quando o
escuto: as mulheres o empregam tanto!…Com ele acabam todos os romances
tentando eternizá-los. É um vocábulo sem significação. A única diferença que
existe entre um capricho e uma eterna paixão é que o capricho… dura muito
mais tempo…

Como
fossem entrando no atelier, Dorian Gray pousou a mão no braço de lord Henry.

– Neste
caso, que a nossa amizade nunca passe de um capricho murmurou ele, enrubescendo
da sua própria audácia…

Subiu
depois ao estrado e retomou a sua posição…

Lord
Henry estendera-se numa larga poltrona de vime e observava… O vaivém do
pincel na tela e as passadas de Hallward, recuando para apreciar o efeito,
somente isso interrompia o silêncio. Nos raios oblíquos vindos pela porta
entreaberta voava a poeira dourada. O forte aroma das rosas carregava a
atmosfera.

Ao fim de
um quarto de hora, Hallward interrompeu o trabalho mirando alternativamente,
por muito tempo, Dorian Gray e o retrato, mordicando a ponta de um de seus
grandes pincéis, as sobrancelhas crispadas…

– Pronto!
– exclamou e, abaixando-se, assinou o seu nome em altas letras de vermelhão no
canto esquerdo da tela.

Lord
Henry foi contemplar o quadro. Era uma admirável obra de arte, de uma
semelhança maravilhosa.

– Meu
caro amigo – disse ele – deixa-me felicitar-te calorosamente. É o mais belo
retrato destes tempos. Mr. Gray, venha contemplar-se.

O
adolescente estremeceu, como despertado de algum sonho.

– Está
realmente terminado? – murmurou descendo do estrado.


Absolutamente terminado – confirmou o pintor – E tu hoje posaste como um anjo.
Sou-te agradecido como nunca.

– Isso
tudo é devido a mim – emendou lord Henry – Não é verdade, Mr. Gray?

Dorian
não respondeu; aproximou-se descuidadamente do seu retrato e pôs-lhe os
olhos… Quando o viu, surpreendeu-se e o rosto se lhe coloriu um momento, de
prazer. Um raio de alegria iluminou-lhe os olhos, porquanto ele se ‘reconhecia’
pela primeira vez. Ficou algum tempo imóvel, admirando, e na dúvida se Hallward
lhe falava, sem compreender a significação de suas palavras. O sentido de sua
própria beleza surgiu-lhe como uma revelação. Até então, nunca a percebera. Os
cumprimentos de Basil Hallward lhe haviam parecido simples exageros graciosos
de amizade. Ele os ouvira rindo e depressa os esquecera… seu caráter não
experimentara a influência dessas frases. Chegara lord Henry Wotton, com seu
estranho panegírico da mocidade e a advertência terrível de sua brevidade. Ele
havia sido tocado a propósito e, presentemente, em face da sombra de sua
própria beleza, sentia a plena realidade expandir-se em si.

Sim,
chegaria o dia em que sua face se encheria de pregas e rugas, seus olhos se
encovariam sem cor e ir-se–ia a graça de toda a sua pessoa, alquebrada e
deformada. Passaria o escarlate de seus lábios como desapareceria o ouro de sua
cabeleira. A vida, que lhe devera aperfeiçoar a alma, abater-lhe–ia o corpo.
Seria horrível, desfigurado, disforme…

Como
pensasse em tudo isso, uma sensação de dor aguda atravessou-o como um punhal e
deixou em estremecimento cada uma das delicadas fibras de seu ser…

Carregou-se
a ametista de seus olhos e obscureceu-os um sereno de lágrimas… Ele sentiu
que uma mão de gelo lhe comprimia o coração…

– Gostas
disso? – perguntou enfim Hallward, um pouco pasmado ante a mudez do
adolescente, que não compreendia…


Naturalmente, ele há de gostar – disse lord Henry – Por que não haveria de
gostar? É um dos mais nobres fragmentos da arte contemporânea. Eu te darei o
que quiseres por isso. Preciso disso!…

– Não me
pertence, Harry.

– A quem
pertence, então?

– É
boa!  A Dorian – respondeu o pintor.

– Ele é
feliz…

– Que
coisa profundamente triste – murmurava Dorian – os olhos fixos no retrato. Sim,
profundamente triste!… Eu ficarei velho, aniquilado, hediondo!… Esta
pintura continuará sempre fresca. Nunca será vista mais velha do que hoje,
neste dia de Junho… Ah!Se fosse possível mudar os destinos; se fosse eu quem
devesse conservar-me novo e se essa pintura pudesse envelhecer! Por isto eu
daria tudo!… Nada há no mundo que eu não desse… Até minha alma!…


Dificilmente conseguiria tal combinação! – bradou lord Henry numa risada…

– E eu,
de resto, opor-me–ia. – disse o pintor.

Dorian
Gray virou-se para este.

– Creio,
Basil… Tu amas muito mais a tua arte que os teus amigos. Diante de ti, eu não
sou nem mais nem menos que uma das tuas figuras de bronze. Apenas tanto;
antes…

O pintor
observou-o com espanto. Estava tão pouco habituado a ouvir Dorian exprimir-se
assim… Que haveria acontecido? Na verdade, ele mostrava-se desolado; seu
rosto ruborizara-se e as faces ardiam-lhe.

– Sim,
continuou ele, tu me estimas menos que ao teu Hermes de marfim ou ao teu Fauno
de prata. Hás de apreciá-los sempre. Quanto tempo gostarás de mim? Até
aparecer-me a primeira ruga, sem dúvida… Agora sei que quando perdemos os
encantos, quaisquer que sejam, perdemos tudo. Tua obra revelou-me isto. Lord
Henry Wotton tem toda a razão. A mocidade é a única coisa de valor. Quando
perceber que envelheço, hei de matar-me!

Hallward
empalideceu e tornou-lhe a mão.

– Dorian!
Dorian – gritou– não fales assim! Nunca tive um amigo igual a ti e jamais terei
outro! Tu não podes ter ciúmes de coisas materiais, não achas? Não és mais belo
que qualquer delas?

-tenho
ciúmes de tudo aquilo cuja beleza é imperecível. Tenho ciúmes do meu
retrato!…Por que deverá ele conservar o que eu hei de perder? Cada momento
que se escoa leva-me qualquer coisa e embeleza essa figura. Oh! Se pudéssemos
mudar! Se esse retrato pudesse envelhecer! Se eu pudesse conservar-me tal como
sou!…Por que pintaste isso? Que ironia! Um dia… Que ferina ironia!

Lágrimas
quentes cobriam-lhe os olhos e ele torcia as mãos… De repente, precipitou-se
para o divã e mergulhou a face nos coxins, de joelhos, como se orasse…

– Eis a
tua obra, Harry – apontou o pintor amargamente.

Lord
Henry encolheu os ombros.

– Eis o
verdadeiro Dorian Gray…

– Não é
tal…

– Se não
é, que mal fiz eu?

– Devias
ter partido quando te pedi–ciciou o outro.

– Fiquei
porque me pediste, respondeu lord Henry.

– Harry,
eu não quero agora brigar com meus dois melhores amigos, mas, por culpa de
vocês dois, começo a detestar o que até hoje produzi de mais fino e vou
destruir esse trabalho. Que é, afinal, uma tela com tintas? Não quero que isso
possa apagar nossas três vidas.

Dorian
Gray ergueu sua cabeça dourada do monte das almofadas e viu o pintor caminhando
em direção a uma mesa colocada sob as grandes cortinas da janela. Que iria
fazer? Seus dedos, entre uma porção de bisnagas de estanho e pincéis secos,
procuravam qualquer coisa. Uma lâmina fina de aço flexível, a faca da
palheta… Encontrou-a! Ia rasgar a tela…

Comprimindo
soluços, o jovem saltou do divã e, atirando-se sobre Hallward, arrancou-lhe a
faca das mãos, arremessando-a ao fundo do atelier.

– Basil,
eu te peço!… Seria um assassínio!


Alegra-me ver-te apreciar enfim a minha obra – disse o pintor friamente,
readquirindo nova calma. Nunca esperei isso de ti…


Apreciá-la?… Eu a adoro, Basil. Sinto nela um pouco de mim mesmo.

– Então,
bem! Logo que “tu” secares, “tu” serás envernizado,
emoldurado e expedido à tua casa. Aí, farás o que te convier de “ti
mesmo”.

Basil
Hallward atravessou a sala e tocou a campainha para o chá.

– Queres
chá, Dorian? E tu também, Harry? Ou pretendem apresentar alguma objeção a estes
simples prazeres?

– Adoro
os prazeres simples – disse lord Henry. São os últimos refúgios dos seres
complexos. Não gosto, porém, das… cenas, a não ser nos tablados. Que
extravagantes são vocês dois! Estranho que se haja definido o homem um animal
racional; essa definição, olhem como foi prematura. O homem pode ser muita coisa,
mas não é racional… De resto, estimo que não o seja… Desejo antes de tudo
que vocês não briguem por causa desse retrato. Ouve, Basil, faria melhor
dando-me esse mau menino. Preciso mais dele que Dorian.

– Se o
deres a outro e não a mim, Basil, eu nunca te perdoarei – bradou Dorian Gray –
e não permito a ninguém que me qualifique de péssimo rapaz…

– Tu
sabes que este quadro te pertence, Dorian. Eu já to dera antes de fazê-lo.

– E você
também sabe que foi um bocadinho mau, Mr. Gray, e que não pode revoltar-se
quando alguém lhe lembrar de que é extremamente jovem.

– Nesta
manhã, ter-me–ia zangado.

– Ah!
Esta manhã! Você já viveu depois…

Bateram à
porta e entrou o mordomo, com uma bandeja de chá, que colocou sobre uma pequena
mesa japonesa. Ouviu-se um ruído de xícaras e pires, o chiar de uma chaleirinha
estriada da Geórgia… Um criado trouxe dois vasos chineses de forma globular.
Dorian Gray ergueu-se e serviu o chá. Os dois outros se dirigiram
preguiçosamente até a mesa e examinaram o que havia sob as cobertas dos pratos.

– Vamos
ao teatro esta noite – convidou lord Henry – Deve haver qualquer coisa de novo.

– Prometi
jantar em casa de White, mas como é um velho amigo, posso telegrafar-lhe
dizendo-me indisposto ou que não posso ir devido a um compromisso posterior.
Penso que assim apresentaria uma desculpa correta; teria todo o encanto da
candura.

– É
fatigante vestir-se uma casaca – ajuntou Hallward – e depois que se veste
fica-se abominável.

– Sim –
respondeu lord Henry – abstratamente, as vestes do século XIX são detestáveis.
São sombrias, deprimentes… O pecado é realmente o único elemento de algum
colorido na vida moderna.

– Tu não
deverias dizer tais coisas diante de Dorian, Harry.

– Diante
de que Dorian?… O que nos serve o chá ou aquele do quadro?

– Diante
de ambos.

– Eu
gostaria de ir ao teatro consigo, lord Henry – confessou o mancebo.

– Pois
bem, venha, assim como tu também, não é, Basil?

– Eu não
posso, francamente… Prefiro ficar, tenho muito que fazer.

– Pois
bem; então eu e você, Mr. Gray, sairemos juntos.

– Com
muito prazer.

O pintor
mordeu os lábios e, com a xícara na mão, dirigiu-se para o retrato.

– Eu
ficarei com o Dorian Gray real – disse tristemente.

– Aí está
o Dorian Gray real? – perguntou o original do retrato, avançando na mesma
direção. Sou realmente como esse?

– Sim, tu
és como ele.

– É
deveras maravilhoso, Basil.

– Ao
menos, és o mesmo em aparência… Mas este não mudará jamais… – acrescentou
Hallward. – É alguma coisa.

– Quanta
coisa a propósito da fidelidade! – exclamou lord Henry. Mesmo no amor, é uma
pura questão de temperamento e nada tem que ver com a nossa própria vontade. Os
moços querem ser fiéis e não são; os velhos querem ser infiéis e não podem: eis
tudo quanto se sabe.

– Não vás
ao teatro esta noite, Dorian… – pediu Hallward. – Fica para jantar comigo.

–Não
posso, Basil.

– Por
quê?

– Porque
já prometi a lord Henry Wotton ir com ele.

– Ele não
reparará muito se faltares à palavra; sempre falta à sua. Peço-te que não vás.

Dorian
Gray pôs-se a rir balançando a cabeça.


Suplico-te!…

O rapaz
hesitava; lançou um olhar a lord Henry, que os espiava da mesa onde tomava o
chá, sorrindo divertido.

– Quero
sair, Basil, decidiu enfim.

– Muito
bem – concordou Hallward – indo depositar a xícara na bandeja. Já é tarde; e
como vocês precisam vestir-se, fariam bem em não perder tempo. Até a vista,
Harry! Até a vista, Dorian! Vem ver-me cedo amanhã, se for possível.

–Com
certeza…

– Não te
esqueças…


Naturalmente…

– E…
Harry?

– Eu
também, Basil.


Lembra-te do que te pedi esta manhã, no jardim…

– Já não
me lembro…

– Eu
conto contigo.

– Eu bem
quisera poder contar comigo… – disse sorrindo lord Henry. – Venha, Mr. Gray,
tenho o cabriolé à espera. Deixá-lo–ei em casa. Adeus, Basil! Obrigado pela tua
tarde encantadora.

A porta
cerrou-se sobre os hóspedes; o pintor então se atirou a um sofá e uma expressão
de amargura estampou-lhe no rosto.

 

III

 

No dia
seguinte, às doze e meia, lord Henry Wotton dirigia-se de Curzon Street a
Albany, para ver seu tio, lord Fermor, um velho solteirão alegre, embora de
maneiras rudes, qualificado de egoísta pelos estranhos que dele nada tiravam,
mas considerado generoso pela sociedade, pois sustentava os que sabiam
diverti-lo. Seu pai havia sido nosso embaixador em Madri, no tempo em que a
Rainha Isabel era jovem e desconhecida. Deixara, porém, a diplomacia por um
capricho, em um momento de contrariedade, por não lhe haverem oferecido a
embaixada de Paris, posto para o qual se considerava como particularmente
designado em razão do seu nascimento, da sua indolência, do bom inglês de seus
despachos e da sua paixão pouco comum pelo prazer. O filho, que havia sido
secretário do pai, demitira-se na mesma ocasião, um pouco levianamente, pensara
então; e tendo-se tornado, alguns meses após, chefe de sua casa, entregava-se
seriamente ao estudo da arte ultra-aristocrática de nada fazer, absolutamente.
Possuía duas grandes casas na cidade, mas preferia viver no hotel para
poupar-se aos embaraços, e tomava a maior parte de suas refeições no clube.
Ocupava-se da exploração de suas minas carboníferas, nos condados do centro,
mas dispensava essa tinta de industrialismo, dizendo que o fato de possuir
carvão oferecia a vantagem de permitir a um ‘gentleman’ queimar decentemente
madeira em sua chaminé. Em política, era um Tory, exceto quando os Turies
subiam ao poder; nessas ocasiões nunca deixava de acusá-los por formarem um
“bando de radicais”. Era um herói perante seu criado, que o
tiranizava, e o terror de seus amigos, que ele tiranizava também. Somente a
Inglaterra poderia produzir tal homem e ele sempre afirmava que o país
“andava aos cães”. Seus princípios eram insólitos, mas haveria muito
que dizer a favor de seus prejuízos.

Quando
lord Henry penetrou no quarto, encontrou seu tio assentado, metido num grosso
hábito de caçada, fumando um charuto e rosnando sobre um numero do ‘Times’.

– Muito
bem, Harry! – disse o velho ‘gentleman’. Que traz tão cedo? Pensei que vocês,
dândis, não se levantassem antes de duas horas e não se deixassem ver antes das
cinco.

– Pura
afeição familiar, eu lhe asseguro, tio George, e depois porque tenho
necessidade de pedir-lhe alguma coisa.


Dinheiro, suponho – disse lord Fermor, fazendo uma careta. –Enfim, sente-se e
diga-me do que se trata. Os moços, hoje, imaginam que o dinheiro é tudo.

– Sim –
murmurou lord Henry, abotoando o capote. – E quando se tomam velhos, ficam com
a certeza, mas não preciso de dinheiro. Só os que pagam as suas dívidas
precisam disso, tio George, e eu nunca pago as minhas. O crédito é o capital de
um moço e vive-se de um modo admirável. Demais, estou sempre em negociações com
os fornecedores de Dartmoor e eles nunca me inquietam. Preciso de umas
informações, não úteis, seguramente, mas inúteis.

– Bem!
Posso dizer-lhe tudo quanto contém um ‘Livro Azul’ inglês, embora seus autores,
hoje, só escrevam asneiras. Quando fui diplomata, as coisas corriam melhor.
Ouvi, porém, dizer que hoje eles são escolhidos depois de exames. O que querem?
Os exames, meu senhor, são uma pura pilhéria. Se o homem é um ‘gentleman’, sabe
bastante; se não é, tudo o que aprender será em seu prejuízo!

– Mr.
Dorian Gray não pertence ao ‘Livro Azul’, tio George – disse lord Henry
languidamente.

– Mr.
Dorian Gray? Quem é? – perguntou lord Fermor franzindo as sobrancelhas brancas
e emaranhadas.

– Eis o
que eu venho saber, tio George. Ou antes, eu sei quem ele é. É o último neto de
lord Kelso. Sua mãe era uma Devereux, lady Margaret Devereux; eu queria que me
falasse dela. Como era? Com quem foi casada? O senhor conheceu quase todo o
mundo do seu tempo e, assim, talvez a conhecesse. Interesso-me muito por Mr.
Gray neste momento. Conheci-o, há pouco.

– O neto
de Kelso! – repetiu o velho ‘gentleman’. O neto de Kelso… com
certeza…conheci intimamente sua mãe. Creio bem que assisti ao seu batismo.
Era uma rapariga extraordinariamente bela essa Margaret Devereux. Desvairou
muitos homens e fugiu com um rapaz sem vintém, um tipo nulo inferior em um
regimento de infantaria ou qualquer coisa assim… Certamente, eu não me lembro
do caso como se tivesse passado ontem. O pobre diabo foi morto num duelo em
Spa, alguns meses após o seu casamento. Há uma ignóbil história, a propósito.
Conta-se que Kelso assalariou um baixo aventureiro, qualquer bruto belga, para
insultar seu genro em público; pagou-lhe para fazer isso, o miserável espetou a
vítima como um simples pombo. O caso foi abafado, mas, conforme verifiquei,
tempos depois, Kelso comia isolado a sua costeleta no clube. Retomou a filha,
segundo me disseram; ela, porém, nunca mais lhe dirigiu uma palavra, Oh! Sim,
foi um caso ignóbil! A filha morreu um ano depois. E deixou então um filho? Já
não me lembrava disso. Que tal é esse rapaz? Se parece com sua mãe, deve ser
lindo.

– É uma
beleza – afirmou lord Henry.

– Espero
que ele caia em boas mãos – continuou o velho ‘gentleman’. –Deve possuir uma
boa soma que o espera, se Kelso dispôs bem os negócios a seu respeito. Sua mãe
tinha também fortuna. Todas as propriedades de Selby deviam pertencer-lhe, por
seu avô. Este detestava Kelso, por julgá-lo um horrível Harpagon. E ele o era,
com efeito. Foi uma vez a Madri, quando eu ali estava… Palavra! Tive
vergonha! A rainha perguntava-me quem era esse fidalgo inglês, que
constantemente brigava com os cocheiros por ocasião de pagar-lhes. Foi uma
história comprida. Durante um mês, não tive coragem de apresentar-me à Corte.
Espero que ele tenha tratado melhor o neto.

– Não sei
– respondeu lord Henry. – Suponho que o rapaz deve estar muito bem. Não é
maior. Sei que possui Selby; já me disse. E… sua mãe era verdadeiramente
bela!


Margaret Devereux era uma das mais adoráveis criaturas que já vi, Harry. Nunca
compreendi por que procedesse daquela forma. Ela poderia desposar outro
qualquer: Carlington estava louco de paixão. Ela era, sem dúvida, romanesca,
como todas as mulheres dessa família. Os homens pouco valiam, mas as mulheres
eram maravilhosas! Carlington rojava-se a seus pés, como ele próprio me disse.
Ela ria e, entretanto, não havia em Londres moça que não andasse atrás dele. E,
a propósito desta referência a casamentos ridículos, que farsa é essa, Harry,
que ouvi de seu pai, a respeito de Dartmoor, que quer casar-se com uma
americana? Já não há mais jovens inglesas que o satisfaçam?

– Tio
George, é muito elegante, no momento, o enlace com americanas.

– Eu
sustentarei as inglesas contra o mundo inteiro, Harry! – bradou lord Fermor
batendo com o punho na mesa.

– As
apostas são pelas americanas.


Disseram-me que não têm resistência – rosnou o tio.

– Uma
longa corrida talvez as fatigue, mas são superiores no ‘steeple-chase’. Apanham
as coisas voando; creio que Dartmoor não terá muita sorte.

– A que
mundo pertence? – interrogou o velho ‘gentleman’. – Terá muito dinheiro?

Lord
Henry balançou a cabeça.

– As
americanas são tão hábeis em ocultar a parentela, como as inglesas em
dissimular o passado – disse levantando-se para partir.

– São
negociantes de porcos, penso eu.

– Espero
que o sejam, tio George, para felicidade de Dartmoor. Ouvi dizer que a venda de
porcos é, na América, a profissão mais lucrativa depois da política.

– A dele
é bonita?

– Pelo
menos se apresenta como se fosse. Muitas americanas assim procedem. É o segredo
de seus encantos.

– Por que
as americanas não se conservam no seu país? Repetem sem cessar que a América é
um paraíso para as mulheres.

– E é
verdade; daí a razão pela qual, como Eva, elas têm tamanha pressa em
abandoná-lo – disse lord Henry. Até a vista, tio George, se me demoro mais,
perco a hora do almoço; obrigado pelas suas boas informações. Gosto sempre de
conhecer tudo quanto diz respeito a meus novos amigos, mas nada indago sobre os
antigos.

– Onde
almoça, Harry?

– Em casa
de tia Agatha. Lá vou convidado com Mr. Gray, que é seu último protegido.

– Oh!
Diga, pois, à sua tia Agatha, Harry, que não me atormente mais com as suas
obras de caridade. Estou exausto. A boa senhora entende que não tenho outra
coisa a fazer de melhor senão assinar cheques em favor dos seus exploradores.

– Muito
bem, tio George, hei de dizer-lhe, mas não creio que produza o menor efeito. Os
filantropos perderam toda a noção de humanidade. E o seu caráter distintivo.

O velho
‘gentleman’ murmurou uma vaga aprovação e tocou a campainha para chamar o
criado. Lord Henry dirigiu-se pela arcada baixa de Burlington Street e tomou o caminho
de Berkeley Square.

Tal era,
com efeito, a história dos pais de Dorian Gray. Assim cruamente relatada, ela
havia abalado lord Henry como um estranho e moderno romance. Uma linda mulher
arriscando tudo por uma louca paixão. Algumas semanas de felicidade solitária,
de repente destruída por um crime hediondo e pérfido. Meses de agonia
silenciosa e, por fim, um filho nascido entre lágrimas.

A mãe
carregada pela morte e o filho abandonado à tirania de um velho sem coração.
Sim, era um fundo de quadro bem curioso. Enquadrava o mancebo, fazendo-o mais
interessante, melhor do que realmente era… No fundo de tudo quanto é
delicado, encontra-se assim qualquer coisa de trágico. A terra esforça-se por
fazer nascer a flor mais humilde… Como ele estivera encantador, durante o
jantar da véspera, quando, com os belos olhos e os lábios trêmulos de prazer e
receio, assentara-se, no clube, à sua frente, recebendo das luzes avermelhadas,
um novo tom róseo no semblante maravilhado. Falar-lhe era como tanger-se um instrumento
estranho. Ele respondia a tudo, vibrava ao menor toque… Havia qualquer coisa
de extremamente sedutor na ação dessa influência; nenhum exercício seria
comparável. Projetar a alma sob uma forma graciosa, deixá-la um instante
repousar e ouvir em seguida as próprias ideias repetidas como por um eco, com
toda a música da paixão e da mocidade; infiltrar o próprio temperamento em
outro, assim como um fluido sutil ou um estranho perfume: havia nisso um
verdadeiro gozo, talvez, o mais completo dos nossos gozos em um tempo tão
limitado e vulgar como o nosso, tempo grosseiramente carnal em seus prazeres,
comum e baixo em suas aspirações… É que esse adolescente, casualmente
encontrado no atelier de Basil, era um maravilhoso espécime da humanidade: não
se poderia criar mais absoluto tipo de beleza. Ele encarnava a graça, a branca
pureza da adolescência, todo o esplendor que nos conservaram os mármores
gregos. Desse modelo era possível tirar tudo. Dele se poderia formar um titã ou
um brinquedo. Que desgraça estar tal beleza destinada a fanar-se!… E Basil,
como era interessante, sob o ponto de vista do psicólogo! Uma arte nova, uma
maneira inédita de conhecer a existência sugerida pela simples presença de um
ser inconsciente de tudo isso; era o espírito silencioso, vivendo no fundo das
matas e percorrendo a planície, que se mostrava, de repente. Dríade corajosa,
porque na alma que o buscava havia sido evocado a maravilhosa visão pela qual
são unicamente reveladas as coisas maravilhosas; as simples aparências das coisas
magnificando-se até o símbolo, como se não fossem senão a sombra de outras
formas mais perfeitas que elas tomariam palpáveis e visíveis… Como tudo isso
era curioso! Ele lembrava-se de qualquer coisa análoga na história. Não seria
Platão, esse artista do pensamento, quem primeiro o havia analisado? Não seria
Buonarotti quem o cinzelara no mármore policrômico de uma série de sonetos?
Mas, no nosso século, era extraordinário. Sim, ele procuraria ser junto a
Dorian Gray o que, sem o saber, o adolescente era para o pintor, que lhe havia
traçado esplendido retrato. Ele tentaria dominá-lo, como aliás, já havia feito.
Faria seu esse ser maravilhoso. Havia qualquer coisa de fascinante nesse filho
de Amor e de Morte.

Súbito,
lord Henry parou e espiou as fachadas. Percebeu que havia ido além da casa de
sua tia e, sorrindo intimamente, voltou. Penetrando no vestíbulo, o mordomo
disse-lhe que já se achavam à mesa. Entregou o chapéu e a bengala ao criado e
penetrou na sala de Jantar.


Retardado, como habitualmente, Harry – gritou-lhe sua tia sacudindo a cabeça.

Lord
Henry inventou uma desculpa qualquer e, assentando-se na cadeira desocupada
junto dela, olhou os convivas. Dorian, na ponta da mesa, inclinou-se
timidamente para ele, com um rosado de satisfação nas faces. Em frente,
achava-se a Duquesa de Harley, mulher de um admirável e excelente caráter,
amada de todos os que a conheciam, possuindo essas proporções amplas e
arquiteturais que os nossos historiadores contemporâneos chamam obesidade,
quando não se trata de uma Duquesa. Tinha à sua direita Sir Thomas Burdon,
membro radical do Parlamento, que abria caminho na vida pública e na vida
privada, inquietando-se com as coisas mais insignificantes, jantando com os
Tories e opinando com os liberais, segundo uma regra muito sábia e muito
conhecida. O lugar à esquerda era ocupado por Mr. Erskine de Treadley, velho
gentil, homem muitíssimo simpático e cultivado, que se habituara de forma
desagradável ao silêncio, havendo, como uma vez dissera lady Agatha, dito tudo
quanto tinha a dizer, antes da idade de trinta anos. A vizinha de lord Henry
era a senhora Vandeleur, uma das velhas amigas de sua tia, uma santa entre as
mulheres, mas tão ridiculamente vestida que lembrava um livro de rezas mal
encadernado. Felizmente para lord Henry, ela tinha a seu lado lord Faudel,
mediocridade inteligente e entre duas idades, tão calvo como uma exposição
ministerial à Câmara dos Comuns, com quem ela conversava num tom intensamente
sério, imperdoável erro em que tombam e ao qual não podem escapar as excelentes
pessoas.


Falávamos desse jovem Dartmoor, lord Henry – exclamou a Duquesa, fazendo-lhe
alegremente sinais por cima da mesa. 
Acredita que se case realmente com essa sedutora rapariga?

– Penso,
Duquesa, que ele está na intenção de pedi-la.

– Que
horror! – bradou lady Agatha, mas alguém há de intervir.

– Sei de
boa fonte que seu pai é dono de uma loja de novidades na América – disse Sir
Thomas Burdon com desdém.

– Meu
tio, supunha-os negociantes de porcos.

– Sir
Thomas, novidades? Que são novidades americanas? – perguntou a Duquesa
levantando a mão num gesto de espanto.


Romances americanos! – respondeu lord Henry, tomando um pedaço de codorna.

A Duquesa
sentiu-se embaraçada.

– Não
preste atenção ao que ele diz, minha cara, – interveio lady Agatha – não sabe
nunca o que diz.

– Quando
foi descoberta a América… – disse o radical, iniciando uma fastidiosa
dissertação.

E como
todos os que ensaiam esgotar um assunto, esgotava a paciência dos ouvintes. A
Duquesa suspirou e usou o direito de interromper.

– Antes
quisesse Deus que nunca a tivessem descoberto! – exclamou – Nossas filhas não
têm hoje boa sorte; é absolutamente injusto!

– Afinal,
talvez a América nunca tenha sido descoberta – disse Mr. Erskine – Por mim, eu
diria de boa vontade que ela é apenas conhecida.

– Mas já
vimos espécimes de suas habitantes – retrucou a Duquesa num tom vago. Devo
confessar que são, na maior parte, muito bonitas. E vestem-se bem. Vestem-se
todas em Paris. Quisera poder fazer outro tanto.

– Dizem
que quando os bons americanos morrem vão à Paris – ciciou Sir Thomas, que
conservava uma ampla reserva de palavras fora de uso.

– É
verdade! E para onde vão os maus americanos mortos? – indagou a Duquesa.

– Vão à
América – informou lord Henry.

Sir
Thomas encrespou a testa.

– Receio
que seu sobrinho – disse ele a lady Agatha –, tenha-se prevenido contra esse
grande país; eu o percorri em trens fornecidos pelos governos que, em casos
tais, são extremamente civis; asseguro-lhe que essas visitas são um ensino.

– É, porém,
necessário visitarmos Chicago para a nossa educação? – perguntou queixosamente
Mr. Erskine… Pouco espero da viagem.

Sir
Thomas ergueu as mãos.

–Mr.
Erskine de Treadley pouco se importa com o mundo. Nós outros, homens práticos,
estimamos ver as coisas por nós mesmos, em vez de ler o que se conta. Os
americanos são um povo extremamente interessante. São absolutamente
competentes. Nisso está o seu caráter distintivo. Sim, Mr. Erskine, um povo
absolutamente racional; eu lhe asseguro que não se notam parvoíces entre os
americanos.

– Que
horror! – clamou lord Henry, posso admitir a força brutal, mas a razão brutal é
insuportável! Há qualquer coisa de injusto no seu império. Confunde a
inteligência.

– Não o
compreendo – disse Sir Thomas, um pouco enrubescido.

– Eu, por
mim, compreendo – murmurou Mr. Erskine com um sorriso.

– Os
paradoxos assentam bem… – observou o baronete.


Trata-se de um paradoxo? – perguntou Mr. Erskine – Não o creio. É possível, mas
o caminho do paradoxo é o da verdade. Para experimentar a realidade é preciso
vê-la na corda bamba. Quando as verdades se fazem acrobatas, então podemos
julgá-las.

– Meu
Deus! – interrompeu lady Agatha – Como falam os homens!… Nunca poderei
compreendê-los! Mas, Harry, é contigo que estou zangada! Por que tentas
persuadir o nosso gentil Mr. Dorian Gray de que deve abandonar East End?
Asseguro-te que aí seria admirado. Admirariam muito o seu talento!

– Desejo
que ele toque só para mim – declarou lord Henry sorrindo, e olhando até a ponta
da mesa, colheu um olhar brilhante que lhe respondia.

– São,
porém, tão infelizes os de Whitechapel – continuou lady Agatha.

– Posso
simpatizar com aquilo que entender, exceto com o sofrimento – disse lord Henry,
levantando os ombros. Com isso não! É muito feio, muito atroz, muito aflitivo.
Há não sei o quê de terrivelmente doentio na piedade moderna. Podemos
emocionar-nos com as cores, a beleza, a alegria de viver. Isto vale muito mais,
quanto menos nos referimos a chagas sociais.


Entretanto, East End oferece um importante problema – disse gravemente Sir
Thomas meneando a cabeça.


Exatamente, – acentuou o jovem lord – É o problema da escravidão e nós tentamos
resolvê-lo divertindo os escravos.

O
político fixou-o com ansiedade:

– Que
reformas proporia, então?

Lord
Henry pôs-se a rir.

– A não
ser a temperatura, eu nada desejo reformar na Inglaterra – respondeu – sinto-me
perfeitamente satisfeito com a contemplação filosófica. Como, porém, o século
XIX extingue-se pela bancarrota, com seu exagerado dispêndio de simpatia, eu
proporia um apelo à ciência para nos indicar o caminho direito. O mérito das
emoções é o de desvairar-nos e o mérito da ciência está em não emocionar.

– Nós,
porém, temos tamanhas responsabilidades… – insinuou timidamente a senhora
Vandeleur.

– Imensamente
graves! – repetiu lady Agatha.

Lord
Henry olhou Mr. Erskine:

– A
humanidade se sujeita muito aos sérios; é o pecado original do mundo. Se os
homens das cavernas soubessem rir, a História teria sido bem diferente.

– O
senhor é deveras confortante, – murmurou a Duquesa – eu me sentia sempre um
pouco culpada quando vinha ver sua cara, tia, pois não descubro o menor
interesse em East End. De hoje em diante, serei capaz de olhá-la sem corar.

– O rubor
é muito oportuno Duquesa – observou lord Henry.

– Somente
quando se é moça – respondeu ela – mas quando uma velha, como eu, enrubesce, é
mau sinal. Ah! Lord Henry, quanto desejaria que me ensinasse a voltar à
juventude!

Ele
refletiu um instante.

– Poderá
a senhora lembrar-se de um grande pecado que haja cometido nos seus primeiros
anos? –consultou ele, mirando-a por sobre a mesa.

– Um
grande número, receio – exclamou ela.

– Pois
bem! Cometa novos ainda – propôs ele gravemente. Para nos remoçarmos o melhor é
recomeçarmos as nossas loucuras.

– É uma
deliciosa teoria. Terei de pô-la em prática.

– Uma
perigosa teoria – opinou Sir Thomas franzindo os beiços.

Lady
Agatha meneou a cabeça, mas não conseguiu mostrar-se divertida. Mr. Erskine
escutava.

– Sim, –
prosseguiu lord Henry – é um dos grandes prazeres da vida. Hoje, muita gente
morre desse bom senso esparramado, e só muito tarde percebe que as únicas
coisas saudosas são os seus próprios erros.

Espalhou-se
um riso pela mesa…!

Lord
Henry recreava-se com a ideia, lançando-a, transformando-a, deixando-a escapar
para recolhê-la no voo, irisando-a com a imaginação e alçando-a nos paradoxos.
O elogio da loucura atingiu a filosofia, uma filosofia modernizada, cheia da
estonteante música do prazer, vestida de fantasia, a túnica maculada de vinho e
guarnecida de heras, dançando como uma bacante sobre as colinas da vida e
motejando o gordo Sileno pela sua sobriedade. Os fatos fugiam diante dela como
as ninfas ariscas. Seus pés brancos pisavam o enorme lagar onde o sábio Ornar
se assentava; uma onda purpúrea e fervente inundava-lhe os membros nus,
derramando-se como uma lava espumante pelos negros flancos da tina. Foi um
improviso extraordinário. Ele percebeu que os olhares de Dorian Gray nele se
fixavam, e a consciência de que no meio do seu auditório havia um ente que ele
queria fascinar parecia aguçar-lhe o espírito e emprestar maior colorido à sua
imaginação. Lord Henry esteve brilhante, fantástico, inspirado. Encantou os
seus próprios ouvintes, que escutaram até o fim essa alegre ária de flauta.
Dorian Gray não lhe tirara os olhos de cima, como sob um feitiço, os sorrisos
emendavam-se lhe nos lábios e o espanto agravava-se nos seus olhos sombrios.

Enfim, a
realidade, em libré moderna, voltou à sala de jantar sob o aspecto de um
criado, vindo anunciar à Duquesa que a carruagem a esperava. Ela torceu os
braços num cômico desespero.

– Que
maçada! – disse ela – É preciso que eu parta, pois devo encontrar meu marido no
clube, a fim de irmos a um absurdo ‘meeting’, que ele presidirá em Willis
Rooms. Se me demorar, ficará furioso, e eu não posso provocar uma cena com este
chapéu. É fragílimo. A menor palavra o poria em pedaços. Não, é preciso partir,
cara Agatha. Até ver, lord Henry; o senhor é francamente delicioso e
terrivelmente desmoralizador. Não sei o que dizer de suas ideias. É preciso que
venha jantar em nossa casa. Terça–feira, por exemplo, estará livre?


Duquesa, abandonarei por si todo o mundo – afirmou lord Henry com uma
reverência.

– Ah! É
muito gentil, mas pode esquecer. Pense em vir.

E saiu
majestosamente, acompanhada de lady Agatha e das outras damas.

Quando
lord Henry tornou a sentar-se, Mr. Erskine torneou a mesa e, tomando junto dele
uma cadeira, pôs-lhe a mão num dos braços.

– Fala
como um livro – disse-lhe – e por que não escreve?

– Gosto
demasiado de lê-los para ter de escrevê-los, Mr. Erskine.

Teria,
efetivamente, prazer em preparar um romance, mas um romance que fosse tão
adorável quanto um tapete da Pérsia e também irreal. Infelizmente, não existe
público literário na Inglaterra, exceto para jornais, bíblias e enciclopédias;
o sentido da beleza literária os ingleses o possuem menos do que todos os povos
do mundo.

– Não tem
razão – replicou Mr. Erskine – eu próprio já tive ambições literárias, mas as
abandonei, há muito tempo. Agora, meu caro e jovem amigo, se me permitir que
assim o trate, posso saber se realmente pensa tudo o que nos disse almoçando?


Esqueci-me totalmente do que disse – respondeu sorrindo lord Henry –Pronunciei
alguma coisa de mal?

– Muito,
mas o considero extremamente perigoso e, se qualquer incidente prejudicar a
nossa boa Duquesa, todos nós o julgaremos como o principal responsável. Sim,
gostaria de conversar consigo sobre a vida. A geração a que pertenço é
aborrecida. Um dia, quando estiver fatigado da vida de Londres, venha a
Treadley para me expor a filosofia do prazer, saboreando um admirável Bourgogne
que tenho a felicidade de possuir.

– Irei
com muito gosto; uma visita a Treadley é um grande favor. O dono da casa é
perfeito e a biblioteca igualmente.


Completará o conjunto – acrescentou o velho ‘gentleman’ com uma saudação cortês
– E agora é preciso que eu me despeça de sua excelente tia. Sou esperado no
Athenoeum. É a hora em que nós ali dormimos.

– Todos,
Mr. Erskine?


Quarenta dentre nós, em quarenta poltronas. Trabalhamos em uma academia
literária inglesa.

Lord
Henry sorriu e ergueu-se.

– Vou ao
Parque – disse ele.

Como ia
saindo, Dorian Gray tocou-lhe no braço:


Deixe-me ir consigo – murmurou.

– Pensei
que houvesses prometido a Basil Hallward ir vê-lo.

– Quero,
porém, acompanhá-lo primeiro; sim, sinto que preciso acompanhá-lo. Consente?…
E espero que me fale constantemente. Ninguém fala como você.

– Ah! Mas
já falei hoje bastante – observou lord Henry sorrindo -o que desejo agora é
examinar. Pode vir comigo, observaremos juntos, se quiser.

 

IV

 

Numa
tarde, um mês depois, Dorian Gray achava-se estendido em uma luxuosa poltrona,
na pequena biblioteca da casa de lord Henry, em Mayfair. A biblioteca era, no
gênero, um atraente retiro, com altos forros lavrados de carvalho azeitonado, a
frisa e o teto creme destacando da moldura, e o tapete persa, cor de tijolo, de
longas franjas de seda. Sobre uma mesinha de madeira brunida, havia uma
estatueta de Clodion, ao lado de um exemplar das ‘Cem Novelas’, encadernado
para Margarida de Valois por Clovis Eva, e semeado de boninas de ouro,
escolhidas como emblema por essa rainha. Em grandes vasos azuis da China,
achavam-se dispostas tulipas listradas sobre o pano da chaminé, a viva luz
adamascada de um dia de verão londrino entrava farta através dos pequenos
losangos de chumbo das janelas.

Lord
Henry ainda não havia entrado. Ele andava sempre atrasado por princípio, sendo
de opinião que a pontualidade era um roubo de tempo. O adolescente parecia, assim,
contrariado, folheando descuidadamente com o dedo uma edição ilustrada de Manon
Lescaut, que encontrara numa das prateleiras da biblioteca. Incomodava-o
tique–taque monótono do relógio Luís XIV. Uma vez ou duas, lembrara-se de
partir…

Enfim,
percebeu ruído de passos fora e a porta abriu-se.

– Como
chega atrasado, Harry – murmurou ele.

– Receio
que não se trate de Harry, Mr. Gray – falou uma voz clara.

Ele abriu
vivamente os olhos e endireitou-se…

– Peço
perdão. Pensava…


Acreditava que fosse meu marido. É apenas sua esposa. É preciso que eu me
apresente por mim mesma. Conheço-o muito bem pelas suas fotografias. Creio que
meu marido possui ao menos dezessete…

– Não;
como dezessete, lady Henry?

–Bom,
então dezoito. E ainda à noite passada o vi em sua companhia, na Ópera.

Ela ria
nervosamente falando-lhe e observava-o com seus olhos de miosótis. Era uma
curiosa mulher, cujos vestidos pareciam concebidos em acessos de raiva e
preparados sob uma tempestade.

Estava
sempre intrigada com alguém e, como seu amor jamais fora correspondido,
conservava todas as ilusões. Procurava parecer pitoresca, mas só conseguia ser
desordenada.

Chamava-se
Victoria e tinha a mania inveterada de ir à igreja.

– Foi
durante o ‘Lohengrin’, lady Henry?

– Sim,
foi durante esse precioso ‘Lohengrin’. Amo Wagner mais que ninguém. E tão
ruidoso, que se pode conversar durante todo o tempo sem ser ouvida. É uma
grande vantagem, não concorda, Mr. Gray?…

O mesmo
riso nervoso escapou de seus lábios finos e ela começou a brincar com um longo
corta–papel de escamas.

Dorian
sorriu, abanando a cabeça.

– Receio
não ser da mesma opinião, lady Henry; eu nunca falo durante a música, pelo
menos durante a boa música. Se ouvir má música, é dever abafá-la com o rumor da
conversa.

– Ah! Aí
está uma ideia de Harry, não é, Mr. Gray? Apanho sempre as suas opiniões por
meio de seus amigos; é mesmo o único meio que tenho para conhecê-las. Não
pense, porém, que não gosto da boa música. Adoro-a, posto que me atemorize;
faz-me um pouco romanesca. Tenho simplesmente um culto pelos pianistas, já
adorei dois de uma só vez, como me dizia Harry. Nem sei o que eram; talvez
fossem estrangeiros. Quase todos o são, até mesmo os nascidos na Inglaterra,
não é verdade? É uma habilidade da parte deles e uma homenagem prestada à arte
o fazê-la cosmopolita. Mas por que não vem às minhas reuniões, Mr. Gray? É
preciso vir. Não posso oferecer orquídeas, mas não poupo despesa alguma para
atrair os estranhos. Eles se prestam a uma camaradagem tão pitoresca… Eis
Harry! Harry, eu vinha pedir-te qualquer coisa, não sei mais o quê, e aqui
encontrei Mr. Gray. Tivemos uma palestra divertida, a propósito da música.
Temos afinal as mesmas ideias. Não! Creio que divergimos, mas ele foi
verdadeiramente amável. Sinto-me muito contente por havê-lo descoberto.

– Estou
enlevado, minha querida, todo enlevado – disse lord Henry, soerguendo as
sobrancelhas negras e arqueadas e contemplando os dois com um sorriso faceto.
Sinto-me seriamente contrariado por chegar tão atrasado. Dorian, estive em Wardour
Street procurando um pedaço de velho brocado e precisei negociar duas horas.
Hoje, cada qual sabe o preço de tudo e ninguém sabe o valor de coisa alguma.

–Sou
forçada a deixá-los –exclamou lady Henry, rompendo o silêncio com uma
intempestiva risada –prometi à Duquesa acompanhá-la de carro. Até a vista, Mr.
Gray, até a vista, Harry. Vão jantar fora? Eu também. Talvez os encontrem em
casa de lady Thornbury.

– É
provável, cara amiga – disse lord Henry, cerrando a porta depois de ela passar.

Semelhante
a uma ave de paraíso, que houvesse passado a noite sob a chuva, ela voou,
deixando um sutil odor de frangipana. Ele acendeu um cigarro e atirou-se ao
canapé.

– Nunca
te cases com uma mulher de cabelos cor de palha, Dorian – aconselhou ele,
depois de algumas baforadas.

– Por
que, Harry?

– Porque
são muito sentimentais.

– Eu
gosto das pessoas sentimentais.

– Não te
cases nunca, Dorian. Os homens se casam por fadiga, as mulheres por
curiosidade: todos saem logrados.

– Não
creio que esteja em ponto de me casar, Harry. Sou excessivamente amoroso. Eis
um dos teus aforismos. Eu o ponho em prática, como tudo o que dizes.

– De quem
andas amoroso? – perguntou lord Henry depois de uma pausa.

– De uma
atriz – confessou Dorian Gray corando.

Lord
Henry sacudiu os ombros:

– É um
início bem comum…

– Não
dirias isso, se a houvesses visto, Harry.

– Quem é?


Chama-se Sibyl Vane.

– Nunca
ouvi falar…

– Ninguém
ouviu: mas hão de falar dela um dia. É genial.

– Meu
caro ingênuo, nenhuma mulher é genial. As mulheres formam um sexo decorativo.
Nunca sabem o que dizer, mas dizem-no de uma maneira admirável. As mulheres
representam o triunfo da matéria sobre a inteligência, assim como os homens
representam o triunfo da inteligência sobre os costumes.

–Harry,
podes afirmar isso?

– Meu
caro Dorian, é absolutamente verdadeiro. Analiso a mulher neste momento e,
assim, devo conhecê-la. O assunto é menos abstrato do que eu pensava. Em
resumo, descubro que só há duas espécies de mulheres: as naturais e as
postiças. As mulheres naturais são muito úteis; se queres adquirir uma
reputação de respeitabilidade, só tens que conduzi-las a cear. As outras são
inteiramente agradáveis; todavia, cometem uma falta. Pintam-se para ensaiar o
remoçar. Nossas avós pintavam-se para parecer mais brilhantes. O
“Vermelhão e o Espírito” andavam juntos. Tudo isso acabou. Enquanto
uma mulher puder parecer dez anos mais moça que sua própria filha, estará
perfeitamente satisfeita. Quanto à conversação, não há mais de cinco mulheres
em Londres, às quais valha a pena dirigira palavra, e duas dentre elas não
podem ser recebidas em uma sociedade que se respeita. A propósito, fala-me do
teu gênio. Desde quando a conheces?

– Ah!
Harry, as tuas ideias me aterrorizam!

– Não dês
importância. Desde quando a conheces?

– Há três
semanas,

– E como
a encontraste?


Conto-te, sob a condição de que não rias, Harry, mas não quero que… Afinal, o
fato nunca se daria, se eu não te houvesse encontrado. Tu me encheste do
ardente desejo de tudo saber da vida. Durante dias, após o nosso encontro,
qualquer coisa de novo parecia pulsar-me nas veias. Quando passeava por Hyde
Park ou descia por Piccadilly, observava todos os transeuntes, imaginando com a
mais viva curiosidade que espécie de existência poderia levar cada um deles.
Alguns me fascinavam. Outros me apavoravam. Havia como um esquisito veneno no
ar. Eu tinha a paixão dessas sensações… Pois bem, uma noite, pelas sete
horas, resolvi sair em busca de qualquer aventura. Sentia que a nossa cinzenta
e monstruosa Londres, com seus milhões de habitantes, seus sórdidos pecadores e
seus pecados esplêndidos, como dizias, devia ter para mim qualquer coisa
reservada. Imaginava mil coisas. O simples perigo produzia-me uma sorte de
contentamento. Lembrava-me de tudo quanto me disseras durante essa maravilhosa
tarde, quando jantamos juntos pela primeira vez, a propósito da pesquisa da
Beleza, que é o verdadeiro segredo da existência. Não sei bem o que esperava,
mas encaminhei-me para este e logo me perdi em um labirinto de vielas escuras e
ferozes e praças de relva pelada. Pelas oito e meia, passei diante de um
absurdo teatrinho flamejante de fios de luzes e com cartazes multicores. Um
horrendo judeu, vestindo o mais espantoso jaleco que já vi em minha vida,
conservava-se à entrada, fumando um ignóbil charuto. Tinha melenas oleosas e um
enorme diamante faiscava no plastrão manchado de sua camisa, “Quereis um
camarote, milorde?”, disse ele, logo que me percebeu e levantando o chapéu
com um servilismo especial. Achei qualquer coisa de divertido nele, Harry. Era
um verdadeiro monstro. Tu rirás de mim, bem sei, mas a verdade é que entrei e
paguei um guinéu por esse camarote. Hoje, não poderia dizer como isso se
passou: e, entretanto, se assim não tivesse sido, meu caro Harry, se assim não
fosse, eu teria perdido o mais magnífico romance de toda a minha vida…
Percebo que ris. Não fazes bem.

– Não
estou rindo, Dorian, ou, ao menos, não estou rindo de ti. Mas não precisas
dizer: o mais magnífico romance de toda a tua vida. Deves dizer o primeiro
romance de tua vida. Tu serás sempre amado e estarás sempre amoroso. Uma
‘grande paixão’ é a sorte daqueles que nada têm a fazer. É a única utilidade
das classes desocupadas de um país. Nada receies. Esperam-te prazeres exóticos.
Isto agora é apenas o começo.

– Julgas-me
uma natureza tão fútil? – quis saber Dorian Gray aborrecido.

– Não,
acho-a até profunda.

– Que
queres dizer?

– Meu
caro filho, os verdadeiros fúteis são o que amam só uma vez na vida, O que eles
chamam de lealdade ou fidelidade, eu classifico o sono do hábito ou falta de
imaginação. A fidelidade é para a vida sentimental o mesmo que a estabilidade é
para a vida intelectual – simplesmente uma confissão de impotência. A fidelidade!
Eu a analisarei um dia! Há nela a paixão da propriedade. Abandonaríamos muitas
coisas, se não tivéssemos o receio de que outros as recolhessem. Não quero,
porém, interromper-te. Prossegue na tua narração.

– Bem.
Achava-me, pois, instalado em um horroroso camarotinho, fronteiro a um
vulgaríssimo pano de entreato. Pus-me a contemplar a sala. Era uma lantejoulada
decoração de cornucópias e Cupidos; dir-se–ia a câmara montada para um
casamento de terceira classe. As galerias e a plateia regurgitavam de
espectadores, mas as duas fileiras de poltronas sujas estavam absolutamente
vazias e havia justamente uma pessoa no que eu suponho que devessem chamar a
varanda. Mulheres circulavam com laranjas e cerveja agengibradas; fazia-se um
espantoso consumo de nozes.

– Devia
ser como nos gloriosos dias do drama inglês.

– Com
certeza. Muito sem conforto, aliás, comecei a indagar o que poderia fazer,
quando lancei os olhos ao programa! Que imaginas que representavam, Harry?

– Suponho
que ‘O idiota ou O mundo inocente’. Nossos pais gostavam muito dessa sorte de
peças. Quanto mais vivo, Dorian, mais vivamente sinto que o que era bom para
nossos pais não presta para nós. Em arte, como em política,’les grands–pères
ont toujours tort…’

– Esse
espetáculo era bom para nós. Harry. Era Romeu e Julieta; devo confessar que me
contrariou a ideia de ver Shakespeare representado naquela barafunda.
Sentia-me, todavia, intrigado. A todo risco, decidi-me esperar o primeiro ato.
Havia uma maldita orquestra, dirigida por um jovem hebreu sentado num piano em
ruínas, que me provocava a vontade de sair, mas ergueu-se o pano e a peça
começou. Romeu era um gordo ‘gentleman’ idoso, com sobrancelhas enegrecidas à
rolha queimada, uma voz rouca de tragédia e uma figura como um barril de cerveja,
Mercutio era, pouco mais ou menos, tão feio. Representava como esses cômicos de
baixo grau, que juntam suas insânias aos papéis, e parecia entender-se muito
amigavelmente com a plateia. Eram ambos tão grotescos como as decorações; os
espectadores poderiam julgar-se em uma barraca de mascataria. Mas Julieta!
Imagina, Harry, uma donzela de dezessete anos apenas, com a figura de uma flor,
uma pequena cabeça grega com tranças de castanho carregado, olhos apaixonados
de profundezas violáceas e lábios como pétalas de rosa! Era a mais adorável
figura que eu jamais vira. Disseste-me uma vez que eras insensível perante o
patético. Essa beleza, porém, essa simples beleza te traria lágrimas aos olhos.
Asseguro-te, Harry, que apenas vi essa rapariga através da névoa de pranto que
me umedeceu as pálpebras. E a voz! Nunca ouvi voz igual! Falava muito baixo a
princípio, em tom profundo e melodioso, como se sua palavra só se destinasse a
um ouvido; depois, fez-se ouvir mais alto e o som lembrava o de uma flauta ou
de um oboé longínquo. Na cena do jardim, havia o êxtase tremente que se percebe
antes da aurora, quando cantam os rouxinóis. Um pouco depois, havia momentos em
que essa voz tomava o tom de intensa paixão dos violinos. Tu sabes quanto uma
voz pode comover. Tua voz e a de Sibyl Vane são duas músicas que nunca mais
esquecerei. Quando cerro os olhos, eu as ouço, e cada uma delas fala
diversamente. Não sei qual delas seguir, por que não a amaria, Harry? Amo-a.
Ela é tudo para mim na vida. Todas as noites vou vê-la representar. Um dia é
Rosalinda e, no dia seguinte, Imogênia. Eu a vi morrer no horror sombrio de um
túmulo italiano, aspirando o veneno dos lábios de seu amante. Acompanhei-a,
errando na floresta de Ardennes, disfarçada de rapazote, de gibão e polainas,
com um pequeno chapéu. Estava doida e achava-se em face de um rei culpado, a
quem fazia tomar ervas amargas. Ela era inocente e as negras mãos do ciúme
comprimiam-lhe a garganta fina como uma cana. Admirei-a em todos os tempos e
sob todos os costumes. As mulheres ordinárias não despertam as nossas
imaginações. São limitadas à sua época. Nenhuma magia as transfigura.
Conhecemos os seus corações como os seus chapéus. Adivinha-se tudo nelas; em
nenhuma delas há mistério. Passam as manhãs no parque e tagarelam nos chás, à
tarde. Trazem os seus sorrisos estereotipados e regulam as suas maneiras pela
moda. São perfeitamente límpidas. No entanto, uma atriz! Quão diferente é uma
atriz! Harry! Por que não me ensinaste que o único ser digno de amor é uma
atriz?

– Porque
já amei demais, Dorian.

– Oh!
Sim; horrendas criaturas de cabelos tintos e peles pintadas.

– Não
desprezes os cabelos tintos e as peles pintadas, que, muitas vezes, têm um
encanto extraordinário – disse lord Henry.

– Fora
melhor não te haver falado de Sibyl Vane.

– Não
poderias agir de outro modo, Dorian. Durante toda a tua vida, de hoje em
diante, tu me referirás o que fizeste.

– Sim,
Harry, creio que isso é verdade. Não posso deixar de dizer-te tudo. Exerces uma
singular influência sobre mim. Se algum dia cometesse um crime, iria buscar-te
para confessá-lo. Tu me compreendes.

– Os
homens como tu, fatídicos raios de sol da existência, não cometem crimes,
Dorian. Agradeço-te, todavia, as atenções. E agora, dize-me – passa-me os
fósforos… obrigado – quando estreitas as tuas relações com Sibyl Vane?

Dorian
Gray deu um salto, ruborizou-se e seus olhos incendiaram-se:

– Harry!
Sibyl Vane é sagrada!

– Só as
coisas sagradas merecem pesquisa. Dorian – disse lord Henry com estranho acento
penetrante – Por que te inquietas? Ela será tua qualquer dia. Quando se ama, a
princípio cada um abusa de si próprio, mas sempre acaba abusando dos outros. É
o que o mundo chama um romance. Em todo caso, tu a conheces…

 Conheço-a, não há dúvida. Desde a primeira
noite em que fui ao teatro, o vil judeu veio rondar em torno de meu camarote e,
no fim do espetáculo, propôs-se a apresentar-me a ela. Revoltei-me e disse-lhe
que Julieta estava morta, havia séculos, e que seu corpo repousava em um túmulo
de mármore em Verona. Pelo seu olhar estuporado, compreendi que ele teve a
impressão de que eu houvesse bebido muito ‘champagne’ ou coisa que o valha.

– Não me
surpreendo.

– Então,
o homem perguntou-me se eu escrevia em algum jornal. Respondi-lhe que nem
sequer os lia. Ele pareceu-me extremamente desapontado, depois me confiou que
tinha,coligados contra si, todos os críticos dramáticos e que estes se vendiam.

– Quanto
ao primeiro ponto, nada posso dizer, mas quanto ao segundo, a julgar pelas
aparências, eles não devem custar muito caro.

– Talvez,
mas o homem mostrava acreditar que eles estavam acima dos seus recursos – disse
Dorian rindo. Nesse ponto, apagaram-se as luzes do teatro e eu tratei de
retirar-me. O judeu quis fazer-me fumar charutos, que recomendava
insistentemente; declinei do oferecimento. Na noite seguinte, naturalmente,
voltei. Desde que ele me viu fez-me uma profunda reverência e assegurou-me que
eu era um magnífico protetor das artes. Era uma temível alimária, embora
alimentasse uma extraordinária paixão por Shakespeare. Disse-me, com orgulho,
que as suas cinco falências eram inteiramente devidas ao “Bardo”,
como ele o chamava com persistência. Parecia possuir nisso um título de glória.

– Era um,
meu caro Dorian, um verdadeiro. Muita gente se arruína por haver muito ousado
nesta era de prosa. Arruinar-se pela poesia é uma honra. Quando, porém,
falaste, pela primeira vez, com Miss Sibyl Vane?

– Na
terceira noite. Ela havia representado Rosalinda. Eu não podia decidir-me.
Havia-lhe atirado flores e ela me havia olhado, como eu, ao menos, presumia. O
velho judeu insistia. Mostrou-se tão resolvido a conduzir-me ao palco, que eu,
por fim, consenti. É curioso, não achas, esse retraimento?

– Não.

– Meu
caro Harry, por quê?

– Eu te
direi depois. Agora quero saber o que aconteceu à pequena.

– Sibyl?
Oh! Estava tão tímida, tão encantadora! Lembra uma criança; seus olhos
abriam-se maravilhados, quando lhe falava sobre o seu talento; parece
absolutamente inconsciente da própria força. Creio que estávamos um pouco
enervados. O velho judeu fazia caretas no corredor do camarim poeirento,
pairando por nossa conta, enquanto nos contemplávamos como crianças. Ele
perseverava em chamar-me milorde e eu fui forçado a declarar a Sibyl que
absolutamente não era tal. Ela disse-me singelamente; “Tendes antes um ar
de príncipe e eu quero chamar–vos o Príncipe Encantador”.


Realmente, Dorian. Miss Sibyl sabe dirigir um cumprimento!

– Tu não
a compreendes, Harry… Ela me considerava um herói de teatro. Não sabe nada da
vida. Vive com sua mãe, uma velha abatida que, na primeira noite, representava
a lady Capuleto, numa espécie de roupão vermelho, e que parecia ter conhecido
melhores dias.

– Conheço
esse aspecto. Desanima. – resmungou lord Henry, examinando os anéis.

– O judeu
quis contar-me a sua história, mas eu declarei-lhe que não me interessava.

– Tens
razão. Há qualquer coisa de infinitamente mesquinho nas tragédias dos outros.

– Sibyl é
o único ente que me interessa. Que me importa saber de onde ela vem? De sua
cabecinha aos seus pés minúsculos, ela é absolutamente divina. Cada noite vou
vê-la representar e cada noite ela é mais maravilhosa.

– Eis
porque, sem dúvida, não jantas mais comigo. Bem imaginei que tinhas qualquer
romance preparado: não me enganei, mas isso não é, certamente, o que eu
esperava.

– Meu
caro Harry, nós almoçamos e ceamos juntos, todos os dias, e fui à Ópera contigo
várias vezes – disse Dorian, arregalando os olhos azuis espantados.

– Chegas
sempre tão tarde!

–Não
posso, porém, deixar de ir ver Sibyl, durante um ato que seja!  – exclamou ele – Vou faminto da sua presença;
e quando penso na alma prodigiosa que se esconde naquele corpinho de marfim
sinto-me angustiado!

– Podes
jantar comigo esta noite, Dorian?

Dorian
balanceou a cabeça.

– Hoje à
noite, ela é Imogênia e amanhã será Julieta.

– Quando
é ela Sibyl Vane?

– Nunca.


Felicito-te.

– Como és
perverso! Ela resume todas as grandes heroínas do mundo em uma só pessoa. É
mais que uma individualidade. Tu ris e eu te disse que ela era genial. Amo-a; é
preciso que me faça amar por ela. Tu, que conheces todos os segredos da vida,
ensina-me o que devo fazer para que Sibyl Vane me ame! Quero fazer Romeu
ciumento. Quero que todos os amantes de outrora nos ouçam rir e fiquem tristes!
Quero que um sopro de nossa paixão reanime as suas cinzas e os desperte na sua
pena! Meu Deus! Harry, como eu a adoro.

Dorian ia
e vinha de um para outro lado no gabinete; um rubor de febre inflamava lhe as
faces. Parecia excitadíssimo.

Lord
Henry observava-o com um sutil sentimento de prazer. Como era diferente, agora,
do mancebo tímido, amedrontado, que ele havia encontrado no atelier de Basil
Hallward! O natural havia-se desenvolvido como uma flor desabrochada em feitio
de uma umbela escarlate. A alma saíra do esconderijo e o desejo a tinha encontrado.

– E que
propões fazer? – interrogou enfim lord Henry.

– Queria
que tu e Basil viésseis comigo vê-la trabalhar, uma noite destas. Não tenho a
menor dúvida quanto ao resultado. Ambos reconhecerão certamente o seu talento.
Então havemos de retirá-la das mãos do judeu. Ele a contratou por três anos, ou
dois anos e oito meses, presentemente. Deverei, sem dúvida, pagar qualquer
coisa. Feito isto, procurarei um teatro de West End e torná-la-ei
convenientemente conhecida. Ela extasiará o mundo.

– Isto é
impossível.

– Sim,
ela o conseguirá; ela não só tem talento, o instinto consumado da arte, como
uma verdadeira personalidade; e muitas vezes me disseste que eram as
personalidades e não os talentos que revolviam as épocas.

– Bem,
quando iremos nós?


Vejamos: hoje é terça-feira… Amanhã! Ela, amanhã, interpretará Julieta.

– Muito
bem; no Bristol, às oito horas. Eu trarei Basil.

– Às oito
horas não, Harry, por favor! Às seis e meia. É necessário que lá estejamos
antes da subida do pano. Devemos vê-la no primeiro ato, quando ela encontra
Romeu.

– Seis
horas e meia! Que horário! Teremos então um chá ou uma leitura de romance
inglês… Escolhamos sete horas. Nenhum ‘gentleman’ janta antes de sete horas.
Verás Basil ou devo escrever-lhe?

–Caro
Basil! Há uma semana não o vejo, procedo mal, com ele. Enviou o meu retrato
numa admirável moldura, especialmente por ele desenhada, e, embora eu tenha
ciúmes da pintura, um mês mais moça que eu, devo reconhecer que me deleita.
Talvez fosse melhor que lhe escrevesse, pois não desejo vê-lo só… Diz-me
coisas fastidiosas e dar-me bons conselhos.

Lord
Henry sorriu:

– Por
prazer, nos desembaraçamos do que mais precisamos. É o que eu chamo o abismo da
generosidade.

– Oh!
Basil é o melhor dos meus camaradas, mas me parece um pouco filisteu. Descobri
isto, Harry, desde que te conheço.

– Basil,
meu caro, emprega em suas obras tudo quanto há nele de delicioso. A
consequência é que só conserva para a sua vida os seus prejuízos, os seus
princípios, o seu senso comum. Os únicos artistas que conheci pessoalmente
deliciosos eram maus artistas. Os verdadeiros artistas só existem no que
produzem e, conseguintemente, as suas pessoas não oferecem interesse algum. Um
grande poeta, um verdadeiro grande poeta, é o mais prosaico dos seres. Os
poetas inferiores, porém, são os homens mais sedutores. Quanto pior sabem
rimar, mais pitorescos se tornam. O simples fato de haver publicado um livro de
sonetos de segunda ordem toma um homem perfeitamente irresistível. Este vive o
poema que não consegue escrever; os outros escrevem o poema que não ousam
realizar.

– Creio
que é verdadeiramente assim, Harry – disse Dorian Gray perfumando o lenço em um
grande frasco de tampo de ouro que se achava sobre a mesa. Assim deve ser,
mesmo porque dizes. E agora adeus. Imogênia me espera; amanhã, não te
esqueças… Até a vista.

Logo que
o outro partiu, caíram as pesadas pálpebras de lord Henry e este se pôs a
refletir. Na verdade, poucos seres jamais o tinham interessado tanto quanto
Dorian Gray, e a paixão do adolescente por quem fosse causava-lhe um ligeiro
arrepio de aborrecimento ou de ciúme. Estava contente. Aos seus próprios olhos,
tornava mais um interessante objeto de estudos. Sempre fora dominado pelo
atrativo das ciências, mas os assuntos ordinários das ciências naturais
haviam-lhe parecidos vulgares e pouco curiosos. De sorte que havia começado
pela análise de si mesmo e acabava por analisar os outros. A vida humana – eis
a única coisa que lhe parecia digna de investigação. Nenhuma outra,
comparativamente, apresentava o menor valor. Na verdade, quem considerasse a
vida e seu estranho cadinho de dores e delícias, não poderia suportar na face a
máscara de vidro do químico, nem impedir que os vapores sulfurosos lhe turvassem
o cérebro e imbuíssem a sua imaginação de monstruosas fantasias e sonhos
disformes. Havia venenos tão sutis que, para conhecer as suas propriedades,
seria preciso alguém experimentá-los em si próprio. Havia moléstias tão
exóticas, que alguém deveria suportá-las, se quisesse conhecer a sua natureza.
E, então, que recompensa! Quão prodígio se tomaria o mundo inteiro! Notar a
áspera e estranha lógica das paixões, a vida emocional e colorida da
inteligência, observar o ponto em que elas se encontram ou se separam, como
vibram uníssonas e como discordam – nisso haveria um verdadeiro gozo, e
importava o seu preço? Nunca seriam pagas muito caro tais sensações.

Ele tinha
consciência de que – e tal pensamento punha-lhe um brilho de prazer nos olhos
de ágata escura… – de que era devido a certas palavras suas, palavras
musicais, pronunciadas em tom musical que a alma de Dorian Gray se voltara para
essa branca rapariga e tombara em adoração diante dela. O adolescente era de
algum modo sua própria criação. Ele o fizera abrir-se, prematuramente à vida.
Era alguma coisa. A gente vulgar espera que a vida lhe descubra os seus
segredos; ao menor número, porém, aos mais seletos, esses mistérios são
revelados antes que o véu seja arrancado. Algumas vezes isso é um efeito de
arte, particularmente da literatura que afeta diretamente as paixões e a
inteligência. De tempos em tempos, porém, uma personalidade complexa toma o
lugar da arte, torna-se assim, no seu gênero, uma verdadeira obra de arte,
tendo a vida as suas obras–primas, tal qual a poesia, a escultura ou a pintura.

Sim, o
adolescente era precoce; ceifava na primavera. Existia nele o impulso da paixão
e da mocidade, mas tomava-se pouco a pouco consciente de si mesmo. Era um gosto
observá-lo. Com sua bela figura e sua bela alma devia fazer sonhar. Por que
inquietar-se pela maneira como acabaria ou com o fim fatal disso tudo?… Ele
era como uma dessas graciosas figuras de um espetáculo, cujas alegrias nos
espantam, mas cujas mágoas nos despertam o sentimento da beleza e as chagas nos
aparecem como rosas rubras.

A alma e
o corpo, o corpo e a alma, que mistérios! Há animalidade na alma e o corpo tem
os seus momentos de espiritualidade. Os sentidos podem afinar-se e a
inteligência degradar-se. Quem seria capaz de dizer onde cessam as impulsões da
carne e onde começam as sugestões psíquicas?

Como são
limitadas as arbitrárias definições dos psicólogos! E que dificuldade de
decidir entre as pretensões das diversas escolas! A alma seria uma sombra
reclusa na casa do pecado? Ou o corpo e a alma não seriam realmente senão uma
só coisa, como pensava Giordano Bruno? A separação do espírito e da matéria era
um mistério, como era também um mistério a união da matéria e do espírito.

Como
tentamos fazer da psicologia uma ciência tão absoluta, capaz de revelar-nos as
menores molas da vida?… Na verdade, nós nos iludimos constantemente e
raramente compreendemos os outros. A experiência não tem valor ético. É somente
o nome que os homens dão a seus erros. Os moralistas a apreciam, de ordinário,
como uma forma de aviso; reclamam para ela uma eficácia ética na formação dos
caracteres; elogiam-na  como qualquer
coisa que nos ensinasse o que cumpre fazer e o que convém evitar. Não existe,
porém, poder algum ativo na experiência. Ela é uma coisinha móvel como a
própria consciência. Tudo quanto está verdadeiramente demonstrado é que o nosso
futuro poderá ser o que foi o nosso passado e que o pecado, em que uma vez
caímos com desgosto, nós o cometeremos ainda muitas vezes, e com prazer.

Tornava-se
evidente para lord Henry que o método experimental é o único pelo qual se pode
chegar à análise científica das paixões, e que Dorian Gray era, certamente,
para ele um assunto promissor de ricos e frutuosos resultados. Sua paixão
súbita por Sibyl Vane não era um fenômeno psicológico de estreito interesse.
Sem dúvida, a curiosidade aí entrava em grande parte, a curiosidade e o desejo
de adquirir uma nova experiência; mas a paixão era mais complexa do que
simples. O que continha de puro instinto sensual de puberdade havia-se
transformado, pelo trabalho da imaginação, em qualquer coisa que parecia ao
adolescente alheia aos sentidos e não era, por isso, menos grave. As paixões
sobre cuja origem nos enganamos tiranizam-nos mais violentamente do que todas
as outras. Nossos mais fracos motores são aqueles de que conhecemos a natureza.
Muitas vezes acontece que, quando pensamos fazer uma experiência nos outros,
fazemo-la em nós mesmos.

Enquanto
lord Henry, assentado, refletia sobre todas essas coisas, bateram na porta e
seu criado entrou para lembrar-lhe que era tempo de vestir-se para jantar. Ele
levantou-se e espiou a rua. O sol poente inflamava de púrpura e ouro as janelas
altas das casas fronteiras. As vidraças lampejavam como placas de metal
ardente. No alto, o céu parecia uma rosa fanada. Ele pensou na vitalidade
impetuosa de seu jovem amigo, curioso de saber como tudo findaria.

Quando
regressou a casa, às doze e meia da noite, encontrou um telegrama sobre a mesa.
Abriu-o e percebeu que era de Dorian Gray. Este lhe participava que havia
prometido desposar Sibyl Vane.

 

V

 

–Mãe,
minha mãe, como estou contente! – suspirava a moça, envolvendo o seu rosto no
avental da velha de feições fatigadas e deprimidas, que, de costas voltadas
para a clara luz das janelas, estava assentada na única poltrona da saleta
pobre. – Estou tão contente! – repetia ela – É preciso que estejas contente
também!

A senhora
Vane estremeceu e pousou na cabeça da filha suas mãos magras e branqueadas de
bismuto.

–Contente!
– repeliu também – Eu só me sinto contente quando te vejo representar. Tu não
devias pensar em outra coisa. Mr. Isaacs foi muito bom para nós, e nós lhe
devemos dinheiro.

A moça
ergueu a cabeça amuada:


Dinheiro! Mãe, – inquiriu ela – que quer isso dizer? O amor vale mais que o
dinheiro?

– Mr.
Isaacs nos adiantou 50 libras para pagamento de nossas dívidas e para
fornecermos uma roupa conveniente a James. Tu não deves esquecer isso, Sibyl.
Cinquenta libras formam uma grande soma. Mr. Isaacs foi muito amável.

– Não é
um ‘gentleman’, minha mãe, e eu detesto o seu modo de falar comigo –replicou a
moça, levantando-se e dirigindo-se à janela.

– Não sei
como nos arranjarmos sem ele – objetou a velha gemendo.

Sibyl
Vane balançou a cabecinha e pôs-se a rir.

–Mãe, não
teremos mais necessidade dele, de ora em diante. O Príncipe Encantador ocupa-se
de nós.

Calou-se;
o sangue afluíra-lhe às faces. Uma respiração ofegante entreabriu as pétalas de
seus lábios trêmulos. Uma aragem quente parecia envolver e agitar as dobras graciosas
de sua roupa.

– Eu o
amo!  – disse ela simplesmente.

– Criança
tola! Criança louca! – clamou a velha, acentuando a resposta com um gesto
grotesco dos dedos recurvos carregados de joias falsas.

A criança
ainda riu. Havia em sua voz o júbilo de um pássaro na gaiola. Seus olhos
colhiam a melodia e traduziam-na  no
próprio brilho; cerravam-se depois um instante, como para guardar um segredo.
Quando se abriam de novo, a bruma de um sonho havia passado por eles. A
sabedoria de lábios murchos falava-lhe na velha poltrona, sibilando-lhe essa
prudência inscrita no livro da covardia com o nome de senso comum. Ela não
escutava.

Sentia-se
livre na prisão de sua paixão.  Seu
príncipe, o Príncipe Encantador, estava com ela. Recorrera à memória para tê-lo
perto, a sua alma prendia-o. Seus beijos queimavam-lhe os lábios. As pálpebras,
sentia-as aquecidas pelo seu hálito.

A
Sabedoria então mudou de método e falou em inquérito e espionagem. O mancebo
talvez fosse rico e, neste caso, poder-se–ia pensar em casamento. A moça
percebia as vogas da astúcia humana rebentando junto às conchas de suas
orelhas. Crivavam-na  todas as setas do
ardil. Percebeu que os lábios murchos se alongavam e de novo sorriu…

Subitamente
experimentou a necessidade de falar. Agastava-se com o monólogo da velha.

– Mãe,
mãe, bradou, por que tanto há de ele me amar? Quanto a mim, bem sei por que o
amo. É porque ele é tal que poderia ser o próprio Amor. Que vê ele, porém, em
mim? Não sou digna dele. E, entretanto, não saberei como explicar, julgando-me
bem inferior a ele, não sinto até agora a humildade. Sou altiva, extremamente
altiva… Mãe, dedicarias tanto amor a meu pai como eu ao Príncipe Encantador?

A velha
mulher empalideceu sob a camada de pó que lhe cobria o rosto e seus beiços
secos se torceram num esforço doloroso.

Sibyl
correu para ela; passou-lhe os braços pelo pescoço e deu-lhe beijos:

– Perdão,
minha mãe, eu sei quanto te são penosas às referências a meu pai. Não é, porém,
porque o amasses muito. Não te entristeças tanto! Eu também sou hoje tão feliz
como eu era há vinte anos. Ah! Pudesse eu ser sempre feliz!

– Minha
filha, tu és muito criança para pensar em amor. E, depois, que sabes tu desse
rapaz? Ignoras até o seu nome. Tudo isso é aflitivo e, verdadeiramente, no
momento em que James vai partir para a Austrália e em que eu tenho tantos
cuidados, acho que devias mostrar-te menos inconsiderada. Entretanto, como eu
já disse, se ele for rico…

– Ah!
Mãe, mãe! Deixa-me ser feliz!

A senhora
Vane mirou-a e, com um desses falsos gestos cênicos que, muitas vezes, nos
atores, são como uma segunda natureza, estreitou sua filha nos braços. Nesse
momento, a porta abriu-se e entrou um rapaz de cabelos castanhos eriçados.
Tinha a figura maciça, grandes pés e grandes mãos, e qualquer coisa de brutal
nos movimentos. Não possuía a distinção de sua irmã. Custava-se a acreditar no
próximo parentesco que os unia. A senhora Vane fixou nele os olhos e acentuou o
seu filho à dignidade de um auditório. Estava certa de que o quadro devia ser
tocante.

–Devias
guardar um pouco de teus beijos para mim, Sibyl – disse o moço numa queixa
amigável.

– Ah! Mas
tu não gostas dos beijos que te damos – ponderou ela – Jim, tu és um triste
urso velho – e pôs-se a correr na saleta, a dar-lhe beliscões.

James
Vane olhou com ternura sua irmã.


Desejaria que viesses passear comigo, Sibyl. Creio bem que nunca mais tomarei a
ver esta vil Londres, e, decerto, não demoro.

– Meu
filho, não digas coisas tão tristes – murmurou a senhora Vane, apanhando com
suspiros um pretensioso vestido de teatro e procurando ajeitá-lo.

Ela
lastimava que o filho houvesse chegado tarde para poder juntar-se ao grupo de
momentos antes. Ele teria argumentado o patético da situação.

– Por
que, minha mãe?

– Porque
me afliges, meu filho. Espero que tu voltes da Austrália com uma bela posição.
Pensa não fazer sociedade alguma nas colônias ou outra coisa a que se possa dar
este nome; assim, quando fizeres fortuna, voltarás a tomar o teu lugar em
Londres.

– A
sociedade…  – resmungou o rapaz – Nada
quero conhecer dela. Eu desejaria ganhar bastante dinheiro para fazer vocês
duas deixarem o teatro, você e Sibyl. Detesto o teatro.

– Oh!
Jim! – retrucou, rindo, Sibyl – Como és pouco amável! Mas, queres, realmente,
passear comigo? Será uma gentileza! Receava que fosses apresentar despedidas a
alguns de teus amigos, a Tom Hardy, que te deu esse horrível cachimbo, ou a Ned
Langton, que escarnece das tuas pitadas. É muito amável de tua parte teres-me
reservado a tua última tarde. Aonde iremos nós? Se fôssemos ao Parque?

– Eu
estou muito surrado – replicou ele carrancudo – Só as pessoas elegantes vão ao
Parque.

– Que
asneira, Jim, – suspirou ela – passando a mão pela manga do seu vestido.

Ele
hesitou um momento.

– Bem, eu
vou – disse por fim – mas não demores muito a vestir-te.

Ela saiu
dançando… Ouviram-na  cantarolar, ao
subir a escada, e, em cima, os saltinhos de seus pés miúdos…

Ele
percorreu a sala duas ou três vezes. Depois se voltou para a velha, imóvel na
sua cadeira:

– Mãe, as
minhas coisas estão preparadas? –interrogou.

– Tudo
está pronto, James –respondeu ela – sem tirar os olhos do seu trabalho.

Durante
meses, sentira-se pouco à vontade, quando se achava só com esse filho duro e
severo. Sua leviandade natural era perturbada quando os olhares de ambos se
cruzavam. Intimamente, ela sempre se consultava se ele nada desconfiaria. Como
ele não fizesse observação alguma, o silêncio tornou-se-lhe intolerável.
Iniciou, assim, as lamúrias. As mulheres defendem-se atacando, do mesmo modo
que atacam por estranhas e súbitas derrotas.

– Espero,
James, que te satisfaças com a tua existência de ultramar – disse ela – É
preciso te lembrares de que tu mesmo a escolheste. Terias podido entrar para o
escritório de um advogado. Estes formam uma classe respeitável e muitas vezes,
no interior, jantam em casa das melhores famílias.

– Odeio
os escritórios e os empregados, -atalhou ele – mas a senhora tem razão; eu
mesmo escolhi o meu gênero de vida. Tudo o que lhe posso dizer é que deve velar
por Sibyl. Não consinta que lhe aconteça uma desgraça. Mãe, é preciso prestar
bem atenção.

– James,
tu falas de modo estranho. Sem dúvida, hei de velar por Sibyl.

– Ouvi
dizer que um cavalheiro vinha todas as noites ao teatro e passava ao camarim
para falar-lhe. É direito? Que quer isso dizer?

– Falas
de coisas que não compreendes, James. No exercício da nossa profissão, estamos
habituadas a receber muitas homenagens. Eu mesma, no meu tempo, ganhei muitas
flores. Era quando a nossa arte era verdadeiramente compreendida. Quanto a
Sibyl, não posso ainda saber se a sua predileção é séria ou não; mas não resta
dúvida de que o moço em questão é um perfeito ‘gentleman’. Amim, trata-me
sempre com extrema polidez. Demais, tem a aparência de rico e as flores que me
envia são deliciosas. São deliciosas mesmo?

– Não
sabes, porém, o seu nome?  – inquiriu ele
asperamente.

–Não –
confessou placidamente a mãe. Ele não revelou ainda o seu nome. Penso ser muito
romanesco de sua parte. É provavelmente membro da aristocracia.

James
Vane mordeu os beiços…

– Velepor
Sibyl, mãe! Atenção nela!

– Meu
filho, tu me desesperas. Sibyl está sempre sob minha vigilância particular.
Seguramente, se esse ‘gentleman’ for rico, não há razão alguma que a impeça de
contratar com ele uma aliança. Penso ser um aristocrata. Tem todas as
aparências, devo dizê-lo. Poderia arranjar-se um brilhante casamento para
Sibyl. Seria um par encantador. As suas maneiras só o recomendam.

O moço
resmungou algumas palavras e pôs-se a tamborilar com os dedos grossos na
vidraça. Voltava-se para dizer alguma coisa, quando Sibyl entrou, às
carreiras…

–Como
ambos estão sérios! – observou ela – Que há de novo?

– Nada –
retrucou ele – às vezes, é preciso estar-se sério. Até a vista, mãe; jantarei
às cinco horas. Tudo está enfardado, exceto minhas camisas. Por isso, não te
inquietes.

– Até
logo, meu filho – disse a velha com um requebro teatral.

Ela
estava contrariadíssima com o tom que o filho usara e qualquer coisa no olhar
deste a amedrontava.


Beija-me, minha mãe  – disse a moça. E
seus lábios em flor pousaram nas faces esmaecidas da velha, reanimando-as.

– Minha
filha! Minha filha! – clamou a senhora Vane de olhos no teto, procurando uma
galeria imaginária.

– Anda,
Sibyl – convidou o irmão, impaciente, que detestava as afetações maternais.

Ambos
saíram e desceram a triste Euston Road. Elevava-se uma ligeira viração e o sol
resplandecia alegremente. Os transeuntes estranhavam ver esse tipo grosseiro,
no seu falo surrado, em companhia de tão graciosa e distinta rapariga. Lembrava
um jardineiro labrego caminhando com uma rosa na mão.

De tempos
a tempos, Jim carregava os sobrolhos, quando percebia o olhar inquisidor de
algum transeunte. Experimentava essa aversão de ser olhado, que somente tarde
os homens célebres experimentam na vida e que, entretanto, o vulgacho sempre
conserva. Sibyl, esta mantinha-se perfeitamente inconsciente do efeito que
produzia. O amor abria seus lábios em sorrisos. Pensava no Príncipe Encantador
e, para mais poder pensar, quase não falava, balbuciando apenas referências ao
navio que Jim deveria tomar, ao ouro que este, certamente, descobriria e à
magnífica herdeira, de quem ele salvaria a vida, arrancando-a aos maus
‘bushrangers’ de camisas vermelhas. Com efeito, ele não seria sempre marinheiro
ou empregado marítimo, como estava prestes a ser. Não!A existência de um
marinheiro era muito triste. Viver enclausurado em um barco medonho, com as
vagas corcovadas e rugidoras procurando tragá-lo e um negro vento molesto
derrubando os mastros e dilacerando as velas em longas e sibilantes chibatadas!
Ele deixaria o navio em Melbourne, saudaria polidamente o capitão e iria logo
aos campos de ouro. Antes de uma semana, encontraria uma grande pepita, a maior
até então descoberta, e haveria de trazê-la 
à costa em um veículo guardado por seis policiais a cavalo. Os
‘bushrangers’ os atacariam três vezes e seriam batidos, com grande
carnificina… Ou então, não, ele não iria aos campos auríferos. Eram maus
sítios, onde os homens se embriagam,matam-se nas tascas e usam de má linguagem!
Ele seria um soberbo criador, e uma noite, quando regressasse a casa no seu
carro, descobriria a bela herdeira, a ponto de ser raptada em um cavalo negro
por um ladrão: correria a salvá-la . Ela certamente se enamoraria dele, assim
se desposariam e voltariam a Londres, a habitar uma casa magnífica. Sim, ele
teria aventuras deliciosas. Seria, porém, necessário que ele se conduzisse bem,
não abusasse de sua saúde e não despendesse loucamente o seu dinheiro. Ela só
tinha um ano mais do que ele, mas conhecia tanto a vida! Seria também
necessário que James lhe escrevesse por todos os correios e recitasse as suas
orações todas as noites, antes de deitar-se. Deus era muito bom e velaria por
ele. Ela também rezaria por ele e, dentro de alguns anos, ele regressaria perfeitamente
rico e feliz.

O rapaz a
ouvia desenxabido e não respondia. Sentia-se muito infeliz por deixar o país.

Ainda não
era somente isso o que o tornava receoso e melancólico, por mais inexperiente
que fosse, tinha um vivo sentimento dos perigos da posição de Sibyl. O jovem
dândi que lhe fazia a corte nada tinha de recomendável para ele. Era um
‘gentleman’ e detestava-o por isso, por um curioso instinto de raça, que a si
mesmo não sabia explicar e que por esta razão ainda mais o dominava. Conhecia também
a futilidade, a vaidade de sua mãe e aí via um perigo para Sibyl e para a sua
felicidade. Os filhos começam por amar os pais; passam a julgá-los quando
envelhecem e algumas vezes os esquecem. Sua mãe! Ele tinha consigo uma questão
a resolver a propósito dela, uma questão que ele guardava desde alguns meses de
silêncio. Uma frase casual que ouvira no teatro, uma chacota sufocada, que
apreendera em certa noite de espera, à porta dos camarins, tinham-lhe sugerido
ideias horríveis. Tudo isso lhe voltava ao espírito como uma vergastada em
pleno rosto. As sobrancelhas se lhe juntaram em uma contração involuntária e,
em um espasmo doloroso, ele mordeu o lábio inferior.

– Tu não
ouves nada do que eu digo, Jim – falou Sibyl – e eu faço os mais magníficos
planos para o teu futuro! Dize então qualquer coisa…

– Que
queres tu que eu diga?

– Oh! Que
tu serás um bom rapaz, que tu não nos esquecerás – replicou ela sorrindo-lhe.

Ele
ergueu os ombros.

– Tu
serás muito mais capaz de esquecer-me do que eu de esquecer-te, Sibyl.

Ela
corou…

– Que
queres tu dizer, Jim?


Contaram-me que tens um novo amigo. Quem é ele? Por que ainda nada me falaste a
respeito? Ele não te quer por bem.

– Para,
Jim! – ordenou ela – Nada deves dizer contra ele. Eu o amo!

– Como, se
nem tu mesma sabes o seu nome? – ponderou o moço – Quem é ele? Tenho o direito
de sabê-lo.


Chama-se o Príncipe Encantador. Não gostas deste nome? Meu rapaz, nunca
esqueças. Se apenas o tivesses visto, 
julgá-lo-ias o mais maravilhoso ser do mundo. Um dia, hás de
encontrá-lo, quando tornares da Austrália. Hás de amá-lo muito. Todo o mundo o
ama, e eu… eu o adoro! Por que não vens ao teatro esta noite? Ele lá estará e
eu representarei Julieta. Oh! Como representarei! Imagina, Jim! Estar amando e
fazer o papel de Julieta! E vê-lo assentado à minha frente! Representar para
seu único prazer. Receio assustar o público, assustá-lo ou subjugá-lo. Amar é
ultrapassar-se. Esse pobre Mr. Isaacs implorará o gênio para todos os seus
vagabundos do bar. Pregava o meu talento como um dogma; esta noite, bem o
sinto, há de anunciar-me como uma revelação. E é obra exclusivamente dele, do
Príncipe Encantador, meu portentoso namorado, meu Deus de graças. Eu, porém,
sou pobre junto dele. Pobre? Que importa isso? Quando a pobreza entra
sorrateiramente pela porta, o amor introduz-se pela janela. Deviam ser refeitos
os nossos provérbios. Foram inventados no inverno e agora eis o verão; é a
primavera para mim, uma verdadeira ronda de flores no céu azul.

– E um
‘gentleman’ – objetou o irmão azedo.

– Um
príncipe! – proferiu ela, musicalmente – Que queres tu mais?

– Ele
quer fazer de ti uma escrava!

– Eu
tremo à ideia de ver-me livre!

– Deves
desconfiar dele.

– Quem o
vir, logo o estima; quem o conhecer, logo nele acredita.

– Sibyl, estás
doida!

Ela
pôs-se a rir e tomou-lhe o braço.

– Caro
velho Jim, tu falas como um centenário. Um dia tu mesmo hás de amar e então
saberás o que é. Deixa esse ar desengraçado. Deves decerto sentir-te contente,
ao pensar que, embora te afastes, tu me deixas mais feliz do que nunca estive.
A vida foi dura para nós, terrivelmente dura e difícil. Agora será diversa. Tu
vais a um novo mundo e eu descobri um!… Olha duas cadeiras; assentemo-nos e;
vejamos passar todo esse belo mundo.

Assentaram-se
no meio de um grupo de basbaques. As tulipas pareciam vibrantes bagas de fogo.
Uma poeira branca, como uma nuvem trêmula de íris, movia-se no ar abrasado. Os
guarda–sóis de cores vivas iam e vinham como gigantescas borboletas.

Ela fez
seu irmão falar de si próprio, de suas esperanças e de seus projetos. Ele
falava docemente, com esforço. Ambos trocaram as palavras, como jogadores que
passam os tentos. Sibyl achava-se oprimida, não podendo comunicar a sua
alegria. Um vago sorriso esboçado sobre lábios tristes era todo o eco que ela
conseguia despertar. Passado algum tempo, ficou silenciosa. Súbito, ela colheu
de passagem a visão de uma cabeleira dourada e de uma boca risonha, em uma
carruagem descoberta, Dorian Gray passou em companhia de duas damas.

Ela
pôs-se de pé.

– Ei-lo!
– exclamou.

– Quem? –
indagou Jim Vane.

-o
Príncipe Encantador!  – respondeu ela
espiando a vitória. Ele ergueu-se vivamente, e, tomando-a rudemente pelo braço:


Mostra-o com teu dedo! Qual é? Quero vê-lo! – exclamou ele; mas na mesma
ocasião, passou-lhes pela frente o malho do Duque de Berwick, e quando a praça
novamente ficou livre, a vitória havia desaparecido do parque.

–Partiu –
murmurou tristemente Sibyl – e eu quisera mostrar-te.

– E eu
igualmente quisera vê-lo, porque, assim como é verdade haver um Deus no céu, se
ele te fizer algum mal, eu o matarei!…

Ela
olhou-o com horror! Ele repetiu estas palavras que cortavam o ar como um
punhal… Os transeuntes começavam a acumular-se. Bem perto, uma dama
galhofava.

– Anda
Jim, vem – sibilou ela.

E ele a
acompanhou como um cão, através da turba. Parecia satisfeito do que havia dito.

Chegando
à estatua de Aquiles, ambos deram uma volta ao redor do monumento. A tristeza
que enchia seus olhos mudou-se num sorriso e ela sacudiu a cabeça.

– Estás
doido, Jim, inteiramente doido!… Tens mau caráter, é tudo. Como podes
articular coisas tão baixas? Tu não sabes de quem falas. Tu te mostras
simplesmente ciumento e malfeitor. Ah! Eu desejaria que amasses! O amor melhora
tudo e tudo o que dizes é mau.

– Tenho
dezesseis anos–  replicou ele – e sei o
que sou. Nossa mãe não te serve de nada. Não sabe como é preciso te vigiar;
agora quisera não ir mais à Austrália. Sinto grande vontade de largar tudo. E
eu o faria, se o meu contrato já não estivesse assinado.

– Oh! Não
te faças assim tão sério, Jim! Tu lembras um dos heróis desses absurdos
melodramas, em que as mães tanto gostam de brincar. Eu não quero brigas. Eu o
vi e vê-lo é a completa felicidade. Não briguemos: sei bem que nunca hás de
fazer mal aos que eu amo, não é assim?

– Não,
enquanto o amares – foi a sua ameaçadora resposta.

– Sempre
o amarei! – protestou ela.

– E ele?

– Ele
também, sempre!

– Pois
fará bem!

Ela
recuou, depois, com um riso complacente, tomou-lhe o braço.

Não era,
afinal de contas, mais que uma criança…

No Arco
de Mármore, tomaram um ônibus que os depuseram junto à sua miserável casinha de
Euston Road. Eram mais de cinco horas, Sibyl devia dormir uma hora ou duas,
antes de trabalhar. Jim insistiu para que ela não deixasse de fazê-lo. Quis
imediatamente apresentar os seus adeuses, enquanto a mãe estava ausente; pois
esta faria uma cena e ele detestava as cenas, quaisquer que fossem.

Separaram-se
no quarto de Sibyl. O coração do mancebo estava repleto de um surdo ciúme, de
um ódio ardente e mortal contra esse estranho que, no seu entender, vinha
plantar-se entre os dois. Contudo, quando ela lhe passou os braços em torno do
pescoço e seus dedos lhe acariciaram os cabelos, ele se enterneceu e beijou-a
com real afeição. Quando desceu, seus olhos marejaram-se de lágrimas.

Em baixo,
a mãe o esperava, resmungando contra a demora, quando ele ia entrando. Ele nada
respondeu e assentou-se diante da sua minguada refeição. As moscas volitavam ao
redor da mesa ou passavam pela toalha cheia de nódoas. Através do ruído dos
ônibus e das carroças que subiam a rua restante percebia o sussurro que
devorava cada um dos minutos da sua vida restante naquele ponto… Passado um
instante, afastou o prato e ocultou a cabeça entre as mãos. Parecia-lhe que
tinha também o direito de saber. Já lhe teriam dito se fosse aquele em que
pensava. Sua mãe o contemplava, revelando receio. As palavras caíam-lhe dos
lábios maquinalmente. Um lenço de renda rasgado enrolava-se lhe os dedos.
Quando soaram seis horas, ele ergueu-se em direção à porta; voltou-se e pôs-se
a olhá-la. Seus olhares se cruzaram. Ela parecia suplicante. Isto o
enraiveceu…

– Mãe –
disse ele – tenho qualquer coisa a pedir-lhe.

Ela nada
respondeu e seus olhos vaguearam pela sala.

– Diga-me
a verdade; preciso sabê-la. Você era casada com meu pai?

Ela
soltou um profundo suspiro – era um suspiro de alívio. O momento terrível, esse
terrível momento que, dia e noite, durante semanas e meses, esperava receosa,
tinha enfim chegado e ela já não se sentia amedrontada. Era verdadeiramente
para ela como um desapontamento. A questão assim vulgarmente lançada exigia uma
resposta direta. A situação não havia sido preparada gradualmente. Era cru.
Parecia-lhe isso um mau ensaio.

– Não!
–respondeu, espantada da brutal simplicidade da vida.

– Meu pai
era então um patife! – gritou o rapaz cerrando os punhos.

Ela
balançou a cabeça:

– Eu
sabia que ele não era livre. Nós nos amávamos muito. Se ele tivesse vivido
teria se juntado a nós. Meu filho, não fales contra ele! Era teu pai e era um
‘gentleman’; tinha altas relações.

Uma
maldição escapou-lhe dos lábios:

– Para
mim tudo isso é indiferente – gritou ele –mas não deixe sozinha Sibyl… É um
‘gentleman’, não é, o seu apaixonado de hoje! Pelo menos, ela o diz… Esse,
sem dúvida, terá também as suas belas relações, não é?

Uma
indescritível expressão de humilhação passou pelo rosto da velha mulher.
Abaixou a cabeça e procurou enxugar os olhos com as costas das mãos.

– Sibyl
tem uma mãe – murmurou ela –Eu nem sequer tinha isso!

O rapaz
enterneceu-se. Caminhou em direção à velha, curvou-se e deu-lhe um beijo…

– Eu sou
o primeiro a sentir a pena que lhe causo, falando de meu pai – disse ele – mas
já não podia mais. É necessário agora que eu parta. Até um dia! Não se esqueças
de que a senhora só tem, de hoje em diante, uma filha a vigiar; e, creia-me, se
esse homem fizer algum mal à minha irmã, saberei quem ele é, eu o perseguirei e
matarei como um cão! Juro que o farei!…

O extremo
exagero da ameaça, o gesto apaixonado que a acompanhava e a sua expressão
melodramática tornaram a vida mais interessante aos olhos da mãe. Estava
familiarizada com esse tom. Respirou mais livremente, e, pela primeira vez,
depois de meses, admirou realmente o filho. Ela teria gostado de prosseguir na cena,
nessa nota comovente, mas o rapaz não consentiu. Já haviam feito descer as
malas e estavam os mantos preparados. A criada do aluguel ia e vinha, e foi
preciso contratar o cocheiro. Os instantes eram absorvidos por vulgares
pormenores. Foi com um novo desapontamento que ela agitou o lenço de rendas
pela janela, quando seu filho partiu no carro. Sentiu que uma magnífica ocasião
estava perdida. Consolou-se falando a Sibyl na desolação que seria dali por
diante a sua vida, quando já não tinha senão um filho a guardar. Repetia esta
frase que lhe havia agradado. Nada disse, porém, da ameaça. Esta havia sido
vivamente e dramaticamente exprimida. No fundo, bem sentia que um dia todos
eles haviam de rir juntos.

 

VI

 

– Já
sabes da novidade, Basil– disse lord Henry em uma noite em que Hall Ward ia
entrando num salãozinho particular do hotel Bristol, onde havia sido
encomendado um jantar para três pessoas.

–Não –
respondeu o artista entregando o chapéu e o capote a um servente todo curvado.
– Que há de novo? Creio que não será nada de política; esta, afinal, já não me
interessa mais. Seguramente, não há uma única pessoa na Câmara dos Comuns digna
de ser pintada, embora muitos dos nossos ‘honorables’ tenham necessidade de uma
nova mão de cal…

– Dorian
Gray se casa – adiantou lord Henry – espreitando o efeito da sua participação.

Hall Ward
teve um sobressalto e cerrou as sobrancelhas…

– Dorian
Gray se casa?!… – bradou ele – Impossível!

–É o que
há de mais verdadeiro.

– Com
quem?

– Com uma
pequena atriz ou coisa que o valha.

– Não
posso acreditar… Ele, tão sensato!…

– Dorian
é, efetivamente, muito ajuizado para não fazer tolices de um dia para outro,
meu caro Basil.

– O
casamento é uma coisa que não se pode fazer de um dia para outro, Harry.

– Exceto
na América – respondeu lord Henry sonhadoramente – Eu não disse, porém, que ele
se tinha casado; disse apenas que ia casar-se. Há aí uma grande diferença.
Lembro-me perfeitamente de ter sido casado, mas já não me lembro de ter sido
noivo. Creio mesmo que não cheguei a ser noivo.

– Pensa,
porém, no nascimento de Dorian, em sua posição, sua fortuna… Seria absurdo da
parte dele desposar uma pessoa de condição tão inferior à sua.

– Basil,
se desejas que ele despose essa rapariga, basta que lembres isso. Afinal, ele
está certo de que o fará. Cada vez que um homem pratica uma coisa
manifestamente estúpida, é decerto levado a fazê-la pelos mais nobres motivos.

–Espero,
Harry, que ao menos seja para ele uma boa moça. Eu não estimaria de modo algum
ver Dorian ligado a uma vil criatura, capaz de degradar a sua natureza e de
arruinar a sua inteligência.

– Oh! Ela
é mais do que boa: é bela! – acentuou lord Henry, bebericando um cálice de
vermute – Dorian afirma que é bela e tu sabes que ele não se engana nessas
coisas. O retrato feito por ti acelerou singularmente a sua apreciação sobre a
aparência física das pessoas; sim, essa obra produziu, entre outros, esse
excelente efeito. Nós devemos vê-la esta noite, se o nosso amigo não falhar à
entrevista.

– Falas
sério?


Absolutamente, Basil. Nunca estive tão sério como agora.


Aprovas, porém, isso, Harry? – perguntou o pintor, caminhando de cá para lá na
saleta e mordendo os lábios. Não é possível. Procuras o paradoxo.

– Eu
nunca aprovo, seja lá o que for, e muito menos desaprovo. É tomar-se na vida
uma atitude absurda. Nós não fomos postos no mundo para combater os nossos
prejuízos morais. Não presto atenção ao que dizem os homens vulgares e nunca
intervenho no que podem fazer as pessoas encantadoras. Se uma personalidade me
atrai, seja qual for o modo de expressão que possa escolher, eu a julgo
absolutamente sedutora. Dorian Gray enamorou-se de uma bela rapariga que
representa Julieta e propõe-se desposá-la. Por quê? Pensas tu que, se ele se
casasse com Messalina, seria menos interessante? Bem sabes que não sou um
campeão do casamento. O único prejuízo do casamento é que ele faz aquilo que um
altruísta consome e os altruístas não têm cor; falta-lhes a individualidade.
Entretanto, há certos temperamentos que o casamento torna mais complexos.
Conservam o seu egoísmo e ajuntam mais ainda. São forçados a ter mais que uma
só vida. Tornam-se mais superiormente organizados – e ser altamente
organizados, eu imagino, é o objeto da existência do homem. Além disso, não se
deve desprezar experiência alguma e diga-se o que se puder dizer contra o
casamento, ele não é uma experiência desdenhável. Espero que Dorian Gray faça
dessa menina sua esposa e ele a adorará apaixonadamente durante uns seis meses;
em seguida, deixar-se–á seduzir por qualquer outra. Isso vai ser para nós um
magnífico estudo.

– Tu bem
sabes que não pensas uma palavra do que dizes, Harry; tu sabes melhor do que
eu. Se a vida de Dorian Gray fosse prejudicada, ninguém ficaria mais desolado
do que tu. Tu és melhor do que pretendes.

Lord
Henry pôs-se a rir.

– A razão
pela qual pensamos bem dos outros é que nos aterramos, por nós mesmos. A base
do otimismo é muito simplesmente o terror. Pensamos ser generosos porque
agradecemos ao vizinho a posse de virtudes que nos são um benefício. Estimamos
o nosso banqueiro na esperança de que ele saberá frutificar os fundos que lhe
foram confiados e encontramos sérias qualidades no bandido das grandes estradas
que poupa as nossas bolsas. Penso tudo quanto digo. Tenho o maior desprezo pelo
otimismo. Nenhuma vida é danificada a não ser aquela para o crescimento. Se
queres estragar um caráter, nada mais tens a fazer senão tentar reformá-lo;
quanto ao casamento, isto seria idiotice, pois há outras e mais interessantes
ligações entre os homens e as mulheres, que conservam a vantagem de ser
elegantes… Eis, porém, Dorian em pessoa; ele te dirá mais do que eu.

– Meu
caro Harry, meu caro Basil, espero as suas felicitações – disse o adolescente
desembaraçando-se de seu ‘mae-farlane’ forrado de seda e apertando as mãos de
seus amigos. Nunca me senti tão feliz! Como tudo o que é realmente delicioso,
minha felicidade é repentina e, entretanto, aparece-me como a única coisa que
tenho buscado na vida.

Estava
todo rosado de excitação e prazer e parecia extraordinariamente belo.

– Espero
que ambos sempre sejam muito felizes, Dorian; mas sinto que me deixasses
ignorar o teu noivado. Harry já sabia dele.

– E eu
sinto que chegasses com atraso – interrompeu lord Henry, pondo a mão num dos
ombros do rapaz e sorrindo do que dizia. Assentemo-nos e vejamos o que vale o
novo chefe da cozinha. Contar-nos–ás as tuas histórias.

– Eu,
francamente, nada tenho a contar-lhes! –exclamou Dorian, quando cada um tomava
um lugar em torno da mesa. Eis simplesmente o que aconteceu. Deixando-te ontem,
à tarde, Harry; vesti-me e fui jantar naquele pequeno ‘restaurant’ italiano de
Rupert Street, aonde uma vez me conduziste, e depois, pelas oito horas
dirigi-me ao teatro. Sibyl fazia o papel de Rosalinda. Naturalmente as
decorações eram ignóbeis e Orlando estava absurdo. Mas Sibyl… oh! Se vocês a
vissem quando ela apareceu enfiada nas suas vestes de moço, estava
completamente adorável! Trazia um gibão de veludo grosseiro, com mangas até à
canela, calções acastanhados com lacetes cruzados, um bonito chapeuzinho verde,
tendo em cima uma pena de falcão presa por um diamante, e um capuz caído de
vermelho carregado! Nunca me pareceu tão esquisita! Tinha toda a graça dessa
figurinha de Tangara, que tu possuis no atelier, Basil. Os cabelos, conformando-lhe
o rosto, davam-lhe o ar de uma pálida rosa circundada de folhas escuras. Quanto
à sua representação!… Vocês hão de vê-la esta noite!… Ela nasceu artista!
Eu conservei-me no meu camarote obscuro, absolutamente sob o encanto…
Esquecia-me de que estava em Londres, no século XIX! Estava bem longe com o meu
amor em uma floresta que jamais homem algum penetrara. Caindo o pano, dirigi-me
aos camarins e falei-lhe. Como estivéssemos assentados um ao lado do outro,
subitamente brilhou nos seus olhos uma faísca que eu ainda não havia
surpreendido. Apresentei-lhe meus lábios. Nós nos beijamos. Não posso
reproduzir o que então experimentei. Pareceu-me que toda a minha vida fora
centralizada em um pontinho de alegria cor-de-rosa. Ela sentiu um
estremecimento e vacilou como um branco narciso; caiu aos meus joelhos e
beijou-me as mãos… Sinto que não deveria contar-lhe este pedaço, mas não
posso subtrair-me. Naturalmente, o nosso pacto é um segredo: ela não o revelou
nem à sua própria mãe. Não sei o que dirão aos meus tutores; lord Radley ficará
com certeza furioso. Para mim é indiferente! Adquirirei a minha maioridade
antes de um ano e então farei o que me aprouver. Tive razão, não achas, Basil,
de buscar o meu amor na poesia e achar minha mulher nos dramas de Shakespeare?
Os lábios, aos quais Shakespeare ensinou a falar, insuflaram o seu segredo em
meus ouvidos. Tive os braços de Rosalinda em torno de meu pescoço e Julieta me
beijou na boca.

– Sim,
Dorian, creio que tens razão – concordou Hallward.


Certamente, tu hoje a viste? – perguntou lord Henry.

Dorian
Gray sacudiu a cabeça.


Deixei-a na floresta de Ardenne e hei de encontrá-la em um jardim de Verona.

Lord
Henry bebericou o seu ‘champagne’ com um ar meditativo.

– Em que
momento exato pronunciaste a palavra casamento, Dorian? E que te respondeu ela?
Talvez já hajas esquecido…

_ Meu
caro Harry, eu não tratei isso como um negócio e não lhe fiz qualquer
proposição formal. Disse-lhe que a amava e ela me respondeu que era indigna de
ser minha esposa. Indigna!… O mundo inteiro não é nada à vista dela!

– As
mulheres são maravilhosamente práticas – murmurou lord Henry, muito mais
praticas do que nós. Esquecemo-nos muitas vezes de falar em casamento em
semelhante situação e elas sempre nos despertam a memória.

Hallward
tocou-lhe no braço com a mão:

– Acaba,
Harry! Tu desagradas a Dorian. Ele não é como os outros e não molesta ninguém;
a sua natureza é muito delicada para isso.

Lord
Henry olhou-o por cima da mesa.

– Eu
nunca enfado a Dorian, respondeu. Fiz-lhe essa pergunta pela melhor das razões,
pela única razão mesmo que dispensa toda pergunta – a curiosidade. Minha teoria
é que são sempre as mulheres que se propõem a nós e não nós que nos propomos às
mulheres, exceto na classe popular, mas a classe popular não é moderna.

Dorian
Gray sorriu e meneou a cabeça.

– Tu és
absolutamente incorrigível, Harry, mas eu não presto atenção. É impossível
brigar contigo! Quando vires Sibyl Vane, compreenderás que o homem que lhe
fizer mal será um bruto, um bruto sem coração! Não se pode compreender como
alguém chegue a humilhar o ente que ama. Amo Sibyl Vane. Preciso soerguê-la a
um pedestal de ouro e quero ver o mundo inteiro estimar minha mulher. Que é o
casamento? Um voto irrevogável. Tu mofas? Ah! Não mofes assim! É um voto irrevogável
que tenho necessidade de fazer. Sua confiança me fará fiel; sua fé me fará bom.
Quando estou com ela, lamento o que me ensinaste. Torno-me diferente daquele
que conheceste. Sinto-me transformado; e o simples contato das mãos de Sibyl
Vane faz-me esquecer-te, tu e todas as tuas falsas, fascinantes, envenenadas e,
todavia, deliciosas teorias.

– Quais
são elas? – perguntou lord Henry servindo-se de salada.

– Oh!
Tuas teorias sobre o amor, outras sobre o prazer… todas as tuas teorias, em
uma palavra, Harry.

– O
prazer é uma coisa digna de uma teoria – respondeu ele na sua lenta voz
melodiosa. Creio que não posso reivindicá-la como minha. Ela pertence à
Natureza e não a mim. O prazer é o ‘cariler’ distintivo da natureza, o seu
sinal de aprovação… Quando somos sempre bons, mas, quando somos bons, nem
sempre somos felizes.

– Ah! O
que entendes tu por ser bom? – inquiriu Basil Hallward.

– Sim –
recomeçou Dorian, apoiando-se às costas de sua cadeira e olhando lord Henry por
sobre a enorme jardineira de íris com pétalas avermelhadas, posta no centro da
mesa, – que entendes tu por ser bom?

– Ser bom
é estar em harmonia consigo mesmo – replicou lord Henry acariciando com seus
finos dedos pálidos o pé do cálice, como ser mau é viver em harmonia com os
outros. A nossa própria vida – eis a única coisa importante. Para as vidas dos
nossos semelhantes, se desejas ser um maroto ou um puritano, podes estender as
vistas morais sobre elas, mas tais vidas não nos interessam. O individualismo é
realmente o fim culminante. A moralidade moderna consiste em cada um
acomodar-se sob o estandarte do seu tempo. O fato de um homem cultivado
alistar-se sob a bandeira de seu tempo é por mim considerado uma ação da mais
escandalosa imoralidade.

– Às
vezes, porém, Harry, paga-se muito caro o sistema de viver unicamente por sua
conta – observou o pintor.

– Ora!
Nós temos a imposição de tudo hoje… Entendo que o lado verdadeiramente
trágico da vida dos pobres é não poderem apresentar outra coisa, senão a
renúncia a eles próprios… Os belos pecados, como todas as coisas belas, são
privilégios dos ricos…

– Paga-se
frequentemente de outro modo, a não ser por dinheiro…

– De que
outro modo, Basil?

– Creio
que em remorsos, em sofrimentos e… conservando a consciência de sua própria
infâmia.

Lord
Henry moveu os ombros.

– Meu
caro amigo, a arte da Idade Média é deliciosa, mas as emoções medievais
caducaram. Admito que possam servir à ficção– as únicas coisas de que a ficção
pode usar são, de fato, aquelas que não nos prestam mais… Um homem
civilizado, podes crer-me, jamais lamenta um prazer e um bruto nunca saberá em
que consiste um prazer.

– Eu sei
o que é o prazer! –bradou Dorian Gray – É adorar alguém!

–Isso
vale certamente mais do que ser adorado – afirmou lord Henry, brincando com os
frutos. Ser adorado é uma maçada. As mulheres nos tratam exatamente como a
Humanidade trata seus deuses. Elas nos acordam, mas estão sempre a pedir-nos
qualquer coisa.

– Eu
responderei: tudo quanto nos pedem, antes de pedirem, já nos haviam dado –
murmurou o adolescente com gravidade – elas criaram em nós o amor; têm,
portanto, o direito de exigi-lo…

– É a
pura verdade, Dorian! – exclamou Hallward.

– Não há
pura verdade alguma – atalhou lord Henry.

– Sim –
interrompeu Dorian – tu, Harry, admites que as mulheres cheguem a dar aos
homens até o ouro de suas vidas.

– É
possível – acrescentou o outro – mas invariavelmente exigem em troca um pequeno
juro. Aí, está o aborrecimento. As mulheres, como já o exprimiu um espírito
francês qualquer, inspiram-nos o desejo de fazer obras–primas, mas sempre nos
impedem de chegar ao fim…

– Tu és
um homem insuportável, Harry! Não sei por que te quero tanto!

– Tu
sempre me amarás, Dorian –declarou o outro – Um pouco de café, hein, meus
amigos?!… Rapaz, trazes café, conhaque e cigarros… não, não tragas
cigarros, tenho aqui. Basil, não consinto que fumes charutos. Tu te contentarás
com cigarros… O cigarro é o tipo perfeito do perfeito prazer… É estranho
como, ainda assim, ele te deixa insatisfeito. Que desejas tu mais? Sim, Dorian,
tu sempre me amarás; eu te represento todos os pecados que não tiveste a
coragem de cometer…

– Quanta
tolice dizes tu, Harry! – objetou o moço acendendo o seu cigarro no dragão de
praia vomitando fogo, que o criado colocara sobre a mesa. – Vamos ao teatro!
Quando Sibyl aparecer, tu decerto conceberás um novo ideal de vida. Ela te
representará o que nunca conheceste.

– Eu já
conheci tudo – explicou lord Henry com um olhar fatigado, mas toda nova emoção
me encontra a postos! Ai! Até receio que para mim não exista mais nenhuma…
Entretanto, tua aranhosa menina poderá emocionar-me. Adoro o teatro! É com
certeza mais real que a vida. Vamos indo… Dorian, tu subirás comigo… Estou
desolado, Basil, mas só há lugar para dois no meu ‘brougham’. Tu nos
acompanharás num ‘brougham’.

Ergueram-se
e enfiaram os capotes, bebendo cada um em pé o seu café.

O pintor
permanecia silencioso e preocupado, como revelando sentir o peso de um enorme
aborrecimento. Não podia aprovar esse casamento e, no entanto, ele lhe parecia
preferível a outros fatos.

Alguns
minutos depois, achavam-se todos em baixo. Ele próprio se conduziu, como ficara
convencionado, espreitando as lanternas do pequeno ‘brougham’, que corriam na
sua frente. Uma estranha sensação de desastre o invadiu de repente… Sentia
que Dorian Gray nunca mais seria dele, como em tempos passados. A vida surgira
entre eles…

Seus
olhos nublaram-se e não viram mais, naquele momento, as ruas populosas e
faiscantes de luz. Quando o veículo parou em frente ao teatro, ele experimentou
a sensação de que envelhecera alguns anos…

 

VII

 

Casualmente,
naquela noite, a plateia transbordava de espectadores; e o gordo ‘manager’
judeu, que os recebia à porta do teatro, espalhava de orelha a orelha um
untuoso e trêmulo riso.

Escoltou-os
até o respectivo camarote com uma espécie de humildade pomposa, agitando as
gordas mãos carregadas de joias e falando no tom mais agudo.

Dorian
Gray sentiu contra ele uma aversão mais pronunciada do que nunca; vinha ver
Miranda, e encontrava Caliban.

De outro
lado, o homem parecia agradar a lord Henry: este último decidiu testemunhar-lhe
a sua simpatia de modo formal, apertando-lhe a mão e declarando-lhe que se
sentia feliz por haver encontrado o cavalheiro que descobrira um real talento e
estava se arruinando por um poeta.

Hallward
olhava a galeria. O calor era sufocante e o lustre enorme todo aceso parecia
uma dália enorme de pétalas de amarelo fogo. Os rapazes da galeria tinham
tirado o casaco e o colete, e debruçados nos balaústres, trocavam pilhérias de
um lado para outro do teatro, repartindo laranjas com as companheiras vestidas
de cores berrantes. As vozes eram agudas, discordantes. Vinha do bar o barulho
de rolhas saltando das garrafas.

– Que
lugar para encontrar a divindade! – disse lord Henry.


Realmente, respondeu Dorian Gray. Aqui a encontrei e ela é divina para além do
que se possa conceber. Vocês esquecerão tudo quando a virem representar. Não se
vê mais esta populaça rude e vulgar. Quando entra em cena, desaparecem esses
tipos de gestos brutais porque eles próprios calam e olham-na, choram e riem
como ela quer. Sibyl fá-los vibrar como um violino, espiritualiza-os. Sente-se
que eles têm a mesma carne e o mesmo sangue que ela própria.

– O mesmo
sangue? A mesma carne? Não creio! – disse lord Henry, que passava em revista o
binóculo pela galeria.

– Não o
ouças! – interveio Hallward. – Eu sei o que queres dizer, e creio nessa
rapariga. A criatura amada por ti, seja qual for, deve merecer esse amor. Se te
produziu tal efeito deve ser nobre e inteligente. Espiritualizar os
contemporâneos é qualquer coisa de apreciável. Se essa rapariga pode dar alma
aos que até agora não a tiveram, se pode revelar o sentido da Beleza à gente
cuja vida é sórdida e feia, se consegue arrancar-lhes o egoísmo, dar-lhes
lágrimas e tristezas que não são suas, é digna da tua admiração, da adoração de
todo o mundo. Esse casamento é normal. A princípio não pensava assim. Mas
admito-o agora. Os deuses fizeram Sibyl Vane para Dorian. Sem ela, serias
incompleto.                            


Obrigado, Basil – respondeu Dorian Gray apertando-lhe a mão. – Sabia que
compreenderias. Harry é tão cínico que, às vezes, terrifica-me… Ah! A
orquestra. É terrível. Mas dura só cinco minutos. Depois levantará o pano, e verás
a jovem a quem vou dar a vida, a quem dei tudo quanto há de bom em mim.

Um quarto
de hora depois, uma extraordinária tempestade de aplausos; Sibyl Vane entrou em
cena… Era decerto adorável, uma das mais adoráveis criaturas que jamais vira,
pensava lord Henry. Havia qualquer coisa de animal na sua graça, no seu
sorriso. Um sorriso abatido, como a sombra de uma rosa num espelho de prata,
parou-lhe nos lábios ao olhar a multidão entusiasta que enchia o teatro. Recuou
alguns passos e os lábios pareceram tremer.

Basil
Hallward ergueu-se e começou a aplaudir. Sem movimentos… como em sonho,
Dorian Gray olhava-a. Lord Henry, de binóculo murmurava: “Encantador!
Encantador!”

A cena
representava a sala do palácio de Capuleto e Romeu nas vestes de peregrino entrava
com Mercutio e seus outros amigos. A orquestra atacou alguns compassos de
música e a dança começou… Entre os figurantes bisonhos, Sibyl Vane movia-se
como um ser de essência superior. O corpo, quando dançava, inclinava-se como na
água se inclina um junco. As curvas do colo eram as curvas de um lírio branco.
As mãos eram feitas de marfim puro.

Entretanto
ela estava curiosamente desatenta e não mostrava alçaria quando pousava o olhar
em Romeu. As poucas palavras que tinha a dizer:

 

Good pilgrim, you do wrong your hand too much,

Which mannerly devotion shows in this;

For saints have hands that pilgrim’s hands do
touch

 And palm
to palm is holy palmers’kiss…

 

e o breve
diálogo seguinte, foram ditos de modo artificial. Tinha uma linda voz, mas
quanto à entonação era absolutamente falsa. Não se sentia a realidade da
paixão.

Dorian
empalideceu, observando-a, espantado, ansioso… Os amigos não ousavam falar.
Ela parecia-lhes sem talento. Estavam desapontados. Sabiam, porém que a cena do
balcão no segundo ato era a prova decisiva para as atrizes no papel de Julieta
e esperavam ambos. Se Sibyl não vencesse, não tinha mesmo nenhum valor.

Sibyl foi
encantadora quando apareceu ao luar, mas a hesitação do seu jogo era
insuportável e ela era cada vez pior à medida que avançava o seu papel. Tudo
quanto tinha a dizer era dito de modo enfático, além do limite possível. A bela
passagem:

 

Thounk owest the mask of night is on my face,

Else would a maiden blush bepaint my cheek

For that which thou hast heard me speak to–night…

 

foi
declamada com a lamentável precisão de uma colegial que houvesse aprendido a
recitar com um professor de segunda ordem. Quando se inclinou no balcão e teve
que pronunciar os admiráveis versos:

 

Although I joy in thee,

I have no joy of this contract to–night:

It is too rash, too unadvised, too sudden;

Too like lightning, which doth cease to be?

Eve one can say; ‘It lightens!’ Sweet,
good–night!

This bud of love by summer’s ripening breath.

May prove a beauteous flower when next we
meet…

 

ela os
disse como se não tivessem para ela a menor significação. Não era nervosismo;
muito ao contrário, parecia perfeitamente consciente de tudo quanto fazia. Era
simplesmente péssima arte; o desastre fora completo. Os próprios espectadores
vulgares, desprovidos de qualquer educação artística, da plateia e das
galerias, não descobriam o mínimo interesse na peça. Começaram a agitar-se, a
falar alto e acabaram por assobiar… O ‘manager’ israelita, em pé, ao fundo da
plateia, batia com os tacões no chão e praguejava de raiva. Dir-se–ia que a
única pessoa calma era a jovem atriz.

Uma
borrasca de assobios seguiu-se à queda do pano… lord Henry levantou-se e
enfiou o seu capote…

– Ela é
belíssima, Dorian, – declarou –, mas não sabe representar. Vamo-nos embora…

– Eu
quero ver toda a peça – respondeu o moço com uma voz| rouca e amarga. – Estou
desesperado por te haver feito perder a tua noite, Harry. Apresento as minhas
desculpas a ambos vocês.

– Meu
caro Dorian, Miss Vane deve achar-se indisposta. Voltaremos a vê-la outra
noite.

– Espero
que assim seja realmente – continuou Dorian –, mas a mim parece-me insensível e
fria. Está inteiramente mudada. Ontem, foi uma grande artista: esta noite, está
uma atriz medíocre e comum.

– Não
fales assim de quem tu amas, Dorian, o amor é uma coisa muito acima da arte.

– São
ambos simples formas de imitação… – ponderou lord Henry – Vamo-nos embora,
Dorian! Tu não te podes conservar aqui por mais tempo. Não faz bem ao espírito
assistir a maus desempenhos. Demais, suponho que não desejas ver tua esposa
representar. Por conseguinte, que importa que ela represente Julieta como uma
boneca de pau? Ela é verdadeiramente adorável; e se conhece tão pouco a vida
como… a arte, será motivo para uma experiência deliciosa. Só há duas espécies
de gente deveras interessantes: as que sabem absolutamente tudo e as que nada
sabem… Por Deus, meu caro amigo, não mostres esse ar tão trágico! O segredo
de nos conservarmos moços está em não experimentarmos emoções mesquinhas. Vem
ao clube comigo e Basil; lá fumaremos cigarros e beberemos à beleza de Sibyl
Vane. Ela é certamente bela: que desejas tu mais?

– Sai tu,
Harry – bradou o rapaz – tenho necessidade de estar só, Basil, vai tu também…
Ah! Não quereis verdes meu coração rebentar!

Lágrimas
ardentes encheram-lhe os olhos; seus lábios tremeram e, atirando-se para o
fundo do camarote, apoiou-se ao tabique e ocultou o rosto entre as mãos.

 –Vamo-nos, Basil – disse lord Henry num tom
estranhamente terno. E os dois jovens saíram juntos.

Alguns
instantes mais tarde, a ribalta se iluminou e ergueu-se o pano para o terceiro
ato. Dorian Gray retomou sua cadeira; estava pálido, mas desdenhoso e
indiferente. A ação parecia interminável. Metade do auditório havia saído, com
grande barulho de solas pesadas e de gargalhadas. O fiasco era completo. O
último ato foi representado diante das banquetas. O pano caiu por entre
murmúrios e resmungos.

Logo que
tudo terminou, Dorian Gray precipitou-se pelos corredores, em direção aos
bastidores… Encontrou a rapariga sozinha; um olhar de triunfo iluminando-lhe
a face. Nos seus olhos brilhava uma nova chama. Um resplendor de auréola
parecia circundá-la. Seus lábios semiabertos sorriam a qualquer misteriosíssimo
segredo conhecido só por ela.

Ao entrar
Dorian Gray, ela mostrou-se subitamente possuída de uma alegria infinita.


Desempenhei muito mal, Dorian? – interrogou.


Pessimamente!…– declarou ele, mirando-a com estupefação. Horrivelmente! Foi
terrível! Estavas doente, não é? Não tens a menor dúvida quanto ao papel que
fizeste!… Não formas ideia do quanto sofri!

A
rapariga sorriu…

– Dorian,
– respondeu ela – pronunciando este nome num tom demorado e musical, como se
fora mais doce que mel às rubras pétalas de sua boca; Dorian, tu deverias ter
compreendido, mas agora compreendes, não é assim?


Compreender o quê? – indagou ele, raivoso.

– Por que
representei tão mal, esta noite!… Por que nada mais farei que preste!…

Ele
ergueu os ombros.

– Estás
doente; quando estás enferma, não podes representar, pareces extremamente
ridícula. Tu nos magoaste, a mim e aos meus amigos!

Ela nem
parecia ouvi-lo; transfigurada de júbilo, parecia tomada de um êxtase de
felicidade!…

– Dorian!
Dorian –exclamou –, antes de conhecer-te, acreditava que a única realidade da
vida era o teatro: era somente para o teatro que eu vivia; pensava que tudo
isso era verdadeiro; uma noite era Rosalinda e outra, Pórcia; o prazer de
Beatriz era meu prazer e as tristezas de Cordélia foram minhas… Eu acreditava
em tudo!…Os homens grosseiros que comigo representavam pareciam-me iguais a
deuses! Errava entre os bastidores e os cenários como em um mundo meu: só
conhecia sombras e as supunha reais! Tu vieste, ó meu belo amor! E libertaste minha
alma prisioneira… Mostraste-me o que é de fato, a realidade! Esta noite, pela
primeira vez em minha vida, percebi a vacuidade, a vergonha, a vilania do que
havia representado até então. Esta noite, pela primeira vez, tive a consciência
de que Romeu era feio, velho e pintado, de que era falso o luar do jardim, que
os cenários eram odiosos e falsas as palavras que eu devia proferir… Não eram
as ‘minhas palavras’… não era o que eu ‘devia’ dizer. Tu me ensinaste
qualquer coisa de mais elevado, qualquer coisa que tem toda a sua arte resumida
numa reflexão. Fizeste-me compreender o que era verdadeiramente o amor! Meu
amor! Meu amor! Príncipe Encantador! Príncipe da minha vida! Estou sentida das
sombras! Ti para mim és mais do que tudo o que a arte pode Jamais ser! Que
possa ter de comum com os fantoches de um drama? Quando cheguei essa noite, não
consegui perceber como a inspiração me deixara. Pensava mostrar-me prodigiosa e
percebi que nada conseguiria fazer. Subitamente, fez-se a luz em mim e surgiu-me
uma inteligência curiosa… Ouvi-os assobiar e pus-me a sorrir. Chegariam eles
a compreender um amor igual ao nosso?… Conduze-me, Dorian, conduze-me a algum
lugar onde possamos estar sós. Odeio a cena! Posso representar uma paixão que
não sinto, mas já não posso fazê-lo a esta que me escalda como fogo! Oh!
Dorian! Dorian, tu agora compreendes o que isso significa. Se eu conseguisse
mesmo o desempenho satisfatório seria uma profanação, pois para mim, de hoje em
diante, representar é amar. Eis o que fizeste!

Ele caiu
no sofá e voltou a cabeça.


Extinguiste o meu amor! – disse ele.

Ela
olhou-o um momento, com admiração, e desatou a rir… Ele nada disse. A moça
chegou-se lhe mais perto e com seus finos dedos acariciou-lhe os cabelos.
Depois ajoelhou-se e beijou-lhe as mãos. Ele as retraiu, tomado de um arrepio.
De repente, pôs-se em pé e marchou direto à porta.

– Sim, tu
consumiste, meu amor! Desbarataste o meu espírito! Agora não conseguirás sequer
despertar-me curiosidade! Já não produzes o mínimo efeito sobre meu ser! Eu
amava-te porque eras admirável, porque eras inteligente e genial, porque
realizavas os sonhos dos grandes poetas e davas uma forma, um corpo às sombras
da Arte! Puseste tudo isso de lado; apareceste estúpida e definida!… Deus
meu! Quanto fui louco amando-te! Que insensato fui eu!… Tu nada és mais para
mim! Não te quero mais ver! Não quero mais pensar em ti! Não quero mais
lembrar-me de teu nome! Tu não podes duvidar do que eras para mim outrora…
Outrora!… Ah! Não quero mais pensar em tudo isso! Quisera nunca haver-te
visto… Partiste o romance de minha vida! Que ínfima noção tens do amor para
imaginar que ele pudesse deteriorar a tua arte!… Tu nada és sem tua arte!…
Eu te teria feito esplêndida, famosa, magnífica! O mundo te haveria admirado e
tu trarias o meu nome!… Que és tu agora? Uma bonita atriz de terceira ordem!

A moça
empalidecia e tremia. Juntou as mãos e, com uma voz que não lhe passava da
garganta:

– Tu não
falas sério, Dorian – murmurou – tu finges!

– Finjo?
Isso é contigo! Representas tão bem! – respondeu ele amargamente.

Ela
reergueu-se e, com uma pungitiva expressão de sofrimento no rosto, atravessou o
gabinete, aproximando-se novamente dele. Pousou a mão em um dos braços do rapaz
e fitou-o mesmo nos olhos. Ele repeliu-a…

– Não me
toques! – gritou.

Ela
deixou escapar um gemido tristíssimo e abatendo-se lhe aos seus pés, aí ficou
sem movimento, como uma flor pisada.

– Dorian,
Dorian, não me abandones! – suspirou – Sinto-me desolada por haver tão mal
representado: pensava em ti todo o tempo; mas tentarei… sim, hei de tentar…
Veio-me tão imprevistamente este amor por ti… Creio que sempre o teria
ignorado se não me houvesses beijado… Se não nos houvéssemos beijado!
Beija-me ainda, meu amor… Não te afastes! Eu não poderia resistir. Oh! Não te
vás!… Meu irmão… Não é isso. Ele não desejava dizer tal coisa… ele
brincava! Tu, porém, poderás tu esquecer-me por causa desta noite? Hei de
trabalhar muito e procurarei conseguir maiores progressos. Não me sejas cruel,
justamente porque te amo mais do que tudo no mundo! Afinal, foi a única vez que
te desagradei… Tu tens razão, Dorian… Eu deveria mostrar-me mais que uma
artista… Era uma loucura de minha parte… e, entretanto, não me foi possível
fazer de outro modo… Oh! Não me deixes! Não me abandones!…

Uma
lufada de soluços apaixonados curvou-a… A rapariga atirou-se no tablado como
um corpo ferido. Dorian, desdenhoso, fitava-a assim prostrada, no chão, com
seus lábios finos arregaçados num supremo desdém. Há sempre qualquer coisa de
ridículo nas emoções das pessoas que já deixamos de amar; Sibyl Vane
parecia-lhe absolutamente melodramática. Suas lágrimas enfastiavam-no…


Retiro-me – anunciou ele com uma calma voz clara. – Não quero ser mais cruel,
mas não posso mais tornar a ver-te. Despojaste-me de todas de todas minhas
ilusões…

Ela
chorava sufocante e não deu resposta; aproximou-se rastejante; suas mãozinhas
estenderam-se como as de um cego, mostrando que o procuravam… Ele voltou-se,
fugiu do camarim. Alguns instantes depois, achava-se fora do teatro…

Aonde
foi? Não se lembraria. Apenas se recorda vagamente de haver vagabundeado pelas
ruas mal iluminadas, passado sob sombrinhas e diante de casas de fechadas
hostis… Mulheres de vozes rouquenhas e risos arregaçados o haviam chamado.
Encontrara bêbados cambaleantes, praguejando e rosnando consigo mesmo como
quadrúmanos monstruosos. Crianças grotescas espremiam-se diante dos portais:
gritos e pragas partiam das alamedas obscuras.

Ao
alvorecer, achou-se em frente a Covent Garden… as trevas se dissipavam e,
colorido de fracas luzes, o céu tomou matizes de pérola… Pesadas carroças
cobertas de lírios vacilantes rolaram docente pelo chão das ruas desertas… O
ar estava impregnado do perfume de flores e a sua beleza como que trouxe um
pouco de reconforto as penas do mancebo. Entrou em um mercado e observou os
homens descarregando os veículos… Um carroceiro de blusa branca ofereceu-lhe
cerejas; agradeceu, admirando-se de o homem não querer aceitar dinheiro algum,
e comeu os frutos distraidamente. Havia sido colhido durante a noite e o
frescor do luar os havia penetrado. Um bando de rapazes, conduzindo cestos de
tulipas raiadas, amarelas e rubras rosas, desfilou por sua frente, através dos
montes de legumes de um verde de jade. Sob o pórtico de pilares cinzentos,
embarcava-se um grupo de raparigas, de cabeça descoberta esperando o fim dos
lanços da mercadoria… outras se recreavam pelos arredores das portas
incessantemente abertas dos botequins da Piazza. Os enormes cavalos das
carroças passavam, batendo as patas no calçamento escabroso e fazendo soar os
guisos e os arreios… Alguns condutores conservavam-se adormecidos sobre
pilhas de sacos. Pombos, de pescoço irisado e róseas patas, moviam-se em revoadas,
surrupiando grãos…

Passados
alguns instantes, chamou à fala um ‘brougham’ e fez conduzir-se até a casa.
Demorou-se um momento a entrada, perscrutando a praça silenciosa, as janelas
fechadas dos edifícios luziam como prata… De uma chaminé fronteira, subia um
fio delgado de fumaça que ondulou como uma fita violeta através atmosfera cor
de nácar…

Na grande
lanterna veneziana dourada – despojo de alguma gôndola dogal – suspensa ao teto
do largo saguão da entrada, com relevo, brilhavam ainda três jatos de luz
mortiça, que pareciam finas pétalas de flama, azuis e brancas. Apagou-os; e
depois de atirar o chapéu e a capa sobre uma mesa, atravessando a biblioteca,
impeliu a porta do quarto de dormir. Era um grande aposento octógono que, no
seu gosto nascente de luxo, fizera guarnecer e decorar de curiosas tapeçarias
renascentistas, que havia descoberto em uma mansarda esbandalhada de Selby
Royal, onde se conservavam. Quando ele abriu o trinco da porta, seus olhares
recaíram sobre o retrato pintado por Basil Hallward– o que o fez estremecer de
surpresa!… Penetrou no dormitório, vagamente sobressaltado… Depois de
desabotoar o primeiro botão do casaco, pareceu hesitar, finalmente, voltou
sobre os próprios passos, parou em frente ao retrato e examinou-o… Sob o
bocado de luz, que atravessava as cortinas de seda creme, a face lhe pareceu um
pouco mudada… A expressão revelava-se diferente. Dir-se–ia que ali havia como
um toque de crueldade na boca… Era verdadeiramente estranho!

    Voltou-se e, caminhando até a janela,
arregaçou as cortinas… Uma forte claridade encheu o aposento e dissipou as
sombras fantásticas dos recantos obscuros onde flutuavam. A estranha expressão
surpreendida na face da imagem conservava-se mais perceptível ainda, a luz
palpitante realçava linhas de crueldade em torno daquela boca, como se ele
próprio, após haver praticado qualquer coisa horrível, descobrisse em casa, em
sua face, num espelho.

O jovem
recuou e, apanhando sobre a mesa um espelho oval circundando de pequenos
Cupidos de marfim, um dos numerosos presentes de lord Henry, apressou-se em
mirar-se nas suas profundezas polidas… Nenhuma traços como aqueles lhe
torturavam o escarlate dos lábios… Que queria aquilo dizer? 

    Esfregou os olhos, avizinhou-se mais ainda
e, de novo, examinou…  Ninguém ali
havia tocado, no entanto, era fora de dúvida que qualquer coisa havia mudado…
Ele não sonhava! Era cruelmente claro… Deixou-se cair numa poltrona e pôs-se
a avivar reminiscências… Subitamente recordou-se do que dissera no atelier de
Basil, precisamente no dia em que o retrato havia sido terminado. Sim, ele bem
se recordava. Havia enunciado o louco desejo de conservar-se jovem, enquanto
envelhecesse esse quadro… Ah! Se sua beleza não devesse fenecer e fosse
permitido ao retrato, pintado nessa tela, carregar o peso de suas paixões, de
seus pecados! A pintura não poderia, pois, ficar assinalada pelas linhas de
sofrimento e dúvida enquanto ele conservasse o desabrochar delicado e a lindeza
de sua adolescência?

Seu voto,
por Deus! Não podia ser atendido! São impossíveis tais coisas! Era
inconcebível! Era até monstruoso pensá-las!… E, entretanto, o retrato ali
estava diante dele, mostrando na boca um arrepanho de crueldade!

Crueldade!
Havia sido cruel? Era culpa dessa criança e não sua… Ele a imaginara uma
grande artista e havia lhe dado o seu amor porque a supunha genial… Ela o
desapontara, mostrando-se uma coisa indigna… Apesar de tudo, um sentimento de
infinita saudade o invadiu, revendo-a na memória, prostrada a seus pés,
soluçando como uma criança! Lembrou-se da imensa insensibilidade com que então
a contemplara… Por que procedera assim? Por que lhe fora dada uma alma capaz
disso? Todavia, não sofrera também? Durante as três horas consumidas pela peça,
vivera séculos de dor, eternidades sobre eternidades de tortura!

Sua vida
valia bem a dela. Se a havia ferido, não havia ela, de seu lado, deformado a
sua existência? Afinal, as mulheres são mais favoravelmente organizadas que os
homens para suportar os dissabores… Vivem de emoções e não pensam senão
nisso. Quando tomam amantes, é simplesmente para possuírem alguém que assista
ao desdobrar de suas cenas. Lord Henry lhe dissera e lord Henry conhecia as
mulheres. Por que se inquietaria ele com Sibyl Vane? Não valia a pena.

Mas, o
retrato?… Que dizer daquilo? Ele possuía o segredo de vida, revelava-lhe a
história; havia-lhe ensinado a amar sua própria beleza. Ensinar-lhe-ia a odiar
a própria alma? Deveria contemplá-lo ainda?

Não!
Tratava-se puramente de uma ilusão dos sentidos perturbados; a tremenda noite
já passada havia suscitado fantasmas!… Repentinamente, essa mesma mancha
rubra, que faz nos homens a demência, tinha-se desdobrado em seu espírito… O
retrato não sofrera alteração. Era loucura pensar nisso…

Entretanto,
ele o via com sua bela feição assolada, com seu cruel sorriso… Sua brilhante
cabeleira faiscava ao sol da manhã e os olhares azuis de um e outro se
cruzavam. Tomara-o um sentimento de infinita piedade, não por si, mas pela sua
imagem pintada. Esta estava transformada e ainda se alteraria. O ouro se
deslustraria… As rubras e brancas rosas de sua tez se desbotariam. A cada
pecado que cometesse, nova mancha se juntaria às outras, empanando-lhe pouco a
pouco a beleza… Ele, porém, não pecaria!

O
retrato, mudado ou não, representar-lhe–ia o visível emblema de sua
consciência. Resistiria às tentações. Jamais tomaria a ver lorde Henry e jamais
ouviria, em hipótese alguma, as sutis teorias envenenadas que lhe haviam
insuflado, pela primeira vez, no jardim de Basil, a paixão de coisas
impossíveis.

Voltaria
a Sibyl Vane, havia de provar-lhe os seus arrependimentos, desposá-la-ia e
tentaria amá-la ainda. Sim, este era o seu dever. Ela sofrera mais que ele.
Pobre criança! Como fora egoísta e cruel junto dela! Ela, porém, exerceria a
mesma fascinação de outrora e ambos seriam felizes. A vida, ao lado dela, seria
bela e pura.

Dorian
Gray ergueu-se da poltrona, desdobrou um alto e largo biombo diante do retrato,
tremendo ainda enquanto o fitava… “Que horror!” murmurava, indo
abrir aporta… Quando se viu fora, pisando na grama, desabafou um profundo
suspiro. A frescura do ar matutino como que lhe dissipou todas as negras
ideias: ele pensava unicamente em Sibyl. Percebeu um eco enfraquecido de seu amor.
Repetiu o seu nome uma, duas vezes e imaginou que os pássaros, a cantarem no
jardim todo orvalhado, deveriam falar dela às flores…

 

VIII

 

Meio–dia
já havia soado quando ele despertou. Seu criado viera várias vezes, na ponta
dos pés, até o quarto, espiar se ele ainda dormia e matutava consigo sobre o
que poderia reter até tão tarde o seu patrão na cama. Finalmente, Victor ouviu
retinir a campainha e chegou docemente, trazendo uma xícara de chá e um maço de
cartas, num pequeno e velho prato de Serves chinês; puxou as cortinas de cetim
azeitonado, com desenhos azuis, desenroladas diante das três grandes janelas…

– O
senhor dormiu bastante esta manhã… – ponderou ele, sorrindo.

– Que
horas são, Victor? –perguntou Dorian Gray, preguiçosamente.

– Uma hora
e um quarto.

Tão
tarde!…Dorian sentou-se à beira do leito e, depois de beber um pouco de chá,
pôs-se a examinar as cartas; uma delas era de lord Henry e havia sido trazida
naquela manhã. Ele hesitou um momento e colocou-a de lado. Abriu as outras, despreocupadamente.
Era a coleção costumeira de cartas de convite para jantar, cartões para
exposições privadas, programas de concertos de caridade e tudo o que pode
receber todas as manhãs um jovem da moda, durante a estação. Encontrou uma
pesada fatura de um necessário de ‘toilett’ Luís XV, em prata cinzelada, que
ele não tivera ainda a coragem de remeter aos seus tutores, gente de outros
tempos e que não compreende que vivemos em uma época em que as contas inúteis
são as únicas necessárias; percorreu ainda algumas corteses propostas de ágio
de Jermin Street, que se ofereciam para adiantar-lhe qualquer soma, quando
achasse conveniente, e sob as taxas mais razoáveis.

Dez
minutos depois, Dorian ergueu-se, enfiou um ‘robe-de-chambre’ de cachemira,
bordado de seda, e passou-se à saleta de banho lajeada de ônix. A água fria
reanimou-o depois do seu sono, prolongado; pareceu-lhe haver esquecido tudo o
que se passara… Uma obscura sensação de haver tomado parte em qualquer
estranha tragédia atravessou-lhe o espírito uma ou duas vezes, mas como envolta
na irrealidade de um sonho.

Logo que
se vestiu, entrou na biblioteca e sentou-se diante de um leve almoço à
francesa, servido numa mesinha colocada junto da janela aberta.

Fazia um
tempo delicioso e o ar morno parecia impregnado de perfumes… Uma abelha
entrou e pôs-se a zumbir ao redor do vaso ‘Bleu-dragon’, coberto de rosas de um
amarelo de enxofre que se achava diante de Dorian. Sentiu-se inteiramente
feliz.

De
repente, seus olhares recaíram sobre o biombo que ele havia colocado em frente
ao retrato e estremeceu…

– O
senhor sente frio? – perguntou-lhe o criado, apresentando-lhe uma omelete – Vou
fechar a janela…

Dorian
sacudiu a cabeça:

– Não
sinto frio algum – murmurou.

Seria
verdade? O retrato estaria realmente mudado? Ou simplesmente o efeito de sua
própria imaginação lhe havia feito ver uma expressão de crueldade onde havia
sido traçado uma expressão de alegria? Seguramente uma pintura em tela não
poderia assim alterar-se; essa preocupação era absurda. Seria uma boa história
para se referir um dia a Basil; deveria diverti-lo.

Entretanto
a lembrança ainda lhe estava de todo presente… A princípio na penumbra, em
seguida, sob mais difusa claridade, ele vira esse toque de crueldade em torno
de seus lábios atormentados… Quase receou que o criado abandonasse o
aposento, porquanto sabia que ele ia, de vez em quando, contemplar o quadro,
agora só… Ele tinha a certeza.

Quando o
criado, após haver servido o café e os cigarros, dirigiu-se para a porta, ele
sentiu um violento desejo de dizer-lhe que parasse. Como a porta se fechasse
sobre o criado, ele o chamou… O criado apresentou-se imóvel, esperando as
ordens… Dorian contemplou-o.

– Não
estou aqui para ninguém, Victor – preveniu com um suspiro.

O homem
inclinou-se e desapareceu.

Então,
ele ergueu-se da mesa, acendeu um cigarro e estendeu-se num divã de luxuosos
coxins, colocado em face do biombo: observava curiosamente este objeto, esse
biombo vetusto fabricado de couro de Cordova, desenhado, dourado, e bordado por
um modelo florido, datando de Luís XV, indagando de si próprio se jamais lhe
acontecera ocultar o segredo da vida de um homem.

Carregaria,
afinal, o retrato? Por que deixá-lo ali? Para que saber? Se fosse verdade,
seria horrível; se não fosse, não valeria a pena dar atenção ao fato.

Entretanto,
se por um triste acaso, outros olhos além dos seus descobrissem o retrato e
nele notassem a terrível transformação? Que faria ele se Basil Hallward
aparecesse e pedisse para tornar a ver o seu próprio trabalho? Basil ainda o
faria certamente.

Era-lhe
necessário examinar de novo a tela… Tudo afinal era preferível àquele
infernal estado de dúvida.

Levantou-se,
pois, e caminhou a fechar as duas portas. Ao menos, estaria só a contemplar a
máscara da sua vergonha.

Então
afastou o biombo e face a face se contemplou… Sim, era verdade; o retrato
estava mudado.

Como
muitas vezes, ele se lembrou mais tarde e sempre com um indefinível sentimento
de interesse científico, parecia-lhe impossível que tivesse havido semelhante
mudança… Entretanto, ela ali estava… Haveria, acaso, quaisquer sutis
afinidades entre os átomos químicos misturados na tela e a alma que ela
encerrava? Seria possível que eles houvessem realizado o que essa alma pensara;
que tivessem tomado uma verdade o que ela sonhara? Não haveria ali qualquer
outra indecifrável razão? Arrepiou-se assombrado… Voltando-se para o lado do
divã, ali se deixou cair, olhando o retrato, espavorido e trêmulo de horror!

Esse fato
havia produzido, todavia, um efeito sobre ele… Ele tornava-se consciente de
sua justiça e crueldade junto a Sibyl Vane… Não era, porém, muito tarde para
reparar os seus erros.

Ela ainda
poderia ser sua esposa. O seu egoístico amor irreal cederia a alguma outra
influência mais elevada, transformar-se–ia em uma mais nobre paixão e o seu
retrato pintado por Basil Hallward lhe seria um guia através da vida: seria
para ele o que para alguns é a santidade, o mesmo que a consciência é para
outros, e o temor de Deus para todos. Há espécies de ópios para os remorsos,
narcóticos morais para o espírito.

Sim, isso
era um símbolo visível da degradação provocada pelo pecado… Era um sinal de
advertência dos desastres próximos que os homens preparam às respectivas almas.

Três
horas soaram e mais um quarto. Soou a meia hora. Dorian Gray não se movia.

Tentou
reunir os fios vermelhos de sua vida e trançá-los; procurava encontrar o
caminho através do labirinto da ardente paixão na qual se perdera. Não sabia o
que fazer, nem o que pensar. Enfim, dirigiu-se até a mesa e redigiu uma carta
apaixonada à rapariga que havia amado, pedindo-lhe perdão e acusando-se de
demência.

Encheu as
páginas de palavras de lamento desbragado, seguidas das mais sofridas
exclamações de dor.

Há uma espécie
de voluptuosidade em nos fazermos acusações. Quando nos censuramos, supomos que
nenhum outro tem o direito de nos fazer o mesmo. E é a confissão e nunca o
padre que nos absolve. Quando Dorian terminou a carta, sentia-se perdoado.

Bateram
de repente à porta e ele ouviu fora a voz de lord Henry:

– Meu
caro amigo, preciso te falar. Deixa-me entrar. Não posso suportar ver-te assim
entrincheirado.

Dorian
não respondeu e conservou-se sem fazer um movimento. Bateram de novo e com mais
força…

Não seria
melhor deixar entrar lord Henry e explicar-lhe o novo gênero de vida que iria
levar, brigar mesmo com ele, se fosse necessário, e até abandoná-lo, se este
partido se impusesse? Dorian levantou-se, correu depressa a desdobrar o biombo
sobre o retrato e foi abrir porta.


Desculpa a minha insistência, Dorian – disse lord Henry, entrando – mas não
deves pensar muito nisso.

– Em
Sibyl Vane, queres tu dizer? –interrogou o rapaz.


Naturalmente! – respondeu lord Henry, sentando-se numa poltrona e tirando
lentamente as luvas amarelas – É terrível, sob certo ponto de vista, mas a
falta não é tua. Dize-me: foste ao seu camarim, ao terminar a peça?…

– Sim…

– Eu
tinha certeza, e deste logo um escândalo?

– Fui
brutal, Harry, verdadeiramente brutal! Mas acabou-se! Pouco me importa que isso
tenha sucedido: tudo me ensinou a conhecer-me melhor.

– Ah!
Dorian! Estimo que acolhas o caso dessa maneira. Receei encontrar-te perseguido
de remorsos e arrancando os belos cabelos cacheados…

– Ah!
Não! Acabou tudo! – disse Dorian, balançando a cabeça e sorrindo – Sinto-me
agora perfeitamente feliz… Sei, para começar, o que é a consciência; não é o
que me disseras… É o que pode haver de melhor em nós. Não motejes mais,
Harry, ao menos diante de mim. Preciso ser bom… Não posso conceber que exista
em mim uma alma vil…

– Uma
linda base artística para a moral, Dorian. Eu te felicito; mas por onde queres
começar?

– Ora…
Por desposar Sibyl Vane!


Desposar Sibyl Vane! – exclamou alto lord Henry, com uma expressão de
sobressalto e fixando o outro, perplexo de espanto – Mas, meu caro Dorian…

– Sim,
Harry. Já sei o que vais dizer-me: um discurso a propósito do casamento… Não
desenvolvas, porém, o tema. Não me dirás nada de novo a respeito. Prometi, há
dois dias, a Sibyl Vane casar-me com ela. Não quero faltar à minha palavra. Ela
será minha esposa…

– Tua
esposa, Dorian? Não recebeste então minha carta? Eu ti escrevi esta manhã e
mandei-te a carta por meu criado.

– A tua
carta… Ah! Sim, lembro-me dela. Não ali ainda, Harry. Receei encontrar nela
qualquer coisa que me desagradasse. Tu envenenas a vida com os teus
epigramas…

– Então
nada sabes?

– Que
queres dizer?

Lord
Henry deu algumas passadas na biblioteca e, sentando-se ao lado de Dorian Gray,
tomou-lhe as duas mãos nas suas e, cerrando-as estreitamente, disse:

– Dorian,
não te assombres; minha carta informava-te da morte de Sibyl Vane!

Um grito
de dor escapou da boca do adolescente; ele saltou sobre os tacões, arrancando-se
dos braços de lord Henry:

– Morta!
Sibyl Vane morta! Não é verdade! É uma mentira! Como ousas pronunciá-la?

– E a
pura verdade, Dorian – acentuou gravemente lord Henry. – Está nos jornais desta
manhã. Escrevi-te para avisar-te e pedindo-te que não recebesses pessoa alguma
antes de mim. Haverá um inquérito, no qual não deve ser o teu nome envolvido.
Fatos semelhantes trazem um homem à moda em Paris; mas em Londres há tantos
preconceitos… Aqui nunca se começa por um escândalo. Reserva-se sempre isto
para dar um interesse aos velhos dias de cada um. Quero crer que o teu nome não
é conhecido no teatro; se assim for, tudo irá bem. Ninguém te viu nos arredores
de seu camarim? Isto é da maior importância.

Dorian
não respondeu, durante alguns instantes. Estava sucumbido de assombro.
Balbuciou por fim, com voz sufocada:

– Harry,
falas-me de inquérito? Que queres dizer? Sibyl teria… Oh! Harry, nem quero
pensar! Conta, porém, depressa! Dize-me tudo!

– Não
alimento a menor dúvida: não se trata, Dorian, de um acidente, embora o público
possa crê-lo. Parece que ela ia deixar o teatro com a mãe, por volta de
meia-noite; comunicou que havia esquecido qualquer coisa nos bastidores…
Esperaram algum tempo, mas não descia. Subiram e, então, encontraram-na  morta, estendida no chão do camarim. Havia
ingerido qualquer droga por engano, qualquer droga perigosíssima, das que se
usam nos teatros. Não sei o que teria sido; mas talvez fosse ácido prússico ou
alvaiade. Creio, de preferência, que tivesse recorrido ao ácido prússico,
porque a morte parece ter sido instantânea…

– Harry!
Harry! É pavoroso! – bradou o rapaz.

– Sim, é
deveras trágico. Não há dúvida! Mas, não deves envolver-te nisso. Li no
Standard que ela tinha dezessete anos. Pensei que fosse mais moça, pois, além
do seu aspecto de criança, não sabia representar… Dorian, não te tortures
tanto! Vem jantar comigo e depois iremos à Ópera. A Patti cantará esta noite e
o teatro estará repleto. Irás para o camarote de minha irmã, onde haverá
algumas mulheres belas.

-assim,
assassinei Sibyl Vane, rosnava Dorian; matei-a tão seguramente, como se lhe
houvesse rasgado a garganta com uma faca! E,entretanto, nem por isso acho as
rosas menos belas… Os pássaros não cantarão menos no meu jardim… E esta
noite vou jantar contigo, irei depois à Opera e, sem dúvida, ainda irei cear em
qualquer parte, mais tarde… Como a vida é poderosamente dramática! Harry, se
eu houvesse lido tudo isso em um livro, desconfio bem que acabaria chorando.
Agora que isso se passa comigo, parece-me estupefaciente demais para chorar!
Toma: eis a primeira carta de amor apaixonada que escrevi durante toda a minha
vida; não achas impressionante o fato de ser esta primeira carta de amor
dirigida a uma mulher morta?… Essas formas brancas e silenciosas, que
chamamos os mortos, poderão acaso sentir? Sibyl! Poderá ela acaso sentir,
saber, ouvir? Oh! Harry, como eu a amava! Parece-me até que há muitos anos!…
Ela me representava tudo… Veio essa noite assombrosa, seria a última? Em que
ela desempenhou tão mal e o meu coração estalou! Ela explicou-me porquê; foi
deveras tocante! Não me comovi; julguei-a uma estulta! Súbito, passou-se
qualquer coisa que me impressionou; não posso dizer-te o que foi, mas foi
tremendo… Quis tomá-la; senti que me havia conduzido muito mal… e
atualmente ela está morta! Meu Deus! Meu Deus! Harry, que deverei fazer? Sabes
o perigo que corro e nada vejo que me possa resguardar! Ela teria sido a minha
guarda; não tinha o direito de matar-se… Foi um grande egoísmo da sua parte!

– Meu
caro Dorian – ponderou lord Henry, pegando um cigarro e tirando do bolso uma
caixinha dourada de fósforos – o único processo pelo qual uma mulher chega a
reformar um homem é o da importunação a ponto de perder ele todo o interesse
possível na existência. Se te houvesses casado com essa mulher, terias sido
infeliz; tu a tratarias gentilmente, pois é sempre fácil ser bom com as pessoas
das quais nada se espera. Ela, porém, teria logo descoberto que lhe eras
absolutamente indiferente; e quando uma mulher descobre isto no marido, ou ela
passa a vestir-se ridiculamente, ou empluma mais os chapéus por conta do
marido… de outra. Nada digo do adultério, que pudera ser abjeto; que, em
suma, eu não permitiria, mas asseguro-te que haveria em tudo isso uma completa
embrulhada, um equívoco…

– É
possível – concordou o rapaz, bastante pálido, andando de cá para lá no
aposento –, mas pensava que cumpria o meu dever. Não é minha culpa se este
drama me impediu de realizar o que julgava justo. Tu me disseste uma vez que
pesava uma fatalidade sobre as boas resoluções; eram sempre tomadas muito
tarde. A minha oferece um exemplo…

– As boas
resoluções só podem intervir inutilmente contra as leis científicas. Brotam da
pura vaidade e o seu resultado é ‘nihil’. De tempos a tempos, elas nos fazem
experimentar certas luxuosas emoções estéreis, que possuem encanto para os
fracos. Eis o que se pode deduzir. Pode compará-las aos cheques que alguém
sacasse sobre um banco, no qual não tivesse conta aberta.

– Harry –
disse Dorian –vindo sentar-se junto deste; por que não consigo sentir essa
tragédia tanto quanto desejaria? Não sou de todo sem coração, não é verdade?

– Tu
cometeste muita loucura durante a última quinzena, para que te seja lícito
fazer esse juízo de ti próprio – respondeu lord Henry com um doce e melancólico
sorriso.

O jovem
franziu a testa:

– Não
aprecio a tua explicação, Harry – tornou ele – mas sempre estimo saber que não
me crês sem coração; ainda o possuo, bem sei. Entretanto, estou em condições de
avaliar que esse caso não me perturbou como eu deveria senti-lo; parece-me
simplesmente o maravilhoso epílogo de um drama maravilhoso. Tal caso revela-me
a incrível beleza de uma tragédia grega, na qual eu chegasse a tomar parte, sem
ser ao menos ferido de leve.

– Sim, na
verdade, é uma questão interessante – notou lord Henry, que achava novo prazer
em brincar com o egoísmo inconsciente do adolescente –, uma questão das mais
interessantes… Imagino que a única explicação pode ser esta. Muitas vezes sucede
que as verdadeiras tragédias da vida se desenrolam de maneira tão pouco
artística, que nos acabrunham pela crua violência, pela incoerência absoluta,
pela absurda necessidade de exprimir qualquer coisa, pela completa falta de
estilo… Elas nos afetam tal qual a vulgaridade; deixam-nos uma impressão de
pura força brutal e então nos revoltamos contra isso. Às vezes, entretanto, uma
tragédia contendo elementos artísticos de beleza envolve a nossa vida; se tais
elementos são reais, ela produz em nossos sentidos o puro efeito dramático. Nós
nos sentimos subitamente transformados, não em atores, mas em espectadores da
peça, ou, antes, nós nos sentimos as duas coisas. Nós mesmos nos observamos e o
simples interesse do espetáculo nos seduz. Que se deu, com efeito, no caso de
que nos ocupamos? Uma mulher matou-se por amar-te. Intriga-me o fato de nunca
me haver sucedido coisa igual; isso me teria feito considerar mais o amor,
durante o resto de meus dias. As mulheres que me adoraram, não foram muitas,
mas tive algumas, quiseram sempre prosseguir, quando, desde muito tempo, eu
havia deixado de prestar-lhes atenção, ou elas de prestar atenção a mim.
Tornaram-se gordas, imperiosas e, quando as encontro, reatam comigo o capítulo
das reminiscências… Oh! A fatal memória das mulheres! Que fenômeno
assustador! Que perfeita estagnação intelectual revela! Pode-se guardar na
memória a cor da vida, mas é impossível recordar tantos detalhes, sempre
vulgares…

– Hei de
semear dormideiras no meu jardim – suspirou Dorian.

– Não
vejo a necessidade – replicou seu companheiro – a vida traz sempre dormideiras
nas mãos. Certamente, de um tempo a outro as coisas duram. Houve tempo em que
eu não usava senão violetas, durante toda uma estação, como meio artificial de
trazer luto por uma paixão que não queria morrer. Afinal, morreu e não sei quem
lhe deu cabo. Creio que foi a proposta de sacrificarem o mundo inteiro por mim.
É sempre um momento enjoativo: enche-te o terror da eternidade. Pois bem, há
uma semana, encontrava-me em casa de lady Hampshire sentado, ao jantar, perto
da dama em questão, ela insistiu para recomeçarmos de novo, desentulhando o
passado e raspando o futuro. Eu havia enterrado o meu romance em um leito de
asfódelos; ela pretendia exumá-lo e assegurava-me que eu não havia perturbado a
sua vida. Estou autorizado a crer que ela comeu desabridamente; assim, não
senti a menor ansiedade… Mas que falta de gosto patenteou! O único encanto do
passado está em ser passado, e as mulheres nunca sabem quando o pano caiu;
invariavelmente, reclamam um sexto ato, propondo o prosseguimento do espetáculo
quando o interesse todo já se foi… Se lhes fosse permitido procederem à sua
vontade, toda comédia teria um fim trágico e toda tragédia acabaria em farsa.
Elas são incomparavelmente artificiais, mas não têm a mínima compreensão da
arte. És mais feliz do que eu. Asseguro-te, Dorian, que nenhuma das mulheres
que tenho conhecido faria por mim o que Sibyl Vane chegou a fazer por ti. As
mulheres comuns, na sua maior parte, consolam-se invariavelmente cobrindo-se de
cores sentimentais. Nunca deposites a tua confiança em uma mulher que se
revista de malva, seja qual fora sua idade, ou em uma mulher de trinta e cinco
anos que não dispense vestidos róseos! Isto quer sempre dizer que elas tiveram
as suas histórias. Outras acham um grande consolo na descoberta inopinada das
boas qualidades de seus maridos. Fazem uma exuberante proclamação da sua
felicidade conjugal, como se tratasse do mais fascinante dos pecados. A
religião ainda consola outras. Os mistérios têm todo o encanto de um derriço,
disse-me um dia uma mulher e eu não pude compreendê-la. De resto, nada nos faz
mais vãos do que ouvirmos que somos pecadores. A consciência nos torna
egoístas… Sim, não há realmente fim nas consolações que as mulheres descobrem
na vida moderna e eu até agora ainda não mencionei a mais importante.

– Qual
será ela, Harry? – perguntou indiferentemente o moço.

– A
consolação evidente: apanhar um novo adorador, logo que se perde um. Na boa
sociedade, isto sempre rejuvenesce uma mulher… Realmente, Dorian, Sibyl Vane
deveria ser diferente das mulheres que nos deparamos! Há qualquer coisa de
esplendidamente belo na sua morte! Sinto-me feliz por viver em um século em que
se produzem tais milagres! Eles fazem-nos crer na realidade de coisas com as
quais brincamos, como o romance, a paixão, o amor…

– Fui
bastante cruel para ela, tu te esqueces…

– Estou
certo de que as mulheres apreciam a crueldade, a legítima crueldade, mais do
que qualquer outra coisa. Possuem admiráveis instintos primitivos. Nós temo-las
emancipado, mas elas nem por isso conservam menos escravas, agarrando-se aos
senhores; gostam de ser dominadas. Estou certo de que foste exímio!… Nunca te
surpreendi num verdadeiro estado de cólera, mas imagino como deves ser
arrebatador. Afinal, anteontem disseste-me algumas palavras que me pareceram um
pouco fantasiadas: agora sinto nelas a pura verdade e nelas tenho a chave de
tudo…

– Como
assim, Harry?


Disseste-me que Sibyl Vane te representava todas as heroínas de romance; que
era uma noite Desdêmona, outra Ofélia, que morria como Julieta e ressuscitava
como Imogênia!

– Nunca
mais ressuscitará agora! – lamentou o rapaz ocultando o rosto nas mãos.

– Não,
ela não ressuscitará mais; desempenhou o seu último papel… Deves, porém,
pensar nessa morte solitária, nesse bastidor farfalhante, como num fragmento
lúgubre de qualquer tragédia jacobina, como numa cena surpreendente de Webster,
de Ford ou de Cyril Tourneur. Essa rapariga, na realidade, jamais viveu e jamais
morreu também… Foi um sonho junto de ti… como esse fantasma que aparece nos
dramas de Shakespeare, tornando-os mais admiráveis pela sua presença, como um
canudo através do qual passa a música de Shakespeare, vibrante de alegria e
sonoridade.Ela acariciou a vida ao nascer, assim como a vida a acariciou; ela
morreu… Chora por Ofélia se quiseres; cobre de cinzas a tua fronte, porque
Cordélia foi estrangulada; invectiva contra o céu, porque a filha de Brabantio
morreu, mas não entornes as tuas lágrimas sobre o cadáver de Sibyl Vane; esta
era menos real que aquelas…

Seguiu-se
um silêncio. O crepúsculo sombreava a câmara; sem ruído, a passos sobre veludo,
as sombras deslizavam no jardim. As cores dos objetos desbotavam lentamente.
Passados alguns minutos, Dorian Gray levantou a cabeça.

– Tu
deslindaste a mim mesmo, Harry – murmurou ele com um suspiro de alívio –Eu
sentia tudo quanto me expuseste, mas estava de qualquer modo espavorido e não
ousava explicar-me a mim mesmo. Como me conheces bem! Não discorreremos, porém,
mais sobre o que está passado; foi uma extraordinária experiência e basta. Não
creio que a vida ainda me reserve qualquer coisa tão extraordinária.

– A vida
tudo te reserva, Dorian. Não há nada que não sejas capaz de fazer, com a tua
peregrina beleza.


Lembra-te, porém, Harry, de que eu ainda hei de aparecer grotesco, velho,
enrugado!… E então?…

– Então –
retrucou lord Henry – erguendo-se – então terás de combater pelas tuas
vitórias; atualmente, elas te são oferecidas. Deves conservar a tua beleza.
Vivemos em um século que tem que ler muito para saber e que pensa muito para
ser belo. Não podemos dispensar-te… Agora, o que tens a fazer é vestir-te
para irmos ao clube. Estamos atrasados, como vês.

– Creio
que nos veremos depois, na Ópera, Harry. Estou muito fatigado para poder comer,
seja o que for. Qual é o número do camarote de tua irmã?

– Penso
que é vinte e sete. É na primeira fila; verás o seu nome na porta. Vou
contrariado por não quereres jantar.

– Não me
é possível… – afirmou Dorian indiferente –, já te agradeço muito o que me
revelaste; és, certamente, o meu melhor amigo; ninguém me compreendeu como
tu…

– Estamos
somente no começo da nossa amizade, Dorian – ponderou lord Henry, apertando-lhe
a mão -adeus. Espero ver-te antes de nove e meia. Não te esqueças de que a
Patti canta…

E assim o
amigo bateu a porta atrás de si. Dorian tocou o tímpano; pouco depois. Victor
apareceu com as lâmpadas e puxou as gelosias. Dorian impacientava-se, desejando
ver-se fora de casa e parecia-lhe que Victor não terminava…

Retirando-se
o criado, ele precipitou-se para o biombo e descobriu a pintura.

Não!
Nenhuma nova alteração havia no retrato; soubera da morte de Sibyl Vane antes
de si e sabia os sucessos da vida no seu momento. A dura crueldade que
vinculara as finas linhas da boca havia, sem dúvida, aparecido precisamente na
ocasião em que a moça ingeria o veneno… Ou esse retrato seria indiferente aos
fatos e só refletiria o que se passa na alma? Ele pasmava, esperando que um dia
talvez visse a alteração operar-se ante seus olhos – e esta ideia fê-lo tremer.

Pobre
Sibyl! Que romance havia sido o seu! Quantas vezes reproduzira a mímica da
morte no teatro! Esta, afinal, pôs-lhe a mão e carregou-a. Como teria ela
representado essa última cena aterradora? Ao morrer, tê-lo-ia amaldiçoado? Não,
porque morrera por amor – e a morte devia ser-lhe um sacramento. Ela havia tudo
redimido pelo sacrifício que fizera da sua vida! Não queria sonhar o que ela
havia experimentado durante essa noite no teatro…

Quando
pensasse nela seria como numa prestigiosa figura trágica enviada à cena do
mundo para exibir a realidade suprema do amor. Uma prestigiosa figura! Lágrimas
subiram-lhe aos olhos, ao lembrar-se do seu ar infantil, de suas maneiras doces
e caprichosas, da sua feroz e trêmula graça. Dorian recusou-as apressado e
contemplou novamente o retrato. Sentiu que era chegado o tempo de fazer desta
vez a sua escolha. Esta ainda não haveria sido feita? Sim, a vida havia
decidido por ele…a vida e sua penetrante curiosidade…A eterna mocidade, a
infinita paixão, os prazeres sutis e secretos, as alegrias ardentes e os
pecados ainda mais ardentes – tudo ele devia conhecer. O retrato conservaria o
peso de sua vergonha – e eis tudo!…

Tomou-o
uma sensação de dor, ao pensar na desagregação que experimentaria a sua bela
face pintada na tela. Uma vez – zombaria infantil de Narciso – ele havia
beijado ou fingido beijar esses lábios pintados, que agora lhe sorriam tão
cruelmente. Dias e dias, ele se colocara diante do seu retrato, maravilhando-se
da própria beleza, quase enamorado dela, como muitas vezes lhe pareceu…
Presentemente, ela se alteraria diante de cada pecado ao qual ele cedesse? Aí
estaria um monstruoso e desprezível objeto destinado a encerrar-se em um quarto
de cadeados, longe da luz solar que tantas vezes acendera o ouro de sua
cabeleira ondeada? Que irrisão sem termos!

Num
momento, lembrou-se de orar para que cessasse a nefanda simpatia existente
entre ele e o retrato. Uma prece a criara; talvez outra prece conseguisse
destruí-la…

Quem,
entretanto, conhecendo a vida, hesitaria em manter a sorte de conservar-se
sempre moço, por mais fantástica que tal sorte se manifestasse, e em arrostar
as consequências que tal resolução produzisse?… Tudo isso, porém, dependeria
da sua vontade?

Essa
substituição teria sido verdadeiramente produzida pela prece? Não haveria
alguma razão científica capaz de explicá-la? Se o pensamento chegava a exercer
uma influência no organismo vivo, essa influência não poderia estender-se às
coisas mortas ou inorgânicas? As coisas exteriores relativamente a nós, sem
pensamento ou desejo consciente, não poderiam vibrar de conformidade com os
nossos humores e paixões, o átomo atraindo o átomo em um amor secreto ou por
uma estranha afinidade? A razão, porém, era sem importância. Ele não tentaria
mais, por meio da oração, tão arriscado poder. Se a pintura estava destinada a
alterar-se, nada conseguiria impedi-la. Era evidente. Por que aprofundar o
caso? Ele teria, de resto, um verdadeiro prazer em observar essa transformação.
Poderia acompanhar o seu espírito pelos pensamentos secretos; o retrato lhe
seria o mais magnífico dos espelhos. Como já lhe havia revelado o próprio
corpo, também lhe revelaria a própria alma. E quando sobre o mesmo quadro se
exibissem os efeitos do inverno da vida, nele seu modelo vivo, resplandeceria a
trêmula auréola da primavera e do estio. Quando o sangue lhe viesse à face,
deixando atrás uma máscara lívida de giz, ele guardaria o fulgor da
adolescência. A floração de sua idade não se apagaria: o pulso da vida não se
lhe enfraqueceria. Como os deuses da Grécia, seria forte, lépido e alegre. Que
poderia provocar em sua figura o que se verificava reproduzido na tela? Ele
estava salvo: tudo se resumia nisto!…

Sorrindo,
Dorian repôs o biombo na mesma posição, em frente ao retrato, e passou ao
quarto onde o esperava o criado. Uma hora mais tarde, achava-se na Ópera, onde
lord Henry se apoiava ao encosto da sua poltrona.

 

IX

 

No dia
seguinte, pela manhã, enquanto ele almoçava, Basil Hallward entrou.


Sinto-me feliz por encontrar-te, Dorian – declarou o pintor gravemente – Vim
ontem, à noite, e disseram-me que estavas na Ópera. Eu vi logo que era
impossível; mas quisera que me houvesses deixado uma palavra, dizendo-me onde
foste. Passei uma noite bem triste, receando que a primeira tragédia fosse
seguida de outra. Deverias telegrafar-me, desde que ouviste falar… Li, por
acaso, a notícia na última edição do ‘Globe’, no clube. Corri imediatamente até
aqui e fiquei deveras desolado por não te encontrar. Não sei dizer-te quanto
tive o coração ferido por tudo isso. Avalio o que deves estar sofrendo. Onde,
porém, estavas tu? Foste ver a mãe da pobre moça? Pensei um instante em ir lá
procurar-te, pois o jornal trazia o seu endereço. Um ponto qualquer em Euston
Road, não é? Mas receei importunar uma dor que eu não podia consolar. Pobre
mulher! Em que estado deveria estar! Sua única filha!…Que dizia ela?

– Meu
caro Basil, o que sei eu? – rosnou Dorian Gray, saboreando por pequenos goles
um vinho amarelo–claro, em um cálice de Veneza delicadamente contornado e
dourado, e mostrando-se profundamente enfastiado – Eu estava na Opera e tu lá
deverias ter ido. Encontrei, pela primeira vez, lady Gwendoline, a irmã de
Harry. Estávamos no seu camarote. Ela é positivamente sedutora e a Patti cantou
divinamente. Não relembres coisas terríficas. Se nunca se falasse de um fato,
ele se apagaria como se nunca houvesse ocorrido. É exclusivamente a expressão,
como diz Harry, que empresta uma realidade às coisas. Devo dizer-te que a pobre
mulher não possuía uma única filha; tem ainda um filho, um belo rapaz, creio
eu; mas não está no teatro; é marinheiro ou qualquer coisa parecida. E agora me
fala de ti e do que vais pintar…

–Tu
estiveste na Ópera?… – inquiriu lentamente Hallward, com uma vibração de
tristeza na voz – Tu estiveste na Ópera, enquanto Sibyl Vane repousava morta em
um sórdido alojamento? Pudeste falar-me de outras mulheres belas e da Patti,
que cantava divinamente, antes mesmo que a rapariga que amavas tenha a quietude
de um túmulo para nele dormir?… Tu então não pensas nos horrores reservados a
esse corpinho?


Detém-te, Basil, não quero ouvir-te! – exclamou Dorian, levantando-se. – Não
toques em tais assuntos. O que está feito está feito: o passado é o passado.

– Tu
chamas passado o dia de ontem?

– O que
se passa no presente instante vai pertencer-lhe. Somente as criaturas
superficiais exigem anos para libertar-se de uma emoção. Um homem senhor de si
próprio acaba com um desgosto tão facilmente como pode inventar um prazer. Não
quero estar à mercê de minhas emoções; mas, sim, usá-las, torná-las agradáveis
e dominá-las.

– Dorian,
isto é inqualificável!… Qualquer coisa te modificou inteiramente. Tu
conservas as aparências desse maravilhoso jovem que ia todos os dias ao meu
atelier para retratar-se. Eras, porém, nesse tempo, natural, simples e terno.
Eras, então, a menos enxovalhada das criaturas. Atualmente não sei o que se
passou contigo. Tu falas como se não possuísses nem coração, nem sentimento. É
a influência de Harry que te contaminou; eu bem vejo…

O jovem
enrubesceu e, dirigindo-se à janela, ali permaneceu alguns instantes,
considerando o gramado coberto de flores e sol.

– Eu devo
muito a Harry, Basil– objetou ele por fim – devo-lhe mais do que a ti, que só
me ensinaste a ser vão.


Deveras?…Também já estou punido, Dorian, ou hei de sê-lo qualquer dia?

– Não sei
o que queres dizer, Basil – bradou o outro voltando-se. – Não sei o que tu
queres. Que queres tu?

– Eu
desejara reencontrar o Dorian Gray que pintei – explicou o artista tristemente.

– Basil,
– falou o adolescente, indo a ele e pousando-lhe a mão no ombro –, tu chegaste
muito tarde. Ontem, quando tive notícia de que Sibyl Vane se havia suicidado…


Suicidado, meu Deus; é bem verdade? –bradou Hallward, fitando-o com uma
expressão de assombro.

– Meu
caro Basil, tu seguramente não pensavas que se tratasse de um acidente vulgar.
Positivamente, ela suicidou-se. – O outro apertou a cabeça entre as mãos.

– É
calamitoso – pronunciou ele, enquanto um tremor o percorria.

– Não, –
ponderou Dorian Gray – nada há de calamitoso. Trata-se de uma das maiores
tragédias românticas do nosso tempo. Ordinariamente, os atores levam a
existência mais banal. São bons maridos, mulheres fiéis, qualquer coisa de
enfadonha; tu compreendes: uma virtude mediana e o mais que se segue. Como
Sibyl era diferente! Ela viveu a sua mais bela tragédia; foi constantemente uma
heroína. Na última noite em que representou, na noite em que a viste, o seu
desempenho foi mau porque chegara a compreender a realidade do amor. Quando
conheceu as suas decepções, morreu, como teria morrido Julieta. Sob este
aspecto, ela ainda pertence ao domínio da arte. Tem em si o que quer que seja
de uma mártir. A sua morte apresenta toda a inutilidade patética do martírio,
toda uma beleza de desolação. Mas não creias que eu nada sofri. Se houvesses
chegado ontem, a certo momento – pelas cinco horas e meia talvez, ou seis horas
menos um quarto – ter-me–ias encontrado em lágrimas… O próprio Harry que aqui
estava e que, de fato, trouxe-me a notícia, não sabia aonde eu pretendia
chegar. Sofri intensamente. Depois tudo passou. Não posso repelir uma emoção.
Ninguém, de resto, consegue fazê-lo, a não ser os sentimentais. E tu és ferinamente
injusto, Basil: tu aqui apareces para consolar-me, o que é gentil de tua parte;
encontras-me inteiramente consolado e ficas, por este motivo, furibundo!… Tal
qual uma pessoa simpática! Lembras-me uma história referida por Harry, a
propósito de certo filantropo que despendeu vinte anos de vida tentando
concertar um erro ou modificar uma lei injusta. Já não sei bem exatamente.
Afinal, conseguiu e nada foi comparável ao seu desespero. Ele nada mais tinha a
fazer, senão morrer de tédio, e transformou-se num misantropo convencido.
Agora, meu caro Basil, se, na verdade, tu pretendes consolar-me, ensina-me a
esquecer o que se passou ou a considerar a catástrofe sob um ponto de vista
bastante artístico. Não foi Gautier quem escreveu sobre a “Consolação das
Artes”? Lembro-me de haver achado um dia no teu atelier um pequeno volume
de velino encadernado, onde colhi essa expressão deliciosa. Ainda não serei eu
como esse jovem, de quem me falavas quando estivemos juntos em Marlow, esse
jovem que dizia achar no cetim amarelo consolo para todas as misérias da vida?
Amo as belas coisas, que podemos apalpar e guardar: os velhos brocados, os
bronzes verdes, as lacas, os marfins estranhamente lavrados, adornados; há
muito a tirar de tais objetos. Para mim, porém, o temperamento artístico que
eles, ao menos, revelam vale mais ainda. Tornar-se espectador de sua própria
vida, como diz Harry, é escapar-se aos sofrimentos terrestres. Eu bem sei que
te assusto falando assim. Tu não chegaste a compreender como eu me desenvolvi.
Quando me conheceste eu era um colegial; atualmente, sou um homem, alimento
novas paixões, tenho novos pensamentos e ideias novas. Estou transformado, mas
nem por isso deves querer-me menos; estou mudado, mas serás sempre meu amigo.
Certamente, estimo muito Harry; bem sei que tu és superior a ele… Não és mais
forte, tens muito medo da vida, mas és melhor. Como éramos felizes juntos! Não
me abandones, Basil, e não discutas comigo; sou o que sou. Nada mais tenho a
acrescentar!

O pintor
parecia singularmente comovido. O rapaz era-lhe muito caro e a sua
personalidade marcara-lhe a transmutação da arte. Não pôde sustentar a ideia de
fazer-lhe por mais tempo censuras. Afinal, toda aquela indiferença podia não
ser mais que um passageiro humor, pois nele havia bastante bondade e nobreza.

– Muito
bem, Dorian – falou por fim o artista, com um sorriso de mágoa – de hoje em
diante, eu não te farei a menor referência a esse intolerável assunto. Espero
somente que teu nome não seja nele envolvido. Esta tarde, deverão proceder ao
inquérito. Foste intimado a comparecer?

Dorian
balanceou negativamente a cabeça e, a esta palavra “inquérito”, seus
traços deram-lhe um ar de enfado. Havia nessa palavra tanta brutalidade e
vulgaridade!

– Não
conhecem o meu nome – declarou ele.

– E ela,
certamente, conhecia-o.

– Só o
prenome; e tenho a certeza de que jamais o disse a ninguém. Uma vez, contou-me
que todos tinham a curiosidade de saber quem eu era e que ela, invariavelmente,
a todos respondia que eu me chamava o “Príncipe Encantador”. Era
gentil da parte dela. Basil, será preciso que me faças um croqui de Sibyl. Eu
quisera possuir dela alguma coisa, além da lembrança de alguns beijos e de
alguns retalhos de frases patéticas.


Tentarei fazer alguma coisa, Dorian, se assim é de teu agrado. É necessário,
porém, que tu voltes a posar. Não posso passar sem ti.

– Não
posso mais posar para teu pincel, Basil. É absolutamente impossível! -afirmou
ele recuando.

O pintor
olhou-o.


Criança, que tolice! Pretenderás dizer que o que eu faço de ti já não te
agrada? Ou é a propósito?… Por que desdobraste o biombo em frente ao teu
retrato? Deixa-me vê-lo. É o melhor trabalho que até hoje executei. Afasta esse
biombo, Dorian. É verdadeira grosseria da parte de teu criado ocultar assim a
minha obra. Bem me pareceu que qualquer coisa havia sido mudada, quando aqui
entrei.

– Meu
criado nada tem com isso, Basil. Tu não hás de supor que eu deixe a gosto dele
o arranjo dos meus aposentos. Ele dispõe as flores algumas vezes, e é tudo. Eu
mesmo faço o resto. A luz caía muito cruamente sobre o retrato.

– Muito
cruamente! Mas, absolutamente não, meu caro amigo. A exposição está esplêndida.
Deixa-me ver.

E
Hallward dirigiu-se para o canto do compartimento. Um grito de pavor escapou-se
dos lábios de Dorian Gray, que se arremessou entre o pintor e o biombo.

– Basil!
– clamou, empalidecendo – não verás isto, que eu não quero!

– Não ver
minha própria obra! Falas sério? Por que não hei de vê-la? – perguntou
Hallward, risonho.

– Se
tentares vê-la, Basil, dou-te a minha palavra de honra, nunca mais te falarei.
Falo muito seriamente, não te ofereço explicação alguma e é inútil pedi-la. No
entanto, reflete bem: se tocares no biombo, está tudo acabado entre nós.

Hallward
sentia-se como fulminado. Ele nunca o vira assim; o rapaz estava desfigurado de
cólera; crispava as mãos e seus olhos lembravam duas chamas azuis. Um tremor
tomara-lhe o corpo todo…

– Dorian!

– Não
fales!

– Mas,
que há, criatura? Certamente, não o espiarei, se não queres – assegurou
Hallward, um pouco friamente, virando-se nos calcanhares e dirigindo-se à
janela –; mas me parece um pouco absurdo que eu não possa ver a minha obra,
sobretudo quando pretendo expô-la em Paris, pelo próximo outono. Será
necessário que eu lhe dê uma nova camada de verniz, daqui até lá; assim,
deverei vê-la um dia; por que não agora?


Expô-la… Queres expô-la? – interrogou Dorian, tomado de um estranho terror.

O mundo
contemplaria, pois, o seu segredo? Viriam abrir a boca ante o mistério de sua
vida? Era impossível! Qualquer coisa – não sabia o que ocorreria antes…

– Sim –
confirmou Hallward – e não suponho que tenhas motivo sério a objetar. Georges
Petit vai reunir minhas melhores telas para uma exposição especial, que
inaugurará na Rue de Sèze, durante a primeira semana de outubro. O retrato
ficará fora daqui apenas um mês; durante esse lapso de tempo, creio que podes
facilmente separar-te dele. De resto, estarás com certeza ausente da cidade. E
se o deixares sempre atrás do biombo, bem pouca atenção te dará.

Dorian
passou a mão pela fronte umedecida de suor: teve a ideia de que se achava
exposto a um grande perigo.


Declaraste-me, há um mês, que nunca o exporias – bradou ele – Por que mudaste
assim de parecer? Vós outros, que passais por constantes, tendes tantos
caprichos como os mais fantasistas. Neste caso, a única diferença é que os teus
caprichos são sem a menor significação. Tu não deves esquecer-te de que me
asseguraste solenemente que nada no mundo te levaria a expô-lo. Disseste
exatamente o mesmo a Harry.

Subitamente,
calou-se; passou-lhe um corisco pelos olhos. Lembrou-se de que lord Henry um
dia lhe dissera, um pouco seriamente, um pouco risonho: “Se tu queres
passar um curioso quarto de hora, pergunta a Basil por que motivo ele não quer
expor o teu retrato. A mim ele disse, e foi para mim uma revelação”. Sim,
talvez Basil também possuísse o seu segredo. Ele procuraria descobri-lo…

– Basil –
falou ele – aproximando-se bem do outro e fixando-o nos olhos –, cada um de nós
tem o seu segredo. Faze-me conhecer o teu; que te contarei o meu. Por que razão
tu te negavas a expor o meu retrato?

O pintor
teve um calafrio, bem contra a vontade.

– Dorian,
se eu ti revelasse tu poderias prezar-me menos e, com certeza, te ririas de
mim; eu não suportaria nem uma, nem outra coisa. Se tu queres que eu não veja
mais o teu retrato, está direito… Eu poderei, ao menos, ver-te sempre em
pessoa… Se exiges que a melhor de minhas obras fique sempre oculta aos
olhares mundanos, eu concordo… Tua amizade me é mais preciosa do que toda a glória
ou toda a fama.

– Não,
Basil, é preciso que mo reveles – insistiu Dorian Gray – creio ter o direito de
sabê-lo.

A sua
impressão de terror havia desaparecido, substituída pela de curiosidade. Estava
resolvido a conhecer o segredo de Basil Hallward.


Sentemo-nos – Dorian, convidou o pintor perturbado – sentemo-nos; e responde à
minha pergunta. Notaste no retrato alguma coisa curiosa? Uma coisa que,
provavelmente, não te impressionou, a princípio, mas que te foi depois revelada
subitamente?

– Basil!
– exclamou o jovem, apertando com mãos trêmulas os braços da poltrona e fixando
o companheiro com os olhos ardentes e esgazeados.

– Percebo
que tu notaste… Não fales! Procura primeiro ouvir o que tenho a dizer-te,
Dorian, desde o dia em que te vi, a tua personalidade exerceu em mim uma
influência extraordinária. Eu fui dominado, alma, cérebro e talento, por ti. Tu
tornavas para mim a visível encarnação desse ideal jamais visto, cuja concepção
persegue a nós, artistas, como um sonho extravagante. Eu te amava: enchi-me de
ciúmes contra todos aqueles com os quais falavas, queria possuir-te só para
mim, só me sentia feliz quando estava junto de ti. Quando te afastavas de mim,
ficavas ainda presente na minha arte… É claro que nunca te dei a perceber
nada disso. Seria impossível. Tu não terias compreendido, porque eu mesmo mal
chego a compreender. Reconheci somente que havia visto a perfeição face a face
e o mundo tornou-se maravilhoso a meus olhos, excessivamente maravilhoso,
talvez, porquanto há um grande perigo em tais adorações, o perigo de perdê-las,
não menor que o de conservá-las… As semanas passavam e eu me absorvia cada
vez, mais em ti. Então começou uma fase nova. Eu te havia desenhado pastor,
como Paris, revestido de uma delicada armadura, e caçador, como Adônis, armado
de um chuço polido. Coroado de grandes flores de lótus, tu te puseras à proa da
trireme de Adriano, olhando além do Nilo verde e lamacento. Tu te havias
debruçado sobre as límpidas águas da piscina de uma paisagem grega, mirando na
prata dessas águas silenciosas a magnificência de teu próprio semblante. E tudo
isso era apenas o que a arte podia ser: inconsciência, ideal, aproximações. Um
dia fatal, do qual, às vezes, me lembro, resolvi pintar um esplêndido retrato
teu; pintar-te tal como és hoje, não em hábitos de tempos esquecidos, mas nas
tuas próprias vestes e segundo a tua época. Não sei dizer se seria o realismo
do assunto ou a simples ideia da tua própria personalidade o que assim se me
apresentava sem cercaduras e sem véus. Sei, porém, que, enquanto compunha esse
quadro, cada pincelada, cada toque de colorido, dava-me a entender que revelava
o meu segredo. Assustei-me à ideia de que todos viessem a conhecer a minha
idolatria. Senti, Dorian, que havia falado demais e transmitido muito de mim
mesmo a essa obra. Então, resolvi jamais consentir na exposição do retrato. Tu
te mostraste um pouco contrariado, mas, então, mal poderias calcular o que tudo
isso significava para mim. Harry, a quem falei a respeito, pôs-se a
zombetear-me, mas eu pouco me incomodava. Quando terminei o quadro e
assentei-me sozinho diante dele, senti que tinha razão… Alguns dias, porém,
depois dele me sair do atelier, desde que me vi desembaraçado da intolerável
fascinação da sua presença, concluí que devia estar louco imaginando haver
visto em tal tela outra coisa além da tua beleza, e mais coisas que nem podia
pintar. Atualmente mesmo, não posso deixar de sentir o erro que há em crer que
a paixão experimentada na criação chegue um dia a patentear-se na obra acabada.
A arte é sempre mais abstrata do que a imaginamos. A forma e a cor nos falam de
forma e cor, e eis tudo. Muitas vezes tenho pensado que a obra mais facilmente
oculta o artista do que o revela. Assim, quando recebi esse convite de Paris,
resolvi fazer do teu retrato o ‘clou’ da minha exposição. Nunca, supus que me
pudesses recusá-lo. Agora percebo que tens razão. Esse retrato não pode ser
exibido. Não me queiras agora menos. Dorian por tudo quanto acabo de
confessar-te. Como disse uma vez a Harry, foste feito para ser amado…

Dorian
Gray suspirou longamente. Suas faces se coloriram de novo e um sorriso
perpassou-lhe nos lábios. O perigo estava dissipado. Por aquele momento, ele
estava salvo. Não podia, contudo, furtar-se a uma imensa piedade pelo pintor que
acabava de fazer-lhe uma tão estranha confissão, e a si mesmo inquiria se algum
dia ele próprio chegaria a ser assim dominado pela personalidade de um amigo.
Lord Henry possuía esse encanto de ser muito perigoso – mas só isso. Era muito
hábil e muito cínico para que se o pudesse verdadeiramente amar. Dar-se–ia o
caso de um dia surgir alguém que lhe despertasse tão curiosa idolatria? Seria
uma das coisas que a vida lhe reservava?…

– Acho
extraordinário, Dorian – disse Hallward – que realmente tenhas visto o que te
referi, no retrato. Viste, de fato?

– Nele vi
qualquer coisa – respondeu Dorian – qualquer coisa que me pareceu muito
curiosa.

– Bem,
permites agora que eu o examine? – Dorian balanceou negativamente a cabeça.

– Não
deves repetir-me tal pedido, Basil, efetivamente não posso deixar-te diante
desse quadro.

– Um dia
hás de consentir.

– Nunca!

– Talvez
tenhas razão. E agora, até a vista, Dorian. Tu foste a única pessoa em minha
vida que exerceu legítima influência sobre o meu talento. Devo a ti tudo o que
fiz de bom. Ah! Tu não avalias quanto me custa declarar-te tudo isto!…

– Meu
caro Basil –interrompeu Dorian –, que me declaraste afinal? Simplesmente que
sentias admirar-me muito… Não chega a ser um cumprimento.

– Não
podia ser um cumprimento. Era uma confissão; agora que já a fiz parece que de
mim se desprendeu alguma coisa. Talvez não se deva exprimir a própria adoração
por palavras.

– Foi uma
confissão bem desapontadora.

– Que
esperavas, Dorian? Nada percebeste a mais no quadro? Não havia outra coisa a
ver nele?…

– Não,
não havia mais nada a ver. Por que perguntas? Não deves, porém, falar de
adoração. É uma tolice. Eu e tu somos dois amigos e assim nos devemos
conservar…

– Fica-te
restando Harry – disse o pintor tristemente.

– Oh! –
exclamou o adolescente, numa gargalhada – Harry passa os dias a articular
coisas incríveis e suas noites a praticar coisas inverossímeis. Precisamente o
gênero de vida que eu desejaria levar. Não creio, porém, que irei em busca de
Harry, em um momento de embaraço; correrei de preferência a ti, Basil.

– E ainda
posso contar contigo para modelo?


Impossível!

– Dorian,
destróis com essa recusa a minha vida de artista. Nenhum homem encontra duas
vezes o seu ideal; bem poucos tem uma só vez esta sorte.

– Não
posso dar-te explicações, Basil; não devo mais servir-te de modelo. Há não sei
o quê de fatal num retrato. Tem a sua vida própria… Irei tomar chá contigo.
Isto também será agradável.

– Talvez
agrade mais a ti – murmurou Hallward com tristeza – E, agora, até outra vista.
Retiro-me aborrecido, por não me deixares ver mais uma vez o quadro. Mas isso
não tem remédio. Compreendo perfeitamente o que tu sentes.

Quando o
outro partiu, Dorian sorriu intimamente. Pobre Basil! Como ele estava longe de
conhecer a verdadeira razão! E como era estrambótico o fato de haver arrancado
o segredo de seu amigo, conseguindo-o quase por acaso, em vez de ser forçado a
revelar o seu próprio segredo! Como aquela espantosa confissão o definia aos
próprios olhos! Os absurdos acessos de ciúme do pintor, sua feroz devoção, seus
panegíricos extravagantes, suas curiosas reticências – tudo ele compreendia
presentemente e veio-lhe por tal motivo uma contrariedade. Imaginava que podia
haver qualquer coisa de trágico em uma amizade tão embebida de romanesco.
Suspirou e fez soar o tímpano. O retrato deveria ser forçosamente oculto. Não
podia expor-se por mais tempo ao risco dos outros descobri-lo. Fora verdadeira
loucura deixá-lo, uma hora mesmo, em um compartimento, onde tinham livre acesso
todos os seus amigos.

 

X

 

Ao entrar
o criado, Dorian observou-o atentamente, desejando saber se esse homem tivera a
curiosidade de espiar por trás do biombo. O criado estava inteiramente
impassível e esperava suas ordens. Dorian acendeu um cigarro e caminhou até o
espelho, no qual se contemplou, vendo também daí a face de Victor, que se
refletia. Era uma máscara plácida de servilismo. Nada havia a temer desse lado.
Dorian entendeu, porém, que seria prudente tomar as suas cautelas.

Disse-lhe
em tom velado que chamasse a governanta para falar-lhe e que, em seguida, fosse
ao moldureiro pedir-lhe a remessa imediata de dois dos seus homens. Quando o
criado se afastou, pareceu-lhe que seus olhos se viravam para o biombo. Ou
seria talvez um simples efeito de sua imaginação.

Momentos
depois, a senhora Leaf, enfiada no seu vestido de seda negra, com as mãos
enrugadas cobertas de luvas à moda antiga, entrava na biblioteca. Ele pediu-lhe
a chave da sala de estudos.

– A velha
sala de estudo, senhor Dorian? – perguntou a governanta. – Mas está cheia de
poeira! Preciso pô-la em ordem e limpá-la antes que o senhor lá vá. Não está
absolutamente apresentável a seus olhos…

– Não
exijo que ela esteja em ordem, Leaf. Preciso da chave, simplesmente…

– Se lá
for, porém, senhor, as teias de aranha hão de cobri-lo todo. Pois não se abre
tal sala, há cinco anos, desde que Sua Senhoria morreu…

Dorian
sentiu um estremecimento a essa menção a seu avô, de quem guardava uma triste
lembrança.

– Nada
quer dizer – acentuou – tenho somente necessidade de ver esse aposento, e é
tudo. Dê-me a chave.

– Ei-la,
senhor – disse a velha dama, procurando a chave febrilmente no seu molho –
Ei-la aqui. Vou já fazer arrancá-la do molho. Mas nem quero pensar que o senhor
se propõe a morar lá em cima, quando aqui está tão confortavelmente.

– Não,
não… – bradou ele com impaciência – Obrigado, Leaf. Muito bem.

Ela
demorou-se ainda um momento, discorrendo muito loquaz sobre alguns pormenores
do interior. Ele suspirou e declarou-lhe que fizesse como entendesse, segundo
sua ideia. Ela retirou-se papagueando.

Quando
viu a porta cerrada, Dorian meteu a chave no bolso e olhou ao redor de si; seus
olhares detiveram-se em um grande cobertor de cetim púrpura, todo bordado de
ouro, um esplêndido trabalho veneziano do século XVII, descoberto por seu avô
em um convento perto de Bolonha. Sim, essa colcha poderia servir para envolver
o triste objeto. Talvez esse estofo já houvesse até servido de pano mortuário.
Tratava-se presentemente de cobrir uma coisa que estava mesmo a corromper-se,
numa corrupção pior até que a da morte, uma coisa capaz de despertar horror e
que, entretanto, não morreria. O que os vermes são para um cadáver, seus
pecados seriam para a imagem pintada nessa tela. Destruiriam a sua beleza,
corroeriam a sua graça. Haviam de enodoá-la e cobririam-na  de vergonha… Apesar de tudo, a imagem
persistiria e sempre se conservaria viva.

Dorian
enrubesceu e lastimou, durante um momento, que não houvesse desvendado Basil a
verdadeira razão pela qual desejava ocultar esse quadro. Basil o teria ajudado
a resistir à influência de lord Henry e às influências ainda mais envenenadas
de seu próprio temperamento. O amor que ele lhe tinha – pois era efetivamente
amor – só transpirava nobreza e intelectualidade. Não era essa simples
admiração da beleza física, que nasce dos sentidos e que se perde com a simples
fadiga dos mesmos sentidos. Era esse outro amor que conheceram Michelângelo,
Montaigne, Winckelmann e o próprio Shakespeare. Sim, Basil poderia tê-lo salvo;
mas, no momento, já viria muito tarde. O passado poderia ser aniquilado. Os
arrependimentos, as abjurações ou o esquecimento permitiriam isso, mas o futuro
era inevitável. Havia nele paixões que teriam sua terrível descendência, sonhos
que nele projetariam a sombra de sua perversa realidade.

Dorian
apanhou sobre o leito o grande estofo de seda e ouro que o cobria e, dobrando-o
no braço, passou-se para trás do biombo. O retrato estaria mais horripilante do
que antes? Pareceu-lhe que nada nele havia mudado e a sua aversão por essa
imagem aumentou ainda mais. Os cabelos de ouro, os olhos azuis e as pétalas
rubras dos lábios, tudo ali estava. A expressão somente era outra. Era
horrivelmente cruel. Em comparação com tudo o que ele ali via de si próprio e
de censuras, como lhe pareciam fúteis os reparos de Basil, a propósito de Sibyl
Vane! Como eram fúteis e sem interesse! Sua própria alma o apreciava dessa tela
e julgava-o. Uma expressão de dor cobriu seus traços e ele atirou a rica colcha
sobre o quadro. No mesmo instante bateram à porta e ele já procurava o outro
lado do biombo justamente na ocasião em que seu criado entrou.

– Os
moldureiros aí estão, senhor.

Pareceu-lhe
que, antes de tudo, seria preciso afastar esse homem. Ele não deveria saber em
que ponto a pintura ficaria escondida. Havia nele qualquer coisa de dissimulado
e seus olhos mostravam-se inquietos e pérfidos. Sentando-se à mesa, Dorian
escreveu um bilhete a lord Henry, pedindo que lhe enviasse qualquer coisa a ler
e recordando-lhe que se deveriam encontrar à noite, às oito horas e um quarto.

– Espera
a resposta – disse ele, entregando o bilhete ao criado – e faze entrar esses
homens.

Dois
minutos depois, bateram de novo à porta e o próprio Mr. Hubbard, o célebre
moldureiro de South Audley Street entrou acompanhado de um jovem ajudante de
aspecto rebarbativo. Mr. Hubbard era um homenzinho viçoso, de costeletas
ruivas, cuja admiração pela arte era fortemente atenuada pela insuficiência
pecuniária dos artistas que com ele tinha negócio. Não deixava, por hábito, a
sua loja. Esperava sempre que fossem à sua procura. A favor de Dorian Gray,
porém, sempre fazia uma exceção. Havia em Dorian qualquer coisa que seduzia
todo o mundo. Vê-lo simplesmente já era uma satisfação.

– Que
serviço poderei prestar-lhe, senhor Gray? – disse esfregando as mãos carnudas e
marcadas de nódoas de verniz. Entendi tomar para mim a honra de interrogá-lo
pessoalmente; tenho justamente uma moldura belíssima, senhor, um achado feito
em um leilão. É velho florentino e procede, segundo creio, de Fonthill…
Conviria admiravelmente a um assunto religioso, senhor Gray.


Contraria-me, senhor Hubbard, o fato de incomodá-lo, fazendo-o subir até cá.
Irei buscar, com certeza, essa moldura, embora não seja atualmente um amador de
arte religiosa; mas, hoje, queria somente fazer subir um quadro ao mais alto
andar da casa. É bastante pesado e eu desejava que me emprestasse dois dos seus
homens.

– Nada de
incômodos, senhor Gray; sinto-me feliz, podendo ser-lhe agradável. Que obra de
arte é essa?

– Ei-la
aqui – respondeu Dorian, dobrando o biombo – Pode transportá-la, tal qual está,
com essa coberta. Desejo que ela não despenque, ao subir.

– Isto é
muito fácil – disse o ilustre enquadrador, pondo-se com o auxílio do seu
aprendiz a desatarraxar o quadro das longas correntes de cobre, às quais estava
suspenso – E até onde deveremos levá-lo, senhor Gray?

– Vou
mostrar-lhe o caminho, senhor Hubbard, se quiser acompanhar-me. Ou talvez
fizesse melhor indo adiante? Creio que não será tão alto, se passarmos pela
escadaria da frente, que é mais larga.

Abriu-lhe
a porta, ambos atravessaram o vestíbulo e começaram a subir. Os ornatos da
moldura tornavam o quadro muito volumoso e, de vez em quando, apesar dos
obsequiosos protestos de Mr. Hubbard que, como todos os negociantes, sentia um
vivo desprazer, vendo um homem aristocrata fazer qualquer coisa de útil, Dorian
lhe prestava o auxílio do seu braço.

– É uma
verdadeira carga a carregar, senhor – disse o homenzinho, bufando, quando
chegaram ao último degrau.

Enxugava
a sua fronte descoberta.

– Creio
que é efetivamente bem pesado – murmurou Dorian, abrindo a porta do quarto que
devia encerrar o estranho segredo de sua vida e dissimular a sua alma aos olhos
dos homens.

Havia
quatro anos que não entrava nesse aposento. Não; desde quando ele lhe servia de
sala de jogo, quando criança e de sala estudo um pouco mais tarde. Era uma
grande sala bem proporcionada que lord Kelso havia feito construir
especialmente para seu neto para essa criança extraordinariamente semelhante à
sua mãe, que por esta e outras razões haviam feito que ele a detestasse e
conservasse-o sempre à distância. Pareceu a Dorian que o aposento pouco havia
mudado. Era bem aquela vasta ‘cassone’ italiana, com seus relevos dourados e
desbotados e as suas fantásticas pinturas em pano, na qual ele, muitas vezes,
ocultara-se, quando menino. Estavam ainda ali as mesmas estantes de madeira
envernizada, cheias de livros de colégio e de páginas enfadonhas. Em certo
ponto, achava-se esticada na parede a mesma tapeçaria flamenga já rasgada, onde
um velho rei e uma rainha jogavam xadrez em um jardim, enquanto uma companhia,
falcoeiros cavalgava ao fundo, trazendo as aves pousadas nos punhos enluvados.
Como tudo isso voltava à sua memória! Todos os instantes de sua infância
solitária eram assim evocados, enquanto olhava em torno. Lembrou-se da pureza
sem mácula da sua vida de menino e pareceu-lhe insuportável que a fatal imagem
devesse ser oculta justamente nesse lugar. Quão pouco ele teria imaginado
nesses dias longínquos tudo o que a vida lhe reservava para mais tarde!

Não
existia, porém, na casa outro aposento tão afastado dos olhares indiscretos.
Ele conservava a chave e ninguém mais, ali, poderia penetrar. Sob o seu estofo
de seda, a face pintada na tela poderia tornar-se bestial, empolada e imunda.
Que importava? Ninguém a veria. Ele próprio não desejaria contemplá-la… Por
que vigiar a corrupção nojenta de sua alma? Ele conservaria a sua mocidade, o
que era bastante. E, em suma, seu caráter não poderia embelezar-se? Não havia
razão alguma para que o futuro viesse a ser tão cheio de vergonhas. Um amor
ainda poderia atravessar-lhe a vida, purificá-la e arrancá-la desses pecados já
rastejantes, ao redor de si, em carne e espírito – desses pecados
extravagantes, e não descritos, aos quais ao mistério empresta o seu encanto e
a sua sutileza. Talvez um dia a expressão cruel abandonasse a boca escarlate e
sensitiva, e ele então poderia exibir ao mundo a obra-prima de Basil Hallward.

Mas não:
isso era impossível. De hora em hora, de semana em semana. a imagem pintada
decairia: ela poderia escapar à disformidade do vício, mas a fealdade dos anos
se fixaria. As faces tornar-se-iam encovadas e pelancudas. Os “pés de
galinha” circundariam os olhos amortecidos, assinalando-os com um estigma
horrível. Os cabelos perderiam o brilho; a boca, mole e entreaberta,
apresentaria essa expressão grosseira ou ridícula que possuem todas as bocas de
velho. O pescoço dessa imagem tornar-se-ia rugoso; as mãos mostrariam as veias
azuis salientes; o corpo curvar-se como o do avô, que fora tão áspero para ele
na sua infância. O quadro devia ser afastado de Todos os olhares. Ele não
poderia proceder de outra forma.

– Faça-o
entrar, senhor Hubbard, disse ele penosamente, voltando-se –, lamento tê-lo
feito esperar tanto tempo; pensava em outra coisa.

– Sempre
feliz, por me repousar, senhor Gray, disse o moldureiro, que bufava ainda; onde
o colocaremos?

– Oh! O
lugar pouco importa; aqui… fica bem. Não preciso vê-lo pendurado. Coloque-o
simplesmente contra a parede; obrigado.

– Pode-se
ver essa obra de arte, senhor?

Dorian
estremeceu…

– Isto
não lhe despertaria o menor interesse, senhor Hubbard – disse ele sem tirar os
olhos de cima do homem.

Estava
pronto a saltar em cima do outro e a subjugá-lo, se ele tentasse levantar a
coberta suntuosa que ocultava o segredo de sua vida.

– Não
quero importunar–vos por mais tempo. Já vos sou muito obrigado pela gentileza
que me demonstrastes vindo até aqui.

– Não é
nada, não é nada, senhor Gray. Sempre pronto a servi-lo!

E desceu
rapidamente a escadaria, seguido de seu ajudante, que examinava Dorian com
certo pasmo medroso estampado nos traços grosseiros e desgraciosos. Jamais vira
um homem tão maravilhosamente belo.

Quando se
extinguiu o ruído dos passos, Dorian fechou a porta e enfiou a chave no bolso.
Estava salvo. Ninguém conseguiria mais olhar a horrenda pintura. Nenhum olhar,
senão o seu, poderia surpreender a sua vergonha.

Voltando
à biblioteca, percebeu que já havia soado cinco horas e estava servido o chá.
Sobre uma pequena mesa de madeira perfumada, delicadamente incrustada de nácar,
um presente de lady Radley, a esposa de seu tutor, deliciosa doente
profissional, que passava todos os invernos no Cairo. Achou um bilhete de lord
Henry com um livro amarelo, encadernado, de capa levemente rasgada e com as
bordas das folhas sujas. Um número da terceira edição da ‘Saint James Gazette’
estava colocado sobre a salva de chá. Victor, evidentemente, regressara. Ele
desejava saber se esse criado não encontrara os homens no saguão, quando estes
abandonavam a casa, e se aos mesmos não perguntara o que faziam por ali. Victor
certamente notaria a retirada do quadro ou, sem dúvida, já teria notado, ao
trazer o chá. O biombo não fora colocado no devido lugar e observava-se um
espaço vazio na parede. Talvez o surpreendesse uma noite deslizando pelos altos
da casa, procurando forçar a porta do quarto. Era insuportável conservar um
espião dentro de sua própria casa. Já ouvira falar de pessoas ricas exploradas
durante toda a sua vida por um criado que havia lido uma carta, apanhado uma
conversa, colhido um cartão com um endereço ou encontrado sob um travesseiro
uma flor fanada, um retalho de renda.

Dorian
suspirou e, vertendo o chá, abriu a carta de lord Henry. Este lhe comunicava
simplesmente que lhe enviava o Jornal e um livro, que poderia interessá-lo, e
que estaria no clube às oito horas e um quarto. Desdobrou negligentemente a
‘Saint James Gazette’, passando-lhe os olhos. Na quinta página, um traço de
lápis vermelho atraiu o seu olhar. Leu atentamente o seguinte parágrafo:

Inquérito
sobre uma atriz. Esta manhã, foi aberto um inquérito em Bell Taverne, Hoxton
Road, por Mr. Danby, ‘coroner’ do distrito, sobre a morte de Sibyl Vane, uma
jovem atriz, recentemente contratada no Royal Theatre, Holborn. Conclui-se ter
sido a morte acidental. Tem sido testemunhada uma grande simpatia à mãe da
extinta, que se mostrou muito abalada enquanto depunha, e durante as
declarações do Dr. Birrell, que redigiu o boletim do falecimento da rapariga.

Dorian
tornou-se taciturno e, rasgando a folha, pôs-se a caminhar no salão, pisando
sobre os pedaços do jornal. Como tudo aquilo se lhe apresentava hediondo! Que
verdadeiro horror criavam as coisas! Ressentiu-se um pouco contra lord Henry
por haver-lhe enviado tal reportagem. Era estúpido de sua parte tê-la
assinalado com um traço vermelho. Victor poderia tê-la lido. Este homem
conhecia bastante inglês para isso.

Talvez
houvesse mesmo lido e já desconfiasse qualquer coisa; mas, afinal, que
consequência isso lhe poderia trazer? Que relação entre Dorian Gray e a morte
de Sibyl Vane? Ele nada tinha a recear. Dorian Gray não era o autor de sua
morte.

Seus
olhares recaíram sobre o livro amarelo, que lord Henry lhe enviara. Que seria
aquilo? Aproximou-se da mesinha octogonal de tons de pérola, que sempre lhe
parecia a obra de algumas exóticas abelhas do Egito trabalhando na prata, e
tomando o volume, instalou-se em uma poltrona e começou a folheá-lo; no fim de
alguns instantes, estava absorvido. Era o livro mais estranho que ele houvera
jamais lido. Pareceu-lhe que aos sons de flautas delicadas, especialmente
vestidos, os pecados do mundo desfilavam diante dele, em silencioso cortejo. O
que havia obscuramente sonhado tomava corpo aos seus olhos; coisas que ele nunca
imaginara revelavam-se lhe gradualmente.

Era um
romance sem intriga, com um único personagem, o simples estudo psicológico de
um jovem parisiense, que ocupava a sua vida procurando realizar, no século XIX,
todas as paixões e modos de pensar dos outros séculos, e de resumir em si os
estados de espírito pelos quais o mundo havia passado, amando pela sua simples
artificialidade essas renúncias, que os homens chamavam nesciamente virtudes,
assim como essas revoltas naturais que os homens de Juízo ainda chamam pecados.
O estilo era curiosamente cinzelado, vivo e obscuro a um tempo, repleto de
gíria e arcaísmos, de expressões técnicas e frases trabalhadas, como o que
caracteriza as obras desses finos artistas da escola francesa: os Simbolistas.
Descobriam-se aí metáforas tão monstruosas como orquídeas e tão sutis, como
elas, de cores. A vida dos sentidos era aí descrita em termos de filosofia
mística. Por momentos, não se sabia mais se eram lidos os êxtases espirituais
de um santo medieval ou as confissões mórbidas de um pecador moderno. Era um
livro envenenado. De suas páginas, desprendiam-se fortes exalações de incenso,
obscurecendo o cérebro. A simples cadência das frases, a insólita monotonia de
sua música cheia de estribilhos complicados e de figuras habilmente repelidas,
evocavam no espírito do moço, à medida que os capítulos se sucediam, uma sorte
de cisma, um sonho doentio, que o fazia inconsciente da queda do dia e da
invasão das sombras. Um céu cinzento–esverdeado, sem nuvens, com uma estrela
solitária, clareava as janelas. Sob essa luz mortiça, ele leu tanto quanto lhe
foi possível ler. Enfim, depois de seu criado várias vezes lembrar-lhe a hora
tardia, levantou-se, foi ao quarto próximo depor o livro sobre a mesinha
florentina, que sempre tinha junto ao seu leito, e vestiu-se para jantar.

Eram
quase nove horas, quando chegou ao clube, onde encontrou lord Henry sentado,
sem uma companhia, no salão, com ares de quem se sentia bastante enfastiado.

– Estou
contrariadíssimo, Harry! – exclamou Dorian. – Mas a culpa é inteiramente tua, o
livro que me enviaste interessou-me por tal forma, que me esqueci da hora.

– Sim,
imaginei que ele te agradasse – replicou, levantando-se.

– Eu não
digo que ele me agrade; digo que me interessou e há nisso uma grande diferença.

– Ah!
Chegaste a descobrir isso! – murmurou lord Henry.

E
passaram à sala de jantar.

 

 

XI

 

Durante
anos, Dorian Gray não pôde libertar-se da influência desse livro, ou, como
seria mais justo dizer, nunca pensou em libertar-se dela. Fizera vir de Paris
nove exemplares luxuosos da primeira edição e dispusera-os em encadernações de
cores diversas, de maneira que pudessem concordar com seus cariados humores e
fantasias instáveis de seu caráter, sobre o qual, por vezes, mostrava não
possuir a menor ação!

O herói
do livro, o jovem e prodigioso parisiense, sobre quem as influências romanescas
e científicas se haviam confundido tão disparadamente, tornou-se-lhe uma sorte
de prefiguração da sua individualidade; e, com efeito, ele lobrigava nesse
volume a história de sua própria vida, escrita antes dele vivê-la!

Sob certo
ponto de vista, ele era mais feliz que o fantástico herói do romance. Jamais
experimentara – e jamais tivera a mínima razão de experimentar – essa
indefinível e grotesca aversão pelos espelhos, superfícies de metal lustrosas,
águas tranquilas, que tão cedo acometeu o jovem parisiense, logo após o
declínio prematuro de uma beleza que antes havia sido tão notável…

Era quase
com uma alegria cruel – a crueldade não tem o seu cabimento em toda alegria
como em todo prazer? – que ele lia a última parte do volume; e fazia a sua bem
trágica e meio enfática análise, sobretudo quando considerava a tristeza e o
desespero daquele que perde o que nos outros e no mundo já havia mais
sinceramente apreciado!

A
indescritível beleza, que tanto havia fascinado Basil Hallward e muitos outros
junto deste, mostrava não dever mais abandoná-lo. Até aqueles que haviam ouvido
a seu respeito as mais insólitas narrativas, quando, de tempos em tempos,
corriam em Londres maus rumores sobre seu modo de vida, então mexerico dos
clubes, não podiam crer no seu desdouro, quando o vissem. Ele conservara sempre
a aparência de um ser não contaminado pelo mundo. Os homens que entre si se
exprimiam sordidamente, silenciavam quando o percebiam. Havia qualquer coisa na
pureza de sua face que os forçava a calarem-se. Sua simples presença parecia
avivar-lhes a memória da inocência que haviam maculado. Causava-lhes admiração
que um tipo tão cheio de graça e formoso pudesse escapar à tara de uma época, a
um tempo tão imundo e sensual.

Muitas
vezes, regressando à residência, após uma dessas ausências misteriosas e
prolongadas, que permitiam tantas conjeturas entre seus amigos ou os que
pensavam sê-lo, ele subia, pé ante pé, até o aposento fechado, abria a porta
com uma chave de que não se separava, e ali, com um espelho na mão, em face do
quadro de Basil Hallward, confrontava as más e envelhecidas feições da tela com
o seu próprio rosto, que lhe sorria no espelho… A acuidade do contraste
aumentava-lhe o prazer, assim tornou-se cada vez mais enamorado de sua própria
beleza, cada vez mais interessado pela deliquescência de sua alma.

Examinava
com cuidado minucioso e, às vezes, com inaudita e bárbara delícia os nefandos
estigmas que aviltavam a fronte rugosa do retrato ou imprimiam-se ao redor da
boca carnuda e sensual, indagando de si mesmo quais seriam os mais execrados,
se as marcas do pecado ou os vestígios da idade… Colocava suas alvas mãos
junto às ásperas e túmidas mãos da pintura, e sorria… Mofava assim do corpo a
deformar-se e dos membros fatigados.

Às vezes,
entretanto, à noite repousado, desperto no seu quarto impregnado de perfumes delicados,
ou na sórdida mansarda da pequena taverna mal afamada, próxima das docas, que
se habituara a frequentar, disfarçado e usando um nome falso, meditava sobre a
consumição a que conduzia sua alma, com um desespero tanto mais pungente quanto
ele era radicalmente egoísta. Eram raros, porém, esses momentos. A grande
curiosidade sobre a vida que lord Henry fora o primeiro a insuflar-lhe, quando
se achavam assentados no jardim do pintor amigo, que desenvolvia com
voluptuosidade. Quanto mais conhecia, mais queria conhecer. Experimentava
apetites devoradores e, à medida que os satisfazia, mais se tomava insaciável.

Dorian,
de resto, não abandonava todas as suas relações com a sociedade. Uma vez ou
duas por mês, durante o inverno, e em cada terça–feira, à noite, durante a
estação, abria aos convidados sua esplêndida morada e tinha os mais célebres
músicos da ocasião, que regalavam os hóspedes com as maravilhas da respectiva
arte.

Seus
pequenos jantares, na organização dos quais lord Henry o ajudava, eram notados,
não só pela cuidadosa seleção e a dignidade dos convivas, como pelo apurado
gosto revelado na decoração da mesa, com seus sutis arranjos simbólicos de
flores exóticas, suas toalhas bordadas, sua antiga baixela de prata e ouro.

Entre os
moços, houve muitos que viram ou julgaram ver em Dorian Gray a verdadeira
realização do tipo por eles sonhado em Eton ou em Oxford, o tipo combinando
qualquer coisa da cultura real do estudante com a graça, a distinção ou as
perfeitas maneiras de um homem de sociedade. Ele parecia-lhes ser daqueles a
que alude o Dante, daqueles que buscam tornar-se “perfeitos pelo culto da
beleza”. Como Gautier, ele era “aquele para quem existe o mundo
visível…”

E,
incontestavelmente, a vida era para ele a primeira, a maior das artes, aquela
junto da qual todas as outras não pareciam mais que simples preparo. A moda,
pela qual o que é realmente fantástico faz-se um instante universal, e o
dandismo que, a seu modo, é uma tentativa de proclamar a modernidade absoluta
da beleza, haviam, naturalmente, prendido a sua atenção. Seu feitio de
vestir-se, as maneiras particulares que, de vez em quando, ele afetava,
produziam uma acentuada influência nos jovens mundanos dos bailes de Mayfair ou
das janelas dos clubes de Pall Mall, que em tudo o imitavam, procurando
reproduzir o atrativo acidental de sua graça.

Isto se
lhe afigurava, de resto, secundário e piegas.

Efetivamente,
embora estivesse pronto a aceitar a posição que se lhe oferecia, ao entrar na
vida, e embora achasse um curioso prazer em pensar que poderia transformar-se,
para a Londres de hoje, no que havia sido, para a Roma imperial de Nero, o
autor do ‘Satiricon’, todavia, no seu íntimo, ele talvez desejasse ser mais que
um simples ‘Arbiter Elegantiarum’, consultado sobre a colocação de um enfeite,
o nó de uma gravata ou o manejo de uma bengala.

Assim,
procurava elaborar qualquer novo esquema de vida, com sua filosofia arrazoada,
seus princípios ordenados, e acharia na espiritualização dos sentidos a sua
mais completa realização.

O culto
dos sentidos tem sido, muitas vezes e com muita justiça, repelido, por se
sentirem os homens instintivamente amedrontados ante as paixões e sensações que
lhes parecem mais fortes e que eles têm a consciência de afrontar com formas de
existência menos organizadas.

A Dorian
Gray, porém, afigurava-se que a verdadeira natureza dos sentidos nunca fora
compreendida; que os homens haviam-se conservado brutos e selvagens porque a
sociedade sempre havia procurado esfomeá-los pela submissão ou aniquilá-los
pela dor, em vez de aspirar a convertê-los nos elementos de uma nova
espiritualidade que teria como característica dominante um instinto sutil de
beleza. Como imaginasse o homem movendo-se na história, preocupou-o um sentido
de derrota… Tantos haviam sido vencidos e por um fim tão mesquinho!

Houvera
abandonos voluntários e desvairados, pasmosas formas de íntima tortura e
renúncia, nascidas do sobressalto, cujo resultado fora uma degradação
infinitamente mais temível do que essa degradação imaginária, que, na sua
ignorância, haviam procurado evitar; fazia então a Natureza, na sua grande
ironia, o anacoreta nutrir-se com as feras do deserto e dava ao eremita, por
companheiros, os animais da planície.

Certamente,
ainda poderia haver, conforme lord Henry profetizava, um novo Hedonismo
recriador da vida, que a libertaria desse grosseiro e desagradável puritanismo
renascente, dos nossos dias. Seria, necessariamente, obra da intelectualidade;
não devia ser aceita teoria alguma, nem qualquer sistema implicaria o
sacrifício de uma forma de experiência passional. Seu fim seria,
verdadeiramente, a própria experiência e não os frutos desta, fossem quais
fossem, doces ou amargos. Não seria admitido o ascetismo, produtor da morte dos
sentidos, e tampouco o desregramento vulgar que os embota; tornar-se–ia
necessário ensinar o homem a concentrar sua vontade sobre os instantes de uma
vida que não passa de um instante.

Após uma
dessas noites sem sonhos, que quase nos fazem suspirar pela morte, ou após uma
dessas noites de angústia e regozijo informe, quando através das células do
cérebro passam fantasmas mais tétricos que a própria realidade, há poucos
dentre nós que não tenham despertado antes do alvorecer, animados de uma vida
ardente propensa a todos os grotescos, que empresta à arte gótica, a sua
persistente vitalidade – sendo esta arte, como se pode crer,a arte peculiar
àqueles cujo espírito já foi turbado pela moléstia da fantasmagoria…

Gradualmente,
dedos brancos agarram-se e sobem pelas cortinas que parecem tremer… Sob
tenebrosas formas fantásticas, sombras mudas se dissimulam pelos cantos do
quarto e se alastram…

Fora, é o
despertar dos pássaros entre a folhagem, o passo dos operários em caminho para
o trabalho, ou os suspiros e soluços do vento dobrando as colinas, rondando em
torno das casas silenciosas, como receando acordar aqueles que, dormindo,
teriam de chamar o sono ao seu antro purpúreo.

Véus e
véus de fina gaze escura esvoaçam e, aos poucos, as coisas recuperam formatos e
cores, enquanto espreitamos a aurora refazendo de fresco o mundo.

Os
espelhos desluzidos tornam a encontrar sua vida mímica. As velas apagadas
conservam-se onde as deixamos e ao lado jaz o livro semi-cortado que líamos, ou
a flor amada que trazíamos no baile, ou a carta que receávamos ler ou tínhamos
lido muitas vezes… Nada nos parece mudado.

Fora das
sombras irreais da noite, ressurge a vida real que conhecemos. Devemos recordar
o ponto em que a deixamos; então, apodera-se de nós um terrível sentimento da continuidade
necessária da energia em qualquer círculo fastidioso de hábitos estereotipados,
ou um agreste desejo de se abrirem, uma manhã, os nossos olhos sobre um mundo
inteiramente refeito nas trevas, para nosso prazer; queremos então um mundo no
qual as coisas apresentem novas formas e novas cores, radicalmente mudado,
outros segredos; um mundo no qual nada caiba do passado e nada sobreviva,
embora sob a forma consciente do reconhecimento ou da saudade, visto a
recordação das alegrias possuir seus amargores e a lembrança do prazer reservar
as suas dores.

A criação
de semelhantes mundos é que se afigurava a Dorian Gray um dos únicos, senão o
único objeto da vida; na sua pesquisa de sensações, isso seria novo, delicioso
e possuiria elemento de bizarria tão essencial ao romance; ele adotaria certos
modos de pensar, que sabia estranhos à sua natureza, entregar-se–ia às suas
capciosas influências, e havendo, desta maneira, colhido suas aparências e
satisfeito à sua curiosidade intelectual, abandoná-los-ia com a célica
indiferença que nada tem de incompatível com um real ardor de temperamento e
chega a ser uma condição necessária a este, segundo certos psicologistas
modernos.

Constou,
durante algum tempo, que se preparava para abraçar a comunhão católica romana; e
evidentemente o ritual romano havia sempre tido para ele um grande atrativo. O
sacrifício cotidiano, mais fortemente real que todos os sacrifícios do mundo
antigo, atraía-o tanto pelo seu soberbo desdém da evidência dos sentidos, como
pela simplicidade primitiva de seus elementos e o eterno patético da tragédia
humana que procura simbolizar.

Dorian
gostava de ajoelhar-se nos frios pavimentos de mármore e contemplar o padre, na
sua rígida dalmática floreada, desviando lentamente com as brancas mãos o véu do
tabernáculo, elevando a custódia cravejada, comendo a alva hóstia, que uns
acreditam ser, na verdade, o ‘panis celestis’, o pão dos anjos – ou, revestido
dos atributos da Paixão do Cristo, quebrando essa hóstia sobre o cálice e
batendo no peito por seus pecados. Os turíbulos fumegantes, que meninos
revestidos de escarlate e sobrepelizes de rendas brancas balouçavam gravemente
no ar, como grandes flores de ouro, seduziam-no infinitamente. E retirando-se,
ele pasmava diante dos confessionários obscuros e demorava-se à sombra de um
deles, sentindo homens e mulheres segredarem através da grade usada a verídica
história de suas vidas.

Jamais,
porém, ele caiu no erro de obstar o seu desenvolvimento intelectual pela
aceitação formal de uma crença ou um sistema, assim como, não tomou para morada
definitiva um albergue justamente apropriado para a passagem de uma noite ou
algumas horas de uma noite sem estrelas e sem lua.

O
misticismo, com o seu extraordinário poder de revestir de bizarria as coisas
vulgares, e a antinomia sutil que parece acompanhá-lo sempre, emocionaram-no
por algum tempo…

Por algum
tempo também mostrou tendências pelas doutrinas materialistas do darwinismo
alemão e descobriu um singular prazer em prender as ideias e paixões dos homens
a alguma célula perolada do cérebro ou a algum nervo branco do corpo,
comprazendo-se ante a concepção da dependência absoluta do espírito, conforme
umas tantas condições físicas mórbidas ou salubres, normais ou anormais.

Como,
porém, já foi dito, nenhuma teoria sobre a vida parecia ter importância,
comparada à sua própria vida. Teve profundamente consciência da esterilidade da
especulação intelectual, quando é separada da ação e da experiência. Percebeu
que os sentidos, não menos do que a alma, também tinham seus mistérios
espirituais e revelados. Pôs-se a estudar os perfumes e os segredos da sua
confecção, destilando óleos poderosamente perfumados, ou queimando resinas
aromáticas vindas do Oriente. Compreendera que não havia disposição de espírito
sem a sua contrapartida na vida sensorial e procurou descobrir as suas
verdadeiras relações: assim, o incenso pareceu-lhe ser a fragrância dos
místicos e o âmbar cinzento, a dos apaixonados; a violeta evoca a memória dos
amores defuntos, um produz a demência e o outro perverte a imaginação. Muitas
vezes, ele tentou estabelecer uma psicologia dos perfumes e avaliar as diversas
influências das raízes odoríferas, das flores carregadas de pólen oloroso, dos
bálsamos rescendentes, das madeiras de cheiro condensado, do nardo indiano da
planta hovênia, que enlouquece os indivíduos e do aloés,do qual se diz que
espanta a melancolia da alma.

Outras
vezes, Dorian dedicava-se inteiramente à música e em uma longa sala de rótulas,
com o teto de vermelhão dourado e paredes verde-azeitona, dava exóticos
concertos, nos quais loucas ciganas tiravam uma ardente música de pequenas
cítaras, graves tunisianos de vestes amarelas, arrancavam sons às cordas de
enormes alaúdes, enquanto negros risonhos batiam com monotonia em tambores de
cobre e, acocorados em esteiras escarlates, magros hindus, de turbante,
sopravam em compridos cachimbos de caniço ou bronze, encantando ou fingindo
encantar grandes serpentes de capuz ou horríveis víboras cornudas.

Os acres
intervalos e as agudas dissonâncias dessa música bárbara despertavam-no quando
a graça de Schubert, as belas tristezas de Chopin e as celestes harmonias de
Beethoven já não podiam comovê-lo.

Ele
recolheu de todos os cantos do mundo os mais esquisitos instrumentos que
conseguiu descobrir, mesmo nos túmulos dos povos mortos ou entre algumas tribos
selvagens que têm sobrevivido à civilização ocidental. Recolhia-os e gostava de
experimentá-los e tocá-los. Possuía o misterioso ‘juruparis’ dos índios do Rio
Negro, que as mulheres não podem ver e sequer os jovens, antes de se sujeitarem
ao jejum e à flagelação; as jarras de barro dos peruvianos, das quais se
extraem sons semelhantes a pios agudos de pássaros; as flautas feitas de ossos
humanos, iguais àquelas que Alfonso Ovalle ouviu no Chile, e os verdes jaspes
sonoros encontrados perto de Cuzco, que dão uma nota de doçura singular.

Ele ainda
guardava cabaças pintadas, cheias de cascalho, que ressoavam ao serem
sacudidas; o longo clarin dos mexicanos, no qual o músico não deve soprar, mas
aspirar o ar; o rude lure das tribos do Amazonas, pelo qual tocam as sentinelas
empoleiradas um dia inteiro nas altas árvores e que pode ser ouvido, segundo
dizem, a três léguas de distância; o ‘teponazili’, de duas vibrantes línguas de
madeira, que se toca com juncos cobertos de uma goma elástica obtida do suco
leitoso das plantas; os sinos dos astecas, denominados ‘yolt’, reunidos em
cachos, e um grande tambor cilíndrico, coberto de peles de serpentes,
semelhante ao que viu Bernardo Diaz, quando entrou com Cortez no templo mexicano,
e cujo som dolorido tanto impressionou pela brilhante descrição que dele nos
faz.

Seduzia-o
o caráter fantástico desses instrumentos e ele tinha um grande gosto ao
refletir que a arte, como a natureza, tinha seus monstros, coisas de formas
bestiais e vozes hediondas. Entretanto, passado algum tempo, tais instrumentos
já o enfastiavam e ele voltava ao seu camarote na Ópera, só ou acompanhado de
lord Henry, a ouvir extasiado o ‘Tannhauser’, percebendo no começo da
obra–prima como o prelúdio da tragédia de sua própria alma.

Dominou-o
depois a fantasia das joias e ele um dia apareceu em um baile disfarçado em
Anne de Joyeuse, almirante de França, trazendo uma farda coberta de quinhentas
e sessenta pérolas. Este gosto o obcecou durante anos e acredita-se que nunca
mais o deixou.

Frequentemente,
Dorian passava dias inteiros arranjando e desarranjando nas caixinhas as
variadas pedras que colecionara, como, por exemplo, o crisoberilo esverdeado,
que fica rubro sob luz da lâmpada, o cimofânio estriado de prata, o peridoto de
verde ‘pistache’, os topázios róseos e amarelos, os carbúnculos de ígneo
escarlate, com estrelas faiscantes de quatro raios, as espinelas alaranjadas e
violáceas e as ametistas com camadas alternadas de rubis e safiras.

Ele amava
o ouro ardente da pedra solar, a brancura perolada da pedra lunar, o arco–íris
partido da opala leitosa. Fez vir de Amsterdã três esmeraldas de extraordinário
tamanho e uma incomparável riqueza de cor e possuiu uma turquesa “da velha
rocha” que despertou inveja a todos os conhecedores.

Descobriu
também maravilhosas histórias de pedrarias… Na ‘Clericalis Disciplina’ de
Alfonso, alude-se a uma serpente que tinha por olhos legítimos jacintos, e na
história romanesca de Alexandre é narrado que o conquistador da Emátia viu, no
vale do Jordão, serpentes “trazendo na espinha colares de esmeralda”.

Filostrato
refere-se à existência de uma gema no cérebro de um dragão, devido à qual,
“pela exibição de letras de ouro e uma túnica purpúrea”, seria
possível adormecer o monstro e matá-lo.

Segundo o
grande alquimista Pierre de Boniface, o diamante faria um homem invisível e a
ágata das índias o tornaria eloquente. A cornalina abrandava a cólera, o
jacinto provocava o sono e a ametista enxotava os vapores da bebedeira. A
granada afugentava os demônios e os hidrópicos alteravam a cor da lua. A
selenita perdia ou ganhava intensidade na cor, conforme a lua, e o meloceus,
que permitia descobrir os ladrões, só seria descorado pelo sangue de um
cabrito.

Leonardus
Camillus vira uma pedra branca, recolhida dos miolos de um sapo recentemente
morto, que era um antídoto infalível contra os venenos; o bezoar, então achado
nos corações das antílopes, era um feitiço contra a peste: e segundo Demócrito,
a aspilote, que se descobria nos ninhos dos pássaros da Arábia, preservava os
que a conduziam de todo perigo proveniente do fogo.

Um rei de
Ceilão, para a cerimônia do seu coroamento, atravessou sua cidade a cavalo,
levantando um enorme rubi na mão. As portas do palácio de João, o Padre, eram
“feitas de sárdonix, entre as quais se incrustara o chifre de uma víbora
cornuda, o que impedia a entrada de qualquer homem portador de peçonhas”.

Na
frontaria, viam-se “duas maçãs de ouro, nas quais estavam cravejados dois
carbúnculos”, de modo a luzir o ouro de dia, resplandecendo, à noite, os
carbúnculos.

No
estranho romance de Lodge, ‘Uma pérola da América’ está escrito que no aposento
rainha viam-se “todas as mulheres castas do mundo, vestidas de prata,
mirando-se em belíssimos espelhos de crisólitas, carbúnculos, safiras e
esmeraldas verdes”. Marco Polo viu os habitantes do Zipango depor pérolas
róseas na boca dos cadáveres.

Um
monstro marinho havia-se enamorado da pérola que um mergulhador trazia ao Rei
Perozes, matara o ladrão e chorara sete luas a perda da joia. Quando os hunos
atiraram o rei a uma grande fossa, ele voou, segundo nos narra Procópio, e
nunca mais foi visto, embora o Imperador Anastácio oferecesse quinhentas
toneladas de fragmentos de ouro a quem o descobrisse… O Rei de Malabra
mostrou a certo veneziano um rosário de trezentas e quatro pérolas, cada uma
dedicada a cada deus que ele adorava.

Quando o
Duque de Valentinois, filho de Alexandre IV, visitou Luís XII, de França, a
armadura de seu cavalo, a dar-se crédito a Brantôme, era toda de lâminas de
ouro, o seu chapéu trazia uma dupla fieira de rubis produzindo admirável
resplendor. Carlos da Inglaterra montava a cavalo, servindo-se de estribos com
quatrocentos e vinte e um diamantes engastados. Ricardo II possuía um manto
avaliado em 30 mil marcos, coberto de ‘rubis-alhetes’.

Hall
descreve Henrique VIII indo a Tarre antes de seu coroamento e trazendo “um
gibão bordado de ouro, o peito de armas recamado de diamantes e outras ricas
pedrarias e, em torno do pescoço, uma larga faixa com enormes rubis
incrustados”.

Os
favoritos de James I usavam brincos de esmeraldas presas em filigranas de ouro.
Eduardo II deu a Piers Gaveston uma armadura de ouro fulvo marchetada de
jacintos, um colar de rosas de ouro combinadas com turquesas e um capacete todo
pontilhado de pérolas… Henrique II enfiava luvas guarnecidas de pedrarias,
subindo até os cotovelos e tinha uma de falcoaria, coberta de vinte rubis e
cinquenta e duas pérolas. O chapéu ducal de Carlos, o Temerário, último Duque
de Borgonha, era carregado de pérolas piriformes e de safiras.

Extraordinária
vida a de outrora! Que magnificência no luxo e na decoração! A simples leitura
desse fausto dos tempos abolidos parecia ainda enlevar!

Dorian,
porém, volveu depois sua atenção para os bordados, as tapeçarias, que
substituíam os frescos nas frias salas das nações do Norte. E como se
absorvesse no trato desses objetos – pois sempre tivera a extraordinária
faculdade de absorver totalmente seu espírito em tudo quanto empreendia –
entristeceu-se ao pensar na ruína que reservava o tempo a tão belas e
artificiosas coisas. Ele, entretanto havia escapado…

Os estios
sucediam-se aos estios, os junquilhos amarelos haviam florescido e murchado
muitas vezes, noites horrendas repetiam a história da sua vergonha, e ele não
havia mudado!… Nenhum inverno desfigurara sua face nem desbotara a sua pureza
floral. Que diferença se admitido o confronto com alguns objetos materiais!
Onde estariam eles agora?

Onde
estaria a bela túnica açafroada, tecida por morenas donzelas para o prazer de
Atena, com a qual os deuses haviam combalido os gigantes?… Onde o imenso
‘velarium’, que Nero fizera desdobrar sobre o Coliseu de Roma, esse véu de
púrpura em que eram representados os céus estrelados e Apolo conduzindo sua
quadriga de corcéis brancos, pelas rédeas de ouro?

Dorian
esquecia horas a contemplar as preciosas toalhas do Padre do Sol sobre as quais
eram dispostos todos os acepipes e carnes necessárias às festas; a mortalha do
Rei Chilperico, recamada de trezentas abelhas de ouro; as vestes fantásticas,
que excitaram a indignação do Bispo de Pont, em que eram representados
“leões, panteras, ursos, cães de fila, florestas, rochedos, caçadores, em
resumo, tudo o que um pintor pode copiar da natureza”; e a vestimenta
trazida uma vez por Carlos de Orléans, cujas mangas eram adornadas pelos versos
de uma canção, começando:

 

Madame, je suis tout joyeux…

 

O
acompanhamento musical das palavras era um tecido de fios de ouro e cada nota,
pela forma da cadência, era feita de quatro pérolas…

Ele leu a
descrição do mobiliário de quarto, confeccionado em Reims para a Rainha Joana
de Borgonha; esse quarto “era decorado por trezentos e vinte e um
papagaios bordados nas armas do rei e mais de quinhentas e sessenta e uma
borboletas, com as armas da rainha nas asas, tudo de ouro”.

Catarina
de Médici tinha um leito de luto feito para ela, todo de veludo negro, ornado
de crescentes de lua e sóis, com cortinados de damasco. Suas bordas eram
embutidas de pérolas; nos espaços de ouro e prata, havia coroas de verdura e
guirlandas bordadas, e a câmara que guardava esse leito era cercada de emblemas
recortados em veludo negro e pregados em um fundo de prata. Luís XIV abrigava
em seu palácio cariátides de quinze pés de altura, vestidas de ouro. O leito de
justiça de Sobieski, rei da Polônia, era feito de brocado de ouro de Esmirna,
com recames de turquesa e versos do Alcorão na parte superior; seus suportes
eram de prata dourada, artisticamente cinzelada, e cobertos de pedrarias ou
profusos medalhões esmaltados. Fora apreendido perto de Viena, em um
acampamento turco, e sobre os fulvos e tremulantes tesouros de sua umbela havia
flutuado o estandarte de Moisés.

Durante
um ano inteiro, Dorian dedicou-se a acumulação dos mais raros espécimes da arte
têxtil e do bordado; achou inestimáveis musselinas de Delhi, palminhas de ouro
ou asas iriantes de escarabeus finamente tecidas; gazes do Dakkan que, por sua
transparência, são denominadas no Oriente ar tecido, água corrente ou sereno da
noite!; incomparáveis estofos históricos de Java; tapetes amarelos da China,
delicadamente trabalhados; livros encadernados em cetim fulvo ou em seda de um
azul furta–cor, com desenhos de lírios, pássaros ou figuras: rendas de ponto da
Hungria, brocados sicilianos e grossos veludos espanhóis, bordados georgianos
de cantos dourados e ‘foukousas’ japonesas, de tons de ouro esverdeado, cheios
de pássaros com plumagens multicores e fulgurantes.

Teve
também uma particular paixão pelas vestimentas eclesiásticas, como se
interessou, de resto, por tudo quanto se relacionava com o serviço da Igreja.

Nos
grandes cofres de cedro que enchiam a galeria ocidental de sua casa, havia
recolhido preciosos exemplares do que rigorosamente constitui o vestuário da
“Esposa de Cristo”, que deve cobrir-se de púrpura, joias e linhos
finos, para ocultar seu corpo amenizado pelas macerações, gasto pelos
sofrimentos solicitados, ferido pelos golpes que ela mesma se reserva.

Possuía
uma suntuosa capa de asperges, de damasco dourado e carmesim, com um desenho de
romãs presas a flores de seis pétalas, acompanhadas de pinhas incrustadas de
pérolas. As bordaduras representavam cenas da vida da Virgem e o seu coroamento
era um lavor de sedas de várias cores – tudo obra italiana do século XV.

Outro
pluvial era de veludo verde, brocado de folhas de acanto enlaçadas, a que se
prendiam alvos de longo caule, representando os detalhes um entrelaçamento de
fios argênteos e cristais coloridos; nele figurava uma áurea cabeça de serafim
e havia ainda partes do estofo tecidas de seda rubra e ouro, com medalhões de
vários santos e mártires, entre os quais São Sebastião.

Dorian
tinha também casulas de seda cor de âmbar, tecidos de ouro e seda azul
lavrados, damascos amarelos, estofos de ouro com desenhos da Paixão e da
Crucificação, brocateis com leões, pavões e outros emblemas; dalmáticas de
cetim branco e róseo decoradas de tulipas, delfins e flores–de–lis: toalhas de
altar, de veludo escarlate e linho azul; corporais, véus de cálices e
estolas…

Sua
imaginação era aguçada, ao pensar nas aplicações místicas a que haviam servido
todos esses parâmetros, porquanto tais tesouros que colecionava na sua
habitação deleitosa importavam-lhe num meio de esquecimento, numa maneira de
escapar por algum tempo a certos terrores que não podia suportar.

Nas
paredes da solitária sala trancada, onde passara sua infância, suspendera com
suas próprias mãos o assombroso retrato cujos traços cambiantes lhe
demonstravam a degradação real da própria vida, e sobre o qual ele havia disposto,
à guisa de cortina, um pálio de púrpura e ouro.

Durante
semanas, Dorian não visitava tal compartimento, esforçando-se por esquecer a
medonha pintura e recobrando a leveza de coração, a alegria descuidosa que lhe
permitia mergulhar na existência. Uma noite saía, deslizava até os execrandos
arredores dos ‘Blue Gate Fields’ e aí ficava dias até que o repelissem. De
volta, punha-se em frente do retrato, achincalhando alternativamente sua
reprodução e a si próprio, embora repleto, algumas vezes, desse orgulho
individualista, que é uma semi-fascinação do pecado, e sorrindo com secreto
prazer à sombra informe, tolerante do fardo que deveria ser seu.

Passados
alguns anos, como lhe custasse ficar muito tempo ausente da Inglaterra, vendeu
a “vila” que dividia, em Trouville, com lord Henry, assim como a
pequena casa toda caiada de branco, que possuía em Argel, onde os dois haviam
atravessado mais de um inverno. Não se conformava com a ideia de estar separado
do quadro que tinha tal ligação com seu viver e sobressaltava-se ao pensar que,
longe de si, alguém chegasse a penetrar naquela estância, apesar dos ferrolhos
postos à porta.

Sentia,
porém, que o retrato nada revelaria a ninguém, embora conservasse, sob a
torpeza e a hediondez dos traços, uma pronunciada semelhança consigo; que
poderia ele desvendar a quem o visse!? Havia de rir-se dos que tentassem
reprová-lo. Se ele não a havia pintado, que lhe importaria essa vileza, essa
vergonha? Dar-lhe–iam crédito mesmo quando ele o confessasse?

Intimidava-o
qualquer coisa, apesar de tudo… Às vezes, quando estava em sua casa de
Nottinghamshire, rodeado de elegantes jovens de sua classe, dos quais se fazia
o chefe reconhecido, surpreendendo o condado com seu luxo descomedido e o
incrível esplendor do seu modo de vida, subitamente deixava os hóspedes e
corria a outro ponto a fim de verificar se a porta não fora forçada e o quadro
continuava em seu lugar… Se um dia o roubassem? Esta simples lembrança o
alarmava!… O mundo saberia seu segredo… E se, por acaso, já o conhecesse?

A verdade
é que, embora ele ainda fascinasse a maior parte dos indivíduos, muitos o
desprezavam abertamente. A proposta da sua admissão foi quase recusada em um
clube de West End, do qual tinha pleno direito de ser membro, por seu
nascimento e posição social, e refere-se que uma vez, introduzido em um salão
do Churchill, o Duque de Berwick e outro gentil-homem levantaram-se e saíram
imediatamente, de maneira a provocar reparos. Correram singulares histórias a
seu respeito, quando passou dos seus vinte e cinco anos. Dizia-se que havia
sido visto em disputa com marinheiros estrangeiros, ao fundo de uma lôbrega
taverna dos arredores de Whitechapel, e que frequentava ladrões e moedeiros
falsos com os quais aprendia os mistérios da respectiva arte.

Fizeram-se
notórias as suas prolongadas ausências e, quando ele reaparecia, os homens
cochichavam pelos cantos, ou soltavam risos ao enfrentá-lo, ou consideravam-no
com olhares indagadores e frios, como dispostos a conhecer os seus arcanos.

Dorian
não dava importância alguma a tais insolências e tensões; aliás, na opinião de
muita gente, suas maneiras francas e bonachonas, seu gracioso sorriso de
criança e o infinito encanto sua estupenda juvenilidade eram como uma resposta
satisfatória às calúnias que, como diziam, rodeavam-no… Notou-se, todavia,
que os que se haviam mostrado seus mais íntimos amigos começaram evitá-lo. As
mulheres que o haviam barbaramente adorado e haviam rompido, por sua causa, com
a censura social, desafiando conveniências, empalideciam de vergonha ou temor,
quando ele entrava em uma sala onde se achassem.

Para
alguns, entretanto, tais escândalos sussurrados aos ouvidos aumentaram-lhe o
inexplicável e perigoso encanto. Teve na grande fortuna um elemento de segurança.
A sociedade ultra-civilizada pelo menos, dificilmente crê ou admite a maldade
dos que são ricos e belos. Ela concebe instintivamente que as aparências são de
muito maior importância que a moral e, a seus olhos, o mais puro exemplo de
respeitabilidade é de muito menor valor que a posse um bom chefe.

Na
verdade, é uma mesquinha consolação fazer referências a um homem que nos dá
vinho ruim e leva uma vida privada irrepreensível. O exercício das virtudes
cardeais não pode mesmo redimir as ‘entrées’ que nos servem resfriadas, como um
dia considerou lord Henry, discorrendo a propósito do assunto; e, decerto, há
muito a expor a respeito, porquanto as regras da sociedade refinada são ou
poderiam ser iguais às da arte. A forma é, neste caso, absolutamente essencial.
Tudo admitiria a dignidade de um cerimonial, assim como sua irrealidade, e
poder-se-ia combinar o caráter fictício de uma peça romântica com o espírito e
a beleza que nos tornam deliciosas semelhantes peças. A insinceridade será uma
característica tão alarmante? Não parece. É simplesmente um método, com auxílio
do qual podemos multiplicar nossas personalidades. Tal era, ao menos, a opinião
de Dorian Gray.

Ele
estranhava a psicologia superficial que consiste em conceber o homem como uma
coisa simples, permanente, digna de confiança e guardando a sua essência. Para
ele, o homem era um ser composto de miríades de vidas e miríades de sensações,
uma complexa e multiforme criatura que carregava consigo inconcebíveis heranças
de dúvidas e paixões e cuja própria carne alimentava a infecção de inauditas
moléstias mortais.

Dorian
gostava de trocar pernas pela fria e desataviada galeria de pintura de sua casa
campestre, contemplando os diversos retratos daqueles cujo sangue lhe corria
nas veias.

Aqui
estava Philip Herbert, de quem Francis Osborne diz nas suas ‘Memoires on the
Reigns of Queen Elizabeth and King James’ que “foi acariciado na corte
pela sua bela figura que não conservou muito tempo”… Seria a vida do
jovem Herbert que ele, às vezes, reencetava?… Que extraordinário germe
envenenado se teria comunicado de geração em geração, até ele? Não seria algum
resíduo obscuro dessa graça apagada que o fizera, subitamente e quase sem
causa, proferir, no atelier de Basil Hallward, essa prece estulta que
modificara sua vida?…

Adiante,
em gibão vermelho debruado de ouro, envolto em um manto recamado de pedrarias,
o colarinho e os punhos dourados, erigia-se Sir Anthony Sherard, com sua
armadura negra e argentada, aos pés. Qual havia sido o legado desse homem? Esse
amante de Giovanna de Nápoles ter-lhe–ia deixado uma herança de pecado e
vilipêndio? Não seriam as suas próprias ações de hoje simplesmente os sonhos
que esse defunto não ousara realizar?

Em uma
tela desbotada, sorria lady Elizabeth Devereux, com sua coifa de gaze, um
corpinho de pérolas nos laços e mangas com aberturas de cetim róseo. Tinha uma
flor na sua mão direita e na esquerda segurava um colar esmaltado de brancas
rosas de Damasco. Na mesa, ao lado dela, uma maça e um bandolim… De seus
sapatinhos pontudos sobressaíam rosetas verdes… Dorian conhecia a história
daquela dama e curiosos episódios que envolviam seus amantes. Haveria nele
qualquer coisa do seu temperamento!? Seus olhos amendoados, de pálpebras
caídas, como que o miravam…

E esse
George Willoughby, com seus cabelos empoados e sua esquisita barbinha?… Que
mau aspecto ele tinha! Seu rosto era tisnado e taciturno e seus lábios sensuais
eram franzidos com desdém. As mãos macilentas e descarnadas, reluzentes de
anéis, destacavam-se dos punhos de renda preciosa. Fora um dos dândis notáveis
do século XVIII e, na sua mocidade, fora amigo de lord Ferrars…

Que
pensar ainda desse segundo lord Beckenham, companheiro do Príncipe Regente nos
seus dias mais reprováveis e uma das testemunhas de seu casamento secreto com
Fitz-Herbert?… Como parecia altivo e belo, com seus cabelos castanhos e a sua
atitude insolente!… Que paixões lhe haveria transmitido, a ele, Dorian? A
sociedade o julgara infame e sabia-se que tomara parte nas orgias de Carlton
House. Brilhava no seu peito a estrela da Jarreteira…

Ao lado
dele, via-se pendurada a figura de sua esposa, pálida mulher de lábios
delgados, vestida de preto. Dorian lembrava-se de que o sangue desta também
corria nele. Como tudo isso lhe pareceu curioso!

E sua
mãe, que se assemelhava a lady Hamilton, sua mãe, lábios úmidos de um rubor de
vinho!… Ele sabia o que herdara dela! Ela lhe havia legado a beleza e a
paixão pela beleza dos outros. Ela lhe sorria numa frouxa túnica de bacante;
coroavam-lhe os cabelos frescas folhas de parreira e uma espuma purpúrea
escorria da taça que ela segurava. A pintura da carnação havia descorado, mas
os olhos eram ainda prodigiosos pelo seu tom de profundeza e brilhante
colorido. Dorian sentia a impressão de que tais olhos o acompanhavam no andar.

Vemos
antepassados em literatura, assim como na própria família, mais aproximados de
nós como tipo e temperamento, dos quais experimentamos conscientemente uma
influência bem maior. Às vezes, Dorian Gray imaginava que a história do mundo
não diferia da de sua vida, não como se ele a houvesse vivido em ações ou
fatos, mas como no seu conceito a havia criado, como ela se formara no seu
cérebro e apresentara-se às suas paixões. Então afagava a ideia de haver
conhecido todas essas admiráveis e prodigiosas figuras aparecidas no cenário do
mundo, que haviam feito tão empolgante o pecado e o mal tão sutil, e acreditava
que, por misteriosas vias, a existência delas fora apenas a sua.

O herói
do extravagante romance, que tanto havia influído sobre o seu espírito, também
havia conhecido esses sonhos singulares: no sétimo capítulo ele conta como,
coroado de louros, para que o raio não o atingisse, assentara-se, como Tibério,
num jardim, em Capréa, lendo livros obscenos de Elefantino, enquanto pigmeus e
pavões moviam-se ao redor e o tocador de flauta escarnecia do balanceador do
incenso… Como Calígula, ele havia-se regalado nas estrebarias com os
palafreneiros de camisola verde e ceado em uma manjedoura de marfim com um
cavalo, que trazia a testada coberta de pedrarias… Como Domiciano, havia
errado pelos corredores cheios de espelhos de mármore, com olhos de alucinado,
à ideia do facão que deveria dar cabo de seus dias, enfermo desse nojo, desse
insuportável ‘tedium vitae’ que acomete aqueles aos quais a vida nada recusa.
Ele havia espiado, através de uma límpida esmeralda, os sangrentos matadouros
do Circo, e, em uma liteira de pérolas e púrpura, tiradas por mulas ferradas de
prata, vira-se conduzido pela Via Pornegranates até a Casa de Ouro, escutando,
enquanto passava, os homens a gritar: Nero Caesar!… Como Heliogabalo, tingira
as faces, fiara na roca entre mulheres e fizera vir a Lua de Cartago
entregando-a ao Sol, num desposório místico.

Dorian
relia o capítulo fantástico e ainda os dois capítulos seguintes, nos quais,
como em uma tapeçaria ou em esmaltes finamente trabalhados, sobressaíam
temerosas e belas figuras, as quais,o vício, o sangue e a lassidão fizeram
monstruosos ou dementes. Havia Filippo, Duque de Milão, que, matando a mulher,
lambuzou-lhe nos lábios um veneno escarlate, de modo que seu amante sugasse a
morte, ao beijar o cadáver que idolatrava; era ainda Pietro Barbi, o Veneziano,
denominado Paulo II, que, vaidosamente, quis tomar o título de ‘Formosus’ e
cuja tiara, avaliada em 200 mil florins, fora prêmio de um pecado hediondo;
seguia-se Gian Maria Visconti, que se servia de galgos para repelir os homens e
cujo cadáver escalavrado foi coberto de rosas por uma prostituta sua amiga!

Depois, o
Bórgia no seu cavalo branco, o Fratricida galopando a seu lado, o manto tinto
do sangue de Perotto; Pietro Riario, o jovem cardeal-arcebispo de Florença,
filho favorito de Sixto IV, cuja beleza só igualou ao deboche e que recebeu
Leonor de Aragão sob um pavilhão de seda branca e carmesim, cheio de ninfas e
centauros, acariciando um mancebo, do qual se servia nas festas como de
Ganimedes ou Hilas; Ezzelin cuja melancolia só era dissipada ante o espetáculo
da morte, tendo pelo sangue a paixão que outros têm pelo vinho – Ezzelin, filho
do demônio, conforme diziam, que burlou seu pai nos dados, quando este jogava
sua alma!… E as figuras iam-se sucedendo…

Giambattista
Cibo tomara por escárnio o cognome de Inocente e fizera injetar em suas torpes
veias, por um doutor judeu, o sangue de três adolescentes; Sigismondo
Malatesta, o amante de Isotta e senhor de Rimini, cuja efígie foi queimada em
Roma, como inimigo de Deus e dos homens, estrangulara Polissena com um
guardanapo, fizera Ginevra d’Este ingerir a peçonha em um copo de esmeralda e
construíra uma igreja pagã para adoração do Cristo, em honra de uma paixão
abominável!…

E esse
Carlos VI, que amara tão selvaticamente a esposa do próprio irmão, a ponto de
um leproso denunciar o seu crime projetado, esse Carlos VI, cuja paixão de
demente só pôde ser combatida por meio de cartas sarracenas, onde havia
pintadas as imagens do amor, da morte e da loucura?

Evocava-se
ainda, no seu gibão bordado, com seu chapéu guarnecido de joias e seus cabelos
anelados como acantos, Griffonetto Baglioni, que assassinou Astorre e a noiva,
Simonetto e seu pajem, mas cuja graça era tal que, quando o encontraram
agonizante na praça amarela de Perusa, os que o odiavam só puderam chorar,
benzendo-o então Atalanta, que antes o amaldiçoara!…

Uma
horrível fascinação emanava de toda essa gente! Dorian descobria tais figuras à
noite, e, de dia, elas conturbavam-lhe a imaginação. A Renascença conheceu
especialíssimas maneiras de envenenar: por um morrião ou uma tocha acesos, por
uma luva bordada ou um leque de diamantes, por uma bola dourada e perfumosa ou
por uma encrustada de pedras de âmbar…

Ele,
Dorian Gray, havia sido intoxicado por um livro!

Havia
momentos em que considerava simplesmente o mal como um elemento necessário à
realização do seu conceito da beleza.

 

XII

 

Era nove
de novembro, véspera do seu trigésimo oitavo aniversário, como mais tarde se
recordou frequentemente.

Pelas
onze horas da noite, Dorian saía da casa de lord Henry, onde havia jantado, e
envolvera-se em espessos capotes, por estar a noite muito fria e brumosa. Na
esquina de Grosvenor Square e South Audley Street, um homem passou bem junto
dele, rompendo o nevoeiro, andando depressa, com a gola de seu ‘ulster’
cinzento levantada, trazia uma maleta na mão, Dorian reconheceu-o. Era Basil
Hallward. Um novo sentimento de medo, que não soube explicar, invadiu-o. Não
fez sinal algum de reconhecimento e continuou rapidamente o caminho em direção
à sua casa…

Hallward,
porém, vira-o… Dorian percebeu-o detendo-se na calçada e chamando-o.
Instantes depois, a mão do outro apoiava-se em seu braço.

– Dorian!
Que sorte incomparável! Esperei-te na biblioteca até nove horas. Finalmente,
apiedei-me de teu criado fatigado e disse-lhe, ao partir, que se deitasse. Vou
a Paris pelo trem da meia-noite e tinha uma particular necessidade de ver-te
antes da partida. Pareceu-me seres tu ou, ao menos, teu capote, quando ali nos
cruzamos… Fiquei, porém, na dúvida. Não me reconheceste?

– Há
névoa, meu caro Basil! Eu apenas podia reconhecer Grosvenor Square; creio que
minha casa fica por aqui, mas não tenho certeza. Lamento a tua partida, pois há
uma eternidade que não te vejo. Suponho, porém, que regressarás breve.

– Não,
estarei ausente da Inglaterra por seis meses; pretendo arranjar um atelier em
Paris e aí ficar até terminar um grande quadro que tenho na cabeça. Não é,
todavia, de mim que desejava falar-te. Chegamos à tua porta. Deixa-me entrar um
momento, pois tenho qualquer coisa a dizer-te.


Sinto-me contente, mas não perderás o trem? –perguntou descuidadamente Dorian
Gray, galgando os degraus e abrindo a porta com a chave do trinco.

A luz do
lampadário era circunscrita pela garoa; Hallward examinou o relógio.

– Tenho o
tempo preciso – respondeu ele. – O trem só parte à meia-noite e quinze e são
apenas onze horas. Demais, eu ia ao clube procurar-te, quando te encontrei.
Como vês, não esperarei minha bagagem, por havê-la remetido na frente; trago
comigo somente esta maleta e posso ir folgadamente à Victoria em vinte minutos.

Dorian
fitou-o e sorriu.

– Que
traje de viagem para um pintor elegante! Uma maleta ‘gladstone’ e um ‘ulster’!
Entra; a garoa invade o vestíbulo. E reflete que não deves falar de coisas
sérias. Atualmente já não há mais nada sério, ou, ao menos, nada pode ser
tomado a sério.

Hallward
sacudiu a cabeça, ao entrar, e seguiu Dorian até a biblioteca. Um clarão de
brasas brilhava no grande fogão da sala. As lâmpadas estavam acesas, e um
licoreiro holandês, de prata, todo aberto, sifões de soda e grandes copos de
cristal achavam-se dispostos em uma mesinha marchetada,

– Bem vês
que o teu criado me havia servido como em minha casa, Dorian. Forneceu-me todo
o necessário, inclusive os teus melhores cigarros de ponta dourada. É uma
criatura hospitaleira, que estimo mais do que esse francês que possuías. E, a
propósito, que fim levou o francês?

Dorian
sacudiu os ombros.

– Creio
que desposou a camareira de lady Radley e instalou-a em Paris como costureira
inglesa. A anglomania está muito em moda por aí, ao que parece. É uma idiotice
da parte dos franceses, não achas? Afinal, não era um mau criado. Nunca me
agradou, mas também nunca tive queixas dele. Imaginamos sempre coisas absurdas.
Ele me era dedicado e pareceu-me constrangido quando se retirou. Mais um
‘brandy-and-soda’? Preferes vinho do Reno com água de Seltz? Eu sempre tomo.
Com certeza, há aqui, no quarto ao lado.


Obrigado, não quero mais nada – disse o pintor, tirando o chapéu e a capa e
colocando-os sobre a maleta que depusera a um canto – Agora, caro amigo, quero
falar-te seriamente. Não faças essa carranca, porque me dificultas a
obrigação…

– Que há
então? – bradou Dorian, com a sua vivacidade costumeira, atirando-se no sofá –
Espero que não se trate de mim. Estou fatigado de mim mesmo esta noite. Quisera
estar na pele de outro.

– É a
propósito de ti mesmo – notificou Hallward com uma voz grave e compenetrada. –
É preciso que eu te diga. Não te tomarei mais de meia hora.

Dorian
suspirou, acendeu um cigarro e balbuciou:

– Meia
hora!…

– Não é
muito para interrogar-te, Dorian, e é absolutamente no teu próprio interesse.
Entendo ser conveniente que saibas as incríveis apreciações que correm em
Londres sobre a tua pessoa.

– Não
desejo conhecê-las. Aprecio os escândalos dos outros, mas os que me concernem
não me interessam tanto. Já não trazem o mérito da novidade.

– Devem
interessar-te, Dorian. Todo ‘gentleman’ mostra interesse pelo seu bom renome.
Tu não quererás que aludam a ti como a qualquer vil e degradado. Certamente,
dispões de tua situação, de tua fortuna e do resto; todavia, a posição e a
fortuna não são tudo. Compreendes, perfeitamente, que eu não creio nesses
rumores ultrajosos. E, depois, não posso mesmo concebê-los quando te vejo. O
vício estampa-se por si mesmo na figura de um homem. Não consegue ser oculto.
Fala-se algumas vezes de vícios secretos; não há tais vícios. Se um corrompido
tem um vício, ele se patenteia por si mesmo nas linhas da boca do indivíduo, na
queda de suas pálpebras e até na forma de suas mãos. Alguém – não citarei o
nome, mas tu o conheces –, pediu-me o ano passado a execução de seu retrato. Eu
nunca o vira nem nada ouvira sobre ele: ouvi falar depois. Ofereceu-me um preço
extravagante e recusei. Havia qualquer coisa na conformação de seus dedos que
repeli. Sei agora que as minhas suposições eram cheias de razão; sua vida é uma
iniquidade. Tu, porém, Dorian, com teu semblante puro, límpido, inocente, com
tua soberba e inalterada juventude, nada apresentas que me permita suspeitar
contra ti. Entretanto, vejo-te mui raramente: não apareces mais no meu atelier,
e quando, afastado de ti, ouço essas odiosas alusões ao teu nome, não sei mais
o que dizer. Como se explica, Dorian, que um homem como o Duque de Berwick
abandone o salão de um clube, logo que aí penetras? Por que as pessoas em
Londres recusam ir à tua casa e não te convidam a chegar às casas delas? Tu
eras um dos amigos de lord Staveley. Encontrei-o a jantar, a semana passada.
Teu nome foi pronunciado no correr da conversa, a propósito dessas miniaturas
que emprestaste à exposição do Dudley. Staveley fez um gesto desdenhoso e disse
que poderias, talvez, ter muito gosto artístico; mas, na opinião dele, eras um
homem que nenhuma moça pura poderia conhecer e cuja presença deveria ser
evitada a toda mulher casta. Eu lembrei-lhe que era teu amigo e perguntei-lhe o
que ele desejava exprimir. Ele mo disse… Ele mo disse em face e diante de
todos. Foi horroroso! Por que tua amizade há de ser tão fatal aos jovens?
Ouve… Esse pobre rapaz que servia nos Gardes e que se suicidou era dos mais
queridos por ti. E Sir Henry Ashton, que teve de abandonar a Inglaterra com o
nome maculado? Tu e ele eram inseparáveis. Que dizer de Adrian Singleton e do
seu triste fim? Que dizer do filho único de lord Kent e de sua carreira
comprometida? Ontem, encontrei seu pai em Saint James Street. Pareceu-me coberto
de vergonha e mágoa. Que dizer ainda do jovem Duque de Perth? Que existência
leva ele agora? Que ‘gentleman’ o aceitaria como amigo?…

– Basta,
Basil! Falas de assuntos que não conheces – atalhou Dorian Gray mordendo os
beiços.

Depois
disse, com um tom de infinito desprezo na voz:

– Tu me
perguntas por que Berwick abandona o lugar quando eu chego? É porque conheço
toda a sua vida e ele não conhece a minha. Com um sangue como o que lhe corre
nas veias, como poderá ser sincero o que ele diz? Tu me interpelas a propósito
de Henry Ashton e sobre o jovem Perth. Terei ensinado a um seus vícios e a
outro seus deboches? Se o filho imbecil de Kent escolhe a esposa nas calçadas,
tenho eu alguma coisa com isso? Se Adrian Singleton falsifica a assinatura de
seus amigos em documentos, serei eu seu guarda? Bem sei como se tagarela na
Inglaterra. Os burgueses fazem à sobremesa uma exposição de seus preconceitos
morais e referem muito baixo o que chamam a libertinagem de seus superiores, a
fim de dar a entender que pertencem à bela sociedade e vivem perfeitamente com
os seus caluniados. Neste país basta que um homem possua certa distinção e um
cérebro, para que as más línguas lhe caiam logo em cima. E que vida leva essa
gente que só trata de moralidade? Meu caro amigo, tu te esqueces de que estamos
na terra natal da hipocrisia.

– Dorian
– exclamou Hallward – a questão é outra! A Inglaterra é bem vil, eu sei, e a
sociedade inglesa tem todos os defeitos. É justamente por esta razão que tenho
necessidade de saber-te puro. E tu não o foste. Tem-se o direito de julgar um
homem pela influência que ele exerce sobre seus amigos: os teus parecem perder
todo o sentimento de honra, de bondade, de pureza. Tu lhes infiltraste uma
loucura de prazer. Eles despencaram de abismos; tu os arrastaste até lá. Sim,
tu os abandonaste e podes ainda sorrir, como neste momento. Ainda há pior. Sei
que tu e Harry são dois inseparáveis; e justamente por esta razão, senão por
outra, não escarneço.


Atenção, Basil! Tu te adiantas, muito!…

– É
preciso que eu fale e é preciso que me ouças! Tu hás de ouvir-me!… Quando
encontraste lady Gwendoline, nem sombra de escândalo a enodoara.  Há hoje uma única mulher respeitável em
Londres que consinta em passear de carro com ela no Parque? Qual! Seus próprios
filhos evitam a sua convivência! Depois, há outras histórias: conta-se que tu
tens sido visto resvalar de madrugada pelo exterior das mais infames moradas de
Londres e penetrar, furtivamente, disfarçado, nas mais imundas espeluncas. São
verdadeiras, podem ser verdadeiras essas histórias?…Quando as ouvi pela
primeira vez, dei risadas. Atualmente as ouço e fazem-me estremecer. O que é a
tua casa de campo, com a vida que ali se leva?…Dorian, tu não calculas o que
se diz de ti. Dispenso-me de dizer-te que não quero pregar-te sermões.
Lembro-me de Harry dizendo uma vez que todo pregador improvisado sempre
começava por anunciar seu título e tinha pressa em desmentir-se. Não quero te
fazer prédicas. Eu só quisera ver-te com um comportamento que te fizesse
respeitado perante os homens. Quisera que possuísses um nome sem mácula, uma
reputação pura. Quisera que te desembaraçasses desses tipos repugnantes com que
formas a tua sociedade. Não sacudas assim os ombros… Não te faças tão
indiferente… Tua influência é grande; busca empregá-la no bem e não no mal.
Dizem que corrompes todos os que se tornam teus íntimos e que basta entrares em
uma casa para que todos os opróbrios te acompanhem. Não sei se isso é verdade
ou não. Como hei de sabê-lo? O fato é que se diz. Deram-me pormenores de que é
impossível duvidar. Lord Gloucester era um dos meus maiores amigos em Oxford.
Mostrou-me uma carta que sua esposa lhe havia escrito, moribunda e isolada em
seu retiro de Menton. Teu nome era citado na mais inconcebível confissão que
até hoje tenho lido. Disse-lhe que era absurdo, que eu te conhecia a fundo e
que serias incapaz de praticar certas faltas aí relatadas. Conhecer-te! Eu
quisera conhecer-te, mas precisava ver a tua alma!

– Ver a
minha alma! –pronunciou Dorian Gray, erguendo-se do sofá e empalidecendo de
pavor…

– Sim
–confirmou Hallward gravemente, com uma acentuada emoção na voz –, ver a tua
alma… Mas só Deus pode vê-la! Um riso de amarga zombaria passou nos lábios do
mais moço.

– Tu
mesmo hás de vê-la esta noite! – bradou ele, apanhando a lâmpada. – Vem, é a
obra de tuas mãos. Por que não hás de vê-la? Em seguida, se quiseres, poderás
contar o sucedido a todo mundo. Ninguém te dará crédito. E se te derem crédito,
hão de amar-me ainda mais. Conheço nossa época melhor que tu, embora tagareles
tão fastidiosamente. Vem, que te chamo! Já peroraste bastante sobra a
corrupção. Agora vais vê-la face a face!…

Havia
como um desvario de orgulho em cada palavra que Dorian proferia. Segundo a sua
habitual e pueril insolência, ele batia no soalho com os pés. Sentia odiosa
alegria ao pensar que outro partilharia o seu segredo e que o autor do quadro,
origem de sua vergonha, passaria toda a vida acabrunhado, à triste lembrança do
que havia produzido.

– Sim –
continuou ele, aproximando-se do pintor e fixando-lhe os olhos severos –, vou
mostrar-te a minha alma! Vais ver isso que, segundo pensas, só a Deus é dado
ver!…

Hallward
recuou…


Blasfemas, Dorian – clamou ele. – Não te é permitido dizer tais coisas, que são
horrendas e nada significam…

– Tu
crês?… – e Dorian riu de novo.

– Creio,
sim. E quanto ao que hoje te disse, é para teu bem. Sabes que sempre fui um
devotado amigo teu.

– Não te
aproximes de mim!… Acaba o que tens a dizer…

Uma
contração dolorosa alterou os traços do pintor. Deteve-se um instante e
sentiu-se tomado de uma ardente compaixão. Que direito tinha ele, afinal, de
imiscuir-se na vida de Dorian Gray? Se este houvesse praticado a décima parte
do que se dizia dele, como deveria sofrer!… Então, levantou-se, marchou
direito ao fogão e, pondo-se diante do fogo, contemplou as chamas abrasadas, de
cinzas brancas como gelo e a palpitação das labaredas.

– Espera,
Basil! – disse o moço num tom enérgico e alto.

Hallward
voltou-se…

– O que
tenho a acrescentar é isto: urge que me dês uma resposta sobre as estupendas
acusações que te fazem. Se me disseres que são inteiramente falsas, do começo
ao fim, acreditarei. Desmente-as, Dorian, desmente-as! Não percebes o que eu
sinto? Meu Deus! Não me digas que és mau, corrompido e coberto de
ignomínias!…

Dorian
Gray sorriu; seus lábios distendiam-se num rito de satisfação.

– Sobe
comigo, Basil – convidou ele tranquilamente –; tenho um memorial da minha vida,
feito dia a dia, mas que nunca sai da câmara onde é elaborado; eu te mostrarei
se vieres comigo.

– Irei
contigo onde quiseres, Dorian… Noto que perdi o meu trem. Isto não tem
importância; partirei amanhã. Não me peças, porém, para ler qualquer coisa esta
noite. Tudo quanto me interessa é uma resposta à minha interpelação.

– Ela te
será dada lá em cima; não posso dá-la aqui. Não é nenhuma leitura comprida…

 

XIII

 

Dorian
saiu da sala e começou a subir, acompanhado de perto por Basil Hallward.
Caminhavam docemente, como instintivamente se caminha à noite. A lâmpada
projetava clarões fantásticos na parede e na escadaria. Soprava um vento que
fazia bater as janelas!

Quando
ambos atingiram o andar superior, Dorian depôs a lanterna no pavimento e
segurando a chave, torceu a fechadura.


Insistes, Basil? – perguntou ele com voz baixa.

– Sim!

– Ainda
bem – balbuciou Dorian sorrindo e acrescentando depois um pouco rudemente. – Tu
és o único homem que tens o direito de saber o que me diz respeito. Tens
tomado, na minha vida, maior parte do que pensas…

Apanhou a
lanterna, empurrou a porta e entrou. Uma corrente de ar frio envolveu os dois
homens, e a chama, vacilando um instante, tomou depois um tom alaranjado.
Dorian sentiu um calafrio…

– Fecha a
porta atrás de ti – recomendou ele ao outro, depondo a lâmpada na mesa.

Hallward
olhou ao redor de si, profundamente pasmado. O compartimento parecia não ter
sido habitado desde muitos anos. Uma tapeçaria flamenga, desbotada, um quadro
oculto sob um véu, uma velha ‘cassone’ italiana e uma grande estante vazia formavam
todo o mobiliário, além de uma cadeira e uma mesa. Como Dorian acendesse uma
vela meio consumida, posta sobre a lareira, Hallward percebeu que tudo ali
estava coberto de poeira, inclusive um tapete em molambos. Um rato fugiu
espavorido pelos retábulos. Desprendia-se um cheiro úmido de bolor…

– Então
pensas que somente Deus pode ver a alma, Basil? Arranca essa sanefa e verás a
minha!

A voz de
Dorian era fria e cruel…

– Estás
doido, Dorian, ou representas uma comédia? – perguntou o pintor franzindo a
testa.

– Não
ousas? Eu mesmo a afastarei – disse o moço, arrancando a cortina do seu varão
de ferro e atirando-a no assoalho…

Um grito
de espanto escapou-se dos lábios do pintor, quando ele viu à fraca luz da
lanterna, a execrável figura que parecia caretear na tela. Havia nessa
expressão qualquer coisa que o encheu de nojo e pavor. Céus! Aquilo poderia ser
a face, a própria face de Dorian Gray? O horror, fosse qual fosse, entretanto,
não havia inteiramente danificado essa beleza incomparável. Restava ainda ouro
na cabeleira iluminada e a boca sensual ainda possuía o seu escarlate. Os olhos
empolados haviam guardado restos da pureza de seu azul e as curvas elegantes
das narinas, finamente traçadas, e do pescoço, fortemente modelado, não haviam
desaparecido inteiramente. Sim, era bem o próprio Dorian! Mas quem fizera
aquilo? Pareceu-lhe reconhecer sua pintura e a moldura não deixava de ser a
desenhada por ele. A ideia era monstruosa e ele se apavorou!… Apanhou a luz e
aproximou-se da tela. No canto esquerdo, seu nome estava traçado em grandes
letras, a puro vermelhão…

Era uma
odiosa paródia, uma infame, ignóbil sátira! Jamais fizera aquilo… Entretanto,
não deixava de ser seu próprio quadro! Ele bem o sabia e pareceu-lhe que seu
sangue, pouco antes fervente, gelava-se de repente. Seu próprio quadro!… Que
queria dizer aquilo? Por que tal transformação? Voltou-se, fixando Dorian com
os olhos de um louco. Os seus lábios tremiam e a língua seca não podia
articular uma palavra. Passou a mão pela fronte; estava toda úmida de suor
frio.

O jovem,
encostado ao pano da chaminé olhava-o com essa estranha expressão observada na
figura daqueles que se sentem absorvidos em um grande espetáculo, quando
trabalha um grande artista. Não era um verdadeiro pesar, nem uma verdadeira
satisfação. Era a expressão de um espectador, talvez, com um clarão de triunfo
nos olhos. Dorian havia tirado a flor do peito e aspirava-a com afetação.

– Que
quer dizer isso? – exclamou enfim Hallward.

Sua voz
ressoava com uma retumbância a que não estavam habituados seus próprios
ouvidos.

– Há
anos, quando eu era um menino – disse Dorian Gray, triturando a flor nas pomas
dos dedos –, tu me lisonjeaste e ensinaste-me a envaidecer-me da minha beleza.
Um dia apresentaste-me a um de teus amigos, que me explicou o milagre da
mocidade, e fizesse-me esse retrato que me revelou o milagre da beleza. Em um
momento de loucura, que, mesmo agora, não sei se lamento ou não, fiz um voto
que talvez denomines uma prece…


Lembro-me! Oh! Como me lembro! Não! É uma coisa impossível… Este quarto é
tímido e o mofo agarrou-se à tela; as cores que empreguei eram de má
composição… Eu te repito que isso é impossível!

-ah! Que
há de impossível? – interrogou o moço indo à janela, e apoiando a fronte no
vitral lustroso.

– Tu me
disseste que o havias destruído.

– Estava
enganado: foi ele que me destruiu.

– Não
posso crer que seja esse o meu quadro.

– Não
podes ver assim o teu ideal? – disse Dorian amargamente.

– Meu
ideal, como tu dizes…

– Como tu
o chamavas!…

– Nada de
mau havia nele, nada de vergonhoso; tu eras para mim um ideal como nunca mais
encontrarei outro… E isto é a figura de um sátiro.

– E a
face de minha alma!

– Senhor!
Que coisa idolatrei! Ali estão os olhos de um demônio!…

– Cada um
de nós traz consigo a chave do inferno, Basil – clamou Dorian –, com um gesto
feroz de desespero…

Hallward
voltou-se para o retrato e considerou-o:

– Meu
Deus! Se é verdade – disse ele – e se ali está o que fizeste de tua vida, deves
ser ainda mais corrompido do que imaginam os que falam de ti!

Aproximou
de novo a vela para melhor examinar a tela. Superficialmente, não mostrava
haver sofrido alteração alguma: estava como a havia deixado. Era de dentro,
aparentemente, que haviam brotado a iniquidade e a vergonha. Por meio de
qualquer rara vida interior, a lepra do pecado corroia-lhe essa face. Era menos
perturbadora a podridão de um corpo, no fundo de um túmulo úmido!

Passou-lhe
um tremor na mão e a vela caiu do candelabro no tapete, onde se partiu. Ele
tocou-a com o pé. Depois deixou-se cair na poltrona, junto da mesa, e tapou o
rosto com as mãos.

– Divina
bondade! Dorian, que lição! Que temerosa lição!

Não teve
resposta, mas pôde ouvir o moço que soluçava junto à janela.

– Oremos!
Dorian, oremos!… – murmurou ele – Que nos ensinaram a dizer na nossa
infância? “Não nos deixeis cair na tentação, perdoai-nos os nossos
pecados, purificai-nos de nossas iniquidades!” Repitamos juntos estas
palavras. A prece do teu orgulho foi ouvida; a prece do teu arrependimento será
também ouvida! Eu muito te adorei! Estou punido. Tu muito te amaste!…Estamos
ambos punidos!

Dorian
Gray voltou-se lentamente e, fixando-o com seus olhos obscurecidos:

– É muito
tarde, Basil! – balbuciou ele.

– Nunca é
muito tarde, Dorian! Ajoelhemo-nos e tentemos recordar uma oração. Não há um
versículo que diz: “Embora os vossos pecados sejam escarlates, eu os
tornarei brancos como a neve?”

– Tais
palavras já não têm agora mais sentido para mim.

– Ah! Não
digas isso. Tu fizeste bastante mal na vida. Meu Deus! Não vês essa maldita
face que nos espia?

Dorian
Gray olhou o retrato e, súbito, um indefinível sentimento de ódio contra Basil
Hallward apoderou-se dele, como se lhe fosse sugerido por essa figura pintada
na tela, sibilado ao ouvido por esses lábios em esgares… Os selvagens
instintos de um animal acuado despertavam nele e então detestou esse homem
assentado junto à mesa, mais do que outra coisa na sua vida!…

Observou
ferozmente ao redor de si… À sua frente, faiscava um objeto sobre o cofre
pintado. O seu olhar parou nele. Lembrou-se do que era: uma faca que fizera
subir, dias antes, para cortar uma corda e que se esquecera de reconduzir.
Avançou docemente, passando perto de Hallward, chegando atrás deste, apanhou a
faca e voltou-se… Hallward fez um movimento, como para levantar-se da
poltrona… Dorian saltou sobre ele, enfiou-lhe a faca atrás da orelha,
cortando-lhe a carótida, rachando-lhe a cabeça contra a mesa e desferindo-lhe
golpes furiosos…

Houve um
gemido abafado e o horrível gorgulho do sangue na garganta. Três vezes os dois
braços se suspenderam convulsivamente, agitando grotescamente no vácuo, duas
mãos com dedos crispados… Dorian feriu duas vezes ainda, mas o homem não se
mexeu mais. Qualquer coisa começou a escorrer pelo chão. Ele estacou um
instante, sustentando sempre a cabeça… Depois atirou a faca sobre a mesa e
pôs-se a escutar.

Não ouviu
senão um ruído de gotas tombando docemente no tapete usado. Abriu a porta e
saiu até o patamar da escada. A casa estava absolutamente tranquila. Não havia
ninguém. Conservou-se alguns instantes curvado sobre a balaustrada, procurando
varar a obscuridade profunda e silenciosa do vácuo. Depois tirou a chave da
fechadura, voltou ao quarto e nele fechou-se…

O homem
conservava-se assentado na poltrona, encostado à mesa, o dorso curvado, com
seus braços longos e fantásticos. Se não fora o golpe rubro e aberto no
pescoço, e o pequeno charco negro do sangue coagulado, que se alargava pela
mesa, seria fácil crer que esse homem estava simplesmente adormecido.

Como tudo
havia sido rapidamente feito!… Dorian sentia-se curiosamente calmo e, indo à
janela, abriu-a, avançando até o balcão. O vento havia dissipado a névoa e o
céu lembrava a cauda monstruosa de um pavão, estrelado de miríades de olhos
dourados. Espiou a rua e viu um policial que fazia a sua ronda, dardejando os
longos raios de luz da lanterna sobre as portas das casas silenciosas. A luz
carmesim de um carro a rodar tocou o canto da rua, depois desapareceu. Uma
mulher envolvida em um xale flutuante deslizou lentamente ao longo das grades
de uma praça; avançava cambaleando. De espaço a espaço, parava para olhar atrás
de si; depois, entoou uma canção com uma voz raspante. O policial correu a ela
e falou-lhe. Ela partiu tropeçando e dando gargalhadas… Um nordeste áspero
passou pela praça. As luzes do gás vacilaram, pálidas, e as árvores desfolhadas
entrechocaram os galhos enferrujados. Ele arrepiou-se e entrou, fechando a
janela…

Chegado à
porta, torceu a chave na fechadura e abriu. Não havia posto os olhos no homem
assassinado. Sentiu que o segredo de tudo aquilo não alteraria a sua situação.
O amigo que havia pintado o fatal retrato, ao qual toda a sua miséria era
devida, tinha cessado de viver. Era bastante…

Então
lembrou-se da lâmpada. Era um curioso trabalho mourisco, feito de prata maciça,
incrustada de arabescos de aço brunido e ornada de grandes turquesas. Talvez o
criado notasse o seu desaparecimento e perguntas seriam feitas… Hesitou um
instante, depois entrou de novo e apanhou-a sobre a mesa. Não pôde deixar de
olhar o morto. Como estava tranquilo! Como suas longas mãos estavam brancas!
Era uma apavorante figura de cera…

Tendo
fechado a porta atrás de si, desceu a escadaria tranquilamente. Os degraus
estalavam sob seus pés, como se gemessem.

Ele parou
várias vezes e ouviu… Não, tudo estava tranquilo… Era apenas o ruído dos
próprios passos.

Quando
chegou à biblioteca, percebeu a maleta e o sobretudo em um canto. Precisava
ocultá-los em algum lugar. Abriu um secreto armário de parede, dissimulado nos
forros, onde guardava estranhos disfarces; aí encerrou os objetos. Poderia
facilmente queimá-los mais tarde. Então, puxou pelo relógio. Faltavam vinte
minutos para as duas da manhã.

Sentou-se
e pôs-se a refletir… Todos os anos, todos os meses quase, homens eram
enforcados na Inglaterra pelo que ele acabava de praticar… Havia como uma
loucura de assassinatos no ar. Alguma rubra estrela aproximara-se bastante da
terra… E depois, que provas haveria contra ele? Basil Hallward havia deixado
sua casa às onze horas. Ninguém o vira voltar. A maior parte dos criados estava
em Selby Royal. Seu criado estava deitado… Paris! Sim. Era para Paris que
Basil Hallward havia partido e pelo trem da meia-noite, como tinha a intenção.
Com seus hábitos particulares de reserva, passar-se-iam meses, antes que as
desconfianças pudessem nascer. Meses! Tudo poderia ser destruído bem mais cedo…

Uma ideia
súbita atravessou-lhe o espírito. Enfiou a pelica, o chapéu e saiu ao
vestíbulo. Aí parou, ouvindo o passo pesado e retardado do policial, sobre a
calçada em frente, e olhando a luz de sua lanterna inexorável refletindo-se em
uma janela. Esperou, retendo a respiração… Passados alguns instantes, puxou a
lingueta, pôs-se do lado de fora, fechando a porta docemente atrás de si.
Depois tocou a campainha… Dentro de cinco minutos, mais ou menos, o criado
apareceu meio vestido, cheio de sono.

– Contraria-me
ter te despertado, Francis – disse ele entrando –, mas havia esquecido a minha
chave de trinco. Que horas são?…

– Duas
horas e dez, senhor – disse o homem olhando a pêndula e apertando os olhos.

– Duas
horas e dez! Estou enormemente atrasado! É preciso que me acordes amanhã às
nove horas; tenho o que fazer.


Perfeitamente.


Apareceu alguém esta noite?

– Mr.
Hallward, senhor. Aqui esteve até onze horas e partiu para tomar o trem.

– Oh!
Tenho pena de não havê-lo visto. Deixou alguma palavra?

– Não,
senhor – disse que lhe escreveria de Paris, se não o encontrasse no clube.

– Muito
bem, Francis. Não te esqueças de despertar-me amanhã, às nove horas.

– Não,
senhor.

O homem
desapareceu no corredor, arrastando os chinelos.

Dorian
Gray atirou o capote e o chapéu sobre uma mesa e entrou na biblioteca. Marchou
de um extremo a outro, durante um quarto de hora, mordendo os beiços e
refletindo. Depois tomou em uma estante o ‘BireBooke’ começou a folheá-lo…
‘Alan Campbell, 152, Hentford Street, Mayfair.’ Sim, era esse o homem de que
precisava…

 

XIV

 

Na manhã
seguinte, às nove horas, o criado entrou com uma xícara de chocolate na bandeja
e fez correr as gelosias. Dorian dormia pacificamente, do lado direito, a face
apoiada à mão. Dir-se–ia um adolescente fatigado pelo jogo ou o estudo.

Foi
preciso o criado tocar-lhe duas vezes no ombro para que ele despertasse, e
quando abriu os olhos um apagado sorriso correu-lhe nos lábios, como se saísse
de algum sonho delicioso. Entretanto, nada tinha sonhado. A noite não fora
perturbada por imagens de prazer ou de pena; mas a mocidade sorri sem motivos:
é o mais encantador dos seus privilégios.

Ele
voltou-se e, apoiando-se aos cotovelos, começou a beber, a pequenos goles, o
chocolate. O pálido sol de novembro inundava o quarto. O céu era puro e havia
uma doce tepidez no ar. Era quase uma manhã de maio. Pouco a pouco, os sucessos
da noite precedente invadiram-lhe a memória, sem o mínimo ruído de passos
ensanguentados!… Reconstituíram-se espontaneamente com uma admirável
precisão. Ele estremeceu à lembrança de tudo quanto havia sofrido e, durante um
instante, o mesmo novo sentimento de ódio contra Basil Hallward, que o impelira
a matá-lo quando descansava na sua poltrona, invadiu-o e fê-lo arrepiar-se. O
morto estava ainda lá em cima também, e à plena luz do sol, no momento. Era
inquietador! Coisas tão hediondas são feitas para as trevas e não para a luz do
dia…

Dorian
sentiu que se prosseguisse nesses cismares, estaria brevemente doente ou louco.
Havia pecados cujo encanto era maior pela lembrança que deixavam do que por si
mesmos, singulares triunfos que recompensavam o orgulho muito mais que as
paixões e davam ao espírito um refinamento de júbilo muito superior ao prazer
que provocavam ou podiam provocar nos sentidos. Mas este não era dos tais. Era
uma lembrança a expulsar do espírito; seria preciso adormecê-la em dormideiras
e, enfim, estrangulá-la antes que ela lho fizesse…

Quando
soou a meia hora, passou a mão pela fronte e levantou-se rápido; vestiu-se com
maior cuidado ainda que de costume, escolhendo demoradamente sua gravata e seu
alfinete, e mudando várias vezes de anéis. Levou também muito tempo a almoçar,
saboreando diversos pratos, falando ao criado de uma nova libré, que queria
mandar fazer para os servidores em Selby, isso enquanto abria o seu correio.

Uma das
cartas fê-lo sorrir, três outras o enfastiaram.

Releu
várias vezes uma delas, depois a rasgou com uma ligeira expressão de cansaço:
“Que terrível coisa é uma memória de mulher, como diz lord Henry…”
murmurou ele…

Depois de
beber a sua xícara de café, passou o guardanapo nos lábios, fez sinal ao criado
para que esperasse e assentou-se à sua mesa para escrever duas cartas. Pôs uma
delas no bolso e estendeu a outra ao criado.

– Leva-me
isto ao152 Hertford Street, Francis, e se Mr. Campbell estiver ausente de
Londres, pede o seu endereço.

Logo que
se viu só, acendeu um cigarro e pôs-se a rabiscar em uma folha de papel,
desenhando flores, motivos de arquitetura, depois figuras humanas. De repente,
notou que cada figura traçada por ele tinha uma fantástica semelhança com Basil
Hallward. Sobressaltou-se e, levantando-se, foi à biblioteca, onde apanhou um
volume, ao acaso. Havia-se decidido a não pensar nos últimos acontecimentos,
anão ser quando isso se tornasse absolutamente necessário.

Uma vez
estendido no divã, examinou o título do livro. Era uma edição Charpentier, em
papel do Japão, dos ‘Emaux et Camées’ de Gautier, ornada de uma água–forte de
Jacquemart. A encadernação era de couro amarelado e limão, tendo estampados uma
rótula de ouro e um semeado de granadas; o livro fora-lhe oferecido por Adrian
Singleton. Como voltasse as páginas, seus olhos recaíram sobre o poema da mão
de Lacenaire, a mão fria e lívida, “du supplice encore mal lavée”, de
pelos ruivos e “dedos de fauno”. Mirou seus próprios dedos brancos,
pontiagudos e perturbou-se ligeiramente, apesar de si… Continuou a folhear o
volume e estacou nestas deliciosas estâncias sobre Veneza:

 

Sur une gamme chromatique,

Le sein de perles ruisselant,

La Vénus de I’Adriatique

Sort de l’eau son corps rose et blanc.

 

Les domes, sur l’azur dês ondes,

Suivant Ia phrase au pur contour,

S’ enflent comme des gorges rondes,

Que soulève un soupir d’amour.

 

L’esquif aborde et me dépose,

Jetant son amarre au pillier,

Devant une façade rose,

Sur le marbre d’un escalier.

 

Como isto
era saboroso! Lendo-se, parecia descer-se às verdes lagunas da cidade
cor–de–rosa e pérola, sobre uma gôndola negra de proa de prata e cortinados a
arrastar… Esses simples versos evocavam-lhe as longas bandas de
azul-turquesa, sucedendo-se lentamente no horizonte do Lido. O brilho súbito
das cores lembrava esses pássaros de pescoço de íris e opala, que volitam em
torno do alto campanário rebuscado como um favo de mel ou passeiam com tanta
graça sob as sombrias e poeirentas arcadas. Dorian recostou-se, de olhos
semicerrados, repetindo a si mesmo:

 

Devant
une façade rose,

Sur le
marbre d’un escalier…

 

Toda a
Veneza estava nestes dois versos… Ele lembrou-se do outono que ali havia
passado e do prestigioso amor que o havia levado a deliciosas e delirantes
loucuras. Há romances em toda parte. Em Veneza, porém, como em Oxford, ficara o
verdadeiro quadro de todo romance, e para o legítimo romântico, a moldura é tudo
ou quase tudo. Basil o havia acompanhado uma parte do tempo e tinha-se
enamorado do Tintoreto. Pobre Basil! Que morte execranda!…

Teve
novamente um calafrio e retomou o volume, esforçando-se por esquecer. Leu esses
versos deliciosos sobre as andorinhas do pequeno café de Esmirna, entrando e
saindo, enquanto os Hadjis, assentados ao redor, contam os grãos de âmbar dos
seus rosários e os negociantes de turbante fumam os longos cachimbos de
bolotas, conversando gravemente; leu outros sobre o Obelisco da Praça da
Concórdia, que tem lágrimas de granito pelo seu exílio sem sol, e se consome
por não poder voltar junto ao Nilo ardente e coberto de lótus, onde há esfinges
e íbis róseos e vermelhos, abutres brancos de garras de ouro, crocodilos de
olhinhos de berilo rastejando na lama verde e vaporífera; pôs-se a pensar em
outros versos que cantam um mármore manchado de beijos e falam-nos dessa
curiosa estátua que Gautier compara a uma voz de contralto, o ‘monstre
charmant’ deitado na sala de pórfiro do Louvre. O livro logo caiu-lhe das
mãos… Ele se enervava e uma inquietação o invadia. Se Alan Campbell estivesse
ausente da Inglaterra? Dias se passariam antes que voltasse. Talvez recusasse
vir. Que fazer então? Cada momento tinha uma importância vital. Haviam sido grandes
amigos, cinco anos antes, quase inseparáveis, na verdade. Depois a sua
intimidade se interrompera de repente. Quando se encontravam hoje na sociedade,
somente Dorian Gray sorria, mas nunca Alan Campbell.

Era um
jovem muito inteligente, embora não apreciasse as artes plásticas, e tinha
certa compreensão da beleza poética, que lhe fora inteiramente transmitida por
Dorian. Sua paixão dominante era a ciência. Em Cambridge, havia gasto a maior
parte de seu tempo a trabalhar no laboratório e nas ciências naturais
conquistou um bom grau no exame final. Entregava-se ainda muito ao estudo da
química e possuía um laboratório, no qual se encerrava todo dia, com grande
desespero de sua mãe que para ele havia sonhado um assento no parlamento e
alimentava a vaga ideia de que um químico era um homem que preparava receitas.
Ele era, além de tudo, muito bom músico e tocava violino e piano melhor que a
maior parte dos amadores. De fato, era a música que os havia aproximado. Dorian
e ele; a música e também essa indefinível atração que Dorian mostrava poder
exercer quando queria e que, muitas vezes, exercia inconscientemente. Eles se
haviam encontrado em casa de lady Berkshire, na noite em que Rubinstein aí
havia aparecido, e depois foram sempre vistos juntos na Ópera e em toda parte
onde tocavam boa música. Essa intimidade prolongou-se por dezoito meses.
Campbell estava constantemente ou em Selby Royal ou em Grosvenor Square. Para
ele, como para muitos outros, Dorian era o arquétipo de tudo quanto é
maravilhoso e sedutor na vida. Sobreviera entre eles uma controvérsia,
desconhecida de todos… Imediatamente, porém, notou-se que apenas se falavam
quando se encontravam e que Campbell sempre se retirava cedo das reuniões onde
aparecia Dorian. Além disso, ele mudara; tinha desusadas melancolias,
manifestava quase detestar a música, não querendo tocar, alegando, para
escusar-se, quando lho pediam, que seus estudos científicos o absorviam por tal
forma, que não lhe restava mais tempo para exercícios. E era verdade. Cada dia
a biologia o interessava mais e seu nome fora citado várias vezes nas revistas
de ciência, a propósito de curiosas experiências.

Era o
homem que Dorian esperava. A todo o momento, ele examinava a pêndula. À medida
que os minutos se escoavam, tornava-se tristemente agitado. Afinal, ergueu-se e
pôs-se a percorrer o aposento como um pássaro prisioneiro; seu andar era
convulsivo, suas mãos estavam álgidas.

A espera
tornava-se intolerável. O tempo parecia-lhe marchar com pés de chumbo e ele se
sentia carregado por um formidável furacão por sobre as beiras de qualquer
precipício escancarado.

Sabia o
que o esperava, bem o via, e apertava com as mãos úmidas as pupilas ardentes,
como para apagar a vista ou afundar para sempre nas órbitas os globos de seus
olhos. Era em vão… Seu cérebro tinha o próprio alimento de que se sustentava
e a visão, tornada grotesca pelo terror, desenrolava-se em contorções,
dolorosamente desfigurada, dançando diante dele como um manequim imundo e
careteando sob máscaras cambiantes. Então, subitamente, o tempo suspendeu-se
para ele, e esta força cega, de respiração lenta, cessou o seu rebuliço…
Fantásticas ideias sobre a morte do tempo correram diante dele, mostrando-lhe
um futuro horripilante… Pondo-se a contemplar, o horror petrificou-o…

Enfim, a
porta abriu-se e o criado entrou. Volveu os olhos esgazeados e pávidos…

– Mr.
Campbell, senhor – disse o homem.

Um
suspiro de alívio escapou-se-lhe da garganta e a cor voltou-lhe às faces.


Dize-lhe que entre, Francis.

Sentia
que se recobrava. O medo havia desaparecido.

O homem
inclinou-se e saiu… Um instante depois, Alan Campbell entrou, pálido e
severo, sua palidez aumentada pelo forte negro dos cabelos e das sobrancelhas.

– Alan!
Como és amável!… Agradeço a tua vinda.

– Eu
resolvera nunca mais por os pés em tua casa, Gray. Mas como tu dizias que era
uma questão de vida ou de morte…

A sua voz
era dura e fria. Falava lentamente. Havia uma nuance de desprezo no seu olhar
firme e perscrutador dirigido sobre Dorian. Conservava as mãos nos bolsos do
sobretudo de astracã e parecia não notar o acolhimento que lhe era feito…

– Sim, é
uma questão de vida ou de morte, Alan, e para mais de uma pessoa. Senta-te.

Campbell
tomou uma cadeira perto da mesa e Dorian outra em frente. Cruzaram-se os olhos
dos dois homens. Lia-se uma infinita compaixão nos de Dorian. Ele sabia que era
nefando o que ia praticar!…

Depois de
penoso silêncio, Dorian debruçou-se sobre a mesa e disse tranquilamente,
observando o efeito de cada palavra sobre o semblante daquele que havia feito
chamar:

– Alan,
em uma câmara fechada à chave, bem no alto desta casa, em um quarto onde
ninguém mais, senão eu, penetrou, está um homem morto assentado junto de uma
mesa. Morreu há dez horas. Não te enganes, nem me olhes assim!… Quem é esse
homem, por que e como morreu são assuntos que não te interessam. O que tens a
fazer é o seguinte…

– Para,
Gray!… Eu nada mais quero saber… O que acabas de dizer-me, seja ou não
verdade, não me interessa… Recuso absolutamente intrometer-me na tua vida.
Guarda contigo teus infames segredos. Não me interessam mais daqui por diante.

– Alan,
eles hão de interessar-te… Este te interessará. Estou cruelmente contrariado
por tua causa, Alan. Mas eu próprio não consigo nada. Tu és o único homem capaz
de me salvar. Sou forçado a envolver-te neste caso; não tenho que escolher…
Alan, tu és um sábio. Tu conheces a química e tudo o que com ela se relaciona.
Tens feito experiências. O que tens a fazer agora é destruir o corpo que lá
está, destruí-lo de modo a não ficar o menor vestígio. Ninguém viu esse homem
entrar em minha casa. Julgam-no neste momento em Paris. Não perceberão a sua
ausência antes de um mês. Quando aperceberem, nenhum traço existirá da sua
presença aqui. Quanto a ti, Alan, é preciso que o transformes, com tudo o que
há nele, em um punhado de cinzas que eu possa atirar ao vento.

– Tu
estás doido, Dorian!

– Ah! Eu
esperava que me chamasses Dorian!

– Tu
estás doido, repito, por julgar que eu possa levantar um dedo em teu auxílio,
doido por me haveres feito semelhante confissão! …Não me meto nisso. Pensas
que serei capaz de arriscar a minha reputação por ti?… Que me importa a tua
obra diabólica?

– Ele
suicidou-se. Alan…

– É
melhor que assim seja!… Mas quem o levaria a esse ato? Tu, eu calculo.

– Ainda
recusas prestar-me esse serviço?


Certamente, recuso. Não quero absolutamente me ocupar disso, pouco me importa a
vergonha que te espera. Tu mereces todas. Não me incomodarei se te vir
comprometido, publicamente comprometido. Como ousas tu pedir-me, entre tantos
homens, que me envolva nessa infâmia? Acreditei que conhecesses melhor os
caracteres. Teu amigo lord Henry Wotton poderia ter-lhe instruído melhor em
psicologia, entre outras coisas que te ensinou… Nada me decidirá a dar um
passo para salvar-te. Tu erraste o caminho. Procura qualquer outro dos teus
amigos; não te dirijas a mim…

– Alan, é
um assassinato!…Eu o matei… Tu não sabes o que ele me tinha feito sofrer.
Qualquer que tenha sido a minha existência, ele contribuiu mais a fazê-la e a
perdê-la do que esse pobre Harry. Pode ser que o não fizesse intencionalmente,
mas o resultado é o mesmo.

– Um
assassinato, justos céus! Dorian, até aí chegaste? Eu não te denunciarei, que
este não é meu ofício… Entretanto, mesmo sem minha intervenção, tu serás
certamente preso. Ninguém comete um crime sem juntar qualquer desabilidade. Eu,
porém, nada quero ter com isso…

– É
preciso que tenhas. Espera, espera um momento e escuta… Escuta somente,
Alan… Tudo o que te peço é fazeres uma experiência. Vais aos hospitais, aos
necrotérios, as abominações que aí fazes não te comovem? Se em um desses
laboratórios fétidos ou em uma dessas salas de dissecação encontrasses esse
homem estendido em uma mesa de chumbo, com rogos e goteiras para escorrimento
do sangue, tu o olharias simplesmente como uma admirável peça de estudo. Não
sentirias um único fio de cabelo arrepiado. Não pensarias praticar uma infâmia.
Ao contrário, pensarias provavelmente trabalhar pelo bem da humanidade, ou aumentar
o tesouro científico do mundo, satisfazer uma curiosidade intelectual ou
qualquer coisa deste gênero… O que te peço é o que já fizeste muitas vezes.
Na verdade, destruir um cadáver deve ser muito menos horrível que o que já te
habituaste a fazer. E, reflete, este cadáver é a única prova existente contra
mim. Se ele for descoberto, estou perdido; e ele será fatalmente descoberto se
não me ajudares!…

– Não
tenho o menor desejo de ajudar-te. Sou simplesmente indiferente a toda essa
questão, que não me interessa…

– Alan,
torno a rogar-te! Pensa na minha posição! Justamente, no momento em que
chegavas, eu desfalecia de pavor. Talvez tu próprio conheças um dia esse
terror… Não! Não penses nisso. Considera o caso, simplesmente, do ponto de
vista científico. Tu não te informas da procedência dos cadáveres que servem às
tuas experiências… Não queiras saber de onde este veio. Já te falei muito a
respeito. Mas te peço que me faças o trabalho. Nós fomos amigos. Alan!

– Não me
fales desses dias passados, Dorian; estão mortos.

– Os
mortos retardam, às vezes… O homem que está lá em cima não se irá assim. Está
assentado junto à mesa, com a cabeça inclinada e os braços alongados. Alan!
Alan! Se não vens em meu socorro, estou perdido!… Ora, serei enforcado, Alan!
Não compreendes? Hão de enforcar-me pelo que está feito!…

– É
inútil prolongar esta cena. Recuso terminantemente a envolver-me em tudo isso.
É loucura o pedido de tua parte.

– Então,
recusas?

– Sim.

– Eu te
suplico, Alan!

– É
inútil.

A mesma
expressão compassiva voltou aos olhos de Dorian Gray. Ele alongou o braço,
apanhou uma folha de papel e traçou algumas palavras. Releu duas vezes esse
bilhete, dobrou-o cuidadosamente e impeliu-o sobre a mesa. Feito isto,
levantou-se, encaminhando-se até a janela.

Campbell
mirou-o surpreso, depois agarrou o papel e desdobrou-o. À medida que o lia, um
medonho palor descompunha-lhe os traços e o seu corpo dobrou-se na cadeira. O
coração pulsava a arrebentar.

Após dois
ou três minutos de suspensivo silêncio, Dorian voltou-se e veio colocar-se
atrás dele, apoiando uma das mãos no seu ombro.

– Lastimo
pelo que te toca, Alan  – murmurou ele –,
mas tu não me deixaste alternativa alguma. Eu estava com uma carta pronta;
ei-la. Vês o endereço. Se tu não me ajudas, será preciso que eu a remeta; se
não me ajudares, eu a remeterei… Bem sabes o que resultará… Vais, porém,
ajudar-me. É impossível que mo recuses agora. Procurei poupar-te. Far-me–ás a
justiça de reconhecê-lo… Foste severo, duro, ofensivo. Trataste-me como homem
algum jamais ousou fazê-lo, nenhum homem vivo, pelo menos. Tudo suportei. Agora
é a mim que cabe ditar as condições.

Campbell
ocultou a cabeça entre as mãos; um arrepio percorreu-lhe o corpo…

– Sim,
agora é a minha vez de ditar as condições, Alan. Tu já as conheces. A coisa é
muito simples. Vem; não te ponhas assim febril. É preciso que a coisa seja
feita. Considera-a e faze-a…

Um gemido
saiu da boca de Campbell, que se pôs a tremer de alto a baixo. O tique–taque do
relógio sobre a chaminé pareceu-lhe dividir o tempo em átomos sucessivos de
agonia, pesados de suportar. Pareceu-lhe que um círculo de ferro comprimia
lentamente sua fronte e que a vergonha de que estava ameaçado já o atingira. A
mão descansada em seu ombro pesava-lhe como mão de chumbo, intoleravelmente;
parecia confundi-lo.

– Então,
Alan! É preciso decidir.

– Não
posso… – proferiu ele maquinalmente, como se estas palavras chegassem a mudar
a situação.

– É
preciso. Não tens a escolha… Não esperes mais.

Campbell
hesitou um momento.

– Há fogo
nessa sala, lá em cima?

– Sim, há
um aparelho de gás com amianto.

– Preciso
voltar a casa, a fim de apanhar uns instrumentos no laboratório.

– Não,
Alan, tu não sairás daqui. Escreve o necessário em uma folha de papel: meu
criado tomará um carro e irá buscar.

Campbell
rabiscou algumas linhas, passou o mata–borrão e escreveu em uma sobrecarta o
endereço de seu ajudante. Dorian tomou o bilhete; leu-o atentamente; depois
tocou a campainha e entregou-o ao criado, com a recomendação de voltar o mais
cedo possível, trazendo os objetos pedidos.

Quando a
porta da rua foi fechada, Campbell levantou-se nervosamente e aproximou-se da
chaminé. Parecia tiritar com uma espécie de febre. Durante cerca de vinte
minutos, nenhum dos dois homens falou. Uma mosca voejava ruidosamente no
aposento e o tique–taque do relógio soava como pancadas de martelo… O timbre
marcou uma hora… Campbell voltou-se e, contemplando Dorian, percebeu que seus
olhos estavam banhados de lágrimas. Havia nesse semblante desesperado uma
pureza e uma distinção que o puseram fora de si.

– Tu és
vil, inteiramente vil – disse.

– Psiu,
Alan! Tu me salvaste a vida – replicou Dorian.

– Tua
vida, justo céu! Que vida! Tu foste de corrupções em corrupções até o crime.
Fazendo o que vou fazer, o que me forças a fazer, não é em tua vida que eu
sonho…

– Ah!
Alan! –balbuciou Dorian com um suspiro – Eu só desejo que tenhas por mim a
milésima parte da piedade que sinto por ti.

Falando
assim, virou-lhe as costas e foi espiar da janela o jardim. Campbell nada
respondeu… Passados dez minutos, bateram à porta e o criado entrou,
carregando uma grande caixa de acaju cheia de drogas, um longo rolo de fio de
aço e platina e dois férreos ganchos de forma esquisita.

– Devo
deixar tudo aqui, senhor? – perguntou o criado a Campbell.

– Sim –
ordenou Dorian – E creio, Francis, que ainda te reservo uma comissão. Qual é o
nome desse homem de Richmond que fornece as orquídeas em Selby?

– Harden,
senhor.

– Sim,
Harden… Tu irás, pois, a Richmond procurar esse próprio Harden e dir-lhe–ás
que me envie duas vezes mais a porção de orquídeas não encomendadas e com a
menor quantidade de folhas possível… Não, sem uma folha, absolutamente. O
tempo está delicioso, Francis, e Richmond é um belo lugar; se assim não fosse,
eu não te incomodaria com a encomenda.


Absolutamente, senhor. A que horas devo estar de volta? Dorian fixou Campbell.

– Quanto
tempo requer a tua experiência, Alan? – inquiriu ele com voz calma e
indiferente, como se a presença de um terceiro lhe desse uma coragem
inesperada.

Campbell
estremeceu e mordeu os beiços…

– Cerca
de cinco horas – respondeu.

– Podes
então estar de volta pelas sete horas e meia, Francis. Ou antes, espera:
prepara-me o necessário para vestir-me e dispõe do resto do dia. Eu não janto
aqui, de sorte que não preciso de ti.


Obrigado, senhor – respondeu o criado, retirando-se.

– Agora,
Alan, não percamos um momento… Como esta caixa é pesada!… Eu a carrego;
apanha os demais objetos.

Dorian
falava depressa, num tom de comando. Campbell sentiu-se dominado. Saíram
juntos.

Chegados
ao patamar do último andar. Dorian puxou a chave e introduziu-a na fechadura.
De repente, estacou, com os olhos turvos e trêmulos…

– Creio
que não poderei entrar, Alan! – confessou ele.

– Pouco
me importa, não preciso de ti – retrucou Campbell friamente.

Dorian
entreabriu a porta… Nessa ocasião, percebeu sob a plena luz os olhos do
retrato, como a fixá-lo. Diante dele, sobre o assoalho, estava estendido o
estofo rasgado. Lembrou-se de que, na noite precedente, havia esquecido, pela
primeira vez na sua vida, de ocultar o quadro fatal; teve vontade de fugir, mas
reteve-se todo tremente.

Que era
essa odiosa nódoa rubra, tímida e brilhante, que ele via em uma de suas mãos,
como se a tela tivesse sido salpicada de sangue? Quão horrível! Mais horrível
ainda, pareceu-lhe no momento esse fardo imóvel e silencioso, caído de encontro
à mesa, essa massa informe e grotesca, com a sombra a projetar-se no sujo
tapete, mostrando-lhe que não se havia movido e estava sempre lá, tal qual a
havia deixado…

Dorian
soltou um profundo suspiro, abriu um pouco mais a porta e de olhos
semicerrados, voltando a cabeça, entrou vivamente, resolvido a não dirigir um
só olhar ao cadáver… Depois, parando e recolhendo o estofo de púrpura e ouro,
lançou-o sobre o quadro…

Então,
conservou-se imóvel, receando regressar, com os olhos fixos nos arabescos dos
bordados que tinha diante de si. Ouviu Campbell, que fazia entrar a pesada
caixa e os objetos metálicos necessários à sua sórdida tarefa. Interrogou-se
intimamente se Campbell e Basil Hallward já se haveriam algum dia encontrado e,
neste caso, o que haviam podido pensar um do outro.


Deixa-me agora – disse uma voz dura atrás dele.

Ele
voltou-se e saiu às pressas, tendo confusamente entrevisto o cadáver revirado
no espaldar da poltrona e Campbell que lhe espreitava a face pálida e luzente.
Descendo, ouviu o ruído da chave na fechadura…

Alan
trancava-se…

Eram
muito mais de sete horas, quando Campbell repenetrou na biblioteca. Estava
pálido, mas perfeitamente calmo.

– Fiz o
que me pediste – anunciou ele – E agora, adeus! Nunca mais nos tomaremos a ver!

– Tu me
salvaste, Alan, nunca mais hei de esquecê-lo – pronunciou Dorian simplesmente.

Logo que
Campbell saiu, ele subiu… Enchia a sala um insuportável cheiro de ácido
nítrico. Havia, porém, desaparecido o vulto assentado de manhã diante da
mesa…

 

XV

 

Nessa
noite, às oito horas e trinta, esplendidamente vestido, trazendo ao peito um
grande ramalhete de violetas de Parma, Dorian Gray era introduzido no salão de
lady Narborough pelos criados inclinados.

As veias
das têmporas palpitavam-lhe febrilmente e ele sentia-se excitadíssimo, mas a
elegante reverência que fez diante da mão da dona da casa foi tão fácil e
graciosa como de ordinário. Talvez nunca se esteja tão à vontade como quando se
tem uma comédia a desempenhar. Certamente, nenhum dos que viram Dorian Gray
essa noite imaginaria que ele atravessara um drama dos mais horríveis da nossa
época. Aqueles dedos delicados não podiam ter segurado o cutelo de um
assassino, nem aqueles lábios sorridentes teriam blasfemado Deus. Apesar de
tudo, ele próprio se pasmava da calma de seu espírito e por um momento sentiu
intensamente o macabro prazer de possuir uma dupla vida.

A reunião
era íntima, logo posta em confusão por lady Narborough, dama muito inteligente,
de quem lord Henry falava como de uma mulher que havia conservado os belos
restos de uma notável fealdade. Ela mostrara-se a excelente esposa de um dos
nossos mais enfadonhos embaixadores e, tendo sepultado convenientemente seu
marido sob um mausoléu de mármore, que ela própria desenhara, e casado suas
filhas com homens ricos e maduros, consagrava-se ultimamente aos prazeres da
arte francesa, da cozinha francesa e do espírito francês, quando podia
atingi-lo…

Dorian
era um dos seus grandes favoritos; ela dizia-lhe sempre que se sentia encantada
por não o ter conhecido quando moça.

– Porque,
meu caro amigo, estou certa de que me teria perdidamente apaixonado e faria
loucuras. Felizmente, nesse tempo não pensava em si! Depois, foi culpa de
Narborough. Ele era tão míope que não haveria prazer algum em enganar um marido
que nunca via nada!…

Seus
convidados, essa noite, estavam fastiosos… Assim como ela explicava a Dorian,
por trás de um velho leque, tinha-lhe aparecido de improviso uma de suas filhas
casadas e, por cúmulo do caiporismo, tinha trazido o marido.

– Acho
este procedimento bastante descortês de sua parte, meu caro… – dizia-lhe ela,
bem junto ao ouvido. – É verdade que vou passar o verão com eles, ao regressar
de Hombourg, mas também é necessário que uma velha como eu tome de vez em
quando um pouco de ar fresco. Afinal, eu os desperto, realmente, porque não
concebo a sua existência. E a mais acabada vida campestre. Levantam-se cedo,
por terem muito que fazer, e deitam-se ainda mais cedo, por não terem o que
pensar. Não houve o menor escândalo em toda a vizinhança, desde os tempos da
Rainha Isabel, e assim todos adormecem logo após o jantar. Não precisa ter o
cuidado de ir sentar-se perto deles. Fique perto de mim e assim me
distrairá!…

Dorian
murmurou um cumprimento amável e olhou em torno de si. Era certamente uma
fastidiosa reunião. Dois personagens desconhecidos e os outros: Ernesto
Harrowden, um desses medíocres entre duas idades, tão comuns nos clubes de
Londres, sem inimigos, mas que não são menos detestados pelos amigos; lady
Ruxton, uma mulher de quarenta e sete anos, de vestuário estrepitoso, nariz
recurvado, que sempre procurava comprometer-se, mas era tão perfeitamente
banal, que, com grande desengano, ninguém jamais quis acreditar na menor
detração a seu respeito; lady Erlynne, de cabelos ruivos “venezianos”,
muito reservada, vítima de uma rápida gagueira; lady Alice Chapman, filha da
hospedeira, triste e malvestida, tipo de uma dessas banais figuras britânicas
já esquecidas, e enfim seu marido, figura de faces rosadas, suíças brancas,
que, como muitos da sua espécie, pensava que uma excessiva jovialidade podia
suprira absoluta falta de ideias…

Dorian
quase já lastimava ter vindo, quando lady Narborough, fitando a grande pêndula
que ostentava sobre a chaminé forrada de malva as suas pretensiosas volutas de
bronze dourado, exclamou:

– Como é
condenável em Henry Wotton fazer-se assim esperar! Mandei à sua casa, esta
manhã, e ele prometeu-me não faltar.

Foi para
Dorian um consolo saber que Harry estava chegando; e quando abriu a porta e ele
ouviu sua voz doce e musical, emprestando novo encanto a qualquer cumprimento
fingido, o tédio o abandonou.

Entretanto,
à mesa, não pôde comer. Os manjares se sucediam em seu prato sem que os
saboreasse. Lady Narborough não cessava de rosnar pelo que ela chamava “um
insulto a esse pobre Adolfo que compôs o menu expressamente para a sua
pessoa”. De vez em quando, lord Henry o espreitava, espantando-se do seu
silêncio e do seu ar absorto. O criado enchia-lhe a taça de ‘champagne’: ele
bebia avidamente e sua sede parecia aumentar.

– Dorian
– disse enfim lord Henry – quando se serviu o ‘chaud-froid’, que tens tu esta
noite?… Não pareces muito à vontade!…

– Está
enamorado – exclamou lady Narborough – e creio que tem medo de mo confessar
pela certeza de que sou ciumenta. Tem razão, porque despertará o meu ciúme…

– Cara
lady Narborough – ciciou Dorian sorrindo – há uma longa semana que não tenho
amores, desde que Madame de Ferrol deixou Londres.

– Como os
homens podem amar essa mulher! – bradou a velha dama. – Não posso compreender!

– É
simplesmente porque ela nos recorda a infância, lady Narborough – explicou lord
Henry. – É o único traço de união entre nós e as nossas calças curtas.

– Ela não
me recorda absolutamente as minhas calças curtas, lord Henry. Lembro-me, porém,
perfeitamente de tê-la visto em Viena, há trinta anos… Já se decotava bem.

– Ainda é
decotada hoje -acrescentou ele, tomando uma azeitona com seus longos dedos –; e
quando se atavia com brilhantes vestuários assemelha-se a uma ‘édition de luxe’
de um mau romance francês. É verdadeiramente extraordinária e cheia de
surpresas. O seu gosto pela família é prodigioso; quando seu terceiro marido
morreu, seus cabelos tornaram-se incomparavelmente dourados de angústia.

– Podes
tu dizê-lo, Harry?!… – murmurou Dorian.

– E uma
explicação romântica! – exclamou rindo a dona da casa. – Dizeis, porém, seu
terceiro marido, lord Henry… Não quereis dizer que Ferrol é o quarto?


Certamente, lady Narborough.

– Não
creio.


Interrogue senhor Gray, um dos seus mais íntimos amigos.

– É verdade,
senhor Gray?

– Ela mo
disse, lady Narborough – esclareceu Dorian – Eu perguntei-lhe se, como
Margarida de Navarra, ela não conservava os seus corações embalsamados e
pendurados à cintura. Respondeu-me que não, porquanto nenhum deles tinha
coração.

– Quatro
maridos!… Palavra, ‘étrop de zele!’…

– ‘Trop
d’audace’, afirmei-lhe eu – replicou Dorian.

– Oh! É
bastante audaz, meu caro; e Ferrol que tal é?… Não o conheço.

– Os
maridos das belas mulheres pertencem à classe dos criminosos – falou lord Henry,
saboreando pequenos goles. Lady Narborough bateu-lhe com o leque.

– Lord
Henry, já não me surpreendo, quando a sociedade o acha extremamente
perverso!…

– Mas por
que a sociedade há de dizer isso? – indagou lord Henry alçando a cabeça – Só
poderá fazê-lo a sociedade futura. A de hoje e eu nos entendemos perfeitamente.

– Todas
as pessoas que conheço o acham um grande perverso – insistiu a velha dama,
sacudindo a cabeça.

Lord
Henry mostrou-se sério um momento.

– É
simplesmente monstruoso – articulou ele enfim – esse costume contemporâneo de
falar-se pelas costas dos homens o que é… absolutamente verdadeiro!…

– Não o
acha incorrigível? – clamou Dorian, recostando-se no espaldar da cadeira.


Certamente – concordou rindo a dona da casa-se, porém, na verdade, vós todos
adorais tão ridiculamente Madame de Ferrol, será preciso que eu torne a
casar-me, a fim de entrar na moda.

– A
senhora não se casaria de novo, lady Narborough – interrompeu lord Henry – Foi
muito feliz pela primeira vez. Quando uma mulher torna a casar-se, é porque
detestava o primeiro esposo. Quando o mesmo se dá com o homem, é que ele
adorava a primeira mulher. Estas procuram a felicidade, os homens arriscam as
suas.


Narborough não era perfeito! – sentenciou a velha dama.

– Se
fosse, não o teria adorado – responderam-lhe -as mulheres nos amam pelos nossos
defeitos. Se não os temos, transmitem-nos os seus, mesmo à nossa
inteligência… Receio que, por haver dito isto, não me convide mais; é, porém,
a pura verdade, lady Narborough.

– Certamente,
é exato, lord Henry… Se nós, mulheres, não vos amássemos pelos vossos
defeitos, a que ficaríeis reduzidos? Nenhum de vós poderia casar-se. Seríeis um
montão de infortunados celibatários… Isto, entretanto, não vos alteraria
muito: hoje todos os homens casados vivem como solteiros e todos os solteiros
como casados.

– ‘Fin de
siècle!’… – disse lord Henry.

– ‘Fin de
globe!’ –respondeu a hospedeira.

– Eu
estimaria que isso fosse o ‘fin de globe’, – emendou Dorian com um suspiro. – A
vida é uma grande desilusão.

– Ah! Meu
caro amigo! – exclamou lady Narborough,enfiando as luvas; –Não me diga que a
vida para si já está esgotada. Quando um homem diz isso, compreende-se que foi
a vida que o esgotou. Lord Henry é muito mau e eu muitas vezes desejaria sê-lo
também; isto, porém, não se aplica ao senhor, que é tão belo e foi feito para
ser bom!… Hei de descobrir-lhe uma linda mulher. Lord Henry, não acha que
senhor Gray deveria casar-se?…

– É o que
eu sempre lhe repito, lady Narborough – aquiesceu lord Henry inclinando-se.

– Bem,
será preciso que nos ocupemos de um partido que lhe convenha. Percorrerei esta
noite o ‘Debrett’ com cuidado e organizarei uma lista de todas as moças prontas
para casar.

– Com as
respectivas idades, lady Narborough? – perguntou Dorian.


Decerto, com as respectivas idades, devidamente reconhecidas… Nada, porém, se
deve fazer com precipitação. Quero que se faça o que o ‘Morning Post’ chama uma
união sorteada e que lhe toque a felicidade.

– Quantas
tolices se dizem sobre os casamentos felizes! – bradou lord Henry. – Um homem
pode ser feliz com qualquer mulher durante todo o tempo em que não a ama…

– Ah! Que
estupendo cínico! – disse, levantando-se a velha dama, fazendo um sinal a lady
Ruxton: “Deve voltar em breve a jantar comigo”. – É realmente um admirável
tônico, bem superior ao que Sir Andrew me prescreveu. Deve igualmente dizer-me
quais as pessoas que estimaria encontrar. Quero ter uma reunião irrepreensível.

– Gosto
dos homens que esperam um futuro e das mulheres que guardam um passado –
respondeu lord Henry –Não acredita que assim se consiga uma boa companhia?


Receio… – disse ela rindo, dirigindo-se para a porta. – Mil perdões, cara
lady Ruxton – acrescentou –, não reparara que o vosso cigarro estava por
acabar.

– Pouco
importa, lady Narborough, eu fumo muito. Limitar-me–ei para o futuro.

– Nada
faça,lady Ruxton – aconselhou lord Henry -a moderação é uma coisa fatal.
Bastante é tão mau como uma refeição; mais que bastante é tão bom como uma
festa.

Lady
Ruxton fixou-o com curiosidade,

– Deve
vir explicar-me isso, uma destas tardes, lord Henry; a teoria parece-me
agradável – acrescentou, saindo majestosamente…

– Agora
pensem em não falar demasiadamente de política e escândalos -observou lady
Narborough da porta -se assim não for, brigaremos.

Os homens
puseram-se a rir e Mr. Chapman remontou solenemente do fim da mesa, vindo tomar
o lugar de honra. Dorian Gray colocou-se junto a lord Henry. Mr. Chapman pôs-se
a falar muito alto da situação na Câmara dos Comuns. Soltava grossas risadas,
pronunciando os nomes dos adversários. O vocábulo doutrinário – vocábulo cheio
de terrores para o espírito britânico – surgia volta e meia na sua conversa. Um
prefixo aliterado é um ornamento da oratória. Ele elevava a “Union Jack”
ao pináculo do pensamento. A estupidez hereditária da raça – que ele
jovialmente denominava o bom senso inglês – era, como demonstrava, o verdadeiro
reduto da sociedade.

Um
sorriso veio aos lábios de lord Henry, que se voltou para Dorian.

– Estás
melhor, caro amigo? – perguntou ele. –Parecias pouco à vontade na mesa…

– Passo
muito bem, Harry, um pouco fatigado somente.


Estiveste adorável, ontem, à noite. A duquesinha está louca por ti. Disse-me
que iria a Selby.

– Ela
prometeu-me ir a vinte.

– E
Monmouth lá estará também? Ele me enfastia imensamente, quase tanto quanto à
Duquesa. Ela é bem inteligente, muito inteligente para uma mulher. Falta-lhe
esse encanto indefinível das fracas. São os pés de argila que fazem precioso o
ouro das estátuas. Seus pés são lindos, mas não são de argila; são pés de
porcelana branca, se quiseres. Passaram pelo fogo e o que o fogo não destrói
endurece. Ela teve aventuras…

– Desde
quando está casada? – perguntou Dorian.

– Há uma
eternidade – disse-me ela. – Creio, segundo o nobiliário, que se casou há dez
anos, mas dez anos com Monmouth representam uma eternidade. Quem mais irá?

– Oh! Os
Willoughbys, lord Rugby e sua esposa, a nossa anfitriã, Godofredo Geoffrey, os
de costume… Convidei também lord Grotrian.

– Este
agrada-me – anunciou lord Henry – Não agrada a todo mundo, mas eu o acho
excelente. Ele expia o seu exterior às vezes exagerado com sua educação sempre
muito perfeita. É uma figura muito moderna.

– Não sei
se poderá vir, Harry. Talvez vá a Monte Carlo com o pai.

– Ah! Que
peste essa gente! Esforça-te para que ele venha. A propósito, Dorian, tu
partiste muito cedo, ontem, à noite. Não eram ainda onze horas. Que fizeste?…
Entraste logo em casa?

Dorian
fitou-o bruscamente.

– Não,
Harry. Eu só voltei a casa pelas três horas.

– Foste
ao clube?

– Sim…
– respondeu Dorian, depois mordeu os lábios – Quero dizer: não, não fui ao
clube… Passei. Não sei mais o que fiz… Como tu és indiscreto, Harry! Queres
sempre saber o que se faz; eu, eu tenho sempre necessidade de esquecer o que
fiz… Entrei às duas horas e meia, se queres saber a hora exata; havia
esquecido a chave e o criado teve que abrir a porta. Se queres provas, poderás
pedi-las.

Lord
Henry deu de ombros.

– Como se
isso me interessasse, meu caro amigo!

– Subamos
ao salão!

– Não,
obrigado, Mr. Chapman, nada de cherry…


Aconteceu-te alguma coisa. Dorian… Conta-me o que foi. Tu não és o mesmo,
esta noite.

– Não te
inquietes comigo, Harry; estou irritável, nervoso. Irei ver-te amanhã ou depois
de amanhã. Apresenta as minhas desculpas a lady Narborough. Não subirei; vou
regressar. Preciso recolher-me.

– Muito
bem, Dorian. Espero ver-te amanhã, à hora do chá; a Duquesa lá estará.

– Farei o
possível, Harry – disse o outro retirando-se.

Reentrando
em casa, Dorian sentiu que o acabrunhamento, uma vez expelido, tomava-o de
novo. As perguntas imprevistas de lord Henry lhe haviam feito perder, um
instante, todo o seu sangue–frio e ele ainda carecia de calma. Ainda havia
objetos perigosos a destruir. Ele revoltava-se à ideia de tocá-los com suas
mãos.

Entretanto,
era necessário fazer-se tudo. Resignou-se e, depois de fechar à chave a porta
da biblioteca, abriu o secreto armário de parede onde depositara a capa e a
maleta de Basil Hallward. Brasas ardiam na chaminé; aí atirou mais uma acha. O
cheiro de couro e pano queimados era insuportável. Foram precisos três quartos
de hora para tudo consumir-se. Ao terminar, ele sentiu-se fraco, quase doente;
e tendo queimado pastilhas de Argel em um defumador de cobre furado, refrescou
as mãos e a fronte com vinagre perfumado.

Subitamente
arrepiou-se… Os olhos brilhavam-lhe de maneira estranha e ele mordia
febrilmente o lábio inferior. Entre duas janelas, havia um grande móvel
florentino, de ébano incrustado de marfim e lápis-lazúli. Olhava-o como se
fosse um objeto capaz de transportá-lo ou apavorá-lo ao mesmo tempo, como se
contivesse qualquer coisa que ambicionava, mas de que tinha terror. Sua
respiração era ofegante. Apoderou-se dele um desvairado desejo. Acendeu um cigarro
e logo o atirou fora. Suas pálpebras baixaram e as longas pestanas
produziam-lhe uma pequena sombra nas faces. Olhou ainda o móvel. Por fim,
levantou-se do divã onde se estirara, dirigiu-se ao móvel, abriu-o e comprimiu
um botão dissimulado em um canto. Uma gaveta triangular saiu lentamente. Seus
dedos nela afundaram instintivamente e retiraram uma caixinha de laca dourada
com finas iluminuras; os lados eram ornados de pequenas ondas em relevo e
cordões de seda dos quais pendiam bolotas de fios metálicos e pérolas de
cristal. Abriu a caixinha. Esta continha uma pasta verde, com aspecto de cera e
um odor forte e penetrante…

Hesitou
um instante, sorrindo estranhamente… Tremia apesar da quentura da sala.
Depois espreguiçou-se, olhou o relógio. Eram doze menos vinte. Tornou a guardar
a caixa, fechou o móvel e voltou ao quarto.

Quando as
doze badaladas de bronze soavam na noite escura, Dorian Gray malvestido, o
pescoço envolto num ‘cache–nez’, saía de casa. Em Bond Street encontrou um
‘brougham’ bem atrelado. Chamou-o:em voz baixa deu ao cocheiro a direção. O
homem balançou a cabeça.

– É muito
longe para mim.

– Tome um
soberano. Terá outro se for depressa.

-ah! Bem.
Lá estará dentro de uma hora.

O
cocheiro guardou a gorjeta, deu meia volta ao cavalo e partiu rapidamente em
direção ao rio…

 

 

 

 

XVI

 

Uma chuva
fria começava a cair e os revérberos luziam fantasticamente na neblina úmida.
Os ‘public-houses’ fechavam e grupos tenebrosos de homens e de mulheres
separavam-se em torno. Ignóbeis gargalhadas partiam dos bares e, em outros,
bêbedos berravam, gritavam…

Estendido
no ‘brougham’, o chapéu no alto da cabeça, Dorian Gray olhava indiferente a
sórdida vergonha da cidade e repetia, palavra por palavra, o que lhe dissera
lord Henry, no seu primeiro encontro:

“Curar
a alma pelos sentidos e os sentidos por meio da alma…” Sim. O segredo
era esse. Muitas vezes o tentara e ainda o faria. Há lojas de ópio em que se
pode comprar o esquecimento, cavernas de horror em que a lembrança de velhos
pecados se anula na loucura de pecados novos.

A lua
estava no céu baixo como um crânio amarelo… De tempo em tempo uma nuvem
pesada e informe ocultava-a como um longo braço. Os revérberos tornavam-se
raros. Num momento, o cocheiro perdeu-se e teve de retroceder meia milha. O
cavalo fumegando trotava em poças de água… Os vidros do ‘brougham’ cobriam-se
de nevoeiro.

“Curar
a alma pelos sentidos e os sentidos por meio da alma.” Essas palavras
soavam-lhe singularmente aos ouvidos. Sim. A sua alma estava doente de morte…
Era verdade que os sentidos a poderiam curar? Sangue inocente fora derramado…
Como pagar isso? Ah! Não havia expiação!… Mas, posto que o perdão fosse
impossível, era ainda possível o esquecimento e Dorian estava decidido a
esquecer essa coisa, a abolir para sempre a recordação, a esmagá-la como se
esmaga uma víbora… Com que direito Basil lhe falara daquela forma? Quem o
autorizara a se fazer juiz dos outros? Ele dissera coisas horríveis,
impossíveis de suportar.

O
‘brougham’ ia cá, aqui, cá, acolá, cada vez menos depressa. Abaixou a
portinhola e pediu mais rapidez. Um atroz desejo de ópio começava a verrumá-lo.
A garganta ardia-lhe, as delicadas mãos crispavam-se nervosamente; e ele batia
no cavalo, ferozmente, com a bengala… O cocheiro riu e chicoteou o animal,
ele riu também e o cocheiro calou-se…

O caminho
era interminável, as ruas pareciam a teia negra de uma invisível aranha. Essa
monotonia tornava-se insuportável. Assustou-se vendo o nevoeiro aumentar. Mas
passaram próximo de solitárias fábricas de telhas, onde a neblina se
adelgaçava, e ele pôde ver estranhos fornos em forma de garrafa donde saíam
línguas de fogo alaranjado em leque. Um cão ladrou e ao longe gargalhou uma
coruja errante. O cavalo perdeu o pé numa volta, quase caiu. E partiu a galope.

Após um
instante, deixaram o caminho terroso e acordaram os ecos das ruas mal calçadas.
As janelas eram escuras, mas aqui e acolá sombras fantásticas se recordavam nas
gelosias iluminadas. Dorian observava-as. Elas moviam-se como monstruosos bonecos
que pareciam vivos… Dorian detestou-as. Um ódio sombrio vivia no seu coração.

No canto
de uma rua, certa mulher gritou-lhes qualquer coisa de uma porta aberta, e dois
homens correram atrás do carro o espaço de cem jardas, enquanto o cocheiro os
enxotava com o chicote.

É certo
que a paixão nos faz voltar aos mesmos pensamentos… Com detestável reiteração
os lábios que Dorian Gray mordia, repetiam e repetiam sempre a frase capciosa
que lhe falava de alma e de sentidos – até que ele encontrou a perfeita e
justificada expressão do humor pela aprovação intelectual dos sentidos que o
dominavam. De uma célula a outra do cérebro rastejava o mesmo pensar; e o
selvagem desejo de viver, o mais terrível de todos os apetites humanos, tornava
mais vivo cada nervo, cada fibra do seu ser. A fealdade, que ele odiara porque
faz as coisas reais, tornava-se lhe cara por isso mesmo; a fealdade era a única
realidade.

As
abomináveis rixas, a execrável taverna, a crua violência de uma vida
desordenada, a vileza dos ladrões e dos desclassificados, eram mais verdadeiras
na sua intensa atualidade de impressão, que todas as formas graciosas da arte,
as sombras sonhadoras do canto; era o que precisava para esquecer… Em três
dias, ficaria livre…

De
repente, o homem parou bruscamente o cavalo à beira de uma ruela sombria. Por
cima dos telhados baixos e das achas dentadas das chaminés, erguiam-se os
mastros negros dos navios, e grinaldas de nevoeiro se prendiam às vergas como
velas de sonho.

– É por
aqui, senhor? – indagou a voz rouca do cocheiro. Dorian estremeceu e olhou em
volta.

– Sim,
é… respondeu. E depois de sair depressa do ‘cab’ e ter dado a gorjeta que
prometera, caminhou rápido em direção ao cais. Dali, uma lanterna luzia à popa
de um navio mercante; a luz dançava e quebrava-se nas ondas. Um vermelho clarão
vinha de certo ‘steamer’ que tornava carvão. O chão escorregadio lembrava um
‘mackintosh’ molhado.

Correu
para a esquerda, olhando para trás para ver se não era seguido. Ao cabo de sete
ou oito minutos, chegou a uma pequena casa baixa, esmagada entre duas
manufaturas miseráveis. Uma luz ardia na janela de cima. Parou e bateu um sinal
particular. Alguns instantes depois ouviram-se passos no corredor, um ruído de
trancas que se descolam. A porta abriu-se docemente. Ele entrou sem dizer
palavra à vaga forma humana que se apagou na sombra. No fundo do corredor
pendia um cortinado verde e rasgado que o vento da rua agitara. Afastando-o,
Dorian entrou numa longa sala baixa que tinha o ar de um salão de dança de
terceira ordem. Nos muros, bicos de gás derramavam uma luz cegante, que se
deformava nos espelhos sujos de moscas. Refletores de estanho por trás dos
bicos eram trêmulos discos de luz. O soalho estava coberto de areia amarela,
sujo de lama e de bebidas entornadas.

Malaios
de cócoras perto do fogão jogavam com fichas de osso, e mostravam ao falar
dentes brancos. No canto, na areia, a cabeça enterrada nos braços, estendera-se
um marinheiro, e diante do bar de estridentes pinturas, que ocupava todo um
lado da sala, duas mulheres horríveis debochavam de um velho que escovava a
manga do casaco com uma expressão de nojo…

Quando
Dorian passou, ouviu uma delas dizer:

– O diabo
pensa que está cheio de formigas vermelhas.

O velho
olhava-as e gemia.

No fim da
sala, havia uma pequena escada que levava a um quarto escuro. Logo que subiu os
degraus desengonçados, Dorian foi tomado pelo pesado odor do ópio. Deu um
profundo suspiro e as suas narinas palpitaram de prazer.

Ao
entrar, viu um jovem de cabelos loiros que acendia na lâmpada um fino e longo
cachimbo. O jovem olhou-o, saudou-o hesitante.

– Você
aqui, Adrian? – murmurou Dorian.

– Onde
poderia ir eu? –respondeu o outro despreocupadamente. Agora ninguém quer mais
as minhas relações.

– Pensei
que você tivesse deixado a Inglaterra.


Darlington não quer fazer nada… Meu irmão pagou enfim a nota… George também
não quer me falar. Para mim é o mesmo… – suspirou – Quando se tem esta droga
não são precisos amigos. Creio que os tive demais…

Dorian
recuou e observou, ao redor de si, os indivíduos grotescos que ali jaziam em
posturas fantásticas sobre montões de frangalhos… Esses membros recurvados,
essas bocas escancaradas, esses olhos abertos e vítreos o atraíram… Ele sabia
em que estranhos céus eles sofriam e que tenebrosos infernos lhes ensinavam o
segredo de novos gozos; eles se sentiam melhor do que ele, prisioneiro do seu
pensamento. A memória, como uma horrífica moléstia, corroia-lhe a alma; de vez
em quando, via fixarem-se em si os olhos de Basil Hallward… Entretanto, não
podia conservar-se ali; a presença de Adrian Singleton o incomodava; precisava
estar num lugar onde ninguém o conhecesse; desejaria mesmo fugir de si
próprio…

Instantes
depois, disse ele:

– Vou a
outro lugar,

– Ao
cais?

– Sim…

– Aquela
louca lá estará seguramente; aqui não é tolerada mais.

Dorian
moveu os ombros.

– Eu
sofro o mal das mulheres que amam; as que odeiam são muito mais interessantes.
Afinal, esta droga é ainda melhor…

– É
absolutamente semelhante…

– Eu
prefiro isto; vem beber alguma coisa; preciso muito.

– E eu
não – murmurou o outro.

– Que
importa?

Adrian
Singleton ergueu-se preguiçosamente e acompanhou Dorian até o balcão.

Um
mulato, de turbante rasgado, teve uns trejeitos de saudação e colocou uma
garrafa de brandy e dois copos diante deles. As mulheres aproximaram-se
jeitosamente e puseram-se a parolar. Dorian deu-lhes as costas e, em voz baixa,
disse qualquer coisa a Adrian Singleton. Um sorriso perverso, como um ‘kriss’
malaio, contraiu a face de uma das mulheres.

– Parece
que estamos muito importantes esta noite – chasqueou ela.

– Não me
fales, pelo amor de Deus! – gritou Dorian batendo com o pé. – Que queres tu?
Dinheiro? Toma! Não me fales mais…

Dois
relâmpagos sanguíneos passaram pelos olhos inchados da mulher e extinguiram-se,
deixando-os vítreos e sombrios. Ela meneou a cabeça e apanhou com mãos ávidas a
moeda sobre o balcão… Sua companheira contemplou-a com inveja…


Obrigado – suspirou Singleton – a volta não me preocupa. De que me serviria?
Agora me sinto perfeitamente feliz…

– Tu me
escreverás, se precisares de alguma coisa, não é? – falou Dorian um momento
depois.

–Talvez!…

– Então,
boa noite!

– Boa
noite… – respondeu o rapaz, voltando a subir os degraus e passando um lenço
nos lábios ressecados.

Dorian
tomou a direção da porta, com um ar de dorna face; como puxasse o reposteiro,
um riso mesquinho desenhou-se na boca da mulher que havia apanhado o dinheiro.

– É o
comércio do demônio! – suspirou ela com sua voz reles.


Maldição! – clamou ele. – Não me digas isso!

Ela fez
estalar os dedos…

– Queres
ser denominado Príncipe Encantador, não é assim? – ganiu atrás dele.

A essas
palavras, o marinheiro adormecido saltou e olhou em torno de si ferozmente.
Ouviu o ruído da porta do corredor, fechando-se… Precipitou-se por ele,
correndo…

Dorian
Gray ia às pressas ao longo do cais, sob o nevoeiro. Seu encontro com Adrian
Singleton tinha-o comovido especialmente; admirava-se de que a ruína dessa nova
vida fosse realmente sua obra, como Basil Hallward lhe havia afirmado de
maneira tão insultante. Mordeu os beiços e seus olhos se entristeceram por um
momento. Afinal, que lhe poderia resultar daí? A vida é muito curta para
suportar ainda o fardo dos erros alheios. Cada um vivia sua própria vida e
pagava-lhe seu preço para vivê-la… O único inconveniente era ter de pagar
tantas vezes por uma só falta, porque era preciso pagar sempre e ainda mais…
Nas suas transações com os homens. Jamais o destino encerra as contas.
Dizem-nos os psicólogos, quando a paixão pelo vício, ou o que os homens chamam
vício, domina a nossa natureza, que cada fibra do corpo, cada célula do
cérebro, parecem ser animadas de movimentos temerosos: homens e mulheres, em
tais momentos, perdem o livre exercício de sua vontade; marcham, como autômatos,
para um fim pavoroso. O arbítrio lhes é recusado e extingue-se a própria
consciência; ou, se ainda continua a viver, é apenas para dar um atrativo à
rebelião e seu encanto à desobediência; pois todos os pecados, como os teólogos
estão cansados de nos lembrar, são pecados de desobediência. Quando esse anjo
altaneiro, estrela da manhã, rolou do céu, foi como rebelde exclusivamente que
tombou! Endurecido, concentrado no mal, o espírito maculado, a alma sedenta de
revolta. Dorian Gray acelerava cada vez mais o passo… Como penetrasse sob uma
arcada sombria, que sempre costumava procurar para abreviar o caminho até esse
ponto mal afamado que buscava, subitamente sentiu-se agarrado pelas cosias e,
antes que tivesse tempo de defender-se, foi violentamente atirado contra o
muro; uma mão brutal agarrou-lhe a garganta!… Ele defendeu-se
desesperadamente e com um esforço supremo destacou do pescoço os dedos que o
estrangulavam… Ouviu o estalar de um revólver, percebeu o brilho de um cano
apontado sobre sua fronte e divisou a forma obscura de um homem baixo e
robusto…

– Que
queres tu? – balbuciou ele.

– Fique
tranquilo! – disse o homem. – Se mover, eu o mato!…

– Tu
estás doido! Que te fiz eu?

– O
cavalheiro perdeu a vida de Sibyl Vane e Sibyl Vane era minha irmã! Ela
matou-se, eu bem sei… Mas a morte dela é sua obra, e eu juro que vou
matá-lo!… Procurei-o durante anos, sem o menor guia, sem achar um traço. As
duas pessoas que o conheciam já estão mortas! Eu nada sabia de si, senão o
apelido favorito que minha irmã lhe emprestava… Por acaso, escutei-o esta
noite… Reconcilie-se com Deus, porque vai fatalmente morrer!…

Dorian
Gray quase desfaleceu de assombro.

– Eu
nunca a conheci – gaguejou ele –, nem jamais ouvi falar dela… Tu estás
doido!…

– O
cavalheiro procederia melhor confessando o seu pecado, pois, tão certo como sou
James Vane, a sua vida está perdida!…

O momento
era alarmante; Dorian não sabia o que fazer, nem o que dizer…

– De
joelhos! – ordenou o homem – tem ainda um minuto, estritamente um minuto, para
confessar-se… Parto amanhã para as Índias e devo deixar este negócio
liquidado… Um minuto apenas! Nem mais um instante!

Os braços
de Dorian caíram lassos. Paralisado de pavor, ele nem conseguia ligar as
ideias… Subitamente, uma esplêndida esperança tocou-lhe o espírito!…

– Espera!
–gritou ele – Quando morreu tua irmã? Depressa! Dize-me!

– Há
dezoito anos – informou o homem – E por que essa pergunta? O tempo nada
adianta…

– Dezoito
anos! – exclamou Dorian Gray com um riso triunfante… – Dezoito anos!
Conduze-me para baixo de uma lanterna e examina a minha cara!…

James
Vane hesitou um momento, não compreendendo o que aquilo significava, mas,
afinal, agarrou Dorian e puxou-o fora da arcada… Embora a luz da lanterna
fosse indecisa e crepitante, contudo bastou para mostrar a Vane – pareceu-lhe –
o revoltante erro em que havia caído, pois a face do homem que se dispunha a
matar conservava toda a frescura da adolescência e a real pureza da primeira
mocidade. Ele parecia ter pouco mais de vinte anos; não devia ser mais velho
que sua irmã, quando a deixou, havia tantos anos… Tomava-se evidente que esse
não era o homem destruidor de sua vida.

Assim,
largou-o e recuou.

– Meu
Deus! Meu Deus! – exclamou – Eu ia matá-lo!

Dorian
Gray respirou.

– Tu
quase ias cometer um crime hediondo, meu amigo – considerou ele, fixando o
outro severamente. –Que isto te sirva de exemplo para que um dia não procures
vingar-te a ti próprio…


Perdoe-me, senhor – murmurou James Vane –, 
iludiram-me. Uma frase por mim ouvida nessa maldita taverna foi que me
pôs na falsa pista…

– Farias
melhor recolhendo-lhe à tua casa e fechando esse revólver, que ainda poderá
trazer-te grandes desgostos – disse Dorian Gray voltando-se sobre os tacões e
descendo mansamente a rua.

James
Vane conservava-se sobre a calçada, cheio de remorsos e a tremer da cabeça aos
pés… Ele não vira uma sombra negra que, desde alguns instantes escorregou ao
longo do muro untuoso, passou um momento pela luz e dele se aproximou pé ante
pé… Sentiu uma mão que lhe tocando o braço e voltou-se arrepiado!… Era uma
das mulheres que bebiam no balcão…

– Por que
o não mataste? – sibilou ela, aproximando do homem a sua máscara cruel – Eu
sabia que tu o acompanharias, quando te precipitaste da casa de Daly. Doido que
tu és! Tu deverias matá-lo! Ele tem muito dinheiro e é mau quanto pode ser!

– Não era
o homem que eu procurava – respondeu ele – e não preciso do dinheiro de
ninguém. Preciso da vida de um homem e quem eu desejo matar conta perto de
quarenta anos!… Este era apenas adolescente. Graças a Deus, não embebi minhas
mãos no seu sangue!…

A mulher
soltou uma risada amarga…

– Apenas
adolescente! – motejou ela – Sabes que há cerca de dezoito anos o Príncipe
Encantador fez de mim o que hoje sou?

– Tu
mentes! –berrou James Vane.

Ela
ergueu as mãos ao céu.

– Perante
Deus, digo a verdade!

– Perante
Deus!

– Que eu
emudeça, se assim não for!…Ele é o mais perverso dentre quantos por aqui
aparecem. Dizem que se vendeu ao diabo para conservar aquela bela face! Há mais
de dezoito anos o encontrei e até hoje não lhe notei mudança de um só traço. É
exatamente como te digo – acrescentou ela com um olhar melancólico…

– Tu o
juras?

– Eu o
juro!… – pronunciou ela num tom de eco – Mas não me traias; ele me aterra!
Dá-me qualquer dinheiro para encontrar esta noite um abrigo…

Ele
deixou-a, soltando uma praga, e precipitou-se para o canto da rua; Dorian Gray,
porém, havia desaparecido… Quando voltou, a mulher desaparecera também…

 

XVII

 

Uma
semana mais tarde, Dorian Gray estava sentado na estufa de Selby Royal, falando
à linda Duquesa de Monmouth, que, com seu marido, um homem de sessenta anos, de
ar fatigado, fazia parte de seus hóspedes. Era hora do chá e a doce luz da
grande lâmpada coberta de rendas, que repousava sobre a mesa, fazia brilhar os
delicados ídolos chineses e os relevos da prata da baixela. A Duquesa presidia
à recepção. Suas alvas mãos moviam-se gentilmente entre as chávenas e seus
lábios, de um rubor sanguíneo, riam à menor frase que Dorian lhe sussurrasse…
Lord Henry achava-se estendido em uma cadeira de vime forrada de seda, e
espreitava-os. Sobre um divã cor de pêssego, lady Narborough fingia ouvir a
descrição que lhe fazia o duque de um escaravelho brasileiro com que
recentemente enriquecera a sua coleção. Três mocinhos, em smokings apurados,
ofereciam bolos a algumas damas. A sociedade era composta de doze pessoas e
esperavam-se mais outras para o dia seguinte.

– Sobre
que conversam? – indagou lord Henry, inclinando-se junto à mesa e aí
depositando a sua chávena – Creio que Dorian lhe comunica o meu plano de tudo
rebatizar, Gladys. É uma ideia admirável!

– Eu,
porém, não tenho necessidade de ser rebatizada, Harry  – replicou a Duquesa, descansando nele os
seus belos olhos. – Estou muito contente com o meu nome e estou certa de que
Mr. Gray também se contenta com o seu.

– Minha
cara, Gladys, eu nunca desejarei mudar nenhum dos vossos dois nomes para quem
quer que seja; ambos são perfeitos… Pensava, sobretudo, nas flores… Ontem,
colhi uma orquídea para o meu casaco. Era uma adorável flor pintalgada, tão
perversa como os sete pecados capitais. Distraidamente, perguntei a um dos
jardineiros como ela se chamava. Respondeu-me que era um belo espécime de
Robinsoniana ou qualquer coisa horrorosa… É uma triste verdade, mas perdemos
a faculdade de dar belos nomes aos objetos. Os nomes são tudo. Eu nunca me
desentendo a propósito dos fatos: minhas únicas desavenças são sobre as
palavras: aí está porque detesto o realismo vulgar em literatura. O homem que
dá a uma enxada este nome deve ser forçado a carregar uma; é o único
instrumento que lhe convém…

– Então,
como quer que o apelidemos, Harry? – perguntou a Duquesa.

– O seu
titulo é o Príncipe Paradoxo – disse Dorian.

– Não
pode ser outro – declarou a Duquesa.

–Eu nada
quero ouvir – disse lord Henry, acomodando-se em uma poltrona – Não podemos
desembaraçar-nos de uma etiqueta… Recuso o título.

– As
majestades não podem abdicar – advertiram os lindos lábios.

– Quer
então que eu defenda o meu trono?

– Sim.

– Direi
as verdades de amanhã.

– Prefiro
as faltas de hoje – notificou a Duquesa.

– Assim
me desarma, Gladys – proferiu ele, imitando a sua teimosia.

– De seu
escudo, Harry, não de sua lança…

– Eu não
combato jamais contra a beleza – explicou ele com o seu peculiar gesto de mão.

– É um
erro, creia-me; assim eleva demasiadamente a beleza.

– Como
pode dizer isso? Creio e confesso-o que mais vale ser belo que bom. Mas, por
outro lado, ninguém estará mais disposto do que eu a reconhecer que mais vale
ser bom do que feio.

-a
fealdade é então um dos sete pecados capitais! – exclamou a Duquesa – Que resta
da sua comparação sobre as orquídeas?…

– A
fealdade é uma das sete virtudes capitais, Gladys. A minha amiga, como boa
‘tory’, não deve desestimá-las. A cerveja, a Bíblia e as sete virtudes capitais
fizeram da nossa Inglaterra o que ela é hoje!

– Não
ama, pois, o seu país?

– Nele
vivo.

– É que
censura justamente o melhor!

– Queria
que recorresse ao ‘veredictum’ da Europa sobre nós?– interrogou ele.

– Que diz
ela de nós?

– Que
Tartufo emigrou para a Inglaterra e aqui instalou sua tenda.

– Isso é
teu, Harry!

– Dou-te
a ideia; dela não me posso servir; há verdade demais. Nada há a temer, os
nossos compatriotas nunca se reconhecem em uma descrição.

– São
práticos.

– São
mais finórios que práticos. Quando abrem o livro do Dever–Haver, contrapesam a
estupidez com a fortuna e o vício com a hipocrisia.


Entretanto, já fizemos grandes coisas.

– As
grandes coisas nos foram impostas, Gladys.

– Temos
carregado o fardo.

– Nunca
além de Stock Exchange.

A senhora
meneou a cabeça.

– Creio
na raça! –exclamou ela.


Representa os sobreviventes do assalto.

– Ela
prossegue no seu desenvolvimento.

– A
decadência me interessa muito mais.

– Que é a
arte? – perguntou a Duquesa.

– Uma
moléstia.

– E o
amor?

– Uma
ilusão.

– A
religião?

– Uma
coisa que substitui elegantemente a fé.

– O amigo
é um cético.

– Nunca!
O ceticismo é o começo da fé.

– Que é
então?

– Definir
é limitar.

– Dê-me
um guia!

– Os fios
estão partidos; perder-se-ia no labirinto…

– Assim
me extravio… Conversemos sobre outra coisa.

– O dono
da casa é um assunto precioso… Este é apelidado, há anos, o Príncipe
Encantador!

– Ah! Não
me recorde isso! – suplicou Dorian Gray.

– Está um
pouco menos agradável esta noite -observou jovialmente a Duquesa – Segundo
creio, ele pensa que Monmouth, seguindo os seus princípios científicos, só me
desposou como o melhor exemplar que chegou a descobrir da borboleta moderna.

– Espero
ao menos que a ideia não chegue a beliscá-lo como a ponta de um alfinete,
Duquesa – disse Dorian sorrindo.

– Oh!
Minha criada de quarto se encarrega disso… quando eu a aborreço…

– E como
consegue aborrecê-la, Duquesa?

– Com
coisas triviais, asseguro-lhe. Ordinariamente, porque chego às nove horas menos
dez e digo-lhe que devo estar vestida para oito e meia.

– Que
erro de sua parte!… Devia despedi-la.

– Não
ouso, Mr. Gray. Imagine, por exemplo, que ela me inventa os chapéus. Lembra-se
daquele que eu trazia no ‘garden-party’ de lady Hilstone?… Não se lembra
mais, bem sei, mas é gentileza de sua parte fingir que se lembra… Pois, bem!
Foi feito de nada, como aliás acontece com todos os belos chapéus.

– Como as
boas reputações, Gladys… – interrompeu lord Henry – Cada efeito que se produz
representa um inimigo a mais. Para ser popular é preciso ser medíocre.

– Não com
as mulheres – emendou a Duquesa levantando a cabeça – E as mulheres governam o
mundo. Asseguro-lhe que não podemos suportar as mediocridades. Nós, mulheres,
como se diz, amamos com os nossos ouvidos, como vós, homens, amais com os
vossos olhos, se é que algum dia a mais…


Parece-me que não fazemos outra coisa – balbuciou Dorian.

– Ah!
Então, o senhor, realmente, nunca chegou a amar, Mr. Gray – acrescentou a
Duquesa num tom tristonho e de mofa.

– Minha
cara Gladys – bradou lord Henry –como pode dizer isso? A paixão vive pela
repetição e a repetição converte em arte uma tendência. Demais, cada vez que se
ama é a única vez em que se tem amado. A diferença do objeto não altera a
sinceridade da paixão; ela se torna intensa, simplesmente. Nós não podemos ter
na vida mais que uma grande experiência, e o segredo da vida está em
reproduzi-la o maior número de vezes possível.

– Mesmo
quando ela nos fere, Harry? – perguntou a Duquesa após um curto silêncio.


Sobretudo quando se é ferido por ela – respondeu lord Henry.

Com uma
curiosa expressão no olhar, a Duquesa, voltando-se, fitou Dorian Gray.

– Que diz
de tudo isso, Mr. Gray? – indagou ela.

Dorian
hesitou um momento; depois, recostou-se e rindo:

– Estou
sempre de acordo com Harry, Duquesa.

– Mesmo
quando ele erra?

– Harry
nunca erra, Duquesa.

– E sua
filosofia o tem feito feliz?

– Nunca
procurei a felicidade. Quem precisa da felicidade?… Eu só tenho procurado o
prazer.

– E já o
encontrou, Mr. Gray?

– Muitas
vezes, muitas vezes mesmo…

A Duquesa
suspirou…

– Eu
busco a paz – disse ela – e se não for vestir-me, não a encontrarei esta noite.


Deixe-me colher-lhe algumas orquídeas, Duquesa – pediu Dorian, erguendo-se e
caminhando na estufa…

– Vocês
se namoram muito de perto – declarou lord Henry à prima – Preste atenção: ele é
fascinante…

– Se ele
não o fosse, não haveria combate…

– Os
gregos então afrontam os gregos?

– Estou
do lado dos troianos que combatiam por uma mulher.

– Foram
derrotados…

– Há
coisas mais tristes que as derrotas – ponderou ela.

– Você
galopa, à rédea solta…

– É a
atitude que nos dá a vida.


Escreverei isto no jornal, esta noite.

– Quê?

– Que uma
criança queimada ama o fogo.

– Eu não
me acho nem mesmo sapecada; minhas asas estão intactas.

– São
usadas para tudo, exceto, para a fuga.

– A
coragem passou dos homens às mulheres. É uma nova experiência para nós.

– Você
tem uma rival.

– Quem?

– Lady
Narborough – sibilou ele rindo – Ela o adora.

– Não me
faça tremer. A lembrança das velharias nos é fatal, a nós que somos românticas.


Românticas! Você possui todo o método da ciência.

– Os
homens fizeram a nossa educação.

– Mas não
chegaram a explicá-la…

– Descreva-nos
então o desafio.


Esfinges sem segredos.

Ela o
contemplou sorridente…

– Como
Mr. Gray demora! – disse – Vamos ajudá-lo. Ainda não lhe disse a cor do meu
vestido.

– Deve
mesmo combinar o seu vestuário com as cores dele, Gladys.

– Seria
uma rendição prematura.

– A arte
romântica procede por gradação.

– Eu me
reservarei uma ocasião de retirada.

– À
maneira dos partas?

– Esses
acharam a segurança no deserto; não o conseguirei.

– Nem
sempre é permitida a escolha às mulheres… – notou ele.

Apenas lord
Henry acabava de pronunciar esta ameaça, partiu do fundo da estufa um gemido
abafado, seguido da queda surda de um corpo pesado!…Cada qual se
sobressaltou. A Duquesa conservava-se imóvel de pavor… Os olhos esbugalhados
de susto. Lord Henry precipitou-se por entre as palmas pendentes e encontrou
Dorian Gray estendido, com o rosto voltado para o chão calçado de tijolos,
desfalecido como morto… Assim foi transportado até o salão azul e colocado em
um sofá. Dentro de alguns minutos, voltou a si e olhou em volta, com uma
expressão de aterrado…

– Que
aconteceu? –perguntou ele. – Oh! Bem me lembro! Cheguei aqui salvo, Harry?

Um tremor
tomou-lhe todo o corpo…

– Meu
caro Dorian, – respondeu lord Henry – foi uma simples síncope e tudo passou. Tu
deves andar esgotado e fatigado. É melhor que não venhas ao jantar; tomarei o
teu lugar.

– Não,
irei jantar – protestou ele, endireitando-se. – Prefiro estar à mesa. Não quero
estar só!

Dirigiu-se
ao quarto e vestiu-se. À mesa, revelou como uma excêntrica e descuidosa alegria
nas maneiras; uma ou outra vez, era tomado de um arrepio de assombro, quando
revia, grudada como um lenço branco nas vidraças da estufa, a figura de James
Vane, a espreitá-lo!…

 

 

XVIII

 

No dia
seguinte, Dorian não saiu e passou a maior parte do dia no quarto, tomado de um
grande medo de morrer e, entretanto, indiferente à vida… O receio de ser
vigiado, perseguido, cercado, começava a dominá-lo. Tremia quando uma corrente
de ar agitava a tapeçaria. As folhas secas que o vento atirava contra os
vitrais embutidos em chumbo lembravam-lhe resoluções dissipadas,
despertavam-lhe saudades ardentes… Quando fechava os olhos, revia a figura do
marinheiro, espionando-o através da vidraça, e o horror parecia ter, mais uma vez,
apertado a mão sobre seu coração!

Talvez,
porém, fosse o espírito perturbado que tivesse suscitado a vingança das trevas,
pondo em frente aos seus olhos as ignóbeis formas do castigo. A vida atual era
um caos, mas havia qualquer coisa de fatalmente lógico na imaginação. É a
imaginação que põe o remorso na pista do pecado… É a imaginação que faz com
que o crime arraste com ele as obscuras punições. No cenário comum dos fatos,
os maus não são punidos, nem os bons recompensados; o sucesso é dado aos fortes
e o insucesso aos fracos; é tudo…

Demais,
se algum estranho houvesse rondado pelas proximidades da casa, os guardas ou os
criados o teriam visto. Se fossem deixados sinais de traços nos canteiros, os
jardineiros teriam notado… Decididamente, era uma simples ilusão; o irmão de
Sibyl Vane não voltará para matá-lo. Havia partido no navio para não fragar em
qualquer mar ártico… Quanto a este, em todo o caso, ele estava salvo… Esse
homem não sabia quem ele era, nem poderia sabê-lo; salvara-o a máscara da
mocidade. Entretanto, supondo mesmo que tudo não passasse de uma ilusão, não
era alarmante pensar que a consciência lhe poderia suscitar fantasmas iguais,
dar-lhes formas visíveis e fazê-los mover-se? Que existência seria a sua se,
dias e noites, as sombras do seu crime o espreitassem de todos os cantos
silenciosos, escarnecendo-o dos seus esconderijos, sibilando-lhe aos ouvidos no
meio das festas, despertando-o com seus dedos gelados, quando ele
adormecesse?… A esta ideia, que lhe tomava o espírito, empalideceu e,
repentinamente, teve a sensação de que o ar esfriava… Oh! Que estrambótica
hora de loucura, aquela em que havia exterminado seu amigo? Quão abominável a
simples recordação da cena! Ainda a via, e cada vil pormenor lhe voltava à
memória, com toda a indignidade realçada!… Fora da caverna tenebrosa do
tempo, aterradora e coberta de escarlate, surgia a imagem de seu crime! Quando
lord Henry lhe apareceu, pelas seis horas, encontrou-o soluçando, como se o
coração lhe estalasse!… Somente no terceiro dia, arriscou-se a sair. Havia
qualquer coisa no ar claro, carregado de perfumes de pinheiro dessa manhã de
inverno, que de novo lhe trazia a alegria e o ardor de viver; mas não eram
exclusivamente as condições ambientais que lhe haviam causado tal mudança. A
sua própria natureza se revoltava contra o excesso de angústia que tendia a
deteriorar, a mutilar a perfeição de sua calma; assim sempre acontece com os
temperamentos sutis e finamente educados; suas paixões fortes devem ou
dobrar-se ou magoá-los. Elas matam o homem, se não se exterminam por si mesmas.
Os sofrimentos medíocres e os amores limitados sobrevivem. Os grandes amores e
as verdadeiras dores aniquilam-se pela sua própria plenitude… Dorian Gray se
convencera de que fora vítima de sua imaginação tocada de terror e pensava em
seus sobressaltos com compaixão e certo desprezo. Depois do almoço matinal,
passeou cerca de uma hora com a Duquesa, pelo jardim, atravessando ambos, em
seguida, o parque, num carro, para alcançarem a caçada. A geada, estalando sob
os passos, cobrira a relva como areia, o céu era uma taça revirada de metal
azul. Uma leve camada de gelo orlava a superfície unida do lago cercado de
caniços… Ao canto de um bosque de pinheiros, ele percebeu Sir Geoffrey
Clouston, irmão da Duquesa, extraindo da espingarda dois cartuchos
descarregados. Saltou do veículo e, depois de recomendar ao ‘groom’ que
reconduzisse o animal ao castelo, tomou a direção do ponto de seus hóspedes,
através dos galhos caídos e dos ásperos abrolhos.

– Fizeste
boa caçada, Geoffrey? –perguntou ele.

– Não das
melhores, Dorian… Os pássaros estão na planície: creio que ela será melhor
após o ‘lunch’, quando avançarmos pelas terras…

Dorian
trocou pernas ao lado do outro… O ar era vivificante e aromático; os diversos
brilhos que luziam no mato, os grilos espaçados e roucos dos batedores, as
detonações agudas que se sucediam – tudo isso o interessava e impregnava-o de
um sentimento de deliciosa liberdade. Sentiu-se arrebatado pela despreocupação
da felicidade, pela indiferença altaneira da alegria… Subitamente, de uma
pequena eminência relvosa, a vinte passos adiante deles, com as pontas negras
de suas orelhas assestadas e suas longas pernas traseiras distendidas, partiu
uma lebre… Correu em direção a um grupo de álamos… Sir Geoffrey levou a
arma ao ombro, mas havia qualquer coisa de tão gracioso nos saltos do animal,
que Dorian se enterneceu e pediu:

– Não
atires, Geoffrey! Deixa-a viver!…

– Que
tolice, Dorian! – disse, rindo, o companheiro; e, como a lebre fosse saltando
junto ao mato, disparou…

Ouviram-se
dois gritos: o da lebre ferida que é pungente, e o de um homem mortalmente
golpeado, que é de outra forma horrível!

– Meu
Deus! Alcancei um batedor! – exclamou Sir Geoffrey.

– Que
besta essa criatura que se coloca à frente das espingardas! Suspendam os tiros!
–berrou ele com toda a força dos pulmões – Um homem ferido!…

O guarda
geral chegou costeado, com um bastão em uma das mãos.

– Onde,
senhor? – gritou – Onde está ele?

No mesmo
instante, o fogo cessava em toda a linha.

– Aqui,
respondeu furiosamente Sir Geoffrey – precipitando-se para o bosquete.  Por que não conservas teus homens atrás?
Estragaste-me hoje a caçada…

Dorian
viu-os penetrar no atalho, desviando ramadas. No fim de um instante, saíram,
trazendo um corpo à luz do sol. Dorian voltou-se, intimidado… Pareceu-lhe que
a desgraça o seguia por toda parte. Ouviu Sir Geoffrey perguntar se o homem
estava realmente morto e a afirmativa resposta do guarda. O bosque
apresentou-se-lhe subitamente povoado de figuras vivas e dele chegava-lhe o
ruído de uma miríade de pés e um surdo ressoar de vozes… Um grande faisão de
garganta dourada voejou pelas ramagens acima deles. Passados alguns minutos,
que lhe pareceram, no seu estado de muita excitação, horas sem fim de dor, ele
sentiu alguém pousar-lhe a mão no ombro; estremeceu e espiou em volta…

– Dorian
– disse-lhe lord Henry – devo anunciar-te que a caçada, por hoje, está
terminada. Não podemos prossegui-la.

– Eu
desejaria que fosse suspensa para sempre, Harry – acrescentou Dorian
amargamente. – Isto é odioso e cruel. Esse homem, por acaso, estará…

Não pôde
concluir a interrogação.

– Tenho
os meus receios – respondeu lord Henry –Ele recebeu toda a carga em pleno peito
e deve ter morrido logo. Anda; vamos para casa…

Puseram-se
a caminhar lado a lado, em direção da avenida, e andaram quase cinquenta jardas
sem trocar uma palavra… Enfim, Dorian virou-se para lord Henry e rosnou
depois de um suspiro abafado:

– É um
mau presságio, Harry, um péssimo presságio!

– Quê?
–interrogou o lord – ah! Esse acidente… Meu caro amigo, nada posso fazer… É
culpa desse homem. Porque se colocava ele diante da espingarda? Nada temos com
isso… É, naturalmente, desagradável para Geoffrey. Não há vantagem em alvejar
batedores; isto faz crer que se tem má pontaria e, no entanto, Geoffrey atira
admiravelmente… Mas para que lembrar o caso?…

Dorian
sacudiu a cabeça.

– Mau
presságio, Harry!…Acredito que vai suceder-nos qualquer coisa funesta, a um
de nós dois… a mim, talvez…

Dorian
passou a mão pelos olhos com uma expressão de sofrimento.

Lord
Henry soltou uma risada…

– A única
coisa funesta no mundo é o aborrecimento, Dorian. É o único pecado para o qual
não existe perdão… Provavelmente, porem, esse caso não nos trará
contrariedades, a menos que os batedores tagarelem, jantando; mas eu lhes
proibirei de falar… Quanto a presságios, estes não existem: o destino não nos
envia arautos; é muito sabido… ou antes, muito cruel para dar-se a esse
cuidado. Demais, que poderia acontecer-te, Dorian?… Tu tens tudo o que, no
mundo, um homem pode desejar. Quem não trocaria a própria existência pela
tua?…

– Eu a
trocaria com quem quer que fosse, Harry… Não rias!… Digo a verdade… O
miserável que acaba de morrer é mais feliz que eu. Não tenho medo da morte. A
sua vinda é que me impressiona!… As suas asas monstruosas como que se
desdobram no ar pesado em torno de mim! Meu Deus! E tu não percebes, por trás
dessas árvores, um homem que me espreita, que me espera?…

Lord
Henry fixou a vista na direção que lhe indicava a trêmula mão enluvada…

– Sim…
– confirmou ele rindo. – Vejo o jardineiro que te espera. Precisará saber quais
são as flores que desejas para a mesa, esta noite… Tu estás deveras nervoso,
meu caro! Convém procurar o médico, quando regressares à cidade…

Dorian
desprendeu um suspiro de calma, vendo aproximar-se o jardineiro. O homem tirou
o chapéu, olhou hesitante para lord Henry e apresentou uma carta ao patrão.

– Sua
Graça recomendou-me que esperasse uma resposta – murmurou o jardineiro.

Dorian
enfiou a carta no bolso.

– Dize a
Sua Graça que já volto –respondeu friamente -o homem inclinou-se e partiu na
frente em direção a casa.

– Como as
mulheres gostam de fazer as coisas perigosas – observou rindo lord Henry – É
uma das qualidades que mais admiro nelas. Uma mulher namorará seja quem for no
mundo, enquanto a olharem…

– Como
gostas de dizer leviandades, Harry… Agora, por exemplo, tu te enganas. Estimo
muito a Duquesa, mas não a amo.

– E a
Duquesa te ama muito, mas não te estima, o que nos torna perfeitamente
aparelhados…

– Tu
falas escandalosamente, Harry, e não existe em nossas relações o menor fundo
escandaloso.

– A base
de todo escândalo é uma certeza imoral – ponderou lord Henry, acendendo um
cigarro.


Sacrificas qualquer pessoa, pelo gosto de um epigrama.

– As
pessoas vão ao altar por seu próprio consentimento – foi a resposta de lord
Henry.

– Eu
quisera amar! – exclamou Dorian Gray, com uma entonação profundamente patética
na voz. Parece-me, porém, que perdi a paixão e esqueci o desejo. Estou muito
concentrado em mim mesmo. A minha personalidade já me é um fardo e preciso
evadir-me, viajar, esquecer… É ridículo da minha parte ter vindo até cá.
Penso em transmitir um telegrama a Harvey para prepararem o iate. Em um iate,
está-se em segurança…

– Contra
que, Dorian?!… Tu tens qualquer aborrecimento. Por que não mo confias? Bem
sabes que te ajudarei.

– Não
posso confessá-lo, Harry – respondeu Dorian tristemente. – E, afinal, tudo é um
capricho meu. Esse desagradável acidente me transtornou. Tenho o inquietante
pressentimento de que qualquer coisa idêntica me acontecerá.

– Que
maluquice!

– Admito
que o seja… mas não posso livrar-me de tal ideia… Ah! Olha a Duquesa; tem o
ar de Artemisa em um vestido tailleur… Vê que regressamos, Duquesa…

– Já sei
o que aconteceu, Mr. Gray – respondeu ela. 
O coitado do Geoffrey está realmente contrariado… Ele não o ouviu,
parece, quando lhe pediu que não disparasse contra essa lebre. É curioso!

– Sim, é
muito curioso. Não sei o que me fez pedir-lhe isso. Qualquer capricho, penso;
essa lebre tinha o mais belo ar das coisas vivas…Mas já me desgosta que lhe
tenham ido relatar o acidente. É um triste assunto…

– E um
assunto importuno – interrompeu lord Henry – Não tem o mínimo valor
psicológico. Ah! Se Geoffrey houvesse cometido esse desastre expressamente,
como seria interessante!…Eu gostaria de conhecer o autor de um legítimo
assassinato.

– Como
lhe ficam mal tais palavras! – exclamou a Duquesa – Não concorda, Mr. Gray?…
Harry!…Mr.Gray está indisposto!… Olhe! Ele sente-se mal!

Dorian
endireitou-se com esforço e sorriu.

– Não há
nada, Duquesa – gaguejou ele – Sinto uma excitação nervosa; é tudo… Receio
não poder ir longe esta manhã. Não ouvi o que Harry dizia… Maldades? Peço-lhe
contar-me em outra ocasião. Agora penso que o melhor será deitar-me. Estou
desculpado, não é?

Haviam
atingido os degraus da escadaria entre a estufa e o terraço. Como a porta
envidraçada se fechava atrás de Dorian, lord Henry virou para a Duquesa de
olhos fatigados.

– Ama-o
bastante? –inquiriu ele.

Ela,
contemplando a paisagem, não deu uma resposta imediata… Afinal, disse:

– Bem
desejaria sabê-lo…

Ele
balanceou a cabeça:

– A
certeza seria fatal. O que a seduz é a incerteza. A bruma apresenta
maravilhosas as coisas…

– É fácil
perder-se o caminho.

– Todos
os caminhos conduzem ao mesmo ponto, minha cara Gladys.

– Que
ponto é esse?

– A
desilusão.

– É o meu
ponto de partida na vida – suspirou a dama.

– Foi um
ponto coroado…

– Estou
farta das folhas de morangueiro da coroa ducal.

– Elas
lhe assentam muito bem.

– Somente
em público…

– Um dia
há de chorá-las.

– Não
perderei uma pétala.


Monmouth tem ouvidos.

– A
velhice tem ouvidos moucos.

– Ele
nunca foi ciumento?


Estimaria que o fosse!

Lord
Henry olhou ao redor de si, como procurando qualquer coisa…

– Que
procura? –perguntou a Duquesa.

– O seu
botão de florete… – respondeu ele. – Deixou-o cair.


Conservo ainda a máscara… – disse ela rindo.

– Que lhe
faz os olhos mais adoráveis!

Ela riu
de novo e seus dentes apareceram como brancas pevides em um fruto escarlate…

Em cima,
em seu quarto, Dorian Gray jazia no sofá, o terror em cada libra tremente de
seu corpo. A vida se lhe tomara de repente um fardo custoso de carregar. A
desastrada morte do infortunado batedor, morto em uma brenha como uma fera,
parecia prefigurar-lhe o seu fim. Ele quase desmaiara, ao ouvir o que lord
Henry, por acaso, dissera como um gracejo cínico. Às cinco horas, fez soar o
tímpano, chamando o criado, e ordenou-lhe que preparasse as malas para o
expresso da noite e fizesse emparelhar o ‘brougham’ para as oito horas e meia.
Estava resolvido a não dormir nem mais uma noite em Selby Royal; era um lugar
de fúnebres augúrios. A morte aí andava ao sol. O verde da floresta estava
ensanguentado. Dorian escreveu depois um bilhete a lord Henry, comunicando-lhe
que ia à cidade à busca de um médico e pedindo-lhe que divertisse os
convidados, durante sua ausência. Quando estava a dobrar este bilhete, bateram
na porta e seu criado veio adverti-lo de que o chefe dos guardas desejava
falar-lhe… Ele franziu a testa e mordeu os beiços.

– Faze-o
entrar – disse hesitante.

Entrando
o homem, Dorian puxou uma caderneta de cheques e abrindo-a diante dele:

– Creio
que vens por causa do triste acidente desta manhã, Thornton – disse, segurando
uma pena.

– Sim,
senhor – disse o guarda das caçadas.

– O pobre
rapaz era casado? Tinha família? – perguntou Dorian enfastiado. Se assim é, eu
não a deixarei na miséria e enviarei o dinheiro que julgares necessário.

– Não
sabemos quem ele era, senhor. Por isso mesmo é que tomei a liberdade de
procurar-vos.

– Não
sabes quem ele é? – perguntou Dorian, indiferente.    Que
queres tu dizer? Não era um dos teus homens?

– Não,
senhor, ninguém por aqui jamais o vira; tem o aspecto de um marinheiro…

A pena
caiu dos dedos de Dorian e ele teve a sensação de que seu coração parara…

– Um
marinheiro! – bradou ele.  – Um
marinheiro, dizes tu?!

– Sim,
senhor; tem realmente o ar de qualquer inferior da marinha. Apresenta,
sobretudo, muitas tatuagens nos dois braços.

– Acharam
qualquer objeto com ele? –inquiriu Dorian, aproximando-se do homem e fixando-o
intensamente. Qualquer coisa que deixasse perceber o seu nome?

– Só se
achou em seu poder um pouco de dinheiro e um revólver de seis tiros. Não
descobrimos nome algum. A aparência é agradável, mas grosseira… Pensamos que
deve ser mesmo um marinheiro…

Dorian bateu
com os pés… Surgira-lhe uma fantástica esperança!…

Agarrou-a
furiosamente!

– Onde
está o corpo? – gritou ele.  –Depressa!
Quero vê-lo!

– Foi
depositado em uma estrebaria desocupada junto à casa da herdade. Os homens não
gostam de ver tais coisas junto de suas habitações. Dizem que um cadáver é
sinal de má sorte…

– Na casa
da herdade? Espera-me lá! Dize a um palafreneiro que me traga já um cavalo…
Não! Não faças nada… Eu mesmo irei às estrebarias… Isso economiza tempo.

Um quarto
de hora depois, Dorian Gray descia a todo galope a longa avenida; as árvores
como que passavam diante de si lembrando uma procissão espectral, e sombras
hostis atravessavam o seu caminho… Subitamente, a égua tropeçou em um barrote
da cancela e quase o lançou fora da sela… Ele fustigou-a no pescoço com a
tala. Ela disparou como uma flecha e as pedras voavam sob as ferraduras.
Afinal, atingiu a casa da herdade. Dois homens conversavam na frente. Ele
saltou do animal e entregou as rédeas a um deles. Na estrebaria mais afastada,
brilhava uma luz. Qualquer coisa indicou-lhe que o corpo ali estava.
Precipitou-se em direção à porta e agarrou a lingueta… Hesitou um momento,
sentindo estar na iminência de uma descoberta que lhe salvaria ou perderia de
uma vez a vida… Enfim, empurrou a porta e entrou. Sobre um montão de sacos,
ao fundo, jazia o cadáver de um homem, enfiado em uma grossa camisa e em umas
calças azuis. Um lenço manchado cobria-lhe o rosto. Uma vela ardia junto dele,
num caco de garrafa. Dorian Gray arrepiou-se. Sentia que ele mesmo não seria
capaz de levantar o lenço. Disse a um rapaz da herdade que se aproximasse.


Tira-lhe esse trapo do rosto! Quero vê-lo. – acrescentou, apoiando-se à tranca
da porta.

Quando o
criado executou sua ordem, avançou… Uma exclamação de júbilo saltou-lhe da
boca! O homem que havia sido morto na brenha era James Vane!… Ele
conservou-se ainda alguns instantes considerando o cadáver… E como retomasse
a galope o caminho de casa, seus olhos iam-se enchendo de lágrimas, pois sabia estar
com a sua vida salva!

 

XIX

 

– Por que
me dizes que te queres tornar bom? – perguntou lord Henry, molhando os dedos
brancos em um vaso de cobre vermelho, cheio de água de rosa. Tu és
absolutamente perfeito! Não mudes, por favor…

Dorian
Gray abanou a cabeça:

– Não,
Harry. Já pratiquei atos abomináveis na minha vida e não quero repeti-los.
Comecei ontem as minhas boas ações.

– Onde
estavas ontem?

– No
campo, Harry… Hospedava-me em um pequeno albergue.

– Meu
caro amigo –disse-lhe lord Henry sorrindo –todo mundo pode ser bom no campo;
não se encontram aí as tentações… Eis porque os que vivem fora da cidade são
absolutamente incivilizados; a civilização não é de modo algum atingível
facilmente. Só há duas maneiras de atingi-la: pela cultura ou pela corrupção. A
gente dos campos nunca chega a uma ou outra; fica estagnada…

– A
cultura ou a corrupção… – repetiu Dorian – Conheci-as um pouco. Acho
inconcebível agora a aproximação dessas duas palavras. Hoje tenho um novo
ideal, Harry; quero modificar-me e penso que já o consegui.

– Tu não
me disseste ainda qual foi a tua boa ação… Ou me contavas que havias
praticado mais de uma? – indagou lord Henry, enquanto seu companheiro lhe punha
no prato uma piramidezinha de morangos aromáticos e a cobria de açúcar com uma
colher do feitio de concha.

– Posso
descrevê-la a ti, Harry, pois não é uma história que eu conte a todo mundo…
Poupei uma mulher. Isto parece jactância, mas tu compreenderás o que quero
dizer. Ela era belíssima e assemelhava-se extraordinariamente a Sibyl Vane.
Penso que esta circunstância foi a que mais me atraiu para ela. Lembras-te de
Sibyl, não é? Como tudo me parece distante!… Hetty não era de nossa classe,
naturalmente era uma simples rapariga de aldeia. Eu, porém, amava-a. Durante
esse soberbo mês de maio que tivemos, eu já me habituara a ir vê-la duas ou
três vezes por semana. Ontem, ela me encontrou em um pequeno jardim. As flores
da macieira cobriam-lhe os cabelos e ela ria. Nós devíamos partir juntos essa
manhã, ao despontar… Subitamente, decidi-me deixá-la, deixando-a em flor,
como a havia encontrado…

– Quero
crer que a novidade da emoção deve ter-te produzido um estremecimento de
verdadeiro prazer, Dorian,– interrompeu lord Henry –Entretanto, eu posso
terminar por ti o teu idílio. Deste-lhe muito bons conselhos e partiste-lhe o
coração… Era esse o começo de tua reforma?

– Harry,
tu és mau! Não deves dizer coisas iníquas! O coração de Hetty não se partiu;
ela chorou, isto se compreende, mas foi tudo. Não está, afinal, infamada e pode
viver como perdida, no seu Jardim, onde brotam a hortelã e os cravos de
defunto.

– E
chorar sobre um Florizel, sem fé – acrescentou rindo lord Henry –,
recostando-se ao espaldar da cadeira. Meu caro Dorian, teus processos são curiosamente
infantis… Pensas que de hoje em diante essa rapariga se contentará com
qualquer um da sua igualha? Admito que ela se casará qualquer dia com um rude
carroceiro ou um tosco campônio: mas o fato de haver-lhe amado lhe fará
detestar o marido e ela será logo uma infeliz. Sob o ponto de vista moral, não
posso dizer que sou levado a bons augúrios a propósito do teu grande
renunciamento… Para uma estreia é pouco… Demais, podes tu garantir que o
corpo de Hetty a esta hora, não está ainda flutuando em qualquer tanque de
moinho, sob a luz das estrelas, rodeado de nenúfares, como o de Ofélia?…

– Não
quero pensar em tal, Harry! Tu motejas de tudo e, assim, sugeres as tragédias
mais sérias… Custa-me declarar-te, mas não presto mais atenção ao que me dizes.
Sei que procedi bem, agindo assim. Pobre Hetty! Como eu fosse a cavalo à
herdade, essa manhã, vi-lhe a face branca na janela, como um ramalhete de
jasmim… Não falemos mais disso e não procures persuadir-me de que a minha
primeira boa ação, praticada depois de anos, o primeiro pequeno sacrifício de
mim mesmo, seja uma espécie de pecado. Preciso fazer-me melhor. Eu torno-me
melhor… Fala-me de ti. Que dizem na cidade? Há alguns dias não vou ao
clube…

– Fala-se
ainda do desaparecimento desse pobre Basil.

– Pensei
que o assunto já fatigasse – disse Dorian, servindo-se um pouco de vinho e
franzindo levemente os supercílios.

– Meu
caro amigo, há apenas seis semanas que se tem discutido isso e o público inglês
não suporta mais de um assunto de conversação todos os três meses. Ele esteve,
entretanto, bem dividido, recentemente: tratou do meu próprio divórcio e do
suicídio de Alan Campbell; presentemente, trata-se do desaparecimento
misterioso de um artista. Acredita-se em Scotland Yard que o homem de ‘ulster’
cinzento, que deixou Londres por Paris, a nove de novembro, pelo trem de
meia-noite, era esse pobre Basil, mas a polícia francesa declara que Basil
jamais chegou a Paris. Apraz-me pensar que, dentro de uma quinzena, saberemos
que ele foi visto em São Francisco. E um fato bizarro, em São Francisco veem-se
todas as pessoas que supomos desaparecidas. Deve ser uma cidade deliciosa;
possui todos os atrativos do mundo futuro…

– Que
pensas ter sucedido a Basil? –perguntou Dorian, erguendo o copo de Bourgogne à
altura da luz e maravilhando-se da calma com que ele próprio discutia o
assunto.

– Não
alimento a menor ideia. Se Basil quer ocultar-se, nada tenho com isso. Se
morreu, não preciso pensar em tal. A morte é a única coisa que nunca me
assombrou. Eu a odeio!…

– Por
quê? – perguntou preguiçosamente o outro.

– Porque–
respondeu lord Henry, passando pelas narinas o gargalo dourado de uma
vinagreira – sobrevive-se a tudo nos nossos dias, menos a isso. A morte e a
vulgaridade são as duas únicas coisas inexplicáveis do século XIX… Vamos
tomar café no salão, Dorian. Tu me tocarás Chopin. O ‘gentleman’ com quem minha
mulher se foi interpretava Chopin admiravelmente… Pobre Victoria!… Eu a
amava bastante: a casa ficou um pouco triste sem ela. A vida conjugal é simplesmente
um hábito, um mau hábito. Mas lastima-se até a perda dos maus hábitos; talvez
seja mesmo o que mais se lastime; os hábitos são uma parte essencial da
personalidade.

Dorian
nada objetou; erguendo-se da mesa, passou à sala vizinha, assentou-se ao piano
e deixou seus dedos errarem sobre os marfins brancos e negros do teclado.
Quando trouxeram o café, ele parou e, mirando lord Henry, perguntou-lhe:

– Harry,
nunca te veio a ideia que Basil houvesse sido assassinado?

Lord
Henry teve um bocejo:

– Basil
era muito conhecido e trazia sempre um relógio Waterbury… Por que haveriam de
assassiná-lo? Ele não era bastante hábil para ter inimigos; não falo do seu
enorme talento de pintor; mas um homem pode pintar como Velasquez e ser tão
apagado quanto possível. Basil era, realmente, um pouco bronco… Ele
interessou-me uma vez, quando me confiou, há anos, a agreste adoração que tinha
por ti e que eras o “motivo” dominante de sua arte.

– Gostei
muito de Basil – disse Dorian com uma entonação triste na voz. –Não se diz,
porém, que ele foi assassinado?

– Sim,
alguns jornais… Mas isto não me parece provável. Eu sei que existem alguns
sórdidos recantos em Paris, mas Basil não era homem que os frequentasse.
Faltava-lhe curiosidade; era este o seu principal defeito.

– Que
dirias tu, Harry, se eu te declarasse que assassinei Basil? –perguntou Dorian,
observando atentamente o companheiro, enquanto falava.

– Eu te
diria, meu caro amigo, que afetavas um caráter que não te assenta. Todo crime é
vulgar, como toda vulgaridade é crime. Não te ficaria bem praticar um
homicídio. Sinto ferir, talvez, a tua vaidade, falando assim, mas te asseguro
que é a verdade. O crime pertence exclusivamente às classes inferiores; aliás,
eu não as condeno, absolutamente. Imagino que o crime é para elas o que é para
nós a arte – simplesmente um método de obter extraordinárias sensações.

– Um
método para alcançar sensações? Admites, pois, que um homem, tendo cometido um
crime, possa recomeçar esse mesmo crime? Não me digas isso!…


Qualquer ato torna-se um prazer, quando repetido muitas vezes – afirmou rindo
lord Henry -aí está um dos mais importantes segredos da existência. Admitirei,
entretanto, que o assassínio seja sempre uma falta; nada se deve fazer que nos
impeça de conversar após o jantar… Deixemos, porém, o pobre Basil. Desejaria
crer que ele chegasse a um fim tão romântico, como o que supões, mas não
posso… Ele talvez caísse de um ônibus no Sena, sem que o condutor o
percebesse. Sim, talvez tenha sido o seu fim mais provável… Vejo-o
perfeitamente mergulhado nas águas verdes, com pesados barcos a passarem-lhe
por cima e fiapos de ervas na cabeleira. Não creio que tivesse produzido boas
obras ultimamente. Durante os dez últimos anos, sua pintura decaía bastante.

Dorian
suspirou e lord Henry, atravessando a sala, foi coçar a cabeça de um curioso
papagaio de Java, grande pássaro de plumagem cinza, com a crista e cauda
verdes, que se balançava num bambu. Como os dedos afilados o tocassem, o
pássaro ergueu o dartro branco das pálpebras mostrando as pupilas de vidro
negro.

– Sim, –
continuou lord Henry, tirando o lenço do bolso –era uma decadência. Parece-me
que perdera alguma coisa. Perdera o ideal. Quando vocês cessaram de ser grandes
amigos, ele deixou de ser um grande artista. Qual o motivo da separação?…
Creio que ele te aborrecia. Se foi isso, nunca ele te esqueceu. É o hábito de
todos os aborrecidos. A propósito: que fim levou aquele esplêndido retrato?
Nunca mais o vi depois do dia em que o terminou. Ah! Lembro-me que me disseste
tê-lo mandado para Selby, onde o perderam ou roubaram. Nunca mais o viste?…
Que pena! Era, de fato, uma obra-prima! Desejei comprá-lo, outrora. E ainda
hoje, comprá-lo–ia. Era da melhor época de Basil. Depois, as suas obras
mostraram essa curiosa mistura de má pintura e boas intenções, que dão a um
homem o mérito de ser considerado representante da arte inglesa. Tentaste
encontrar o quadro? Devias ter posto anúncios.

– Não me
lembro. Creio que sim. Mas desse quadro não gostei eu nunca. Deploro ter posado
para ele. É-me odiosa a sua lembrança. Faz-me pensar naqueles versos de uma
peça conhecida, Hamlet creio: ‘Like the painting sorrow. A face without a
heart’. Sim. Exatamente isso.

Lord
Henry pôs-se a rir…

– Se um
homem vive como artista, seu cérebro é o seu coração – disse ele, afundado-se
numa poltrona.

Dorian
abanou a cabeça e fez soar alguns acordes no piano. “Como a pintura de uma
aflição”, repetiu ele, “uma figura sem coração…”

O outro
se recostou, olhando-o com os olhos semicerrados…

– A
propósito, Dorian – interrogou, depois de uma pausa – que vantagem há para um
homem que ganha o mundo inteiro e perde – como diabo era – sua própria alma?

O piano
desafinava… Dorian interrompeu-se e fitando seu amigo:

– Por que
me perguntas isso, Harry?

– Meu caro
amigo, – disse lord Henry, arregalando os olhos com um ar de surpresa – eu te
faço a pergunta por supor que podes dar-me uma resposta, eis tudo! Domingo
último, achava-me no Parque, e junto ao Arco de Mármore havia um grupo de
sujeitos maltrajados, ouvindo um vulgar pregador de viela. Quando eu passava,
ouvi esse homem fazer a mesma pergunta ao auditório. Ela impressionou-me por
ser bastante dramática. Londres é fértil em incidentes deste gênero. Um domingo
úmido, um cristão bizarro em ‘mackintosh’, um círculo de brancas figuras
doentias sob um teto desigual de guarda–chuvas a pingar, uma frase maravilhosa
lançada ao vento como um grito de lábios histéricos, tudo isso era uma coisa
verdadeiramente bela em seu gênero e deveras sugestiva. Pensei em dizer ao
profeta que a arte tinha uma alma, mas que o homem não a possuía. Creio, porém,
que ele não chegaria a compreender-me.

– Não,
Harry. A alma é uma terrível realidade. Pode-se comprá-la, vendê-la,
negociá-la, enfim. Pode-se envenená-la ou fazê-la perfeita. Há uma alma em cada
um de nós, bem o sei.

– Tens
certeza disso, Dorian?

– Certeza
absoluta.

– Ah!
Então é uma ilusão. O que se tem como absolutamente seguro nunca é verdadeiro.
É a fatalidade da fé e a lição do romance; como te fazes grave! Não fiques assim
tão sério. Que temos nós de comum, tu e eu, com as superstições do nosso tempo?
Nada… Estamos desembaraçados de nossa crença na alma… Toca-me qualquer
coisa, Dorian. Toca-me um “noturno” e, enquanto fores tocando,
conta-me baixinho como pudeste conservar a mocidade. Deves guardar qualquer
segredo, pois sou mais velho do que tu apenas dez anos e estou enrugado, gasto,
amarelado. Tu és realmente estupendo, Dorian! Nunca estiveste tão belo como
esta noite; lembras-te o primeiro dia em que te vi. Eras um pouco cheio e
tímido, mas extraordinário. Mudaste, certamente, não na aparência. Bem quisera
que me contasses o segredo! Para reaver a juventude, tudo eu faria no mundo,
exceto praticar exercícios, levantar-me cedo ou mostrar-me respeitável… Ó
juventude! Nada te iguala! Que absurdo falar da ignorância dos jovens! Os
únicos homens, dos quais ouço respeitosamente as opiniões, são os mais moços
que eu. Parecem caminhar diante de mim. A vida lhes revelou seus últimos
prodígios. Quanto aos velhos, sempre os contradigo. Faço-o por princípio. Se
lhe pedires o parecer sobre um sucesso de ontem, repelem-te gravemente opiniões
correntes em 1820, quando se usavam meias compridas… e se acreditava em tudo
e não se sabia absolutamente nada. Como esse trecho que estás tocando é
delicioso! Imagino que Chopin o tenha composto na Majorca, enquanto o mar gemia
em torno de sua casa, com as vidraças salpicadas de espuma salgada! É
singularmente romântico. Que bem possuirmos ainda uma arte que não seja de
imitação. Não pares; preciso de música esta noite. Parece-me que tu és o jovem
Apolo e eu sou Marsyas, a ouvir-te. Tenho minhas próprias mágoas, Dorian, das
quais nunca soubeste nada, o drama da velhice não está em ser velho, mas em já
ter sido moço. Eu, às vezes, espanto-me da minha própria sinceridade. Ah!
Dorian, como tu és feliz! Que rara vida é atua! Tu saboreaste descansadamente
todas as coisas. Esmagaste uvas maduras em tua boca. Nada te foi oculto. E
sentiste tudo isso como o som de uma música; nada te atingiu. És sempre o
mesmo.

– Não sou
o mesmo, Harry.

– És o
mesmo, sim. E sê-lo-ás o resto dos teus dias. Não te estragues com renúncias.
Tu és, atualmente, um ser acabado; não procures tornar-te incompleto. Tu hoje
não tens falha alguma… Não abanes a cabeça; tu bem sabes. Entretanto, não
busques ilusões. A vida não se governa pela vontade ou pelas intenções. É uma
questão de nervos, de fibras, de células lentamente elaboradas, onde se oculta
o pensamento e onde as paixões têm seus sonhos. Tu podes te acreditar salvo e forte;
mas um tom de cor entrevisto no aposento, um céu matinal, certo perfume que
amaste e desperta-te sutis recordações, um verso de um poema esquecido que te
volta à memória, uma frase musical que não tocas mais, é de tudo isto. Dorian,
asseguro-te, que depende a nossa existência. Browning descreveu-a não sei onde,
mas os sentidos nos permitem imaginá-la facilmente. Há momentos em que o aroma
do lilás branco me penetra e em que eu penso reviver o mais excêntrico mês de
toda a minha vida. Eu quisera poder trocar-me por ti, Dorian. A sociedade
esbravejou contra nós dois, mas sempre te conservou e sempre te conservará para
adoração. Tu és o tipo que nossa época procura, mas que receia ter encontrado.
Estimo que nunca tenhas feito nada: nem modelado uma estátua, nem pintado uma
tela, nem produzido outra coisa senão tu mesmo!… Tua arte foi tua vida. Tu
mesmo te puseste em música. Teus dias são teus sonetos.

Dorian
levantou-se do piano e, passando a mão pela cabeleira:

– Sim, –
murmurou ele  – a vida foi para mim
especial… mas eu não quero viver mais a mesma vida, Harry. E não deverias
dizer-me tantas coisas extravagantes. Não me conheces por completo. Se
soubesses tudo, creio bem que te afastarias de mim. Ris? Não rias…

– Por que
parou de tocar, Dorian? Volta ao piano e toca-me ainda esse
“noturno”. Contempla essa grande lua cor de mel que se eleva no céu
sombrio. Ela espera que a encantes. Se tocares, ela se aproximará da terra…
Não queres? Então, vamos ao clube. O serão foi encantador e precisamos terminá-lo
bem. Há alguém no White que deseja infinitamente conhecer-te: é o jovem lord
Poole, o mais velho dos filhos de Bournemouth. Já copia as tuas gravatas e
pediu-me que o apresentasse a ti. É deveras agradável e quase se parece
contigo.

– Talvez
não esteja lá – disse Dorian com um olhar triste –mas eu me sinto fatigadíssimo
esta noite, Harry: não irei ao clube. São quase onze horas e quero deitar-me
cedo.

– Fica…
Nunca tocaste tão bem como esta noite. Havia qualquer coisa de novo na tua
maneira de executar. Havia um sentimento que eu ainda não percebera.

– É
porque vou tornar-me bom – respondeu Dorian sorrindo – Já estou um pouco
mudado.

–Tu não
podes mudar comigo, Dorian – notificou lord Henry.

– Sempre
seremos dois amigos. No entanto, um dia já me envenenaste com um livro. Não
esquecerei isso… Harry, promete-me não emprestar jamais esse livro a ninguém.
É tão nocivo.

– Meu
caro amigo, começas a pregar moral. Daqui a pouco, estarás como os convertidos
e os “revivalistas”, prevenindo todo o mundo contra os pecados de que
eles próprios já se acham fatigados. És muito encantador para te meteres a
fazer isso. De resto, isso de nada serve. Somos o que somos e seremos o que
pudermos ser. Quanto a ser intoxicado por um livro, nunca se viu nada que tal lembrasse.
A arte não tem influência alguma sobre as ações; ela aniquila o desejo de agir;
é soberbamente estéril. Os livros que a sociedade qualifica imorais são os que
lhe exibem a sua própria vergonha. Eis tudo. Mas não discutamos literatura…
Vem amanhã; montarei a cavalo às onze horas. Poderemos fazer um passeio juntos
e, em seguida, levo-te a almoçar em casa de lady Branksome. É uma dama
excelente e deseja consultar-te sobre uma tapeçaria que quer comprar. Queres
vir? Ou almoçaremos com a nossa duquezinha? Diz ela que não te vê mais. Talvez
estejas enfastiado de Gladys… Eu pensava… Seu espírito talvez te ataque os
nervos… Em todo caso, vem às onze horas.

– Será
mesmo necessário que eu venha, Harry?


Certamente. O Parque é admirável atualmente. Creio que nunca teve tantos
lilases, desde o ano em que nos conhecemos.

– Muito
bem, estarei aqui às onze horas – prometeu Dorian – Boa noite, Harry…

Chegado à
porta, Dorian hesitou um momento, como se ainda tivesse qualquer coisa a dizer.
Depois suspirou e saiu…

 

XX

 

Fazia uma
noite deliciosa, tão doce, que Dorian dobrou a capa no braço e nem sequer
envolveu o pescoço no ‘cache–nez’. Como se dirigisse para casa, fumando um
cigarro, dois jovens, em trajes de recepção, passaram junto dele e um murmurou
ao outro:

“É
Dorian Gray!…” Ele lembrou-se do seu contentamento de outrora, quando os
sujeitos o designavam, espiavam-no e conversavam a seu respeito. Hoje, estava
cansado de ouvir pronunciar o seu nome. Parte do encanto que o prendia à
pequena aldeia, onde tantas vezes estivera ultimamente, provinha do fato de
ninguém aí o conhecer. Muitas vezes dissera à rapariga por quem se fizera amar
que ele era pobre, e ela acreditara: certa vez lhe dissera que era mau; ela se
pusera a rir, respondendo-lhe que os maus eram sempre muito velhos e muito
feios. Que lindo riso tinha ela! Dir-se-ia a canção de uma patativa!… Como
era graciosa nos seus vestidos de algodão e com seus enormes chapéus! Nada
sabia da vida, mas possuía tudo o que ele havia perdido.

Quando
Dorian chegou a casa, encontrou o criado que o esperava… Mandou-o deitar-se,
atirou-se sobre o divã da biblioteca e começou a pensar em algumas frases que
ouvira de lord Henry…

Seria
certo que ninguém jamais poderia transformar-se? Então, sentiu um ardente desejo
de reaver a imaculada pureza de sua adolescência rósea e branca, como uma vez
lord Henry a definira. Agora se convencia de haver desluzido a alma, corrompido
o espírito e criado infernais remorsos; capacitava-se de que tivera sobre os
outros uma desastrosa influência e que nisso encontrara um perverso prazer;
persuadia-se enfim de que, entre todas as vidas que haviam atravessado a sua e
ele havia contaminado, a sua era ainda a mais bela e a mais cheia de
promessas…

Tudo
seria irreparável? Não haveria mais esperanças para ele?… Ah! Que tremendo
momento de orgulho e de paixão, aquele em que pedira que o retrato assumisse o
peso de seus dias, enquanto ele próprio conservasse o esplendor impoluto da
eterna mocidade! Toda a sua desgraça provinha daí! Não teria sido melhor que
cada pecado de sua vida já tivesse vindo acompanhado de rápida e segura
punição? Há uma purificação no castigo. A prece do homem a um Deus justo, longe
de ser: perdoai os nossos pecados! – deveria ser: castigai-nos pelas nossas iniquidades!…

O espelho
curiosamente trabalhado, que, em tempos idos, lord Henry dera a Dorian,
repousava na mesa e, como outrora, os Amores de marfim riam em torno. Dorian
segurou-o, como o fizera naquela noite inquietadora, quando, pela primeira vez,
surpreendera uma mudança no fatal retrato, e lançou seu olhar carregado de
pranto sobre o cristal polido e oval. Certa vez, alguém que, prodigiosamente,
havia o amado, escreveu-lhe uma carta louca, terminada com estas palavras de
idólatra: ‘O mundo está mudado porque tu és feito de marfim e ouro. As curvas
de teus lábios escrevem novamente a história!’ Esta frase veio-lhe à memória e
ele a repetiu várias vezes. Subitamente, sentiu aversão pela sua beleza e,
atirando o espelho ao chão, esmagou os estilhaços sob os pés!… Era a sua
beleza que o havia perdido, essa beleza unida a essa mocidade, pelas quais ele
tanto havia rogado. Sim, porque, sem essas duas coisas, sua vida poderia ter
sido sem mácula. A beleza só lhe fora uma máscara e a mocidade uma burla. Que era
esta afinal? Um instante viridente e prematuro, uma frase de humores fúteis, de
ideias doentias… Por que a seguira?… A mocidade o perdera.

Melhor
valera não cogitar do passado! Nada conseguiria modificá-lo… Em si próprio e
no seu próprio futuro é que lhe cabia pensar… James Vane jazia estirado em um
túmulo sem nome, no cemitério de Selby: Alan Campbell havia se suicidado uma
noite, no próprio laboratório, sem revelar o segredo que ele o forçara a
conhecer: a emoção recente, despertada pelo desaparecimento de Basil Hallward,
cedo abrandaria, pois já começava a diminuir. Ele estava agora inteiramente
salvo. Em verdade, não era a morte de Basil Hallward que o oprimia; era a morte
viva de sua alma. Basil pintara o retrato que lhe transtornara a vida, e ele
não podia perdoar isto: o retrato fizera tudo. Basil dissera-lhe coisas
realmente insuportáveis, que ele, a princípio, ouvira com paciência. O
assassinato fora, afinal, a alucinação de um momento… Quanto a Alan Campbell,
se este se suicidara, foi porque muito bem quis… Ele não era responsável.

Uma vida
nova!… Eis o que Dorian desejava; eis o que esperava… Seguramente, ele já a
havia iniciado! Acabava de poupar um ente virginal e jamais tornaria a tentar a
inocência; seria bom… E como pensasse em Hetty Merton, quis saber se o
retrato da câmara fechada experimentara alguma alteração. Forçosamente, não
devia estar tão repelente como havia sido. Talvez, se sua vida se purificava,
ele chegasse a limpar do rosto da pintura todo estigma de má paixão! Talvez os
estigmas do mal já houvessem desaparecido… Se ele fosse verificar?… Tomou a
lâmpada na mesa e subiu… Ao destrancar a porta, um sorriso de júbilo
abriu-se-lhe no rosto sempre fresco e demorou-lhe nos lábios. Sim, ele
tomar-se–ia bom, e o hediondo objeto que a todos ocultava não lhe seria mais um
objeto de terror. Dorian teve a sensação de já achar-se desembaraçado de seu
fardo. Entrou tranquilamente, fechando a porta atrás de si, como costumava
fazê-lo, e puxou a cortina de púrpura que encobria o retrato… Um grito de
horror e indignação escapou-lhe dos lábios… A não ser um novo brilho de
astúcia nos olhos e o aumento das rugas da hipocrisia na boca, nenhuma
transfiguração existia!… A figura estava ainda mais abominável do que antes; a
nódoa escarlate que cobria a mão parecia ainda mais viva; aí percebia-se o
sangue vertido de fresco… Dorian então estremeceu… Seria simplesmente a
vaidade que provocara o seu bom ato recente, ou o desejo de uma nova sensação,
como lhe sugerira lord Henry com um riso de mofa? Ou essa necessidade de
desempenhar um papel que nos faz produzir coisas mais belas que nós? Ou,
talvez, tudo isso junto? Por que motivo a nódoa vermelha se dilatara? Ela
parecia ter-se alargado como uma cruciante chaga maligna pelos seus dedos
enrugados!…Havia sangue nos pés do retrato como se neles o sangue houvesse
gotejado! Havia sangue até na mão que não segurara o cutelo!… Confessar seu
crime? Sabia ele o que isto queria dizer – confessar-se? Era entregar-se por si
mesmo à morte! Dorian pôs-se de novo a rir…A ideia era inconcebível…
Demais, se ele se confessasse, quem nele acreditaria? Não existia o mínimo
vestígio do homem assassinado; tudo quanto lhe pertencera estava destruído; ele
próprio queimara… Os homens diriam simplesmente que ele enlouquecia…
Metê-lo–iam entre grades, se persistisse na sua história… Entretanto, era seu
dever confessar-se, sofrer a vergonha diante de todos e fazer uma expiação
pública… Havia um Deus que forçava os homens a contar seus pecados, tanto
nesta terra, como no céu. Como quer que fosse, nada poderia purificá-lo antes
dele confessar o crime… O crime!… Dorian encolheu os ombros. A vida de
Basil Hallward pouco lhe importava; ele pensava em Hetty Merton, pois era um
espelho injusto, esse espelho de sua alma… Vaidade? Curiosidade? Hipocrisia?
Não haveria mais nada no seu renunciamento? Ele havia percebido qualquer coisa
a mais; ao menos, imaginava-o… Mas quem poderia dizê-lo? Não, não houvera
mais nada… Por vaidade, ele a havia poupado; por hipocrisia, buscara a
máscara da bondade; por curiosidade, havia ensaiado o renunciamento… Agora
reconhecia bem tudo isso.

Esse
assassínio, porém, persegui-lo-ia durante a sua vida inteira? Seria ele sempre
subjugado pelo passado? Deveria confessar-se?… Nunca!… Só havia uma prova a
erguer-se contra ele. Esta era o seu retrato!… Ele o destruiria! Por que o
havia guardado tantos anos? Ele próprio se dará ao prazer de ver a sua
transformação e a sua velhice. Desde muito tempo, porém, abandonara esse
prazer… O retrato o trouxera desperto muitas noites… Quando partia de casa,
era com o temor de que outros olhos, além dos seus, pudessem vê-lo. Tal obra
havia lhe trazido às paixões somente tristeza e melancolia. A sua simples
lembrança lhe havia feito perder bons momentos de alegria. Esse retrato
fora-lhe como uma consciência. Sim, havia sido a Consciência… Ele o
destruiria!…

Dorian
olhou ao redor de si e percebeu o punhal com que havia ferido Basil Hallward.
Já o havia polido várias vezes, de modo que não existia a menor nódoa. O punhal
brilhava… Como havia exterminado o pintor, assim exterminaria a sua obra e
tudo quanto ela significava… Exterminaria o passado, e quando esse passado
estivesse morto, ele estaria livre!…Aniquilaria o monstruoso retrato de sua
alma e, livre de suas medonhas advertências, recobraria a paz. Agarrou o punhal
e apunhalou o quadro!…

Sentiu-se
um enorme grito, acompanhado de uma queda!… Esse grito de agonia foi tão
lancinante, que os criados, espavoridos, acordaram em sobressalto e saíram de
seus quartos!… Dois ‘gentleman’, que passavam embaixo, na praça, pararam a
observar a grande casa. Caminharam depois até encontrar um policial e
conduziram-no ao mesmo ponto. O homem fez soar várias vezes a campainha, mas
não teve resposta. Afora uma luz em uma janela dos andares superiores, a casa
estava às escuras… Passado um instante, o policial afastou-se, pôs-se de
lado, junto a um portão, e esperou.

– De quem
é essa casa, ó guarda? – perguntou o mais velho dos dois ‘gentlemen’.

– É de
Sr. Dorian Gray, senhor – respondeu o policial.

Os dois
‘gentlemen’ entreolharam-se e retiraram-se rindo: um deles era tio de Sir Henry
Ashton…

Pelos cômodos
da casa, os criados meio vestidos trocavam palavras em voz baixa; a velha
senhora Leaf soluçava torcendo as mãos; Francis tinha a palidez de um cadáver.

Ao cabo
de um quarto de hora, este último subiu à sala, acompanhado do cocheiro e de um
dos lacaios. Bateram à porta, sem que obtivessem qualquer resposta. Chamaram;
tudo se conservava silencioso. Enfim, depois de haverem tentado inutilmente
forçar a porta, subiram ao telhado e desceram pelo balcão. As janelas cederam
sem esforço, por serem velhas as fechaduras…

Quando os
três entraram, descobriram, suspenso à parede, um esplêndido retrato do patrão,
representando-o tal como eles sempre o haviam conhecido, em todo o esplendor de
sua estranha juventude e de sua beleza.

No
assoalho, jazia um homem morto, trajado a rigor, com um punhal no coração!…
Seu semblante estava macerado, enrugado, repelento!… Somente pelos anéis
conseguiram reconhecer quem era…

 

 

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APRENDENDO PORTUGUÊS – Lição 01 – MONTANDELA X MORTADELA

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