1ª edição: Tradução de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Tipografia
Perseverança, 1866.
Capa: O polvo (aquarela de Victor Hugo – 1866)
Todos os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98.
Victor-Marie Hugo (Besançon, 26 de fevereiro de
1802 — Paris, 22 de maio de 1885)
Os trabalhadores do mar (Les Travailleurs de la
Mer), Victor Hugo. Tradução de Machado de Assis. Pará de Minas, MG – Brasil:
VirtualBooks Editora, Publicação 2017.
ISBN: 9781521761823
Literatura francesa. Romance. Brasil. Título.
OS TRABALHADORES
DO MAR
Victor Hugo
DEDICATÓRIA
Dedico
este livro ao rochedo de hospitalidade e de liberdade, a este canto da velha
Normandia onde vive o nobre e pequeno povo do mar, à ilha de Guernesey, severa
e branda, meu atual asilo, meu provável túmulo.
V.H.
PRÓLOGO
A
religião, a sociedade, a natureza: tais são as três lutas do homem. Estas três
lutas são ao mesmo tempo as suas três necessidades; precisa crer, daí o tempo;
precisa criar, daí a cidade; precisa viver, daí a charrua e o navio. Mas há
três guerras nestas três soluções. Sai de todas a misteriosa dificuldade da
vida. O homem tem de lutar com o obstáculo sob a forma superstição, sob a forma
preconceito e sob a forma elemento. Tríplice ananke pesa sobre nós, o ananke
dos dogmas, o ananke das leis, o ananke das coisas. Na Notre-Dame
de Paris, o autor denunciou o primeiro; nos Miseráveis, mostrou o
segundo; neste livro indica o terceiro.
A
estas três fatalidades que envolvem o homem, junta-se a fatalidade interior, o ananke
supremo, o coração humano.
Hauteville-House,
março de 1866.
PRIMEIRA PARTE
O SR. CLUBIN
LIVRO PRIMEIRO
ELEMENTOS DE UMA MÁ REPUTAÇÃO
CAPÍTULO PRIMEIRO
PALAVRA ESCRITA EM UMA PÁGINA BRANCA
O
Christmas (Natal) de 1822… foi notável em Guernesey. Caiu neve naquele
dia. Nas ilhas da Mancha, inverno em que há neve é memorável; a neve é um
acontecimento.
Naquela
manhã de Christmas a estrada que orla o mar de Saint-Pierre-Port ao Vale
assemelhava-se a um lençol branco: nevara desde a meia-noite até o romper do
dia.
Pelas
9 horas, pouco depois de nascer o sol, como não era ainda ocasião de os
anglicanos irem à Igreja de Saint-Sampson e os wesleyanos à Capela
Eldad, o caminho estava quase deserto. Na parte da estrada compreendida entre a
primeira volta e a segunda havia apenas três viandantes, um menino, um homem e
uma mulher.
Estes
três viandantes, caminhando separados uns dos outros, não tinham visivelmente
relação alguma entre si. O menino, de cerca de oito anos, parara e olhava para
a neve com curiosidade. O homem, seguindo atrás da mulher, uns cem passos,
dirigia-se, como ela, para o lado de Saint-Sampson.
Era
ele moço ainda e parecia ser operário ou marinheiro. Vestia as roupas
ordinárias, isto é, uma grossa camisa de pano escuro e uma calça de pernas
alcatroadas, o que parecia indicar que, apesar da festa, não iria à igreja. Os
grossos sapatos de couro cru e solas tacheadas de ferro deixavam sobre a neve
uma marca, que mais se assemelhava a uma fechadura de prisão que ao pé de um
homem.
A
viandante, essa evidentemente trajava roupa de ir à igreja; envolvia-se em uma
comprida manta acolchoada de estofo de seda preta, debaixo da qual apertava-lhe
faceiramente o corpo um vestido de fazenda da Irlanda com listras brancas e
cor-de-rosa, e, se não fossem as meias vermelhas, tomá-la-iam por uma
parisiense. Caminhava com desembaraço e viveza; e pelo andar, que mostrava não
lhe ter ainda pesado a vida, conhecia-se que era moça. Tinha aquela graça
fugitiva que indica a mais delicada transição, a adolescência, a mistura dos
dois crepúsculos, o princípio de uma mulher e o fim de uma menina.
O
homem não reparava nela.
De
súbito, perto de uma moita de azinheiras, que forma o ângulo de uma horta
rústica, no lugar denominado Basses Maisons, voltou-se a moça, e esse movimento
chamou a atenção do homem.
Parou,
pareceu reparar nele um instante, abaixou-se, e o homem julgou vê-la escrever
com o dedo alguma coisa na neve. Levantou-se e pôs-se de novo a caminho com
passo mais apressado, voltou-se ainda, mas desta vez rindo, e desapareceu pela
esquerda, seguindo o carreiro guarnecido de sebes, que leva ao castelo de
Lierre. O homem, quando ela se voltou pela segunda vez, reconheceu Déruchette,
linda mocinha do lugar. Mas não sentia necessidade alguma de apressar o passo.
Alguns
instantes depois estava junto à moita de azinheiras no ângulo da horta. Já não
pensava na passageira, e é provável que, se nessa ocasião pulasse um golfinho
no mar ou um cardeal nos arbustos, passaria com o olhar fixo no cardeal ou no
golfinho. Casualmente, tinha os olhos baixos, e assim os levou maquinalmente ao
lugar em que parara a menina. Dois pezinhos aí estavam impressos e ao lado
deles a palavra escrita por ela: Gilliatt.
Era
este o nome dele.
Chamava-se
Gilliatt.
Ficou
por muito tempo imóvel, contemplando o nome, os pezinhos, a neve; e depois
continuou pensativo o seu caminho.
CAPÍTULO II
O TUTU DA RUA
Gilliatt
residia na paróquia de Saint-Sampson, onde não era estimado, e havia razões
para isso.
Em
primeiro lugar, morava em uma casa mal-assombrada.
Acontece
algumas vezes em Jersey e Guernesey, no campo e até na cidade, que, ao passar
por um lugar deserto ou por uma rua muito habitada, vê-se uma casa cuja entrada
está obstruída. O azevinho cresce à porta, as janelas do rés-do-chão estão
fechadas por feios emplastros de tábuas pregadas; as dos andares superiores
estão fechadas e abertas ao mesmo tempo: há ferrolhos, mas não há vidros. No
pátio, se o há, alastra-se a erva e caem os muros; se há jardim, nascem a
urtiga, o espinheiro, a cicuta; raros insetos esvoaçam. Racham-se as chaminés,
o teto se abate; o que se vê dos quartos está arruinado, a madeira podre, a
pedra carcomida; cai o papel das paredes. Podem-se estudar aí os antigos gostos
do papel pintado, os grifos do Império, as sanefas em forma de crescente do
Diretório, os balaústres e cipos de Luís XVI. A espessura das teias de aranha,
cheias de moscas, indica a profunda tranquilidade em que vivem aqueles insetos.
Algumas vezes vê-se um púcaro quebrado sobre uma tábua.
É
uma casa mal-assombrada. O diabo aparece lá durante a noite.
A
casa, como o homem, pode tornar-se cadáver; basta que uma superstição a mate.
Então é terrível.
Essas
casas mortas não são raras nas ilhas da Mancha.
As
populações campesinas e marítimas não vivem tranquilas a respeito do diabo. As
da Mancha, arquipélago inglês e litoral francês, têm a respeito dele noções
muito precisas. O diabo possui delegados por todo o mundo. É certo que
Belphégor é embaixador do inferno na França, Hutgin na Itália, Belial na
Turquia, Thamuz na Espanha, Martinet na Suíça e Mammon na Inglaterra. Satanás é
um imperador, como um outro qualquer. Satanás César. A casa dele é muito bem
servida: Dagon é o saquetário; Succor Benoth, chefe dos eunucos; Asmodeu,
banqueiro dos jogos; Kobal, diretor de teatro; Verdelet, grão-mestre de
cerimônias, e Nybbas, bobo. Wierus, homem de ciência, bom estrigólogo e
demonógrafo distinto, chama Nybbas — o grande parodista.
Os
pescadores normandos da Mancha precisam aprecatar-se quando andam no mar, por
causa das artes do diabo. Por muito tempo acreditou-se que São Maclou habitava
o grande rochedo quadrado Ortach, situado ao largo entre Aurigny e Casquets, e
muitos velhos marinheiros de outros tempos afirmavam tê-lo visto não poucas
vezes sentado e lendo um livro. Por isso os marítimos, quando passavam,
ajoelhavam-se muitas vezes diante do rochedo Ortach, até que um dia dissipou-se
a fábula e esclareceu-se a verdade. Descobriu-se e sabe-se hoje que quem habita
aquele rochedo não é um santo, mas sim um diabo, chamado Jochmus, que por
muitos séculos teve a malícia de fazer-se passar por São Maclou. Demais, a
própria Igreja cai em tais enganos. Os diabos Raguhel, Oribel e Tobiel foram
santos, até que em 745 o Papa Zacarias, tendo-lhes tomado o faro, deitou-os
fora. Para fazer tais expulsões, que são muito úteis, é necessário ser muito
conhecedor de diabos.
Conta
a gente velha da terra, mas estes casos pertencem ao século passado, que a
população católica do arquipélago normando estivera outrora, bem a seu pesar,
mais em comunicação com o diabo do que a população huguenote. Ignoramos a
razão, mas a verdade é que a minoria católica andou outrora muito incomodada
por ele.
Afeiçoara-se
aos católicos e procurava frequentá-los, o que leva a crer que o diabo é antes
católico que protestante.
Uma
de suas mais insuportáveis liberdades era visitar a noite os leitos conjugais
católicos, quando os maridos dormiam de todo, e as mulheres, a meio. Disto
resultavam equívocos. Patouillet pensava que Voltaire nascera assim. Não é
inverossímil. É caso perfeitamente conhecido e descrito nos formulários de
exorcismo sob o título de erroribus nocturnis et de semine diabolorum.
O
diabo fez violências destas especialmente em Saint-Hélier, em fins do século
passado: é provável que para punição dos crimes da revolução. As consequências
dos excessos revolucionários são incalculáveis. Fosse como fosse, essa aparição
possível do demônio durante a noite, quando reina a escuridão e todos dormem,
inquietava muitas mulheres ortodoxas. Dar nascimento a um Voltaire não é coisa
agradável. Uma delas, assustada, foi consultar o confessor sobre a maneira de
desfazer-se em tempo o quiproquó.
O
confessor respondeu: — Para saber se está com o diabo ou com seu marido,
apalpe-lhe a cabeça e, se encontrar pontas, pode estar certa. — De quê? —
perguntou a mulher.
A
casa em que morava Gilliatt tinha sido mal-assombrada e já não era; portanto,
tornava-se mais suspeita; é sabido que, quando um feiticeiro vem habitar uma
casa visitada pelo diabo, este, julgando-a bem guardada, tem a delicadeza de
não voltar, salvo o caso de ser chamado, como médico.
Chamava-se
a casa O Tutu da Rua. Era situada na ponta de uma língua de terra, ou antes, de
rochedo que formava uma pequena angra de bastante profundidade na enseada de
Houmet Paradis. A casa estava sozinha nessa ponta, quase fora da ilha, tendo
apenas a terra suficiente para um pequeno jardim, às vezes inundado por ocasião
das marés altas.
Entre
o porto de Saint-Sampson e a enseada de Houmet Paradis há uma grande colina,
sobre a qual levanta-se um amontoado de torres e de hera chamado o Castelo do
Vale ou do Arcanjo, de sorte que de Saint-Sampson não se via O Tutu da Rua.
Não
são raros os feiticeiros em Guernesey. Exercem a profissão em certas paróquias,
apesar de vivermos no século XIX. Praticam ações verdadeiramente criminosas.
Fazem ferver ouro. Colhem ervas à meia-noite. Olham de través para o gado.
Consultam-nos; eles mandam buscar em garrafas a água dos doentes, e
dizem em voz baixa: a água parece bem triste. Afirmou um feiticeiro, em
março de 1857, que na água de um doente havia sete diabos. São temidos e
temíveis. Há pouco tempo um deles enfeitiçou um padeiro e mais o forno.
Outro tem a perversidade de fechar e lacrar uma porção de sobrecartas, sem
haver nada dentro. Outro chega ao ponto de ter em casa, em cima de uma
tábua, três garrafas com um B em cada uma. Estes fatos monstruosos são
conhecidos. Alguns feiticeiros são complacentes e, por 2 ou 3 guinéus,
incumbem-se de sofrer as nossas moléstias. Rolam e gritam em cima da cama.
Enquanto eles se estorcem, diz o doente: “E esta! já estou bom!” Outros curam
todas as moléstias amarrando um lenço ao redor do corpo do doente. É um remédio
tão simples que admira não se ter ainda ninguém lembrado dele.
No
século passado o tribunal real de Guernesey colocava-os sobre uma porção de
achas de lenha e queimava-os vivos. Presentemente condena-os a oito semanas de
prisão, quatro a pão e água e quatro no segredo, alternando. Amant alterna
catenoe.
A
última queima de feiticeiros em Guernesey foi em 1747, sendo teatro do
espetáculo a praça de Bordage, que, de 1565 a 1700, viu queimarem-se onze
feiticeiros. Em geral esses culpados confessavam seus crimes: eram para isso
ajudados pela tortura.
A
praça Bordage prestou serviços à sociedade e à religião. Queimaram-se aí os
heréticos. No tempo de Maria Tudor, entre outros huguenotes, queimou-se uma mãe
e duas filhas: a mãe chamava-se Perrotine Massy. Uma das filhas estava grávida
e teve o sucesso sobre o braseiro.
A
crônica diz: “Arrebentou-lhe o ventre”. Saiu desse ventre um menino vivo; o
recém-nascido rolou na fogueira, um tal House apanhou-o. O bailio, Hélier
Grosselin, bom católico, mandou atirar a criança ao fogo.
CAPÍTULO III
PARA TUA MULHER, QUANDO TE CASARES
Voltemos
a Gilliatt.
Contava-se
na terra que uma mulher, tendo consigo um menino, viera em fins da revolução
habitar Guernesey. Era inglesa, ou talvez francesa. O nome dela, qualquer que
fosse, a pronúncia guernesiana e a ortografia dos camponeses transformaram em
Gilliatt. Vivia sozinha com o menino, que, diziam uns, era seu sobrinho,
outros, filho, outros, neto, e outros, coisa nenhuma. Possuía um dinheirinho, de
que vivia pobremente. Comprara um pedaço de terra na Sergentée e outro em
Roque-Crespel, perto de Rocquaine. A casa Tutu da Rua estava nesse tempo
mal-assombrada. Havia mais de trinta anos que ninguém morava nela. Caía aos
pedaços. O jardim, sempre inundado pelo mar, já nada produzia.
Além
dos ruídos noturnos e das luzes, a casa era particularmente aterradora por
isto: se à noite se deixava sobre a lareira um novelo de lã, agulhas e um prato
cheio de sopa, no dia seguinte de manhã encontrava-se a sopa comida, o prato
vazio e um par de luvas feito. Pôs-se à venda aquele pardieiro com o diabo que
estava dentro, por algumas libras esterlinas. Aquela mulher comprou-o,
evidentemente tentada pelo diabo. Ou pela barateza.
Fez
mais do que comprá-lo, foi morar lá com o filho, e desde então a casa sossegou.
“Esta casa achou o que queria”, dizia a gente da terra. Cessaram as aparições.
Já se não ouviam gritos ao romper do dia. Já não havia outra luz além do sebo
acendido à noite pela boa mulher. Vela de feiticeira vale a tocha do diabo.
Esta
explicação satisfez o público.
A
mulher utilizava o quarto de jeira de terra que possuía. Tinha uma boa vaca, de
cujo leite fazia manteiga. Colhia frutas e batatas Golden Drops. Vendia, como
qualquer outra pessoa, ervas, cebolas e favas. Não costumava ir ao mercado
vender a sua colheita; mandava-a por Guilbert Falliot. O registro de Falliot
mostra que ele vendeu para ela, uma vez, 12 alqueires de batatas
chamadas de três meses, das mais temporãs. Fizeram-se na casa
apenas os reparos necessários para se poder habitar nela. Só chovia nos quartos
quando fazia muito mau tempo. Compunha-se de dois pavimentos, um rés-de-chão e
um celeiro. No térreo havia três salas; dormia-se em duas, comia-se na
terceira. Subia-se ao celeiro por uma escada. A mulher cozinhava e ensinava a
ler ao filho. Nunca ia à igreja, e isto, depois de muito considerado, serviu
para que a declarassem francesa. Não ir a parte alguma é coisa grave.
Em
suma, era gente que nada inculcava.
É
provável que fosse francesa. Os vulcões arrojam pedras, as revoluções homens.
Espalham-se famílias a grandes distâncias, deslocam-se os destinos, separam-se
os grupos dispersos às migalhas; cai gente das nuvens, uns na Alemanha, outros
na Inglaterra, outros na América. Pasmam os naturais dos países. Donde vêm
estes desconhecidos? Foi aquele Vesúvio, que fumega além, que os expeliu de si.
Dão-se nomes a esses aerólitos, a esses indivíduos expulsos e perdidos, a esses
eliminados da sorte: chamam-nos emigrados, refugiados, aventureiros. Se ficam,
toleram-nos: alegram-se quando eles vão embora. Algumas vezes são entes
absolutamente inofensivos, estranhos, as mulheres ao menos, aos acontecimentos
que os proscreveram, não tendo rancores nem cólera, projéteis contra a vontade,
espantadíssimos de o serem. Enraízam-se como podem. Não fazem mal a ninguém e
não compreendem o que lhes acontece. Vi um dia uma pobre moita de ervas atirada
aos ares pela explosão de uma mina. A Revolução Francesa, mais do que nenhuma
explosão, fez desses jatos longínquos.
A
mulher, que em Guernesey era conhecida por Gilliatt, foi talvez aquela moita de
erva.
Envelheceu
a mulher. Cresceu o menino. Viviam ambos sós; todos fugiam deles, mas eles
bastavam-se a si próprios. Loba e filhote lambem-se mutuamente. Foi esta uma
das fórmulas que lhes aplicou a benevolência da vizinhança.
O
menino tornou-se adolescente, o adolescente homem, e então, devendo caírem
sempre as velhas crostas da vida, a mãe veio a falecer. Constava a herança das
terras de Sergentée e da Roque-Crespel, da casa mal-assombrada, e mais, diz o
inventário oficial, de 100 guinéus de ouro, dentro de um pé de meia. A casa
estava mobiliada com duas arcas de carvalho, duas camas, seis cadeiras, uma
mesa e os utensílios necessários. Havia em cima de uma tábua uns poucos de
livros e, a um canto, uma canastra, que nada tinha de misteriosa, e que devia
ser aberta na ocasião do inventário. A canastra era de couro ruivo, cheia de
arabescos de pregos de cobre e estrelas de estanho, e continha um enxoval de mulher,
novo e completo, de excelente linho de Dunquerque, camisa e saia, cortes de
vestidos de seda e em cima de tudo um papel escrito pela finada: “Para tua
mulher, quando te casares”.
A
morte da mãe acabrunhou o filho. Era rústico, tornou-se feroz. Completou-se-lhe
o deserto. Era isolamento, tornou-se vácuo. Quando há duas criaturas, a vida é
possível. Havendo uma só, parece que nem se pode arrastá-la. Renuncia-se a ela.
É a primeira forma de desespero. Mais tarde compreende-se que o dever é uma
série de aceites. Contempla-se a morte, contempla-se a vida, consente-se na
última. Mas é um consentimento que sangra.
Gilliatt
era moço, a ferida cicatrizou. Naquela idade as carnes do coração tornam a
unir-se. A tristeza, dissipando-se-lhe a pouco e pouco, misturou-se à natureza
em redor dele, tornou-se uma espécie de encanto, atraiu-o para perto das coisas
e longe dos homens, e amalgamou cada vez mais aquela alma e a solidão.
CAPÍTULO IV
IMPOPULARIDADE
Já
o dissemos. Gilliatt não era estimado na paróquia. Antipatia natural. Sobravam
motivos. O primeiro, acabamos de explicá-lo, era a casa em que morava. Depois a
origem dele. Quem era aquela mulher? E este menino? A gente não gosta de
enigmas a respeito de estrangeiros. Depois, trajava uma roupa de operário, tendo
aliás com que viver, embora não fosse rico. Depois, o jardim, que ele conseguia
cultivar e donde colhia batatas, apesar dos ventos de equinócio. Depois, os
alfarrábios que ele lia.
Outras
razões, ainda.
Por
que motivo vivia solitário? A casa mal-assombrada era uma espécie de lazareto;
conservavam Gilliatt em quarentena; deste modo, era muito simples que o seu
isolamento causasse espanto, e o responsabilizassem pela solidão em que o
deixavam.
Nunca
ia à igreja. Saía muitas vezes à noite. Falava aos feiticeiros. Uma vez
viram-no sentado sobre a relva com ar espantado. Frequentava o dólmen de
Ancresse e as pedras fatídicas que existem espalhadas pelo campo. Havia quase
certeza de terem-no visto cumprimentar polidamente a Rocha que Canta. Comprava
todos os pássaros que lhe levavam, e soltava-os. Era civil para com as pessoas
das ruas de Saint-Sampson, mas preferia dar uma volta para não passar por lá.
Pescava muitas vezes e sempre apanhava peixe. Trabalhava no jardim aos
domingos. Tinha um bagpipe (gaita-de-foles), que comprara a uns soldados
escoceses, ao passarem por Guernesey, e tocava nele sobre os rochedos, à beira
do mar, ao cair da noite. Gesticulava como um semeador. Que virá a ser uma
terra com um homem destes?
Quanto
aos livros que haviam pertencido à mulher finada, esses eram assustadores.
Quando o Reverendo Jaquemin Herodes, cura de Saint-Sampson, entrou na casa para
encomendar a mulher, leu no lombo desses livros os títulos seguintes: Dicionário
de Rosier, Cândido, por Voltaire; Aviso ao Povo acerca da Sua Saúde,
por Tissot. Dissera um fidalgo francês emigrado, retirado em Saint-Sampson, que
“aquele Tissot devia ser o que carregou a cabeça da Princesa de Lamballe”.
O
reverendo notou, num dos livros, este título verdadeiramente extravagante e
ameaçador: De Ruibarbaro.
Cumpre
observar que, sendo a obra escrita em latim, como indica o título, era duvidoso
que Gilliatt, que não sabia latim, lesse aquela obra.
Mas
são exatamente os livros que a gente não lê os que mais condenam. A Inquisição
da Espanha julgou esse caso, e pô-lo fora de dúvida.
Demais,
o livro era o tratado do Doutor Tilingius Sobre o Ruibarbaro, publicado
na Alemanha em 1679.
Não
havia certeza de que Gilliatt não fizesse bruxarias, filtros e sortilégios.
Tinha frascos em casa.
Por
que motivo ia ele passear, às vezes até a meia-noite, nos penhascos da costa?
Era evidentemente para conversar com a gente maligna que anda à noite nas
praias no meio das exalações.
Ajudou
ele uma vez a feiticeira de Torteval a desatolar a carroça. Era uma velha, por
nome Moutonne Gahy.
Tendo-se
feito um recenseamento na ilha, perguntou-se-lhe a profissão, e ele respondeu:
“Pescador, quando há peixe”. Vejam lá se a gente da ilha podia gostar de tais
respostas.
Pobreza
e riqueza são relativas. Gilliatt tinha terras e uma casa, e, comparado aos que
não possuem coisa nenhuma, não era pobre. Um dia, para experimentá-lo, e talvez
para inculcar-se, porque há mulheres que estariam prontas a desposar o diabo
rico, disse uma rapariga a Gilliatt: “Quando se casa?” A resposta dele foi:
“Casar-me-ei quando se casar a Rocha que Canta”.
A
Rocha que Canta era uma grande pedra colocada a pique numa horta rústica perto
do Senhor Lemezurier de Fry. Esta pedra inspira desconfiança. Não se sabe o que
ela faz ali. Ouve-se cantar um galo invisível, coisa extremamente desagradável.
Verificou-se que a pedra foi posta ali por uns fantasmas.
De
noite, quando troveja, se aparecem homens a voar entre as nuvens avermelhadas,
são os tais fantasmas. Há uma mulher que mora no Grande Mielles e que os
conhece. Uma noite, em que havia fantasmas numa encruzilhada, essa mulher,
vendo um carroceiro que não sabia por onde seguir, gritou-lhe: “Pergunte-lhes o
caminho; é gente benéfica, e bem-educada, com quem se pode conversar” — Aquela
mulher é com certeza feiticeira.
O
judicioso e sábio Rei Jacques I mandava ferver ainda vivas as mulheres dessa
espécie, provava o caldo e, pelo gosto, dizia: “É feiticeira”, ou: “Não é
feiticeira”.
É
para lamentar que os reis hoje não tenham daqueles talentos, que faziam
compreender a utilidade da instituição.
Gilliatt,
não sem motivos sérios, tinha fama de feiticeiro.
Num
temporal, à meia-noite, estando Gilliatt sozinho no mar, dentro de uma lancha,
do lado da Someilleuse, ouviram-no perguntar:
—
Há lugar para passar?
Respondeu-lhe
uma voz de cima dos penhascos:
—
Pois não! ânimo.
A
quem falaria ele senão a alguém que lhe respondia? Parece-nos que isto é uma
prova.
Outra
noite de temporal, tão negro que nada se via pertinho da Catiau-Roque, que é
uma dupla fileira de rochedos onde os feiticeiros e as cabras vão dançar à
sexta-feira, houve quem reconhecesse a voz de Gilliatt no meio deste terrível
diálogo:
—
Como está Vésin Brovard? (Era um pedreiro que tinha caído de um telhado.)
—
Vai sarando.
—
Deveras! pois caiu de um lugar tão alto como aquela estaca. Admira não ficar
despedaçado.
—
Bom tempo foi a semana passada para a colheita das praias.
—
Melhor do que hoje.
—
Decerto! não haverá muito peixe no mercado.
—
O vento é rijo.
—
Não se podem deitar as redes.
—
Como vai a Catarina?
—
Está embruxada.
A
Catarina era evidentemente alguma feiticeira.
Gilliatt,
ao que parecia, trabalhava de noite. Ao menos, ninguém duvidava disso.
Viam-no,
algumas vezes, espalhar pelo chão a água de um púcaro. Ora, a água espalhada
pelo chão traça a forma dos diabos.
Existem
na estrada de Saint-Sampson três pedras dispostas em forma de escada. Na
plataforma houve em outro tempo uma cruz, e, se não foi cruz, era forca. Aquelas
pedras são malignas.
Muita
gente esperta, e digna de crédito, afirmava ter visto, perto dessas pedras,
Gilliatt conversando com um sapo. Ora, não há sapos em Guernesey; Guernesey tem
todas as cobras, e Jersey todos os sapos. Aquele sapo veio naturalmente de
Jersey, a nado, para falar a Gilliatt. A conversa era amigável.
Todos
estes fatos estavam averiguados; e a prova disso é que as três pedras lá estão.
Quem duvidar pode ir vê-las, e mesmo a alguma distância há uma casa em cuja
esquina lê-se isto: “Mercador de gato morto e vivo, cordas velhas, ferros,
ossos e fumo de mascar; é pronto na paga e na atenção”.
Só
de má-fé se pode contestar a existência daquelas pedras e daquela casa. Tudo
isso fazia mal a Gilliatt.
Só
os ignorantes não sabem que o maior perigo dos mares da Mancha é o que se chama
Rei dos Auxcriniers. Não há personagem marítimo mais temível. Quem o vê
naufraga logo entre uma e outra Saint-Michel. É pequeno e surdo, por ser anão e
rei. Sabe o nome de quantos morreram no mar, e em que lugar estão. Conhece a
fundo o cemitério Oceano. Cabeça larga em baixo e estreita em cima, corpo
cheio, barriga viscosa e disforme, nodosidades no crânio, pernas curtas, braços
compridos, barbatanas em vez de pés, garras em vez de mãos, cara larga e verde,
tal é aquele rei. As garras são achatadas, as barbatanas têm unhas. Imaginem um
peixe com cara de homem e forma de espectro. Para vencê-lo é preciso
exorcismá-lo ou pescá-lo. Fora disso, é sinistro. Vê-lo é perigoso.
Descobrem-se acima das ondas e do marulho, através da espessura do nevoeiro,
umas feições de gente; testa curta, nariz esborrachado, orelhas chatas, boca
imensa e sem dentes, beiços esverdeados, sobrancelhas angulosas, olhos vivos e
grandes. O rei torna-se vermelho quando o relâmpago é lívido, descorado quando
o relâmpago é vermelho. Tem barba gotejante e rígida, cortada em quadro, que
lhe cai sobre uma membrana em forma de mantéu de peregrino; o mantéu é adornado
de catorze conchas, sete na frente, sete nas costas. As conchas são
extraordinárias para os que conhecem conchas. O rei só é visível no mar
violento. É o dançarino lúgubre da tempestade. Vê-se a forma dele esboçada no
nevoeiro e na chuva. O umbigo é hediondo. Uma casca de escamas guarda-lhe os
quadris à semelhança de colete. O rei levanta-se de pé, sobre as vagas que
irrompem à pressão dos ventos e vão rolar-se como os cavacos que saem do rabote
do marceneiro. Conserva-se todo fora da espuma, e, quando avista ao longe os
navios em perigo, entra a bailar, descorado na sombra, com a face iluminada por
um vago sorriso, feio e demente no aspecto. Mau encontro esse.
Na
época em que Gilliatt era uma das preocupações de Saint-Sampson, as últimas
pessoas que tinham visto o rei da Mancha declaravam que já não havia no mantéu
mais de treze conchas. Treze; era mais perigoso ainda. Mas onde foi parar a
outra concha? Deu-a a alguém? A quem seria? Ninguém podia dizê-lo, todos se
limitavam às conjecturas. O que é certo é que o Sr. Lupin Matier, do lugar de
Godaines, homem de posição, proprietário taxado em catorze bairros, estava
pronto a jurar que vira uma vez, nas mãos de Gilliatt, uma concha muito
esquisita.
Não
raras vezes se ouviam os campônios conversarem entre si:
—
Vizinho, não é verdade que este boi é magnífico?
—
Inchado, vizinho.
—
Homem, é verdade.
—
Tem mais sebo do que carne.
—
Deveras!
—
Estais certo de que Gilliatt não lhe pôs os olhos em cima?
Gilliatt
parava nos campos, ao pé dos lavradores, e nos jardins, ao pé dos jardineiros,
e dizia-lhes palavras misteriosas:
—
Quando florescer a escabiosa, semeia o centeio.
—
O freixo enfolha, acaba-se a neve.
—
Solstício de verão, cardo em flor.
—
Se não chover em junho, o trigo há de espigar. Tomem cuidado com as plantas
nocivas.
—
A cerejeira está dando frutos, desconfia da lua cheia:
—
Se o tempo, no sexto dia da lua, conservar-se como no quarto dia ou como no
quinto, há de ser o mesmo em toda a lua, nove vezes em doze no primeiro caso, e
onze vezes em doze no segundo.
—
Vigia o teu vizinho com quem andas em processo. Cautela com as espertezas.
Porco que bebe leite quente estoura. Vaca que leva alho nos dentes não come.
—
O peixe está gerando, guarda-te das febres.
—
As rãs aparecem, semeia os melões.
—
A anêmona enflora, semeia a cevada.
—
A tília enflora, ceifa os campos.
—
O choupo enflora, fecha as estufas.
E,
coisa terrível, quem seguisse os seus conselhos achá-los-ia muito bons.
Uma
noite de junho, em que ele tocava o bagpipe, sobre os cabedelos da
praia, do lado da Damie de Fontenelle não se pôde pescar uma só cavala.
Outra
noite, vazando a maré aconteceu tombar na praia, em frente da casa
mal-assombrada, uma carreta cheia de sargaço. Gilliatt receou naturalmente ser
chamado à justiça, pois atirou-se a levantar a carreta, pondo-lhe outra vez
toda a carga que se espalhara no chão.
Uma
menina da vizinhança tinha muitos piolhos; Gilliatt foi a Saint-Pierre-Port,
trouxe de lá um unguento e o esfregou à cabeça da pequena; tirou-lhe os
piolhos, o que prova que foi ele quem lhos deitou.
Sabe
toda a gente que há feitiço para fazer criar piolhos na cabeça dos outros.
Dizia-se
que Gilliatt olhava para os poços, o que é perigoso quando é mau-olhado; e o
caso é que um dia, nos Arculons, a água de um poço tornou-se doentia. A dona do
poço disse a Gilliatt: “Veja esta água”. E apresentou-lhe um copo cheio.
Gilliatt confessou: “A água está grossa”, disse ele; “é exato”. A boa mulher,
que desconfiava, disse-lhe: “Pois cure-a”. Gilliatt perguntou-lhe se ela tinha
algum curral, se o curral tinha esgoto, e se o rego do esgoto passava perto do
poço. A boa mulher disse que sim. Gilliatt entrou no curral, desviou o rego do
esgoto, e a água do poço ficou boa. Ora, pensava a gente da terra, nenhum poço
fica insalubre, nem é curado depois, sem motivo; a doença do poço não é
natural; é difícil não acreditar que Gilliatt tenha enguiçado a água.
De
uma vez, tendo ido a Jersey, foi alojar-se em São Clemente, em uma rua cujo
nome quer dizer almas do outro mundo.
Nas
aldeias, colhem-se os indícios, comparam-se: o total faz a reputação de um
homem.
Aconteceu
um dia que Gilliatt foi surpreendido a deitar sangue pelo nariz. Coisa grave.
Um patrão de lancha, grande viajante, que fez quase a volta do mundo, afirmou
que havia uma terra, onde todos os feiticeiros deitam sangue pelo nariz. Quando
um homem deita sangue pelo nariz, já toda a gente sabe como se haver com ele.
Todavia, algumas pessoas de juízo observaram que aquilo que caracteriza os
feiticeiros em uma terra pode não caracterizá-los em outra.
Nos
arredores de Saint-Michel, viu-se Gilliatt parado em uma horta dos Huriaux, ao
pé da estrada real de Videclins. Gilliatt assobiou, e pouco depois veio um
corvo, e depois uma pega. O fato foi atestado por um homem notável que
pertenceu depois a uma comissão encarregada de fazer um novo livro de medidas.
No
Hamel, há mulheres velhas que diziam estar certas de ter ouvido, ao romper da
manhã, umas andorinhas chamando por Gilliatt.
A
isto deve acrescentar-se que Gilliatt não era bom.
Um
dia um pobre homem batia num asno, que tinha empacado. Deu-lhe algumas
tamancadas na barriga, o animal caiu. Gilliatt correu para levantá-lo, estava
morto. Gilliatt esbofeteou o pobre homem.
Noutra
ocasião, vendo um rapaz descer de uma árvore com um ninho de passarinhos ainda
implumes, Gilliatt tirou o ninho do rapaz, e levou a crueldade ao ponto de
restituí-lo ao seu lugar na árvore.
Uns
viandantes censuraram-no por isto: Gilliatt não fez mais do que apontar para o
pai e a mãe dos passarinhos, que guinchavam por cima da árvore e voltavam para o
ninho. Tinha queda pelos pássaros. É um sinal esse que faz conhecer geralmente
os bruxos.
Os
rapazes gostam de tirar os ninhos de cotovias e goelanos no penedio das costas.
Trazem consigo grande porção de ovos azuis, amarelos e verdes, para armar com eles
a frente das lareiras. Como os penedos estão a pique, aconteceu-lhes às vezes
escorregarem, caírem e morrerem. Nada mais lindo que uma varanda adornada com
ovos de pássaros do mar. Gilliatt já não sabia que inventar para fazer mal aos
rapazes. Trepava, com risco de vida, ao cimo das rochas marinhas, e pendurava
aí molhos de feno, com chapéus velhos em cima e tudo quanto pudesse servir de
espantalho, para arredar os pássaros e, por consequência, as crianças.
Por
tudo isto Gilliatt ia sendo a pouco e pouco odiado por todos. Não precisava
tanto para sê-lo.
CAPÍTULO V
OUTROS PONTOS AMBÍGUOS DE GILLIATT
Não
estava fixa a opinião acerca de Gilliatt.
Geralmente
era tido por marcou. Outros acreditavam mesmo que fosse filho do diabo.
Quando
uma mulher tem, do mesmo homem, sete filhos machos consecutivos, o sétimo é marcou.
Mas, para isso, é necessário que nenhuma filha venha interromper a série dos
rapazes.
O
marcou tem uma flor-de-lis impressa em uma parte do corpo, donde resulta
que aproveita tanto aos escrofulosos como aos reis da França. Na França há marcous
em toda parte, especialmente na província de Orléans. Cada aldeia do Gâtinais
tem o seu marcou. Para curar os doentes basta que o marcou sopre
nas chagas ou lhes faça tocar a flor-de-lis. O remédio é eficaz, principalmente
quando aplicado na noite de Sexta-Feira Maior. Há uma dezena de anos, o marcou
d’Ormes, no Gâtinais, apelidado o Formoso Marcou, e consultado por toda a
Beauce, era um tanoeiro, chamado Foulon, que tinha cavalo e carruagem. Para pôr
cobro aos seus milagres foi preciso intervir a polícia. Tinha ele a flor-de-lis
embaixo do peito esquerdo. Outros marcous têm-na em lugar diverso.
Há
marcous em Jersey, em Aurigny e em Guernesey. Parece que isto procede
dos direitos que tem a França sobre o ducado da Normandia. A não ser assim, por
que haveria ali a flor-de-lis?
Como
há também nas ilhas da Mancha muitos escrofulosos, os marcous são
necessários.
Em
um dia, estando Gilliatt a banhar-se no mar diante de algumas pessoas, julgaram
estas ter-lhe visto no corpo a flor-de-lis. Interrogado a esse respeito, por
única resposta pôs-se a rir. Gilliatt ria às vezes como os outros homens. Mas
desde esse dia nunca mais o viram tomar banho. Começou então a banhar-se em
lugares solitários e perigosos. Provavelmente à noite, e em noites de luar; o
que, hão de convir, é coisa um tanto suspeita.
Os
que se obstinavam em crê-lo filho do diabo (cambiou) enganavam-se,
evidentemente. Deviam saber que só os há na Alemanha. Mas o Vale e
Saint-Sampson eram há cinquenta anos países ignorantes.
Acreditar
em Guernesey que alguém é filho do diabo, por força que há nisso exageração.
Por
isso mesmo que Gilliatt inquietava o populacho, era muito consultado. Os
campônios, aterrorizados, iam conversar com ele acerca dos seus achaques.
Aquele terror equivalia a meia confiança, e no campo, quanto mais suspeito é o
médico, mais eficaz é o remédio que ele dá. Gilliatt tinha medicamentos
propriamente seus, herdados da finada bvelha. Dava-os a quem lhos pedia, e não
recebia dinheiro. Curava os panarícios com aplicações de ervas; o líquido de um
dos seus frascos cortava a febre; o químico de Saint-Sampson, que chamaríamos
farmacêutico na França, pensava que era uma decocção de quina. Os menos
benévolos convinham em que Gilliatt era excelente diabo para os doentes, quando
se tratava de seus remédios ordinários; mas, como marcou, não queria
ouvir nada: se algum escrofuloso pedia-lhe para tocar a flor-de-lis, a resposta
de Gilliatt era fechar-lhe a porta na cara; recusava fazer milagres, coisa
ridícula em um feiticeiro. Não sejas feiticeiro, mas, se o és, faze o teu
oficio.
Havia
uma ou duas exceções nesta antipatia universal. O Sr. Landoys do Clos-Landés
era escrivão da paróquia de Saint-Pierre-Port, encarregado das escrituras e
guarda dos registros dos nascimentos, casamentos e óbitos. Jactava-se o
escrivão de descender do tesoureiro da Bretanha, Pedro Landoys, enforcado em
1485.
Estando
uma vez a banhar-se, o Sr. Landoys afastou-se da praia, e quase se afogou;
Gilliatt atirou-se à água, afogou-se quase, mas salvou Landoys. Desde esse dia
Landoys não falou mal de Gilliatt. Aos que se admiravam disso, respondia ele:
“Como hei de aborrecer um homem que não me faz mal, e até me prestou um
serviço?” O escrivão chegou mesmo a ser amigo de Gilliatt. Não era homem de
preconceitos. Não acreditava em feiticeiros. Mofava dos que acreditavam em
almas do outro mundo.
Tinha
uma canoa, pescava nas horas de descanso para divertir-se, e nunca viu coisa
alguma extraordinária, a não ser em certa noite de luar, um vulto branco de
mulher, que pulava na água, e ainda assim não estava muito certo. Moutonne
Gahy, feiticeira de Torteval, dera-lhe um saquinho para atar debaixo da
gravata, a fim de afugentar os espíritos; Landoys zombava do saco, e não sabia
o que havia dentro; mas sempre andava com ele, e sentia-se assim mais seguro.
Algumas
pessoas audazes, acompanhando o Sr. Landoys, arriscaram-se a reconhecer em
Gilliatt certas circunstâncias atenuantes, algumas aparências de qualidades, a
sobriedade, a abstinência do gim e do tabaco, e chegavam às vezes a fazer dele
este belo elogio: “Não bebe, não fuma, nem masca”.
Mas
a sobriedade é uma qualidade quando o indivíduo possui outras.
Gilliatt
inspirava a aversão pública.
Fosse
o que fosse, como marcou, Gilliatt podia prestar serviços. Em uma
Sexta-Feira Maior, à meia-noite, dia e hora usados para esses curativos, todos
os escrofulosos da ilha, por inspiração, ou combinação, foram em massa à casa
mal-assombrada, e, com as mãos postas, pediram a Gilliatt que os curasse.
Gilliatt recusou. Reconheceu-se nisto a sua perversidade.
CAPÍTULO VI
A PANÇA
Tal
era Gilliatt.
As
raparigas achavam-no feio.
Gilliatt
não era feio. Era talvez bonito. Tinha um perfil semelhante ao do bárbaro antigo.
Quieto, parecia um Dácio da coluna trajana. As orelhas eram pequenas,
delicadas, lisas, de uma admirável forma acústica. Tinha entre os olhos a
soberba ruga vertical do homem audacioso e perseverante. Caíam-lhe os dois
cantos da boca; a testa era de uma curva nobre e serena; o olhar saía-lhe firme
de dentro da pálpebra franca, posto que ele tivesse aquele piscar de olhos que
os pescadores adquirem com a reverberação das vagas. O riso era pueril e
delicioso. Não havia marfim mais alvo que os seus dentes. Entretanto, Gilliatt,
tisnado pelo sol, era quase negro. Não se afronta impunemente o oceano, a
tempestade e a noite; aos trinta anos, mostrava 45. Tinha a sombria máscara do
vento e do mar.
Puseram-lhe
a alcunha de Finório.
Diz
uma fábula da Índia: “Um dia Brama perguntou à Força: ‘Quem é mais forte que
tu?’ A Força respondeu: ‘É a Astúcia’” Diz um provérbio chinês: “Quanto não
poderia o leão, se fosse macaco?”
Gilliatt
não era nem leão nem macaco; mas as coisas que ele fazia apoiavam o provérbio
chinês e a fábula indiana. De estatura comum e força ordinária, Gilliatt, tão
inventiva e poderosa era a sua destreza, conseguia levantar fardos de gigante e
realizar prodígios de atleta.
Era
um pouco ginasta; servia-se tanto da mão direita como da esquerda. Não caçava,
pescava. Poupava os pássaros, não os peixes. Ai dos que são mudos!
Era
nadador excelente.
A
solidão faz homens de talento ou idiotas. Gilliatt tinha os dois aspectos. Às
vezes mostrava o ar espantado, de que falamos, e dissera-se um bruto.
Outras vezes mostrava uma certa profundidade no olhar. A antiga Caldéia teve
homens assim: a certas horas, a opacidade do pastor tornava-se transparente e
deixava ver o mago.
Em
suma, era apenas um pobre homem sabendo ler e escrever. É provável que estivesse
no limite que separa o sonhador do pensador. O pensador impõe, o sonhador
obedece. A solidão domina os ânimos símplices, complica-os, enche-os de horror
sagrado. A sombra em que entrava o espírito de Gilliatt compunha-se, em partes
quase iguais, de dois elementos, obscuros ambos, mas diferentes; dentro dele, a
ignorância — enfermidade; fora dele, o mistério — imensidade.
À
força de trepar aos rochedos, de escalar os declives, de navegar no
arquipélago, qualquer que fosse o tempo, de manobrar a primeira embarcação que
aparecesse, de arriscar-se dia e noite nos canais mais difíceis, tornou-se, sem
tirar lucro disso, e só por fantasia e satisfação, um admirável homem do mar.
Nasceu
piloto. O verdadeiro piloto é o marinheiro que navega mais no fundo que na
superfície. A vaga é um problema exterior, continuamente complicado pela
configuração submarina dos lugares em que sulca o navio. Parecia, ao ver
Gilliatt vogar nos baixios e através dos arrecifes do arquipélago normando, que
ele tinha debaixo da abóbada do crânio um mapa do fundo do mar. Sabia tudo e
afrontava tudo.
Conhecia
as balizas melhor do que os corvos-marinhos que lá se vão empoleirar. As
diferenças imperceptíveis que distinguem as quatro balizas do Creux, do
Alligande, de Tremies e da Sardrette eram perfeitamente claras para ele, ainda
no meio de nevoeiro. Não hesitava sobre a estaca de cabeça oval, de Anfré, nem
sobre o chuço tridente, de Rousse, nem a bola branca, de Corbette, nem a bola
preta, de Longue-Pierre, e não havia temer que confundisse a cruz de Gubeau com
a espada fincada no chão, de Platte, nem a baliza-martelo, de Barbées, com a
baliza cauda de andorinha, de Moulinet.
Mostrou
singularmente a sua rara ciência de marítimo num dia em que houve em Guernesey
uma dessas justas que se chamam regatas.
A
questão era esta: ir só em uma embarcação de quatro velas; levá-la de
Saint-Sampson à ilha de Herm, distante 1 légua, e trazê-la de novo de Herm a
Saint-Sampson. Manobrar sozinho um barco de quatro velas, não há pescador que o
não faça, e a diferença não é grande; mas eis o que agravava o caso:
primeiramente, a embarcação era uma dessas chalupas de outro tempo, com grande
bojo, à moda de Roterdão, que os marinheiros do século passado apelidavam panças
holandesas. Acha-se ainda algumas vezes no mar essa velha construção da
Holanda, bojuda e chata, tendo a bombordo e a estibordo duas asas que se vão
abatendo alternadamente, conforme o vento, e suprem a quilha. A segunda
dificuldade era a volta de Herm, volta complicada por um pesado lastro de
pedras.
O
prêmio da justa era a chalupa. De antemão estava dada ao vencedor. A pança
servira de barco-piloto; o piloto que navegara nela durante vinte anos era o
mais robusto marinheiro da Mancha; quando morreu não houve ninguém que quisesse
governar o barco e decidiram fazer dele um prêmio de regata. A pança, embora
não tivesse coberta, tinha qualidades boas e podia tentar um manobrista. Era
mastreada na frente, o que aumentava a força de tração do velame. Outra
vantagem, o mastro não impedia a carga. Era uma concha sólida; pesada, mas
vasta, e suportando bem o mar. Houve empenho em disputá-la; a luta era rude,
mas o prêmio era magnífico. Apresentaram-se sete ou oito pescadores, os mais
vigorosos da ilha. Tentaram um por um; nenhum deles pôde ir a Herm. O último
que lutou era conhecido por ter passado a remos, com tempo mau, o terrível
redemoinho que há entre Serk e Brecq-Hou. Escorrendo em suor, trouxe ele a
pança e disse: — É impossível. — Foi então que Gilliatt entrou no barco;
empunhou primeiramente o remo, e depois a grande escota, e fez-se ao largo.
Depois, sem atar a escota, o que seria imprudência, e sem largá-la, o que lhe
dava o domínio da vela grande, deixando a escota rolar à feição do vento sem
descair, segurou com a mão esquerda a cana do leme. Dentro de três quartos de
hora estava em Herm. Três horas depois, posto que soprasse então um forte vento
do sul, atravessando a barra, a pança, governada por Gilliatt, entrava em
Saint-Sampson, com o carregamento de pedras. Gilliatt trouxe, por luxo e
bravata, além do carregamento, um pequeno canhão de bronze de Herm, com que a
gente da ilha salvava todos os anos, a 5 de novembro, em regozijo pela morte de
Guy Fawkes.
Guy
Fawkes, digamo-lo de passagem, morreu há 260 anos; foi uma grande satisfação.
Gilliatt,
assim carregado e estafado, embora trouxesse o canhão na barca, e o vento sul
na vela, voltou a Saint-Sampson.
Vendo
isto, Mess Lethierry exclamou: — Ora, aqui está um marinheiro atrevido!
E
estendeu a mão a Gilliatt.
Tornaremos
a falar de Mess Lethierry.
A
pança foi entregue a Gilliatt.
Esta
aventura não lhe destruiu a alcunha de Finório.
Algumas
pessoas declararam que a coisa não era para admirar, visto que Gilliatt
escondera no barco um galho de nespereira silvestre. Mas ninguém pôde provar
isso.
Desde
esse dia Gilliatt não teve outra embarcação. Naquela pesada chalupa é que ele
ia à pesca. Amarrava-a no excelente ancoradourozinho que tinha só para seu uso,
debaixo do muro da casa mal-assombrada. Ao cair da noite, atirava a rede às
costas, atravessava o jardim, galgava o parapeito de pedras secas, rolava de
rochedo em rochedo, e saltava na barca. Daí fazia-se ao mar.
Pescava
muito peixe, mas afirmava-se que o galho de nespereira estava sempre atado à
chalupa. Ninguém o viu nunca, mas toda a gente acreditava.
Não
vendia, dava o peixe que lhe sobrava.
Os
pobres aceitavam o peixe, sem deixarem de lhe querer mal por causa do ramo
embruxado. Não se deve trapacear com o mar.
Era
pescador, mas não era só isso. Tinha aprendido, por instinto ou para
distrair-se, três ou quatro ofícios. Era marceneiro, ferreiro, fabricante de
carros, calafate, e até um pouco mecânico. Ninguém consertava uma roda como
ele. Fabricava, de um modo especial, todos os seus instrumentos de pesca. Tinha
em um canto da casa uma pequena forja e uma bigorna, e, não tendo a chalupa
mais que uma âncora, fez-lhe outra, ele só. Excelente âncora era essa; a argola
tinha a força requerida, e Gilliatt, sem que ninguém lho ensinasse, achou a
dimensão exata que devia ter o cepo da âncora para que ela não voltasse.
Substituiu
com toda a paciência os pregos das bordas por cavilhas, tornando assim
impossível a ferrugem.
Deste
modo aumentou muito as boas qualidades da pança. Aproveitava-se dela para ir de
quando em quando passar um ou dois meses em alguma ilhota solitária como
Chousey ou Casquets. Dizia-se então: “Olhem, Gilliatt está fora”. Ninguém se
incomodava por isso.
CAPÍTULO VII
CASA EMBRUXADA, MORADOR VISIONÁRIO
Gilliatt
era o homem do sonho. Vinham daí as suas audácias e as suas hesitações. Tinha
idéias propriamente suas.
Havia
talvez nele a ligação do alucinado e do iluminado. A alucinação entra na cabeça
de um campônio como Martin, do mesmo modo que na cabeça de um rei como Henrique
IV. O Desconhecido faz surpresas ao espírito do homem. Rasga-se bruscamente a
sombra, deixa ver o invisível; depois fecha-se. Tais visões são às vezes
transfiguradoras; de um condutor de camelos faz Maomé, de uma cabreira faz
Joana d’Arc. A solidão desprende uma certa quantidade de desvario sublime. É o
fumo da sarça ardente. Resulta daí um misterioso estremecer de idéias: o doutor
dilata-se até o vidente, o poeta até o profeta; resulta Horeb, Cédron, Ombos, a
embriaguez do louro mastigado da Castália, as revelações do mês Busion; resulta
Peléia em Dodona, Femônoe em Delfos, Trofônio em Lebadéia, Ezequiel no Kebar,
Jerônimo na Tebaida. Na maior parte dos casos o estado visionário abate o
homem, e o embrutece. O embrutecimento sagrado existe. O faquir carrega a sua
visão, como o habitante alpino a sua papeira. Lutero falando aos diabos no
celeiro de Wurtemberg, Pascal tapando o inferno com o biombo de seu gabinete, o
obi negro, dialogando com o deus branco chamado Bossum, é o mesmo fenômeno
diversamente produzido, segundo a força e a dimensão de cada cérebro. Lutero e
Pascal são e ficam sendo grandes; o obi negro é imbecil.
Gilliatt
não era tanto, nem tão pouco. Era um pensativo. Nada mais. Contemplava a
natureza de um modo singular.
Tinha
visto algumas vezes, na água do mar, completamente límpida, animais
inesperados, de grandes dimensões, de formas diversas, os quais, fora da água,
assemelhavam-se a cristal mole, e, tornados à água, confundiam-se com ela, pela
identidade de transparência e de cor; disto concluía ele que, se a água era
habitada por transparências vivas, bem podia ser que o ar fosse habitado por
transparências igualmente vivas. Os pássaros não são os habitantes, são os
anfíbios do ar. Gilliatt não acreditava no ar deserto. Dizia ele: se o mar está
cheio de criaturas, por que motivo a atmosfera será vazia? Criaturas cor do ar
podem escapar aos nossos olhos por causa da luz; quem nos prova que essas
criaturas não existem? A analogia indica que o ar deve ter os seus peixes, como
o mar; os peixes do ar serão talvez diáfanos, benefício da providência
criadora, tanto a nosso favor, como a favor deles; deixando passar a luz
através da sua forma, e não fazendo sombra, ficam ignorados de nós, e nada
poderemos saber. Gilliatt imaginava que, se se pudesse esvaziar a atmosfera,
pescando-se no ar como num tanque, achar-se-ia uma porção de criaturas
surpreendentes. E, acrescentava ele, na sua cisma, muitas coisas se
explicariam.
A
cisma, que é o pensamento no estado nebuloso, confina com o sono e preocupa-se
a respeito dele, como de sua própria fronteira. O ar habitado por
transparências vivas seria o começo do Desconhecido; além abre-se a vasta porta
do possível. Outros seres e outros fatos. Nada sobrenatural; mas a continuação
oculta da natureza infinita. Gilliatt, no ócio laborioso que compunha a sua
existência, era um observador estranho e fantástico. Chegava a observar o sono.
O sono está em contato com o possível, que também chamamos o inverossímil. O
mundo noturno é um mundo. A noite é um universo. O organismo material humano,
sobre o qual pesa uma coluna atmosférica de 15 léguas de altura, chega à noite
fatigado, cai de fraqueza, deita-se, repousa; fecham-se os olhos da carne;
então, naquela cabeça adormecida, menos inerte do que se crê, abrem-se outros
olhos, aparece o Desconhecido. As coisas sombrias do mundo ignorado tornam-se
vizinhas do homem, ou porque haja verdadeira comunicação, ou porque as
distâncias do abismo tenham crescimento visionário; parece que as criaturas
invisíveis do espaço vêm contemplar-nos curiosas a respeito da criatura da
terra; uma criação fantasma sobe ou desce para nós, no meio de um crepúsculo;
ante a nossa contemplação espectral, uma vida que não é a nossa agrega-se e
dissolve-se, composta de nós mesmos e de um elemento estranho; e aquele que
dorme, nem completo vidente, nem completo inconsciente, entrevê as animalidades
estranhas, as vegetações extraordinárias, as cores lívidas, terríveis ou
risonhas, as larvas, as máscaras, os rostos, as hidras, as confusões, os luares
sem lua, as obscuras decomposições do prodígio, o crescer e o decrescer no meio
da espessura turvada, a flutuação de formas nas trevas, todo esse mistério que
chamamos sonho, e que não é mais do que a aproximação de uma realidade
invisível. O sonho é o aquário da noite.
Assim
sonhava Gilliatt.
CAPÍTULO VIII
A CADEIRA GILD-HOLM ‘UR
Quem
procurasse hoje a casa de Gilliatt não a encontraria, nem o jardim, nem a
enseada onde ele guardava a chalupa. A casa mal-assombrada já não existe. A
península onde essa casa estava edificada caiu à picareta dos demolidores, e
foi conduzida, às carradas, para os navios dos alborcadores de rochedos e
comerciantes de granito. A península fez-se cais, igreja e palácios na capital.
Toda aquela crista de rochedos partiu há muito para Londres.
Aqueles
prolongamentos de rochas no mar, com aberturas e recortes, são verdadeiras
cadeias de pequenas montanhas; vendo-as, recebe-se a mesma impressão que teria
um gigante contemplando as cordilheiras. O idioma local chama-os bancos. Há os
de diversas figuras. Uns assemelham-se a uma espinha dorsal, cada rochedo é uma
vértebra; outros a uma espinha de peixe; outros a um crocodilo bebendo água.
Na
extremidade da península da casa mal-assombrada havia uma grande rocha, que os
pescadores do Hommet chamavam Corne de la Bête. Essa rocha, espécie de
pirâmide, assemelhava-se, posto que menos elevada, ao Pináculo de Jersey. Nas
marés cheias, o mar separava-a da península e a Corne de la Bête ficava
isolada. Nas vazantes ia-se até lá por um istmo de rochas praticáveis. A
curiosidade do rochedo era, do lado do mar, uma espécie de cadeira natural
cavada pelas águas e polida pela chuva. Era pérfida a tal cadeira. A gente ia
insensivelmente arrastada até ali pela beleza da vista; parava por amor da
perspectiva, como se diz em Guernesey; o encanto dos grandes horizontes
retinha lá o observador curioso.
A
cadeira oferecia-se logo aos olhos dele; era uma espécie de nicho na fachada a
pique do rochedo; trepar àquele nicho era coisa fácil; o mar que o talhara
tinha feito embaixo uma espécie de escada de pedras chatas, comodamente
dispostas; o abismo tem destas atenções, desconfia sempre da sua cortesia; a
cadeira tentava, a gente subia e assentava-se; sentia-se a gosto; tinha por
assento o granito gasto e arredondado pela escuma, e por braços duas
anfratuosidades que pareciam feitas de propósito; por encosto toda a alta
muralha vertical do rochedo que a gente admirava sem pensar na impossibilidade
de escalá-la; era simples esquecer-se sentado naquela poltrona; descobria-se
todo o mar, viam-se ao longe os navios entrar e sair, podia-se acompanhar com
os olhos uma vela até mergulhar-se além dos Casquets, sobre a rotundidade do
oceano; pasmava-se, olhava-se, gozava-se; sentia-se o afago da brisa e do mar;
há em Caiena um vespertílio, que adormece a gente na sombra com um suave e
tenebroso agitar de asas; o vento é esse morcego invisível; quando não devasta,
faz adormecer. Contemplava-se o mar; ouvia-se o vento, até que vinha o letargo
do êxtase. Quando os olhos se enchem de um excesso de beleza e de luz,
fechá-los é voluptuosidade. Acordava-se de súbito. Era tarde. A maré crescera a
pouco e pouco. A água cingia o rochedo.
Estava-se
perdido.
Tremendo
bloqueio é o mar que sobe!
A
maré cresce insensivelmente ao princípio, depois com violência. Chegando às
rochas, encoleriza-se, escuma. Nem sempre se pode nadar junto aos cachopos.
Excelentes nadadores morreram afogados naquele lugar.
Em
certos pontos, a certas horas, contemplar o mar é sorver um veneno. E o que
acontece, às vezes, olhando para uma mulher.
Os
antiquíssimos habitantes de Guernesey chamavam outrora àquele nicho talhado na
rocha pela vaga a Cadeira Gild-Holm-‘Ur ou Kidormur. Palavra
céltica, dizem, não entendida pelos que sabem céltico, e entendida pelos que sabem
francês. Quem-dorme-morre. (Qui-dort-ineurt.) Tal é a tradução
rústica. Pode-se escolher entre esta tradução Quem-dorme-morre e a
tradução dada em 1819, creio eu, no Armoricano, por Mr. Athenas. Segundo
este conhecedor da língua céltica, Gild-Holm-‘Ur quer dizer Alta-dos-bandos-de-pássaros.
Há
em Aurigny outra cadeira deste gênero que se chama Cadeira do Frade,
também arranjada pelo mar, e com uma saliência de pedra ajustada tão a
propósito que se pode dizer que o mar teve a complacência de pôr um tamborete
debaixo dos nossos pés.
Nas
marés cheias, não se podia ver a Cadeira Gild-Holm-‘Ur. A água cobria-a
inteiramente.
A
Cadeira Gild-Holm-‘Ur era vizinha da casa mal-assombrada. Gilliatt ia lá
sentar-se muitas vezes. Meditava? Não. Já o dissemos, Gilliatt sonhava. Não se
deixava surpreender pela maré.
LIVRO SEGUNDO
MESS LETHIERRY
CAPÍTULO PRIMEIRO
VIDA AGITADA E CONSCIÊNCIA TRANQUILA
Mess
Lethierry, o homem notável de Saint-Sampson, era um marinheiro terrível. Tinha
navegado muito. Foi grumete, gajeiro, timoneiro, contramestre, mestre de
equipagem, piloto, arrais. Agora era armador. Ninguém conhecia o mar como ele.
Era intrépido para salvar gente. Quando havia temporal, Mess Lethierry ia
passear à praia, com os olhos no horizonte. Que é aquilo lá ao longe? É alguém
que está em perigo. É um barco de Weymouth, ou de Aurigny, ou de Courseulle, é
o iate de um lorde, um inglês, um francês, um pobre, um rico, é o diabo, fosse
quem fosse, ele saltava dentro da lancha, chamava dois ou três homens valentes,
dispensava-os quando não tinha, equipava ele só, desatava a amarra, travava do
remo, fazia-se ao largo, subia e descia nas cavas das ondas, mergulhava no
furacão, ia ao perigo. Viam-no assim de longe, no meio das lufadas do vento, de
pé sobre a embarcação, gotejante de chuva, confundido com os relâmpagos, face
de leão e juba de espuma. Passava assim às vezes um dia inteiro no perigo, e
nas vagas à saraiva e ao vento, costeando os navios que soçobravam, salvando
homens, salvando cargas, disputando com a tempestade. Voltava à noite para
casa, e tecia um par de meias.
Passou
esta vida cinquenta anos, desde os dez até os sessenta, enquanto foi moço. Aos
sessenta anos, viu que já não podia levantar com um braço a bigorna da forja de
Varclin; pesava aquela bigorna 300 libras; foi atacado repentinamente de
reumatismo. Teve de deixar o mar. Passou da idade heroica à idade patriarcal.
Já não era mais que um bonachão.
Mess
Lethierry alcançou a um tempo o reumatismo e a abastança. Esses dois produtos
do trabalho acompanhavam-se voluntariamente. Quem chega a ser rico, fica
inutilizado. É a coroa da vida.
Diz-se
então: vamos gozar agora.
Nas
ilhas como Guernesey, a população é composta de homens que passaram a vida a
andar à roda do campo, e de homens que passaram a vida a viajar à roda do
mundo. São duas espécies de lavradores, uns da terra, outros do mar. Mess
Lethierry era dos últimos. Conhecia, porém, a terra. Tinha trabalhado muito.
Viajara no continente. Foi algum tempo carpinteiro de navio em Rochefort,
depois em Cette.
Falamos
nas viagens à roda do mundo; Mess Lethierry viajou a França toda como
carpinteiro. Trabalhou nos aparelhos para esgoto das salinas de Franche-Comté.
Aquele honrado homem teve uma vida de aventureiro. Na França aprendeu a ler, a pensar,
a querer. Fez tudo, e de quanto fez extraiu a probidade. O fundo da sua
natureza era o marinheiro. A água lhe pertencia. “Os peixes estão em minha
casa”, dizia ele. Em suma, toda a sua existência, com exceção de dois ou três
anos, foi consagrada ao oceano; “atirada à água”, dizia ele. Navegara nos
grandes mares, no Atlântico e no Pacífico; mas preferia a Mancha. “Aquele é que
é rude”, exclamava ele com amor. Nasceu ali, ali queria morrer. Depois de ter
feito duas ou três vezes a volta do mundo, e sabendo o que devia escolher,
voltou a Guernesey, e não se mexeu dali. As suas viagens, então, eram Granville
e Saint-Malo.
Mess
Lethierry era guernesiano, isto é, normando, inglês, francês. Tinha essa pátria
quádrupla, imersa e como que afogada na sua grande pátria, o oceano. Durante a
sua vida, e em toda parte, conservou os costumes de pescador normando.
Isso,
porém, não tolhia que ele abrisse de quando em quando um alfarrábio, gostasse
de ler um livro, de saber os nomes dos filósofos e poetas, e taramelar em
vasconço um pouquinho de cada língua.
CAPÍTULO II
UMA PREFERÊNCIA DE MESS LETHIERRY
Gilliatt
era um selvagem. Mess Lethierry era outro.
Este,
porém, era um selvagem elegante.
Era
exigente a respeito de mãos de mulheres.
Ainda
moço, quase menino, estando entre marinheiro e grumete, ouviu dizer ao bailio
de Suffren: “Bonita rapariga, mas que grandes mãos vermelhas que ela tem!” Um
dito de almirante impõe, em qualquer assunto que seja. Acima de um oráculo está
uma senha. A exclamação do bailio de Suffren fez com que Mess Lethierry se
tornasse delicado e exigente acerca de mãos alvas. A dele era uma larga
espátula, escura na cor; na agilidade era uma clava, nas carícias uma torquês;
quebrava um seixo com um soco.
Não
era casado. Não quis ou não encontrou mulher. Naturalmente, o marinheiro queria
mãos de duquesa. Não se encontram mãos dessas nas pescadoras de Port-Bail.
Conta-se
entretanto que em Rochefort (Charente) achou ele um dia uma grisette que
realizava o seu ideal. Linda moça e lindas mãos. Detraía e arranhava.
Afrontá-la era perigoso. As suas unhas, extremamente asseadas, tornavam-se
garras destemidas, quando era necessário. Tão belas unhas encantaram Mess
Lethierry; mas depois, receando que viesse a perder a autoridade sobre a amante,
resolveu não levar aquele namorico à presença do senhor maire.
De
outra feita, em Aurigny, gostou de uma rapariga. Já cuidava dos esponsais,
quando um residente do lugar lhe disse: “Dou-lhe os meus parabéns. Leva uma boa
esterqueira”. Lethierry pediu explicações deste elogio. Em Aurigny há uma moda.
Apanha-se esterco de vaca e deita-se às paredes. Depois de seco, cai o esterco
e serve para aquecer a gente. Ninguém casa com uma rapariga, senão quando é boa
esterqueira. Esta habilidade afugentou Mess Lethierry.
Demais,
em assunto de amor ou namoro, tinha ele uma boa filosofia rústica, uma ciência
de marinheiro: apanhado sempre, encadeado nunca. Lethierry gabava-se de ter-se
deixado vencer sempre pela vasquinha, no tempo da sua mocidade. O que
hoje se chama crinolina chamava-se, então, vasquinha. Significa mais e menos
que uma mulher.
Os
rudes marinheiros do arquipélago normando são inteligentes. Quase todos sabem
ler. Vêem-se, aos domingos, rapazitos de oito anos, assentados em um grande
rolo de cabos, com um livro na mão. Os marinheiros normandos foram sempre
sardônicos, e sabem dizer coisas chistosas. Foi um deles, o atrevido piloto
Queripel, quem atirou a Montgomery, refugiado em Jersey depois da funesta
lançada contra Henrique II, esta apóstrofe: “Cabeça doida feriu a cabeça
vazia”. Outro marinheiro, por nome Touzeau, arrais em Saint-Brelade, fez o
trocadilho filosófico atribuído ao Bispo Camus: “Aprés la mort les papes
deviennent papillons et les sires deviennent cirons” (Depois da morte
tornam-se os papas borboletas, e os reis ouçãos.)
CAPÍTULO III
A VELHA LÍNGUA DO MAR
Os
marinheiros das Channel-Islands são puros gauleses. Estas ilhas, que se vão
fazendo inglesas, conservaram-se muito tempo autóctones. O camponês de Serk
fala a língua de Luís XIV.
Há
quarenta anos, achava-se ainda na boca dos marinheiros de Jersey e de Aurigny o
idioma marítimo clássico. Fazia crer que estávamos em plena marinha do século
XVII. Um arqueólogo especialista poderia ir estudar ali a antiga linguagem de
manobra e de batalha esbravejada por Jean Bart naquele porta-voz que aterrava o
Almirante Hidde.
O
vocabulário marítimo dos nossos pais, quase inteiramente renovado hoje, era
ainda usado em Guernesey, em 1820. O navio que suporta o vento era bon
boulinier (bom de bolina); dizia-se do navio que se afeiçoa ao vento, por
si mesmo, apesar das velas de proa e do leme, vaisseau ardent (navio que
se aguça); entrar em movimento era prendre aire (tomar o vento); pôr-se
à capa era capeyer (capear); apanhar o vento por cima era faire
chapelle (tocar em vento); aguentar bem sobre a amarra era faire teste;
estar em confusão a bordo era être en pantenne; ter o vento nas velas
era porter-pain (levar em cheio).
Hoje
nada disto se diz. Diz-se hoje louvoyer (bolinar); dizia-se leauvoyer;
diz-se naviguer (navegar), dizia-se nager; diz-se virer vent
devant (virar por d’avante), dizia-se vidonner vent devant; diz-se aller
de l’avant (seguir avante), dizia-se tailler de l’avant; diz-se tirer
d’accord (alar à uma), dizia-se haller d’accord; diz-se déraper
(arrancar o ferro), dizia-se déplanter; diz-se embraquer (tesar),
dizia-se abraquer; diz-se taquets (cunhas), dizia-se billons;
diz-se burins (passadores), dizia-se tappes; diz-se balancines
(amantilhos), dizia-se valancines; diz-se tribord (estibordo),
dizia-se stribord; diz-se les hommes de quart à bâbord (homens de
quarto a bombordo), dizia-se les basbourdis.
Tourville escrevia
a Hocquincourt: Nous avons singlé (singramos). Em vez de la rafale (a lufada), le
raffal; em vez de bossoir (turcos), boussoir; em vez de drosse
(bossa), drousse; em vez de loffer (arribar), faire une olofée;
em vez de elonger (alongar), alonger; em vez de forte brise
(vento fresco), survent; em vez de sout (paiol), fosse; em
vez de jouail (cepo de âncora), jas; tal era, no começo deste
século, a língua de bordo nas ilhas da Mancha. Ouvindo falar um marinheiro de
Jersey, Ango ficaria abalado. Enquanto no resto do mundo as velas faseyaint
(panejavam), barbeyaient nas ilhas da Mancha. Saute-de-vent
(cambar o vento) era follevente. Só ali se empregavam os dois modos
góticos de amarração, a valturre e a portuguesa. Só ali se davam ordens destas:
Tour-et-choque! — Bosse et Bitte! — Já um marinheiro de Granville
dizia le clan (o gorne); e ainda o marinheiro de Saint-Aubin ou de
Saint-Sampson dizia le canal de pouliot. O que era bout-d’alonge
(postura) em Saint-Malo, era em Saint-Hélier oreille d’âne. Mess
Lethierry, como o Duque de Vivonne, chamava o tosado de convés la tonture.
Foi
com este idioma extravagante que Duquesne bateu Ruyter, que Duguay-Trouin bateu
Wasnaer, e Tourville em 1681 atravessou em pleno dia a primeira galera que
bombardeou Argel. Hoje é língua morta. A gíria do mar é outra. Duperré não
poderia entender Suffren.
Não
menos se transformou a língua dos sinais; e há grande distância entre as
flâmulas encarnada, branca, azul e amarela de Labourquedonnaye e os dezoito
pavilhões de hoje, arvorados dois a dois, três a três e quatro a quatro, dão
para as necessidades da combinação distante, 70.000 combinações, suprem tudo,
e, por assim dizer, preveem o imprevisto.
CAPÍTULO IV
VULNERABILIDADE POR AMOR
Mess
Lethierry tinha o coração nas mãos; mãos largas e coração grande. O defeito
dele era a admirável qualidade da confiança. Tinha uma maneira especial de
contrair uma obrigação; era solene: “Dou a minha palavra de honra a Deus”. Dito
isto, cumpria a promessa. Acreditava em Deus, e nada mais. Ia poucas vezes à
igreja, e isso mesmo, por cortesia. No mar, era supersticioso.
Nunca
houve, porém, tempestade que o fizesse recuar; é que ele era pouco acessível à
contradição. Não a tolerava, nem num homem, nem no oceano. Queria ser
obedecido; tanto pior para o mar se resistia; tinha de lutar com ele. Mess
Lethierry não cedia nunca. Vaga que se empinasse, vizinho que contendesse, nada
lhe detinha a mão. O que dizia estava dito, o que planeava estava feito. Não se
curvava, nem diante de uma objeção, nem diante de uma tempestade. Não,
para ele, era palavra que não existia, nem na boca de um homem, nem no ribombo de
uma nuvem. Passava adiante. Não consentia que se lhe recusasse nada. Daí vinha
a sua pertinácia na vida e a sua intrepidez no oceano.
Era
ele próprio quem temperava a sua sopa de peixe; sabia que porção de sal,
pimenta e ervas era preciso, e gostava tanto de fazê-la como de comê-la.
Criatura
que um riso transfigura, e um casaco embrutece, assemelhando-se, com os cabelos
soltos, a Jean Bart, e, com o chapéu redondo, a Jocrisse, acanhado na cidade,
estranho e temível no mar, espádua de carregador, sem imprecações, quase sem
cólera, voz doce e meiga que o porta-voz transforma em trovão, campônio que leu
a Enciclopédia, guernesiano que viu a revolução, ignorante instruído, ermo de
carolice, dado às visões, mais fé na Dama Branca que na Santa Virgem, lógica de
ventoinha, vontade de Cristóvão Colombo, um tanto de touro e um tanto de
criança, nariz quase rombo, faces grossas, boca com todos os dentes, rosto
enrugado, cara que parece ter sido feita pelo mar, beijada pelos ventos durante
quarenta anos, ar de tempestade na fronte, carnação de rocha em pleno mar; põe
agora um olhar bom neste rosto agreste, e terás Mess Lethierry.
Mess
Lethierry tinha dois amores: Durande e Déruchette.
LIVRO TERCEIRO
DURANDE E DÉRUCHETTE
CAPÍTULO PRIMEIRO
GARRULICE E EFLÚVIOS
O
corpo humano é talvez uma simples aparência, escondendo a nossa realidade, e
condensando-se sobre a nossa luz ou sobre a nossa sombra. A realidade é a alma.
A bem dizer, o rosto é uma máscara. O verdadeiro homem é o que está debaixo do
homem. Mais de uma surpresa haveria se se pudesse vê-lo agachado e escondido
debaixo da ilusão que se chama carne. O erro comum é ver no ente exterior um
ente real. Tal criaturinha, por exemplo, se pudéssemos vê-la como realmente é,
em vez de moça, mostrar-se-ia pássaro.
Pássaro
com forma de moça, que há aí de mais delicado? Imagina que a tens em casa.
Supõe que é Déruchette. Deliciosa criatura! Dá vontade de dizer: “Bom dia,
mademoiselle alvéloa”. Não se lhe vêem as asas, mas ouve-se-lhe o gorjeio.
Canta às vezes. Na tagarelice está abaixo do homem; no canto, está acima dele.
Tem mistérios aquele canto; uma virgem é o invólucro de um anjo. Feita a
mulher, desaparece o anjo; volta, porém, depois trazendo uma alma de criança à
mãe. Esperando a vida, aquela que há de ser mãe algum dia, conserva-se muito
tempo criança, a menina persiste na moça; é uma calhandra. Pensa-se, ao vê-la:
que boa que ela é em não bater as asas para ir-se embora!
A
meiga e familiar criatura acomoda-se em casa, de ramo em ramo, isto é, de
quarto em quarto, entra, sai, acerca-se, afasta-se, alisa as penas, ou penteia
os cabelos, faz toda espécie de rumores delicados, murmura um não sei quê de
inefável aos teus ouvidos. Quando ela interroga, responde-se-lhe; interrogada,
gorjeia. Tagarela-se com ela. A tagarelice serve para descansar de falar. Há
uma porção celeste nessa menina. E um pensamento azul misturado ao teu
pensamento negro. Alegras-te por vê-la tão esquiva, tão ligeira, tão fugitiva;
agradeces-lhe a bondade de não ser invisível, ela, que poderia, creio eu, ser
impalpável. Neste mundo o lindo é o necessário. Há mui poucas funções tão
importantes como esta de ser encantadora. Que desespero na floresta se não
houvesse o colibri! Exalar alegrias, irradiar venturas, possuir no meio das
coisas sombrias uma transudação de luz, ser o dourado do destino, a harmonia, a
gentileza, a graça, é favorecer-te. A beleza basta ser bela para fazer bem. Há
criatura que tem consigo a magia de fascinar tudo quanto a rodeia; às vezes nem
ela mesmo o sabe, e é quando o prestígio é mais poderoso; a sua presença
ilumina, o seu contato aquece; se ela passa, ficas contente; se pára, és feliz;
contemplá-la é viver; é a aurora com figura humana; não faz nada, nada que não
seja estar presente, e é quanto basta para edenizar o lar doméstico; de todos
os poros sai-lhe um paraíso; é um êxtase que ela distribui aos outros, sem mais
trabalho que o de respirar ao pé deles. Ter um sorriso que — ninguém sabe a
razão — diminui o peso da cadeia enorme arrastada em comum por todos os viventes,
que queres que te diga? é divino. Déruchette tinha esse sorriso. Mais ainda,
era o próprio sorriso. Há alguma coisa mais parecida que o nosso rosto, é a
nossa fisionomia; e outra mais parecida que a nossa fisionomia, é o nosso
sorriso. Déruchette, risonha, era Déruchette.
É
particularmente sedutor o sangue de Jersey e de Guernesey. As mulheres, as
raparigas, sobretudo, têm uma beleza florida e cândida. É a combinação da
alvura saxônia com a frescura normanda. Faces rosadas e olhos azuis. Falta-lhes
brilho nos olhos. A educação inglesa amortece-os. Serão irresistíveis aqueles
olhos límpidos no dia em que tiverem a profundeza do olhar parisiense. A
parisiense ainda não se fez inglesa, felizmente. Déruchette não era parisiense,
mas também não era guernesiana. Nascera em Saint-Pierre-Port, mas Mess
Lethierry foi quem a educou. Educou-a para ser mimosa, a menina o era.
Déruchette
tinha o olhar indolente e agressivo, sem que o soubesse. Não conhecia talvez o
sentido da palavra amor e fazia com que a gente se apaixonasse por ela. Mas era
sem má intenção. Déruchette nem pensava em casamento. O velho fidalgo emigrado
que fora residir em Saint-Sampson dizia: “Esta rapariga seduz a matar”.
Déruchette
tinha as mais lindas mãozinhas deste mundo, e pés iguais às mãos, quatro
“pezinhos de mosca”, dizia Mess Lethierry. Tinha em si a bondade e a doçura; o
tio Lethierry era toda a sua família e riqueza; o trabalho dela era deixar-se
viver; tinha por talento algumas canções, por ciência a beleza, por espírito a
inocência, por coração a ignorância; tinha a graciosa indolência crioula,
mesclada de travessura e de viveza, a jovialidade traquinas da infância com um
pendor à melancolia, vestuários um pouco insulares, elegantes, mas incorretos,
chapéus de flores todo o ano, fronte ingênua, pescoço flexível e tentador,
cabelos castanhos, pele branca com alguns toques arruivados no verão, boca
grande e sã, e nessa boca o adorável e perigoso esplendor do sorriso. Eis o que
era Déruchette.
Algumas
vezes, à noite, após o pôr-do-sol, no momento em que a noite se mistura com o
mar, à hora em que o crepúsculo dá uma espécie de terror às vagas, via-se
entrar na barra de Saint-Sampson, ao tumulto sinistro das ondas, uma certa
massa informe, uma coisa monstruosa que silvava e cuspia, que roncava como uma
besta e fumegava como um vulcão, uma espécie de hidra babando espuma e
arrastando um nevoeiro, atirando-se sobre a cidade com um horrível movimento de
barbatanas e uma goela donde as chamas irrompiam. Era Durande.
CAPÍTULO II
A ETERNA HISTÓRIA DA UTOPIA
Era
uma prodigiosa novidade o aparecimento de um navio a vapor nas águas da Mancha
em 1822… Toda a costa normanda esteve por muito tempo assombrada. Hoje dez ou
doze vapores cruzam-se em sentido inverso no horizonte do mar, sem atrair os
olhos de ninguém. Quando muito, algum observador especialista distingue, pela
cor da fumaça, se o carvão que consome o navio é de Gales ou de Newcastle.
Passam; é quanto basta. Se partem: “Boa viagem!”; se chegam: “Welcome!”
Não
era tão grande a calma a respeito de tais invenções no primeiro quarto do nosso
século, e estas máquinas fumegantes eram particularmente suspeitas entre os
insulares da Mancha. Neste arquipélago puritano onde a rainha da Inglaterra foi
censurada por violar a Bíblia [1]
narcotizando-se para dar à luz, o navio a vapor teve como primeiro cumprimento
o ser batizado com este nome: Devil-Boat — Navio-Diabo.
A
esses bons pescadores de então, outrora católicos, agora calvinistas, e sempre
beatos, pareceu-lhes aquilo o inferno flutuante. Um pregador da terra tratou da
questão: “Temos nós o direito de fazer trabalhar juntos o fogo e a água que
Deus separou? [2]
Aquele animal de ferro e fogo não era a imagem de Leviatã? Não era isso refazer
o homem, a seu modo, o primitivo caos? Não é a primeira vez que acontece
qualificar a ascensão do progresso de retrogradação ao caos.
“Ideia
louca, erro grosseiro, absurdo”: tal foi o veredicto da Academia das Ciências
consultada por Napoleão no começo deste século, acerca do vapor. Os pescadores
de Saint-Sampson têm desculpa de se acharem, em matéria científica, ao nível
dos geômetras de Paris; e, em matéria religiosa, uma pequena ilha como
Guernesey não tem obrigação de ser mais ilustrada que um grande continente como
a América. Em 1807, quando o primeiro navio de Fulton, patrocinado por
Livingston, provido da máquina de Watt mandada da Inglaterra, e tripulado, além
da equipagem, por dois franceses, somente, André Michaux e outro, fez a sua
primeira viagem de Nova York a Albany, deu-se o caso de acontecer isso no dia
17 de agosto. Esta coincidência deu origem a que o metodismo tomasse a palavra,
e em todas as capelas os pregadores amaldiçoaram a máquina, declarando que o
número dezessete era o total das dez antenas e das sete cabeças da besta do Apocalipse.
Na América invocava-se contra o vapor a besta do Apocalipse; na Europa a besta
do Gênesis. Nisto consistia toda a diferença.
Os
sábios haviam rejeitado o vapor como impossível; os padres, a seu turno,
rejeitavam-no como ímpio. A ciência condenava, a religião anatematizava. Fulton
era uma variante de Lúcifer. Os habitantes simplórios das costas e dos campos
aderiam à reprovação pelo incômodo que lhes causava a novidade. Na presença do
vapor, o ponto de vista religioso era este: a água e o fogo são um divórcio.
Este divórcio é ordenado por Deus. Não se deve desunir o que Deus uniu, nem
unir o que ele desuniu. O ponto de vista do camponês era: isto mete-me medo.
Para
cometer, naquela época remota, a empresa de uma navegação a vapor entre
Guernesey e Saint-Malo, nada menos era preciso que um homem como Mess
Lethierry. Só ele podia concebê-la na qualidade de livre pensador, e realizá-la
na qualidade de marinheiro atrevido. O seu eu francês concebeu a ideia;
o seu eu inglês executou-a.
Em
que ocasião? Digamo-lo.
CAPÍTULO III
RANTAINE
Quarenta
anos antes da época em que se passam os fatos que narramos, havia em um
arrabalde de Paris, entre a Fosse-aux-Loups e a Tombe Issoire, um albergue
suspeito. Era uma casinha isolada e baixa. Morava aí, com a mulher e o filho,
uma espécie de burguês bandido, antigo escrevente de tabelião no Châtelet, e ao
depois ladrão descarado. Já havia fïgurado no tribunal criminal. O apelido da
família era Rantaine. No referido pardieiro, em cima de uma cômoda de mogno, viam-se
duas xícaras de porcelana pintada: em uma delas lia-se em letras douradas o
seguinte dístico: “Lembrança de Amizade”; na outra: “Sinal de Estima”.
A criança vivia ali na lama de parceria com o crime. Como o pai e a mãe
pertenciam à burguesia mediana, o menino aprendia a ler: educavam-no. A mãe,
pálida, quase esfarrapada, dava maquinalmente educação a seu filho: ensinava-o
a soletrar; e interrompia o trabalho, ora para ajudar o marido em alguma
emboscada, ora para entregar-se ao primeiro viandante. Durante esse tempo a Cruz
de Jesus, aberta no lugar em que a deixavam, ficava sobre a mesa, e ao pé
do livro o menino pensativo.
O
pai e a mãe, presos em algum flagrante delito, desapareceram na noite penal. A
criança desapareceu também. Lethierry, em suas excursões, encontrou um
aventureiro como ele, livrou-o, não se sabe de que aperto, prestou-lhe
serviços, afeiçoou-se-lhe, chamou-o a si, levou-o para Guernesey, achou-o
inteligente para a navegação costeira, e deu-lhe sociedade. Era o pequeno
Rantaine feito homem.
Rantaine,
como Lethierry, tinha uma cabeça robusta, espáduas largas e possantes e quadris
de Hércules Farnese. Lethierry e ele tinham o mesmo ar e a mesma aparência;
Rantaine era mais alto. Quem os via, pelas costas, passear ao lado um do outro,
dizia: lá estão os dois irmãos. De frente, o caso era diverso. Havia tanto de
franco em Lethierry, como de reservado em Rantaine. Rantaine era circunspecto.
Rantaine era esgrimista, tocava harmônica, espevitava uma vela com uma bala a
vinte passos, dava um soco magnífico, recitava versos da Henríada, e
adivinhava sonhos. Sabia de cor os Túmulos de São Denis, por Treneuil;
dizia ter tido amizade com o sultão de Calicut — a quem os portugueses chamam
Camorim. Se se pudesse folhear a carteira de lembranças que andava sempre no
bolso dele, ter-se-iam encontrado, entre outras notas, algumas do gênero desta:
“Em Lião, numa das frestas da parede do calabouço de São José, há uma lima
escondida”. Falava com uma lentidão discreta. Dizia-se filho de um cavalheiro
de São Luís. A sua roupa era toda misturada e marcada com iniciais diferentes.
Ninguém mais suscetível em coisas de honra. Batia-se e matava.
A
força servindo de invólucro à astúcia, tal era Rantaine.
A
beleza de um soco aplicado por ele numa feira, sobre uma cabeza de moro,
conquistara-lhe outrora a simpatia de Lethierry.
Suas
aventuras eram completamente ignoradas em Guernesey. Variavam muito. Se os
destinos têm um traje, o destino de Rantaine vestia a moda de arlequim. Tinha
visto o mundo: tinha trabalhado muito. Era um circunavegador. Teve inumeráveis
ofícios. Foi cozinheiro em Madagascar, criador de pássaros em Sumatra, general
em Honolulu, jornalista religioso nas ilhas de Galápagos, poeta em Oomrawuttee
e pedreiro-livre no Haiti. Neste último emprego pronunciara no Grande Goave uma
oração fúnebre de que os jornais locais conservaram este fragmento: “Adeus,
pois, bela alma! na abóbada azulada dos céus onde agora desferes o vôo,
encontrarás sem dúvida o bom Padre Leandro Crameau do Pequeno Goave. Dize-lhe
que, graças a dez anos de esforços gloriosos, terminaste a igreja de
Anse-à-Veau! Adeus! gênio transcendente, maçom modelo!” A máscara de
pedreiro-livre não lhe impedia, como se vê, trazer o nariz católico. A primeira
conciliava-o com os homens do progresso; o segundo com os homens da ordem.
Apregoava-se branco de raça pura, odiava os negros: apesar disso teria admirado
a Soluque. Em Bordeaux, em 1815, foi ele verdet. Naquela época a fumaça
de seu realismo saía-lhe pela cabeça fora, na forma de um imenso penacho
branco. Passava a vida a fazer eclipses, aparecendo, desaparecendo e tornando a
aparecer. Era um velhaco a girar como uma rodinha de fogo. Sabia o turco: em
vez de guilhotinado, dizia neboissé. Fora escravo em Trípoli, na
casa de um thaleb, e aí aprendera o turco à força de bengaladas; tinha
por obrigação ir à noite à porta das mesquitas ler em alta voz diante dos fiéis
o Alcorão, escrito em pranchas de madeira ou em omoplatas de camelo.
Provavelmente era renegado.
Era
capaz de tudo e mais alguma coisa.
Ria
a gargalhadas e enrugava as sobrancelhas, a um tempo. Dizia: “Em política, só
estimo as pessoas inacessíveis às influências”. Dizia: “Sou pelos costumes”.
Dizia: “É preciso repor a pirâmide na base”. Era mais alegre e cordial que
outra coisa. A forma da boca desmentia-lhe o sentido das palavras. As suas
narinas eram antes ventas de animal. Tinha no canto dos olhos uma encruzilhada
de rugas onde toda a sorte de pensamentos obscuros davam entrevista. Aí é que
se podia decifrar o segredo da fisionomia dele. Assemelhavam-se as tais rugas a
uma garra de abutre. O crânio era chato em cima e largo nas têmporas. A orelha
disforme e embrenhada de cabelos parecia dizer: “Não fales ao animal que está
aqui neste antro”.
Rantaine
desapareceu um dia de Guernesey.
O
sócio de Lethierry raspou-se, deixando vazia a caixa da sociedade.
Havia
dinheiro dele na caixa, é certo; mas havia também 50.000 francos de Lethierry.
Lethierry
ganhara uns 100.000 francos em quarenta anos de indústria e de probidade, no seu
ofício de navegador costeiro e carpinteiro de navio; Rantaine levou-lhe metade.
Lethierry,
meio arruinado, não cedeu, e tratou imediatamente de levantar-se. Aos homens de
boa têmpera arruína-se a fortuna, não a coragem. Começava-se então a falar do
vapor. Lethierry teve a ideia de tentar a máquina de Fulton, tão contestada, e
ligar por meio de um vapor o arquipélago normando à França. Jogou tudo nessa ideia.
Aplicou-lhe os restos da fortuna. Seis meses depois da fuga de Rantaine a gente
de Saint-Sampson viu estupefata sair daquele porto um navio deitando fumo, e
produzindo o efeito de um incêndio no mar: foi o primeiro vapor que sulcou as
águas da Mancha.
Aquele
navio, alcunhado Galeota de Lethierry, pelo desdém e ódio de todos, foi
anunciado para fazer a carreira de Guernesey a Saint-Malo.
CAPÍTULO IV
CONTINUAÇÃO DA HISTÓRIA DA UTOPIA
Compreende-se
que a coisa fosse muito mal recebida. Todos os proprietários de navios de
carreira entre a ilha guernesiana e a costa francesa clamaram imediatamente.
Denunciaram aquele atentado feito às Santas Escrituras e ao monopólio. Alguns
templos fulminaram. Um reverendo, por nome Elihu, chamou ao vapor uma libertinagem.
O barco à vela foi declarado ortodoxo. Viu-se distintamente que eram pontas do
diabo as pontas dos bois que o vapor trazia e desembarcava. Durou o protesto um
bom par de dias. Mas a pouco e pouco foram vendo que os tais bois chegavam
menos estafados, e vendiam-se melhor, por ser a carne mais tenra; que também
para os homens eram menores os riscos do mar; que a passagem, menos
dispendiosa, era segura e mais curta; que eram fixas as horas da saída e da
chegada; que o peixe, viajando mais depressa, chegava mais fresco, e que se
podia levar aos mercados franceses as sobras das grandes pescas, tão frequentes
em Guernesey; que a manteiga das admiráveis vacas de Guernesey fazia mais
rapidamente o trajeto no Devil-Boat que nas chalupas à vela, e não
perdia na qualidade, de maneira que afluíam as encomendas de Dinan, de
Saint-Brieuc e de Rennes; finalmente que, graças ao que se chamava Galeota
de Lethierry, havia segurança de viagem, regularidade de comunicação,
tráfego fácil e pronto, aumento de circulação, multiplicação de mercados,
extensão de comércio; em suma, que era preciso aproveitar o Devil-Boat
que violava a Bíblia e enriquecia a ilha. Alguns espíritos fortes arriscaram-se
a aprovar o vapor com certa precaução. O Sr. Landoys, o escrevente, votou ao
navio a sua estima. Era imparcialidade, porque ele não gostava de Lethierry:
primeiro, porque Lethierry era mess, e Landoys era apenas senhor; depois
porque, embora escrevente em Saint-Pierre-Port, Landoys era paroquiano de
Saint-Sampson; ora, na paróquia, só havia dois homens sem preconceitos,
Lethierry e Landoys; o menos que podia acontecer era que um detestasse o outro.
A bordo do mesmo navio distanciam-se duas criaturas.
Contudo,
o Sr. Landoys teve o cavalheirismo de aprovar o vapor. Outras pessoas o
imitaram. Insensivelmente, o fato foi subindo; os fatos são como as marés; e,
com o tempo, com o sucesso continuado e crescente, com a evidência do serviço
prestado, o aumento da comodidade pública, lá veio um dia em que, à exceção de
alguns homens de juízo, toda a gente admirou a Galeota de Lethierry.
Hoje
seria menos admirada. Aquele vapor de há quarenta anos faria sorrir os nossos
atuais construtores. Era uma maravilha disforme, um prodígio raquítico.
Entre
os nossos grandes paquetes transatlânticos de hoje e o navio de rodas e fogo
que Dionísio Papin fez manobrar na Fulde em 1707, não há menor distância que
entre a nau Montebello, de 200 pés de comprimento, 50 de largura, com
uma verga de 115 pés, arqueando 2.000 toneladas, levando 1.100 homens, 120
peças, 10.000 balas e 160 volumes de metralha, deitando 3.300 litros de ferro
por banda e desenrolando ao vento em viagem 5.600 metros de lona, e o dromon
dinamarquês do II século, que se achou cheio de pedras, arcos e clavas, nos
atoleiros de Wester-Satrup, e depositado na municipalidade de Flensburgo.
Cem
anos justos, 1707-1807, separam o primeiro barco de Papin do primeiro navio de
Fulton. A Galeota de Lethierry era decerto um progresso sobre aqueles
dois esboços, mas era esboço também. Nem por isso deixava de ser uma
obra-prima. Todo embrião de ciência tem este duplo aspecto: monstro, como feto;
maravilha, como germe.
CAPÍTULO V
O NAVIO-DIABO
A
Galeota de Lethierry não era mastreada no ponto vélico, e não era isso
defeito, porque é uma das leis da construção naval; demais, sendo o fogo o
propulsor do navio, o velame era simplesmente acessório; um navio de rodas é
quase insensível ao velame que se lhe põe. A Galeota era demasiado curta
e arredondada; grande bochecha e largos quadris; Lethierry não teve a ousadia
de fazê-la mais ligeira. A Galeota tinha alguns dos inconvenientes e das
qualidades da pança: arfava pouco, mas rangia muito. A caixa das rodas era
muito alta. A viga da coberta era maior do que comportava o comprimento. A
máquina, que era massuda, atravancava o navio, e, para torná-lo capaz de um
grande carregamento, foi preciso levantar muito a amurada, o que deu à Galeota,
mais ou menos, o defeito das naus de 74, que só arrasando-as podem navegar e
combater.
Sendo
curta, devia girar depressa, visto que o tempo empregado em uma evolução está
na razão do comprimento do navio; mas o peso tirava-lhe a vantagem que lhe
provinha de ser curta. O pontal era muito largo, o que lhe atrasava a marcha,
porque a resistência da água é proporcional à maior seção imergida e à
velocidade do navio. A proa era vertical, o que não seria defeito hoje, mas naquele
tempo era uso incliná-la uns 45 graus. Todas as curvas do casco estavam bem
emparelhadas, mas não eram suficientemente longas para a obliquidade e
paralelismo com o lume da água, que deve ser rechaçada lateralmente. No mau
tempo, calava muita água, ora na proa, ora na popa, o que mostrava ter vício de
construção no centro de gravidade. Não estando o carregamento no lugar próprio,
por causa do peso da máquina, acontecia que o centro de gravidade passava às
vezes para trás do mastro grande, e então era preciso contar só com o vapor, e
desconfiar da vela grande, porque o efeito da vela grande nesses casos fazia
antes arribar que sustentar o vento. O recurso era, ao aproximar-se do vento,
soltar a grande escota; deste modo o vento fixava-se na proa, pela amurada, e a
vela grande fazia o efeito de uma vela de popa. A manobra era difícil. O leme
era o leme antigo, não de roda como hoje, mas de cana, voltando sobre os eixos
firmados no cadaste, e movido por uma trave horizontal que passava por cima da
cava da culatra.
Tinha
duas faluas suspensas. O navio era de quatro âncoras, a âncora grande, a
segunda âncora, que é a que trabalha, workinganchor, e duas âncoras de
amarra. Essas quatro âncoras, atadas por correntes, eram manobradas, segundo as
ocasiões, pelo grande cabrestante da popa e o pequeno cabrestante da proa.
Tendo apenas duas âncoras de amarra, uma a estibordo; outra a bombordo, o navio
não podia ancorar em cruz, o que o desarmava quando sopravam certos ventos. Mas
neste caso podia usar da segunda âncora. As bóias eram normais, e construídas
de maneira a suportar um cabo da âncora, ficando sempre à flor da água. A
chalupa tinha as dimensões úteis. A novidade do navio é que era, em parte,
aparelhado com correntes; o que não lhe diminuía a mobilidade nem a tenção das
manobras.
A
mastreação, posto que secundária, não era incorreta; era fácil o manejo dos
ovéns. As peças de madeira eram sólidas, mas grosseiras, pois que o vapor não
exige madeiras tão delicadas como exigem as velas. Tinha aquele navio uma velocidade
de 2 léguas por hora. Quando panejava, afeiçoava-se bem ao vento. A Galeota
de Lethierry suportava bem o mar, mas não tinha boa quilha para dividir o
líquido, nem se podia dizer que fosse airosa. Via-se que, em ocasião de perigo,
cachopo ou tromba, não poderia ser bem manobrada. Tinha o ranger de uma coisa
informe. Fazia na água o ruído que fazem as solas novas.
Era
navio de comércio e não de guerra, e por isso mais exclusivamente disposto para
a arrumação das cargas. Admitia poucos passageiros. O transporte do gado
tornava difícil e especial a arrumação das cargas. Punham-se os bois no porão,
o que complicava muito. Hoje os bois ficam no convés. As caixas das rodas do Devil
Boat Lethierry eram pintadas de branco, o casco até o lume da água de vermelho,
e o resto de preto, segundo o uso assaz feio deste século.
Vazio,
calava 7 pés; carregado, 14.
Quanto
à máquina, era poderosa. Tinha a força de um cavalo por 3 toneladas, o que é
quase a força de um rebocador. As rodas estavam bem colocadas, um pouco adiante
do centro de gravidade do navio. A máquina tinha a pressão máxima de 2
atmosferas. Gastava muito carvão. O ponto de apoio era instável, mas
remediava-se, como ainda hoje se faz, por meio de um duplo aparelho alternado
de duas manivelas fixas nas extremidades da árvore de rotação, e dispostas de
maneira que uma estivesse no ponto forte quando a outra estava no ponto inerte.
Toda a máquina repousava em uma só placa fundida; de modo que, mesmo em caso de
grande avaria, nenhum lanço do mar lhe tirava o equilíbrio, e o casco disforme
não podia deslocar a máquina. Para torná-la ainda mais sólida, puseram a
redouça principal perto do cilindro, o que transportava do meio à extremidade o
centro de oscilação do pêndulo. Inventaram-se depois os cilindros oscilantes
que suprimem a redouça antiga; mas naquele tempo parecia que o sistema usado
era a última palavra da mecânica.
A
caldeira era dividida, e tinha a bomba competente. As rodas eram grandes, o que
diminuía a perda de força, e o cano alto, o que aumentava a extração da
fornalha; mas o tamanho das rodas dava azo às vagas, e a altura do cano dava
azo ao vento. Raios de pau, fateixas de ferro, cubos de metal; eis o que eram
as rodas bem construídas (o que admira) podendo ser desmontadas. Havia sempre três
rodízios mergulhados; a velocidade do centro da roda não passava de um sexto da
velocidade do navio; era esse o defeito. Além disso, a trave da manivela era
muito comprida, e o vapor era distribuído no cilindro com demasiado atrito.
Naquele tempo a máquina parecia e era admirável.
Foi
ela feita na França, nas forjas de Bercy. Mess Lethierry delineou-a; o
maquinista que a construiu morreu; de modo que aquela máquina era única e
impossível de ser substituída. Existia o desenhista, mas faltava o construtor.
Custou
a máquina 40.000 francos.
Lethierry
construiu a Galeota na grande estiva coberta que fica ao lado da
primeira torre entre Saint-Pierre-Port e Saint-Sampson. Empregou nessa
construção tudo o que sabia em carpintaria do mar, e mostrou os seus talentos
na construção do costado, cujas costuras eram estreitas e iguais, untadas de sarangousti,
betume da Índia, melhor que alcatrão. O forro estava bem pregado. Para remediar
a rotundidade do casco, ajustou ele um botalós ao gurupés, o que lhe permitia
acrescentar à cevadeira uma cevadeira falsa. No dia do lançamento ao mar, disse
Lethierry: “Estou na água!” E realmente a Galeota foi bem-sucedida.
Por
acaso ou de propósito, a Galeota caiu ao mar no dia 14 de julho. Nesse
dia Lethierry, de pé sobre o convés, entre as duas caixas das rodas, olhou
fixamente para o mar e exclamou: “Agora tu! Os parisienses tomaram a Bastilha;
agora tomamos-te nós!”
A
Galeota de Lethierry fazia, uma vez por semana, a viagem de Guernesey a
Saint-Malo. Partia na quinta-feira e voltava na sexta à tarde, véspera do
mercado, que era no sábado. Era uma massa de madeira mais volumosa que as
maiores chalupas costeiras do arquipélago, e, sendo a sua capacidade na razão
das dimensões, uma só das suas viagens valia por quatro viagens de um cúter
ordinário. Tirava por isso grandes lucros. A reputação de um navio depende da
sua arrumação de cargas, e Lethierry era admirável neste mister. Quando ficou
impossibilitado de trabalhar no mar, ensinou um marinheiro para substituí-lo.
No fim de dois anos, o vapor dava líquidas umas 705 libras esterlinas por ano.
A libra esterlina de Guernesey vale 24 francos, a da Inglaterra 25, e a de
Jersey 26. Estas fantasmagorias são menos fantasmagóricas do que parecem; os
bancos é que lucram com elas.
CAPÍTULO VI
LETHIERRY ENTRA NA GLÓRIA
Prosperava
a Galeota. Mess Lethierry via chegar o dia em que ele seria gentleman.
Em Guernesey não se pode ser gentleman da noite para o dia. Há uma
escala entre o homem e o gentleman; o primeiro degrau é o nome simplesmente,
Pedro, suponhamos; depois, vizinho Pedro; terceiro degrau, pai Pedro; quarto
degrau, Senhor (Sieur) Pedro; quinto degrau, Mess Pedro; último degrau, gentleman
(Monsieur) Pedro.
Esta
escada, que sai da terra, interna-se pelo céu acima. Entra nela toda a
hierarquia inglesa. Eis os degraus mais luminosos; acima de senhor (gentleman)
há esq. (escudeiro), acima de esq., o cavalheiro (sir vitalício), depois
o baronete (sir hereditário), depois o lorde (laird na Escócia), depois
o barão, depois o visconde, depois o conde (earl na Inglaterra, jarl
na Noruega), depois o marquês, depois o duque, depois o par da Inglaterra,
depois o príncipe de sangue real, depois o rei. Esta escada sobe do povo à
burguesia, da burguesia ao baronato, do baronato ao pariato, do pariato à
realeza.
Graças
aos seus triunfos, ao vapor, ao Navio-diabo, Mess Lethierry já era
alguém. Para construir a Galeota teve de pedir dinheiro emprestado;
endividou-se em Bremen e em Saint-Malo, mas ia amortizando a dívida todos os
anos.
Lethierry
comprou fiado, na entrada do porto de Saint-Sampson, uma linda casa de pedra e
cal, novazinha, entre o mar e o jardim; no ângulo estava este nome: Bravées. A
casa, cuja frente fazia parte da muralha do porto, era notável por duas
fileiras de janelas, ao norte, do lado de um cercado cheio de flores, ao sul,
do lado do mar; de modo que era uma casa com duas fachadas, dando uma para as
tempestades, outra para as rosas.
As
fachadas pareciam feitas para os dois moradores: Mess Lethierry e Miss
Déruchette.
Era
popular a casa de Lethierry, porque ele próprio acabou sendo popular. A
popularidade nascia em parte da bondade, da educação e da coragem dele, parte
dos homens que ele salvara de perigos iminentes, em grande parte do bom êxito
da Galeota, e também por ter dado ao porto de Saint-Sampson o privilégio
das partidas e chegadas do vapor. Vendo que decididamente o Devil-Boat
era um bom negócio, Saint-Pierre, capital, reclamou o vapor para si, mas
Lethierry conservou-o para Saint-Sampson. Era a sua cidade natal. “Daqui é que
eu fui lançado ao mar”, dizia ele. Tinha por isso grande popularidade local.
A
qualidade de proprietário e contribuinte fazia dele o que em Guernesey se chama
um unhabitant. Deram-lhe um cargo. O pobre marinheiro galgou cinco
degraus, dos seis que tem a ordem social guernesiana; era mess; estava
quase gentleman, e quem sabe mesmo se não passaria daí? Quem sabe se
algum dia não se havia de ler no almanaque de Guernesey, no capítulo Gentry
and Nobility, esta inscrição inaudita e soberba: Lethierry esq. Mess
Lethierry, porém, desdenhava, ou antes, ignorava o que era a vaidade das
coisas. Sentia-se útil, era a satisfação dele; ser popular comovia-o menos que
ser necessário. Já o dissemos, tinha dois amores, e, por consequência, duas
ambições: Durande e Déruchette.
Fosse
como fosse, Lethierry arriscou-se na loteria do mar, e tirou a sorte grande.
A
sorte grande era Durande navegando.
CAPÍTULO VII
O MESMO PADRINHO E A MESMA PADROEIRA
Depois
de criar o vapor, Lethierry batizou-o, deu-lhe o nome de Durande. Não
lhe daremos daqui em diante senão este nome. Seja-nos lícito igualmente,
qualquer que seja o uso tipográfico, escrever Durande sem ser em grifo,
conformando-nos nisto ao pensamento de Mess Lethierry, para quem Durande era
quase uma pessoa.
Durande
e Déruchette é o mesmo nome. Déruchette é o diminutivo. É muito usado esse
diminutivo no oeste da França.
No
campo, os santos têm muitas vezes o seu nome com todos os diminutivos e
aumentativos. Parece que há muitas pessoas e é só uma. Essa identidade de
padroeiros e padroeiras com diferentes nomes não é rara; Lise, Lisette, Lisa,
Elisa, Isabel, Lisbeth, Betsy, tudo isto é Elisabeth. É provável que Mahout,
Machut, Malo e Magloire sejam o mesmo santo. Mas não fazemos cabedal disso.
Santa
Durande é uma santa de Angoumois e da Charente. Será correto? Isso é lá com os
bolandistas. Correto ou não, esta santa tem muitas igrejas.
Estando
em Rochefort, e sendo ainda rapaz, Lethierry tomou conhecimento com aquela
santa, provavelmente na pessoa de alguma formosa charentesa, talvez a rapariga
das unhas bonitas. Restou-lhe recordação bastante para dar aquele nome às duas
coisas que ele amava; Durande à Galeota, Déruchette à menina.
Lethierry
era pai de uma e tio da outra.
Déruchette
era filha de um irmão que ele teve. Morreram-lhe os pais. Lethierry adotou a
criança e substituiu o pai e a mãe.
Déruchette
não era somente sobrinha, era também afilhada de Lethierry. Foi ele quem a
levou à pia, dando-lhe por padroeira Santa Durande, e por nome Déruchette.
Déruchette,
já o dissemos, nasceu em Saint-Pierre-Port. Estava inscrita no registro da
paróquia.
Enquanto
a sobrinha foi criança e o tio pobre, ninguém se importou com o nome
Déruchette; mas, quando a mocinha chegou a miss e o marinheiro a gentleman,
Déruchette começou a desagradar a todos. Perguntavam a Mess Lethierry:
—
Por que lhe dá esse nome?
—
É um nome assim — respondia ele.
Tentaram
mudar-lhe o nome. Lethierry não quis. Uma senhora da alta sociedade de
Saint-Sampson, mulher de um ferreiro abastado, e que já não trabalhava, disse
um dia a Mess Lethierry:
—
Daqui em diante chamarei Nancy à sua filha.
—
Por que não lhe chamará Lons-le-Saulnier? — disse ele.
A
bela senhora não desistiu e, no dia seguinte, disse-lhe:
—
Decididamente, não queremos que ela se chame Déruchette. Achei um lindo nome:
Marianne.
—
Lindo nome, realmente — disse Mess Lethierry —, mas composto de dois animais
bem ruins, um mari (marido) e um âne (asno).
Lethierry
manteve o nome de Déruchette.
Enganar-se-ia
aquele que concluísse pelas últimas palavras de Lethierry que ele não queria
casar a sobrinha. Queria casá-la, decerto, mas ao seu modo. Queria um marido da
sua têmpera, muito trabalhador, de maneira que Déruchette não fizesse nada.
Gostava das mãos tostadas do homem e das mãos alvas da mulher. Para que
Déruchette não estragasse as lindas mãos que tinha, dava-lhe ocupações
elegantes, mestre de música, piano, biblioteca, e bem assim alguma linha e
agulhas em uma cestinha de costura.
Déruchette
lia mais do que cosia, cantava e tocava mais do que lia. Mess Lethierry queria
isso mesmo. Não lhe pedia nada mais que o encanto e a fascinação. Educou-a mais
para ser flor do que para ser mulher. Quem tiver estudado os marinheiros há de
compreender isto. As rudezas amam as delicadezas. Para que a sobrinha
realizasse o ideal do tio, era preciso que fosse opulenta. Era isso o que Mess
Lethierry compreendia perfeitamente. A máquina do mar trabalhava com esse fim.
Durande devia dotar Déruchette.
CAPÍTULO VIII
A MELODIA BONNY DUNDEE
Déruchette
ocupava o mais lindo quarto da casa, com duas janelas, mobília de mogno, cama
de cortinas riscadas de verde e branco, tendo vista para o jardim e para a
colina onde está o castelo do Vale. Do outro lado desta colina é que estava o
Tutu da Rua.
Déruchette
tinha no quarto a música e o piano. Acompanhava-se ao piano cantando a canção
de sua preferência, a melancólica melodia escocesa Bonny Dundee; a noite
encerra-se toda naquela ária, a aurora encerrava-se toda naquela voz; isto
produzia insólito contraste. Dizia-se: “Miss Déruchette está ao piano”; e os
que passavam ao sopé da colina paravam algumas vezes diante do muro do jardim
para ouvir aquele canto tão fresco e aquela canção tão triste.
Déruchette
era a alegria perpassando a casa toda, e fazendo ali uma eterna primavera. Era
formosa, porém, mais linda que formosa, e mais gentil que linda. Fazia lembrar
aos velhos pilotos amigos de Mess Lethierry aquela princesa de uma canção de
soldados e marujos, tão bela “que passava por tal no regimento”.
—
Déruchette tem um cabo de cabelos — dizia Mess Lethierry.
Era
lindíssima desde a infância. Receou-se por muito tempo que o nariz fosse
disforme, mas a pequena, provavelmente disposta a ficar bonita, manteve-se de
modo que não adquiriu defeito algum até tornar-se moça; o nariz nem ficou
comprido nem curto; e, chegando à juventude, Déruchette conservou-se
encantadora.
Dava
o nome de pai ao tio.
Mess
Lethierry concedia-lhe algumas funções de jardineira e mesmo de dona de casa. A
moça regava os canteiros de malvaísco, de verbasco, de flox e erva-benta;
cultivava oxálida rosada; utilizava o clima da ilha de Guernesey, tão
hospitaleira às flores. Tinha, como toda a gente, aloés plantado no chão, e, o
que é mais difícil, fazia pegar a potentilha de Nepal. Tinha uma horta
habilmente arranjada; plantava espinafres, rabanetes e ervilhas; sabia semear a
couve-flor da Holanda e a couve-de-bruxelas; transplantava-as em julho; nabos
para agosto, chicória para setembro, pastinaca para o outono, e rapúncio para o
inverno. Mess Lethierry consentia em tudo isso, contanto que não trabalhasse
muito com a pá e o ancinho, e sobretudo que não fosse ela própria quem
estrumasse a terra. Deu-lhe duas criadas, uma chamada Graça, e a outra Doce, nomes
usados em Guernesey. Graça e Doce faziam o serviço da casa e do jardim, e
tinham o direito de andar com as mãos vermelhas.
O
quarto de Mess Lethierry era retirado, dava para o porto e era contíguo à sala
grande do rés-do-chão, onde havia a porta de entrada e onde iam ter as diversas
escadas da casa. A mobília do quarto compunha-se de uma maca de marujo, um
cronômetro, uma mesa, uma cadeira e um cachimbo. O teto, construído com vigas,
era caiado, bem como as paredes; à direita da porta estava pregado o
arquipélago da Mancha, bela carta marítima, onde se lia a seguinte inscrição:
“W. Faden, 5, Charing Cross, Geographer to His Majesty”; e à esquerda estava
pendurado um desses grandes lenços de algodão que trazem figurados os sinais de
todas as marinhas do globo, tendo nos quatro cantos os estandartes da França,
da Rússia, da Espanha e dos Estados Unidos da América, e no centro a Union Jack
da Inglaterra.
Doce
e Graça eram duas criaturas ordinárias, devendo tomar-se esta palavra à boa
parte. Doce não era má e Graça não era feia. Não lhes ficavam mal tão perigosos
nomes. Doce, que era solteira, tinha um amante. Nas ilhas da Mancha usa-se
tanto a palavra como a coisa. As duas criadas faziam o serviço com uma espécie
de lentidão própria à domesticidade normanda no arquipélago. Graça, faceira e
bonita, contemplava constantemente o horizonte com uma inquietação de gato. Era
porque, tendo também o seu amante, tinha, de mais a mais, dizia-se, marido
marinheiro, cuja volta receava. Mas nós não temos nada com isto. A diferença
entre Graça e Doce é que, numa casa menos austera e menos inocente, Doce
ficaria criada de servir e Graça subiria à posição de criada-grave. Os talentos
possíveis de Graça eram nulos para uma moça cândida como Déruchette. Demais, os
amores de Doce e Graça eram latentes. Nada chegava aos ouvidos de Mess
Lethierry, nada salpicava sobre Déruchette.
A
sala baixa do rés-do-chão, com chaminé, e rodeada de bancos e mesas, servira no
século passado para as reuniões de um conventículo de refugiados franceses
protestantes. A parede de pedra nua não tinha ornamento algum a não ser um
quadro de madeira preta com um cartaz de pergaminho ornado das proezas de
Benigno Bossuet, bispo de Meaux. Alguns pobres diocesanos daquele gênio,
perseguidos por ele na ocasião da revocação do Edito de Nantes, e abrigados em
Guernesey, penduraram aquele quadro na parede como um testemunho.
Quem
podia decifrar a letra tosca e a tinta amarelada lia naquele cartaz os
seguintes fatos pouco conhecidos: “A 29 de outubro de 1685, demolição dos
templos de Morcef e de Nanteuil, requerida ao rei pelo Sr. Bispo de Meaux”. “A
2 de abril de 1686, prisão de Cochard pai e filho por motivo de religião, a
requerimento do Sr. Bispo de Meaux. Foram soltos por terem abjurado.” “A 28 de
outubro de 1699 o Sr. Bispo de Meaux envia ao Sr. de Pontchartrain uma memória
expondo a necessidade de transportar as Sras. de Chalandes e de Neuville,
donzelas da religião reformada, para a casa das Novas-Católicas de Paris.” “A 7
de julho de 1703 executou-se a ordem pedida ao rei pelo Sr. Bispo de Meaux de
encerrar no hospital um tal Beaudoin e sua mulher, maus católicos, de
Fublaines.”
No
fundo da sala, ao pé da porta do quarto de Mess Lethierry, havia uma pequena
divisão de tábuas, que tinha sido tribuna huguenote, e era então, graças a uma
grade arranjada, o office do vapor, isto é, escritório da Durande
ocupado por Mess Lethierry em pessoa. Na velha estante de carvalho um registro
com as páginas cotadas. Deve e Há de Haver, substituía a Bíblia.
CAPÍTULO IX
O HOMEM QUE ADIVINHOU QUEM ERA RANTAINE
Mess
Lethierry governou a Durande enquanto pôde navegar, e nunca teve outro piloto
nem outro capitão; mas lá chegou um dia em que ele foi obrigado a deixar o mar.
Escolheu para substituí-lo o Sr. Clubin, de Torteval, homem silencioso. O Sr.
Clubin tinha, em toda a costa, fama de severa probidade. Era o alter ego
e o vigário de Mess Lethierry.
O
Sr. Clubin, embora desse mais ares de tabelião que de marinheiro, era um
marítimo capaz e raro. Tinha todos os talentos que exige o perigo perpetuamente
transformado. Era arrumador hábil, gajeiro meticuloso, contramestre desvelado e
perito, timoneiro robusto, piloto instruído e atrevido capitão. Era prudente e
algumas vezes levava a prudência ao ponto de ousar, o que é uma grande
qualidade na vida marítima. Tinha o receio do provável temperado pelo instinto
do possível. Era um desses marinheiros que afrontam o perigo em uma proporção
conhecida deles, sabendo triunfar em todas as aventuras. Toda a certeza que o
mar pode deixar a um homem, ele a tinha. Era, além disso, nadador de fama;
pertencia a essa raça de homens exercitados na ginástica da vaga, que se
conservam na água o tempo que se quer, e que, partindo de Havre-des-Pas, dobram
a Colette, fazem a volta de Ermitage e a do Castelo Elisabeth e voltam ao cabo
de duas horas ao ponto de partida. Era de Torteval e dizia-se que fizera muitas
vezes a nado o temível trajeto desde Manois até a ponta de Plaintmont.
Uma
das coisas que mais recomendaram o Sr. Clubin a Mess Lethierry foi que,
conhecendo ou penetrando Rantaine, assinalou a Mess Lethierry a improbidade
daquele homem, e disse-lhe: “Rantaine há de roubá-lo”. Verificou-se a profecia.
Mais de uma vez, em negócios pouco importantes, é verdade, Mess Lethierry
experimentou a escrupulosa honestidade do Sr. Clubin, e descansava nele. Mess
Lethierry dizia: “Consciência quer confiança”.
CAPÍTULO X
NARRATIVAS DE VIAGENS DE LONGO CURSO
Mess
Lethierry, que se não acomodava de outro modo, vestia sempre a sua roupa de
bordo, preferindo mesmo a japona de Mess Lethierry, que se não acomodava de
outro modo, vestia sempre a sua roupa de bordo, preferindo mesmo a japona de
marinheiro à japona de piloto. Déruchette torcia o nariz por isso. Nada é tão
belo como uma caretazinha da formosura em cólera. Déruchette ralhava e ria:
“Bom paizinho”, dizia ela, “está cheirando a alcatrão”. — E dava uma palmadinha
na larga espádua do marinheiro.
Aquele
velho herói do mar trouxe das suas viagens narrativas maravilhosas. Viu em
Madagáscar plumas de pássaro das quais bastavam três para cobrir uma casa. Viu
na Índia hastes de azedinhas de 9 pés de altura. Viu na Nova Holanda bandos de
perus e de patos dirigidos e guardados por um cão de pastor, que naquela terra
é um pássaro e chama-se galinha-silvestre. Viu cemitérios de elefantes. Viu na
África uma espécie de homens-tigres de 7 pés de altura. Conhecia os costumes de
todos os macacos, desde o macaco bravo até o macaco barbado. No Chile viu uma
bugia comover os caçadores apresentando-lhes o filho.
Viu
na Califórnia um tronco de árvore oco, no interior do qual um homem a cavalo
podia andar 150 passos. Viu em Marrocos os mozabitas e os biskris
baterem-se com matraks e barras de ferro, os biskris por terem
sido tratados de kelb, que quer dizer cães, e os mozabitas por terem
sido tratados de khamsi, que quer dizer gente da quinta seita. Viu na
China cortarem em pedacinhos o pirata Chanh-thong-quan-harh-Quoi, por ter
assassinado o âp de uma aldeia. Em Thudanmot, viu um leão arrebatar uma mulher
velha do meio do mercado da cidade. Assistiu à chegada da grande cobra mandada
de Cantão a Saigon, para celebrar, no Pagode de Choeen, a festa de Quan-nam,
deusa dos navegantes. Contemplou na terra dos Moi o grande Quan-Su.
No
Rio de Janeiro, viu as senhoras brasileiras colocarem nos cabelos pequenas
bolas de gaze contendo cada uma delas um vaga-lume, o que lhes fazia uma coifa
de estrelas. Destruiu no Uruguai os formigueiros, e no Paraguai um certo
bichinho, que ocupa com as patas um diâmetro de um terço de vara, e ataca o
homem por meio dos próprios pêlos, que lhe atira em cima, e que se cravam na
carne, produzindo pústulas. No rio Arinos, afluente do Tocantins, nas matas
virgens do norte de Diamantina, verificou a existência do terrível
povo-morcego, os murcilagos, homens que nascem com os cabelos brancos e os
olhos vermelhos, habitam os bosques sombrios, dormem de dia, acordam de noite e
pescam e caçam nas trevas, vendo melhor do que quando há lua.
Perto
de Beirute, no acampamento de uma expedição de que fazia parte, foi roubado de
uma tenda um pluviômetro; então um feiticeiro vestido de duas ou três faixas de
couro, assemelhando-se a um homem vestido com os próprios suspensórios, agitou
tão furiosamente uma campainha na ponta de um chifre que apareceu logo uma hiena
trazendo o pluviômetro. A hiena é que o tinha roubado.
Estas
histórias verdadeiras assemelhavam-se tanto a histórias da carochinha que
divertiam Déruchette.
A
boneca de Durande era o elo entre o vapor e a moça. Chama-se boneca nas ilhas
normandas a figura talhada na proa, estátua de madeira mais ou menos esculpida.
Daí vem que, para dizer navegar, a gente das ilhas usa desta locução:
estar entre popa e boneca (poupe et poupée).
A
boneca de Durande tinha as predileções de Mess Lethierry. Ele encomendara ao
carpinteiro que a fizesse parecida com Déruchette. Parecia-se como obra feita a
machado. Era uma acha de lenha esforçando-se por ser moça bonita.
Mas
a coisa, embora disforme, iludia Mess Lethierry. Contemplava-a como um crente.
Estava de boa-fé diante daquela figura. Reconhecia nela a imagem de Déruchette.
E mais ou menos assim que o dogma se parece com a verdade, e o ídolo com Deus.
Mess
Lethierry tinha duas grandes alegrias por semana; uma na terça-feira e outra na
sexta. Primeira alegria, ver partir Durande; segunda alegria, vê-la chegar.
Encostava-se à janela, contemplava a sua obra, era feliz. Há alguma coisa assim
no Gênesis: Et vidit quod esset bonum.
Na
sexta-feira, a presença de Mess Lethierry na janela era um sinal. Quem o via
chegar à janela da casa de Bravées, acender o cachimbo, dizia logo: “Ah! o
vapor está a chegar”. Uma fumaça anunciava a outra.
A
Durande, entrando no porto, atava amarra debaixo das janelas de Mess Lethierry,
numa grande argola de ferro. Nessas noites Lethierry gozava um admirável sono
na sua maca, sentindo de um lado Déruchette adormecida, do outro Durande
amarrada.
O
ancoradouro de Durande era perto do porto. Diante da casa de Lethierry havia um
pequeno cais.
O
cais, a casa, o jardim, as marinhas, orladas de sebes, a maior parte das casas
vizinhas, nada existe hoje. A exploração do granito de Guernesey fez vender os
terrenos todos. Aquele lugar está hoje ocupado por estâncias de quebradores de
pedra.
CAPÍTULO XI
LANCE DE OLHOS AOS MARIDOS EVENTUAIS
Déruchette
ia crescendo e não se casava.
Mess
Lethierry fê-la uma moça de mãozinhas alvas, mas tornou-a exigente. Educações
daquelas voltam-se sempre contra os pais.
Ele
próprio era mais exigente ainda que a filha. Imaginava um marido para
Déruchette que fosse também marido de Durande. Queria de um lance prover as
duas filhas. Queria que o companheiro de uma fosse o piloto da outra. Que é um
marido? É o capitão de uma viagem. Por que motivo não dar um só capitão ao
navio e à filha? O casal obedece às marés. Quem sabe guiar uma barca sabe guiar
uma mulher. Ambas são sujeitas à lua e ao vento. O Sr. Clubin, tendo apenas
quinze anos menos que Mess Lethierry, não podia ser para Durande senão um
capitão provisório; era preciso um piloto moço, um capitão definitivo, um
verdadeiro sucessor do inventor, do criador. O piloto de Durande seria o genro
de Mess Lethierry. Por que motivo não fundir os dois genros em um só?
Lethierry
afagava esta ideia. Via aparecer-lhe em sonhos um noivo. Um gajeiro possante e
tostado, um atleta do mar, eis o seu ideal. Não era esse o ideal de Déruchette,
o sonho da moça era mais cor-de-rosa.
Fosse
como fosse, o tio e a sobrinha pareciam estar de acordo em não ter pressa.
Quando viram Déruchette tornar-se herdeira provável, apresentaram-se pedidos
aos centos. Estas solicitudes nem sempre são de boa qualidade. Mess Lethierry
sentia isso, e dizia entre dentes: “Moça de ouro, noivo de cobre”. E despedia
os pretendentes. Esperava. Ela também.
Coisa
singular, Lethierry não fazia cabedal da aristocracia. Por esse lado era um
inglês inverossímil. Dificilmente se acreditará que ele chegou a recusar um
Ganduel, de Jersey, e um Bugnet-Necolin, de Serk. Houve mesmo quem ousasse
afirmar, mas nós não acreditamos, que ele recusou uma proposta da aristocracia
de Aurigny, indeferindo o pedido de um membro da família Edou, que
evidentemente descende de Edouard, o Confessor.
CAPÍTULO XII
EXCEÇÃO NO CARÁTER DE LETHIERRY
Mess
Lethierry tinha um defeito, e grande. Odiava, não uma pessoa, mas uma coisa, o
padre. Lendo um dia, em Voltaire — costumava ler e lia Voltaire —, estas
palavras: “os padres são gatos”, Mess Lethierry pôs o livro de parte, e
ouviram-no murmurar baixinho: “sinto-me cão”.
Cumpre
não esquecer que os padres luteranos, calvinistas e católicos atacaram-no
vivamente e perseguiram-no docemente, por causa da construção do Devil-Boat
local. Ser revolucionário em navegação, tentar introduzir um progresso no
arquipélago normando, impor à pobre ilha de Guernesey os esboços de uma invenção
nova era, conforme dissemos, uma temeridade condenável. Lethierry não escapou a
uma certa condenação. Não se esqueçam que falamos do clero antigo, diferente do
clero atual, que, em quase todas as igrejas locais, tem uma tendência liberal
para o progresso. Pearam-no de todos os modos; opuseram-lhe toda a soma de
obstáculos que pode haver nas prédicas e nos sermões. Odiado pelos homens da
Igreja, Lethierry aborrecia-os também. O ódio dos outros era a circunstância
atenuante do ódio dele.
Mas
a sua aversão pelos padres era idiossincrática. Para odiá-los não precisava ser
odiado. Como ele próprio dizia, era o cão daqueles gatos. Era contra eles pela ideia,
e, o que é mais irredutível, pelo instinto. Sentia as garras latentes dos
padres, e mostrava-lhes os dentes. A torto e a direito, confessemo-lo, e nem
sempre a propósito. É erro não distinguir. Não são bons os ódios absolutos. Nem
mesmo o vigário saboiano mereceria as simpatias de Lethierry. Não é certo que
para ele houvesse um bom padre. À força de filosofar, ia perdendo a
circunspecção. Existe a intolerância dos tolerantes, como existe o furor dos
moderados. Mas Lethierry era tão boa alma que não podia ser odiento. Antes
repelia que atacava. Fugia dos homens da Igreja. Tinham-lhe feito mal,
Lethierry limitava-se a não querer-lhes bem. A diferença entre o ódio dos
outros e o dele é que o dos outros era animosidade, e o dele antipatia.
Guernesey,
apesar de ilha pequena, tem lugar para duas religiões. Existem nela a religião
católica e a religião protestante. Devemos acrescentar que aí não entram as
duas religiões na mesma igreja. Cada culto tem a sua capela ou o seu templo. Na
Alemanha, em Heidelberg, por exemplo, a coisa arranja-se menos
escrupulosamente; divide-se uma igreja; metade para São Pedro, metade para
Calvino; entre as duas há um tabique para prevenir os murros e pescoções;
partes iguais; os católicos têm três altares; os huguenotes têm três altares;
como as horas do oficio são sempre as mesmas, o sino comum chama na mesma
ocasião para os dois serviços. Convoca a um tempo os fiéis para Deus e para o
diabo. Simplificação.
A
fleuma alemã acomoda-se com estas propinquidades. Mas, em Guernesey, cada
religião tem casa própria. Há paróquia ortodoxa e paróquia herética. Pode-se
escolher. Nem uma nem outra foi a escolha de Mess Lethierry.
Aquele
marinheiro, aquele operário, aquele filósofo, aquele parvenu do
trabalho, simples na aparência, não o era em substância. Tinha lá as suas
contradições e pertinácias. Era inabalável a respeito do padre. Daria quinaus a
Montlosier.
Costumava
dizer chufas muito descabidas. Tinha expressões próprias dele, extravagantes,
mas sem deixar de ter um sentido. Ir confessar-se era para ele pentear a
consciência. Os poucos estudos que tinha, pouquíssimos, feitos aqui e ali,
entre duas borrascas, complicavam-se com erros de ortografia. Tinha também
erros de pronúncia, nem sempre ingênuos. Quando se fez a paz entre a França de
Luís XVIII e a Inglaterra de Wellington, Mess Lethierry disse: “Bourmont foi o traitre
d’union (‘traidor’ por ‘traço’) entre os dois campos”. Lethierry escreveu
uma vez a palavra papado (papauté) do seguinte modo: pape ôté
(papa arrancado). Não acreditamos que ele fizesse isto de propósito.
Este
antipapismo não o conciliava com os anglicanos. Os presbíteros protestantes não
o estimavam mais que os curas católicos. Ante os mais graves dogmas,
ostentava-se quase sem reservas a irreligião de Lethierry. Deu-se o acaso de
ser levado a ouvir um sermão acerca do inferno, pregado pelo Reverendo Jaquemin
Herodes, sermão magnífico, empachado de textos sagrados, que provavam as penas
eternas, os suplícios, os tormentos, as condenações, os castigos inexoráveis,
os fogaréus sem fim, as maldições inextinguíveis, as cóleras do Onipotente, os
furores celestes, as vinganças divinas, coisas incontestáveis; Lethierry ouviu
o sermão e, ao sair com um dos fiéis, disse-lhe baixinho: “Ora, quer ver? Eu cá
tenho uma ideia ratona. Suponho que Deus é bom”.
Adquiriu
este germe de ateísmo quando residiu na França.
Posto
que fosse guernesiano, e de raça pura, chamavam-no na ilha o francês,
por causa de seu espírito improper. Nem ele o ocultava; estava
impregnado de idéias subversivas. A sanha de fazer o vapor, o Devil-Boat,
provava bem isto.
Lethierry
costumava dizer: “Eu mamei o leite 89”. Mau leite.
E
que despropósitos fazia! E difícil viver intato nos lugares pequenos. Na
França, guardar as aparências, na Inglaterra, ser respeitável é
quanto basta para passar a vida tranquilo. Ser respeitável é coisa que implica
uma imensidade de observâncias, desde o domingo bem santificado até a gravata
bem atada.
“Não
te faças apontar com dedo”, eis uma lei terrível. Ser apontado é o diminutivo
de anátema. As pequenas cidades, charcos de mexeriqueiros, são exímias nesta
malignidade isoladora, que é a maldição vista ao invés do óculo. Os mais
intrépidos arreceiam-se disto. Afronta-se a metralha, afronta-se o furacão,
recua-se diante da malignidade. Mess Lethierry era mais tenaz que lógico. Mas
debaixo dessa pressão dobrava-se-lhe a tenacidade. Deitava água no vinho,
locução prenhe de concessões latentes e às vezes inconfessáveis. Afastava-se
dos homens do clero, mas não lhes fechava resolutamente a porta. Nas ocasiões
oficiais e nas épocas das visitas pastorais, recebia atenciosamente tanto o presbítero
luterano como o capelão papista. Acontecia-lhe de quando em quando acompanhar à
paróquia anglicana a menina Déruchette, que, aliás, só ia lá nas quatro grandes
festas do ano.
Em
resumo, esses compromissos, que lhe custavam muito, irritavam-no, e, longe de
incliná-lo para os homens da Igreja, aumentavam o seu pendor interno. Aquela
criatura sem azedume era acrimoniosa apenas nesse ponto. Não havia meio de
emendá-la.
De
fato, e sem remissão, era esse o temperamento de Lethierry.
Aborrecia
todos os cleros. Tinha a irreverência revolucionária. Distinguia pouco entre
duas formas de culto. Nem mesmo fazia justiça a este grande progresso: não
acreditar na presença real. A sua miopia nestas coisas chegava ao ponto de não
ver a diferença entre um ministro e um sacerdote. Confundia um reverendo doutor
com um reverendo padre. “Wesley não vale mais que Loiola”, dizia ele. Quando
via passar um pastor protestante de braço com a mulher, desviava os olhos.
“Padre casado!”, dizia ele, com o acento absurdo que essas duas palavras tinham
na França naquela época. Contava que na viagem à Inglaterra tinha visto a
“bispa de Londres”. A sua revolta contra essas uniões ia até a cólera. “Vestido
não casa com vestido!”, exclamava ele. O sacerdote fazia-lhe efeito de um sexo.
Não teria dúvida em dizer: “Nem homem nem mulher: padre”. Aplicava com mau
gosto tanto ao clero anglicano como ao papista os mesmos epítetos desdenhosos;
enrolava as duas sotainas na mesma fraseologia; e não se dava ao trabalho de
variar, a propósito de padres, quaisquer que fossem, católicos e luteranos, as
metonímias soldadescas usadas naquele tempo.
—
Casa-te com quem quiseres — dizia ele a Déruchette —, contanto que não seja com
algum padreco.
CAPÍTULO XIII
O DESLEIXO FAZ PARTE DA GRAÇA
Dita
uma coisa, Mess Lethierry não a esquecia mais; dita uma coisa, Miss Déruchette
esquecia-a logo. Esta era a diferença entre o tio e a sobrinha.
Déruchette,
educada como os leitores viram, acostumou-se a pouca responsabilidade. Há mais
um perigo latente numa educação tomada muito a sério. Querer tornar felizes os
filhos, antes do tempo, é talvez uma imprudência.
Déruchette
acreditava que, estando ela contente, tudo o mais ia muito bem. Via o tio
alegre quando ela estava alegre. As suas idéias eram pouco mais ou menos as
mesmas de Mess Lethierry. Satisfazia os sentimentos religiosos indo à paróquia
quatro vezes por ano. Já a encontramos vestida para a festa do Natal. Da vida
humana não sabia coisa alguma. Tinha disposições para amar um dia loucamente. Enquanto
não chegava esse dia, era menina folgazã.
Déruchette
cantava ao acaso, tagarelava ao acaso, vivia sem esforço, soltava uma palavra e
passava, fazia um gesto e fugia, era encantadora. Ajunte-se a isto a liberdade
inglesa. Na Inglaterra as crianças andam sós, as meninas são senhoras de si, a
adolescência vai à rédea solta. Tais são os costumes. Mais tarde, as moças
livres fazem-se mulheres escravas. Tomem à boa parte estas duas expressões:
livres no crescimento, escravas no dever.
Déruchette
acordava todos os dias com a inconsciência das suas ações da véspera. Bem
embaraçado ficaria quem lhe perguntasse o que ela havia feito na semana
anterior. Isto, porém, não impedia que ela tivesse, em certas horas turvas, uma
indisposição misteriosa, e sentisse uma tal ou qual passagem do sombrio da vida
no seu desabrochamento e na sua jovialidade.
Há
nuvens dessas nos céus como aquele; mas passavam depressa. Déruchette voltava a
si com uma gargalhada, sem saber nem por que estivera triste, nem por que
estava serena.
Brincava
com tudo. De travessa que era, bulia com quem passava. Caçoava com os rapazes.
Não escaparia o próprio diabo, se o encontrasse em caminho. Era gentil, e ao
mesmo tempo tão inocente que abusava de si própria. Dava um sorriso como um
gatinho dá um bofete. Tanto pior para quem ficasse arranhado. Nem pensava mais
nisso. O dia de ontem não existia para ela; vivia na plenitude do dia de hoje.
Eis o que é a excessiva felicidade. Naquela moça a lembrança dissipava-se como
neve que se funde.
LIVRO QUARTO
O “BAGPIPE”
CAPÍTULO PRIMEIRO
PRIMEIROS RUBORES DE AURORA OU DE
INCÊNDIO
Gilliatt
não trocara nunca uma palavra com Déruchette.
Conhecia-a
por tê-la visto de longe, como se conhece a estrela da manhã.
Na
época em que Déruchette encontrou Gilliatt, no caminho de SaintPierre-Port ao
Vale, e fez-lhe a surpresa de traçar na neve o nome dele, tinha dezesseis anos.
Exatamente na véspera Mess Lethierry disse-lhe as seguintes palavras:
—
Deixa-te de seres travessa; estás moça feita.
O
nome Gilliatt, escrito por aquela menina, caiu em uma profundidade
desconhecida.
Que
eram as mulheres para Gilliatt? Nem mesmo ele poderia dizê-lo. Quando
encontrava alguma, causava-lhe medo e cobrava-lhe medo. Só na última
extremidade falava às mulheres. Nunca foi amante de nenhuma camponesa. Quando
se achava só em um caminho e avistava alguma mulher ao longe, Gilliatt galgava
um cercado, ou metia-se em uma moita e ia-se embora. Até das velhas fugia. Só
tinha visto uma parisiense. Parisiense de arribação, estranho acontecimento em
Guernesey naqueles tempos idos. E Gilliatt ouvira a parisiense contar nestes
termos os seus infortúnios: “Estou muito maçada, caíram-me uns chuviscos no
chapéu, esta cor é muito sujeita a ficar manchada”.
Tendo
encontrado, tempo depois, entre as folhas de um livro uma antiga gravura de
modas representando uma dama da calçada de Antin em grande toalete, pregou-a na
parede como lembrança dessa aparição. Nas noites de estio, escondia-se atrás
das rochas de Houmet Paradis para ver as camponesas banharem-se no mar. Um dia,
através de uma cerca, viu a feiticeira de Torteval atar a liga que lhe tinha
caído. Provavelmente Gilliatt era virgem.
Naquela
manhã de Natal em que Déruchette escrevera rindo o nome dele, Gilliatt voltou
para casa não sabendo já por que motivo tinha saído.
Não
dormiu de noite. Pensou em mil coisas: de que faria bem se cultivasse rabanetes
no jardim; que não tinha visto passar o navio de Serk e talvez lhe houvesse
acontecido alguma coisa; que tinha visto erva-pinheira em flor, coisa rara
naquela estação.
Gilliatt
nunca soubera com certeza que parentesco havia entre ele e a velha que morrera
em casa; disse consigo que devia ser sua mãe e pensou nela com redobrada
ternura. Lembrou-se do enxoval de mulher que estava na mala de couro. Pensou
que o Reverendo Jaquemin Herodes seria provavelmente nomeado decano de
Saint-Pierre-Port, e que a paróquia de Saint-Sampson ficaria vaga. Pensou que o
dia seguinte ao de Natal seria o 27° dia de lua, e que por consequência a maré
enchente seria às 3 horas e 21 minutos, a média às 7 horas e 15 minutos, a
vazante às 9 horas e 36 minutos. Recordou até nas menores particularidades, o
vestuário de highlander que lhe vendera o bagpipe, boné enfeitado
com um cardo à claymore, a casaca de abas curtas e quadradas, o saiote, o scilt
or philaberg, adornado com uma bolsa e uma boceta de chifre, o alfinete
feito de uma pedra escocesa, os dois cintos, as sashwises, o belts, a espada, o
swond, o sabre, o dirk e o skene dhu, faca preta de cabo
preto ornada de dois cairgorums, e os joelhos nus do soldado, as meias,
as polainas riscadas e os sapatos de borlas. Tudo aquilo tornou-se espectro,
perseguiu-o, deu-lhe febre até que ele adormeceu.
Gilliatt
acordou quando o sol já ia alto e o seu primeiro pensamento foi Déruchette.
Adormeceu
no dia seguinte e sonhou toda a noite com o soldado escocês. Sonhou também com
o velho cura Jaquemin Herodes. Quando acordou pensou outra vez em Déruchette e
teve contra ela uma violenta cólera; lamentou não ser criança para ir atirar
pedras nas vidraças da moça.
Depois
lembrou-se de que, se fosse criança, teria ainda sua mãe, e entrou a chorar.
Projetou
ir passar uns três meses em Chausey ou em Minquiers, mas não partiu.
Não
tornou a pôr os pés na estrada de Saint-Pierre-Port ao Vale. Imaginava que o
seu nome ficara gravado na terra e que todos os viandantes deviam olhar para
ele.
CAPÍTULO II
GILLIATT VAI ENTRANDO PASSO A PASSO NO
DESCONHECIDO
Gilliatt
ia todos os dias ver a casa de Lethierry. Não o fazia de propósito, mas
encaminhava-se para esse lado. Acontecia então passar sempre pelo caminho que
costeava o muro do jardim de Déruchette.
Estando
um dia naquele caminho, ouviu a uma mulher do mercado, que falava a outra, e
vinha da casa de Lethierry: “Miss Lethierry gosta muito de sea kales”.
Gilliatt
fez no jardim da casa mal-assombrada uma fossa de sea kales. O sea
kale é uma couve que tem o sabor de aspargo.
O
muro do jardim da casa de Déruchette era baixinho; podia-se pular facilmente.
Esta ideia pareceu terrível a Gilliatt. Mas quem passava não podia deixar de
ouvir as vozes das pessoas que falavam nos quartos ou no jardim. Gilliatt não
escutava, mas ouvia. De uma vez ouviu disputar as duas criadas, Graça e Doce.
Como o rumor vinha daquela casa, soou-lhe como se fosse música.
De
outra vez, distinguiu uma voz que não era como as outras, e que lhe pareceu ser
a voz de Déruchette. Deitou a correr.
As
palavras que ouviu à moça ficaram para sempre gravadas no seu pensamento.
Repetia-as a cada instante. Essas palavras eram: “Faz favor de me dar a
vassoura?”
Gilliatt
foi ousando a pouco e pouco. Já se atrevia a ficar parado. Aconteceu uma vez
que Déruchette, que não podia ser vista de fora, embora tivesse a janela
aberta, estava ao piano e cantava. Cantava a canção Bonny Dundee.
Gilliatt empalideceu, mas levou a firmeza até ouvir a canção toda.
Chegou
a primavera. Gilliatt teve uma visão: abriu-se o céu. Gilliatt viu Déruchette
regando uns pés de alface.
Daí
a pouco já ele fazia mais do que parar. Observava os hábitos da moça, notava as
horas em que ela aparecia, e esperava.
Tinha
cuidado de não ser visto por ela.
A
pouco e pouco, ao tempo em que as noites se enchem de borboletas e de rosas,
imóvel e mudo horas inteiras sem ser visto por ninguém, retendo a respiração,
Gilliatt acostumou-se a ver Déruchette andar pelo jardim. É fácil acostumar-se
ao veneno.
Do
lugar em que se escondia, Gilliatt ouvia Déruchette conversar com Mess
Lethierry, debaixo de um espesso caramanchão feito de caniço, dentro do qual
havia um banco. As palavras chegavam-lhe distintamente aos ouvidos.
Quanto
já não tinha andado! Chegou até a espiar e prestar ouvido. Ah! o coração humano
é um velho espião!
Havia
outro banco visível e próximo, no fim de uma alameda. Déruchette assentava-se
ali algumas vezes.
Pelas
flores que ele via Déruchette colher e cheirar, adivinhou as preferências da
moça a respeito de perfumes.
A
moça preferia antes de tudo a campânula, depois o cravo, depois a madressilva,
depois o jasmim. A rosa estava em quinto lugar. Quanto aos lírios, olhava para
eles, mas não os cheirava. À vista da escolha dos perfumes, Gilliatt compunha-a
no seu pensamento. Cada cheiro significava para ele uma perfeição. Só a ideia
de falar a Déruchette fazia-lhe arrepiar os cabelos. Uma boa velha que
mascateava, e por esse motivo ia algumas vezes à rua que costeava o muro do
jardim de Déruchette, veio a notar confusamente a assiduidade de Gilliatt junto
daquele muro e a sua devoção por aquele lugar deserto. Ligaria ela a presença
daquele homem à possibilidade de uma mulher que estivesse atrás do muro?
Descobriria esse vago fio invisível? Restava-lhe acaso, na sua decrepitute
mendicante, um pouco de mocidade para lembrar-se de alguma coisa dos belos
tempos, e saberia ela, já no inverno e na noite, que coisa é o alvor da
madrugada? Ignoramo-lo, mas parece que, passando uma vez perto de Gilliatt, que
estava de sentinela, dirigiu para o lado dele toda a quantidade de sorriso de
que ainda era capaz e murmurou entre as gengivas: “Aquece, aquece!”
Gilliatt
ouviu a palavra, que lhe fez impressão, e murmurou com um ponto de interrogação
interior: “Aquece? Que quer dizer a velha?”
Repetiu
maquinalmente a palavra durante todo o dia, mas não chegou a compreendê-la.
Estando
um dia à janela da casa mal-assombrada, cinco ou seis raparigas de Ancresse
foram banhar-se por pagode na angra de Houmet Paradis. Brincavam ingenuamente
na água, a cem passos dele. Gilliatt fechou violentamente a janela. Reparou
então que uma mulher nua causava-lhe horror.
CAPÍTULO III
A CANÇÃO “BONNY DUNDEE” ACHA UM ECO NA
COLINA
Atrás
do muro do jardim, em um ângulo do muro coberto de azevinho e hera, empachado
de urtigas, com um pé de malva silvestre arborescente e um grande verbasco do
mato que brotava do granito, passou Gilliatt quase todo o verão. Ficava ali
inexprimivelmente pensativo. As lagartixas, que se iam acostumando a Gilliatt,
aqueciam-se ao sol nas mesmas pedras. O verão foi luminoso e suave. Gilliatt
tinha sobre a cabeça as nuvens que perpassavam no céu. Assentava-se na relva.
Tudo estava cheio de um rumorejar de pássaros. Punha a cabeça nas mãos e
perguntava a si próprio: “Mas por que escreveu ela o meu nome na neve?”
O
vento do mar soprava ao longe grandes lufadas. De quando em quando, nas pedreiras
longínquas de Vaudue, troava bruscamente a trombeta dos pedreiros, advertindo
os passantes de que ia rebentar uma mina. Não se via o porto de Saint-Sampson;
mas via-se a ponta dos mastros por cima das árvores. As gaivotas voavam
esparsas. Gilliatt ouvira dizer a sua mãe que as mulheres podem amar os homens,
e que isso acontecia algumas vezes. Lembrava-se, e respondia a si mesmo: “É
isso. Compreendo. Déruchette ama-me”. Sentia-se profundamente triste. Dizia
ele: “Mas também ela pensa em mim; faz bem”. Pensava em que Déruchette era
rica, e ele pobre. Pensava que o vapor era uma invenção execrável. Não podia
lembrar nunca em que dia do mês estava. Contemplava vagamente os grandes
zangões negros, de lombo amarelo e asas curtas, que penetram zumbindo nos buracos
das paredes.
Déruchette
recolhia-se uma noite ao quarto. Aproximou-se da janela para fechá-la. A noite
estava escura. De repente, Déruchette aplicou o ouvido. Havia uma música no
meio daquela noite profunda. Alguém que provavelmente estava na vertente da
colina, ou ao pé das torres do castelo do Vale, ou talvez mais longe, executava
uma canção num instrumento. Déruchette reconheceu a sua melodia favorita Bonny
Dundee tocada em bagpipe. Não compreendeu nada.
Desde
então, ouviu ela muitas vezes a mesma coisa, à mesma hora, especialmente nas
noites escuras.
Déruchette
não gostava muito daquilo.
CAPÍTULO IV
Pour l’oncle et le
tuteur, bons hommes taciturnes,
Les sérénades sont
des tapages nocturnes.
(Versos de uma comédia inédita).
Passaram-se
quatro anos.
Déruchette
aproximava-se dos 21 anos e conservava-se solteira.
Já
alguém escreveu algures: “Uma ideia fixa é uma verruma. Vai-se enterrando de
ano para ano. Para extirpá-la no primeiro ano é preciso arrancar os cabelos; no
segundo rasga-se a pele; no terceiro ano quebra o osso; no quarto saem os
miolos”. Gilliatt estava no quarto ano.
Não
tinha trocado uma só palavra com Déruchette. Pensava nela; era tudo.
Aconteceu-lhe
uma vez, estando por acaso em Saint-Sampson, ver Déruchette conversando com
Mess Lethierry diante da porta da casa que dava para a calçada do porto.
Gilliatt arriscou-se a aproximar-se dela. Cuidava estar certo de que sorrira
quando ele passou. Não era coisa impossível.
Déruchette
continuava a ouvir de tempos em tempos o bagpipe.
Também
Mess Lethierry ouvia o bagpipe e notou a persistência desta música perto
da janela de Déruchette. Música terna, circunstância agravante. Não lhe
agradavam namorados noturnos. Queria casar Déruchette com dia claro, quando ela
e ele quisessem e simplesmente, sem romance e sem música. Exasperado, procurou
descobrir o amador e pareceu-lhe entrever Gilliatt. Meteu as unhas na barba em
sinal de cólera e disse: “Por que motivo vem aquele animal sanfonear-me à
porta? Ama Déruchette, é claro. Perde o tempo. Quem quiser Déruchette deve vir
falar-me, e sem música”.
Previsto
desde muito, veio a realizar-se um acontecimento importante. Anunciou-se que o
Reverendo Jaquemin Herodes fora nomeado delegado do bispo de Winchester, decano
da ilha e cura de Saint-Pierre-Port, e que partiria de Saint-Sampson logo
depois de instalar o seu sucessor.
Estava
a chegar o novo cura. Era ele gentleman de origem normanda, e chamava-se
Joe Ebenezer Caudray.
A
respeito dele havia circunstâncias que a benevolência e a malevolência
comentavam em sentido inverso. Diziam que era moço e pobre, mas a mocidade era
temperada por muita doutrina, e a pobreza por muita esperança. Na língua
especial criada para a herança e a riqueza, a morte chama-se esperança. Era
sobrinho e herdeiro do velho e opulento decano de Saint-Asaph. Morto este,
ficava o outro rico. O Sr. Ebenezer Caudray era bem aparentado; tinha quase
direito à qualidade de honorable. Quanto à sua doutrina, era julgada
diversamente. Era anglicano, mas, segundo a expressão do Bispo Tilleston, era muito
libertino, isto é, muito severo. Repudiava o farisaísmo; ligava-se antes ao
presbitério que ao episcopado. Sonhava com a Igreja primitiva, onde Adão tinha
o direito de escolher Eva, e Frumentanus, bispo de Hierópolis, raptava uma moça
para ser mulher dele, dizendo aos pais: “Ela quer e eu quero, já não sois nem
pai nem mãe, eu sou o anjo de Hierópolis, e esta é minha esposa. O pai é Deus”.
A dar crédito aos boatos, o Sr. Ebenezer Caudray subordinava o texto: “Honrai
pai e mãe” ao texto, segundo ele, superior: “A mulher é a carne do homem. A
mulher deixará pai e mãe para acompanhar o marido”. Mas, afinal de contas, esta
tendência para circunscrever a autoridade paternal e favorecer religiosamente
todos os modos de formar o vínculo conjugal é própria a todo o protestantismo,
particularmente na Inglaterra e singularmente na América.
CAPÍTULO V
JUSTA VITÓRIA É SEMPRE MALQUISTA
Eis
o balanço de Mess Lethierry, no tempo em que ocorria isto. Durande cumpriu o
que prometera. Mess Lethierry pagou as dívidas, reparou os prejuízos, satisfez
as letras de Bremen, fez face aos vencimentos de SaintMalo. Exonerou a casa em
que morava das hipotecas, comprou todas as rendas locais inscritas sobre a
casa. Era possuidor de um grande capital produtivo, a Durande. O rendimento
líquido do navio era então de 1.000 libras esterlinas e ia crescendo. A bem
dizer, Durande era toda a fortuna dele. Era também a fortuna da terra. O
transporte dos bois era dos que davam mais lucro; assim, para melhorar a
arrumação a bordo, e facilitar a entrada e saída do gado, suprimiram-se as
malas e as faluas. Foi talvez imprudência. A Durande veio a ter apenas a
chalupa. É verdade que a chalupa era excelente.
Já
havia dez anos que Rantaine tinha roubado Mess Lethierry.
A
prosperidade de Durande tinha um lado fraco, é que não inspirava confiança;
acreditava-se que era puro acaso. A situação de Mess Lethierry era aceita como
exceção. Dizia-se que ele fizera uma loucura feliz. Quis alguém fazer o mesmo
em Cowes, na ilha de Wight, e teve mau êxito na tentativa. A tentativa arruinou
os acionistas. Dizia Lethierry: “É que a máquina foi mal construída”. Mas os
outros abanavam a testa. As novidades têm contra si o ódio de todos; o menor
erro compromete-as.
Consultado
acerca de um negócio de vapores, disse o banqueiro Jauge, de Paris, um dos
oráculos comerciais do arquipélago normando: “É uma conversão o que me
propondes. Conversão de dinheiro em fumo”. Entretanto, os navios de vela
achavam sempre quantas comanditas fossem precisas. Os capitães teimavam em
estar do lado da lona contra a caldeira. Em Guernesey a Durande era um fato,
mas o vapor não era um princípio. Tal era a pertinácia da navegação diante do
progresso. Dizia-se de Lethierry: “Fez coisa boa, mas não há de meter-se em
outra”. Longe de animar, o exemplo dele causava medo. Ninguém ousaria arriscar
segunda Durande.
CAPÍTULO VI
FORTUNA DOS NÁUFRAGOS ENCONTRANDO A
CHALUPA
Cedo
anuncia-se o equinócio na Mancha. É um mar estreito, tolhe o vento e irrita-o.
Desde fevereiro começam ali os ventos do oeste sacudindo as águas em todos os
sentidos. A navegação torna-se inquieta; a gente da costa contempla o mastro de
sinal; a todos preocupam os navios que podem estar em perigo. O mar aparece
como uma emboscada; invisível clarim troa para uma estranha guerra. Longas e
furiosas lufadas abalam o horizonte; é terrível o vento. A sombra silva e
sopra. Na profundeza das nuvens o rosto negro da tempestade intumesce as
bochechas.
O
vento é um perigo; o nevoeiro outro.
Os
nevoeiros causam sempre medo aos navegadores. Há nevoeiros que trazem suspensos
prismas microscópicos de gelo, aos quais Mariotte atribui as auréolas, os
parélios e os parasselenes. Os nevoeiros tempestuosos são compósitos; vapores
diversos de peso específico desigual combinam-se com o vapor da água e
surperpõem-se em uma ordem que divide a bruma em zonas e faz do nevoeiro uma
verdadeira formação.
Embaixo
fica o iodo, acima do iodo o enxofre, acima do enxofre o bromo, acima do bromo
o fósforo.
Isto,
em certa proporção, deduzindo a tensão elétrica e magnética, explica muitos
fenômenos, o santelmo de Colombo e de Magalhães, as estrelas volantes de que
fala Sêneca, as duas chamas, Castor e Pólux, de que fala Plutarco, a legião
romana que a César pareceu ver arderem os dardos, a lança do castelo do Duíno
no Frioul, que a sentinela acendia tocando com o ferro da sua lança, e talvez
mesmo as fulgurações que os antigos chamavam relâmpagos terrestres de Saturno.
No
equador, imensa bruma permanente parece cingir o globo, é o Cloud-ring,
anel de nuvens.
O
Cloud-ring resfria o trópico, do mesmo modo que o Gulf Stream aquece o pólo.
Debaixo do Cloud-ring o nevoeiro é fatal. São essas as latitudes dos cavalos, Horse
latitude; os navegadores dos últimos séculos, quando passavam ali, atiravam
os cavalos ao mar, em ocasião de temporal para alijar o navio, em tempo de
calma para economizar a água.
Dizia Colombo:
“Nube abajo es muerte”. (Nuvem
baixa, morte certa.) Os etruscos, que são para a meteorologia o que os caldeus
são para a astronomia, tinham dois pontificados — o pontificado do trovão e o
pontificado da nuvem: uns observavam o relâmpago, outros o nevoeiro. O colégio
dos áugures de Tarquínia era consultado pelos tírios, fenícios e pelásgicos, e
de todos os navegadores primitivos do antigo Marinterno. O modo de geração das
tempestades era entrevisto; ligava-se intimamente ao modo de geração dos
nevoeiros, e, a bem dizer, é o mesmo fenômeno. Existem no mesmo oceano três
regiões de brumas, uma equatorial, duas polares; os marinheiros dão-lhe um só
nome — le pot au noir.
Em
todas as paragens, e sobretudo na Mancha, os nevoeiros de equinócio são mui
perigosos. Fazem anoitecer de súbito. Um dos perigos do nevoeiro, mesmo quando
não é muito cerrado, é impedir que se reconheça a mudança de fundo pela mudança
da cor da água; resulta daqui ficarem dissimulados os cachopos e parcéis. O
navegador aproxima-se de um escolho sem ser advertido.
Muitas
vezes os nevoeiros não deixam ao navio em marcha outro recurso que não seja pôr-se
à capa ou ancorar. Há tantos naufrágios causados pelo nevoeiro como pelo vento.
Entretanto,
após uma violentíssima borrasca que sucedeu a um dia de nevoeiro, a chalupa Cashmere
chegou perfeitamente da Inglaterra. Entrou em Saint-Pierre-Port aos primeiros
raios do dia, no momento em que o castelo Cornet salvava o sol com um tiro.
Iluminava-se o horizonte. A chalupa Cashmere era esperada como devendo
trazer o novo cura de Saint-Sampson. Pouco depois de chegar a chalupa,
espalhou-se o boato de que encontrara à noite no mar outra chalupa com uma
equipagem naufragada.
CAPÍTULO VII
BOA FORTUNA DE APARECER A TEMPO
Naquela
noite, Gilliatt, quando o vento amainou, saiu a pescar, sem afastar-se muito da
costa.
Na
volta, estando a maré a encher, pelas 2 horas da tarde, e fazendo um sol
esplêndido, quando Gilliatt passou por diante da Corne de la Bête para entrar
na angra em que ficava a pança, pareceu-lhe ver na projeção da Cadeira
Gild-Holm-‘Ur uma sombra que não era a do rochedo. Deixou a pança chegar até
ali e reconheceu que um homem estava assentado na Cadeira Gild-Holm-‘Ur. O mar
já estava alto, a rocha estava cercada pela água, não era possível ao homem
voltar para terra. Gilliatt gesticulou para o homem, o homem ficou imóvel.
Gilliatt aproximou-se. O homem estava adormecido.
Tinha
ele vestuário preto. “Parece padre”, pensou Gilliatt. Aproximou-se ainda mais e
viu um rosto de adolescente.
Não
conheceu quem era.
A
rocha felizmente era a pique; havia muito fundo; Gilliatt costeou a muralha. A
maré levantava a barca quanto bastava para que Gilliatt, pondo-se de pé sobre a
pança, pudesse tocar os pés do homem. Gilliatt levantou-se sobre a borda e
ergueu os braços. Se caísse naquele momento, é duvidoso que tornasse a
aparecer. A vaga batia entre a pança e o rochedo, era inevitável ser esmagado.
Gilliatt
puxou o pé do homem adormecido.
—
Olá, que faz aí?
O
homem acordou.
—
Estou olhando — disse ele.
Depois,
acordando de todo, continuou:
—
Cheguei há pouco à terra, vim passear aqui; passei a noite no mar, achei a
vista bonita, estava cansado, adormeci.
—
Dez minutos mais, afogar-se-ia — disse Gilliatt.
—
Ah!
—
Salte para a barca.
Gilliatt
susteve a barca com o pé, pôs uma das mãos no rochedo e estendeu a outra ao
homem, que pulou lestamente na barca. Era um bonito rapaz.
Gilliatt
tomou o leme; em dois minutos, a pança chegou à angra da casa mal-assombrada.
O
moço tinha chapéu redondo e gravata branca. Trazia abotoada até o pescoço a
comprida sobrecasaca preta. Tinha cabelos loiros, rosto feminino, olhar puro,
ar grave.
Entretanto
a pança tocou em terra. Gilliatt passou o cabo na argola da amarra, depois
voltou-se, e viu a mão do moço que lhe apresentou um soberano de ouro.
Gilliatt
repeliu docemente a mão.
Houve
um silêncio. O moço falou:
—
Salvou-me a vida — disse ele.
—
Talvez — respondeu Gilliatt.
A
pança estava amarrada. Saíram da barca.
O
moço continuou:
—
Devo-lhe a vida, senhor.
—
Que importa isso?
Essa
resposta de Gilliatt foi acompanhada de novo silêncio.
—
É desta paróquia o senhor? — perguntou o mancebo.
—
Não — respondeu Gilliatt.
—
De que paróquia é então?
Gilliatt
levantou a mão direita, mostrou o céu e disse:
—
Daquela.
O
moço cumprimentou e foi caminhando.
Depois
de alguns passos, voltou, meteu a mão no bolso, tirou um livro e voltou-se para
Gilliatt.
—
Consinta que lhe ofereça isto.
Gilliatt
tomou o livro.
Era
uma Bíblia.
Instantes
depois, Gilliatt, encostado ao parapeito, olhava para o moço, que voltava o
ângulo do caminho que ia ter a Saint-Sampson.
A
pouco e pouco abateu a cabeça, esqueceu o mancebo, não soube mais se existia a
Cadeira Gild-Holm-‘Ur, e tudo desapareceu, na imersão sem fundo do cismar.
Gilliatt tinha um abismo, Déruchette.
Tirou-o
daquele abismo uma voz que lhe gritou:
—
Olá, Gilliatt!
Reconheceu
a voz e ergueu os olhos.
—
Que há, Sr. Landoys?
Era
com efeito o Sr. Landoys, que passava na estrada a cem passos da casa, no seu
faéton, com um pequeno cavalo. Parou a fim de chamar Gilliatt à fala, mas parecia
atarefado e apressado:
—
Há novidade, Gilliatt.
—
Onde?
—
Na casa de Mess Lethierry.
—
O que há?
—
Estou longe para lhe contar o caso.
Gilliatt
estremeceu.
—
Casa-se Miss Déruchette?
—
Não. Mas…
—
Que quer dizer?
—
Vá lá à casa dele, que há de saber.
E
o Sr. Landoys chicoteou o cavalo.
LIVRO QUINTO
O REVÓLVER
CAPÍTULO PRIMEIRO
A PALESTRA NA POUSADA JOÃO
O
Sr. Clubin era o homem que espera a ocasião.
Era
baixo e amarelo, com a força de um touro. O mar não podia com ele. Tinha uma
carne que parecia cera. Era da cor de uma tocha e tinha nos olhos uma luz
discreta. A sua memória tinha um quê de imperturbável e especial. Ver um homem
uma vez era conservá-lo como se fosse uma nota em um registro. O olhar lacônico
apunhalava. A pálpebra tirava a prova de um rosto, e conservava-o; não
importava que o rosto envelhecesse depois, o Sr. Clubin não deixava de
reconhecê-lo. Era impossível fugir àquela memória tenaz. O Sr. Clubin era
breve, sóbrio e frio; não fazia gesto algum. Tinha uns ares de candura que
prendiam logo. Muitas pessoas acreditavam-no simplório; trazia no rosto uma
certa ruga que indicava uma espantosa estupidez. Não havia melhor marinheiro
que ele. Não havia reputação de religiosidade e integridade maior que a sua. Quem
o suspeitasse é que era suspeito. Travara amizade com o Sr. Rebuchet, cambista
em Saint-Malo, Rua de São Vicente, ao lado do armeiro, e o Sr. Rebuchet
costumava dizer que confiaria a sua fábrica a Clubin. O Sr. Clubin era viúvo. A
mulher foi tão honesta como ele. Morreu com a fama de uma virtude invencível.
Se o bailio lhe fizesse uma declaração ela iria contá-lo ao rei, e se Nosso
Senhor se apaixonasse por ela iria contá-lo ao padre vigário. O casal Clubin
realizou em Torteval o ideal do epíteto inglês respectable. A Sra.
Clubin era o cisne; o Sr. Clubin era o arminho. Morreria se lhe pusessem uma
nódoa. Nunca achou um alfinete que não fosse logo à cata do proprietário. Era
capaz de pôr em almoeda uma caixa de fósforos, se acaso a tivesse achado na
rua. Entrou uma vez em uma taberna em Saint-Servan e disse ao taberneiro:
“Almocei aqui há três anos e você enganou-se na conta”. E, dizendo isto,
restituiu ao taberneiro 75 cêntimos. Era uma grande probidade, mordendo
atentamente os beiços.
Parecia
estar sempre à espera. De quem? Provavelmente dos velhacos.
Todas
as terças-feiras levava a Durande de Guernesey a Saint-Malo. Chegava a
Saint-Malo na terça-feira à noite, demorava-se dois dias para fazer o
carregamento e voltava a Guernesey na sexta-feira de manhã. Havia então em
Saint-Malo uma pequena hospedaria, situada no porto, que se chamava a Pousada
João.
A
construção do cais atual fez demolir a pousada. Naquela época vinha o mar até a
porta de Saint-Vincent e a porta de Dinan; Saint-Malo e Saint-Servan
comunicavam-se nas marés baixas por meio de carrinhos que rolavam e circulavam
entre os navios em seco, evitando as bóias, as âncoras e os massames, e
arriscando-se às vezes a rasgar a coberta de couro em alguma verga baixa. No
intervalo de duas marés, os cocheiros fustigavam os cavalos naquela mesma
areia, onde, seis horas depois, vinha o vento chicotear as vagas. Na mesma
praia andavam outrora os 24 cães, porteiros de Saint-Malo, que devoraram um
oficial de marinha em 1770. Tamanho zelo fez suprimir os cães. Já não se ouvem
agora os latidos noturnos entre o pequeno e o grande Tallard.
O
Sr. Clubin ia à Pousada João. Era ali o escritório francês da Durande. Os
guardas da alfândega e os guardas da costa iam comer e beber na Pousada João.
Faziam rancho à parte. Os guardas da alfândega de Binic encontravam-se,
vantajosamente para o serviço, com os guardas da alfândega de Saint-Malo.
Também
lá iam os mestres de navio, mas comiam em outra mesa.
O
Sr. Clubin assentava-se ora numa, ora noutra, mas preferia a dos guardas à dos
mestres. Era bem recebido em ambas.
As
mesas eram bem servidas. Havia as mais apuradas bebidas estrangeiras para os
marítimos expatriados. Um marinheiro gamenho de Bilbau acharia ali um copo de helada.
Bebia-se stout como em Greenwich, e gueuse como em Antuérpia.
Capitães
de longo curso e armadores tomavam às vezes lugar na mesa dos mestres de navio.
Trocavam-se aí notícias:
—
Como vai o açúcar?
—
Pequenos lotes. Vende-se bem o açúcar bruto; 3.000 sacas de Bombaim e
quinhentas barricas de Sagua.
—
Há de ver, o partido da direita ainda derruba o ministério Villele.
—
E o anil?
—
Venderam-se apenas uns sete surrões da Guatemala.
—
A Nanine Julie ancorou. Lindo navio da Bretanha.
—
As duas cidades do rio da Prata estão outra vez desavindas.
—
Quando Montevidéu engorda, Buenos Aires emagrece.
—
Foi preciso deitar ao mar a carga do Regina Coeli, condenado em Calhao.
—
O cacau vai andando; os sacos Caracas são cotados a 234, e os sacos Trindade a
73.
—
Parece que na revista do Campo de Marte ouviu-se gritar: abaixo os ministros.
—
Os couros salgados, Saladeros, vendem-se o dos bois a 60 francos e o das vacas
a 48.
—
Já passaram o Balkan? O que faz Diebitsch?
—
Em San Francisco há falta de anisete. O azeite Plagniol está calmo. O queijo de
Gruyère está a 32 francos o quintal.
—
Com que então, Leão XII morreu?
—
Etc., etc., etc.
Todas
estas coisas eram ditas e comentadas no meio de grande barulho. À mesa dos
guardas da alfândega e dos guardas da costa falava-se menos.
A
polícia das costas e dos portos quer menos sonoridade e menos clareza no
diálogo.
A
mesa dos mestres de navio era presidida por um velho capitão de longo curso, o
Sr. Gertrais-Gaboureau. Não era homem, era um barômetro. Os hábitos do mar
deram-lhe uma espantosa infalibilidade de prognóstico. Ele decretava o tempo
que devia haver no dia seguinte; auscultava o vento; tomava o pulso à maré.
Dizia à nuvem: mostra-me a tua língua. A língua era o relâmpago. Era o doutor
da vaga, da brisa e da lufada. O oceano era o seu doente; fez uma viagem à roda
do mundo como quem faz uma clínica, examinando todos os climas na sua boa e má
saúde; sabia a fundo a patologia das estações. Enunciava fatos como este: o
barômetro desceu uma vez em 1796 a três linhas abaixo da tempestade. Era
marinheiro por amor. Odiava a Inglaterra tanto quanto estimava o mar. Estudou
cuidadosamente a marinha inglesa para conhecer os seus lados fracos. Explicava
em que ponto o Sovereign de 1637 diferia do Royal William de 1670
e do Victory de 1755. Comparava os castelos de popa. Lamentava as torres
no tombadilho e os cestos de gávea afunilados do Great Harry de 1514,
provavelmente no ponto de vista da bala francesa que se aninhava perfeitamente
naquelas superfícies. Para ele as nações só existiam por suas instituições
marítimas; fazia sinônimos extravagantes. Chamava a Inglaterra Trinity House,
a Escócia Northern Commissioners, e a Irlanda Ballast Board.
Abundava de informações; era alfabeto e almanaque. Sabia de cor a portagem dos
faróis, principalmente ingleses; 1 penny por tonelada ao passar diante
deste, 1 farthing ao passar diante daquele. Dizia: o Farol de Smalt
Rock, que consumia apenas 200 galões de azeite, consome agora 500. Achando-se
muito doente um dia, a bordo, a tripulação, que já o tinha por defunto, estava
à roda de sua maca, quando ele interrompeu os soluços da agonia para dar ao
mestre carpinteiro uma ordem relativa a um conserto do navio.
Era
raro que o assunto de conversa fosse sempre o mesmo na mesa dos capitães e na
mesa dos guardas. Apresentou-se, porém, o seguinte caso nos primeiros dias do
mês de fevereiro, em que se passam os fatos que estamos contando. A galera Tamaulipas,
Capitão Zuela, vinda do Chile, e prestes a voltar, chamava a atenção das duas
mesas. Na mesa dos mestres falou-se do carregamento, e na mesa dos guardas
falou-se dos ares suspeitos do navio.
O
Capitão Zuela, de Copiapó, era chileno, um pouco colombiano; tinha feito com
independência as guerras da independência, acompanhando ora Bolívar, ora Morillo,
conforme os lucros a haver. Tinha-se enriquecido obsequiando a toda a gente.
Não havia homem mais bourbônico, mais bonapartista, mais absolutista, mais
liberal, mais ateu e mais católico. Ele pertencia a este grande partido que se
pode chamar o Partido Lucrativo. De tempos a tempos fazia aparições comerciais
na França; e, a acreditar-se nos boatos, dava passagem a bordo aos fugitivos,
bancarroteiros ou proscritos políticos, fossem quem fossem, contanto que
pagassem. O meio de embarcá-los era simples. O fugitivo esperava num ponto
deserto da costa, e, no momento de aparelhar, Zuela destacava um escaler, que
ia buscá-lo. Foi deste modo que na sua precedente viagem fez evadir um homem
implicado no processo Berthon, e desta vez contava levar pessoas comprometidas
na questão da Bidassoa. A polícia, já avisada, estava com o olho nele.
Era
um tempo de fugas aquele. A restauração era uma reação; ora, as revoluções
trazem emigrações, e as restaurações arrastam proscrições. Durante os sete ou
oito primeiros anos, depois da entrada dos Bourbons, espalhou-se o terror em
tudo, nas finanças, na indústria, no comércio, que sentiam tremer a terra e
viam multiplicar-se as falências. Havia um salve-se quem puder na
política. Lavalette fugira. Lefebvre Desnouettes fugira; Delon fugira. Os
tribunais de exceção trabalhavam; depois veio Trestaillon. Fugia-se à ponte de
Saumur, à esplanada de Reole, ao muro do observatório de Paris, à torre de
Taurias d’Avignon, tudo isso que se conserva de pé na história, vestígios da
reação, aonde se distingue ainda a sua mão sanguinolenta.
Em
Londres, o processo Thistlewood, ramificado na França, em Paris o processo
Trogoff, ramificado na Bélgica, na Suíça e na Itália, multiplicaram os motivos
da inquietação e desaparecimento, e aumentaram essa profunda derrota
subterrânea, que deixava vazios os mais altos lugares da ordem social de então.
Pôr-se em segurança era a preocupação universal. O espírito dos tribunais
prebostais sobrevivera à instituição. As condenações eram feitas por complacência.
Fugiam para o Texas, para o Peru, para o México. Os homens da Loire,
salteadores então, paladinos hoje, tinham fundado o campo de Asilo. Dizia uma
canção de Béranger:
Sauvages, nous
sommes français;
Prenez pitié de
notre gloire.
Expatriar-se
era o recurso; porém nada menos simples que fugir; este monossílabo encerra
abismos. Tudo é obstáculo para quem se esquiva. Fugir é disfarçar-se. Pessoas
importantes, e até ilustres, viram-se reduzidas aos expedientes dos
malfeitores. E ainda assim saíam-se mal. Eram inverossímeis. Os seus hábitos de
franqueza tornavam-lhes difícil resvalar pelas malhas da evasão. Um gatuno
fugitivo mostrava-se mais correto aos olhos da polícia do que um general.
Imaginem a inocência constrangida a disfarçar-se, a virtude contrafazendo a
voz, a glória mascarando o rosto. Algum indivíduo que passasse com ar suspeito,
era uma reputação à cata de um passaporte falso. O ar embaraçado de um fugitivo
não provava que ele deixasse de ser um herói. Traços fugazes e característicos
dos tempos, que a história regular esquece, mas que o verdadeiro pintor de um
século deve rememorar. Atrás dos homens honestos, fugiam os tratantes, menos
vigiados, menos suspeitos. Um tratante obrigado a eclipsar-se aproveitava-se da
confusão, fazia parte dos proscritos, e muitas vezes, graças a uma arte
apurada, parecia naquele crepúsculo mais honesto que o honesto. Que há aí mais
acanhado que a probidade diante da justiça? Nada entende, nada finge. Um
falsário escapa-se mais facilmente que um convencional.
Coisa
estranha! Especialmente em relação aos tratantes, quase se pode dizer que a
evasão fazia subir o indivíduo. A quantidade de civilização que um velhaco
levava de Paris ou de Londres valia-lhe por dote nos países primitivos ou
bárbaros, recomendava-o e fazia dele um iniciador. Era fácil que um
aventureiro, escapando ao código, chegasse depois ao sacerdócio. Havia
fantasmagoria na desaparição, e mais de uma evasão tinha os resultados de um
sonho. Uma fuga deste gênero levava ao desconhecido e ao quimérico. Tal
bancarroteiro saía da Europa e aparecia mais tarde grão-vizir em Mogol ou rei
na Tasmânia.
Ajudar
as evasões era uma indústria, e visto a frequência do fato, uma indústria
lucrativa. Esta especulação completava certos gêneros de comércio. Quem queria fugir
para a Inglaterra dirigia-se aos contrabandistas; quem queria fugir para a
América dirigia-se aos trapaceiros de longo curso, tais como Zuela.
CAPÍTULO II
CLUBIN DESCOBRE ALGUÉM
Zuela
ia comer, algumas vezes, à Pousada João. O Sr. Clubin conhecia-o de vista.
E
o Sr. Clubin não era soberbo; não se desprezava de conhecer de vista um
tratante. Às vezes chegava mesmo a conhecê-los de fato, dando-lhes a mão em
plena rua. Falava inglês com o smogler e engrolava o espanhol com o
contrabandista.
A
este respeito tinha ele as seguintes máximas:
—
Pode-se adquirir o bem pelo conhecimento do mal. — O monteiro conversa
proveitosamente com o ladrão de caça. — O piloto deve sondar o pirata; o pirata
é um escolho. — Trata de provar um velhaco como o médico prova o veneno.
Não
tinha réplica. Todos davam razão ao Capitão Clubin. Era aprovado por não ter
escrúpulos tolos. Quem ousaria dizer mal dele? Tudo quanto fazia era para
bem do serviço. Nele tudo era simples. Nada podia comprometê-lo. O cristal
querendo manchar-se não pode. Esta confiança era a justa recompensa de uma
longa honestidade e é essa a excelência das reputações firmes. Fizesse o que
fizesse o Sr. Clubin, todos lhe viam malícia no sentido da virtude; tinha
adquirido a impecabilidade; e de mais a mais dizia-se que era muito esperto;
deste ou daquele encontro que com outra pessoa seria suspeito, a sua probidade
saía sempre com um relevo de habilidade. A fama de habilidade combinava-se
harmoniosamente com a fama de ingenuidade, sem contradição alguma. Ingênuo
hábil é coisa que existe. É uma das variedades do homem honesto e das mais
apreciadas. O Sr. Clubin era desses homens que, encontrados em conversa íntima
com um larápio ou um bandido, são recebidos, compreendidos, e mais respeitados,
e têm ainda por si o piscar de olhos satisfeitos da estima pública.
O
Tamaulipas tinha completado o carregamento. Estava próximo a partir e ia
aparelhar.
Em
uma terça-feira à tarde, ainda com sol, chegou a Durande a Saint-Malo. O Sr.
Clubin, de pé no passadiço e dirigindo a manobra da entrada, descobriu perto de
Petit Bey, na praia, entre dois rochedos, em um lugar muito solitário, dois
homens conversando. Deitou-lhes o óculo e reconheceu um dos homens. Era o
Capitão Zuela. Parece que reconheceu também o outro.
O
outro era alto, um pouco grisalho. Trazia o chapéu largo e o vestuário grave
dos Amigos. Era provavelmente um quaker. Baixava os olhos com modéstia.
Chegando
à Pousada João, o Sr. Clubin soube que o Tamaulipas ia aparelhar dentro
de dez dias.
Soube-se
depois que ele tomara outras informações.
À
noite, entrou em casa do armeiro da Rua de São Vicente, e disse-lhe:
—
Sabe o que é um revólver?
—
Sei — respondeu ele —, é americano.
—
É uma pistola que renova sempre a conversação.
—
Na verdade, ela tem pergunta e resposta.
—
E réplica.
—
É justo, Sr. Clubin. O cano é girante.
—
E cinco ou seis balas.
O
armeiro levantou o cantinho do beiço e fez ouvir aquele estalo de língua, que,
acompanhado de um movimento de cabeça, exprime a admiração.
—
A arma é boa, Sr. Clubin. Creia que há de vir a ser universal.
—
Eu queria um revólver de seis tiros.
—
Não tenho desses.
—
Pois que, o senhor não é armeiro?
—
Mas ainda não tenho desse. Bem vê que é coisa nova. Na França só se fazem
pistolas.
—
Diabo!
—
É coisa que ainda não está no comércio.
—
Diabo!
—
Tenho pistolas excelentes.
—
Quero um revólver.
—
Convenho que é melhor. Mas espere, Sr. Clubin.
—
O que é?
—
Creio que há um em Saint-Malo.
—
Revólver?
—
Sim.
—
Para vender?
—
Sim.
—
Onde?
—
Creio que sei. Hei de informar-me.
—
Quando me dá a resposta?
—
O revólver é bom.
—
Quando devo voltar?
—
Se eu lhe arranjo um revólver, é porque é bom.
—
Quando me dá a resposta?
—
Na sua primeira viagem.
—
Não diga que é para mim.
CAPÍTULO III
CLUBIN LEVA UNS OBJETOS E NÃO OS TRAZ
O
Sr. Clubin fez o carregamento da Durande, embarcou o gado e alguns passageiros,
e, como de costume, saiu de Saint-Malo para Guernesey na sexta-feira de manhã.
Nesse
mesmo dia, quando o navio já estava ao largo, o que permite ao capitão
ausentar-se do tombadilho alguns momentos, Clubin entrou no seu camarote,
fechou-se, pegou em um saco de viagem que tinha, meteu alguma roupa no
compartimento elástico, biscoitos, latas de conserva, algumas libras de cacau,
um cronômetro e um óculo no compartimento sólido, e passou pelas argolas uma
maroma preparada para içá-lo se fosse preciso. Depois desceu ao porão, entrou
no depósito dos cabos e viram-no subir com uma dessas cordas armadas de um
gancho que servem aos calafates no mar e aos ladrões em terra. Essas cordas
facilitam a escalada.
Chegando
a Guernesey, Clubin foi a Torteval. Passou aí 36 horas. Levou o saco e a corda,
mas não voltou com eles.
Digamo-lo
uma vez por todas, o Guernesey de que se trata neste livro é o antigo Guernesey
que já não existe e seria impossível achá-lo hoje, a não ser no campo. É aí que
ele existe vivo, mas nas cidades morreu. A observação que fazemos a respeito de
Guernesey deve ser feita a respeito de Jersey. Saint-Hélier vale Dieppe;
Saint-Pierre-Port vale Lorient. Graças ao progresso, graças ao admirável
espírito de iniciativa daquele valente povo insular, transformou-se tudo em
quarenta anos no arquipélago da Mancha. Onde havia sombra há luz. Dito isto, continuemos.
Naqueles tempos que, pelo afastado, já são históricos, o contrabando ativava-se
no mar da Mancha. Abundavam os navios trapaceiros, principalmente na costa
oeste de Guernesey. As pessoas demasiado informadas e que sabem em todas as
minúcias o que se passava há quase meio século chegam a citar os nomes de
muitos desses navios quase todos asturianos. O que é fora de dúvida é que não
se passava semana, sem que aparecesse um ou dois, ora na baía dos Santos, ora
em Plainmont. Parecia um serviço regular. Havia uma cava de mar em Serk que se
chamava e ainda se chama a loja, porque era nessa gruta que a gente da terra ia
comprar aos contrabandistas as suas mercadorias de importação. Para as
necessidades desse comércio falava-se na Mancha uma espécie de língua
contrabandista, esquecida hoje, e que estava para o espanhol como o levantino
para o italiano.
Em
muitos pontos do litoral inglês e francês o contrabando estava em boa harmonia
com o negócio lícito. Entrava na casa de mais de um financeiro de alta classe,
às escondidas, é verdade; e dilatava-se subterraneamente na circulação
comercial e por todas as vias de indústria. Negociante em público,
contrabandista às escondidas, eis a história de muitas fortunas. Seguin dizia
isto de Bourguin. Bourguin dizia isto de Seguin. Não garantimos o dito de
ambos. Talvez se caluniassem um ao outro. Fosse como fosse, o contrabando
perseguido pela lei estava, sem contestação, muito aparentado no comércio.
Carteava-se com a gema da sociedade. A caverna onde Maudrin acotovelava outrora
o Conde de Charolais era honesta exteriormente e tinha uma fachada
irrepreensível para o lado da sociedade.
Daqui
resultaram muitas conveniências necessariamente mascaradas. Tais mistérios
exigiam sombra impenetrável. Um contrabandista sabia de muitas coisas e devia
guardar segredo; a sua lei era uma fé inviolável e rígida. A primeira qualidade
de um trapaceiro era a lealdade. Sem discrição não há contrabando. Havia o
segredo da fraude como há o segredo da confissão.
Esse
segredo era imperturbavelmente guardado. O contrabandista jurava não dizer nada
e mantinha a sua palavra. Ninguém inspirava mais confiança que um
contrabandista. O juiz alcaide de Oyarzun apanhou um dia um contrabandista e
pôs-lhe a questão para obrigá-lo a declarar quem era o seu caixa de fundos. O
contrabandista não confessou quem era o caixa de fundos. O caixa de fundos era
o juiz alcaide. Dos dois cúmplices, juiz e contrabandista, o primeiro devia,
para cumprir a lei aos olhos de todos, ordenar a tortura, à qual o segundo
resistia para cumprir o juramento.
Os
dois mais famosos contrabandistas que andavam em Plainmont naquela época eram
Blasco e Blasquito. Eram tocaios. Parentesco espanhol e católico que consiste
em ter o mesmo patrão no paraíso, coisa não menos digna de consideração que ter
o mesmo pai na terra.
Quem
estava pouco mais ou menos ao fato do furtivo itinerário do contrabando e
queria falar a esses homens, era isso a coisa mais fácil e mais difícil.
Bastava não ter preconceitos noturnos, ir a Plainmont e afrontar o misterioso
ponto de interrogação que ali se levanta.
CAPÍTULO IV
PLAINMONT
Plainmont,
perto de Torteval, é um dos três ângulos de Guernesey. Há, na extremidade do
cabo, uma coroa de relva que domina o mar. O cume é deserto. Tanto mais deserto
quanto há ali uma casa. Aquela casa aumenta o horror da solidão. Dizem que é
mal-assombrada. Assombrada ou não, o aspecto é medonho. É feita de granito, tem
um só andar e está no meio da relva. Não tem aspecto de ruína. E perfeitamente
habitável. As paredes são grossas e o teto sólido. Não falta uma só pedra às
paredes, nem uma só telha ao telhado. Tem uma chaminé de tijolo. A casa está de
costas para o mar. A fachada do lado do mar é apenas uma parede. Examinando bem
essa parede vê-se uma janela murada. Há três trapeiras, uma a leste, duas a
oeste, muradas todas. A frente da casa tem uma só porta e janelas. A porta é
murada e as duas janelas de baixo também. No primeiro andar, e é isso que
espanta logo ao princípio, há duas janelas abertas; mas as janelas tapadas são
menos assustadoras que as janelas abertas. Por estarem abertas, aparecem negras
em pleno dia. Não têm vidros nem caixilhos. Abrem para as trevas do interior.
Dir-se-ia umas órbitas vazias de olhos arrancados. Nada há naquela casa. Vê-se
pelas janelas abertas o descalabro de dentro. Nem retábulos, nem entalhos de
madeira, pedra nua. Parece um sepulcro com janelas para deixar que os espectros
olhem para fora. As chuvas aluem os alicerces do lado do mar. Algumas urtigas
agitadas pelo vento beijam a barra das paredes. No horizonte, nenhuma habitação
humana. Aquela casa é uma coisa vazia e silenciosa. Mas quem pára e põe o
ouvido à parede ouve confusamente um bater de asas assustadas.
Por
cima da porta tapada, na pedra que faz a arquitrave, estão gravadas estas
letras: ELM — PBILG, e esta data: 1780.
De
noite o luar lúgubre penetra na casa.
Todo
o mar está em roda da casa. A situação é magnífica, e, por consequência,
sinistra. A beleza do lugar torna-se um enigma. Por que motivo aquela casa não é
habitada por nenhuma família humana? O lugar é bonito, a casa é boa. Donde
procede esse abandono? Às perguntas da razão ajuntam-se as perguntas da
superstição. O campo é cultivável, por que motivo está inculto? Não há dono. A
porta, murada. Que tem, pois, esse lugar? Por que foge o homem? Que se faz
aqui? Se não há nada por que é que não há ninguém? Quando todos dormem há
alguém acordado? A lufada tenebrosa, o vento, as aves de rapina, os animais
escondidos, os entes ignorados, aparecem ao pensamento e misturam-se àquela
casa. A que passageiros serve ela de hospedaria? A gente imagina trevas de
granizo e de chuva metendo-se pela janela dentro. Há na parte interior uns
vagos sinais de chuva que gotejou. Os quartos fechados e abertos são visitados
pelo furacão.
Cometer-se-ia
algum crime ali? Parece que aquela casa, à noite, entregue às trevas, deve
chamar por socorro. Será muda? Saem vozes de dentro? Que faz ela na solidão? O
mistério das horas negras existe ali facilmente. A casa assusta ao meio-dia;
que será ela à meia-noite? Contemplando-a, contempla-se um segredo. Pergunta-se
— porque a superstição tem a sua lógica e o possível a sua inclinação — o que
será aquela casa entre o crepúsculo da noite e o crepúsculo da manhã. A imensa
dispersão da vida extra-humana tem acaso naquele cume deserto um vínculo em que
ela pára, e que a obriga a fazer-se visível e a descer? O espaço vai
redemoinhar ali? O impalpável vai ali condensar-se? Enigmas. Sai daquelas
pedras o horror sagrado. A treva que está nesses quartos defesos é mais do que
treva; é o desconhecido. Depois do sol posto voltam barcos de pescadores para
terra, calam-se os pássaros, o cabreiro que está atrás do rochedo vai-se com as
suas cabras, as fendas das pedras darão passagem aos répteis mais animados, as
estrelas começarão a olhar, soprará o vento, far-se-á plena escuridão, as duas
janelas estarão ali escancaradas. Abrem-se para o sonho; e é por aparições,
larvas, fantasmas mal distintos, sombras cobrindo luzes, misteriosos tumultos
de almas e espectros, que a crença popular estúpida e profunda traduz as
sombrias intimidades daquela casa com a noite.
A
casa é mal-assombrada, esta palavra explica tudo.
Os
espíritos crédulos dão a sua explicação; mas os espíritos positivos dão outra.
Nada mais simples do que essa casa, dizem eles. É um antigo posto de
observação, do tempo das guerras da revolução e do império e dos contrabandos.
Foi construída para isso. Acabada a guerra, foi abandonado o posto. Não se
demoliu a casa porque pode tornar-se útil. Taparam-se a porta e as janelas do
rés-do-chão contra os estercorários humanos, e para que ninguém pudesse entrar;
taparam-se as janelas do lado do mar, por causa do vento do sul e do vento do
oeste. Eis tudo.
Os
ignorantes e os crédulos insistem. Em primeiro lugar a casa não foi construída
no tempo das guerras da revolução. Traz a data de 1780, anterior à revolução.
Depois, não foi construída para ser posto; tem as letras ELM — PBILG, que são o
duplo monograma de duas famílias, e que indicam, segundo o uso, que a casa foi
construída para algum jovem casal. Portanto foi habitada. Por que não o é
agora? Se se tapou a porta e as janelas para que ninguém entrasse, por que
motivo deixaram-se abertas duas janelas? Deviam tapar tudo ou nada. Por que não
há vidros, nem caixilhos, nem postigos? Por que fechá-las de um lado, sem
fechá-las de outro? A chuva não entra pelo sul, mas entra pelo norte.
Os
crédulos não têm razão, é certo; mas os positivos também não a têm. O problema
persiste.
O
que é certo é que dizem ter sido a casa mais útil que nociva aos
contrabandistas.
Quando
o medo cresce, os fatos perdem a verdadeira proporção. Não há dúvida que muitos
fenômenos noturnos, entre aqueles de que a pouco e pouco se compôs o assombramento
da casa, poderiam explicar-se por presenças fugitivas e obscuras, curtas
estações de homens logo embarcados, já pelas precauções, já pela ousadia de
certos comerciantes suspeitos, escondendo-se para fazer mal, e deixando-se
entrever para causar medo.
Naquela
época já remota, muitas audácias eram possíveis. A polícia, sobretudo, nos
lugares pequenos, não era o que é hoje.
Ajunte-se
a isto que, se a casa era cômoda aos contrabandistas, as suas entrevistas ali
deviam ser francas, exatamente porque a casa era malvista. O ser malvista impedia
que fosse denunciada. Ninguém pede à polícia socorro contra os espectros. Os
supersticiosos persignam-se, mas não fazem processo. Vêem ou acreditam ver,
fogem e calam. Existe uma conivência tácita involuntária, mas real, entre os
que fazem medo e os que têm medo. Os assustados sentem que fizeram mal em se
assustarem, imaginam ter surpreendido um segredo, receiam agravar a posição
misteriosa para eles, e enfadar as aparições. Isto fá-los discretos. E ainda,
fora deste cálculo, o instinto dos crédulos é o silêncio; o medo é mudo; os
aterrorizados falam pouco; parece que o horror diz: silêncio!
Devem
recordar-se que isto remonta à época em que os camponeses guernesianos
acreditavam que o mistério do presépio era repetido todos os anos pelos bois e
pelos asnos; época em que ninguém, na noite de Natal, ousaria penetrar em uma
estrebaria com receio de encontrar os animais ajoelhados.
Se
se deve acreditar nas legendas locais e narrativas dos camponeses, a
superstição chegou a suspender nas paredes da casa de Plainmont, em pregos de
que ainda existem vestígios, ratos sem pés, morcegos sem asas, arcabouços de
animais mortos, sapos esmagados entre as páginas de uma Bíblia, febras de
tremoços amarelos, estranhos ex-votos pendurados por viandantes imprudentes que
acreditavam ver alguma coisa, e por meio desses presentes contavam obter perdão
e conjurar o mau humor das estriges, das larvas e dos duendes. Houve sempre
quem acreditasse em congressos de feitiçaria, e alguns desses crédulos
altamente colocados. César consultava Sagana, e Napoleão Mademoiselle
Lenormand. Há consciências tão inquietas que chegam a procurar indulgências do
diabo. “Faça-o Deus, mas não o desfaça Satanás”, era uma das orações de Carlos
V.
Há
espíritos mais timoratos ainda. Esses chegam a persuadir-se de que o mal pode
ter razão contra eles. Ser irrepreensível para com o demônio é uma das suas
preocupações. Daí vêm as práticas religiosas voltadas para a imensa malícia
obscura. É uma carolice como qualquer outra. Os crimes contra o demônio existem
em certas imaginações doentias; violar a lei do inimigo é uma coisa que faz
sofrer os estranhos casuístas da ignorância; há escrúpulos para com as regiões
das trevas. Crer na eficácia da devoção aos mistérios do Brocken e de Armuyr,
imaginar que se peca contra o inferno recorrendo a penitências quiméricas por
infrações quiméricas, confessar a verdade ao espírito da mentira; fazer o mea
culpa diante do pai da Culpa, confessar-se em sentido inverso, tudo isto
existe ou existiu. Os processos de magia provam-no em cada uma de suas páginas.
Vai até esse ponto o sonho humano. Quando o homem começa a assustar-se, não
pára mais. Sonha culpas imaginárias, sonha purificações imaginárias, e faz
limpar a sua consciência com a vassoura das feiticeiras.
Fosse
como fosse, se aquela casa teve aventuras, é coisa que lá ficou; pondo de parte
alguns acasos e algumas exceções, ninguém subiu a ver o que era; a casa ficou
só; ninguém gosta de arriscar-se aos encontros infernais.
Graças
ao terror que a cerca e afasta dali todo aquele que pudesse observar e
testemunhar, fácil foi em todos os tempos entrar de noite naquela casa por meio
de uma escada de corda ou simplesmente por meio da primeira tranqueira que se
achasse nas hortas vizinhas. Levava-se um rancho de víveres, o que dava lugar a
esperar ali com toda segurança a eventualidade de um embarque furtivo. Conta a
tradição que há quarenta anos um fugitivo, dizem uns que da política outros que
do comércio, lá esteve algum tempo escondido, e dali embarcou num barco de
pesca para a Inglaterra. Da Inglaterra é fácil passar à América.
A
mesma tradição afirma que as provisões depositadas naquele albergue lá se
conservam sem que ninguém as toque, visto como Lúcifer e os contrabandistas têm
interesse em que a pessoa que lá as põe vá buscá-las.
Do
lugar em que existe aquela casa, vê-se ao sudoeste, a 1 milha da costa, o
escolho de Hanois.
É
célebre aquele escolho. Fez todas as más ações que um rochedo pode fazer. Era
um dos mais temíveis assassinos do mar. Esperava perfidamente os navios à
noite. Entulhou os cemitérios de Torteval e de Rocquaine.
Em
1862 pôs-se ali um farol.
Hoje
o escolho de Hanois alumia a navegação que ele próprio extraviava outrora; a
emboscada traz agora um archote na mão. Procura-se hoje como protetor e guia o
rochedo do qual fugia-se outrora como de um malfeitor. O escolho tranquiliza
aqueles vastos espaços noturnos onde outrora inspirava o medo. Assemelha-se a
um salteador feito soldado de polícia.
Há
três Hanois: o grande Hanois, o pequeno Hanois e a Mauve. No pequeno Hanois é
que existe hoje o Red Light.
O
escolho faz parte de um grupo de picos, uns submarinos, outros acima da água.
Domina-os. Como se fora uma fortaleza, tem baterias avançadas; do lado do mar
alto, um cordão de treze rochas; ao norte, dois cachopos, Hautes-Fourquies e
Aiguillons e um banco de areia, Heronce; ao sul três rochedos, Cat-Rock, Persée
e Roque-Herpin; depois a South Boue e a Boue Mouet, e além disso em frente de
Plainmont, à flor da água, o Tas-de-Pois-d’Aval.
Atravessar
a nado o estreito de Hanois a Plainmont é coisa incômoda, mas não impossível. O
leitor lembra-se de que era essa uma das proezas do Sr. Clubin. O nadador que
conhece os baixios tem duas estações em que pode descansar, a Roque redonda, e,
mais longe, obliquando um pouco à esquerda, a Roque vermelha.
CAPÍTULO V
OS FURTA-NINHOS
Pouco
mais ou menos naquele dia de sábado em que o Sr. Clubin esteve em Torteval,
deu-se um fato singular, pouco assoalhado em princípio e que só transpirou
muito depois. Como dissemos, há muitas coisas que ficam desconhecidas, mesmo
por causa do medo que inspiram às suas próprias testemunhas.
Na
noite de sábado ao domingo (precisamos o dia e cremo-lo exato), três meninos
escalaram o rochedo de Plainmont. Voltavam à vila. Vinham do mar. Eram o que,
na língua local, chamam deniquoiseaux: leia-se denicheoiseaux
(furta-ninhos). Onde quer que haja penhascos na praia e fendas de rochedos
acima do mar há furta-ninhos em abundância. Já falamos deles. O leitor
lembra-se de que Gilliatt preocupava-se com isto, por causa dos pássaros e por
causa das crianças.
Os
furta-ninhos são espécies de gaiatos do oceano, pouco tímidos.
A
noite era escura. Espessas superposições de nuvens escondiam o zênite. Três
horas da manhã soavam no sino de Torteval, que é redondo e pontudo, semelhante
a um chapéu de mágico.
Por
que voltavam tão tarde aqueles pequenos? Nada mais simples. Tinham ido à caça
dos ninhos de cotovias no Tas-de-Pois-d’Aval.
Como
a estação tinha sido amena, começaram cedo os amores dos pássaros. Os pequenos
espreitando os machos e as fêmeas à roda dos ninhos, e distraídos pela
tenacidade da empresa tinham esquecido as horas. Foram cercados pela maré. Não
puderam voltar a tempo para a canoa e tiveram que esperar que o mar se retirasse,
assentados em uma das pontas de Tas-de-Pois. Tal foi o motivo da volta noturna.
Estas voltas são esperadas sempre pela febril inquietação das mães que, uma vez
tranquilas, manifestam a alegria por meio da cólera, e lacrimosas dissipam o
terror a cachações. Por isso os pequenos apressavam-se, mas iam assustados.
Apressavam-se, mas de boa vontade se demorariam, era um certo desejo de não
chegar nunca. Tinham em perspectiva um beijo complicado de sopapo.
Só
um dos meninos nada receava; era um órfão. Era francês e ia bem contente de não
ter naquele dia nem pai nem mãe. Não tendo ninguém que se interessasse por ele,
escapava à bordoada. Os outros dois eram guernesianos e da paróquia de
Torteval.
Escaladas
as rochas, os três furta-ninhos chegaram à planura onde estava a casa
mal-assombrada.
Começaram
por ter medo, dever de todo o viandante, sobretudo crianças, àquela hora e
naquele lugar.
Quiseram
fugir e quiseram parar a fim de contemplar a casa.
Pararam.
Contemplaram
a casa.
Era
negra e formidável.
Era,
naquele deserto, um montão escuro, uma excrescência simétrica e hedionda, uma
alta massa quadrada de ângulos retilíneos, uma coisa semelhante a um enorme
altar de trevas.
O
primeiro pensamento dos meninos tinha sido fugir; o segundo foi aproximar-se.
Nunca tinham visto aquela casa àquela hora. A curiosidade de ter medo existe.
Havia entre eles um francês, donde resultou que os pequenos aproximaram-se da
casa.
É
sabido que os franceses não acreditam em coisa alguma.
Demais,
quando são muitos, todos se tranquilizam; o medo dividido por três dá animação.
E
depois, eram curiosos; eram crianças, somada a idade dos três não dava trinta
anos; era a idade de perscrutar, de escavar, esquadrinhar as coisas ocultas;
deve-se acaso parar no meio? Mete-se a cabeça neste buraco, por que não metê-la
no outro? A caça arrasta; andar em uma descoberta é o mesmo que se meter em um
moinho. Ter olhado para o ninho dos pássaros dá vontade de olhar um pouco para
o ninho dos espectros. Investigar o inferno, por que não?
De
caça em caça, chega-se ao demônio. Depois dos pardais os diabretes. Há vontade
de saber o que é esse medo inspirado pelos pais. Andar na pista dos contos da
carocha é o que há mais resvaladiço. Saber tanto como as contadeiras de
histórias é coisa que tenta.
Todo
este amálgama de idéias no estado de confusão e instinto, na cabeça dos
rapazes, deu em resultado a temeridade deles. Caminharam para a casa.
Demais,
o pequeno que lhes servia de apoio nesta bravura era digno disso. Era um rapaz
resoluto, aprendiz de calafate, uma dessas crianças que já são homens, dormindo
no estaleiro em cama de palha, ganhando a vida, tendo uma voz grossa, trepando
às árvores e às paredes sem escrúpulos a respeito das frutas que encontrava,
tendo trabalhado em consertos de navios de guerra, filho do acaso e do
bambúrrio, órfão alegre, nascido na França, sem saber em que ponto, duas razões
para ser atrevido, dando sem reparar aos pobres, muito mau, muito bom, loiro
rastejando a ruivo, tendo já falado aos parisienses. Agora ganhava 1 xelim por
dia calafetando os barcos dos pescadores. Dando-lhe a veneta punha-se em férias
e ia tirar os ninhos dos pássaros. Tal era o francês.
A
solidão do lugar tinha um não sei quê de fúnebre. Sentia-se a inviolabilidade
ameaçadora. Era medonho. Aquela planura silenciosa e nua escondia no precipício
a sua curva em declive. Embaixo calava-se o mar. Não havia vento. As ervas não
se mexiam.
Os
furta-ninhos avançavam devagar, com o francês à frente, contemplando a casa.
Um
deles, contando depois o fato, ou o pouco que lhe restava na memória,
acrescentava: “A casa não dizia nada”.
Aproximavam-se
retendo a respiração, como quem se aproxima de um animal feroz.
Tinham
subido o cômoro que fica atrás da casa, e que vai ter a um pequeno istmo de
rochedos pouco praticável; estavam perto da casa; mas viam apenas a fachada do
sul, que é toda murada; não tinham ousado voltar à esquerda, o que os teria
exposto a ver a outra fachada em que há apenas duas janelas, o que é terrível.
Entretanto atreveram-se, porque o aprendiz de calafate disse-lhes baixinho:
“Viremos de bombordo; daquele lado é que é bonito; é preciso ver as duas
janelas negras”.
Viraram
de bombordo e chegaram ao outro lado da casa.
As
duas janelas estavam iluminadas.
Os
meninos fugiram.
Quando
estavam longe, voltou-se o francês.
—
Olhem — disse ele — já não há luz.
Com
efeito, não havia luz nas janelas. A casa desenhava-se na lividez difusa do
céu.
O
medo não se foi, mas a curiosidade voltou. Os furta-ninhos aproximaram-se.
De
repente apareceram as luzes outra vez.
Os
dois rapazes de Torteval tornaram a pôr sebo às canelas. O pequeno Satanás
francês não avançou, mas não recuou. Ficou imóvel em frente da casa olhando
para ela.
Extinguiu-se
a luz, depois brilhou de novo. Nada mais horrível. O reflexo fazia um vago
rastilho de fogo na relva úmida pelo orvalho. Em certo momento o clarão
desenhou na parede interior da casa grandes perfis negros que se mexiam e
sombras de cabeças enormes.
Demais
a casa não tinha teto nem tabiques, e, tendo apenas as quatro paredes e o
telhado, uma janela não pode ser iluminada sem que a outra o seja.
Vendo
que o aprendiz de calafate ficava, os outros dois voltaram trêmulos, curiosos.
O aprendiz de calafate disse-lhes baixinho: “Há almas do outro mundo na casa.
Vi o nariz de uma delas”. Os dois pequenos agruparam-se atrás do francês, e
levantando-se sobre a ponta dos pés, por cima do ombro, abrigados por ele,
fazendo dele um escudo, opondo-o à casa, tranquilizados por tê-lo entre si e a
visão, olharam também.
A
casa a seu turno parecia olhar para eles. Tinha, naquela vasta obscuridade
muda, duas órbitas vermelhas. Eram as janelas. A luz eclipsava-se, reaparecia,
eclipsava-se ainda, como essas luzes costumam fazer. Estas intermitências sinistras
representavam provavelmente as alternativas do inferno. Abre-se, fecha-se. O
respiradouro do sepulcro tem efeitos de lanterna surda.
De
repente uma escuridão opaca com forma humana levantou-se em uma das janelas,
como se viesse de fora, depois mergulhou no interior da casa. Parece que alguém
chegava.
Entrar
pela janela era o hábito dos visitantes.
O
clarão apareceu um momento mais vivo, depois apagou-se e não reapareceu mais. A
casa tornou-se escura. Então ouviram-se rumores. Esses rumores pareciam vozes.
É sempre assim. Quando se vê, não se ouve; quando não se vê, ouve-se.
O
mar tem à noite uma taciturnidade particular. O silêncio da sombra é aí mais
profundo que em qualquer outra parte. Quando não há nem vento nem marulho,
naquela agitada extensão de águas, onde de ordinário não se ouvem as águias
voar, ouvir-se-ia voar uma mosca. Aquela paz sepulcral dava um relevo lúgubre
aos rumores que saíam da casa.
—
Vejamos — disse o francês.
E
deu um passo para a casa.
Os
outros dois tinham tal medo que se decidiram a acompanhá-lo. Não ousavam fugir
sós. Acabavam de passar um grande montão de lenha que, sem que o saibamos, os
animava naquela solidão, quando de uma moita voou uma coruja. As corujas têm
uns vôos tortos, de assustadora obliquidade. Aquela passou de través pelos
rapazes, fixando neles os olhos claros no meio da treva.
Houve
um certo estremecimento no grupo atrás do francês.
O
francês clamou contra a coruja.
—
Tarde vens, coruja. Já não é tempo. Quero ver.
E
avançou.
O
ranger dos seus sapatos grossos e ferrados não lhes impedia ouvir os rumores da
casa que se elevavam e baixavam, com a acentuação calma e a continuidade de um
diálogo.
Momentos
depois acrescentou o francês:
—
Demais, só os tolos podem crer em almas do outro mundo.
A
insolência no perigo reúne os retardados e impele-os para a frente.
Os
dois rapazes de Torteval puseram-se a caminho atrás do aprendiz de calafate.
A
casa mal-assombrada fazia-lhes o efeito de crescer desmesuradamente. Nesta
ilusão de óptica do medo, havia realidade. A casa crescia realmente porque eles
aproximavam-se dela.
Entretanto,
as vozes que estavam na casa tornavam-se mais distintas. Os rapazes paravam,
ouviam. O ouvido tem os seus aumentos. Não era murmúrio, era mais que um
cochichar, menos que um alarido. De quando em quando destacava-se uma ou duas
palavras claramente articuladas. Essas palavras, impossíveis de compreender,
soavam estranhamente. Os rapazes paravam, ouviam e depois continuavam a andar.
—
É a conversa das almas do outro mundo, mas eu não creio em almas do outro mundo
— disse o aprendiz de calafate.
Os
pequenos de Torteval tinham vontade de esconder-se atrás da lenha; mas já
estavam longe, e o amigo francês continuava a andar para a casa. Temiam ir com
ele, e não ousavam deixá-lo.
Acompanhavam-no,
a passo e passo e perplexos.
O
aprendiz de calafate voltou-se para eles e disse-lhes:
—
Bem sabem que não é verdade. Não existe nenhuma.
A
casa tornava-se cada vez mais alta.
Aproximavam-se.
Aproximando-se,
reconheciam que havia na casa uma luz abafada. Era um clarão vago, um desses
efeitos de lanterna surda, indicados há pouco, e que abundam na iluminação das
feitiçarias.
Quando
se acharam ao pé da casa, pararam de todo.
Um
dos rapazes de Torteval arriscou esta observação:
—
Não são almas do outro mundo, são fantasmas.
—
Que é aquilo que pende ali à janela? — perguntou o outro.
—
Parece uma corda.
—
É uma serpente.
—
É corda de enforcado — disse o francês com autoridade. — Serve-lhes. Mas eu não
creio.
E
mais em três pulos que em três passos o francês estava ao pé da parede da casa.
Havia febre naquele atrevimento.
Os
outros, trêmulos, imitaram-no, e foram colocar-se ao pé dele, encostando-se um
à direita, outro à esquerda. Os rapazes aplicaram o ouvido à parede.
Continuava-se a falar dentro da casa.
Eis
o que diziam os fantasmas:
—
Assim pois, está entendido?
—
Entendido.
—
Dito?
—
Dito.
—
Aqui esperará um homem e partirá depois para a América com Blasquito?
—
Pagando?
—
Pagando.
—
Blasquito tomará o homem na barca.
—
Sem indagar de que terra ele é?
—
Não temos nada com isso.
—
Sem lhe perguntar o nome?
—
Não se pede o nome, pede-se a bolsa.
—
Bem. O homem esperará nesta casa.
—
Tendo o que comer.
—
Terá.
—
Onde?
—
Neste saco que trago.
—
Muito bem.
—
Posso deixar o saco aqui?
—
Os contrabandistas não são ladrões.
—
E os senhores quando vão?
—
Amanhã de manhã. Se o seu homem está pronto poderá vir conosco.
—
Não está pronto.
—
É lá com ele.
—
Quantos dias esperará aqui?
—
Dois, três, quatro dias. Mais ou menos.
—
É certo que Blasquito virá?
—
Certo.
—
Aqui, a Plainmont?
—
A Plainmont.
—
Em que semana?
—
Na próxima.
—
Em que dia?
—
Sexta, sábado ou domingo.
—
Não pode faltar?
—
É meu tocaio.
—
Virá com qualquer tempo?
—
Qualquer. Não tem medo. Eu sou Blasco, ele é Blasquito.
—
Assim não deixará de ir a Guernesey?
—
Eu venho num mês, ele virá noutro.
—
Entendo.
—
A contar de sábado próximo, de hoje a oito dias não se passarão cinco dias sem
que venha Blasquito.
—
Mas se o mar estiver muito mau?
—
Mau tempo?
—
Sim.
—
Não virá tão depressa, mas virá.
—
Donde virá?
—
De Bilbau.
—
Para onde irá?
—
Para Portland.
—
Bem.
—
Ou para Tor Bay.
—
Melhor.
—
O seu homem pode ficar tranquilo.
—
Blasquito não será traidor?
—
Os covardes são traidores. Somos valentes. O mar é a igreja do inverno. A
traição é a igreja do inferno.
—
Ninguém nos ouve?
—
É impossível ouvir-nos ou ver-nos. O medo faz isto deserto.
—
Sei.
—
Quem se atreveria a escutar?
—
É verdade.
—
Mesmo que escutassem não poderiam entender. Falamos uma língua que ninguém
conhece. Desde que você a sabe, é dos nossos.
—
Eu vim para arranjarmos os negócios.
—
Bem.
—
E agora vou-me embora.
—
Pois sim.
—
Diga-me cá, homem. Se o passageiro quiser que Blasquito vá a outro lugar que
não Portland ou Tor Bay?
—
Traga onças.
—
Blasquito fará o que o homem quiser?
—
Blasquito fará o que as onças quiserem.
—
É preciso muito tempo para ir a Tor Bay?
—
Depende do vento.
—
Oito horas?
—
Mais ou menos.
—
Blasquito obedecerá ao passageiro?
—
Se o mar obedecer a Blasquito.
—
Há de ser bem pago.
—
Ouro é ouro. Vento é vento.
—
É justo.
—
O homem faz o que pode com o ouro. Deus com o vento faz o que quer.
—
O homem que quer ir com Blasquito aqui virá sexta-feira.
—
Bem.
—
A que horas chega Blasquito?
—
À noite. Chega-se à noite, sai-se à noite. Temos uma mulher que se chama água
salgada, e uma irmã que se chama noite. A mulher pode enganar, a irmã nunca.
—
Está dito tudo. Adeus, homens.
—
Boas tardes. Um gole de aguardente?
—
Obrigado.
—
É melhor que xarope.
—
Tenho a sua palavra.
—
O meu nome é Pundonor.
—
Deus seja convosco.
—
Se é fidalgo, eu sou cavalheiro.
Era
claro que só diabos podiam falar assim. Os rapazes não ouviram mais, e desta
vez fugiram deveras, até o francês, que convencido então corria mais depressa
que os outros.
Na
seguinte terça-feira, o Sr. Clubin estava de volta a Saint-Malo trazendo a
Durande.
O
Tamaulipas continuava ancorado.
O
Sr. Clubin, entre duas baforadas de fumo, perguntou ao dono da Pousada João:
—
Então, quando sai o Tamaulipas?
—
Depois de amanhã, quinta-feira — respondeu o estalajadeiro.
Nessa
noite, Clubin ceou à mesa dos guardas das costas, e, contra o costume, saiu
logo depois de cear. Resultou desta saída que não pôde estar presente no
escritório da Durande, e faltou ao carregamento. Foi isto reparado por ser ele
um homem tão exato.
Parece
que ele conversou alguns instantes com o seu amigo cambista.
Voltou
duas horas depois que Noguette tocou a recolher. O sino brasileiro soa às 10
horas. Era, pois, meia-noite.
CAPÍTULO VI
A JACRESSARDE
Há
quarenta anos Saint-Malo possuía uma viela chamada viela Coutanchez. Essa viela
já não existe: foi compreendida nos melhoramentos da cidade.
Era
uma dupla fileira de casas de pau inclinadas umas para as outras, e deixando no
centro lugar suficiente para correr um rego que se chamava rua. Andava-se ali com
as pernas abertas dos dois lados da água lamacenta, abalroando com a cabeça e o
cotovelo as casas da direita e da esquerda.
As
velhas choupanas da Idade Média normanda têm perfis quase humanos. De albergue
a feiticeiro a distância não é grande. Os andares entrantes, as paredes
inclinadas, os alpendres circunflexos e o embrenhado de ferros velhos simulam
lábios, queixos, nariz e sobrancelhas. A trapeira é o olho, zarolho. A face é a
parede rugosa e herpética. Tocam-se as paredes como se conspirassem uma ação
iníqua. Todos estes nomes da antiga civilização, quebra-cabeças e
quebra-ventas, prendem-se àquela arquitetura.
Uma
das casas da viela Coutanchez, a maior, a mais famosa ou a mais afamada,
chamava-se a Jacressarde.
A
Jacressarde era a habitação daqueles que não têm habitação.
Em
todas as cidades, e especialmente nos portos de mar, há, abaixo da população,
um resíduo. Vagabundos, aventureiros, vivendo de expedientes, químicos de
espécie larápio, pondo sempre a vida no alambique, todas as formas do andrajo e
todas as maneiras de vesti-lo, os jubilados da improbidade, as existências em
bancarrota, as consciências que já fizeram balanço, os que abortaram no assalto
e no arrombamento de portas (porque os ladrões trabalham por baixo e por cima),
os operários e as operárias do mal, os velhaquetes e as velhaquinhas, os
escrúpulos rasgados e os cotovelos rotos, os tratantes chegados à indigência,
os malévolos mal recompensados, os vencidos do duelo social, os famintos que
foram devorados, os ganha-pouco do crime, os miseráveis, na dupla e
lamentável acepção da palavra, tal é o pessoal. Ali é bestial a inteligência
humana. É o montão de imundícies das almas. Ajunta-se tudo aquilo a um canto,
onde passa de quando em quando a vassoura policial. Em Saint-Malo esse canto
era a Jacressarde.
O
que se encontra nessas espeluncas não são os grandes criminosos, os bandidos,
os grandes produtos da ignorância e da indigência. Se o assassino é
representado ali, é por algum bêbado brutal; ali o roubo não vai além da ratonice.
É antes o escarro que o vômito da sociedade. O vagabundo sim, o salteador não.
Todavia não há que fiar. Aquele último degrau dos boêmios pode ter extremidades
malvadas. Um dia, lançando a rede no Epi-Scié, que era em Paris o que a
Jacressarde é em Saint-Malo, a polícia apanhou Lacenaire.
Tudo
entra naqueles albergues. A queda é um nivelamento. As vezes a honestidade
esfarrapada escoa-se por ali. A virtude e a probidade têm aventuras. Não se
deve, à primeira vista, estimar os Louvres nem condenar as galés. O respeito
público e a reprovação universal devem ser descascados. Quantas surpresas não
se dão! Um anjo no lupanar, uma pérola no monturo — não é impossível este
sombrio e deslumbrante achado.
A
Jacressarde era mais pátio que casa, e mais poço que pátio. Não tinha andares
para a rua. A fachada era uma alta parede com uma porta baixa. Levantava-se o
ferrolho, empurrava-se a porta, entrava-se em um pátio.
No
meio desse pátio havia um buraco redondo, cercado de uma orla de pedra, ao
nível do chão. Era um poço. O pátio era pequeno, e o poço era grande. Em roda
do bocal do poço o chão era mal calçado.
O
pátio, quadrado, tinha construções por três lados. Do lado da rua, nada; mas
diante da porta, à direita e à esquerda, havia aposentos.
Quem,
à noite, entrasse ali, um pouco arriscadamente, ouviria como que um rumor de
respirações juntas, e se houvesse bastante luar ou estrelas, para dar forma aos
lineamentos obscuros, eis o que veria:
O
pátio. O poço. Em roda do pátio, em frente à porta, uma palhoça figurando uma
espécie de ferradura quadrada, galeria carunchosa, toda aberta, com teto de
vigas, sustentada por pilares de pedra desigualmente espaçados; no centro, o
poço; à roda do poço, em uma liteira de palha, e fazendo como que um rosário
circular, viam-se solas de sapato umas direitas, outras acalcanhadas, dedos
aparecendo pelos buracos dos sapatos, e muitos tornozelos nus, pés de homem,
pés de mulher, pés de criança. Todos esses pés dormiam.
Depois
desses pés, penetrando o olhar na penumbra da palhoça, distinguiam-se corpos,
formas, cabeças adormecidas, prolongamentos inertes, farrapos de ambos os
sexos, uma promiscuidade no monturo, um sinistro jazido humano. Era um quarto
de dormir para todos. Pagavam-se 2 soldos por semana. Os pés tocavam no poço.
Nas noites de tempestade, chovia sobre os pés; nas noites de inverno, caía neve
sobre os corpos.
Quem
eram aquelas criaturas? Os desconhecidos. Iam ali de noite e saíam de manhã. A
ordem social anda misturada com aquelas larvas. Alguns esgueiravam-se ali de
noite e não pagavam. A maior parte entrava em jejum. Todos os vícios, todas as
abjeções, todas as suposições, todas as misérias, o mesmo sono de prostração no
mesmo leito do lodo. Os sonhos de todas essas almas faziam boa vizinhança.
Fúnebre entrevista em que se remexiam e se amalgamavam no mesmo miasma os
cansaços, os desfalecimentos, as borracheiras incubadas, as marchas e
contramarchas de um dia sem um pedaço de pão e sem um bom pensamento, as noites
lívidas e sonolentas, remorsos, cobiças, cabelos imundos, rostos com o olhar da
morte, beijos, talvez, das bocas da treva. A podridão humana fermentava naquela
tina. Eram atiradas àquele albergue pela fatalidade, pela viagem, pelo navio
chegado na véspera, por uma saída de prisão, pelo acaso, pela noite. O destino
vazava ali, todos os dias, a sua alcofa. Entrava quem queria, dormia quem
podia, falava quem ousava. Era próprio para cochichar. Todos se apressavam em
misturar-se. Tratavam de esquecer-se no sono, visto que não podiam perder-se na
sombra. Tiravam à morte aquilo que podiam. Fechavam os olhos naquela agonia
confusa que todas as noites começava. Donde saíam? Da sociedade, porque eram a
miséria; da vaga, porque eram a espuma.
Nem
todos tinham palha. Mais de uma nudez estava ali no chão; deitavam-se
estafados; erguiam-se anquilosados. O poço sem parapeito e sem tampa, sempre
aberto, tinha 30 pés de profundidade. Caía ali a chuva, escorriam as
imundícies, filtravam todos os escoamentos do pátio. A caçamba para tirar água
ficava a um lado. Quem tinha sede bebia. Quem estava aborrecido afogava-se. Do
sono do monturo passava-se ao sono do poço. Em 1819 tirou-se dali um menino de
catorze anos.
Para
não correr risco naquela casa era preciso ser da laia. Os estranhos eram
malvistos.
Conheciam-se
acaso entre si aquelas criaturas? Não; farejavam-se.
A
dona da casa era uma mulher moça, assaz bonita, trazendo um barrete ornado de
fitas, lavada às vezes com água do poço e tendo uma perna de pau.
Desde
madrugada esvaziava-se o pátio; iam-se embora os fregueses.
Havia
no pátio um galo e algumas galinhas, que esgaravatavam no esterco durante o
dia. O pátio era atravessado por um barrote horizontal, colocado sobre postes,
figura de forca, que não estava ali em terra estranha. Via-se às vezes
estendido no barrote, no dia seguinte às noites chuvosas, um vestido de seda
molhado e enlameado, pertencente à mulher da perna de pau.
Acima
da palhoça e circulando o pátio havia um andar superior e acima do andar um
celeiro. Subia-se até lá por uma escada de madeira podre que furava o teto;
escada vacilante por onde subia com estrépito a mulher coxa.
Os
locatários de arribação, por semana ou por noite, moravam no pátio; os
locatários residentes moravam na casa.
Janelas,
nem um caixilho; portas, nem uma ombreira; lareiras, nem um fogão; era a casa.
Passava-se de um quarto a outro indiferentemente por um buraco quadrado e
comprido que fora porta, ou por uma fresta triangular que ficava entre duas
pilastras do tabique. A caliça caída cobria o assoalho. Não se sabia como
aquela casa estava em pé. O vento não a abalava. Mal se podia subir pela escada
gasta e escorregadia. Tudo estava aberto. O inverno entrava na casa como água
em esponja. A abundância das aranhas tranquilizava os moradores contra o
desmoronamento imediato. Mobília nenhuma. Dois ou três enxergões nos cantos,
rotos no centro, deixando ver mais cinza que palha, aqui e ali uma bilha e um
alguidar, servindo para diversos usos. Cheiro insípido e hediondo.
As
janelas davam sobre o pátio. De cima o pátio assemelhava-se a um carro de lama.
As coisas, sem contar os homens que ali apodreciam e enferrujavam-se, eram
indescritíveis. Os destroços fraternizavam: caíam paredes, caíam criaturas. Os
trapos semeavam entulhos.
Além
da população flutuante alojada no pátio, a Jacressarde tinha três inquilinos,
um carvoeiro, um trapeiro e um fabricante de ouro. O carvoeiro e o trapeiro
ocupavam dois enxergões no primeiro andar; o fabricante de ouro, químico,
morava nas águas-furtadas, que também se chamavam sótão. Não se sabia em que
lugar dormia a mulher. O fabricante de ouro era um tanto poeta. Habitava
debaixo das telhas, num quarto em que havia uma trapeira estreita e uma grande
chaminé de pedra, golfão onde ia rugir o vento. A trapeira não tinha caixilhos;
o fabricante de ouro pregou em cima um pedaço de ferro em folha, proveniente de
um rasgão de navio. A folha deixava passar pouca luz e muito frio. O carvoeiro
pagava a casa com um saco de carvão de quando em quando; o trapeiro pagava com
um cestário de grãos para as galinhas, cada semana; o fabricante de ouro não
pagava nada. Entretanto, ia queimando a casa. Já tinha arrancado a pouca
madeira, e a cada instante tirava da parede, ou do teto, uma ripa para aquecer
a caldeira do ouro. No tabique acima do grabato do trapeiro viam-se em duas
colunas algarismos feitos com greda, escritos pelo trapeiro todas as semanas,
uma coluna de três e uma coluna de cinco, conforme o cestário de grão custasse
3 liardes ou 5 cêntimos. A caldeira do químico era uma velha bomba quebrada promovida
por ele ao cargo de caldeira, e que lhe servia para combinar os ingredientes. A
transmutação absorvia-o. Algumas vezes falava nisso aos maltrapilhos do pátio,
que deitavam a rir. Dizia ele: “Aquela gente está cheia de preconceitos”.
Estava resolvido a não morrer sem atirar a pedra filosofal às vidraças da
ciência. O forno com que trabalhava comia muita lenha. Já o patamar da escada
tinha desaparecido. Ia-se toda a casa paulatinamente. Dizia a hoteleira: “Neste
andar só me fica o casco”. O químico abrandava-lhe a cólera fazendo-lhe versos.
Tal
era a Jacressarde.
O
criado da casa era um menino, talvez anão, contando doze anos ou sessenta de
idade, cheio de borbulhas, e trazendo sempre uma vassoura na mão.
Os
frequentadores entravam pela porta do pátio; o público entrava pela porta da
loja. O que era a loja?
A
alta parede que dava para a rua tinha à direita da entrada do pátio uma
abertura feita em esquadria, que era a um tempo porta e janela, tendo postigo e
caixilhos; o postigo era o único da casa que tinha eixos e fechaduras, o
caixilho era o único que tinha vidros. Por trás da janela que abria sobre a rua
havia um pequeno quarto que tomava uma parte do telheiro de dormir. Lia-se na
porta da rua este dístico feito com carvão: “Aqui encontram-se as
curiosidades”. A palavra já corria mundo. Sobre três tábuas que fingiam
prateleiras colocadas por trás de vidraças, viam-se alguns potes de porcelana
falsa, sem asa, um chapéu de sol chinês feito de pergaminho delgado, ornado de
figuras, furado em diversos pontos, impossível de abrir e fechar, cadinhos de
ferro, louça informe, chapéus de homem e mulher estragados, três ou quatro
conchas, alguns embrulhos de botões de osso e de cobre já velhos, uma boceta
com o retrato de Maria Antonieta, e um volume truncado da álgebra de
Boisbertrand.
Tal
era a loja. Aquele sortimento era a curiosidade. A loja comunicava por uma
porta do fundo com o pátio onde estava o poço. Tinha uma mesa e um escabelo. A
mulher da perna de pau era a moça do balcão.
CAPÍTULO VII
COMPRADORES NOTURNOS E VENDEDOR
TENEBROSO
Clubin
não foi à Pousada João, nem na noite de terça-feira, nem na noite de
quarta-feira.
Nesta
noite, ao escurecer, dois homens entraram pela viela Coutanchez; pararam diante
da Jacressarde. Um deles bateu na vidraça. Abriu-se a porta da loja. Entraram
ambos. A mulher da perna de pau deu-lhes o sorriso reservado aos burgueses.
Havia uma vela sobre uma mesa.
Os
dois homens eram efetivamente burgueses.
O
homem que tinha batido na vidraça disse:
—
Boa noite, mulher. Venho por aquilo.
A
mulher da perna de pau sorriu segunda vez e saiu pela porta que dava para o
pátio. Minutos depois abriu-se de novo a porta, e apareceu um homem pela
fresta, trazendo boné e blusa, debaixo da qual havia um objeto volumoso. Tinha
uns fios de palha nas dobras da blusa e pelos olhos via-se que acabava de
acordar.
O
homem avançou. Olharam-se todos. O homem da blusa tinha um ar turvado e
esperto.
—
O senhor é o armeiro? — disse ele.
O
homem que tinha batido respondeu:
—
Sim. O senhor é o Parisiense?
—
Chamado Peaurouge. Sim.
—
Deixe ver.
—
Aqui está.
O
homem tirou debaixo da blusa um instrumento muito raro na Europa naquela época,
um revólver.
O
revólver era novo e brilhante. Os dois burgueses examinaram-no. O que pareceu
conhecer a casa e a quem o homem da blusa chamou armeiro fez mover o mecanismo.
Entregou depois a arma ao outro burguês, que parecia não ser morador na cidade,
e que se conservava com as costas voltadas para a luz.
O
armeiro perguntou:
—
Quanto custa?
O
homem da blusa respondeu:
—
Venho da América. Há pessoas que trazem macacos, papagaios, animais, como se os
franceses fossem selvagens. Eu trouxe isto. É uma invenção útil.
—
Quanto custa? — perguntou de novo o armeiro.
—
É uma pistola que faz molinete.
—
Quanto custa?
—
Paf. Primeiro tiro. Paf. Segundo tiro. Paf… é uma saraivada! Isto faz obra.
—
Quanto custa?
—
Tem seis canos.
—
Mas quanto custa?
—
Seis canos são 6 luíses.
—
Quer 5 luíses?
—
Impossível. Um luís por cada bala. É o preço.
—
Quer fazer negócio, seja razoável.
—
Já disse o preço. Examine-me esta obra, senhor arcabuzeiro.
—
Já examinei.
—
O molinete anda de roda como o Sr. Talleyrand. Podiam pôr este molinete no
dicionário das ventoinhas. É uma jóia.
—
Já vi.
—
Os canos são de fábrica espanhola.
—
Já reparei.
—
São lavrados. A coisa arranja-se assim. Deita-se na forja uma alcofa de ferros
velhos, cravos, ferraduras quebradas…
—
E velhas lâminas de foices.
—
Ia dizê-lo, senhor armeiro. Depois deita-se em cima uma boa porção de fogo, e
sai disto tudo um magnífico instrumento de ferro.
—
Sim, mas pode ter gretas e buraquinhos; pode sair esconso.
—
Sim. Mas tudo se arranja.
—
O senhor é do ofício?
—
Tenho todos os ofícios.
—
Os canos são brancos.
—
É beleza, senhor armeiro. Faz-se isto com borra de antimônio.
—
Dizíamos nós que isto custa 5 luíses.
—
Tomo a liberdade de observar que eu tive a honra de dizer 6 luíses.
O
armeiro abaixou a voz.
—
Ouça, Parisiense. Aproveite a ocasião. Desfaça-se disto. Isto para vocês não
vale nada. Chama a atenção.
—
Na verdade — disse Parisiense —, é um tanto vistoso. É melhor para um burguês.
—
Quer 5 luíses?
—
Não, 6. Um por cada buraco.
—
Pois bem, 6 napoleões.
—
Quero 6 luíses.
—
Não é bonapartista. Prefere um luís a um napoleão?
Parisiense
sorriu.
—
Napoleão é melhor — disse ele —, mas luís vale mais.
—
Seis napoleões.
—
Seis luíses. É para mim uma diferença de 80 francos.
—
Então não fazemos nada.
—
Pois sim. Guardo o revólver.
—
Guarde.
—
Abater o preço! pois não! não se dirá que eu me desfiz sem mais nem menos de
uma invenção destas!
—
Então, boa noite.
—
É um progresso sobre a pistola, que os índios chesapeakes chamam Nortay-u-Hoh.
—
Cinco luíses à vista, é ouro.
—
Nortay-u-Hoh quer dizer espingarda pequena. Muitas pessoas ignoram isto.
—
Quer 5 luíses e mais 1 escudo?
—
Eu já disse que custa 6.
O
homem que estava de costas para a luz, e que ainda não tinha falado, fazia
mover o mecanismo. Aproximou-se do armeiro e disse-lhe ao ouvido:
—
A arma é boa?
—
Excelente.
—
Eu dou os 6 luíses.
Cinco
minutos depois, enquanto Parisiense apertava em um buraco feito na manga da
blusa os 6 luíses de ouro que acabava de receber, o armeiro e o comprador, levando
no bolso da calça o revólver, saíram da viela Coutanchez.
CAPÍTULO VIII
CARAMBOLA DA BOLA VERMELHA E DA BOLA
PRETA
No
dia seguinte, que era quinta-feira, a pouca distância de Saint-Malo, perto da
ponta do Decollé, num lugar em que as rochas das praias são altas, e o mar
profundo, passou-se uma coisa trágica.
Nada
mais frequente na arquitetura do mar que uma língua de rochedos em forma de
lança, que se prende à terra por um istmo estreito, prolonga-se na água e
acaba-se aí bruscamente em forma de rochedo a pique. Para chegar ao alto desse
rochedo, indo da praia, segue-se um plano inclinado cuja subida é às vezes
assaz difícil.
No
alto de um rochedo desse gênero, achava-se em pé, pelas 4 horas da tarde, um
homem embrulhado em uma larga capa de uniforme, e provavelmente armado, o que
era fácil de reconhecer por certas dobras retas e angulosas do manto. O sítio
em que estava esse homem era uma plataforma assaz vasta semeada de cubos à
semelhança de seixos imensos, deixando entre si estreita passagem. Esta
plataforma onde brotava uma ervazinha estreita e curta terminava do lado do mar
por um espaço livre, que ia dar a um despenhadeiro, de uns 60 pés de altura,
acima do mar, e parecia talhado com um prumo. Entretanto, o ângulo da esquerda
ia-se arruinando e oferecia uma dessas escadas naturais próprias aos granitos
marinhos, cujos degraus pouco cômodos exigem às vezes pernas de gigante ou
pulos de clowns. Descia perpendicularmente ao mar e mergulhava nas águas. Era
um quebra-costas. Podia-se, contudo, a rigor, ir por ali embarcar na muralha da
língua de rochas.
Soprava
uma brisa. O homem, apertado na capa, firme nas pernas, com o cotovelo direito
na mão esquerda, piscava um olho e aplicava ao outro um óculo. Parecia absorto
em uma atenção séria. Aproximou-se da borda do rochedo, e ali estava imóvel com
o olhar imperturbavelmente fito no horizonte. A maré estava cheia. A vaga batia
por baixo dele no sopé do rochedo.
O
que o homem observava era um navio ao largo que fazia manobras singulares.
Esse
navio, que apenas uma hora antes saíra de Saint-Malo, tinha parado por trás dos
Banquetiers. Era uma galera. Não tinha deitado âncora, talvez porque o fundo
não lho permitisse, e porque o navio teria prendido a âncora debaixo do
gurupés. Limitou-se a pôr-se à capa.
O
homem, que era guarda-costa, como o uniforme indicava, espiava todas as
manobras do navio e parecia tomar nota mentalmente. O navio tinha atravessado:
era o que indicava a vela ré alada a barlavento, e as de proa largas por mão;
tinha braceado o pano de ré o mais que lhe foi possível, de forma que
neutralizava a força dos de proa. Deste modo, caindo a sotavento, não perdia
mais de milha e meia por hora.
O
dia ainda estava claro, sobretudo em pleno mar e no alto das rochas. Mas ao pé
das costas começava a escurecer.
O
guarda-costa, entregue ao seu trabalho, e espionando conscienciosamente ao
largo, não tinha pensado em examinar o rochedo ao lado e embaixo. Dava as
costas para a escada pouco praticável que punha em comunicação a plataforma com
o mar. Não reparou que alguma coisa andava ali em movimento. Havia nessa
escada, por trás da anfratuosidade, alguma pessoa, um homem escondido ali,
segundo parecia, antes da chegada do guarda-costa. De tempos a tempos na
sombra, aparecia uma cabeça por baixo da rocha, olhava para cima e espiava o
espião. Essa cabeça coberta por um largo chapéu americano era a cabeça do quaker,
que uns dez dias antes falara nas pedras do Petit Bey ao Capitão Zuela.
De
repente pareceu redobrar a atenção do guarda-costa.
Limpou
rapidamente com a manga o vidro do óculo e firmou-o com energia sobre o navio.
Destacara-se
um ponto negro.
O
ponto negro, semelhante a uma formiga no mar, era uma barcaça. A barcaça
parecia querer ganhar a terra. Era tripulada por alguns marinheiros que remavam
vigorosamente.
Já
obliquava a pouco e pouco e dirigia-se para a ponta do Decollé.
A
espreita do guarda-costa chegou ao seu maior grau de fixidez. Ele não perdia
nenhum dos movimentos da barcaça. Aproximou-se mais ainda da borda do rochedo.
Neste
momento um homem de alta estatura, o quaker, surgiu por trás do
guarda-costa, no alto da escada. O espião não viu o quaker.
Parou
este alguns instantes, com os braços caídos e os punhos crispados, e, com o
olhar do caçador que aponta, olhou para as costas do espião.
Quatro
passos apenas o separavam do guarda-costa; adiantou um pé, depois parou; deu
outro passo e parou outra vez; o único movimento que fazia era andar, o resto
do corpo era estátua; o pé firmava-se na relva sem rumor; deu terceiro passo e
parou; estava quase tocando o guarda-costa, sempre imóvel, com o óculo fixo. O
homem ajuntou as duas mãos fechadas na altura das suas clavículas, depois,
bruscamente, abateram-se os antebraços, e os dois punhos, como que soltos por
uma mola, bateram nos ombros do guarda-costa. O choque foi sinistro. O
guarda-costa nem teve tempo de soltar um ai. Caiu de cabeça no mar.
Viram-se-lhe os pés durante o tempo de um relâmpago. Foi uma pedra na água. A
água cerrou-se depois, descrevendo dois ou três grandes círculos.
Ficou
apenas o óculo escapo às mãos do guarda-costa e caído no chão. O quaker
inclinou-se à borda das rochas, viu acalmar-se a água, esperou alguns minutos,
depois endireitou-se, cantando entre os dentes:
Monsieur de a
police est mort
En perdant a
vie.
Inclinou-se
outra vez. Nada reapareceu. Somente no lugar onde o guarda-costa tinha caído,
formou-se na superfície da água uma espécie de espessura negra, que se alargava
no movimento da vaga. Era provável que o guarda-costa tivesse quebrado o crânio
em alguma rocha submarina. O sangue subira e fazia aquela mancha na espuma.
O
quaker, contemplando aquela mancha, continuou:
Un quart d’heure
avant sa mort,
Il était encore…
Não
acabou.
Ouviu
atrás de si uma voz doce que lhe dizia:
—
Ora viva, Rantaine. Acaba o senhor de matar um homem. Ele voltou-se, e viu a
quinze passos, no intervalo de dois rochedos, um homem baixo que tinha um
revólver na mão.
Respondeu:
—
Como vê. Bom dia, Sr. Clubin.
O
homem baixo estremeceu.
—
Reconheceu-me?
—
Não me reconheceu o senhor? — disse Rantaine.
Entretanto,
ouviu-se um rumor de remos no mar. Era a barcaça observada pelo guarda-costa
que se aproximava.
O
Sr. Clubin disse a meia-voz como se falasse consigo:
—
A coisa foi rápida.
—
Em que precisa de mim? — perguntou Rantaine.
—
Pouca coisa. Há quase dez anos que nos não vemos. O senhor há de ter feito bons
negócios. Como está de saúde?
—
Bem — disse Rantaine. — E o senhor?
—
Perfeitamente — respondeu Clubin.
Rantaine
deu um passo para o Sr. Clubin.
Um
pequeno som chegou aos seus ouvidos. Era o Sr. Clubin que armava o revólver.
—
Rantaine, estamos a quinze passos. É uma boa distância. Fique onde está.
—
Ah! Mas o que quer o senhor de mim?
—
Venho conversar.
Rantaine
não se mexeu. O Sr. Clubin continuou:
—
O senhor matou agora mesmo um guarda-costa.
Rantaine
levantou a aba do chapéu e respondeu:
—
Já me fez a honra de dizê-lo.
—
Em termos menos precisos. Disse há pouco: um homem; agora digo: um
guarda-costa. O guarda-costa tinha o número 619. Era um pai de família. Deixa
mulher e cinco filhos.
—
Deve ser assim — disse Rantaine. Houve um imperceptível tempo de silêncio.
—
São homens escolhidos esses guarda-costas — disse Clubin. Quase todos antigos
marítimos.
—
Notei que em geral deixam mulher e cinco filhos.
Clubin
continuou:
—
Adivinhe quanto me custou este revólver.
—
É um lindo instrumento — respondeu Rantaine.
—
Quanto vale?
—
Vale muito.
—
Custou-me 144 francos.
—
Comprou naturalmente na loja de armas da Rua Coutanchez.
Clubin
continuou.
—
O guarda-costa nem gritou. A queda corta a voz.
—
Sr. Clubin, há de ventar esta noite.
—
Eu sou o único que sei do segredo.
—
Continua a morar na Pousada João?
—
Sim. Vive-se bem ali.
—
Já lá comi muito boa couve fermentada.
—
Rantaine, o senhor deve ser excessivamente forte. Tem cada espádua! Não seria
eu quem lhe levaria um piparote. Era tão raquítico quando vim ao mundo, que nem
se sabia se me poderiam criar.
—
Felizmente criou-se.
—
Sim, e continuo a morar na Pousada João.
—
Sabe por que motivo eu o reconheci, Sr. Clubin? Porque o senhor me tinha
reconhecido. Disse comigo: só Clubin pode reconhecer-me. E adiantou um passo.
—
Fique onde estava, Rantaine. Rantaine recuou e disse à parte:
—
A gente torna-se criança diante destes instrumentos.
O
Sr. Clubin continuou.
—
Situação. Temos aqui à direita, do lado de Saint-Enogat, a trezentos passos,
outro guarda-costa, número 618, que está vivo, e à esquerda, do lado de
Saint-Lunaire, um posto de alfândega. Sete homens armados que podem estar aqui
dentro de cinco minutos. O rochedo ficará cercado. O desfiladeiro ficará
guardado. Impossível fugir. Há um cadáver ao pé da rocha.
Rantaine
deitou um olhar oblíquo ao revólver.
—
Como diz, Rantaine. É um lindo instrumento. Talvez esteja carregado com pólvora
seca. Mas que importa? Basta um tiro para fazer correr a força armada. Tenho
seis tiros.
O
choque alternativo dos remos tornava-se mais distinto. A barcaça não estava
longe.
O
homem alto olhava estranhamente para o homem baixo. O Sr. Clubin falava com um
ar cada vez mais tranquilo e doce.
—
Rantaine, os homens da barcaça que vai chegar, sabendo o que fez há pouco,
ajudar-me-iam a prendê-lo. O senhor paga 10.000 francos de passagem ao Capitão
Zuela. Entre parênteses, a passagem ficaria mais barata se tratasse com os
contrabandistas de Plainmont, mas estes só o levariam para Inglaterra, e demais
o senhor não pode arriscar-se a ir a Guernesey, onde há quem tenha a honra de
conhecê-lo. Volto à situação. Se eu disparar, prendem-no. Nesse caso pagará a
Zuela 10.000 francos de fuga. Já lhe deu 5.000 francos; Zuela guardará esses
5.000 francos e vai-se embora. É isto, Rantaine, acho-o bem rebuçado. Esse
chapéu, esse casaco e essas polainas disfarçam-no. Esqueceram-lhe os óculos.
Fez bem em deixar crescer as suíças.
Rantaine
sorriu como quem range os dentes. Clubin continuou:
—
Rantaine, o senhor tem uma calça americana com duas algibeiras. Numa delas tem
o seu relógio. Guarde-o.
—
Obrigado, Sr. Clubin.
—
Na outra há uma caixinha de ferro batido, que abre e fecha por molas. É uma
velha boceta de marinheiro. Tire-a do bolso e atire-a para cá.
—
Mas isto é um roubo!
—
Pode chamar a guarda.
E
Clubin fixou os olhos em Rantaine.
—
Olhe, Mess Clubin… — disse Rantaine dando um passo e estendendo a mão aberta.
Mess
era uma lisonja.
—
Fique onde está, Rantaine.
—
Mess Clubin, arranjemos as coisas. Ofereço-lhe metade.
Clubin
executou um cruzar de braços, mostrando a boca do revólver.
—
Rantaine, que pensa que eu sou? Sou um homem honrado. E acrescentou, depois de
uma pausa:
—
Quero tudo.
Rantaine
disse entre dentes:
—
É temível este.
Entretanto,
acenderam-se os olhos de Clubin. A voz tornou-se cortante como o aço. Disse
ele:
—
Creio que se engana. O seu nome é que é Roubo, o meu é Restituição. Ouça,
Rantaine. Há dez anos saiu o senhor de Guernesey à noite, tomando da caixa de
uma sociedade 50.000 francos que lhe pertenciam e esquecendo de lá deixar
50.000 francos que pertenciam a outro. Esses 50.000 francos roubados ao seu
sócio, o excelente e digno Mess Lethierry, fazem hoje, com os juros acumulados
de dez anos, 80.666 francos e 66 cêntimos. O senhor entrou ontem na casa de um
cambista. Reluchet chama-se ele, Rua de São Vicente. Deu-lhe 76.000 francos em
bilhetes de banco franceses e em troca deu-lhe ele três bank-notes da
Inglaterra de 1.000 libras esterlinas cada uma, e mais uns trocos. O senhor pôs
essas bank-notes na boceta de ferro e a boceta de ferro na algibeira direita.
As 3.000 libras esterlinas fazem 75.000 francos. Em nome de Mess Lethierry
contento-me com isso. Parto amanhã para Guernesey, e vou levar-lhos. Rantaine,
a galera que ali está à capa é o Tamaulipas. O senhor embarcou ali esta
noite as malas misturadas com os sacos e canastras da equipagem. Quer sair da
França. Tem suas razões para isso. Vai a Arequipa. A barcaça vem buscá-lo. Está
à espera dela. Ela aí vem. Já a estamos ouvindo. Depende de mim deixá-lo partir
ou obrigá-lo a ficar. Basta de palavras. Atire cá a boceta de ferro.
Rantaine
abriu a bolsa, tirou uma caixinha de ferro e atirou-a a Clubin. A caixinha foi
rolar aos pés de Clubin.
Clubin
inclinou-se sem abaixar a cabeça, e apanhou a boceta, tendo dirigidos contra
Rantaine os dois olhos e os seis canos do revólver.
Depois
disse:
—
Meu amigo, volte as costas.
Rantaine
voltou as costas.
O
Sr. Clubin pôs o revólver debaixo do braço e apertou a mola da caixinha. A
caixinha abriu-se.
Havia
dentro quatro bank-notes, três de 1.000 libras, e uma de 10 libras.
Clubin
dobrou as três notas de 1.000 libras, pô-las outra vez na caixinha, fechou-a e
meteu-a no bolso.
Depois
apanhou no chão uma pedra. Embrulhou a pedra no bilhete de 10 libras e disse:
—
Volte para cá.
Rantaine
voltou-se.
O
Sr. Clubin continuou:
—
Disse-lhe que me contentava com as 3.000 libras. Aqui vão as 10 libras.
E
atirou a Rantaine o bilhete e mais o lastro de pedra.
Rantaine,
com um pontapé, deitou o bilhete e a pedra ao mar.
—
Como queira — disse Clubin. — Vamos lá, o senhor há de estar rico. Estou tranquilo.
O
rumor dos remos que se tinha aproximado durante o diálogo cessou. Indicava isto
que a barcaça estava ao pé das rochas.
—
Está embaixo o seu carro. Pode ir, Rantaine.
Rantaine
dirigia-se para a escada e desceu.
Clubin
foi com precaução até a borda do rochedo e adiantando a cabeça, viu descer
Rantaine.
A
barcaça tinha parado ao pé do último degrau do rochedo, no mesmo lugar em que
tinha caído o guarda-costa.
Vendo
descer Rantaine, Clubin murmurou:
—
Bom número 619! Pensava que estava só. Rantaine pensava que eram apenas dois.
Só eu sabia que éramos três.
Clubin
viu no chão o óculo do guarda-costa; apanhou-o.
Começou
o ruído dos remos. Rantaine acabou de pular na barcaça e esta tomava o largo.
Quando
Rantaine achou-se na barca, indo-se já afastando dos rochedos, levantou-se
bruscamente, a face tornou-se-lhe monstruosa; mostrou o punho e gritou:
—
Ah! o próprio diabo é um canalha!
Instantes
depois, Clubin do alto das rochas e fixando o óculo na barcaça, ouviu
distintamente estas palavras, articuladas por uma voz grossa, no meio do rumor
do mar:
—
O Sr. Clubin é um homem honrado, mas consinta que eu escreva a Lethierry para
participar-lhe o fato, e aqui vai nesta barcaça um marinheiro de Guernesey que
é da equipagem do Tamaulipas, que se chama Ahier-Tortevin, e que há de
voltar a Saint-Malo, na próxima viagem de Zuela e que será testemunha de que eu
lhe entreguei para Mess Lethierry a soma de 3.000 libras esterlinas.
Era
a voz de Rantaine.
Clubin
era o homem das coisas bem-feitas. Imóvel como estivera o guarda-costa, e no
mesmo lugar, com o óculo no olho, não perdeu de vista a barcaça. Viu
diminuírem-se os remos, desaparecer, reaparecer, aproximar-se a barcaça do
navio; e pôde reconhecer a alta corpulência de Rantaine no tombadilho do Tamaulipas.
Quando
a barcaça foi içada, o Tamaulipas entrou a preparar-se. A brisa soprava
de terra, o navio abriu as velas todas, o óculo de Clubin continuava fixo no
lineamento cada vez mais simplificado e, meia hora depois, o Tamaulipas
era apenas um ponto negro que ia a diminuir-se, a diminuir-se, a diminuir-se no
céu amarelo do crepúsculo.
CAPÍTULO IX
INFORMAÇÃO ÚTIL ÀS PESSOAS QUE ESPERAM
OU RECEIAM CARTAS DE ALÉM-MAR
Nessa
noite, o Sr. Clubin recolheu-se tarde.
Uma
das causas da sua demora é que antes de recolher-se foi ele até a porta Dinan,
onde havia tavernas. Tinha comprado em uma dessas tavernas, onde não era
conhecido, uma garrafa de aguardente que pôs em uma larga algibeira da japona
como se quisesse escondê-la; depois, devendo a Durande sair no dia seguinte de
manhã, foi a bordo para ver se tudo estava em ordem.
Quando
o Sr. Clubin entrou na Pousada João, já não havia na sala baixa senão o velho
capitão de longo curso, Gertrais-Gaboureau, bebendo e fumando cachimbo.
O
Capitão Gertrais-Gaboureau cumprimentou o Sr. Clubin entre um gole e uma
baforada.
—
Goodbye, Capitão Clubin.
—
Boa noite, Capitão Gertrais.
—
Com que então, lá se foi o Tamaulipas.
—
Ah! — disse Clubin —, não reparei.
O
Capitão Gertrais-Gaboureau cuspiu e disse:
—
Raspou-se o Zuela.
—
Quando?
—
Esta noite.
—
Aonde vai?
—
Vai ao diabo.
—
Sim, mas aonde?
—
A Arequipa.
—
Não sabia — disse Clubin.
Acrescentou:
—
Vou dormir.
Acendeu
a vela, caminhou para a porta e voltou.
—
Já foi a Arequipa, Capitão Gertrais?
—
Sim. Há anos.
—
Onde se costuma a arribar?
—
Em diversos portos. Mas o Tamaulipas não arribará em parte alguma. O Sr.
Gertrais-Gaboureau deitou na borda de um prato a cinza do cachimbo e continuou:
—
Conhece o Cheval-de-Troie e o Trentemousin, que foram a Cardiff.
Não opinei a favor da partida por causa do tempo. Voltaram em belo estado. Cheval-de-Troie
levava terebintina e abriu água, e fazendo trabalhar as bombas perdeu no meio
da água todo o carregamento. Quanto ao Trentemousin, ficou bem
estragado; quebrou-se-lhe o cepo da âncora, o botalós, ovéns; não sofreu o
mastro de mezena, mas teve um forte abalo. Caiu o ferro do gurupés, que aliás
não só ficou machucado, mas completamente nu. Veja o que resulta de não ouvir
conselhos.
Clubin
tinha posto a vela na mesa, e pôs-se a pregar de novo uma porção de alfinetes
que tinha na japona.
Disse:
—
Não dizia, capitão, que o Tamaulipas não arriba em porto algum?
—
Não. Vai direito ao Chile.
—
Neste caso não pode mandar notícia alguma em caminho.
—
Perdão, Capitão Clubin. Primeiramente pode entregar despachos a todos os navios
que encontrar em caminho para a Europa.
—
É justo.
—
Depois, tem a caixa de cartas do mar.
A
que chama o senhor caixa de cartas do mar?
—
Não sabe, Capitão Clubin?
—
Não.
—
É quando se passa pelo estreito de Magalhães.
—
Que há então?
—
Neva em toda a parte, temporal sempre, ruins ventos, mar de trezentos diabos.
—
Depois?
—
Quando se dobra o cabo Monmouth.
—
Bem. Depois?
—
Depois, dobra-se o cabo Valentin.
—
E depois?
—
Depois dobra-se o cabo Isidoro.
—
E depois?
—
Dobra-se a ponta Ana.
—
Bem. Mas o que é que chama caixa das cartas do mar?
—
Chegamos à caixa. Montanhas à direita, montanhas à esquerda. De todos os lados
aves marinhas. Terrível sítio! Ah! com um milhão de diabos! que chusma e que
matinada! A borrasca ali não precisa de auxílio. Toca a vigiar a cinta da popa!
toca a diminuir as velas! Da vela grande passava ao joanete! Lufada sobre
lufada! Quatro, cinco, seis dias de capa. Quantas vezes de um velame novinho em
folha não nos fica senão o fio. Que dança! furacões capazes de fazer saltar uma
galera como fosse uma pulga. Já vi num brigue inglês, o True Blue, um
grumete ocupado com o pau da giba ser levado por um milheiro de ventos, com pau
e tudo. Anda-se no ar como borboletas! Vi o contramestre da Revenue ser
arrancado do navio e morrer: A cinta do meu navio quebrou-se, e todas as peças
de madeira do convés ficaram despedaçadas. A gente sai dali com as velas
comidas, até fragatas de cinquenta fazem água como se fossem cestos. E a
endiabrada costa! É o que há de mais danado. Rochedos retalhados como por
criancice. Aproxima-se a gente de Porto Fome. Aí é pior que pior. São as
lâminas mais agudas que tenho visto. Paragens do inferno. De repente vêem-se
estas duas palavras escritas com tinta vermelha: Post-Office.
—
Que quer dizer, Capitão Gertrais?
—
Quero dizer, Capitão Clubin, que logo depois de dobrar o cabo Ana vê-se em uma
pedra de 100 pés de altura um grande pau. É um poste com uma barrica no alto.
Essa barrica é a caixa das cartas. Os ingleses escreveram em cima: Post-Office.
Por que se meteram eles nisto? Aquilo é o correio do oceano; não pertence a esse
honrado gentleman, o rei da Inglaterra. A caixa das cartas é comum.
Pertence a todas as bandeiras. PostOffice, há nada mais chinês! Parece
uma xícara de chá que o diabo oferece em pleno oceano. Eis como se faz o
serviço. Todos os navios que passam expedem ao poste um escaler com os seus
despachos. O navio que vem do Atlântico envia cartas para a Europa, e o navio
que vem do Pacífico manda cartas para a América. O oficial que comanda o
escaler põe na barrica o maço de cartas e tira o maço que lá encontra. Toma-se
conta dessas à espera que o próximo navio tome conta das cartas que se deixam.
Como se navega em sentido contrário, o continente donde o senhor vem é aquele
para onde eu vou. Levo as suas cartas, o senhor leva as minhas. A barrica está
presa ao poste por uma corrente de ferro. E chove! E neva! Mar dos diabos! O Tamaulipas
ficará aí. A barrica tem uma tampa mas sem fechadura nem cadeado. Bem vê que se
pode escrever aos amigos. As cartas chegam ao seu destino.
—
É esquisito — murmurou Clubin, pensativo.
O
Capitão Gertrais-Gaboureau voltou-se para a bebida.
—
Suponhamos que o brejeiro do Zuela me escreva, meta as suas garatujas na
barrica de Magalhães, e dentro de quatro meses tenho as cartas do patife.
Diga-me lá, Capitão Clubin, sai amanhã?
Clubin,
absorto em uma espécie de sonambulismo, não ouviu. O Capitão Gertrais repetiu a
pergunta.
Clubin
despertou.
—
Sem dúvida, Capitão Gertrais. É o dia marcado. Devo sair amanhã de manhã.
—
Pois olhe, eu não saía. Capitão Clubin, os cães têm o pêlo molhado. As aves
marinhas andam há duas noites à roda do farol. Mau sinal. Tenho um storm-glass
que faz das suas. Estamos no segundo quarto da lua; é o máximo da umidade. Vi
há pouco pimpinelas que fechavam as folhas e um campo de trevo cujas hastes estavam
retesadas. Os vermes saem do chão, as moscas mordem, as abelhas não se afastam
dos cortiços, os pardais consultam-se. Ouve-se o som dos sinos de longe. Eu
ouvi hoje o sino de Saint-Lunaire dar ave-marias. E ao pôr-do-sol havia muitas
nuvens no horizonte. Amanhã há de haver grande nevoeiro. Não lhe digo que
parta. Receio mais o nevoeiro que o furacão. Grande sonso o nevoeiro.
LIVRO SEXTO
O TIMONEIRO ÉBRIO E O CAPITÃO SÓBRIO
CAPÍTULO PRIMEIRO
OS ROCHEDOS DOUVRES
Cerca
de 5 léguas, em pleno mar, ao sul de Guernesey, em face da ponta de Plainmont,
entre as ilhas da Mancha e Saint-Malo, há um grupo de cabeços chamados rochedos
Douvres. Funesto lugar esse.
Esta
denominação Douvre (Dover) pertence a muitos cachopos e rochedos. Há
especialmente perto das costas do norte uma rocha Douvre na qual se constrói
agora mesmo um farol, escolho perigoso, mas que não deve ser confundido com
este.
O
ponto da França mais próximo do rochedo Douvres é o cabo Brehant. O rochedo
Douvres é um pouco mais longe da costa da França que a primeira ilha do
arquipélago normando. A distância desse escolho a Jersey mede-se pouco mais ou
menos pela grande diagonal de Jersey. Se a ilha de Jersey se voltasse sobre a
Corbière como sobre um eixo, a ponta de Santa Catarina iria quase bater nos
Douvres. E uma distância de quase 4 léguas.
Nesses
mares da civilização os rochedos mais selvagens são raramente desertos.
Encontram-se contrabandistas em Hagot, guardas da alfândega em Binic,
cultivadores de ostras em Cancale, caçadores de coelhos em Césambre, ilha de
César, apanhadores de caranguejos em Brecq-Hou, pescadores de rede em Minquiers
e Ecré-Hou. Nos rochedos Douvres, ninguém.
As
aves marinhas estão ali em sua casa.
Não
há pior encontro. Os Casquets, onde dizem que se perdeu a Blanche Nef, o
banco Calvados, as pontas da ilha de Wight, a Ronesse que faz a costa de
Beaulieu tão perigosa, os baixios de Préel que tornam tão angustiosa a entrada
de Merquel e que obrigam a deitar a umas 20 braças a baliza vermelha, as
proximidades pérfidas de Étables e de Plouha, as duas druidas de granito do sul
de Guernesey, o velho Anderlo e o pequeno Anderlo, a Corbière, os Hanois, a
ilha de Ras, recomendada ao medo por este provérbio: “Quando passares o Ras, se
não morreres, tremerás”; as Mortes Femmes, a passagem do Boue e de Frouquie, a
Deroute entre Guernesey e Jersey, a Hardent entre os Minquiers e Chausey, o
Mauvais-Cheval entre o Boulay-Bay e Berneville, são mal afamados. Vale mais
afrontar todos os cachopos do que o Douvres uma só vez.
Em
todo o perigoso mar da Mancha que é o mar Egeu do Ocidente, o rochedo Douvres
só tem um rochedo igual no terror que inspira, é o escolho Pater Noster entre
Guernesey e Serk.
E
ainda no Pater Noster pode-se fazer um sinal; quem está ali em perigo pode ser
socorrido. Vê-se ao norte a ponta Dicard ou de Ícaro, ao sul, Gros-Nez. Do
rochedo Douvres não se vê nada.
O
vento, a água, a nuvem, o ilimitado, o inabitado.
Só
se passa ali perdido. Os granitos são de uma estatura brutal e hedionda.
Avultam as rochas escarpadas. Severa inospitalidade do abismo.
E
mar alto. A água é profunda. Um escolho absolutamente isolado, como o rochedo
Douvres, atrai e abriga os animais que precisam afastar-se dos homens. É uma
espécie de vasta madrépora submarina. É um labirinto afogado. Há ali, em
profundezas que dificilmente alcançam os mergulhadores, antros, cavas,
cavernas, cruzamentos de ruas tenebrosas. Pululam as espécies monstruosas.
Devoram-se umas às outras. Os caranguejos comem os peixes, e são devorados
também. Formas medonhas, feitas para não serem vistas por olhos humanos, andam
vivas naquela obscuridade. Vagos lineamentos de goelas, antenas, tentáculos,
barbatanas, bocas abertas, escamas, garras, unhas flutuam, tremem, engrossam,
decompõem-se e desfazem-se na transparência sinistra. Tremendos nadadores andam
ali na labutação. É uma colméia de hidras.
Ali
o horrível é ideal.
Imagina,
se podes, um formigueiro de holotúrias.
Ver
o interior do mar é ver a imaginação do Ignoto. E vê-la do lado terrível. O
golfão é análogo à noite. Também aí há sono, sono aparente ao menos, da
consciência da criação. Cometem-se ali em plena segurança os crimes da
irresponsabilidade. Os esboços da vida, fantasmas quase, completos demônios,
vagam ali, em medonha paz, nas sombrias ocupações da sombra.
Há
quarenta anos, duas rochas de forma extraordinária assinalavam de longe o
escolho Douvres aos viandantes do oceano. Eram duas pontas verticais e
recurvadas, tocando-se quase no cume. Parecia ver-se irrompendo do mar dois
dentes de um elefante engolido. Mas eram dentes de tamanhos de torres que só
poderiam pertencer a elefantes do tamanho de uma montanha. Essas duas torres
naturais da obscura cidade dos monstros não deixavam entre si mais que uma
passagem estreita onde a vaga se atirava. Essa passagem, tortuosa e de alguns
côvados de comprimento, parecia um pedaço de rua entre duas paredes. A essas
duas rochas gêmeas chamavam-se as duas Douvres. Havia a grande Douvre e a
pequena Douvre; uma tinha 60 pés de altura, a outra 40. O vaivém das ondas fez
na base dessas torres um aspecto de serra, e o violento furacão do equinócio de
26 de outubro de 1859 derrubou uma delas. A que ficou, a pequena, está mutilada
e gasta.
Um
dos mais estranhos rochedos do grupo Douvres chama-se o Homem. Esse ainda
existe. No século passado alguns pescadores, perdidos naqueles cachopos,
acharam um cadáver. Ao pé do cadáver havia uma porção de conchas vazias. Tinha
naufragado ali um homem, refugiou-se naqueles rochedos, alimentou-se algum
tempo de conchas, até que morreu. Veio daí chamar-se Homem ao rochedo.
São
singulares as solidões da água. É o tumulto e o silêncio. O que aí se faz já
nada tem com o gênero humano. E a utilidade desconhecida. Tal é o isolamento do
rochedo Douvres. Em derredor, a perder de vista, o imenso tormento das vagas.
CAPÍTULO II
CONHAQUE INESPERADO
Na
sexta-feira de manhã, um dia depois da partida do Tamaulipas, a Durande
partiu para Guernesey.
Deixou
Saint-Malo às 9 horas.
Claro
estava o tempo, não havia nevoeiro; parece que o velho Capitão
Gertrais-Gaboureau tinha delirado.
As
preocupações do Sr. Clubin fizeram com que embarcasse pouco carregamento.
Apenas meteu a bordo alguns fardos de Paris para as lojas de Saint-Pierre-Port,
três caixas para o hospital de Guernesey, uma de sabão amarelo, outra de velas
e a terceira de couro de sola e cordavão fino. Levava também, da precedente
viagem, uma caixa de açúcar crushed e três caixas de chá conjou,
que a alfândega francesa não quis receber. O Sr. Clubin embarcou pouco gado;
alguns bois apenas. Os bois foram postos no porão e bem mal arranjados.
Havia
a bordo seis passageiros: um guernesiano, dois maloenses vendedores de animais,
um turista, como já se dizia nesse tempo, um parisiense meio burguês,
provavelmente turista do comércio, e um americano distribuidor de Bíblias.
A
Durande, sem contar com Clubin, tinha sete homens de tripulação; um timoneiro,
um carvoeiro, um marinheiro carpinteiro, um cozinheiro, manobrista quando era
preciso, dois trabalhadores da máquina e um grumete. Um dos penúltimos era
também mecânico. Era um valente e inteligente negro holandês, evadido das
fábricas de açúcar do Suriname; chamava-se Imbrancam. O negro Imbrancam
compreendia e servia admiravelmente a máquina. Nos primeiros tempos, contribuiu
ele não pouco, quando aparecia na fornalha, para dar um ar diabólico à Durande.
O
timoneiro, jerseiano de nascimento, originário da costa, chamava-se
Tangrouille. Tangrouille era de alta nobreza.
É
verdade isto. As ilhas da Mancha são, como a Inglaterra, países hierárquicos.
Ainda existem castas nessas ilhas. As castas têm as suas idéias, que são os
seus dentes. Essas idéias são as mesmas em toda a parte, na Índia, como na
Alemanha. A nobreza conquista-se pela espada e perde-se pelo trabalho.
Conserva-se pela ociosidade. Não fazer coisa alguma é viver fidalgamente; quem
não trabalha é reverenciado. Ofício faz decair. Na França de outrora só se
excetuavam os operários de vidro. Sendo glória para os fidalgos esvaziar
garrafas, fazê-las não era desonra alguma.
Nas
ilhas da Mancha, assim como na Grã-Bretanha, quem quiser ser nobre deve
conservar-se opulento. Um workman não pode ser gentleman. Ainda
que o tenha sido, já não o é mais. Tal marujo descende de cavalheiros e é
apenas marujo. Há trinta anos, em Aurigny, um Georges autêntico, que ao que
parece tinha direitos à senhoria de Georges confiscada por Filipe Augusto,
apanhava sargaço com os pés nus. Há em Serk um Carteret que é carreiro. Existe
em Jersey um mercador de panos, e em Guernesey um sapateiro, que tem o nome de
Gruchy, que se declaram Grouchy e primos do marechal de Waterloo. Os antigos
registros do bispado de Coutances mencionam uma senhoria de Tangroville,
parenta evidente de Tancarville no Baixo-Sena, que é Montmorency. No século XV
Johan de Heroudeville, besteiro e afim do Sr. de Tangroville, levava sempre
consigo justilhos e arneses. Em maio de 1371, em Pontorson, o Sr. Tangroville
fez o seu dever como cavalheiro. Nas ilhas normandas quem cai em pobreza é logo
eliminado da fidalguia. Basta uma mudança de nome. De Tangroville faz Tangrouille,
e tudo se arranja.
Foi
o que aconteceu ao timoneiro da Durande.
Há
em Saint-Pierre-Port, no Bordage, um mercador de ferros chamado Ingrouille, que
é provavelmente Ingroville. No reinado de Luís, o Gordo, os Ingroville possuíam
três paróquias em Valognes. Fez um padre Trigan a História Eclesiástica da
Normandia. Este cronista Trigan era cura de Digoville. O Sr. de Digoville,
se caísse no populacho, chamar-se-ia Digouille.
Tangrouille,
Tancarville provável e Montmorency possível, tinha esta antiga qualidade de
fidalgo, defeito grave num timoneiro: embriagava-se.
O
Sr. Clubin teimava em conservá-lo. Respondia por ele a Mess Lethierry.
O
timoneiro Tangrouille não saía nunca do navio e dormia a bordo.
Na
véspera da partida, quando o Sr. Clubin foi, já a horas mortas, visitar o
navio, Tangrouille estava na sua maca e dormia. Acordou de noite. Era-lhe isso
costume antigo. Quando o bêbado não é senhor de si tem um esconderijo.
Tangrouille tinha o seu, a que chamava despensa. A despensa secreta de
Tangrouille era no porão onde se guardava a água. Pô-la aí para torná-la
inverossímil. Estava certo de que só ele conhecia aquele esconderijo. O Capitão
Clubin era severo, porque era sóbrio. O pouco rum e gim, que o timoneiro podia
subtrair à vigilância do capitão, punha de reserva naquele misterioso cantinho,
no fundo de uma selha de sonda, e quase todas as noites tinha entrevista
amorosa com aquela despensa. Era rigorosa a vigilância, pobre devia ser a
orgia, e de ordinário os excessos noturnos de Tangrouille limitavam-se a dois
ou três goles furtivamente bebidos. Muitas vezes a despensa estava vazia. Nessa
noite Tangrouille achou lá uma garrafa de aguardente inesperada. Alegrou-se
muito, e espantou-se ainda mais. De que céus lhe caiu aquela garrafa? Não pôde
lembrar-se nem quando nem como levou-a para o navio. Bebeu-a imediatamente. Em
parte fê-lo por prudência; tinha medo que a aguardente fosse descoberta e
confiscada. Atirou a garrafa ao mar. No dia seguinte, quando tomou a cana do
leme, Tangrouille tinha certa oscilação.
Todavia
governou o barco quase como nos outros dias.
Quanto
a Clubin, sabe-se que voltou a dormir na Pousada João.
Clubin
trazia sempre debaixo da camisa um cinto de couro, de viagem, onde guardava uns
20 guinéus, e que só tirava à noite. No interior do cinto estava escrito o nome
dele, escrito por ele mesmo no couro bruto com tinta litográfica, que é
indelével.
Ao
levantar, antes de partir, pôs no cinto a caixinha de ferro contendo 75.000
francos em notas de banco, depois atou o cinto como costumava, à roda do corpo.
CAPÍTULO III
PALESTRA INTERROMPIDA
Foi
alegre a partida. Os passageiros, apenas arranjadas as malas por baixo e em
cima dos bancos, passaram, ao navio, essa revista que nunca falta, e que parece
obrigatória, tal é o costume. Dois passageiros, o turista e o parisiense, nunca
tinham visto vapores, e, desde os primeiros movimentos da roda, contemplaram a
espuma, depois o fumo. Examinaram peça por peça, e quase fio por fio, na coberta
e entreponte, todos os aparelhos marítimos, argolas, ganchos, fateixas,
cilindros, que, à força de precisão e justeza, são uma espécie de colossal
ourivesaria; ourivesaria de ferro dourado com ferrugem pela tempestade.
Circularam o pequeno canhão de rebate atado na coberta, “com uma corrente de
cão de sentinela”, observou o turista, e “coberto com blusa de linho alcatroado
para impedir as constipações”, acrescentou o parisiense. Afastando-se de terra,
trocaram-se as observações do costume acerca da perspectiva de Saint-Malo; um
passageiro emitiu o axioma de que as perspectivas do mar iludem, e que, a 1
légua da costa, nada se parece mais com Ostende como Dunquerque. Completou-se o
que havia a dizer de Dunquerque, observando-se que os seus navios de vigia,
pintados de vermelho, chamam-se um Ruytingue e o outro Mardyck.
Saint-Malo
foi diminuindo até que desvaneceu-se de todo.
O
aspecto do mar era o vasto calmo. O rasto do navio fazia no oceano uma rua
franjada de espuma que se prolongava quase sem torção a perder de vista.
Guernesey
está no centro de uma linha reta tirada de Saint-Malo na França, e Exeter na
Inglaterra. A linha reta no mar nem sempre é a linha lógica. Entretanto, os
vapores têm, até certo ponto, o poder de seguir a linha reta que não podem
seguir os navios de vela.
O
mar e o vento formam um composto de forças. O navio é um composto de máquinas.
As forças são máquinas infinitas, as máquinas são forças limitadas. Entre os
dois organismos, um inesgotável, outro inteligente, trava-se o combate que se
chama navegação.
Uma
vontade no mecanismo faz contrapeso ao infinito. Também o infinito encerra um
mecanismo. Os elementos sabem o que fazem e para onde vão. Não há força cega.
Cabe ao homem espreitar as forças e descobrir-lhes o itinerário.
Enquanto
se não descobre a lei, prossegue a luta, e nessa luta a navegação a vapor é uma
espécie de vitória perpétua que o gênio humano vai ganhando a todas as horas do
dia em todos os pontos do mar. A navegação a vapor é admirável porque
disciplina o navio. Diminui a obediência ao vento e aumenta a obediência ao
homem.
Nunca
a Durande trabalhou no mar como naquele dia. Andava maravilhosamente.
Pelas
11 horas, soprando uma fresca brisa de nor-nordeste, achou-se a Durande do lado
de Minquiers, trabalhando com pouco vapor, navegando a oeste e conchegada ao
vento. Claro e belo estava o céu. Todavia iam voltando para terra todos os
pescadores.
A
pouco e pouco, como se todos pensassem em ancorar nos portos, ia-se o mar
limpando de navios.
Não
se podia dizer que a Durande estivesse no caminho do costume. A tripulação não
se preocupava com isso, era absoluta a confiança no capitão; entretanto, talvez
por culpa do timoneiro, havia algum desvio. A Durande parecia antes ir para
Jersey que para Guernesey. Pouco depois das 11 horas, o capitão retificou a
direção e aproou para o lado de Guernesey. Perdeu-se algum tempo. Nos dias
curtos o tempo perdido tem inconvenientes. Fazia um belo sol de fevereiro.
Tangrouille,
no estado em que estava, já não tinha nem pés nem braços firmes. Resultava daí
que o bravo timoneiro desviava-se da costa e atrasava a marcha.
O
vento ia amainando.
O
passageiro guernesiano, que tinha um óculo na mão, firmava-o de tempos a tempos
para um floco de espuma coada pelo vento no extremo horizonte de oeste,
assemelhando-se a um pouco de algodão, empoeirado em roda.
O
Capitão Clubin tinha o aspecto puritano do costume. Parecia redobrar de
atenção.
Tudo
estava calmo e quase risonho a bordo da Durande; os passageiros conversavam.
Fechando
os olhos, no meio de uma viagem, pode-se avaliar do estado do mar pelo trêmulo
da conversa. A plena liberdade de espírito dos passageiros corresponde à
perfeita tranquilidade da água.
É
impossível, por exemplo, que houvesse uma conversa, como esta que se segue, em
mar que não fosse calmo.
—
Veja aquela bonita mosca verde e encarnada.
—
Perdeu-se no mar e descansa no navio.
—
As moscas não se cansam muito.
—
Pudera! São tão leves. Carrega-as o próprio vento.
—
Já se pesou 1 onça de moscas e, contadas depois, viu-se que eram 6 268.
O
guernesiano do óculo tinha-se chegado aos maloenses mercadores de gado, e a
conversa deles era pouco mais ou menos esta:
—
O boi de Aubrac tem o tronco redondo e bojudo, as pernas curtas, o pêlo
amarelo. É demorado no trabalho por causa da pequenez das pernas.
—
Neste ponto, o Salers vale mais que o Aubrac.
—
Vi dois magníficos bois em minha vida. O primeiro tinha as pernas curtas, o
joelho espesso, alcatra grossa, as nádegas largas, bom comprimento da nuca à
garupa, boa altura no garrote, manejo fácil, pele boa de arrancar-se. O segundo
apresentava todos os sinais de um engordamento judicioso, tronco reforçado,
pescoço robusto, pernas leves, pele branca e vermelha, alcatra caída.
—
Isso é raça da costa.
—
Sim, mas com certa semelhança com o touro Angus ou o touro Suffolk.
—
Acredite se quiser, no meio-dia há concurso de bestas.
—
De bestas?
—
De bestas. Como tenho a honra de lhe dizer. E as feias é que são bonitas.
—
Então são como as jumentas. As feias é que são boas.
—
Justamente. A jumenta deve ter barriga grossa e pernas grossas.
—
A melhor jumenta deste mundo é uma barrica sobre quatro estacas.
—
A beleza dos animais não é como a beleza dos homens.
—
E sobretudo das mulheres.
—
Justo.
—
Eu cá, quero que a mulher seja bonita.
—
Prefiro-a bem trajada.
—
Sim, limpa, asseada, esticadinha.
—
Ares de mocidade. Uma rapariga deve parecer que sai do joalheiro.
—
Volto aos bois. Vi vender os tais bois no mercado de Thouars.
—
Conheço o mercado. Os Bonneau de la Rochelle, e os Bahu, os mercadores de trigo
de Marans, não sei se ouviu falar deles, devem ter ido a esse mercado.
O
turista e o parisiense conversavam com o americano das Bíblias; a conversação
aí era como nos outros grupos.
Dizia
o turista:
—
Eis a tonelagem flutuante do mundo civilizado: França, 716.000 toneladas;
Alemanha, 1 milhão; Estados Unidos, 5 milhões; Inglaterra, 5 milhões e meio.
Acrescente-se o contingente das pequenas bandeiras. Total: 12 904 000 toneladas
distribuídas por 145 000 navios na água do globo.
O
americano interrompeu:
—
Os Estados Unidos é que têm 5 milhões e meio.
—
Convenho — disse o turista. — O senhor é americano?
—
Sim, senhor.
Houve
um silêncio; o americano missionário perguntou a si mesmo se era ocasião de
oferecer uma Bíblia.
—
Será verdade — continuou o turista — que os senhores lá na América gostam tanto
das alcunhas a ponto de as pôr em todos os homens célebres? Será verdade que
chamaram ao famoso banqueiro do Missouri, Thomas Benton, “a velha barra de
ouro”?
—
Do mesmo modo que chamamos ao Zacharias Taylor “o velho Zach”?
—
E o General Harrison, o “velho Tip”? E o General Jackson, o “ velho Hickory”?
—
Sim, porque Jackson é duro como pau hickory e Harrison bateu os peles-vermelhas
em Tippecanoe.
—
É um costume bizantino esse.
—
É costume nosso. Chamamos Van Buren “o feiticeirinho”; Seward, que mandou fazer
bilhetes miúdos do banco, “o bilhete miúdo”; e Douglas, o senador democrata do
IIlinois, que tem 4 pés de altura e uma grande eloquência, “o gigantinho”.
Percorra do Texas ao Maine, não encontrará ninguém que diga esse nome: Cass;
todos dizem: “o grande Michigantier”; nem este nome: Clay; dizem todos: “o
rapaz do moinho acutilado”. Clay é filho de um moleiro.
—
Eu prefiro Clay ou Cass — observou o parisiense —, é mais curto.
—
Pois estaria fora do uso. Nós chamamos Corwin, que é secretário do Tesouro, “o
rapaz da carreta”. Daniel Webster é “o negro Dan”. Quanto a Winfield Scott,
como a sua primeira ideia, depois de bater os ingleses em Chippeway, foi
assentar-se à mesa, chamamo-lo “Dá-cá-um-prato-de-sopa-depressa”.
Tinha
se agigantado o floco de neve. Ocupava no horizonte um segmento de cerca de 15
graus. Dissera-se uma nuvem arrastada à flor da água por falta de vento. Não
havia um sopro de brisa sequer. Embora fosse apenas meio-dia, o sol ia
empalidecendo. Alumiava, mas já não aquecia.
—
Creio — disse o turista — que o tempo vai mudar.
—
Talvez haja chuva — disse o parisiense.
—
Ou nevoeiro — disse o americano.
—
Na Itália — continuou o turista — o lugar em que cai menos chuva é Molfetta, e
onde cai mais é em Tolmezzo.
Ao
meio-dia, segundo o uso do arquipélago, tocou a sineta para jantar. Jantou quem
quis. Alguns passageiros levavam comida consigo e comeram no convés. Clubin não
jantou.
Ao
jantar, a palestra continuou.
O
guernesiano, tendo o faro das Bíblias, aproximou-se do americano. O americano
disse-lhe:
—
Conhece este mar?
—
Sem dúvida, sou filho dele.
—
E também eu — disse um dos maloenses.
O
guernesiano aderiu com um cumprimento, e continuou:
—
Agora estamos ao largo mas não me agradava nada ter nevoeiro enquanto estávamos
ao pé dos Minquiers.
O
americano disse ao maloense:
Os
insulares são mais homens do mar que a gente da costa.
—
É exato, nós, os filhos da costa, temos apenas metade do mar. Que coisa é essa
dos Minquiers? — continuou o americano.
O
maloense respondeu:
—
São umas pedras ruins.
—
Há também os Grelets — disse o guernesiano.
—
Ora! — disse o maloense.
—
E os Chouas — acrescentou o guernesiano.
O
maloense deu uma gargalhada.
—
Dessa forma — disse ele —, temos também os Sauvages.
—
E os Maine — observou o guernesiano.
—
E o Canard — disse o maloense.
O
senhor tem resposta para tudo — disse o guernesiano com rapidez.
—
Maloense, malicioso.
Dando
esta resposta, o maloense piscou o olho.
O
turista interpôs uma pergunta:
—
Dar-se-á o caso que vamos atravessar toda essa pedraria de que os senhores
falam?
—
Qual! Deixamo-la a sudoeste. Já ficou atrás de nós.
E
o guernesiano continuou:
Entre
grandes e pequenos os Grelets têm 57 pontas de rocha.
—
E os Minquiers 48 — disse o maloense.
Aqui
o diálogo concentrou-se entre o maloense e o guernesiano.
—
Parece-me, senhor de Saint-Malo, que há três rochedos que o senhor deixou de
contar.
—
Contei tudo.
—
A Derée da Maitre-Ile?
—
Sim.
—
E Maisons também?
—
Que são sete rochas no meio dos Minquiers. Sim.
—
Já vejo que conhece os cachopos.
—
Quem não os conhece não é de Saint-Malo.
—
Causa gosto ouvir o raciocínio dos franceses.
O
maloense cumprimentou, e disse:
—
Sauvages são três rochedos.
—
E Maines são dois.
—
Canard é um.
—
Basta dizer Canard; já se sabe que é um.
—
Não, porque a Suarde são quatro rochedos.
—
Que é a Suarde? — perguntou o guernesiano.
—
Chamamos Suarde ao que o senhor chama Chouas.
—
Não é bom passar entre Chouas e Canard.
—
Só os pássaros podem passar aí.
—
E os peixes.
—
Nem sempre. Quando há mau tempo, os peixes esbarram-se nas rochas.
—
Há areia em Minquiers.
—
A roda de Maisons.
—
Vêem-se oito rochedos de Jersey.
—
Da praia de Azette, é justo. Não são oito, são sete.
—
Nas vazantes pode-se passear entre os Minquiers.
—
Sem dúvida, há espaço.
—
E Dirouilles?
—
Dirouilles não tem nada com Minquiers.
—
Quero dizer que é perigoso.
—
É do lado de Granville.
Vê-se
que, como nós, os senhores de Saint-Malo gostam de navegar nestes mares.
—
Sim — disse o maloense —, com a diferença de que nós dizemos: estamos acostumados,
e os senhores dizem: gostamos.
—
São bons marinheiros os senhores.
—
Eu sou mercador de gado.
—
Quem é que foi também de Saint-Malo?
—
Surcouf.
—
Não, outro.
—
Duguay-Trouin.
Aqui
o viajante parisiense interrompeu.
Duguay-Trouin?
Foi apanhado pelos ingleses. Era tão amável quão valente. Agradou a uma jovem
inglesa. Foi ela quem lhe quebrou os ferros.
Neste
momento uma voz tremenda gritou:
—
Estás bêbado!
CAPÍTULO IV
MOSTRAM-SE TODAS AS QUALIDADES DO
CAPITÃO CLUBIN
Voltaram-se
todos.
Era
o Capitão Clubin que interpelava o timoneiro.
O
Sr. Clubin não tratava ninguém por tu. Para que ele atirasse a Tangrouille
semelhante apóstrofe era preciso que estivesse colérico ou quisesse mostrar-se
assim.
Uma
expressão de cólera, vindo a propósito, demite a responsabilidade, e algumas
vezes deita-a para as costas de outrem.
O
capitão, de pé no lugar de comando, entre as caixas das rodas, olhava fixamente
para o timoneiro. Repetiu entre dentes: “Beberrão!” O honesto Tangrouille
abaixou a cabeça.
Desenvolvia-se
o nevoeiro. Já ocupava metade do horizonte. Avançava em todos os sentidos ao
mesmo tempo; o nevoeiro parece-se com a gota de óleo. A bruma alargava-se
insensivelmente. O vento soprava-a sem pressa e sem rumor. A pouco e pouco ia
ele apoderando-se do oceano. Vinha de nordeste e o navio estava com ela pela
proa. Era um vasto penedio movediço e vago. Cortava-se no mar como se fosse uma
muralha. Havia um ponto preciso em que a água imensa entrava por baixo do
nevoeiro e desaparecia.
Este
ponto de entrada no nevoeiro estava ainda a meia légua de distância. Se o vento
mudasse, podia-se evitar a imersão na bruma; mas era preciso que mudasse logo.
A meia légua de intervalo enchia-se e diminuía a olhos vistos; a Durande
caminhava, o nevoeiro também. O nevoeiro ia para o navio, o navio para o
nevoeiro.
Clubin
mandou aumentar o vapor e obliquar a leste.
Deste
modo costeou-se algum tempo o nevoeiro, mas ele avançava sempre. Todavia o
navio continuava a andar em pleno sol.
Perdia-se
o tempo naquelas manobras que dificilmente podiam dar bom resultado. Anoitece
cedo em fevereiro.
O
guernesiano contemplava a bruma. Disse aos maloenses:
—
É atrevido este nevoeiro.
Desasseio
do mar — observou um dos maloenses.
O
outro acrescentou:
—
Isto atrasa a viagem.
O
guernesiano aproximou-se de Clubin.
—
Capitão Clubin, receio que sejamos envolvidos pelo nevoeiro. Clubin respondeu:
Eu
queria ficar em Saint-Malo, mas aconselharam-me que partisse.
—
Quem?
—
Veteranos do mar.
—
Fez bem em partir — continuou o guernesiano. — Quem sabe se não haverá
tempestade amanhã. Nesta estação espera-se o pior.
Alguns
minutos depois a Durande entrava no nevoeiro.
Foi
singular esse momento. Toda a gente que estava na popa ficou de repente sem ver
a gente que ia na proa. Tênue tabique cinzento cortou o navio ao meio.
Depois,
todo o navio mergulhou na bruma. O sol parecia uma lua. Súbito todos começaram
a tiritar. Os passageiros vestiram as capas, e os marinheiros as japonas. O
mar, quase sem uma dobra, tinha a fria ameaça da tranquilidade. Parece que há
conluio neste excesso de calma. Tudo estava pálido e enfiado. O negro cano e a
fumaça negra lutavam contra a lividez que cercava o navio.
A
derivação a leste já não tinha razão de ser. O capitão aproou de novo sobre
Guernesey e aumentou o vapor.
O
passageiro guernesiano, andando à roda da máquina, ouviu o negro Imbrancam que
falava a um dos companheiros. O passageiro prestou ouvidos. Dizia o negro:
—
Quando havia sol, íamos devagar; agora que há nevoeiro vamos depressa.
O
guernesiano foi ter com o Sr. Clubin.
—
Capitão Clubin, não há cuidado; mas não acha que vamos depressa demais?
—
Que quer, senhor? É preciso ganhar o tempo perdido por culpa daquele bêbado.
—
É verdade, Capitão Clubin.
E
Clubin acrescentou:
—
Quero chegar quanto antes. Já basta o nevoeiro; com a noite ficaríamos
asseados.
O
guernesiano foi ter com os maloenses e disse-lhes:
—
Temos um excelente capitão.
De
quando em quando ondas grandes de bruma, que pareciam cardadas, passavam e
escondiam o sol. Depois o sol reapareceu mais pálido e como que enfermo. O
pouco céu que se via assemelhava-se às faixas de ar sujas e manchadas de uma
velha decoração de teatro.
A
Durande passou junto de um cúter que tinha ancorado por prudência. Era o Shealtiel,
de Guernesey. O patrão do cúter notou a rapidez com que ia a Durande.
Pareceu-lhe que não estava no caminho exato; afigurou-se-lhe que obliquava a
oeste. Vendo aquele navio, andando a todo vapor no meio do nevoeiro, o homem
pasmou.
Pelas
2 horas a bruma era tão espessa, que o capitão foi obrigado a deixar o lugar do
costume, e a aproximar-se do timoneiro. O sol desmaiara, tudo era nevoeiro.
Havia na Durande uma espécie de escuridão branca. Navegava-se na palidez
difusa. Já se não via nem o céu nem o mar.
Não
ventava.
A
ancoreta da terebintina suspensa em uma argola ao pé da caixa das rodas já não
tinha oscilação.
Os
passageiros tornaram-se silenciosos.
Contudo o
parisiense cantarolava entre dentes a canção de Béranger Un Jour le Bon Dieu
s’Éveillant*.
Um
dos maloenses dirigiu-lhe a palavra:
—
O senhor vem de Paris?
— Sim, senhor. Il
mit la tête à la fenêtre**.
—
Que se faz por lá?
— Leur planète a
péri peut-être. Lá em
Paris tudo anda mal.
—
Então é tanto lá em terra como aqui no mar.
—
Realmente, este nevoeiro é o diabo.
—
E pode causar desgraças.
O
parisiense exclamou:
—
Mas por que desgraças? A propósito de quê? De que servem desgraças? É o caso do
incêndio do Odeon! Ficou uma porção de famílias reduzidas à miséria! É justo
isto? Olhe cá, eu não sei qual é a sua religião, mas digo-lhe que não estou
contente.
—
Nem eu — disse o maloense.
—
Tudo o que se passa neste mundo — continuou o parisiense — parece um
desconcerto. Creio que Deus não entra nisto.
O
maloense coçou o alto da cabeça, como quem procura compreender. O parisiense
continuou:
—
Deus está ausente. Devia-se lavrar um decreto para obrigá-lo a residir aqui.
Anda lá na sua casa de campo e não se importa conosco. E tudo vai torto e mal
encaminhado. É evidente, meu bom senhor, que Deus já não está no governo, está
em férias, e é o vigário, algum anjo seminarista, algum beócio com asas de
pardal, quem dirige os negócios.
O
Capitão Clubin, que se aproximara, pôs a mão no ombro do parisiense.
Silêncio
— disse ele. — Cuidado nas palavras. Estamos no mar.
Ninguém
mais falou.
No
fim de cinco minutos o guernesiano, que tudo ouvira, murmurou aos ouvintes:
—
É um capitão religioso.
Não
chovia e todos estavam molhados. Só se reparava no caminho que o navio
descrevia por uma espécie de mal-estar. Parecia que se entrava na tristeza. O
nevoeiro emudece o oceano, adormenta a vaga e sopita o vento. Naquele silêncio,
o rumor da Durande tinha um não sei quê de inquieto e lamentoso.
Já
se não encontravam navios. Só ao longe, quer do lado de Guernesey, quer do lado
de Saint-Malo, alguns navios estavam no mar, fora do nevoeiro; para esses a
Durande, submergida na bruma, não era visível, e a sua longa fumaça, presa a
coisa nenhuma, parecia-lhes um cometa negro no céu branco.
De
repente Clubin exclamou:
—
Com seiscentos! Estás dirigindo mal. Olha que me avarias o barco. Mereces bem
que te ponha a ferros. Vai-te, bêbado!
E
tomou a cana do leme.
O
timoneiro humilhado refugiou-se na cordoalha da proa.
Disse
o guernesiano:
—
Estamos salvos.
A
marcha continuou rápida.
Pelas
3 horas, a orla inferior do nevoeiro começou a levantar-se e viu-se o mar.
—
Mau! — disse o guernesiano.
Só
o sol ou o vento deve levantar a bruma. Quando é o sol, é bom sinal; quando é o
vento, não é tão bom sinal. Era tarde já para ser o sol. Às 3 horas, em
fevereiro, o sol está fraco. Não era coisa desejável a volta do vento naquela
situação crítica. Muitas vezes anuncia o furacão.
Verdade
seja que se havia brisa, mal se sentia.
Clubin,
com o olhar na bitácula, governando o leme, mastigava algumas palavras que
chegavam aos passageiros; era isto mais ou menos:
Não
há tempo a perder. Aquele bêbado demorou a viagem.
O
seu rosto, porém, não tinha expressão alguma.
O
mar estava menos adormecido. Já se enxergavam algumas vagas. Luzes geladas
flutuavam na água. Essas placas de clarão nas ondas preocupam os marinheiros.
Indicam que o vento faz buracos por cima do nevoeiro. A bruma levantava-se e
tornava a cair mais densa. As vezes a opacidade era completa. O navio estava
numa verdadeira montanha de nevoeiro. De quando em quando aquele círculo
tremendo abria-se como uma tenaz, deixava ver o horizonte, e fechava-se depois.
O
guernesiano, armado de um óculo, estava como uma vedeta, na frente do navio.
Clareou,
depois escureceu outra vez.
O
guernesiano voltou-se assustado:
—
Capitão Clubin!
—
Que é?
Vamos
direto aos cachopos de Hanois.
É
engano — disse Clubin friamente.
O
guernesiano insistiu:
—
Estou certo.
—
Impossível.
—
Vi uma pedra no horizonte.
—
Onde?
—
Ali!
—
É ao largo. Impossível.
E
Clubin continuou a pôr o navio no ponto indicado pelo passageiro.
O
guernesiano travou do óculo.
Minutos
depois correu para o capitão.
—
Capitão!
—
Que é?
—
Vire de bordo.
—
Por quê?
—
Vi uma rocha muito alta e muito perto. É o grande Hanois.
—
Há de ser algum nevoeiro mais escuro.
—
E o grande Hanois. Vire de bordo, em nome do céu!
Clubin
deu uma volta à cana do leme.
CAPÍTULO V
CLUBIN LEVA A ADMIRAÇÃO AO CÚMULO
Ouviu-se
um estalo. O rasgamento do flanco de um navio, em um cachopo, em mar alto, é um
dos sons mais lúgubres que se pode imaginar. A Durande parou.
Com
o choque muitos passageiros caíram e rolaram no tombadilho.
O
guernesiano levantou as mãos para o céu.
—
Nos Hanois! Eu bem dizia!
Longo
grito soou no navio.
—
Estamos perdidos!
A
voz de Clubin, seca e breve, dominou o grito.
—
Ninguém está perdido! E silêncio!
O
corpo negro de Imbrancam, nu até a cintura, saiu do espaço da máquina.
O
negro disse com calma:
Capitão,
a água está entrando. A máquina vai apagar-se.
Terrível
foi o momento.
O
choque assemelhava-se a um suicídio. Se fosse de propósito, não seria mais
terrível. A Durande atirou-se como se atacasse o rochedo. Uma ponta da rocha
penetrou no navio como um prego. Mais de 1 toesa quadrada de vergas rebentou,
rompeu-se a roda de proa, fracassou a quilha, partiu-se o gurupés, o casco
aberto bebia água aos borbotões. Era uma chaga por onde entrava o naufrágio. A
reação foi tão violenta que quebrou na popa a caixa do leme, que ficou solto e
oscilante. O cachopo arrancara o fundo e à roda do navio não se via nada, além
do nevoeiro espesso e compacto e agora quase negro. Chegava a noite.
A
Durande mergulhava pela proa. Era o cavalo que tem nas entranhas a ponta do
touro. Estava morta.
Sentia-se
no mar a hora da maré.
Tangrouille
estava desperto da embriaguez; ninguém fica bêbado em um naufrágio; desceu
abaixo, subiu e disse:
—
Capitão, a água enche o porão. Dentro de dez minutos está nos embornais.
Os
passageiros corriam no tombadilho fora de si, torcendo os braços, inclinando-se
na amurada, olhando para a máquina, fazendo todos os movimentos inúteis do
terror. O turista desmaiou.
Clubin
fez um sinal com a mão, calaram-se todos. Interrogou Imbrancam:
—
Quanto tempo pode a máquina trabalhar ainda?
—
Cinco ou seis minutos.
Depois
interrogou o passageiro guernesiano:
—
Eu estava ao leme. O senhor observou o rochedo. Em qual dos Hanois estamos nós?
—
Na Mauve. Reconheci ainda agora, com um pouco de claridade.
—
Sendo a Mauve — continuou Clubin — temos o grande Hanois a bombordo e o pequeno
Hanois a estibordo. Estamos a 1 milha de terra.
A
equipagem e os passageiros escutavam, trêmulos de ansiedade e de atenção, com
os olhos fixos no capitão.
Alijar
o navio era inútil e, demais, impossível. Para pôr a carga ao mar, era preciso
abrir as portinholas e aumentar as probabilidades de entrar água. Atirar a
âncora era inútil; estavam pregados. Demais podia ficar presa. Não estava
avariada a máquina, e continuando à disposição do navio enquanto o fogo não
estava apagado, isto é, por alguns minutos, podia-se, à força de rodas e de
vapor, recuar e arrancar o navio do escolho. Nesse caso iria ao fundo
imediatamente. O rochedo, até certo ponto, tapava o rombo e tolhia a passagem
da água. Servia de obstáculo. Desobstruída a abertura, seria impossível impedir
a entrada da água. Quem retira o punhal de uma ferida no coração, mata logo o
ferido. Sair do cachopo era ir ao fundo.
Os
bois, atacados pela água, começavam a mugir.
Clubin
ordenou:
—
A chalupa ao mar.
Imbrancam
e Tangrouille precipitaram-se e desataram as amarras. O resto da tripulação
olhava petrificado.
—
Todos à obra — gritou Clubin.
Desta
vez obedeceram todos.
Clubin,
impassível, continuou a dar ordens, naquela velha língua do mar, que os
marinheiros de hoje não compreenderiam.
A
chalupa estava no mar.
No
mesmo instante, as rodas da Durande pararam, cessou o fumo, a fornalha estava
cheia de água.
Os
passageiros, resvalando ao longo da escada ou pendurando-se nas enxárcias,
deixavam-se antes cair que descer na chalupa. Imbrancam apanhou o turista
desmaiado, levou-o para a chalupa, depois subiu ao navio.
Os
marinheiros atiravam-se após os passageiros. O grumete rolou; eles pisavam o
rapaz. Imbrancam barrou a passagem:
—
Ninguém antes do moço — disse ele.
Afastou
com os braços negros os marinheiros, apanhou o grumete, e estendeu-o ao
passageiro guernesiano, que, de pé na chalupa, recebeu o rapaz.
O
grumete salvo, Imbrancam deu caminho e disse:
—
Passem.
Entretanto,
o Sr. Clubin foi ao seu camarote e fez um embrulho dos papéis de bordo e dos
instrumentos. Tirou a bússola da bitácula. Entregou os papéis e os instrumentos
a Imbrancam e a bússola a Tangrouille, e disse-lhes:
—
Desçam à chalupa.
Eles
desceram. A tripulação tinha-os precedido. A chalupa estava cheia. Estava quase
rasa.
—
Agora — disse Clubin — vão embora.
—
E o senhor, capitão?
—
Fico.
As
pessoas que naufragam têm pouco tempo de deliberar e ainda menos de
enternecer-se. Entretanto, os que estavam na chalupa, e relativamente em
segurança, tiveram uma comoção que não era por eles. Todas as vozes insistiram
ao mesmo tempo:
—
Venha conosco, capitão.
—
Fico.
O
guernesiano, que conhecia o mar, replicou:
—
Ouça, capitão. O senhor naufragou nos Hanois. A nado há apenas 1 milha até
Plainmont. Mas na chalupa só se pode abordar na Rocquaine, e são 2 milhas. Há
cachopos e nevoeiro. Esta chalupa não chega à Rocquaine antes de 2 horas. Não
tarda a anoitecer. Enchendo a maré, refresca o vento. Está próxima a borrasca.
E nosso desejo vir buscá-lo depois, mas se romper o temporal, não será
possível. Se fica está perdido. Venha.
O
parisiense interveio:
—
A chalupa está cheia, e cheia demais, é verdade, e um homem de mais seria ainda
pior. Mas nós somos treze, é mau número para a barca, e é melhor
sobrecarregá-la de um homem que de algarismo.
Tangrouille
acrescentou:
—
A culpa é minha, não é sua. Não é justo que o senhor fique.
—
Fico — disse Clubin. — O navio será despedaçado pela tempestade hoje de noite.
Não o deixarei. Quando o navio se perde, morre o capitão. Dir-se-á de mim que
eu cumpri o meu dever. Perdôo-te, Tangrouille.
E
cruzando os braços, gritou:
—
Atenção às ordens. Larguem a banda da amarra. Partam!
Abalou-se
a chalupa. Imbrancam tomou o leme. Todas as mãos que não remavam voltaram-se
para o capitão. Todas as bocas gritaram: “Hurrah para o Capitão Clubin!”
—
Eis um homem admirável — disse o americano.
É
o mais honrado homem do mar — respondeu o guernesiano.
Tangrouille
chorava.
—
Eu devia ter ficado com ele.
A
chalupa internou-se por entre o nevoeiro, e desapareceu.
Não
se viu mais nada.
O
rumor dos remos diminuiu e perdeu-se.
Clubin
estava só.
CAPÍTULO VI
ALUMIA-SE O INTERIOR DE UM ABISMO
Quando
aquele homem achou-se naquele rochedo debaixo daquela nuvem, no meio daquela
água, longe do contato humano, deixado por morto, sozinho entre o mar que subia
e a noite que descia, teve profundo júbilo.
Alcançara
o que queria.
Realizara-se-lhe
o sonho. Estava paga a letra de longo prazo que ele sacou sobre o destino.
Para
ele, ficar abandonado, era ficar livre. Estava no Hanois, a 1 milha de terra;
tinha 75.000 francos. Nunca se realizou mais acertado naufrágio. Nada falhou; é
verdade que tudo estava previsto. Desde a juventude, Clubin teve uma ideia;
fazer da honestidade uma parada no jogo da roleta da vida, passar por homem
probo, e partir daí, esperando que a sorte corresse; não apalpar, segurar;
fazer um lance, mas só um, agarrar tudo, e deixar atrás os papalvos. Assentava
que devia alcançar de uma vez aquilo que os larápios tolos deixam de agarrar
vinte vezes, e, enquanto estes vão ter à forca, ele iria à fortuna. O encontro
de Rantaine foi o raio de luz. Construiu imediatamente o plano: obrigar
Rantaine à restituição; quanto às suas revelações possíveis, anulá-las
desaparecendo; passar por morto, que é a melhor desaparição do mundo; para isso
fazer naufragar a Durande. O naufrágio era necessário. Além de tudo, ir-se
embora deixando boa fama, era fazer da sua existência uma obra-prima. Quem
pudesse ver Clubin naquele naufrágio acreditaria ver um demônio feliz.
Viveu
toda a sua vida naquele minuto.
Toda
a sua pessoa exprimia esta palavra: enfim! Tremenda serenidade empalideceu
aquela fronte obscura. Os olhos embaciados, no fundo dos quais parecia haver um
tabique, tornaram-se profundos e terríveis. O abrasamento interno daquela alma
reverberou-se neles.
O
foro íntimo, como a natureza externa, tem a sua tensão elástica. Uma ideia é um
meteoro; no momento do triunfo, entreabrem-se as meditações acumuladas que o
preparam, e jorra uma faísca; ter em si uma garra do mal, e sentir nela uma
presa, ventura é esta que tem a sua irradiação; mau pensamento que triunfa e
ilumina o rosto daquele que o concebeu; certas combinações triunfantes, certos
desejos realizados, certas felicidades ferozes fazem aparecer e desaparecer nos
olhos dos homens lúgubres e luminosas dilatações. É a tempestade jubilosa, é a
aurora ameaçadora. Tudo isso sai da consciência, que se faz sombria e enevoada.
Foi
esse fulgor que iluminou aqueles olhos.
Relâmpago
que não se parecia com coisa alguma do que se pode ver no céu e na terra.
O
velhaco comprimido que havia em Clubin fez explosão.
Clubin
fitou a imensa obscuridade, e não pôde reter uma gargalhada baixa e sinistra.
Estava
livre! Estava rico!
Achara
a incógnita. Resolvera o problema.
Clubin
tinha tempo de cuidar de si. A maré enchia e por conseguinte sustentava a
Durande e afinal devia pô-la a nado. Mas o navio aderia solidamente ao rochedo;
não havia perigo de soçobrar. Além disso, era preciso deixar à chalupa o tempo
de afastar-se, perder-se talvez; Clubin contava com isso.
De
pé sobre a Durande naufragada, cruzou os braços, saboreando aquele abandono nas
trevas.
A
hipocrisia pesou àquele homem durante trinta anos. Era o mal, e consorciou-se
com a probidade. Odiava a virtude com um ódio de mal casado. Teve sempre uma
premeditação malvada; desde que se fizera homem, trazia aquela armadura rígida,
a aparência. Era monstro internamente; vivia em uma pele de homem de bem, com
um coração de bandido. Era o pirata ameno. Era prisioneiro da honestidade,
estava fechado naquele caixão de múmia, a inocência; tinha nas costas asas de
anjo, esmagadoras para um velhaco. Pesava-lhe demais a estima pública. Passar
por homem honrado é duro! Manter constante equilíbrio, pensar mal e falar bem,
que labutação! Clubin era o fantasma da retidão, sendo o espectro do crime.
Este contra-senso foi o destino dele. Era-lhe preciso mostrar ares
apresentáveis, escumar por baixo do nível, sorrir em vez de ranger. A virtude,
para ele, era coisa que esmagava. Passou a vida a ter vontade de morder aquela
mão que lhe tapava a boca.
E
querendo mordê-la foi obrigado a beijá-la.
Ter
mentido é ter sofrido. O hipócrita é um paciente na dupla acepção da palavra;
calcula um triunfo e sofre um suplício. A premeditação indefinida de uma ação
ruim, acompanhada por doses de austeridade, a infâmia interior temperada de
excelente reputação, enganar continuadamente, não ser jamais quem é, fazer
ilusão, é uma fadiga. Compor a candura com todos os elementos negros que
trabalham no cérebro, querer devorar os que o veneram, acariciar, reter-se,
reprimir-se, estar sempre alerta, espiar constantemente, compor o rosto do
crime latente, fazer da disformidade uma beleza, fabricar uma perfeição com a
perversidade, fazer cócegas com o punhal, pôr açúcar no veneno, velar na
franqueza do gesto e na música da voz, não ter o próprio olhar, nada mais
difícil, nada mais doloroso. O odioso da hipocrisia começa obscuramente no
hipócrita. Causa náuseas beber perpetuamente a impostura. A meiguice com que a
astúcia disfarça a malvadez repugna ao malvado, continuamente obrigado a trazer
essa mistura na boca, e há momentos de enjôo em que o hipócrita vomita quase o
seu pensamento. Engolir essa saliva é coisa horrível. Ajuntai a isto o profundo
orgulho. Existem horas estranhas em que o hipócrita se estima. Há um eu
desmedido no impostor. O verme resvala como o dragão e como ele retesa-se e
levanta-se. O traidor não é mais que um déspota tolhido que não pode fazer a
sua vontade senão resignando-se ao segundo papel. É a mesquinhez capaz da
enormidade. O hipócrita é um titã-anão.
Clubin
imaginava de boa-fé que tinha sido oprimido. Por que razão não nascera rico? O
que ele queria era que os pais lhe houvessem deixado 100 000 libras de renda.
Por que não as tinha? Não era culpa dele. Por que motivo, não lhe dando todos
os gozos da vida, forçaram-no a trabalhar, isto é, a enganar, a trair, a
destruir? Por que motivo condenaram-no assim a essa tortura de adular, de
rastejar, de comprazer, de fazer-se amar e respeitar, e trazer dia e noite no rosto
um rosto que não era dele? Dissimular é uma violência imposta. Odeia-se diante
de quem se mente. Soara enfim a hora. Clubin vingava-se.
De
quem? De todos e de tudo.
Lethierry
não lhe fez senão bem: queixava-se demais; vingava-se de Lethierry.
Vingava-se
de todos aqueles ante quem foi obrigado a constranger-se. Desforrava-se. Quem
quer que pensasse bem dele, era seu inimigo, porque ele foi cativo desse homem.
Clubin
achava-se livre. Realizava-se a fuga. Estava fora dos homens. O que se tinha
por morte, era vida; ele ia começar agora. O verdadeiro Clubin despojava-se do
falso Clubin. De um lance dissolveu tudo. Empurrou, com o pé, Rantaine ao
espaço, Lethierry à ruína, a justiça humana às trevas, a opinião ao erro, a
humanidade inteira para longe de si. Tinha eliminado o mundo.
Quanto
a Deus, Clubin curava pouco dessa palavra de quatro letras. Passou como
religioso. Que importa?
Há
cavernas no hipócrita ou, antes, o hipócrita é uma caverna.
Quando
Clubin ficou só, abriu-se-lhe o antro. Teve um instante de delícias; arejou a
alma.
Respirou
largamente o seu crime.
O
fundo do mal tornou-se visível naquele rosto. Clubin abriu-se. Nesse momento o
olhar de Rantaine ao pé daqueles olhos pareceria um olhar de recém-nato.
Arrancar
a máscara, que livramento! A consciência de Clubin alegrou-se por ver-se
hediondamente nua, e por tomar livremente um banho ignóbil no mal. O
constrangimento de um longo respeito humano acaba por inspirar um gosto
violento à impudência. Chega-se a uma certa lascívia na perversidade. Existe
nessas tremendas profundezas morais tão pouco sondadas uma não sei que
ostentação atroz e agradável, que é a obscenidade do crime. A insipidez da
falsa reputação dá apetite de vergonha. Desdenham-se os homens a ponto tal que
se deseja o desprezo deles. Ser estimado aborrece. Admira-se a franqueza da
degradação. Olha-se cobiçosamente a torpeza que se mostra tão a seu gosto na
ignomínia. Os olhos obrigados a baixar-se têm muitas vezes destes olhares
oblíquos. Nada se aproxima tanto de Messalina como Maria Alacoque. Vede Cadière
e a religiosa de Louviers.
Clubin
vivera debaixo do véu. O descaramento foi sempre a sua ambição. Invejava a
mulher pública e a fronte de bronze do opróbrio aceito; sentia-se mais mulher
pública do que ela e tinha desgosto em passar por virgem. Foi o Tântalo do
cinismo. Enfim, naquela solidão, podia ser franco; era-o. Que volúpia não é
sentir-se sinceramente abominável! Todos os êxtases possíveis no inferno
teve-os Clubin naquele momento; foram-lhe pagos todos os atrasados da
dissimulação; a hipocrisia é um adiantamento; Satanás embolsou-o, Clubin
embriagou-se de desfaçamento, pois que os homens tinham desaparecido e apenas
ficara o céu. Disse consigo: “Sou um pícaro!” E ficou satisfeito.
Jamais
houve coisa igual em uma consciência humana.
Erupção
de um hipócrita, não há rompimento de cratera igual a esse.
Achava-se
feliz por não haver ali ninguém, e não desgostaria que alguém o visse. Teria
prazer em ser medonho à vista de uma testemunha.
Teria
prazer em dizer ao gênero humano: és idiota!
A
ausência de homens assegurava-lhe o triunfo, mas diminuía-o. Só ele era o
espectador da sua glória.
Há
certo encanto em estar de golilha. Toda a gente vê que és infame.
Obrigar
a multidão a examinar-te é reconhecer a tua força. Um galé sobre um estrado,
com uma coleira de ferro ao pescoço, é o déspota de todos os olhares que ele
obriga a voltarem-se para si. Aquele cadafalso é ao mesmo tempo pedestal. Que
mais belo triunfo do que esse de ficar no centro de convergência para a atenção
geral? Obrigar o olhar público é uma das formas de supremacia. Os que têm o mal
por ideal acham no opróbrio uma auréola. Domina-se daí. Olha-se de cima de
alguma coisa. Mostra-se com soberania. Um poste, à vista de todo o universo,
tem alguma analogia com um trono.
Estar
exposto é ser contemplado.
Um
mau reinado tem evidentemente júbilos do pelourinho. Nero incendiando Roma,
Luís XIV tomando traiçoeiramente o Palatinado, o Regente Jorge matando
lentamente Napoleão, Nicolau assassinando a Polônia em face da civilização,
deviam sentir um pouco daquela volúpia sonhada por Clubin. A imensidade do
desprezo parece grandeza ao desprezado.
Ser
desmascarado é uma derrota, mas desmascarar-se é uma vitória. É a ebriedade, é
a imprudência insolente e satisfeita, é uma nudez transportada que insulta tudo
diante de si. Suprema felicidade.
Estas
idéias em um hipócrita parecem contradição, e não são. Toda a infâmia é consequente.
O mel é fel. Escobar confina no Marquês de Sade. Prova: Léotade. O hipócrita,
sendo perverso completo, tem em si os dois pólos da perversidade. De um lado é
padre, do outro cortesão. O seu sexo de demônio é duplo. O hipócrita é o
horrível hermafrodita do mal. Fecunda-se a si próprio; gera-se, transforma-se.
Queres vê-lo formoso? Olha-o. Queres vê-lo horrível? Vira-o.
Clubin
tinha em si toda esta sombra de idéias confusas. Pouco as percebia, mas
gozava-as muito.
Uma
porção de faíscas do inferno, atravessando a noite, era a sucessão dos
pensamentos naquela alma.
Clubin
conservou-se pensativo algum tempo; olhava para a sua honestidade com o ar com
que a serpente contempla a pele que despiu.
Toda
a gente acreditou naquela honestidade, ele próprio acreditou um bocadinho nela.
Deu
segunda gargalhada.
Iam
pensar que ele estava morto, e estava vivo.
Pensavam
que estava perdido, e estava salvo. Que boa caçada à tolice universal!
E
nessa tolice universal contava-se Rantaine. Clubin pensava em Rantaine com um
desdém sem limites. Desdém da fuinha para com um tigre. Tinha conseguido o que
falhara a Rantaine. Rantaine retirara-se enfiado, e Clubin triunfante. Tomou o
lugar de Rantaine no leito da sua má ação, e foi ele quem teve a boa fortuna.
Quanto
ao futuro, Clubin não tinha plano. Possuía os bilhetes do banco na boceta de ferro
atada à cintura; bastava-lhe esta certeza. Mudaria de nome. Há países onde 60
000 francos valem 600 000. Não seria má solução ir para um desses lugares viver
honestamente com o dinheiro apanhado ao ladrão Rantaine. Especular, entrar em
um grande negócio, engrossar o capital, tornar-se seriamente milionário também
não era mau.
Por
exemplo, em Costa Rica, como era o começo do grande comércio do café, podia
ganhar tonéis de ouro. Veria isso.
Demais,
pouco importava. Clubin tinha tempo de pensar nessas coisas. O mais difícil
estava feito. Despojar Rantaine, desaparecer com a Durande era o mais
importante. Estava feito. O resto era simples. Não havia obstáculo possível.
Nada a temer. Não podia acontecer nada. Nadaria para a costa, abordaria a
Plainmont, de noite, galgaria as rochas da praia, iria à casa mal-assombrada,
entraria facilmente por meio da corda de nós escondida de antemão no buraco do
rochedo; acharia na casa a mala contendo roupa e víveres, dentro de oito dias
lá estavam os contrabandistas da Espanha, Blasquito provavelmente; por alguns
guinéus, far-se-ia transportar, não a Tor Bay, como disse a Blasco para iludir,
mas a Pasages ou a Bilbau. Daí iria a Vera Cruz ou a Nova Orleans. Já era tempo
de atirar-se ao mar, a chalupa estava longe, uma hora a nado era coisa nenhuma
para Clubin, só 1 milha o separava da terra, pois que estava no Hanois.
Neste
ponto dos seus cálculos, rasgou-se uma fresta do nevoeiro. O formidável rochedo
Douvres surgiu aos seus olhos.
CAPÍTULO VII
INTERVÉM
O INESPERADO
Clubin
olhou espantado.
Era
o medonho escolho isolado.
Não
era possível a ilusão a respeito daquela configuração disforme. As duas Douvres
gêmeas campeavam horríveis deixando ver entre si, como uma armadilha, a
garganta de que falamos. Dissera-se um quebra-costas do oceano.
Estavam
perto dele as rochas Douvres; o nevoeiro, como cúmplice, escondera-as.
Clubin
errara o caminho por causa do nevoeiro. Apesar de toda a atenção, aconteceu-lhe
o mesmo que a dois grandes navegadores, a González, que descobriu o cabo
Branco, e a Fernández, que descobriu o cabo Verde. A bruma desencaminhou-o.
Pareceu-lhe excelente para a execução do projeto, mas tinha os seus perigos.
Clubin desviou-se para o oeste e enganou-se. O passageiro guernesiano,
acreditando ver o Hanois, determinou o movimento do leme final; Clubin cuidou
que se atirava ao Hanois.
A
Durande, arrombada por um dos bancos do escolho, estava separada das Douvres
apenas por algumas centenas de braças.
A
200 braças mais longe via-se um maciço cubo de granito. Descobriam-se nas faces
escarpadas desta rocha algumas estrias e relevos apropriados para galgá-la.
Os
cantos retilíneos dessas rudes muralhas de ângulo reto faziam pressentir no
cume uma planura.
Era
o Homem.
A
rocha Homem era mais alta ainda que as Douvres. A sua plataforma dominava as
pontas inacessíveis das duas rochas. Essa plataforma, abatendo-se pelas bordas,
tinha uma cimalha e mostrava uma certa regularidade arquitetural. Não se podia
imaginar nada mais triste e funesto. As vagas iam dobrar as suas tranquilas
toalhas nas faces quadradas daquele enorme rochedo negro, espécie de pedestal
para os espectros imensos do mar e da noite.
Tudo
aquilo estava mudo e morto. Havia apenas um sopro no ar e uma ruga nas ondas.
Debaixo daquela superfície muda da água adivinhava-se a vasta vida afogada das
profundezas.
Clubin
vira muitas vezes de longe o escolho Douvres.
Convenceu-se
bem que eram ali as Douvres.
Não
podia duvidar.
Súbita
e terrível mudança. As Douvres em vez de Hanois. Em vez de 1 milha, 5 léguas do
mar! O impossível. A rocha Douvres, para o náufrago solitário, é a presença
visível e palpável dos últimos momentos. É impossível chegar à terra.
Clubin
estremeceu. Tinha se metido na goela da sombra. Não havia outro refúgio além do
rochedo Homem. Era provável que a tempestade sobreviesse de noite, e que a
chalupa da Durande, sobrecarregada, soçobrasse. Nenhum aviso do naufrágio
chegaria à terra. Não se saberia mesmo que Clubin ficara no rochedo Douvres.
Não havia outra perspectiva senão a morte por frio e fome. Os seus 75.000
francos nem mesmo lhe davam um bocado de pão. Tudo quanto ele construíra deu em
resultado aquela cilada; foi ele próprio o arquiteto laborioso de sua
emboscada. Nenhum recurso. Nenhuma solução possível. O triunfo fazia-se
precipício. Em vez da liberdade, a captura. Em vez de um futuro próspero e
longo, a agonia. De um relance esboroou-se-lhe o edifício. O paraíso sonhado
por aquele demônio retomou a sua verdadeira figura: o sepulcro.
Entretanto,
soprava o vento. O nevoeiro, sacudido, furado, repuxado, desfazia-se no
horizonte em grandes lanhos informes. Reapareceu o mar.
Os
bois, cada vez mais invadidos pela água, continuavam a berrar no porão.
Aproximava-se
a noite; provavelmente a tempestade.
A
Durande, a pouco e pouco levantada pelo mar, oscilava da direita para a
esquerda, depois da esquerda para a direita, e começava a girar sobre o escolho
como sobre um eixo.
Podia-se
pressentir o momento em que uma vaga arrancaria o navio e o levaria água abaixo.
Havia
menos obscuridade do que no momento do naufrágio. Apesar da hora ser já
avançada, estava mais claro. O nevoeiro levou consigo uma parte da escuridão. O
oeste limpou-se de nuvens. O crepúsculo é um vasto céu branco. Essa vasta
claridade alumiava o mar.
A
Durande naufragara em plano inclinado de popa a proa. Clubin trepou à proa que
estava quase fora da água. Fitou no horizonte os olhos.
É
próprio da hipocrisia ater-se à esperança. O hipócrita é o homem que espera. A
hipocrisia é uma esperança horrível: o fundo dessa mentira é feito desta
virtude, tornada vício.
Coisa
estranha de dizer, há confiança na hipocrisia. O hipócrita confia-se a certa
indiferença do desconhecido, que consente no mal.
Clubin
olhava para a extensão.
A
situação era desesperada: aquela alma sinistra não desesperou.
Dizia
consigo que depois daquele longo nevoeiro os navios conservados na bruma, à
capa ou ancorados, iam continuar viagem, e algum passaria no horizonte.
E,
com efeito, apareceu uma vela.
Vinha
de leste e ia para oeste.
Aproximando-se,
desenhava-se o navio; tinha apenas um mastro, e estava armado em goleta. O
gurupés era quase horizontal.
Antes
de meia hora devia passar por perto do escolho Douvres.
Clubin
disse consigo: “Estou salvo”.
Em
momentos semelhantes, pensa-se primeiro na vida.
O
cúter era quase estrangeiro. Quem sabe se não era um dos contrabandistas que
iam a Plainmont? Quem sabe se não era Blasquito? Nesse caso, não somente
salvava a vida como a fortuna; e o encontro do rochedo Douvres, apressando a
conclusão, suprimindo a espera na casa mal-assombrada, dando desfecho à
aventura em pleno mar, seria um incidente feliz.
Toda
a certeza do bom êxito entrou freneticamente naquele espírito sombrio.
Estranha
coisa é ver com que facilidade os tratantes acreditam que devem ser
bem-sucedidos.
Cumpria
fazer apenas uma coisa.
A
Durande, metida nos rochedos, misturava a sua configuração à deles,
confundia-se com os seus recortes, sobre os quais parecia apenas um lineamento,
ficava indistinta e perdida, e não bastava, com o pouco dia que havia, para
atrair a atenção da embarcação que ia passar.
Mas
uma figura humana, desenhando-se na alvura crepuscular, de pé na planura do
rochedo Homem, e fazendo sinais de perigo, seria vista, sem dúvida alguma.
Mandariam um escaler para recolher o náufrago.
O
rochedo Homem ficava a 200 braças. Era simples atingi-lo a nado, fácil trepar
por ele.
Não
havia tempo a perder.
Estando
a proa da Durande sobre a rocha, era do alto da popa e do ponto em que estava
que Clubin devia atirar-se ao mar.
Começou
por deitar uma sonda, e reconheceu que havia ao pé da popa muito fundo. As
conchas microscópicas de foraminíferos e de policistináceos que a sonda trouxe
consigo estavam intactas, o que indicava que havia ali profundas cavas de
rocha, onde a água, qualquer que fosse a agitação da superfície, era sempre
tranquila.
Despiu-se,
deixando as roupas no tombadilho. Acharia roupa no cúter. Conservou apenas o
cinto de couro.
Depois
de despir-se, levou a mão ao cinto, apertou-o bem, apalpou a caixinha de ferro,
estudou rapidamente com o olhar a direção que devia seguir no meio dos parcéis
e das vagas para alcançar o rochedo Homem; depois, precipitou-se de cabeça para
baixo.
Como
caiu de alto, mergulhou muito.
Chegou
ao fundo do mar, tocou-o. Costeou alguns instantes as rochas submarinas, depois
fez um movimento para subir à superfície.
Nesse
momento sentiu-se agarrado pelo pé.
LIVRO SÉTIMO
IMPRUDÊNCIA
DE INTERRROGAR UM LIVRO
CAPÍTULO
PRIMEIRO
A PÉROLA
NO FUNDO DO PRECIPÍCIO
Minutos
depois do curto colóquio com o Sr. Landoys, Gilliatt estava em Saint-Sampson.
Gilliatt
ia inquieto até à ansiedade. Que teria acontecido?
Saint-Sampson
tinha um rumor de colmeia assustada. Toda a gente estava às portas. As mulheres
exclamavam. Muitas pessoas contavam alguma coisa fazendo gestos; as outras
agrupavam-se à roda dessas. Ouviam-se estas palavras: “Que desgraça!”. Alguns
sorriam. Gilliatt não interrogou ninguém. Não era próprio dele fazer perguntas.
Demais ia demasiado comovido para falar a indiferentes. Desconfiava das
narrações, preferia saber logo tudo; foi à casa de Lethierry.
A
sua ansiedade era tal que nem mesmo teve medo de entrar naquela casa.
Demais,
a porta da sala baixa estava escancarada. Na soleira havia um formigueiro de
homens e mulheres. Todos entravam; ele entrou.
Entrando,
achou encostado à porta o Sr. Landoys, que lhe disse a meia-voz:
—
Então, já sabe do sucesso?
—
Não.
—
Eu não quis dizer-lhe há pouco do meio da rua. Pareceria correio de desgraças.
—
Que foi então?
—
Perdeu-se a Durande.
Havia
muita gente na sala.
Os
grupos falavam baixo, como no quarto de um doente.
Os
assistentes, que eram os vizinhos, os viandantes, os curiosos, estavam
amontoados ao pé da porta, com uma espécie de receio, e deixavam vazio o fundo
da sala onde estava, ao lado de Déruchette lacrimosa e assentada, Mess
Lethierry de pé.
Lethierry
estava encostado ao tabique do fundo. O boné de marujo caía-lhe nas
sobrancelhas; uma mecha de cabelos grisalhos prendia-se-lhe na face. Não dizia
nada. Os braços não tinham movimento, a boca parecia não ter alento. Parecia
uma coisa encostada à parede.
Ao
vê-lo, sentia-se um homem dentro de quem se extinguira a vida. Deixando de
existir a Durande, Lethierry já não tinha razão de ser. Tinha uma alma no mar,
e essa alma acabava de perecer. Que faria ele agora? Levantar-se de manhã,
deitar-se de noite. Já não podia esperar a Durande, nem vê-la partir nem
voltar. O que é um resto de existência sem objeto? Beber, comer, e depois?
Aquele homem tinha coroado os seus trabalhos com uma obra-prima, e as
dedicações com um progresso. Abolira-se-lhe o progresso, morrera-lhe a
obra-prima. Para que viver ainda alguns anos vazios? Não tinha mais nada que
fazer. Naquela idade não é possível recomeçar; de mais a mais estava arruinado.
Pobre velho!
Déruchette,
assentada ao pé dele e chorando, tinha entre as suas duas mãos a mão de Mess
Lethierry. As dela estavam postas, a de Lethierry apertada. Via-se nisso a
diferença daqueles dois abatimentos. As mãos postas ainda têm esperança; a
apertada nenhuma.
Mess
Lethierry abandonava-lhe o braço sem resistência. Estava passivo. Tinha em si
apenas aquela porção de vida que pode haver depois do raio.
Há
certas descidas ao fundo do abismo que retiram um homem do meio dos vivos. As
pessoas que andam em roda são confusas e indistintas; acotovelam-no e não lhe
chegam. De parte a parte ficam inacessíveis. A ventura e o desespero não são os
mesmos centros respiráveis; o desesperado assiste à vida dos outros, mas de
muito longe; ignora quase a sua presença; perde o sentimento da própria
existência; que importa ser de carne e osso, o desesperado já se não sente
real; já não é ele próprio, é apenas um sonho.
Mess
Lethierry tinha o olhar dessa situação.
Cochichavam
os grupos.
Cada
qual dizia o que sabia.
Eis
as notícias:
A
Durande perdera-se na véspera nos rochedos Douvres, com o nevoeiro, uma hora
antes do pôr-do-sol. À exceção do capitão, que não quis deixar o navio, toda a
gente salvou-se na chalupa. Uma borrasca, vinda do sudoeste, depois do
nevoeiro, quase fez naufragar a chalupa, e carregou-a para o mar largo, além de
Guernesey. De noite tiveram os náufragos a boa fortuna de encontrar o Cashmere,
que os recolheu e levou a Saint-Pierre-Port. O culpado de tudo foi o timoneiro
Tangrouille, que já estava preso. Clubin mostrou-se magnânimo.
Os
pilotos que abundavam nos grupos pronunciavam estas palavras “escolho Douvres”
de um modo particular. “Má hospedaria aquela!”, dizia um deles.
Viam-se
na mesa uma bússola e um maço de registros e notas; eram sem dúvida a bússola
da Durande e os papéis de bordo entregues por Clubin a Imbrancam e a
Tangrouille no momento de partir a chalupa; magnífica abnegação desse homem,
salvando até os papéis no momento em que ia morrer; minuciazinha cheia de
grandeza, esquecimento sublime de si próprio.
Todos
eram unânimes em admirar Clubin, e igualmente unânimes em julgá-lo salvo. O
cúter Shealtiel chegara poucas horas depois do Cashmere, e esse
cúter trazia as últimas informações. Esteve 24 horas nas mesmas águas da
Durande. Parou e bordejou durante o nevoeiro e a tempestade. O patrão do Shealtiel
estava também na sala de Lethierry.
No
momento em que Gilliatt entrou, acabava ele de fazer a sua narração a Mess
Lethierry. Era um verdadeiro relatório. De manhã, tendo cessado a borrasca e
acalmado o vento, o patrão do Shealtiel ouviu mugido de bois em pleno
mar. Este rumor próprio das campinas, ouvido ali nas vagas, surpreendeu o
patrão. Descobriu a Durande nos rochedos Douvres. A calma era suficiente para
que ele pudesse acercar-se dos rochedos. Chamou o navio à fala. Só lhe
respondeu o mugido dos bois que se afogavam no porão. O patrão do Shealtiel
estava certo de que não havia ninguém a bordo da Durande. O casco estava
completamente preso; e por mais violenta que fosse a borrasca, devia ter
passado a noite de bordo. Não era homem de desanimar facilmente. Não estava de
bordo. Logo estava salvo.
Muitos
sloops e lugres de Granville e Saint-Malo, desprendendo-se do nevoeiro,
era fora de dúvida que deviam ter costeado as Douvres. Evidentemente algum
deles recolheu o Capitão Clubin. Devem lembrar-se que a chalupa da Durande
estava cheia ao deixar o navio, ia correr perigos, mais um homem poderia
fazê-la soçobrar, e foi isso sobretudo o que resolveu Clubin a ficar na
Durande; mas, cumprido esse dever, se aparecesse um navio salvador, Clubin não
teria dificuldade de aproveitar-se dele. Deve-se ser herói, não se deve ser
pascácio. Um suicídio seria tanto mais absurdo quanto que Clubin portara-se com
dignidade. O culpado era Tangrouille, não Clubin. Tudo isto era consequente; o
patrão do Shealtiel tinha razão e toda a gente esperava ver Clubin de um
momento para outro. Premeditava-se recebê-lo em triunfo.
Da
narração do mestre resultavam duas certezas: Clubin salvo e a Durande perdida.
Quanto
à Durande, estava decidido que a catástrofe era irremediável. O patrão do Shealtiel
assistira à última fase do naufrágio. O grandíssimo rochedo em que naufragara a
Durande resistira ao choque da tempestade, como se quisesse guardar consigo o
navio; mas de manhã, no momento em que o Shealtiel, verificando que não
havia ninguém para salvar, afastava-se da Durande, houve um desses movimentos
de mar que são como os últimos arrancos da cólera das tempestades. Essa onda
levantou furiosamente a Durande, arrancou-a do cachopo, e com a rapidez e a
retidão de uma flecha disparada, atirou-a entre as duas rochas Douvres.
Ouviu-se um estalo “diabólico”, dizia o patrão. A Durande, levada pela vaga a
uma certa altura, meteu-se entre as rochas. Estava outra vez pregada, mas desta
vez mais solidamente que no escolho submarino. Ficou aí deploravelmente
suspensa, exposta a todo o vento e a todo mar.
A
Durande, no dizer da equipagem do Shealtiel, já estava quase toda
despedaçada. Teria soçobrado, com certeza, de noite, se o cachopo não a
sustivesse. O patrão do Shealtiel com o seu óculo estudou o casco.
Descreveu o desastre com precisão marítima; o lado de estibordo estava roto; os
mastros truncados, o velame sem tralhas, as correntes dos ovéns quase todas
cortadas, as sangadilhas cortadas o mais rente possível desde o meio do mastro
até acima; o lugar dos víveres arrombado, os cavaletes da chalupa destruídos, a
árvore do leme rota, os cabos despregados, os paveses arrasados, as abitas
levadas pelo vento, a antena do mesmo modo, o cadaste quebrado. Era a
devastação frenética da tempestade. Quanto ao guindaste do carregamento, preso
ao mastro de proa, já não existia, não havia notícia dele, completamente limpo,
levaram-no os diabos, com todas as roldanas, polés e correntes. A Durande
estava deslocada; a água começava agora a despedaçá-la. Dentro de alguns dias
nada mais restaria dela.
E
contudo a máquina, coisa notável, e que provava a sua perfeição, sofreu pouco
com a tempestade. O patrão do Shealtiel afirmava que a manivela não teve
avaria grave. Os mastros do navio cederam, mas o cano da máquina resistiu. Os
baluartes de ferro do lugar do comando estavam apenas torcidos; as caixas das
rodas sofreram, mas as rodas pareciam não ter um só raio de menos. A máquina
estava intacta. Era a convicção do patrão do Shealtiel. O maquinista
Imbrancam, que estava entre os grupos, partilhava esta convicção. Aquele negro,
mais inteligente que muitos brancos, era o admirador da máquina. Levantava os
braços abrindo os dez dedos das suas mãos negras, e dizia a Lethierry mudo:
“Meu amo, a máquina está viva”.
O
salvamento de Clubin parecia coisa segura; o casco da Durande estava
sacrificado; a conversação dos grupos recaiu sobre a máquina. Interessavam-se
por ela, como se fosse uma pessoa. Todos admiravam o bom procedimento da
máquina. “Sólida comadre aquela”, dizia um marinheiro francês. “É magnífica!”,
exclamava um pescador guernesiano. “Deve ter sido muito astuciosa”,
acrescentava o patrão, “para escapar apenas com alguns arranhões.”
A
pouco e pouco tornou-se a máquina a preocupação única. Animou as opiniões pró e
contra. Tinha amigos e inimigos. Mais de um, que tinha algum velho cúter de
vela, e esperava apanhar a freguesia da Durande, alegrou-se por ver o escolho
Douvres fazer justiça à nova invenção. O cochicho tornou-se algazarra.
Discutia-se com barulho. Era contudo um rumor discreto, que de quando em quando
se calava sob a pressão do silêncio sepulcral de Lethierry.
Do
colóquio havido em todos os pontos resultava isto:
A
máquina era o essencial. Refazer o navio era possível, não a máquina. Era
única. Para fabricar outra faltavam o dinheiro e o fabricante. Lembram-se de
que o construtor tinha morrido. Custou 40 000 francos. Ninguém arriscaria agora
aquele capital naquela eventualidade; tanto mais quanto acabava de provar-se
que os vapores naufragam como navios de vela; o acidente atual da Durande metia
a pique o seu passado sucedimento. E era doloroso pensar que naquele momento a
máquina ainda estava em bom estado, e que, antes de cinco ou seis dias, ficaria
despedaçada como o navio. Enquanto existia a máquina, podia dizer-se que não
havia naufrágio. Só a perda da máquina era irremediável. Salvar a máquina era
reparar o desastre.
Salvar
a máquina é fácil dizê-lo. Mas quem ousaria? Era acaso possível? Dizer e
executar são coisas diferentes, e a prova é que é fácil formular uma aspiração
e difícil executá-la. Ora, se houve jamais um sonho impraticável e insensato
era este: salvar a máquina encalhada nas Douvres. Mandar trabalhar naquelas
rochas um navio e uma equipagem seria absurdo; não se devia pensar nisso. Era a
estação dos temporais: ao primeiro que houvesse, rasgavam-se as correntes das
amarras nas pontas submarinas e o navio despedaçava-se. Era mandar um naufrágio
em socorro do primeiro. Na espécie de buraco da planura superior onde se
abrigara o náufrago legendário morto de fome, mal havia lugar para um homem.
Era preciso, pois, que, para salvar essa máquina, fosse um homem aos rochedos
Douvres, e que fosse sozinho, só naquele mar, só naquele deserto, só a 5 léguas
da costa, naquele medo, só durante semanas inteiras, só diante do previsto e do
imprevisto, sem vitualhas nas angústias da privação, sem socorro nos incidentes
da desgraça, sem outro vestígio humano que o do antigo náufrago morto ali, sem
outro companheiro além daquele finado.
E
como salvaria ele a máquina? Era preciso que fosse, não somente marujo, senão
também ferreiro. E quantas dificuldades! O homem que o tentasse seria mais que
um herói. Seria um louco. Porquanto, em certos cometimentos desproporcionados,
onde parece necessário o sobre-humano, a bravura tem acima de si a demência. E,
com efeito, sacrificar-se por um pouco de ferro não era extravagante? Não,
ninguém iria aos rochedos Douvres. Devia-se renunciar à máquina do mesmo modo
que ao navio. O salvador que era preciso não aparecia. Onde encontrar esse
homem?
Isto,
dito de outro modo, era o fundo das conversas murmuradas daquela multidão.
O
patrão do Shealtiel, que era um antigo piloto, resumiu o pensamento de
todos exclamando em alta voz:
—
Não! Está acabado. Não existe um homem capaz de ir buscar a máquina!
—
Se eu não vou — disse Imbrancam — é que é impossível ir.
O
patrão do Shealtiel sacudiu a mão esquerda com aquele arrebatamento que
exprime a convicção do impossível, e repetiu:
—
Se existisse.
Déruchette
voltou a cabeça.
—
Casava-me com ele.
Houve
um silêncio.
Um
homem pálido saiu do meio dos grupos e disse:
—
A senhora casava-se com ele, Miss Déruchette?
Era
Gilliatt.
Entretanto,
todos levantaram os olhos. Mess Lethierry endireitou-se. Tinha nos olhos uma
luz estranha.
Tirou
o boné e lançou ao chão, depois olhou solenemente para a frente sem ver pessoa
alguma e disse:
—
Déruchette casava-se com esse homem. Dou a minha palavra de honra a Deus.
CAPÍTULO II
GRANDE
ESPANTO NA COSTA OESTE
A
noite desse dia, das 10 horas em diante, devia ser noite de luar. Todavia,
qualquer que fosse a boa aparência da noite, do vento e do mar, nenhum pescador
estava disposto a sair nem de Hougue la Perre, nem de Bordeaux, nem de Houmet
Benet, nem de Platon, nem de Port-Grat, nem da baía Vason, nem de Perelle Bay,
nem de Pezeris, nem de Tielles, nem da baía dos Santos, nem de Petit Bô, nem de
nenhum outro porto ou angra de Guernesey. E isso por uma razão simples: o galo
tinha cantado ao meio-dia.
Quando
o galo canta a uma hora extraordinária, não há peixe.
Nesse
dia, pois, ao cair da tarde, um pescador que voltava a Omptolle teve uma
surpresa. Na altura de Houmet Paradis, além de Brayes e Grunes, tendo à
esquerda a baliza de Plattes Fougères, que representa um funil virado, e à
direita a baliza de Saint-Sampson, que representa uma figura de homem, o
pescador acreditou ver uma terceira baliza. Que baliza era essa? Quando foi
posta ali? Que banco indicava ela? A baliza respondeu logo a estas
interrogações; mexeu-se; era um mastro. Não diminuiu o espanto do pescador.
Baliza era para admirar; mastro ainda mais. Não havia pesca possível. Quando
todos voltavam, por que saía aquele? Quem era? Por quê?
Dez
minutos depois, o mastro, caminhando lentamente, chegou a pouca distância do
pescador de Omptolle. Este não pôde reconhecer o barco. Ouviu remar. O ruído
era de dois remos. Provavelmente era um homem só. O vento era norte; o homem
navegava evidentemente para ir tomar o vento além da ponta Fontenelle. Aí era
natural que abrisse a vela. Contava pois dobrar o Ancresse e o monte Crevel.
Que queria dizer aquilo?
O
mastro passou; o pescador foi para terra.
Nessa
mesma noite, na costa oeste de Guernesey, observadores de ocasião disseminados
e isolados fizeram alguns reparos a horas diversas e em diversos pontos.
O
pescador de Omptolle acabava de amarrar o barco, quando um condutor de sargaço,
a meia milha distante, chicoteando os animais na estrada deserta de Clotures,
perto do Cromleche, nos arredores dos martelos 6 e 7, viu no mar, um tanto
longe, em lugar pouco frequentado, porque é preciso conhecê-lo bem, do lado da
Roque-Nord e da Sablonneuse, um barco içando uma vela. Deu pouca atenção, pois
que era homem de carro e não de barco.
Meia
hora depois, um estucador que voltava da cidade e contornava a lagoa de Pelée
achou-se repentinamente quase em face de um barco que penetrara audaciosamente
entre as rochas do Quenon, da Rousse de Mer, e da Gripe de Rousse. A noite era
negra, mas o mar estava claro, efeito que se produz muitas vezes, e podia-se
distinguir ao largo os navegantes. Só havia no mar aquele barco.
Mais
abaixo e mais tarde, um pescador de lagostas, dispondo as suas tendas no areal
que separa o Port Soif do Port Enfer, não compreendeu o que faria um barco que
passava entre a Boue Corneille e a Moulrette. Era preciso ser bom piloto e ter
pressa de chegar a algum lugar para arriscar-se a passar ali.
Sendo
8 horas no Catel, o taverneiro de Cobo Bay observou, com algum espanto, uma
vela além da Boue do Jardim e das Grunettes, mui perto da Suzanne e dos Grunes
do Oeste.
Não
longe do Cobo Bay, na ponta solitária do Houmet da baía Vason, estavam dois
namorados a despedir-se e a reter-se um ao outro; foram distraídos do último
beijo por um vasto barco que passou por perto deles e dirigia-se para as
Menellettes.
O
Sr. Le Peyre des Norgiots, morador em Catellon Pipet, estava examinando, às 9
horas da noite, um buraco feito por larápios na cerca da sua horta, e ao mesmo
tempo que averiguava os estragos, não pôde deixar de observar um barco dobrando
temerariamente o Croce-Point àquela hora.
No
dia seguinte ao de uma tempestade, com o resto de agitação que sempre fica no
mar, aquele itinerário era pouco seguro, a menos que se não saiba de cor todos
os passos. Às 9 horas e meia, no Equerrier, um pescador levando a rede, parou
algum tempo para ver entre Colombelle e Soufleresse alguma coisa que devia ser
um barco e que se expunha muito ao tempo. Há ventos perigosos nesse lugar. A
rocha Soufleresse é assim chamada porque sopra constantemente os barcos que
passam.
Ao
levantar da lua, estando a maré cheia, e havendo pleno mar no estreito de
Li-Hou, o guarda solitário da ilha de Li-Hou assustou-se ao ver passar entre a
lua e ele uma longa forma negra. Esta forma ia resvalando lentamente por cima
das espécies de paredes que formam os bancos da rocha. O guarda de Li-Hou
pensou ver a Dama Negra.
A
Dama Branca habita o Tau de Pez d’Amont, a Dama Cinzenta habita o Tau de Pez
d’Aval, a Dama Vermelha habita a Lilleuse ao norte do Banc-Marquis, e a Dama
Negra habita o Grand-Etacré ao leste de Li-Houmet. Ao clarão da lua todas essas
damas saem e encontram-se às vezes.
Rigorosamente
essa forma negra podia ser uma vela. As longas fileiras de rochas sobre as
quais parecia que a vela andava podiam com efeito esconder o casco de um barco
vogando atrás de si, deixando ver apenas a vela. Mas o guarda perguntou a si
próprio que barco ousaria arriscar-se àquelas horas entre Li-Hou e a
Pecheresse, e as Angullières e Lerée-Point. E com que fim? Pareceu-lhe mais
provável que fosse a Dama Negra.
Estando
a lua já acima da torre de Saint-Pierre-du-Bois, o sargento de Rocquaine
levantou metade da escada da ponte levadiça e distinguiu na foz da baía, mais
perto que a Sambule, um barco à vela que parecia descer de norte a sul.
Existe
na costa sul de Guernesey, atrás do Plainmont, no fundo de uma baía, toda
precipícios e muralhas, cortado a pique na onda, um porto singular que um
francês, residente na ilha desde 1844, talvez o mesmo que escreve agora estas
linhas, batizou com o nome de “porto do quarto andar”, nome geralmente adotado
hoje. Esse porto que então se chamava a Moie, é uma planura de rocha meio
natural, meio talhada, de 40 pés de altura acima da água, e comunicando com as
vagas por duas grandes pranchas em plano inclinado. Os barcos içados à força de
braços por correntes e roldanas, saem ao mar e descem ao longo dessas pranchas
que são dois trilhos. Para os homens há uma escada. Esse porto era então muito
frequentado pelos contrabandistas. Sendo pouco praticável, era-lhes cômodo.
Pelas
11 horas, alguns trapaceiros, talvez os mesmos com quem Clubin contava, estavam
com os seus fardos na Moie. Quem trapaceia, espia; eles espiavam. Admiraram-se
de ver uma vela desembocando repentinamente além das linhas negras do cabo
Plainmont. O luar estava claro. Os contrabandistas espreitavam a vela, receando
que fosse algum guarda-costa colocar-se de emboscada atrás do grande Hanois,
mas a vela passou os Hanois, deixou atrás de si a noroeste a Boue Blondil, e
mergulhou-se ao largo nas brumas lívidas do horizonte.
—
Aonde diabo vai aquela barca? — disseram os contrabandistas.
Na
mesma noite, pouco depois de pôr o sol, ouviu-se alguém bater na porta da casa
mal-assombrada em que morava Gilliatt. Era um rapaz vestido de escuro, com
meias amarelas, o que indicava ser sacristão. A casa estava fechada, porta e postigos.
Uma velha pescadora de frutos do mar, passeando pelo banco, com uma lanterna na
mão, chamou o rapaz, e trocaram-se estas palavras entre eles:
—
Que quer você?
—
O hhhhhhooomem daqui.
—
Não está aqui.
—
Onde está?
—
Não sei.
—
Virá amanhã?
—
Não sei.
—
Foi-se embora daqui?
—
Não sei.
—
É que o novo cura da paróquia, o Reverendo Ebenezer Caudray, queria fazer-lhe
uma visita.
—
Não sei.
—
O reverendo mandou-me saber se o homem estava em casa amanhã de manhã.
CAPÍTULO III
NÃO
TENTEIS A BÍBLIA
Nas
24 horas que se seguiram, Mess Lethierry não dormiu nem comeu, nem bebeu,
beijou a testa de Déruchette, informou-se de Clubin, do qual ainda não havia
notícias, assinou um papel declarando que não pretendia dar queixa, e fez
soltar Tangrouille.
Ficou,
todo o dia seguinte, meio encostado à mesa do escritório da Durande, nem
assentado nem de pé, respondendo com brandura a quem lhe falava. Demais,
estando satisfeita a curiosidade, ficou solitária a casa de Lethierry. Há muitos
desejos de observar na solicitude de lamentar. Fechara-se a porta; deixava-se
Lethierry com Déruchette. O relâmpago que passara nos olhos de Lethierry estava
extinto; voltara-lhe o olhar lúgubre do começo da catástrofe.
Déruchette,
assustada, foi caladinha, conselho de Graça e Doce, colocar ao lado dele, na
mesa, um par de meias que Lethierry tecia quando a triste notícia chegou.
Lethierry
sorriu amargamente e disse:
—
Então pensam que não tenho juízo?
Depois
de um quarto de hora de silêncio, acrescentou:
—
Estas manias são boas quando a gente é feliz.
Déruchette
tirou o par de meias, e aproveitou a ocasião para tirar também a bússola e os
papéis de bordo, que Mess Lethierry contemplava demasiadamente.
De
tarde, um pouco antes da hora do chá, a porta abriu-se e entraram dois homens,
vestidos de preto, um velho, e outro moço.
O
moço já foi visto no curso desta narração.
Tinham
ambos um ar grave, mas de gravidade diferente; o velho tinha aquilo que se pode
chamar gravidade de profissão; o mancebo tinha a gravidade da natureza. A
primeira vem do hábito, a segunda nasce do pensamento.
Eram,
como indicava o traje, dois padres, pertencendo ambos à religião estabelecida.
O
que se notava desde logo no mancebo era que a gravidade, profunda no olhar, e
resultando do espírito, não nascia absolutamente da pessoa. A gravidade admite
a paixão, exala-a, purificando-a, mas aquele mancebo era, antes de tudo, lindo.
Sendo padre, devia ter ao menos 25 anos; parecia ter dezoito. Apresentava uma
harmonia e um contraste, isto é, tinha uma alma que parecia feita para a paixão
e um corpo que parecia feito para o amor. Era loiro, rosado, fresco, delicado e
flexível, apesar do vestuário severo, com faces de donzela e mãos delicadas;
embora reprimido, tinha o gesto vivo e natural. Tudo nele era encanto,
elegância e quase volúpia. A beleza de seu olhar corrigia esse excesso de
graça. O sorriso sincero, que deixava ver uns dentes de criança, era pensativo
e religioso. Era a gentileza de um pajem e a dignidade de um bispo.
Debaixo
dos espessos cabelos loiros, tão dourados que pareciam garridos, tinha ele um
crânio elevado, cândido e bem-feito. Uma leve ruga de inflexão dupla, entre as
duas sobrancelhas, despertava confusamente a ideia da ave do pensamento
pairando, com as asas abertas, no meio daquela fronte.
Sentia-se,
ao vê-lo, uma dessas criaturas benévolas, inocentes e puras, que progridem em
sentido inverso da humanidade vulgar, a quem a ilusão torna sábias e a
experiência entusiastas.
A
mocidade transparente deixava ver a maturidade interior. Comparado ao padre de
cabelos grisalhos que o acompanhava, à primeira vista, parecia filho,
reparando-se bem, parecia pai.
Era
este o Dr. Jaquemin Herodes. O Dr. Jaquemin Herodes pertencia à alta Igreja,
que é pouco mais ou menos um papismo sem papa. O anglicanismo nessa época era
agitado pelas tendências que depois se afirmaram e condensaram no puseísmo. O
Dr. Jaquemin Herodes era desse matiz anglicano, que é quase uma variação
romana. Era alto, correto, delgado e superior. O raio visual interior mal se
distinguia de fora. O seu espírito era cingir-se à letra. De mais a mais era
altivo. Enchia com a sua pessoa o lugar que ocupava. Parecia menos um reverendo
que um monsenhor. A casaca era talhada à moda de sotaina. Em Roma é que ele
estaria bem. Nascera para ser prelado da Câmara. Parecia ter sido criado
expressamente para ser ornamento do papa, e ir atrás da cadeira gestatória, com
toda a corte pontifícia, in abito paonazzo. O acidente de ter nascido
inglês e uma educação teológica mais voltada para o Antigo Testamento que para
o Novo fizeram com que lhe falhasse esse destino. Todos os seus esplendores
resumiram-se nisto: ser cura de Saint-Pierre-Port, decano da ilha de Guernesey
e sub-rogado do bispo de Winchester. Não há dúvida que era glória tudo isso.
Essa
glória não impedia que o Sr. Jaquemin Herodes fosse um bom homem.
Como
teólogo, dispunha da estima dos conhecedores e fazia quase autoridade em
Arches, que é a Sorbonne da Inglaterra.
Tinha
um ar douto, um piscar de olhos apto e exagerado, narinas cabeludas, dentes
visíveis, o lábio inferior fino e o lábio superior espesso, muitos diplomas,
uma gorda prebenda, amigos barões, a confiança do bispo, e continuamente trazia
uma Bíblia na algibeira.
Mess
Lethierry estava tão completamente absorto, que tudo quanto pôde produzir nele
a entrada dos dois padres foi um imperceptível enrugar de sobrancelhas.
O
Sr. Jaquemin Herodes aproximou-se, cumprimentou, recordou em poucas palavras,
sobriamente altivas, a sua recente promoção e disse que vinha, segundo o uso,
apresentar aos notáveis, e a Mess Lethierry especialmente, o seu sucessor na
paróquia, o novo cura de Saint-Sampson, o Reverendo Joe Ebenezer Caudray que
daí em diante seria o pastor de Mess Lethierry.
Déruchette
levantou-se.
O
padre moço, que era o Reverendo Ebenezer, inclinou-se.
Mess
Lethierry olhou para o Sr. Ebenezer Caudray, e mastigou entre dentes estas
palavras: “Mau marinheiro”.
Graça
apresentou cadeiras. Os dois reverendos assentaram-se perto da mesa.
O
Dr. Herodes começou um speech. Tinha sabido de um acontecimento.
Naufragara a Durande. Vinha, como pastor, trazer consolação e conselho. O
naufrágio era uma desgraça, mas era também uma felicidade. Sondemo-nos; não nos
inchava a prosperidade? As águas da felicidade são perigosas. Não se deve tomar
as desgraças à má parte. Os caminhos do Senhor são desconhecidos. Mess
Lethierry estava arruinado. Pois ser opulento é estar em perigo. Aparecem
amigos falsos. A pobreza afasta-os. Fica-se isolado. Solus eris. A
Durande dizem que dava 1 000 libras esterlinas por ano. Era demais para um
filósofo. Fujamos às tentações, desdenhemos o ouro. Aceitemos com
reconhecimento a ruína e o abandono. O isolamento dá frutos. Ganha-se nele as
graças do Senhor. Foi na solidão que Aia achou as águas quentes conduzindo os
asnos de Sebeão, seu pai. Não nos revoltemos contra os impenetráveis decretos
da Providência. O santo homem Jó, depois da sua miséria, cresceu em riquezas.
Quem sabe se a perda da Durande não teria compensações, mesmo temporais? Também
ele, Herodes, empregara capitais em uma magnífica operação que se realizava em
Sheffield; se Mess Lethierry, com os fundos que lhe restavam, quisesse entrar
nesse negócio, podia refazer a fortuna; era um grande fornecimento de armas ao
czar para reprimir a Polônia. Ganharia 300 por cento.
A
palavra czar pareceu despertar Lethierry, que interrompeu o Dr. Herodes:
—
Não quero nada com o czar.
O
Reverendo Herodes respondeu:
—
Mess Lethierry, os príncipes são aceitos por Deus. Deus escreveu: “Dai a César
o que é de César”. O czar é César.
Lethierry,
meio absorto na cisma, murmurou:
—
Quem é César? Não conheço.
O
Reverendo Herodes continuou a exortação. Não insistiu por Sheffield. Não
aceitar César era ser republicano. O reverendo compreendia que um homem fosse
republicano. Nesse caso, compreendia que Mess Lethierry se voltasse para uma
república. Mess Lethierry podia estabelecer a fortuna nos Estados Unidos;
melhor do que na Inglaterra. Se quisesse decuplicar o que lhe restava,
bastava-lhe tomar ações na grande companhia de exploração das plantações do
Texas, que empregava mais de 20 000 negros.
—
Não quero nada com a escravidão, disse Lethierry.
—
A escravidão — replicou o Reverendo Herodes — é de instituição sagrada. Está
escrito: “Se o senhor bater o escravo, nada lhe será feito, porque bate o seu
dinheiro”.
Graça
e Doce, na soleira da porta, ouviam com uma espécie de êxtase as palavras do
reverendo doutor.
O
reverendo continuou. Era, em suma, como dissemos, um bom homem; e quaisquer que
pudessem ser os seus sentimentos de casta ou de pessoa com Mess Lethierry,
vinha-lhe sinceramente dar o auxílio espiritual, e mesmo temporal, de que
dispunha.
Se
Mess Lethierry estava arruinado ao ponto de não poder cooperar, com fruto, numa
especulação qualquer, russa ou americana, por que não entrava no governo e nas
funções assalariadas? São nobres empregos esses, e o reverendo estava pronto a
introduzir Mess Lethierry. Vagara em Jersey o lugar de deputado-visconde. Mess
Lethierry era amado e estimado, e o Reverendo Herodes, decano de Guernesey,
podia obter para Mess Lethierry o emprego de deputado-visconde de Jersey. O
deputado-visconde é um funcionário considerável, assiste, como representante de
Sua Majestade, aos atos jurídicos, aos debates da plebe e às execuções de
sentenças.
Lethierry
fixou os olhos no Dr. Herodes.
—
Não gosto de enforcamentos — disse ele.
O
Dr. Herodes, que até então pronunciara todas as palavras com a mesma inflexão,
teve um acento de severidade e uma inflexão nova:
—
Mess Lethierry, a pena de morte é ordenada por Deus, Deus entregou a espada ao
homem. Está escrito: “Olho por olho, dente por dente”.
O
Reverendo Ebenezer aproximou imperceptivelmente a sua cadeira da cadeira do
Reverendo Jaquemin, e disse-lhe de modo que não fosse ouvido senão por ele:
—
O que este homem diz é-lhe ditado.
Por
quem? — perguntou no mesmo tom o Reverendo Herodes.
—
Pela consciência.
O
Reverendo Herodes meteu a mão no bolso, tirou um grosso volume em 18°, encadernado
com fechos, pô-lo na mesa e disse em voz alta:
—
A consciência é isto.
O
livro era a Bíblia.
Depois
foi-se abrandando o Dr. Jaquemin. O seu desejo era ser útil a Mess Lethierry,
que considerava ser um homem forte. Como pastor, tinha ele direito e dever de
aconselhar; todavia Mess Lethierry tinha a liberdade de aceitar ou recusar o
conselho.
Mess
Lethierry, caindo outra vez na absorção e no abatimento, já não ouvia.
Déruchette, assentada ao pé dele, e pensativa também, não levantava os olhos, e
dava àquela prática pouco animada a porção de acanhamento que resulta de uma
presença silenciosa. Uma testemunha que não diz palavra é uma espécie de peso
indefinível. Mas o Dr. Herodes não parecia senti-lo.
Como
Lethierry não respondia, o Dr. Herodes deu largas à palavra. O conselho vem do
homem, a inspiração vem de Deus. Há inspiração no conselho do padre. É bom
aceitar os conselhos e perigoso rejeitá-los. Schoth foi agarrado por onze
diabos por ter desdenhado das exortações de Nataniel. Tiburiano foi atacado de
lepra por ter posto fora de casa o apóstolo André. Barjesus, apesar de mágico,
ficou cego por ter zombado das palavras de São Paulo. Elxai e suas irmãs Marta
e Martena estão no inferno a esta hora por terem desprezado as advertências de
Valencianus, que lhes provava, claro como o dia, que o Jesus Cristo deles, de
38 léguas de comprimento, era um demônio. Oolibama, que também se chama Judite,
obedecia aos conselhos. Rubem e Feniel ouviam os conselhos do céu; bastam os
nomes deles para indicá-los; Rubem significa filho da visão, e Feniel significa
face de Deus.
Mess
Lethierry deu um soco na mesa.
—
Mas a culpa é minha!
—
Que que dizer? — perguntou Jaquemin Herodes.
—
Digo que a culpa é minha.
—
Culpa de quê?
—
Por ter mandado vir a Durande à sexta-feira.
O
Sr. Jaquemin Herodes murmurou ao ouvido do Sr. Ebenezer Caudray:
—
Este homem é supersticioso.
Continuou
depois, e em tom de mestre:
—
Mess Lethierry, é pueril acreditar na sexta-feira. Não se deve acreditar em
fábula. A sexta-feira é um dia como qualquer outro. Às vezes é data feliz.
Melendez fundou a cidade de Santo Agostinho em sexta-feira; foi numa
sexta-feira que Henrique VII deu a sua comissão a John Cabot; os peregrinos do Mayflower
chegaram a Province-Town em sexta-feira. Washington nasceu na sexta-feira, 22
de fevereiro de 1732; Cristóvão Colombo descobriu a América na sexta-feira, 12
de outubro de 1492.
Dizendo
isto, levantou-se.
Ebenezer,
que tinha ido com ele, levantou-se também.
Graça
e Doce, adivinhando que os reverendos iam despedir-se, abriram as portas.
Mess
Lethierry não via nem ouvia nada.
O
Sr. Jaquemin Herodes disse em aparte ao Sr. Ebenezer Caudray:
—
Nem nos cumprimenta. Não é tristeza, é embrutecimento. Devemos crer que ele
está doido.
Entretanto,
pegou na Bíblia e colocou-a entre as mãos abertas, como quem segura um pássaro
com receio que fuja. Esta atitude criou entre os personagens presentes uma
certa espera. Graça e Doce esticaram a cabeça.
A
voz de Herodes fez quanto pôde para ser majestosa.
—
Mess Lethierry, não nos separemos sem ler uma página do livro santo. As
situações da vida são esclarecidas pelos livros; os profanos têm as sortes
virgilianas, os crentes têm as advertências bíblicas. O primeiro livro,
apanhado ao acaso, aberto ao acaso, dá um conselho; a Bíblia, aberta ao acaso,
faz uma revelação. É sobretudo boa para os aflitos. O que a Santa Escritura
respira indubitavelmente é um lenitivo às dores. Diante dos aflitos deve-se
consultar o santo livro sem escolher o lugar, e ler com candura o passo
encontrado. O que o homem não escolhe, escolhe-o Deus. Deus sabe o que
precisamos. O seu dedo invisível aponta o passo inesperado que nós lemos.
Qualquer que seja a página, rebenta-lhe luz. Não busquemos outro. É a palavra
do céu. O nosso destino é revelado misteriosamente no texto evocado com
confiança e respeito. Ouçamos e obedeçamos. Mess Lethierry, o senhor tem uma
aflição, este é o livro da consolação; está enfermo, este é o livro da saúde.
O
Reverendo Jaquemin Herodes abriu a mola do fecho, meteu o dedo ao acaso entre
duas páginas, pôs a mão no livro aberto, e concentrou-se; depois, abaixando os
olhos com autoridade, leu em alta voz.
Eis
o que leu:
“Isaac
passeava no caminho que vai ter ao poço chamado Poço daquele que vive e vê.
“Rebeca,
vendo Isaac, disse: `Quem é este homem que vem andando para mim?’
“Então
Isaac fê-la entrar na sua tenda, e tomou-a por mulher, e grande foi o amor que
lhe teve”.
Ebenezer
e Déruchette olharam um para o outro.
O ENGENHEIRO
GILLIATT
LIVRO
PRIMEIRO
O ESCOLHO
CAPÍTULO
PRIMEIRO
INCÔMODA
CHEGADA, DIFÍCIL SAÍDA
Já
os leitores terão adivinhado que o barco, visto em muitos pontos da costa de
Guernesey, na noite anterior, em horas diversas, era a pança. Gilliatt escolheu
ao longo da costa o canal que se abre entre os rochedos; era a rota perigosa,
mas era o caminho direto. Tomar o mais curto foi o cuidado dele. Os náufragos
não esperam. O mar é coisa urgente, uma hora de demora podia ser irreparável.
Queria chegar depressa para socorrer a máquina.
Saindo
de Guernesey, uma das preocupações de Gilliatt era não despertar a atenção.
Saiu como quem fugia. Tinha ares de pessoa que se esconde. Evitou a costa de
leste como se achasse inútil passar à vista de Saint-Sampson e Saint-Pierre-Port;
resvalou silenciosamente ao longo da costa oposta, que é relativamente
inabitada. Nos bancos teve de remar; mas Gilliatt manejava o remo segundo a lei
hidráulica: tomar a água sem choque e impeli-la devagar; desse modo pôde nadar
na obscuridade com a maior força e o menor rumor possíveis. Parecia que ia
cometer uma ação feia.
A
verdade é que, atirando-se de olhos fechados a um cometimento que parecia
impossível, e arriscando a vida com todas as probabilidades contra ele, receava
a concorrência.
Como
o dia começava a despontar, os olhos ignotos que estão talvez abertos no espaço
puderam ver no meio do mar, num ponto em que há mais solidão e ameaça, duas
coisas entre as quais ia diminuindo o intervalo, sendo que uma aproximava-se da
outra. Uma, quase imperceptível no largo movimento das vagas, era um barco de
vela; nessa barca havia um homem; era a pança levando Gilliatt. A outra,
imóvel, colossal, negra, tinha, sobranceira às vagas, uma surpreendente figura.
Dois altos pilares amparavam acima da água, no vácuo, uma espécie de travessão
horizontal, que era como que uma ponte entre as duas cumeadas. O travessão, tão
informe de longe que seria impossível adivinhar o que era, fazia corpo com os
dois pilares. Parecia uma porta. Por que haveria uma porta naquela abertura de
todos os lados do mar? Dissera-se um dólmen titânico plantado ali, em pleno
oceano, por uma fantasia magistral, e construído por mãos que têm o hábito de
apropriar ao abismo as suas construções. Aquela medonha forma levantava-se na
claridade do céu.
A
luz da manhã ia crescendo a leste; a alvura do horizonte aumentava a negridão
do mar. Do lado oposto, declinava a lua.
Os
dois pilares eram as Douvres. A espécie de massa apertada entre eles como uma
arquitrave era a Durande.
Apertando
assim a sua vítima, e deixando-a ver, o escolho era horrível. A atitude
daqueles rochedos era uma espécie de repto. Parecia esperar.
Nada
mais altivo e arrogante como tudo aquilo; o navio vencido, o abismo vitorioso.
Os dois rochedos, ainda gotejantes da tempestade da véspera, pareciam dois
combatentes em suor. Tinha acalmado o vento, o mar dobrava-se placidamente;
adivinhava-se que havia à flor da água alguns bancos onde os penachos de escuma
caíam com graça; de longe vinha um murmúrio semelhante ao zumbido das abelhas.
Tudo era um nível, menos as duas Douvres, levantadas e tesas como duas colunas
negras. Os flancos escarpados tinham reflexos de armaduras. Pareciam prestes a
encetar de novo a luta. Compreendia-se que elas nasciam de montanhas submarinas.
Havia em tudo aquilo uma espécie de onipotência trágica.
De
ordinário, o mar oculta os seus lances. Conserva-se voluntariamente obscuro. A
incomensurável sombra guarda tudo para ele. É raro que o mistério renuncie ao
segredo. Há um quê de monstro na catástrofe, mas em quantidade ignota. O mar é
patente e secreto; esconde-se, não quer divulgar as suas ações. Produz um
naufrágio e abafa-o; engolir é o seu pudor. A vaga é hipócrita; mata, rouba,
sonega, ignora e sorri. Ruge, depois abranda-se.
Nada
semelhante nas Douvres. Os dois rochedos, levantando acima das ondas o cadáver
da Durande, tinham um ar de triunfo. Dissera-se dois braços saindo do golfão, e
mostrando às tempestades o cadáver daquele navio. Era uma coisa igual ao
assassino que se vangloria do crime.
A
isto acrescentava-se o horror sagrado da hora. A madrugada tem uma grandeza
misteriosa que se compõe de um resto de sonho e de um começo de pensamento.
Nesse momento turvado, como que flutua ainda um pouco de espectro. A espécie de
imenso H maiúsculo formado pelas duas Douvres com a Durande no centro aparecia
no horizonte no meio de uma certa majestade crepuscular.
Gilliatt
vestia a roupa do mar, camisa de lã, meias de lã, sapatos tacheados, japona de
lã, calça de pano grosso mal tecido, com bolsos, e na cabeça um daqueles
barretes de lã vermelha usados então na marinha, e que se chamavam, no século
passado, galériennes.
Reconheceu
o escolho e avançou.
A
Durande estava ao contrário de um navio deitado a pique; era um navio pendurado
no ar.
Não
havia mais estranho cometimento que o de salvar a máquina daquele navio.
Era
dia claro quando Gilliatt chegou às águas do escolho.
Como
dissemos, havia pouco mar. A água tinha apenas a quantidade de agitação que lhe
dava a estreiteza entre os rochedos. Há sempre marulho nos espaços de água como
aquele, quer sejam grandes, quer pequenos. O interior de um estreito espuma
sempre.
Gilliatt
não abordou ao Douvres sem precaução.
Deitou
a sonda muitas vezes.
Gilliatt
tinha de fazer um pequeno desembarque de matalotagem.
Afeito
às ausências, tinha sempre pronta em casa a matalotagem. Era um saco de
biscoito, um saco de farinha de centeio, uma cesta de stockfish e de
carne fumada, um grande pichel de água doce, uma caixa norueguense com ramagens
pintadas, contendo algumas camisas de lã, grevas alcatroadas e uma pele de
carneiro que ele punha de noite em cima da japona. Tinha posto tudo isso, às
carreiras, na pança e mais um bocado de pão fresco. Com a pressa não levou
outra ferramenta mais que o martelo da forja, o machado e a picareta, uma serra
e uma corda de nós armada de fateixa. Com uma escada desta ordem e a maneira de
servir dela, as subidas escabrosas tornam-se praticáveis nos mais rudes
declives.
Pode-se
ver na ilha de Serk a vantagem que os pescadores do Havre Gosselin tiram de
semelhante corda.
As
redes e as linhas e todo o arsenal de pescaria estavam na barca. Pô-los dentro
por costume, e maquinalmente, porquanto, tendo de tentar até o último esforço,
talvez se demorasse algum tempo no arquipélago de cachopos, e o aparelho da
pescaria é inútil em tais sítios.
No
momento em que Gilliatt abordou o escolho o mar baixava, circunstância
favorável. As vagas decrescentes descobriram, ao pé da pequena Douvre, algumas
pedras chatas ou pouco inclinadas, à semelhança de arpéus carregando um
pavimento. Essas superfícies, umas estreitas, outras largas, encadeando e
elevando-se, com espaços desiguais, ao longo do monólito vertical,
prolongava-se em cornija até debaixo da Durande, que abarcava o espaço entre os
dois rochedos. Estava apertada ali como um tornilho.
Eram
cômodas aquelas plataformas para desembarcar e observar. Podia-se desembarcar
ali, provisoriamente, o carregamento da pança. Mas era preciso apressar-se,
porque elas estariam fora da água pouco tempo. Quando a maré enchesse, ficariam
outra vez cobertas.
Foi
para essas rochas, umas chatas, outras declives, que Gilliatt impeliu e fez
parar a pança.
Uma
espessura de sargaço, úmida e escorregadia, cobria essas rochas, e a obliquidade
de algumas delas mais escorregadias as tornava.
Gilliatt
descalçou-se, saltou sobre o limo e amarrou a pança em uma ponta do rochedo.
Depois
aproximou-se o mais devagar que pôde sobre a estreita cornija de granito,
chegou debaixo da Durande, levantou os olhos e contemplou-a.
A
Durande estava presa, suspensa, e como que ajustada entre os dois penedos, 20
pés acima das vagas. Era preciso que fosse atirada ali por uma furiosa
violência do mar.
Tão
impetuoso empurrão não faz pasmar a gente do mar. Para citar apenas um exemplo,
a 25 de janeiro de 1840, no golfo de Stora, uma tempestade, já expirante, fez
saltar um brigue, de um só pulo, por cima do casco naufragado da corveta La
Marne e incrustou-o, com o gurupés à frente, entre dois penedios.
Demais,
nas Douvres apenas havia um resto da Durande.
O
navio arrancado às vagas foi de algum modo desenraizado da água pelo furacão. O
turbilhão do vento tinha-o torcido, o turbilhão do mar tinha-o preso, e o
navio, seguro em sentido inverso pelas duas mãos da tempestade, quebrou-se como
se fora uma ripa. O pedaço da popa, com a máquina e as rodas, arrebatado das
águas e impelido por toda a fúria do ciclone para a garganta das Douvres, lá
ficou. O vento foi acertado; para meter aquele casco entre os dois rochedos, o
furacão transformou-se em maça. A proa, levada e rolada pelo vento, deslocou-se
nos bancos de pedra.
O
porão, que estava arrombado, esvaziara no mar os bois, mortos.
Um
grande pedaço da amurada da proa ainda estava preso ao casco, mas pendurado nas
caixas das rodas por algumas lascas, fáceis de quebrar com um machado.
Viam-se
aqui e ali, nas anfratuosidades longínquas do escolho, barrotes, tábuas,
pedaços de vela, pedaços de correntes, todos os destroços, tranquilos nos
rochedos.
Gilliatt
contemplava com atenção a Durande. A quilha era o teto que lhe ficava sobre a
cabeça.
O
horizonte, onde a água iluminada apenas se mexia, estava sereno. O sol saía
esplendidamente daquela vasta massa azul.
De
tempos a tempos uma gota de água destacava-se do navio e caía no mar.
CAPÍTULO II
AS
PERFEIÇÕES DO DESASTRE
As
Douvres eram diferentes de forma como de altura
Na
pequena Douvre, recurvada e aguda, viam-se ramificar-se, da base ao cimo,
longas veias de uma rocha cor de tijolo relativamente tenra, que fechava com as
suas lâminas o interior do granito. Nessas lâminas avermelhadas havia, de
espaço a espaço, fendas próprias para subir. Uma dessas fendas, um pouco acima
do navio, foi tão bem trabalhada pelos arremessos do mar, que tornou-se uma espécie
de nicho, onde podia guardar-se uma estátua. O granito da pequena Douvre era
arredondado na superfície e macio como pedra de toque, o que não lhe tirava a
dureza que tinha. A pequena Douvre terminava em ponta como um chifre. A grande
Douvre, polida, unida, lisa, perpendicular, e feita como por desenho, era de um
só jato e parecia feita de marfim preto. Nem um buraquinho, nem um relevo.
Trepar por ela era impossível; não podia servir nem à fuga de um criminoso, nem
ao ninho de um pássaro. No cume havia, como no rochedo Homem, uma plataforma;
era, porém, inacessível.
Podia-se
trepar pela pequena Douvre, mas não ficar lá, podia-se ficar na grande Douvre,
mas não se podia subir.
Gilliatt,
depois de lançar os olhos por tudo aquilo, voltou à pança, descarregou-a na
mais larga das cornijas à flor da água, fez de todo o carregamento, aliás
pequeno, uma espécie de pacote, atou-o num pano alcatroado, depois içou-o por
meio de um cabo até um ponto da rocha onde o mar não podia chegar; feito isto,
abraçou-se à pequena Douvre e, com pés e mãos, de fenda em fenda, trepou por
ela até a Durande, que estava no ar.
Chegando
à altura das caixas das rodas, saltou dentro.
O
interior do navio era lúgubre.
A
Durande apresentava todos os vestígios de um arrombamento medonho. Era a
violação tremenda da tempestade. A tempestade comporta-se como um pirata. Nada
assemelha-se mais a um atentado que-um naufrágio. Nuvens, trovão, chuva, vagas,
tufões, rochedos, horrível multidão de cúmplices é esta.
No
meio daqueles destroços, pensava-se em alguma coisa semelhante ao tripúdio
furioso dos espíritos do mar. Tudo eram vestígios de raiva. As torções
estranhas de certos ferros indicavam a ação impetuosa dos ventos. O convés
assemelhava-se à célula de um louco; tudo estava despedaçado.
Nenhum
animal estrangula uma pedra como o ar. A água regurgita das garras. O vento
morde, o mar devora, a vaga é um queixo. É um socar e um esmigalhar ao mesmo
tempo. O oceano tem um golpe igual à pata do leão.
O
descalabro da Durande apresentava esta particularidade: era minucioso. Era uma
espécie de terrível descascamento. Muitas coisas pareciam feitas de propósito.
Que maldade!, podia dizer-se. As fraturas das amuradas eram feitas com arte.
Este gênero de destruição é próprio do ciclone. Retalhar e adelgaçar tal é o
capricho desse devastador enorme. O ciclone usa das averiguações do carrasco.
Os seus desastres parecem suplícios. Dissera-se que algum rancor o anima; é
requintado como um selvagem. Disseca examinando. Tortura o naufrágio, vinga-se,
diverte-se; é mesquinhamente cruel.
Raros
são os ciclones em nossos climas, e tanto mais terríveis quanto que são
inesperados. Um rochedo encontrado pode fazer andar à roda a tempestade. É
provável que a borrasca tivesse feito espiral sobre as Douvres, voltando-se
subitamente em tromba ao choque do escolho, o que explicava o salto do navio a
tamanha altura naquelas rochas. Quando o ciclone sopra, um navio pesa tanto
como a pedra de uma funda.
A
Durande tinha a chaga que fica ao homem cortado pelo meio; era um tronco aberto
deixando ver um molho de destroços semelhante a entranhas. O cordoame flutuava
e estremecia; as correntes balançavam e tiritavam; as fibras e os nervos do
navio estavam nus e pendiam no ar. O que não estava quebrado estava desarticulado;
a pregadura do casco assemelhava-se a uma almofada eriçada de pregos; em tudo
havia a forma de ruína; uma barra de pé-de-cabra não era menos que um simples
pedaço de ferro; uma sonda era apenas um pedaço de chumbo; uma driça era apenas
uma ponta de cânhamo; uma talha era apenas um fio de debrum; por toda a parte a
inutilidade lamentável da destruição; nada havia que não estivesse despregado,
desenganchado, rachado, roído, recurvado, aniquilado; nenhuma adesão naquele
feio montão de destroços; em tudo o deslocamento e a rutura, esse aspecto de
inconsistente e líquido que caracteriza todas as confusões, desde as refregas
dos homens, que se chamam batalhas, até as refregas dos elementos, que se
chamam caos. Tudo esboroava, tudo caía, e uma torrente de tábuas, de lonas, de
ferro, de cabos e de vigas tinha parado na grande fratura da quilha, donde o
menor choque podia precipitar tudo ao mar. O que restava daquela poderosa
carena tão triunfante outrora, toda aquela parte suspensa entre as duas Douvres
e talvez prestes a cair, tudo estava roto e dilacerado, deixando ver pelos
buracos o interior sombrio do navio.
Debaixo
cuspia a espuma sobre aquela coisa miserável.
CAPÍTULO III
SÃ, MAS
NÃO SALVA
Gilliatt
não esperava achar somente metade do navio. Nas indicações, aliás tão precisas,
do capitão Shealtiel, nada fazia pressentir aquela divisão pelo meio.
Foi talvez na ocasião em que o navio partiu-se, debaixo da imensa espessura da
espuma, que houve aquele “estalo diabólico” ouvido pelo capitão do Shealtiel.
O capitão afastava-se sem dúvida no momento do último sopro do vento, e não viu
que era uma tromba que impelia o navio. Mais tarde, aproximando-se para
observar o desastre, viu apenas a parte anterior do casco, ficando-lhe
escondido pelo rochedo o lado fraturado donde se rompera metade do navio.
Exceto
isto, o capitão do Shealtiel disse tudo exato. O casco estava perdido, a
máquina estava intacta.
São
frequentes estes acasos nos naufrágios como nos incêndios. Não se pode
compreender a lógica do desastre.
Os
mastros quebrados tinham caído; o cano nem mesmo envergou; a grande placa de
ferro que amparava o mecanismo manteve-o intacto e completo. O revestimento de
tábuas das rodas estava destruído como as lâminas de uma persiana; mas através
das fendas viam-se as rodas em bom estado. Apenas faltavam alguns raios.
Além
da máquina, tinha resistido o grande cabrestante da popa. Tinha ainda a
corrente, e graças ao seu robusto encaixe em um quadro de tabuões, ainda podia
prestar serviços, uma vez que se não rompesse a prancha. O pedaço do casco
metido entre as Douvres estava firme, já o dissemos, e parecia sólido.
A
conservação da máquina tinha um quê de irrisório e acrescentava a ironia à
catástrofe. A sombria malícia do desconhecido mostra-se, às vezes, nessas
espécies de zombarias amargas. A máquina estava salva, o que não impedia que
estivesse perdida. O oceano guardava-a para demoli-la aos poucos. Divertimento
de gato.
A
máquina ia agonizar e desfazer-se peça por peça. Ia diminuir dia a dia e, por
assim dizer, derreter-se. Ia servir de brinco às selvajarias de espuma. Que
fazer? Que aquele pesado montão de mecanismos e encaixes, maciço e delicado a
um tempo, condenado à imobilidade por seu peso, entregue na solidão às forças
demolidoras, posto pelo cachopo à discrição do vento e do mar, pudesse, sob a
pressão daquele lugar implacável, escapar à destruição lenta era até loucura
imaginá-lo.
A
Durande estava prisioneira das Douvres.
Como tirá-la
dali? Como libertá-la?
A
evasão de um homem é difícil; mas que problema não é este: a evasão de uma
máquina!
CAPÍTULO IV
PRÉVIO
EXAME LOCAL
Gilliatt
estava cercado de urgências. O mais urgente era achar ancoradouro para a pança,
e depois abrigo para si.
A
Durande estava mais carregada a bombordo, que a estibordo, e, por isso, a roda
direita ficava mais elevada que a da esquerda.
Gilliatt
subiu à caixa das rodas da direita. Daí dominava a parte baixa dos bancos, e
embora a rede de rochas alinhadas em ângulos por trás das Douvres fizesse
muitos cotovelos, Gilliatt pôde estudar o plano geométrico do escolho.
Começou
por aí.
As
Douvres, como indicamos, eram duas altas pilastras marcando a entrada estreita
de uma viela de penedos perpendiculares na frente. Não é raro achar nas
formações submarinas primitivas esses corredores singulares feitos como que a
machado.
Aquele,
que era tortuoso, nunca estava a seco, mesmo nas marés baixas. Uma corrente
agitada atravessava-o sempre. A impetuosidade do redemoinho era boa ou má,
segundo o rumo do vento reinante; ora quebrava a onda, e fazia-a cair; ora
exasperava-a. Este último caso era o mais frequente; o obstáculo encoleriza a
vaga e leva-a aos excessos; a espuma é a exageração da vaga.
O
vento da tempestade, naqueles estrangulamentos entre duas rochas, sofre a mesma
compressão e adquire a mesma malignidade. É a tempestade no estado de
estranguria. O sopro imenso fica imenso, mas faz-se agudo. É ao mesmo tempo
maça e dardo. Fura e esmaga. Imaginai o furacão fazendo-se vento coado.
As
duas cadeias de rochedos, deixando entre si essa espécie de rua do mar,
terminavam em degraus mais baixos que as Douvres, gradualmente decrescentes, e
mergulhavam juntas no mar a uma certa distância. Havia aí outra foz menos
elevada que as das Douvres, porém mais estreita ainda e que era a entrada, a
leste, daquela garganta. Adivinhava-se que o duplo prolongamento das duas
arestas de rocha continuava a rua debaixo da água até o rochedo Homem, colocado
como uma cidadela quadrada na outra extremidade do escolho.
Nas
marés baixas, e era nessa ocasião que Gilliatt observava, as duas fileiras de
bancos mostravam os seus dorsos, alguns a seco, todos visíveis, e
coordenando-se sem interrupção.
O
Homem limitava e resguardava no levante a massa inteira do escolho, que era
limitado, ao poente, pelas duas Douvres.
Todo
o escolho, visto a vôo de pássaro, apresentava um rosário recurvado de
rochedos, tendo em uma ponta as Douvres e na outra o Homem.
O
escolho Douvres, visto em seu conjunto, era apenas a imersão de duas
gigantescas lâminas de granito tocando-se quase e caindo verticalmente, como
uma crista de montes que estão no fundo do oceano. Há, fora do abismo, essas
esfoliações imensas. A lufada e a onda tinham recortado essa crista como uma
serra. Via-se apenas o cimo, era o escolho. O que a onda escondia devia ser
enorme. A viela onde a tempestade tinha atirado a Durande era o centro dessas
duas lâminas colossais.
Essa
viela, em ziguezague como o relâmpago, tinha quase em todos os pontos a mesma
largura. O oceano fê-la assim. O eterno tumulto produz suas regularidades
estranhas. Sobe da água uma geometria.
De
um cabo a outro da garganta, as duas muralhas da rocha faziam-se face
paralelamente a uma distância que a Durande media quase com exatidão entre as
duas Douvres; o esvaziamento da pequena Douvre, recurvada e voltada, dera lugar
às caixas das rodas. Em qualquer outro lugar as caixas ficariam quebradas.
A
dupla fachada interna do escolho era hedionda. Quando na exploração do deserto
de água chamado Oceano chega-se às coisas ignotas do mar, torna-se tudo
surpreendente e disforme. Aquilo que Gilliatt, do alto do casco, podia ver na
garganta fazia horror. Há muitas vezes nas gargantas graníticas do oceano uma
estranha imagem permanente do naufrágio. A garganta das rochas Douvres tinha a
sua, que era assustadora. Os óxidos da rocha davam-lhe aqui e ali umas
vermelhidões imitando placas de sangue coalhado. Era uma espécie de transudação
sangrenta de um matadouro. Havia um ar de açougue naqueles parcéis. A rude
pedra marinha, diversamente colorida, aqui pela decomposição dos amálgamas
metálicos misturados à rocha, ali pelo bolor, ostentava vermelhidões hediondas,
esverdeamentos suspeitos, despertando uma ideia de morte e de extermínio.
Acreditava-se ver uma parede ainda não enxuta do quarto de um assassinato.
Dissera-se que eram aqueles os vestígios de um despedaçamento de homens; a
rocha íngreme tinha um cunho de agonias acumuladas. Em certos lugares a
carnagem parecia escorrer ainda, a muralha estava molhada e parecia impossível
apoiar o dedo sem tirá-lo sangrento. Por toda a parte aparecia uma ferrugem de
morticínio. Ao pé do duplo declive paralelo, esparso à flor da água ou debaixo
da vaga, ou a seco nas escavações, monstruosos seixos redondos, uns escarlates,
outros negros ou roxos, tinham semelhanças de vísceras; acreditava-se ver
pulmões frescos ou fígados pútridos. Dissera-se que ali se tinham esvaziado
ventres de gigantes. Longos fios vermelhos, que se poderiam tomar por
destilações fúnebres, riscavam o granito de alto a baixo.
Esses
aspectos são frequentes nas cavernas do mar.
CAPÍTULO V
UMA
PALAVRA A RESPEITO DAS COLABORAÇÕES SECRETAS DOS ELEMENTOS
A
forma de um escolho não é coisa indiferente para os que, nos riscos das
viagens, podem ser condenados à habitação temporária de um escolho no oceano.
Há
o escolho Pirâmide, um cimo fora da água; há o escolho círculo, coisa
semelhante a uma roda de pedras grandes; há o escolho corredor. O escolho
corredor é o pior de todos. Não somente por causa da angústia das ondas entre
as rochas e do tumulto das águas apertadas, mas também por causa das
propriedades meteorológicas que parecem desprender-se do paralelismo das duas
rochas em pleno mar. As duas paredes retas são um verdadeiro aparelho de Volta.
Orienta-se
o escolho corredor, e isso é importante. Resulta daí uma primeira ação sobre o
ar e a água. O escolho corredor atua na água e no vento mecanicamente, pela
forma, galvanicamente, pela atração diversa dos seus planos verticais, massas
sobrepostas e contrariadas umas pelas outras.
Esta
espécie de escolhos atrai todas as forças furiosas esparsas no furacão, e tem
sobre a borrasca uma singular força de concentração.
Donde
resulta que nas paragens desses cachopos há uma certa acentuação da tempestade.
Cumpre
saber que o vento é compósito. Acredita-se que o vento é simples; engano. Essa
força não é somente dinâmica, é química; não é somente química, é magnética.
Tem alguma coisa que é inexplicável.
O
vento é tão elétrico como aéreo. Certos ventos coincidem com auroras boreais. O
vento do banco da Anguila rola vagas de 100 pés de altura, espanto de Dumont
d’Urville. “A corveta”, disse ele, “não sabia a quem havia de atender”.
Debaixo
das lufadas austrais, verdadeiros tumores doentios sopram no oceano, e o mar
torna-se tão horrível que os selvagens fogem para não vê-lo.
As
lufadas boreais são outras; misturam-se de pontas de gelo e esses furacões
irrespiráveis impelem para a neve os trenós dos esquimós. Outros ventos
queimam. É o simum da África, é o tufão da China e o samiel da Índia. Simum,
Tufão, Samiel; parece que são demônios estes nomes. Fundem o cimo das
montanhas; uma tempestade vitrificou o vulcão de Toluca. Este vento quente,
turbilhão cor de tinta atirando-se sobre as nuvens encarnadas, fez dizer aos
vedas: “Eis aí o Deus negro que vem roubar as vacas encarnadas”. Sente-se em
tudo isto a pressão do mistério elétrico.
O
vento é cheio desse mistério. Do mesmo modo o mar. Também ele é complicado;
debaixo das suas vagas de águas, que se vêem, há outras vagas de forças, que se
não vêem. Compõem-se de tudo. De todas as misturas, a do oceano é a mais
invisível e a mais profunda.
Tentai
conhecer esse caos, tão enorme que vai ter ao nada. É o recipiente universal,
reservatório para as fecundações, cadinho para as transformações. Amassa,
depois dispersa; acumula, depois semeia; devora, depois produz. Recebe todos os
esgotos da terra, e aferrolha-os. É sólido no banco, líquido na água, fluido no
eflúvio. Como matéria é massa, e como força é abstração. Iguala e consorcia os
fenômenos. Simplifica-se no infinito pela combinação. É a força da mescla e da
turvação que chega à transparência. A diversidade solúvel prende-se na sua
unidade. Tem tantos elementos diversos que é idêntico. Uma das suas gotas é
todo ele. Como é cheio de tempestades, torna-se equilíbrio. Platão via dançar
esferas; coisa estranha, mas real na colossal evolução terrestre à roda do Sol,
o oceano, com o seu fluxo e refluxo, é o pêndulo do globo.
No
fenômeno do mar, todos os fenômenos estão presentes. O mar é aspirado pelo
turbilhão como um sifão; uma tempestade é um corpo de bomba; o raio vem da água
como do ar; nos navios sentem-se abalos surdos, depois um cheiro de enxofre sai
do poço das correntes. O oceano ferve. “O diabo pôs o mar na sua caldeira”,
dizia Ruyter.
Em
certas tempestades que caracterizam os movimentos das estações e as entradas em
equilíbrio das forças genesíacas, os navios batidos de escuma parecem evaporar
uma luz, e flamas de fósforo correm pelo cordoame, tão misturadas aos cabos que
os marinheiros estendem a mão e procuram apanhar esses pássaros de fogo. Depois
do terremoto de Lisboa, um hálito de fornalha impeliu para a cidade uma vaga de
60 pés de altura. A oscilação oceânica liga-se ao estremecimento terrestre.
Essas
energias incomensuráveis tornam possíveis todos os cataclismos.
No
fim de 1864, a 100 léguas das costas de Malabar, soçobrou uma ilha, como se
fosse um navio. Os pescadores que tinham saído de manhã voltaram à noite e não
acharam nada; apenas puderam ver as suas aldeias debaixo da água; e desta vez
foram os barcos que assistiram ao naufrágio das casas.
Na
Europa, onde parece que a natureza sente-se constrangida em respeito à
civilização, tais acontecimentos são raros até à impossibilidade presumível.
Todavia
Jersey e Guernesey fizeram parte da Gália; e, no momento em que escrevemos, um
vento equinócio acaba de demolir na fronteira da Inglaterra e da Escócia o
penedio da praia chamado Primeiro dos Quatro, First of the Fourth.
Em
parte alguma essas forças pânicas aparecem mais formidavelmente amalgamadas do
que no surpreendente estreito boreal chamado Lyse-Fiord. O Lyse-Fiord é o mais
temível dos escolhos-bocais do oceano. Aí a demonstração é completa. E o mar da
Noruega, a vizinhança do tremendo golfo Stavanger, o 59° grau de latitude. A
água é pesada e negra com uma febre de tempestade intermitente.
Nessa
água, no meio da solidão, há uma grande rua sombria. Não é rua para pessoa
alguma. Ninguém passa ali; nenhum navio se arrisca nesse lugar. Um corredor de
10 léguas de comprido, entre duas muralhas de 3 000 pés de altura: eis a
entrada. Esse estreito tem cotovelos e ângulos como todas as ruas do mar, que
nunca são retas, pois que são feitas pela torção da vaga.
No
Lyse-Fiord, a vaga é quase sempre tranquila; o céu é sereno; lugar terrível.
Onde está o vento? Não está em cima. Onde está o trovão? Não está no céu. O
vento está debaixo do mar; o trovão está debaixo da rocha.
De
tempos a tempos há um estremecimento debaixo da água. Em certas horas, sem que
haja uma nuvem sequer no ar, no meio da altura do penedio vertical, a 1 000 ou
1 500 pés acima das vagas, mais do lado do sul que do norte, o rochedo reboa
subitamente, rompe daí um relâmpago, que fende o ar, e recolhe-se logo, como
esses brinquedos que se alongam e contraem nas mãos das crianças; tem
contrações e ampliações esse relâmpago, fere a rocha oposta, entra outra vez,
torna a aparecer, recomeça, multiplica as suas cabeças e as suas línguas,
eriça-se, fere onde pode, recomeça ainda, até que se apaga sinistramente. Fogem
os bandos de pássaros. Nada é tão misterioso como essa artilharia saindo do
invisível. Um rochedo ataca outro. Fulminam entre si os cachopos. É uma guerra
que nada tem com os homens. Ódio de dois penedos no golfão.
No
Lyse-Fiord o vento torna-se eflúvio, a rocha desempenha as funções de nuvem, e
o trovão tem arrojos de vulcão. É uma pilha aquele estranho estreito; tem por
elementos as suas duas filas de rochas.
CAPÍTULO VI
CAVALARIÇA
PARA O CAVALO
Gilliatt
era sabedor de cachopos e não tomava as Douvres ao sério. Antes de tudo, já o
dissemos, tratou ele de pôr a pança em segurança.
A
dupla fileira de arrecifes que se prolongava sinuosamente por trás das Douvres
fazia grupo com os outros rochedos, e adivinhavam-se cavas e sacos saindo da
viela, e prendendo-se à garganta principal como ramos a um tronco.
A
parte inferior dos escolhos estava tapetada de sargaço e a parte superior de
líquen. O nível uniforme do sargaço em todas as rochas marcava a linha da
flutuação da maré cheia.
As
pontas que a água não atingia tinham o prateado e o dourado que dá aos granitos
marinhos o líquen branco e o líquen amarelo.
Cobria
a rocha em certos pontos uma lepra de conchas corroídas.
Em
outros pontos, nos ângulos reentrantes, onde se acumulara uma areia fina,
ondeada na superfície antes pelo vento que pela vaga, havia tufos de cardo
azul.
Nos
redentes pouco batidos pela espuma, reconheciam-se as pequenas covas furadas
pelos ursos-do-mar. Este urso-concha, que anda, bola viva, rolando-se nas
pontas, e cuja couraça compõe-se de mais de 10 000 peças artisticamente
ajustadas e soldadas, o urso-marinho, cuja boca se chama, ninguém sabe por que,
lanterna de Aristóteles, cava o granito com os cinco dentes que tem e aloja-se
nos buracos. Nessas alvéolas é que os pescadores de frutos do mar dão com ele.
Cortam-no em quatro partes e comem-no cru como ostra. Alguns metem o pão
naquela carne mole. Daí o nome de ovo do mar.
As
cumeadas dos bancos descobertas pela maré que vazava iam ter mesmo debaixo do
rochedo Homem a uma espécie de angra murada quase por todos os lados. Havia ali
evidentemente um ancoradouro possível. Gilliatt observou a angra. Tinha a forma
de uma ferradura e abria-se de um só lado, ao vento leste, que é o menos mau
daquelas paragens. O vento ali estava preso e quase adormecido. Era segura
aquela baiazinha. Nem Gilliatt tinha muito onde escolher.
Se
Gilliatt quisesse aproveitar a maré vazante, devia apressar-se.
O
tempo continuava a ser magnífico. Estava de bom humor aquele insolente mar.
Gilliatt
tornou a descer, calçou os sapatos, desatou a amarra, entrou na barca e navegou
para fora. Costeava com o remo a parte externa do cachopo.
Chegando
perto do Homem, examinou a entrada da angra.
Um
certo ondeado na mobilidade da água, ruga imperceptível a qualquer que não
fosse marinheiro, desenhava aquele passo.
Gilliatt
estudou alguns instantes a curva, lineamento quase indistinto na vaga, depois
tomou ao largo, a fim de virar a gosto, e entrar bem, e vivamente, de um só
movimento de remo, entrou na angra.
Sondou.
Era
excelente o ancoradouro.
A
pança estaria protegida ali quase contra todas as eventualidades da estação.
Os
mais temíveis arrecifes têm desses recantos tranquilos. Os portos que se acham
nos escolhos assemelham-se à hospitalidade do beduíno; são honestos e seguros.
Gilliatt
arranjou a pança o mais perto do Homem que lhe foi possível, em ponto que não
pudesse perder-se, e pôs ao mar as duas âncoras. Feito isto, cruzou os braços e
refletiu.
A
pança estava abrigada; era um problema resolvido; mas apresentava-se o segundo.
Onde abrigar-se Gilliatt?
Ofereciam-se
dois pontos; o primeiro era a própria pança, com o seu camarote mais ou menos
habitável; o segundo era o cimo do rochedo Homem, fácil de escalar.
De
qualquer destes dois ângulos podia-se ir a pé nas vazantes, saltando-se de
rocha em rocha, até Douvres, onde estava a Durande.
Mas
a vazante dura apenas um momento, e no resto do tempo ficava ele separado, ou
do asilo ou da Durande, por umas 200 braças. Nadar no mar de um escolho a outro
é difícil; com qualquer agitação é impossível.
Era
preciso desistir da pança e do Homem.
Nenhuma
estação possível nos rochedos vizinhos.
Os
cimos inferiores desaparecem duas vezes por dia debaixo da enchente da maré.
Os
cimos superiores eram constantemente cuspidos pelos saltos da espuma. Inóspita
lavagem.
Restava
o casco da Durande.
Podia-se
viver ali?
Gilliatt
teve essa esperança.
CAPÍTULO VII
QUARTO
PARA O VIAJANTE
Meia
hora depois, Gilliatt, de volta à Durande, subia e descia no interior do
tombadilho ao porão, aprofundando o exame sumário de sua pequena visita.
Com
auxílio do cabrestante, tinha ele içado à Durande o pacote que fez do
carregamento da pança. O cabrestante comportara-se bem. Não faltava onde meter
o carregamento. Gilliatt tinha, no meio daqueles destroços, muito onde
escolher.
Achou
entre as ruínas um escopro caído sem dúvida da selha de carpinteiro e com o
qual aumentou ele a ferramenta.
Além
disso, como tudo serve onde não há abundância, tinha consigo a faca.
Gilliatt
trabalhou o dia no casco, limpando, consolidando, simplificando. A tardinha se
conheceu isto:
Todo
o casco tiritava ao vento, tremia a cada passo de Gilliatt. Só era estável e
firme a parte do casco metida entre os rochedos, que continha a máquina e
ficava poderosamente presa ao granito.
Instalar-se
na Durande era imprudente. Era sobreposse; e, longe de dar peso ao navio,
cumpria torná-lo mais leve.
Carregar
sobre o casco era o contrário do que cumpria fazer.
Aquela
ruína queria melhores tratos. Era uma espécie de doente que expira. Havia
bastante vento para maltratá-la.
Já
era mau ter de trabalhar nela. A porção de trabalho que o casco devia suportar
naturalmente talvez o fatigasse mais do que comportavam as suas forças.
Além
disso, se sobreviesse algum acidente noturno durante o sono de Gilliatt, estar
no navio era soçobrar com ele. Nenhum auxilio possível; tudo ficava perdido.
Para socorrer o navio, era preciso estar fora dele.
Fora
dele e junto dele, tal era o problema.
Complicava-se
a dificuldade.
Onde
achar um abrigo em tais condições?
Gilliatt
pensou.
Só
restavam as duas Douvres. Pareciam pouco habitáveis.
Via-se,
debaixo, no platô superior da grande Douvre, uma espécie de excrescência.
As
rochas em pé, com a parte superior chata, como a grande Douvre e o Homem, são
penedos decapitados, abundam nas montanhas e no oceano. Certos rochedos,
principalmente os que se encontram em mar largo, têm entranhas como se foram
árvores golpeadas. Parecem ter recebido um golpe de machado. Com efeito, essas
rochas andam sujeitas ao vaivém do furacão, que é o lenhador do mar.
Existem
outras causas de cataclismo mais profundas ainda. Daí vem que há tantas feridas
em todos esses velhos granitos. Alguns desses colossos têm a cabeça cortada.
Às
vezes a cabeça, sem que se possa explicar, não cai e fica mutilada, no cume do
rochedo. Não é rara essa singularidade. A Roque-au-Diable, em Guernesey, e a
Table, no vale de Annweiler, apresentam nas mais surpreendentes condições esse
estranho enigma geológico.
Provavelmente
tinha acontecido à grande Douvre alguma coisa semelhante.
Se
a intumescência que havia no platô não era natural, era necessariamente algum
fragmento que ficara da decapitação.
Talvez
houvesse alguma escavação nesse pedaço de rocha.
Buraco
para meter-se um homem; era o que Gilliatt queria.
Mas
como chegar até lá. Como trepar por aquela coluna vertical, densa e polida como
um seixo, meio coberta de uns filamentos viscosos, tendo o aspecto escorregadio
de uma superfície ensaboada?
Gilliatt
tirou da caixa da ferramenta a corda de nós, prendeu-a à cintura e pôs-se a
escalar a pequena Douvre. À proporção que ia subindo, tornava-se mais difícil a
ascensão. Esquecera-se de tirar os sapatos, o que aumentava a dificuldade. Não
sem custo chegou à ponta. Chegando à ponta, pôs-se de pé sobre ela. Havia
apenas lugar para os pés. Fazer disso um lugar para descansar e dormir era
difícil. Um estilita contentara-se; Gilliatt, mais exigente, queria coisa
melhor.
A
pequena Douvre curvava-se para a grande, e de longe parecia cumprimentá-la, e o
intervalo das duas Douvres, que era de uns 20 pés embaixo, era apenas de 8 ou
10 pés em cima.
Da
ponta, onde trepara, Gilliatt viu mais distintamente a intumescência que cobria
a plataforma da grande Douvre.
Essa
plataforma elevava-se umas 3 toesas acima da cabeça dele.
Separava-o
dela um precipício.
O
declive da pequena Douvre desaparecia debaixo dele.
Gilliatt
desprendeu da cintura a corda de nós, tomou rapidamente com o olhar as
dimensões e atirou a ponta da corda sobre a plataforma.
O
gancho arranhou a rocha e resvalou. A corda de nós que tinha o gancho na
extremidade caiu aos pés de Gilliatt ao longo da pequena Douvre.
Gilliatt
recomeçou, lançando a corda mais longe e visando a protuberância granítica onde
via buracos.
O
lanço foi tão destro e tão firme que o gancho segurou.
Gilliatt
puxou.
Desprendeu-se
a corda, e veio bater na coluna abaixo de Gilliatt.
Gilliatt
lançou a corda pela terceira vez.
Desta
vez não caiu.
Gilliatt
puxou a corda. A corda resistiu. O gancho estava seguro. Ficara seguro em
alguma anfratuosidade da plataforma que Gilliatt não podia ver.
Tratava-se
de confiar a vida àquela desconhecida prisão do gancho.
Gilliatt
não hesitou.
Urgia
tudo. Era preciso ir quanto antes.
Além
de que, descer ao tombadilho da Durande para procurar qualquer outro meio era
coisa impossível. O resvalamento era provável e a queda quase certa. Sobe-se,
não se desce.
Tinha
Gilliatt, como todos os bons marinheiros, movimento de previsão. Nunca perdia
força. Vinham daí os prodígios de vigor que ele executava com músculos
ordinários; tinha as forças comuns, mas uma grande coragem. Ao lado da força,
que é física, tinha a energia, que é moral.
Devia
praticar ali um ato tremendo.
Galgar,
suspenso àquele fio, o intervalo das duas Douvres; tal era a questão.
São
frequentes nos atos de dedicação ou de dever esses pontos de interrogação que
parecem postos pela morte.
Farás
isto?, diz a sombra.
Gilliatt
executou uma segunda tração de ensaio sobre o gancho; o gancho resistiu.
Gilliatt
embrulhou a mão esquerda no lenço, apertou a corda com a mão direita coberta
pela mão esquerda, depois tendo um pé adiante, e empurrando com o outro pé a
rocha a fim de que o vigor do impulso impedisse a rotação da corda,
precipitou-se do alto da pequena Douvre sobre a coluna da grande.
Duro
foi o choque.
Apesar
da precaução tomada por Gilliatt a corda volteou, e foi o ombro dele que bateu
no rochedo.
Por
sua vez os punhos bateram na rocha. Desatara-se o lenço. As mãos ficaram
arranhadas; admirou que não ficassem esmagadas.
Gilliatt
conservou-se algum tempo aturdido e suspenso.
Mas
ainda assim, bastante senhor de si para não largar a corda.
Decorreu
algum tempo em oscilação e sobressaltos antes que pudesse agarrar a corda com
os pés, mas conseguiu afinal.
Voltando
a si e conservando a corda entre as mãos, Gilliatt olhou para baixo.
Não
se assustava a respeito do comprimento da corda que mais de uma vez lhe servira
a maiores alturas. A corda, com efeito, arrastava na Durande.
Gilliatt,
certo de poder descer, começou a trepar.
Em
poucos momentos chegou ao cume.
Ninguém,
a não ser os pássaros, tinha posto ali o pé. A plataforma estava coberta de
esterco de pássaros. Era um trapézio irregular, lasca daquele colossal granito
chamado grande Douvre. No meio havia uma cava como uma bacia. Trabalho das
chuvas.
Gilliatt
conjeturara com exatidão. Via-se no ângulo meridional do trapézio uma
superposição de rochedos, destroços prováveis do descalabro do cimo. Esses
rochedos, espécie de monte de pedras desmedidas, deixavam lugar a um animal
feroz que ali tivesse trepado para passar. Equilibravam-se no meio da confusão;
tinham os interstícios de um montão de grabatos. Não havia grota nem antro, mas
buracos como uma esponja. Um desses podia admitir Gilliatt.
O
fundo desse buraco era de relva e musgo. Gilliatt estaria ali como se fosse em
casa.
A
alcova na entrada tinha 2 pés de altura. Estreitava-se para o fundo. Há túmulos
de pedra que têm essa forma. O monte de rochedos estava encostado ao sudoeste,
de modo que a casinhola de Gilliatt ficava garantida das águas, mas aberta ao
vento do norte.
Gilliatt
achou que isso era bom.
Os
dois problemas estavam resolvidos, a pança tinha um porto, ele tinha casa.
A
excelência da casa era ficar perto da Durande.
O
gancho da corda tinha caído entre dois pedaços de rocha e ficou solidamente
preso. Gilliatt imobilizou-o pondo em cima uma grossa pedra. Depois entrou
imediatamente em livre prática com a Durande.
Já
estava em casa.
A
grande Douvre era a casa, e Durande era a oficina.
Ir
e vir, subir e descer, nada mais simples.
Atirou-se
vivamente pela corda abaixo até o tombadilho.
O
dia foi bom, a coisa começava bem, Gilliatt estava satisfeito, reparou que
tinha fome.
Desatou
o cesto de provisões, abriu a faca, cortou um pedaço de carne fumada, trincou o
pão de rala, bebeu um gole do pichel de água doce e ceou admiravelmente.
Trabalhar
bem e comer bem são duas alegrias. O estômago cheio assemelha-se a uma
consciência satisfeita.
Acabada
a ceia, ainda havia sol. Gilliatt aproveitou a claridade para começar a aliviar
o navio, que era urgente.
Tinha
passado uma parte do dia a separar os destroços. Pôs de lado, no compartimento
sólido, onde estava a máquina, tudo o que podia servir, madeira, ferro,
cordoame, velame. O que era inútil deitou ao mar.
O
carregamento da pança, içado pelo cabrestante até o tombadilho, era, embora
sumário, um estorvo. Gilliatt viu a espécie de nicho cavado na pequena Douvre,
a uma altura que ele podia tocar com a mão. Vêem-se muitas vezes nos rochedos
esses armários naturais, não fechados, é verdade. Pensou que era possível
confiar o depósito àquele nicho. Pôs no fundo as duas caixas, a da ferramenta e
a do vestuário, os dois sacos, o centeio e o biscoito, e na frente, demasiado
chegado à borda, por não haver mais lugar, o cesto das provisões.
Teve
cuidado de retirar da caixa das roupas a pele de carneiro, a japona e as grevas
alcatroadas.
Para
impedir que o vento desse na corda de nós, prendeu a ponta em uma porca da
Durande.
A
porca era muito curva e prendia a corda tão bem como se fosse uma mão fechada.
Restava
a parte superior da corda. Prender a extremidade de baixo era fácil, mas no
cimo da coluna, no lugar onde a corda encontrava a borda da plataforma, era de
esperar que fosse a pouco e pouco gasta pelo ângulo do rochedo.
Gilliatt
investigou o montão de destroços que reservara, apanhou alguns pedaços de lona
e alguns fios de carreta achados entre os cabos, e meteu tudo nas algibeiras.
Qualquer
marujo adivinhava logo que ele ia forrar com a lona e os fios o pedaço da corda
na altura do ângulo do rochedo, de modo a preveni-lo de qualquer avaria.
Feita
a provisão dos trapos, pôs as grevas nas pernas, vestiu a japona, prendeu ao
pescoço a pele de carneiro, e assim vestido, com essa panóplia completa,
agarrou a corda, robustamente presa ao flanco da grande Douvre, e subiu por
aquela sombria torre do mar.
Gilliatt,
apesar de ter as mãos arranhadas, chegou rapidamente à plataforma.
Os
últimos clarões do poente iam-se apagando. Fazia noite no mar. O alto da Douvre
conservava alguma claridade.
Gilliatt
aproveitou o resto da claridade para forrar a corda. Aplicou no cotovelo que ela
fazia no rochedo uma ligadura de muitos pedaços de vela, fortemente atada em
cada pedaço. Era pouco mais ou menos o forro que costumam pôr nos joelhos as
atrizes para as agonias e súplicas do 5° ato.
Terminado
o forro, Gilliatt levantou-se.
Desde
alguns instantes, enquanto esteve forrando a corda, ouvia ele confusamente no
ar um estremecimento singular.
Assemelhava-se,
no silêncio da noite, ao rumor que fizesse o bater das asas de um morcego.
Gilliatt
levantou os olhos.
Um
grande círculo negro volteava-lhe por cima da cabeça no céu profundo e alvo do
crepúsculo.
Costuma-se
ver, nos velhos quadros, círculos iguais sobre a cabeça dos santos. A diferença
é que são de ouro em fundo sombrio; este era tenebroso em fundo claro. Nada
mais estranho. Dissera-se a auréola noturna da grande Douvre.
O
círculo abaixava-se e levantava-se; estreitava-se e alargava-se.
Eram
gaivotas, goelanos, corvos, cotovias, uma nuvem de pássaros do mar, espantados.
É
provável que a grande Douvre fosse a hospedaria deles, e que eles fossem buscar
aí o repouso. Gilliatt tinha-lhes tomado um quarto. Assustou-os o inesperado
inquilino.
Nunca
tinham visto esse homem ali.
Durou
algum tempo aquele voar assustado.
Os
pássaros pareciam esperar que Gilliatt se fosse embora. Gilliatt, vagamente
pensativo, acompanhava-os com os olhos.
O
turbilhão volante acabou por tomar uma resolução, o círculo desfez-se em
espiral, e a nuvem de pássaros foi cair do outro lado do escolho, no rochedo
Homem.
Aí
pareceram consultar e deliberar. Gilliatt, estendendo-se no seu buraco de
granito, e pondo debaixo da cabeça uma pedra como travesseiro, ouviu por muito
tempo a conversa dos pássaros, que guinchavam cada um por sua vez.
Depois
calaram-se, e tudo dormiu, os pássaros em uma rocha e Gilliatt em outra.
CAPÍTULO
VIII
IMPORTUNAE
QUE VOLUCRES
Gilliatt
dormiu bem. Mas sentiu frio, e por isso acordou várias vezes. Tinha
naturalmente os pés colocados no fundo do buraco, e a cabeça à borda. Não teve
o cuidado de tirar daquele leito uma porção de seixos agudos que não lhe davam
melhor sono.
De
quando em quando entreabria os olhos.
Ouvia
em certos instantes detonações profundas. Era o mar que enchia e entrava nas
cavas do escolho com um ruído de canhão.
Tudo
ali em roda apresentava o extraordinário da visão; Gilliatt tinha a quimera à
roda de si. O meio espanto da noite contribuía para que ele se visse mergulhado
no impossível. Gilliatt dizia consigo: “Estou sonhando”.
Depois
tornava a dormir e, sonhando então, achava-se na casa dele, na de Lethierry, em
Saint-Sampson; ouvia cantar Déruchette; estava no real. Enquanto dormia
acreditava estar acordado e viver; quando acordava, pensava dormir.
Com
efeito, era um sonho aquilo.
Lá
pelo meio da noite, ouviu-se um vasto rumor no céu. Gilliatt teve confusamente
consciência disso através do sono. Era provável que fosse o vento.
De
uma vez que ele acordou, com um estremecimento de frio, abriu as pálpebras mais
do que até então. Havia largas nuvens no zênite; a lua fugia e uma grande estrela
ia atrás dela.
Gilliatt
tinha o espírito cheio da difusão dos sonhos, e esse crescimento do sonho
complicava as medonhas paisagens da noite.
De
madrugada estava gelado e dormia profundamente.
A
aurora tirou-o daquele sono talvez perigoso. A alcova de Gilliatt estava em
frente ao sol nascente.
Gilliatt
bocejou, espreguiçou-se e levantou-se do buraco.
Dormira
tão bem que não compreendeu nada.
A
pouco e pouco foi-lhe voltando o sentimento da realidade, e ele exclamou:
“Almocemos!”
O
tempo estava calmo, o céu estava frio e sereno, não havia nuvens, a vassoura da
noite limpara o horizonte, o sol levantava-se bem. Era um segundo dia bonito
que começava. Gilliatt sentiu-se alegre.
Tirou
a japona, envolveu-a na pele de carneiro, atou tudo e meteu o embrulho no fundo
do buraco ao abrigo de alguma chuva eventual.
Depois
fez a cama, isto é, pôs fora os seixos agudos.
Feita
a cama, deixou-se rolar ao longo da corda sobre o tombadilho da Durande, e
correu para o nicho onde pusera o cesto de provisões.
Não
achou o cesto; como estava muito à beira, o vento da noite atirou-o ao mar.
Isto
anunciava uma intenção de luta.
Era
preciso que houvesse no vento uma certa vontade e malícia para ir buscar o
cesto.
Era
um começo de hostilidades. Gilliatt compreendeu isso. É difícil, quando se vive
em familiaridade com o mar, não ver no vento e nas rochas criaturas e
personagens.
Só
restava a Gilliatt, além do biscoito e da farinha de centeio, o recurso das
conchas com que se alimentou o náufrago morto de fome no rochedo Homem.
A
pesca era impossível. O peixe, inimigo dos choques, evita os escolhos; as redes
perdem o seu tempo nos recifes; as pontas da rocha só servem para rasgar as
redes.
Gilliatt
almoçou alguns mariscos que arrancou da pedra com dificuldade, escapando-se-lhe
de quebrar a faca; feito este guapo lanche, ouviu um estranho tumulto no mar.
Olhou.
Era
o bando de goelanos e gaivotas que caía sobre uma das rochas baixas, batendo as
asas, empurrando-se, gritando. Formigavam no mesmo ponto. Aquela horda de bicos
e unhas saqueava alguma coisa.
Essa
coisa era o cesto de Gilliatt.
O
cesto, lançado sobre um banco pelo vento, rasgou-se. Os pássaros correram logo.
Levaram no bico toda a espécie de pedaços de comida. Gilliatt reconheceu de
longe a sua carne fumada e o seu stockfish.
Era
a vez de entrarem também em luta os pássaros. Faziam represálias. Gilliatt
tomara-lhes a casa; eles tomavam-lhe a comida.
CAPÍTULO IX
O ESCOLHO
E A MANEIRA DE SE SERVIR DELE
Passou-se
uma semana.
Embora
fosse a estação das chuvas, não chovia, o que alegrava Gilliatt.
Mas
o que ele empreendia estava acima da força humana, em aparência ao menos. O
sucesso era de tal modo inverossímil que a tentativa parecia louca.
As
operações encaradas de perto mostram os seus empecilhos e perigos. Basta
começar para ver como é difícil concluir. Todo começo resiste. O primeiro passo
que se dá é um revelador inexorável. A dificuldade que se toca fere como um
espinho.
Gilliatt
teve logo de contar com o obstáculo.
Para
salvar a máquina da Durande, para tentar com alguma probabilidade um tal
salvamento naquele lugar e naquela estação, parecia que seria necessário uma
grande porção de homens. Gilliatt era só; precisava ter uma ferramenta completa
de carpinteiro e maquinista, e Gilliatt apenas tinha uma serra, um machado, uma
faca e um martelo; precisava ter uma boa oficina e um bom telheiro; Gilliatt
não tinha nada disso; precisava ter provisões e víveres. Gilliatt não tinha
pão.
Alguém
que, durante essa primeira semana, visse Gilliatt trabalhando no escolho, não
saberia o que pretendia ele. Parecia não pensar nem na Durande nem nas Douvres.
Estava ocupado com o que havia nos bancos; parecia absorto no salvamento dos
pequenos destroços do naufrágio. Aproveitava as marés baixas, para limpar os
recifes de tudo o que o naufrágio lhes tinha dado. Andou de rocha em rocha
apanhando o que o mar aí depusera: pedaços de velame, pedaços de corda, pedaços
de ferro, tábuas rasgadas, vergas destruídas, aqui um barrete, ali uma
corrente, além uma roldana.
Ao
mesmo tempo estudava todas as anfratuosidades do escolho. Nenhum deles era
habitável, com grande decepção de Gilliatt, que sentia frio de noite no buraco
arranjado na grande Douvre, e desejaria achar melhor pousada.
Duas
dessas anfratuosidades eram assaz espaçosas, posto que o chão de rocha natural
fosse quase geralmente oblíquo e desigual, podia-se andar ali de pé. A chuva e
o vento entravam ali a gosto, mas as altas marés não lhes chegavam. Eram
vizinhas da pequena Douvre e fáceis de trepar a qualquer hora. Gilliatt decidiu
que uma seria um depósito e a outra uma forja.
Com
todos os cabos que pôde recolher fez pacotes dos restos do naufrágio, ligando
os destroços em molhos e as lonas em embrulhos. Apertou tudo cuidadosamente. À
proporção que a maré enchente batia nesses pacotes, Gilliatt arrastava-os
através dos recifes até o depósito. Achou na cava de uma rocha um cabo de
guindar, por meio do qual podia levantar mesmo os grossos pedaços de madeira.
Do mesmo modo arrancou ao mar os numerosos pedaços de corrente esparsos nos
escolhos.
Gilliatt
era tenaz e admirável nesse trabalho. Fazia quanto queria. Nada resiste a um
encarniçamento de formiga.
No
fim da semana, Gilliatt tinha nesse depósito de granito todo o arsenal de
objetos destruídos pela tempestade. Havia o lugar dos cabos e o das escotas; as
bolinas não estavam misturadas com as driças; as bigotas estavam arranjadas
conforme a quantidade de buracos que tinham; as roldanas estavam classificadas
separadamente; as cavilhas do papa-figo, as machadinhas, os cabos e mil outros
objetos ocupavam, uma vez que não estivessem completamente desfigurados pela
avaria, compartimentos diferentes; tudo quanto era de carpintaria estava à
parte; de cada vez que era possível, as tábuas dos fragmentos do casco eram
ajustadas umas às outras; não havia confusão de rises com viradores, nem
pateraces com enxárcias, nem amuradas com precintas; um dos recantos era
reservado à tabuiga da Durande que apoiava os ovéns do cesto de gávea e as
gabundonas. Cada destroço tinha o seu lugar. Todo o naufrágio estava ali
classificado e com o rótulo competente. Era uma coisa semelhante ao caos
armazenado.
Uma
vela de estais, presa por pedras, cobria, aliás rota, o que a chuva podia
estragar.
Por
mais quebrada que estivesse a proa da Durande, Gilliatt conseguiu salvar os
dois cepos da âncora, com as três rodas de polé.
Achou
o gurupés, e teve muito trabalho em desvencilhá-lo das cordas; estavam seguras,
e foram postas em tempo seco. Gilliatt, porém, tirou-as porque o massame podia
ser-lhe útil.
Recolheu
igualmente a pequena âncora que ficara pendurada em uma cava do banco onde o
mar a encalhara.
Achou
no que fora camarote de Tangrouille um pedaço de giz e guardou-o
cuidadosamente. Podia ter necessidade de fazer algumas marcas.
Uma
selha de couro para incêndio e algumas tinas em bom estado completavam a
ferramenta de trabalho.
O
resto de carvão que havia na Durande foi levado para o armazém.
Em
oito dias o salvamento dos destroços estava acabado; o escolho estava limpo e a
Durande aliviada. No casco só restava a máquina.
O
pedaço da amurada que ainda aderia ao resto não fatigava o casco. Pendia sem
peso, pois que era sustentada embaixo por uma saliência de pedra; demais era
largo e vasto, e pesado, e não podia ficar no armazém. Parecia uma jangada
aquele pedaço de madeira. Gilliatt deixou-o onde estava.
Gilliatt,
profundamente pensativo neste labor, procurou em vão a boneca da Durande. Era
uma dessas coisas que a onda tinha levado para sempre, Gilliatt para achá-la
daria os seus dois braços, se não precisasse tanto deles.
Na
entrada do armazém, e fora, viam-se dois montes de rebotalho, um de ferro, para
fundir, outro de pau para queimar.
Gilliatt
trabalhava desde a madrugada. Fora do tempo do sono, não descansava nunca.
Os
corvos-marinhos, voando aqui e ali, contemplavam-no a trabalhar.
CAPÍTULO X
A FORJA
Feito
o depósito, Gilliatt fez a forja.
A
segunda anfratuosidade escolhida por Gilliatt oferecia um refúgio, espécie de
garganta, assaz profunda. Gilliatt teve a princípio a ideia de dormir aí, mas o
vento, renovando-se constantemente, era tão contínuo e teimoso nesse corredor
que ele teve de renunciar à morada. O vento deu-lhe ideia de fazer a forja. Se
a caverna não podia ser quarto, podia ser oficina. Utilizar o obstáculo é um
grande passo para o triunfo. O vento era o inimigo de Gilliatt, Gilliatt
resolveu fazer dele o seu lacaio.
O
que se diz de certos homens: próprios para tudo, bons para nada, pode-se dizer
das cavas de rochedo. Não dão o que oferecem. Tal cava de rochedo é uma
banheira, mas deixa escapar a água; outra é um leito de musgo, porém molhado;
outra é uma cadeira, mas de pedra.
A
forja que Gilliatt queria estabelecer estava esboçada pela natureza; mas domar
esse esboço, até torná-lo apropriado, e transformar a caverna em laboratório,
nada mais áspero e difícil. Com três ou quatro rochas largas, abertas como
funil, e abrindo para uma fenda estreita, o acaso fizera ali um vasto fole
informe, muito melhor que os antigos foles de 14 pés de comprimento, que davam,
por cada vez, 98 000 polegadas de ar. Aquilo era outra coisa. As proporções de
operação não se calculam.
O
excesso de força era incômodo; era difícil regularizar aquele sopro.
A
caverna tinha dois inconvenientes; o ar e a água atravessavam de um lado para o
outro.
Não
era a onda, era um pequeno esgoto perpétuo, mais semelhante a uma destilação
que a uma torrente.
A
espuma, continuamente lançada pela ressaca sobre o escolho, algumas vezes a
mais de 100 pés no ar, acabara por encher de água do mar uma bacia natural
situada nas altas rochas que dominavam a escavação. A abundância de água nesse
reservatório fazia, um pouco atrás, no declive, uma pequena queda-d’água, de
cerca de 1 polegada, caindo de 4 a 5 toesas. Ajuntava-se a isso um contingente
de chuva. De tempos a tempos uma nuvem de passagem derramava algumas gotas
naquele reservatório inesgotável e sempre transbordando.
A
água era salobra, não potável, mas límpida, embora salgada. A queda escorria
graciosamente nas extremidades dos filamentos verdes como nas pontas de uma
cabeleira.
Gilliatt
pensou em servir-se dessa água para disciplinar o vento. Por meio de um funil
de dois ou três tubos de tábuas, arranjados à pressa, sendo um de torneira, e
de uma larga tina disposta como reservatório inferior, sem contrapeso,
Gilliatt, que era, como dissemos, um pouco ferreiro e um pouco mecânico,
conseguiu compor, para substituir o fole da forja, que não tinha, um aparelho
menos perfeito do que aquele que se chama hoje cagniardelle, porém menos
rudimentar do que o que se chamava outrora nos Pireneus uma trompa.
Tinha
farinha de centeio, fez cola, tinha corda branca, fez estopa. Com essa estopa e
essa cola e alguns pedacinhos de pau, tapou ele todas as fendas do rochedo,
deixando apenas um bico, feito com um pedaço de espoleta que achou na Durande e
que servira à pedra de sinal. O bico ficava horizontalmente dirigido contra uma
larga pedra onde Gilliatt pôs a lareira da forja. Gilliatt fez uma rolha para
tapar o bico quando fosse preciso.
Depois
disto, Gilliatt ajuntou carvão e lenha na lareira, arranjou a pedra de ferir
fogo no próprio rochedo, fez cair a faísca em um punhado de estopa, com a
estopa acesa acendeu a lenha e o carvão.
Experimentou
o fole. Era admirável.
Gilliatt
sentiu essa altivez de ciclope, senhor do ar, da água e do fogo.
Senhor
do ar, deu ao vento uma espécie de pulmão, criou no granito um aparelho
respiratório, e fez um fole; senhor da água, da pequena cascata fez um tubo;
senhor do fogo, tirou a flama daquele rochedo inundado.
Estando
a escavação quase toda aberta, o fumo saía livremente, enegrecendo o rochedo.
Aquele rochedo, que parecia feito para a espuma, conheceu a ferrugem.
Gilliatt
tomou por bigorna um seixo multicor oferecendo a forma e as dimensões que se
quisesse. Era uma perigosa base para bater, e podia acontecer que rebentasse.
Uma das extremidades do seixo, arredondada, e acabando em ponta, podia a rigor
figurar de bigorna conóide, mas faltava a bigorna piramidal. Era a antiga bigorna
de pedra dos trogloditas. A superfície polida pela água tinha a rigidez do aço.
Gilliatt
lastimava não ter trazido a sua bigorna. Como ignorava que a Durande estivesse
partida pelo meio, esperava achar toda a ferramenta de carpintaria, ordinariamente
colocada no porão da proa. Ora, era exatamente a proa que faltava.
As
duas escavações, conquistadas no escolho por Gilliatt, eram vizinhas uma da
outra. O depósito e a forja comunicavam-se.
Todas
as noites, acabado o trabalho, Gilliatt ceava um pedaço de biscoito molhado em
água, um ursozinho da água, ou algumas castanhas do mar, caça única daquele
rochedo, e, tiritando como a corda, trepava para ir dormir na grande Douvre.
A
espécie de abstração em que Gilliatt vivia aumentava-se pela materialidade das
suas ocupações. A realidade era em alta dose. O trabalho corporal com os seus
pormenores inumeráveis não diminuía a estupefação que sentia de achar-se ali, e
de fazer o que estava fazendo. Ordinariamente o cansaço material é um fio que
puxa para terra; mas a própria singularidade do trabalho empreendido por
Gilliatt mantinha-o em um trabalho de região ideal e crepuscular. Parecia-lhe
às vezes estar dando marteladas nas nuvens. Outras vezes parecia-lhe que as
suas ferramentas eram armas. Tinha o singular sentimento de um ataque latente
que ele repelia ou prevenia. Tecer massame, desfiar uma vela, escorar duas
pranchas, era fabricar máquinas de guerra. Os mil cuidados minuciosos deste
salvamento acabavam por assemelhar-se a precauções contra as agressões
inteligentes, mui pouco dissimuladas e muito transparentes. Gilliatt não sabia
as palavras que exprimem as idéias, mas percebia as idéias. Sentia-se cada vez
menos operário e cada vez mais pelejador.
Entrou
ali como um domador. Compreendia isso quase. Estranha ampliação para o seu
espírito.
Além
disso, tinha à roda de si, a perder de vista, o imenso sonho do trabalho
perdido. Nada mais perturbador do que ver manobrar a difusão das forças no
insondável e no ilimitado. Procuram-se os fins. O espaço sempre em movimento, a
água infatigável, as nuvens que parecem afadigadas, o vasto esforço obscuro,
toda essa convulsão é um problema. Que faz este perpétuo tremor? Que constroem
estes ventos? Que levantam estes abalos? Em que se ocupam os choques, os soluços,
os gritos? Que faz todo esse tumulto? O fluxo e refluxo dessas questões é
eterno como a maré. Gilliatt sabia o que fazia; mas a agitação da extensão era
um enigma que o aturdia confusamente. Sem querer, mecanicamente,
imperiosamente, por pressão e penetração, sem outro resultado mais que uma
fascinação inconsciente e quase feroz, Gilliatt pensativo ajuntava, ao seu
trabalho, o prodigioso trabalho inútil do mar. Na verdade, como não
impressionar-se e sondar, ali à vista, o mistério da tremenda vaga laboriosa?
Como não meditar, na proporção da meditação que se tem, a oscilação da onda, a
impetuosidade da espuma, a usura imperceptível do rochedo, o esfalfamento
insensato dos quatro ventos? Que terror para o pensamento não é o recomeçar
perpétuo, o oceano poço, as nuvens Danaides, todo esse trabalho para coisa
nenhuma!
Para
coisa nenhuma, não; só o Ignoto o sabe!
CAPÍTULO XI
DESCOBERTA
Um
escolho próximo da costa é algumas vezes visitado pelos homens; um escolho em
mar largo, nunca. Que se iria buscar aí? Não é uma ilha. Não se pode contar com
vitualhas, nem árvores com fruta, nem pastos, nem animais, nem fontes de água
potável. É uma nudeza numa solidão. É uma rocha, com declives fora da água e
pontas debaixo da água. Nada se encontra aí a não ser o naufrágio.
Essa
espécie de escolhos, que a velha língua marinha chama os Isolados, são, como
dissemos, lugares estranhos. Só há o mar. O mar faz ali o que lhe parece.
Nenhuma aparição terrestre o perturba. O homem assusta o mar; o mar desconfia
dele; esconde-lhe o que é e o que faz. No escolho está seguro; lá não vai o
homem. Não será perturbado o monólogo da onda. A água trabalha no escolho,
repara-lhe as avarias, aguça-lhe as pontas, eriça-o, conserta-o. Empreende a
abertura do rochedo, desconjunta a pedra mole, desnuda a pedra dura, tira a
carne, deixa o osso, remexe, fura, esburaca, canaliza, põe os intestinos em
comunicação, enche o escolho de células, imita a esponja em grande, cava o
interior, esculpe o exterior.
Nessa
montanha, que lhe pertence, o mar faz para si antros, santuários, palácios; tem
uma vegetação hedionda e esplêndida; compõe-se de ervas flutuantes que mordem e
monstros que se enraízam; mete na sombra da água essa horrível magnificência.
No escolho isolado, ninguém o espreita, nem o incomoda; o mar desenvolve aí a
gosto o seu lado misterioso e inacessível ao homem. Depõe aí as secreções vivas
e horríveis. Acha-se ali todo o ignorado do mar.
Os
promontórios, os cabos, os cachopos, os arrecifes, são verdadeiras construções.
A formação geológica é pouca coisa comparada à formação oceânica. Os escolhos,
casas de vaga, pirâmides da espuma, pertencem à arte misteriosa que o autor
deste livro chamou algures a Arte da Natureza, e têm uma espécie de estilo
enorme. Ali o fortuito parece intencional. Essas construções são multiformes.
Têm o embaraçado do pólipo, a sublimidade da catedral, a extravagância do
pagode, a amplidão da montanha, a delicadeza da jóia, o horror do sepulcro. Têm
alvéolos como uma colméia, latíbulos como um pátio de bichos, túneis como um
combro de toupeiras, cárceres como uma bastilha, emboscadas como um campo. Têm
portas, mas tapadas colunas, mas truncadas, torres, mas inclinadas, pontes, mas
despedaçadas. Os seus compartimentos são inextrincáveis; isto é só para os
pássaros; aquilo é só para os peixes. Não se passa. A figura arquitetural
transforma-se, desconcerta-se, afirma e nega a estática, quebra-se, detém-se,
começa em arquivolta, acaba em arquitrave; seixo sobre seixo. Encélado é o
pedreiro. Uma dinâmica extraordinária ostenta ali os seus problemas resolvidos.
Terríveis abóbadas pendentes ameaçam cair, mas não caem. Ninguém sabe como se
seguram estes edifícios vertiginosos. Declives, lacunas, suspensões insensatas;
desconhece-se a lei desse babelismo. O Ignoto, imenso arquiteto, nada calcula e
tudo consegue; os rochedos, construídos confusamente, compõem um monumento
monstro; nenhuma lógica, um vasto equilíbrio. É mais do que a solidez, é a
eternidade. É a desordem ao mesmo tempo. O tumulto da vaga parece ter passado no
granito. Um escolho é a tempestade petrificada. Nada mais impressível para o
espírito do que essa medonha arquitetura, sempre esboroante, sempre de pé. Tudo
ali se ajuda e se contraria. É um combate de linhas donde resulta um edifício.
Reconhece-se a colaboração dessas duas querelas, o oceano e o furacão.
Arquitetura
que tem terríveis obras-primas. O escolho Douvres era uma delas.
Esse
foi construído e aperfeiçoado pelo mar com um amor formidável. Lambia-o a água
rabugenta. Era hediondo, pérfido, obscuro; cheio de cavas.
Tinha
um sistema de veias que eram fendas submarinas, ramificando-se em profundezas
insondáveis. Muitos orifícios desse rasgão inextrincável ficavam a seco nas
vazantes.
Podia-se
entrar, então, com risco.
Gilliatt,
pela necessidade do trabalho, teve de explorar todas essas grotas. Nenhuma
delas deixava de ser temível. Em todas as cavas, reproduzia-se, com as
dimensões exageradas do oceano, aquele aspecto de matadouro e açougue
estranhamente imitado do centro das Douvres. Quem não viu as escavações desse
gênero, na parede do eterno granito, esses horríveis frescos da natureza, não
pode fazer uma ideia do que é.
Eram
dissimuladas essas grotas ferozes, era inconveniente demorar-se nelas. A maré
enchente invadia-as até o teto.
Abundavam
os mariscos e os frutos do mar.
Estavam
cheias de seixos rolados e amontoados no fundo. Muitos pesavam mais de 1
tonelada. Eram de todas as proporções e de todas as cores, a maior parte
pareciam ensanguentados, alguns, cobertos de filamentos peludos e viscosos,
pareciam grossas toupeiras verdes focinhando no rochedo.
Muitas
dessas cavas terminavam como um forno. Outras, artérias de uma circulação
misteriosa, prolongavam-se no rochedo em fendas tortuosas e negras. Eram as
ruas do golfão. Essas fendas estreitavam-se constantemente de modo a não deixar
passar um homem. Um brandão aceso deixava ver obscuridades gotejantes.
Gilliatt
aventurou-se uma vez numa dessas fendas. A hora da maré prestava-se a isso. Era
um belo dia de calma e de sol. Não havia que temer nenhum acidente do mar que
pudesse complicar o perigo.
Duas
necessidades, como dissemos, levavam Gilliatt a essas explorações: procurar os
destroços úteis e achar lagostas para comer. Já lhe faltavam conchas nas
Douvres.
A
fenda era estreita e a passagem quase impossível. Gilliatt via claridade do
outro lado. Fez esforço, espremeu-se como pôde e entrou até onde lhe foi
possível.
Achou-se,
sem pensar, no interior do rochedo da ponta do qual Clubin atirara-se da
Durande. Gilliatt estava debaixo dessa ponta. O rochedo abrupto exteriormente,
e inacessível, era vazio no interior. Tinha galerias, poços e quartos como o
túmulo de um rei do Egito. Aquele dédalo era dos mais complicados, trabalho da
água, infatigável solapa do mar. As divisões daquele subterrâneo submarino
comunicavam provavelmente com a água imensa do exterior por mais de uma saída,
umas abertas ao nível da água, outras profundos funis invisíveis. Perto dali,
Gilliatt nem o sabia, foi que Clubin atirou-se ao mar.
Gilliatt,
naquela fisga de crocodilos, onde na verdade não havia medo de achá-los,
serpenteava, arrastava-se, esbarrava, curvava-se, levantava-se, perdia o pé,
encontrava o chão, avançava penosamente. A pouco e pouco alargou-se o bocal,
apareceu uma meia-luz, e de repente Gilliatt entrou em uma caverna
extraordinária.
CAPÍTULO XII
O
INTERIOR DE UM EDIFÍCIO DEBAIXO DO MAR
A
luz vinha a propósito.
Um
passo mais, Gilliatt estaria em uma água talvez sem fundo. As águas das cavas
têm um tal resfriamento e uma paralisia tão súbita, que lá ficam muitas vezes
os mais fortes nadadores.
Demais,
não havia meio de subir e agarrar às rochas entre as quais ficaria preso.
Gilliatt parou.
A
grota, donde ele saíra, ia ter a mesma saliência estreita e viscosa, espécie de
vulcão na muralha a pique. Gilliatt encostou-se à muralha e olhou.
Estava
numa grande cava. Tinha acima de si alguma coisa semelhante ao interior de um
crânio dissecado. E parecia dissecado de fresco. As nervuras gotejantes das
estrias do rochedo imitavam na abóbada as fibras dentadas de uma bola. Por
teto, a pedra; por assoalho, o mar; as ondas apertadas entre as quatro paredes
da grota pareciam vastos ladrilhos flutuantes. A grota estava fechada por todos
os lados. Nenhuma trapeira, nenhum respiradouro, nenhuma fenda na parede. A luz
vinha de baixo, através da água. Era um resplendor tenebroso.
Gilliatt,
cujas pupilas se dilataram durante o trajeto obscuro do corredor, distinguia
tudo naquele crepúsculo.
Conhecia,
por lá ter ido mais de uma vez, as cavas de Pleinmont em Jersey, o Croux-Maillé
em Guernesey, as Boutiques em Jerk, assim chamadas por causa dos
contrabandistas que ali depunham as suas mercadorias; nenhum desses
maravilhosos antros era comparável ao quarto subterrâneo e submarino onde
penetrara.
Gilliatt
via diante dele, debaixo da vaga, uma espécie de arcada afogada. Essa arcada,
ogiva natural, trabalhada pela onda, era brilhante entre as suas duas colunas
profundas e negras. Era por aquele pórtico submergido que entrava na caverna a
claridade do alto-mar. Luz estranha que vinha por um buraco na água.
Essa
claridade esvazava-se debaixo da água como um largo leque e repercutia no
rochedo. Os raios retilíneos, cortados em longas fitas negras, sobre a
opacidade do fundo, clareando ou escurecendo de uma anfratuosidade a outra,
imitavam interposições de lâminas de vidro. Havia luz, mas luz desconhecida. Já
não era a nossa luz. Podia-se crer que se estava em outro planeta. A luz era um
enigma; dissera-se o verde clarão da pupila de uma esfinge. A cava figurava o
interior de uma cabeça enorme; a esplêndida abóbada era o crânio, e a arcada
era a boca; não havia buracos dos olhos. A boca engolindo e vomitando o fluxo e
o refluxo, aberta em pleno meio-dia exterior, bebia a luz e vomitava o amargor.
Certos
entes, inteligentes e maus, assemelham-se a isto. O raio do sol, atravessando
aquele pórtico obstruído de uma espessura vidrenta da água do mar, tornava-se
verde como um raio de Aldebarã. A água, cheia dessa luz molhada, parecia
esmeralda em fusão. Um reflexo de água-marinha de incrível delicadeza tingia
brandamente toda a caverna.
A
abóbada, com os seus lóbulos quase cerebrais e as suas ramificações semelhantes
a nervos, tinha um fraco reflexo de crisópraso. O chamalote da onda,
reverberado no teto, decompunha-se e recompunha-se constantemente, alargando e
estreitando as suas rodas de ouro com um movimento de dança misteriosa. Saía
dali uma impressão espectral; o espírito podia perguntar que presa ou que
espera era aquela que fazia tão alegremente aquele magnífico filete de fogo
vivo. Nos relevos da abóbada e nas asperidades da rocha pendiam longas e finas
vegetações banhando provavelmente as raízes através do granito em alguma toalha
de água superior, e desbagando, nas pontas, uma gota de água, uma pérola. Essas
pérolas caíam no golfão com um pequeno rumor. Todo esse conjunto era
inexprimível. Não se podia imaginar nada mais lindo nem mais lúgubre. Era ali o
palácio da Morte, alegre.
CAPÍTULO
XIII
O QUE SE
VÊ E O QUE SE ENTREVÊ
Sombra
que deslumbra, tal era aquele sítio surpreendente.
A
palpitação do mar fazia-se sentir naquela cava. A oscilação externa inchava e
deprimia a toalha de água interior com a regularidade de uma respiração.
Cuidava-se ver uma alma misteriosa naquele grande diafragma verde elevando-se e
abaixando-se em silêncio.
A
água era magicamente límpida, e Gilliatt distinguia, em profundezas diversas,
estações imersas, superfícies de rochas de um verde carregado a mais e mais.
Certas cavas obscuras eram provavelmente insondáveis.
Dos
dois lados do pórtico submarino esboços de címbrios abatidos, cheios de trevas,
indicavam pequenas cavas laterais, pontos inferiores da caverna central,
acessíveis talvez na época das marés extremamente baixas.
Essas
anfratuosidades tinham tetos em plano inclinado, em ângulos mais ou menos
abertos. Pequenas plagas, descobertas pelas escavações do mar, mergulhavam-se e
perdiam-se debaixo dessas obliquidades.
Longas
ervas espessas, de mais de 1 toesa, ondulavam debaixo da água como um balancear
de cabelos ao vento. Entreviam-se florestas de sargaço.
Fora
da água, e dentro da água, toda a muralha da cava, de alto a baixo, desde a
abóbada até ao desaparecimento no invisível, era tapetada dessas prodigiosas
florescências do oceano, tão raramente visíveis ao olho humano, que os velhos
navegadores espanhóis chamaram praderias del mar. Espesso musgo, com
todos os matizes da azeitona, escondia e ampliava as exostoses de granito. De
todos os declives rompiam os delgados loros lavrados do sargaço com que os
pescadores fazem barômetros. O hálito obscuro da caverna agitava essas correias
luzentes.
Debaixo
dessas vegetações escondiam-se e mostravam-se ao mesmo tempo as mais raras
jóias do escrínio do oceano, os martins, as mitras, os elmos, as púrpuras, os
búzios, os estrutiolários, as conchas univalves. As campanas de lapas,
semelhantes a barracas microscópicas, aderiam ao rochedo e grupavam-se em
aldeias em cujas ruas rolavam as multivalves, esses escarabeus da vaga. Não
podendo os seixos de mariscos entrar facilmente nessa grota, aí se refugiavam
as conchas. As conchas são grandes fidalgos que, bordados e paramentados,
evitam o rude e incivil contato do populacho das pedras. A fúlgida reunião das
conchas fazia debaixo da água, em certos lugares, inefáveis irradiações através
das quais entrevia-se um grupo de azuis e vermelhos, e todos os reflexos da
água.
Na
parede da caverna, um pouco acima da linha de flutuação da maré, uma planta
magnífica e singular prendia-se como um debrum à tapeçaria do sargaço,
continuava-o e terminava-o. Essa planta, fibrosa, vasta, inextrincavelmente
dobrada, e quase negra, oferecia ao olhar largas toalhas embaraçadas e
obscuras, ornadas em toda a extensão de numerosas florinhas cor de
lápis-lazúli. Na água parecia que essas flores acendiam-se, e cuidava-se ver
brasas azuis. Fora da água eram flores, dentro da água eram safiras, de modo
que a onda, subindo e inundando o esvazamento da grota, revestia essas plantas
e cobria o rochedo de carbúnculos.
A
cada enchimento da vaga túmida como um pulmão, essas flores banhadas
resplandeciam, a cada abaixamento apagavam-se; melancólica semelhança com o
destino. Era a aspiração, que é a vida; era a expiração, que é a morte.
Uma
das maravilhas daquela caverna era a rocha. Essa rocha, ora muralha, ora
címbrio, ora pilastra, era em alguns lugares bruta e nua, em outros trabalhada
pelos mais delicados lavores naturais. Um não sei quê, aliás de espírito,
misturava-se à estupidez maciça da pedra. Que artista não é o abismo! Tal
pedaço de parede, cortado em quadro, e cheio de altos e baixos representando
atitudes, figurava um vago baixo-relevo; ante essa escultura, em que havia um
tanto de nuvem, podia-se sonhar com Prometeu esboçando para Miguel Ângelo.
Parecia que com alguns toques de cinzel o gênio poderia acabar o que o gigante
começara. Em outros lugares a rocha era embutida como um broquel sarraceno ou
traçada como uma florentina. Tinha almofadas que pareciam bronze de Corinto,
arabescos como uma porta de mesquita; como uma pedra rúnica tinha sinais de
unha obscuros e improváveis. Plantas com ramos torcidos em forma de verruma,
cruzando-se no dourado do musgo, cobriam-na de filigranas. Era um antro e um
alhambra. Era o encontro da selvajaria e da ourivesaria na augusta e disforme
arquitetura do acaso.
O
magnífico bolor do mar aveludava os ângulos de granito. As pedras estavam
adornadas de lianas grandifloras, tão destras que não caíam, e pareciam
inteligentes tão bem adornavam elas.
Parietárias
com estranhos ramalhetes mostravam os seus tufos a propósito e com gosto. Havia
aí a casquilhice possível numa caverna. A surpreendente luz edênica que vinha
de baixo da água, a um tempo penumbra marinha e radiação paradisíaca, esfumava
todos os lineamentos em unia espécie de difusão visionária. Cada vaga era um
prisma. O contorno das coisas debaixo desses ondeamentos iriados tinha o
cromatismo das lentes de óptica demasiado convexas; espectros solares flutuavam
debaixo da água.
Acreditar-se-ia
ver torcer-se nessa diafaneidade auroreal pedaços de arco-íris afogados. Em
outros lugares havia na água um certo luar. Todos os esplendores pareciam
amalgamados ali para fazer um quê de cego e de noturno. Nada mais impossível e
enigmático do que aquele fasto naquela cava. O que dominava ali era o encanto.
A vegetação fantástica e a estratificação informe acordavam-se e compunham uma
harmonia. Era de belo efeito aquele consórcio de coisas medonhas. Penduravam-se
as ramificações parecendo apenas tocar de leve. Era profundo o afago da rocha
selvagem e da flor ruiva.
Pilares
maciços tinham, por capitéis e por ligaduras, frágeis e trêmulas grinaldas;
parecia ver-se dedos de fada fazendo cócegas nas patas de um hipopótamo, e o
rochedo sustentava a planta e a planta abraçava o rochedo com uma graça
monstruosa.
Resultava
dessa deformidade misteriosamente ajustada uma beleza soberana. As obras da
natureza, não menos supremas que as obras do gênio, contêm o absoluto e
impõem-se. O inesperado delas faz-se obedecer imperiosamente pelo espírito;
sente-se uma premeditação que fica fora do homem, e elas não são mais
surpreendentes do que quando fazem subitamente sair o delicado do terrível.
Aquela
grota estava, por assim dizer, e se tal expressão é admissível, sideralizada.
Sentia-se ali o imprevisto do espanto. O que enchia aquela cripta era luz do
apocalipse. Não havia certeza de que aquilo existisse. Tinha-se diante dos
olhos uma realidade cheia de impossível. Olhava-se isto, tocava-se,
presenciava-se; mas era difícil crer.
Era
luz aquilo que jorrava daquela janela debaixo da água? Era água aquilo que
tremia naquela bacia obscura? Aqueles címbrios e pórticos não eram nuvem
celeste imitando uma caverna? Que pedra era aquela que se pisava? Aquele apoio
não ia desconjuntar-se e tornar-se fumo? Que joalheria de conchas era aquela que
se entrevia? Que distância havia dali à vida, à terra, aos homens? Que encanto
era aquele misturado àquelas trevas? Comoção inaudita, quase sagrada, à qual
misturava-se a doce inquietação das ervas no fundo da água.
Na
extremidade da cava, que era oblonga, debaixo de uma arquivolta ciclópica
singularmente correta, em um buraco quase indistinto, espécie de antro no
antro, espécie de tabernáculo no santuário, atrás de uma toalha de luz verde,
interposta como um véu de templo, descobria-se fora da água uma pedra de
ângulos cortados em quadro com uma parecença de altar. A água circundava essa
pedra. Parecia que uma deusa tinha descido dali. Era impossível deixar de
pensar, debaixo daquela cripta, em cima daquele altar, em alguma nudeza celeste
eternamente pensativa, que a entrada de um homem tinha feito fugir. Era difícil
conceber aquela célula augusta sem uma visão dentro dela; a aparição, evocada
pelo devaneio, recompunha-se por si; um rorejar de casta luz sobre espáduas
apenas entrevistas, uma fronte banhada de alvores, um oval de rosto olímpico,
uns misteriosos seios arredondados, uns braços pudicos, uma coma esparsa em uma
aurora, uns quadris inefáveis, modelados em luz pálida, no meio da sagrada
bruma, umas formas de ninfa, um olhar de virgem, uma Vênus saindo do mar, uma
Eva saindo do caos; tal era o sonho que forçosamente assaltava a imaginação.
Era inverossímil que não estivesse antes um fantasma naquele lugar. Uma mulher
nua, com um astro em si, devia provavelmente ter ocupado aquele altar. Sobre aquele
pedestal, donde emanava um êxtase inexprimível, imaginava-se uma alvura, viva e
de pé. O espírito criava, no meio da adoração muda daquela caverna, uma
Anfitrite; uma Tétis, alguma Diana que pudesse amar, estátua do ideal formada
de um raio e contemplando a sombra com meiguice. Foi ela quem, ao esquivar-se,
deixou na caverna aquela claridade, espécie de perfume-luz saído daquele
corpo-estrela. A fascinação daquele fantasma já não estava ali; já se não via a
figura, feita para ser vista somente pelo invisível, mas sentia-se; recebia-se
aquele estremecimento que é uma volúpia. A deusa estava ausente, mas a
divindade estava presente.
A
beleza do antro parecia feita para aquela presença. Era por causa dessa
deidade, dessa fada dos nácares, dessa rainha das brisas, dessa graça nascida
das vagas, era por causa dela, ao menos supunha-se isto, que o subterrâneo
estava religiosamente murado, a fim de que nada perturbasse nunca, em derredor
daquele divino fantasma, a obscuridade que é um respeito, o silêncio que é uma
majestade.
Gilliatt,
que era uma espécie de vidente da natureza, cismava, confusamente comovido.
De
súbito, alguns palmos abaixo dele, na transparência encantadora daquela água,
que eram pedras preciosas dissolvidas, Gilliatt viu alguma coisa inexprimível.
Uma espécie de longo andrajo movia-se na oscilação das vagas. Esse andrajo não
flutuava, vogava; tinha a forma de um cetro de truão com pontas; essas pontas
tinham reflexos; parecia que uma poeira impossível de molhar-se cobria aquele
todo. Era mais que horrível, era nojento. Tinha um quê de quimérico; era um
ente, a menos que não fosse uma aparência. Parecia dirigir-se para o obscuro da
cava e mergulhava-se ali. As espessuras da água tornaram-se sombrias sobre
aquela coisa que resvalou e desapareceu. Sinistra.
LIVRO
SEGUNDO
O
TRABALHO
CAPÍTULO
PRIMEIRO
OS
RECURSOS DAQUELE QUE NÃO TEM RECURSOS
A
cava não soltava facilmente quem lá ia. A entrada era pouco cômoda, a saída foi
ainda pior. Gilliatt entretanto safou-se, mas não voltou lá. Nada encontrou do
que procurava, e não tinha tempo para ser curioso.
Pôs
imediatamente a forja em atividade. Faltava ferramenta, Gilliatt fabricou-a.
Tinha
por combustível os destroços, a água por motor, o vento por fole, uma pedra por
bigorna, por arte o instinto, por força a vontade.
Gilliatt
entrou ardentemente nesse trabalho sombrio.
O
tempo mostrava-se complacente. Continuava belo, e o menos equinocial possível.
Chegara o mês de março, mas tranquilamente. Os dias tornavam-se compridos. O
azul do céu, a vasta doçura dos movimentos da extensão, a serenidade do
meio-dia, pareciam excluir qualquer intenção má. Alegrava-se o mar debaixo do
sol. Um afago prévio tempera as traições. A água marinha não é avara desses
afagos. Com aquela mulher é preciso desconfiar do sorriso.
Havia
pouco vento; a hidráulica soprava bem. O excesso do vento tolheria em vez de
ajudar.
Gilliatt
tinha uma serra; fabricou uma lima; com a serra atacou a madeira, com a lima, o
metal; depois ajuntou as duas mãos do ferreiro, uma tenaz e uma pinça: a tenaz
agarra, a pinça maneja; uma trabalha como a mão, a outra como o dedo. A
ferramenta é um organismo. A pouco e pouco Gilliatt arranjava auxiliares, e
construía as suas armaduras. Com um pedaço de ferro em folha fez uma antepara na
forja.
Um
dos seus primeiros cuidados foi a separação e a reparação das roldanas.
Consertou as caixas e as rodas das polés. Cortou a esfoliação de todos os
barrotes quebrados e aplainou as extremidades; como dissemos, tinha para as
necessidades da carpintaria grande cópia de peças de madeira armazenadas, e
aparelhadas, segundo as formas, as dimensões e as essências, o carvalho de um
lado, o pinheiro de outro, as peças curvas, como as porcas, separadas das peças
direitas, como as que ligam as escotilhas. Era uma reserva de pontos de apoio e
alavancas, de que podia precisar em um momento dado.
Quem
quer construir um guindaste deve munir-se de traves e polés, mas não basta
isso, é preciso corda. Gilliatt restaurou os cabos e as cordas. Estendeu as
velas rasgadas, e conseguiu extrair excelente fio com que compôs uma sarja, e
cerziu o cordoame. Mas essas costuras eram sujeitas a apodrecer, era preciso
empregar as cordas e os cabos, Gilliatt apenas pôde fazer o massame sem ter
alcatrão.
Consertou
as cordas, consertou as correntes.
Pôde,
graças à ponta lateral da bigorna, fazer anéis grosseiros, mas sólidos; com
esses anéis, prendeu uns aos outros os pedaços de correntes quebrados, e fez
correntes compridas.
Forjar
só e sem auxílio é mais do que incômodo. Contudo, Gilliatt conseguiu fazê-lo. É
certo que só teve de trabalhar na forja peças de pequeno volume; podia
meneá-las com uma mão e martelar com a outra.
Cortou
em pedaços as barras de ferro redondas do lugar do comando; forjou nas duas
extremidades de cada pedaço, de um lado uma ponta, do outro uma larga cabeça
chata, e desse modo fez grandes pregos de palmo e meio. Esses pregos, muito
usados em trabalhos marítimos, são úteis para fixar os paus nas pedras.
Por
que motivo Gilliatt tomava todo este trabalho? Ver-se-á.
Teve
de refazer muitas vezes o fio da machadinha e os dentes da serra. Para a serra
fabricou uma lima triangular.
Servia-se
também do cabrestante da Durande. Quebrou-se a fateixa da corrente. Gilliatt
fez outra.
Com
ajuda da pinça e da tenaz e servindo-se da faca como de um virador empreendeu
desmontar as duas rodas do navio; conseguiu. É preciso não esquecer que isso
era exequível; essa era a particularidade da construção das rodas. As caixas
que as tinham coberto serviram-lhes de capas; com as tábuas das caixas,
Gilliatt arranjou dois caixotes onde meteu peça por peça, as duas rodas,
cuidadosamente numeradas.
O
pedaço de giz serviu-lhe para essa numeração.
Arranjou
os dois caixotes na parte mais sólida do convés da Durande.
Terminados
estes preliminares, Gilliatt achou-se diante da dificuldade suprema. Surgiu a
questão da máquina.
Desmontar
as rodas foi possível; desmontar a máquina, não.
Primeiramente,
Gilliatt conhecia mal aquele mecanismo. Trabalhando ao acaso, podia produzir
algum desconserto irreparável. Depois, mesmo para tentar desmontá-la peça por
peça, se tivesse esta imprudência, eram-lhe precisas outras ferramentas do que
as que ele podia fazer numa caverna por oficina, com o vento por fole, e uma
pedra por bigorna. Tentando desmontar a máquina arriscava-se a despedaçá-la.
Aqui
podia-se crer que estava diante do impraticável.
Afigurou-se-lhe
que estava ao pé deste muro: o impossível.
Que
fazer?
CAPÍTULO II
DE QUE
MODO SHAKESPEARE PODE ENCONTRAR-SE COM ÉSQUILO
Gilliatt
tinha uma ideia.
Desde
aquele carpinteiro de Salbris que, no VI século, na infância da ciência, muito
antes que Amontons tivesse achado a primeira fricção, Lahire a segunda, e
Coulomb a terceira, sem conselho, sem guia, sem mais auxiliar que um menino,
filho dele, com uma ferramenta informe resolveu em massa, arriando o grande
relógio da igreja de Charité-sur-Loire, cinco ou seis problemas de estática e
de dinâmica, todos juntos, como as rodas de carros embaraçados; desde esse
trabalhador extravagante que achou meio de, sem quebrar um fio de latão e sem
desfazer um encaixe, arriar de uma só vez, por uma simplificação prodigiosa, do
segundo andar da torre ao primeiro, aquela maciça gaiola de horas, toda de
ferro e cobre, grande como uma guarita, com o seu movimento, cilindros,
tambores, ganchos, mostrador, pêndulo horizontal, âncoras de escapamento, meada
de corda, pesos de pedra dos quais um pesava 500 libras, tímpano, carrilhão;
desde esse homem que fez esse milagre, e cujo nome já se não sabe, jamais houve
nada igual à empresa que Gilliatt cometia.
A
operação de Gilliatt era talvez pior, isto é, mais bela ainda que a outra.
O
peso, a delicadeza, o conjunto das dificuldades, não eram menores na máquina da
Durande que no relógio de Charité-sur-Loire.
O
carpinteiro gótico tinha um auxiliar, o filho; Gilliatt era só.
Havia
uma população vinda de Menug-sur-Loire, de Nevers, e mesmo de Orleans, a qual
podia, em caso de necessidade, ajudar o carpinteiro de Salbris, e animá-lo com
os seus rumores benévolos; Gilliatt só tinha à roda de si o rumor do vento e a
multidão das ondas.
Nada
se compara à timidez da ignorância, a não ser a sua temeridade. Quando a
ignorância começa a ousar é que tem uma bússola consigo. Essa bússola é a
intuição da verdade, mais clara às vezes num espírito simples que num espírito
complicado.
Ignorar
convida a tentar. A ignorância é um devaneio e o devaneio curioso é uma força.
Saber, desconcerta às vezes, e desaconselha muitas. Se Vasco da Gama soubesse,
recuaria ante o cabo das Tormentas. Se Cristóvão Colombo fosse bom cosmógrafo,
não teria descoberto a América.
O
segundo que subiu ao monte Branco foi um sábio, Saussure; o primeiro foi um
pastor, Balmat.
Tais
casos, digamo-lo de passagem, são a exceção, e tudo isto não tira nada à
ciência, que fica sendo a regra. O ignorante pode achar, só o sábio inventa.
A
pança continuava a estar ancorada na angra do Homem, onde o mar a deixava tranquila.
Gilliatt, como se sabe, arranjou tudo de modo a ficar em livre prática com a
barca. Foi ali e mediu-a em diversos pontos. Depois voltou à Durande e mediu o
grande diâmetro da máquina. O grande diâmetro, sem as rodas, bem entendido, era
mais curto 2 pés que o espaço da pança. Portanto, a máquina podia entrar na
barca. Mas como metê-la aí?
CAPÍTULO III
A
OBRA-PRIMA DE GILLIATT AJUDA A OBRA-PRIMA DE LETHIERRY
Alguns
dias depois, o pescador que fosse assaz tonto para ir perlustrar aquelas
paragens, em semelhante estação, teria pago a sua ousadia com a visão de uma
coisa singular entre as Douvres.
Veria
isto o pescador: quatro robustas pranchas com espaços iguais entre si, indo de
uma Douvre a outra, e como que forçadas entre os rochedos o que é a melhor
solidez deste mundo. Do lado da pequena Douvre, as suas extremidades pousavam e
fincavam-se nas fendas da rocha; do lado da grande Douvre, essas extremidades
deviam ter sido violentamente espetadas na coluna com um martelo por um robusto
trabalhador trepado na própria prancha. Essas pranchas eram um pouco mais
longas que o intervalo das Douvres; daí, a segurança e o plano inclinado em que
estavam formando uma ladeira. Tocavam a grande Douvre em ângulo agudo e a
pequena em ângulo obtuso. Era suave o declive, mas desigual, o que se tornava
defeito. A essas quatro pranchas prendiam-se quatro polés guarnecidas todas de
corda e boça, e tendo esta singularidade e ousadia, que a polé de rodas estava
em uma extremidade da prancha e a polé simples na extremidade oposta. Este
desvio de arte, tamanho que era perigoso, era provavelmente exigido pela
necessidade da operação. As polés compostas eram fortes e as símplices eram
sólidas. A essas prendiam-se cabos que de longe pareciam fios, e por baixo
desse aparelho aéreo de guindastes e tábuas, o maciço casco da Durande parecia
suspenso a esses fios.
Ainda
não estava suspensa. Perpendicularmente por baixo das pranchas, oito aberturas
foram praticadas no casco, quatro a bombordo e quatro a estibordo da máquina, e
mais oito debaixo dessas, na carena. Os cabos desciam verticalmente, entravam
no convés, depois saíam pela carena, pelas aberturas de estibordo, passavam por
baixo da quilha e da máquina, entravam outra vez no navio pelas aberturas de
bombordo e, subindo, atravessando o convés, voltavam a prender-se nos quatro
guindastes das pranchas, onde um guincho prendia-os e fazia um rolo de um cabo
único podendo ser dirigido por um só braço. Um gancho e um carretel por cujo
centro passava e dividia-se o cabo único completavam o aparelho, e em caso de
necessidade, continham-no. Esta combinação obrigava as quatro polés a
trabalharem juntas, e, verdadeiro freio de forças pendentes, leme de dinâmica
na mão do piloto da operação, mantinha a manobra em equilíbrio. O ajustamento
engenhoso do guincho tinha alguma das qualidades simplificadoras do guindaste
Weson de hoje, e do antigo polipastono de Vitrúvio. Gilliatt descobriu isso,
sem conhecer Vitrúvio, que já não existe, nem Weson, que não existia ainda. O
comprimento dos cabos variava segundo o desigual declive das pranchas e
corrigia um pouco a desigualdade. As cordas eram perigosas, o massame branco
podia quebrar; era melhor empregar correntes, finas as correntes não poderiam
passar com facilidade nas polés.
Tudo
isso, cheio de defeitos, mas feito por um só homem, era surpreendente.
Demais,
abreviemos a explicação. Compreender-se-á que omitimos muitos pormenores que
tornariam a coisa clara para as pessoas do ofício, e obscura para as outras.
O
cimo do cano da máquina passava por entre as duas pranchas do meio.
Gilliatt,
sem dar por isso, plagiário inconsciente do desconhecido, refez, a três séculos
de distância, o mecanismo do carpinteiro de Salbris, mecanismo rudimentar e
incorreto, assustador para quem ousasse manobrá-lo.
Digamos
aqui que os defeitos mais grosseiros não impedem que um mecanismo funcione. O
obelisco da praça de São Pedro de Roma foi levantado contra todas as regras da
estática. O coche do Czar Pedro era construído de tal modo que parecia tombar a
cada passo; entretanto, andava. Quantas deformidades na máquina de Marly. Tudo
ali era malfeito. Nem por isso deixou de dar de beber a Luís XIV.
Fosse
como fosse, Gilliatt tinha confiança. Contava até com o sucesso ao ponto de
fixar na borda da pança, no dia em que lá foi, dois pares de argolas de ferro,
diante um do outro, nos dois lados da barca, nos mesmos espaços que as quatro
argolas da Durande às quais se prendiam as quatro correntes do cano.
Gilliatt
tinha evidentemente um plano muito completo e definitivo. Tendo contra si todas
as probabilidades, queria pôr todas as precauções do seu lado.
Fazia
coisas que pareciam inúteis, sinal de uma premeditação atenta. A sua maneira de
proceder desafiava um observador, e mesmo um conhecedor.
Uma
pessoa que o visse, por exemplo, com esforços inauditos e em risco de quebrar o
pescoço, pregar com um martelo oito ou dez grandes pregos que ele forjou, no
esvazamento das duas Douvres, na entrada da garganta do escolho, compreenderia
dificilmente o motivo desses pregos, e perguntaria provavelmente por que razão
fazia todo aquele trabalho.
Se
visse Gilliatt medir o pedaço da amurada da proa que ficara pendurada, depois
prender uma forte corda na borda superior desta peça, cortar com um machado as
madeiras descoladas que a retinham, arrastá-las fora da garganta, com auxílio
da maré que descia, e enfim prender laboriosamente com a corda essa pesada
massa de tábuas e vigas, mais larga que a entrada da garganta, aos pregos
metidos na base da pequena Douvre, o observador compreenderia menos ainda, e
diria que se Gilliatt quisesse, para facilidade da manobra, desimpedir o
intervalo das Douvres, bastava deixar cair aquele pedaço de tábuas na maré que
o levaria à flor da água.
Gilliatt
provavelmente tinha lá as suas razões.
Gilliatt,
para fixar os pregos na base das Douvres, tirava partido de todas as fendas do
granito, alargava-as quando era preciso, e metia ao princípio tocos de paus,
nos quais introduzia depois os pregos. Emboçou a mesma preparação nas duas
rochas que se levantavam noutra extremidade do escolho, do lado de leste;
guarneceu de cavilhas de pau todos os buracos, como se as quisesse ter prontas
para receber ganchos; mas isso pareceu ser uma simples reserva, porque Gilliatt
não meteu pregos nessas fendas. Compreende-se que, por prudência na sua
penúria, ele não podia gastar materiais senão à proporção que tivesse
necessidade, e no momento em que a necessidade se manifestasse. Era mais uma
complicação no meio de tantas dificuldades.
Acabado
um primeiro trabalho, surgia um segundo. Gilliatt passava sem hesitar de um a
outro e dava resolutamente esse pulo de gigante.
CAPÍTULO IV
SUBRE
O
homem que fazia estas coisas tornara-se medonho.
Gilliatt,
naquele trabalho múltiplo, gastava todas as suas forças; dificilmente as
refazia.
Privações
de uma parte, cansaço de outra. Gilliatt tinha emagrecido. Cresceram-lhe as
barbas e cabelos. Exceto uma camisa, todas as mais estavam em frangalhos. Tinha
os pés nus, porque o vento levara-lhe um sapato, e o mar o outro. Pedaços da
bigorna rudimentar, e mui perigosa, de que se servia, tinham-lhe feito nas mãos
e nos braços pequenas chagas, salpicos de trabalho. Essas chagas, mais
esfoladuras que feridas, eram superficiais, mas irritadas pelo ar vivo e pela
água salgada.
Tinha
fome, tinha sede, tinha frio.
O
pichel de água doce estava vazio. A farinha de centeio fora já comida ou
empregada no trabalho. Restava-lhe um pouco de biscoito.
Não
tendo água para molhá-lo, Gilliatt quebrava-o com os dentes.
Dia
a dia iam-lhe escasseando as forças.
Aquele
temível rochedo esgotava-lhe a vida.
Beber
era uma questão; comer era uma questão; dormir era uma questão.
Gilliatt
comia quando apanhava algum marisco ou outro bichinho do mar; bebia quando via
um pássaro descer a alguma ponta da rocha. Trepava então e achava numa cava um
pouco de água doce. Bebia depois do pássaro, às vezes ao mesmo tempo; porque as
gaivotas já estavam acostumadas a ele, e não fugiam quando ele se aproximava.
Gilliatt, mesmo na maior fome, não lhes fazia mal. Sabemos que ele tinha a
superstição dos pássaros. Os pássaros, como os cabelos de Gilliatt estivessem
eriçados e horríveis, e a barba longa, já lhe não cobravam medo; a mudança do
aspecto tranquilizava-os; já não viam naquilo um homem, acreditavam-no bicho.
Os
pássaros e Gilliatt eram agora bons amigos. Todos aqueles pobres ajudavam-se
uns aos outros. Enquanto Gilliatt teve centeio, deu-lhes algumas migalhas dos
bolos que fazia; agora os pássaros indicavam-lhe em que lugar havia água.
Comia
as conchas cruas; as conchas, em certa proporção, são refrigerantes. Quanto aos
caranguejos, cozia-os; não tendo vasilha própria, cozia-os entre duas pedras
abrasadas ao fogo, como os selvagens das ilhas Feroe.
Declarou-se,
entretanto, um pouco de equinócio; veio a chuva; mas chuva hostil. Nem ondas,
nem aguaceiros, mas longos chuviscos, finos, gelados, que atravessavam-lhe a
roupa até a pele, e a pele até os ossos. Era chuva que dava pouco de beber e
molhava muito.
Avara
de auxílio, pródiga de miséria, tal era aquela chuva, indigna do céu. Gilliatt
apanhou-a toda, durante uma semana, de noite e de dia. Era uma má ação lá de
cima.
De
noite, no seu buraco do rochedo, só dormia por cansaço. Os grandes mosquitos do
mar iam mordê-lo. Acordava coberto de pústulas.
Tinha
febre, que o sustentava; a febre é um amparo, que mata. Mastigava, por
instinto, o musgo, ou chupava as folhas de cocleária selvagem, magras produções
das fendas secas do rochedo. Mas ocupava-se bem pouco com o sofrimento. Não
tinha tempo de distrair-se do trabalho para cuidar de si. A máquina da Durande
estava de saúde. Era o que bastava.
A
cada momento, para as necessidades do trabalho, Gilliatt atirava-se ao mar,
depois tomava pé. Entrava na água e saía, como se passa de um quarto a outro.
As
roupas já lhe não secavam. Estavam embebidas da água da chuva que não parava, e
da água do mar que não seca nunca. Gilliatt vivia molhado.
Viver
molhado é um hábito que se adquire. Os pobres grupos irlandeses, velhos, mães,
raparigas, quase nuas, crianças, que passam o inverno debaixo de aguaceiros e
neve, apertados uns contra os outros nos ângulos das casas nas ruas de Londres,
vivem e morrem molhados.
Estar
molhado e ter sede; Gilliatt suportava essa tortura estranha. De quando em
quando mordia a manga da japona.
O
fogo que ele acendia não o aquecia; o fogo no meio de um grande espaço arejado
é um meio socorro; seca-se de um lado, umedece-se de outro.
Gilliatt
suava e tiritava.
Tudo
lhe resistia em roda dele numa espécie de silêncio terrível. Ele sentia o
inimigo.
As
coisas têm um sombrio Non possumus.
A
inércia delas é uma lúgubre advertência.
Imensa
má vontade cercava Gilliatt. Estava cheio de queimaduras e tinha arrepios de
frio. Queimava-o o fogo, gelava-o a água, a sede causava-lhe febre, o vento
rasgava-lhe a roupa, a fome minava-lhe o estômago. Ele suportava a opressão em
um conjunto fatigante. O obstáculo, tranquilo, vasto, tendo a
irresponsabilidade aparente da fatalidade, mas cheio de uma unanimidade feroz,
convergia de todas as partes sobre Gilliatt. Gilliatt sentia-o apoiado
inexoravelmente sobre ele. Nenhum meio de escapar-lhe. Era quase uma entidade.
Gilliatt tinha a consciência de um desprezo sombrio e de um ódio que fazia
esforço por diminuí-lo. Dependia dele fugir, mas, pois que ficava, tinha de
lutar com hostilidade impenetrável. Não podendo pô-lo fora dali, punham-no
debaixo dos pés. Quem? O Ignoto. Apertavam-no, comprimiam-no, tiravam-lhe lugar
e alento. Estava abatido pelo invisível. Cada dia, a misteriosa verruma entrava
um pedaço.
A
situação de Gilliatt naquele medonho lugar assemelhava-se a um duelo equívoco
com um traidor.
Cercava-o
a coalizão das forças obscuras. Ele sentia uma resolução de alguém para
expulsá-lo dali. É assim que a geleira expele a massa errática.
Quase
sem parecer que o tocava, essa coalizão latente punha-o em farrapos, cheio de
sangue, falho de recursos, e, por assim dizer, fora de combate antes do
combate. Nem por isso deixava ele de trabalhar, e sem cessar, mas, à proporção
que a obra se fazia, ia-se desfazendo o operário. Dissera-se que aquela feroz
natureza, receando a alma, resolvera-se a extenuar o homem. Gilliatt afrontava,
e esperava. O abismo começava por cansá-lo. Que faria depois o abismo?
A
dupla Douvres, dragão de granito e emboscado em pleno mar, admitira Gilliatt.
Deixou-o entrar e trabalhar. A admissão assemelhava-se à hospitalidade de um
sorvedouro aberto.
O
deserto, a extensão, o espaço onde há para o homem tantos recursos, a
inclemência muda dos fenômenos seguindo o seu curso, a grande lei geral
implacável e passiva, o fluxo e o refluxo, o escolho, plêiada negra onde cada
ponto é uma estrela de turbilhões, centro de uma irradiação de correntes, a
conspiração da indiferença das coisas contra a tenacidade de um ente, o
inverno, as nuvens, o mar sitiante, cercavam Gilliatt, apertavam-no lentamente,
fechavam-se sobre ele, e o separavam dos vivos, como um cárcere que fosse
subindo à roda de um homem. Tudo contra ele, nada a favor dele; estava isolado,
abandonado, minado, esquecido.
Gilliatt
tinha esgotado as provisões, as ferramentas já estavam usadas, a sede e a fome
de dia, o frio de noite, feridas e andrajos, vestidos rotos cobrindo
supurações, buracos nas roupas e na carne, mãos dilaceradas, pés sangrentos,
membros magros, rosto lívido, uma flama nos olhos.
Flama
soberba essa, era a vontade visível. O olho do homem é feito de modo que se lhe
vê por ele a virtude. A nossa pupila diz que quantidade de homens há dentro de
nós. Afirmamo-nos pela luz que fica debaixo da sobrancelha. As pequenas
consciências piscam o olho, as grandes lançam raios. Se não há nada que brilhe
debaixo da pálpebra, é que nada há que pense no cérebro, é que nada há que ame
no coração. Quem ama quer, e aquele que quer relampeja e cintila. A resolução
enche os olhos de fogo; admirável fogo que se compõe da combustão de pensamentos
tímidos.
Os
teimosos são os sublimes. Quem é apenas bravo tem só um assomo, quem é apenas
valente tem só um temperamento, quem é apenas corajoso tem só uma virtude; o
obstinado na verdade tem a grandeza. Quase todo o segredo dos grandes corações
está nesta palavra: perseverando. A perseverança está para a coragem como a
roda para a alavanca; é a renovação perpétua do ponto de apoio. Esteja na terra
ou no céu o alvo da vontade, a questão é ir a esse alvo; no primeiro caso, é
Colombo, no segundo caso, é Jesus. Insensata é a cruz; vem daí a sua glória.
Não deixar discutir a consciência, nem desarmar a vontade, é assim que se obtêm
o sofrimento e o triunfo. Na ordem dos fatos morais o cair não exclui o pairar.
Da queda sai a ascensão. Os medíocres deixam-se perder pelo obstáculo
especioso; não assim os fortes. Parecer é o talvez dos fortes, conquistar é a
certeza deles. Podes dar a Estêvão todas as boas razões para que ele não se
faça apedrejar. O desdém das objeções razoáveis cria a sublime vitória vencida que
se chama o martírio.
Todos
os esforços de Gilliatt pareciam agarrados ao impossível, o êxito era mesquinho
ou lento, e cumpria gastar muito para obter pouco; isso é que o fazia
magnânimo, isso é que o fazia patético.
Que
para fazer um andaime de quatro pranchas acima de um navio naufragado, para
cortar nesse navio a parte que se podia salvar, para ajustar a esse resto dos
restos quatro guindastes com os seus cabos, fossem precisos tantos
preparativos, tantos trabalhos, tantas apalpadelas, tantas noites mal dormidas,
tantos dias afadigados, essa era a miséria do trabalho solitário. Fatalidade na
causa, necessidade no efeito. Gilliatt fez mais do que aceitar essa miséria;
qui-la. Temendo um concorrente, porque um concorrente poderia ser um rival, não
procurou auxiliar. A esmagadora empresa, o risco, o perigo, o trabalho
multiplicado por si mesmo, o engolimento possível do salvador no salvamento, a
fome, a febre, a nudez, o abandono, tudo isso tomou ele para si só. Teve este
egoísmo.
Gilliatt
estava debaixo de uma espécie de máquina pneumática. A vitalidade ia-se
retirando dele a pouco e pouco. E ele mal o sentia.
A
perda das forças não esgota a vontade. Crer é apenas a segunda potência; a
primeira é querer; as montanhas proverbiais que a fé transporta nada valem ao
lado do que a vontade produz. O que Gilliatt perdia em vigor reavia em
tenacidade. A diminuição do homem físico debaixo da ação repelente daquela
natureza selvagem produzia o engrandecimento do homem moral.
Gilliatt
não sentia a fadiga, ou, para melhor dizer, não consentia nela. O consentimento
da alma recusado ao desfalecimento do corpo é uma força imensa.
Gilliatt
via os progressos do trabalho, e não via nada mais. Era miserável sem sabê-lo.
O seu alvo, que ele tocava quase, alucinava-o, sofria todos os sofrimentos sem
ter outra ideia que não fosse esta: Avante! A sua obra subia-lhe à cabeça.
Vontade embriagada. O homem pode embriagar-se com a própria alma. Essa
embriaguez chama-se heroísmo.
Gilliatt
era uma espécie de Jó do Oceano.
Mas
um Jó que lutava, um Jó que combatia e afrontava os flagelos, um Jó que
conquistava, e se tais palavras não são demasiado grandes para um pobre
marinheiro pescador de caranguejos e de lagostas, um Jó Prometeu.
CAPÍTULO V
SUB UMBRA
Às
vezes, alta noite, Gilliatt abria os olhos e olhava para a sombra.
Sentia-se
extremamente comovido.
Olhar
aberto sobre trevas. Situação lúgubre; ansiedade.
Existe
a pressão da sombra.
Inexprimível
teto de tênebras; alta obscuridade sem mergulhador possível; luz mesclada à
obscuridade, mas uma luz vencida e sombria; claridade reduzida a pó; é semente?
é cinza? milhões de fachos, claridade nula; vasta ignição que não diz o seu
segredo, uma difusão de fogo em poeira que parece um bando de faíscas paradas,
a desordem do turbilhão e a imobilidade do sepulcro, o problema oferecendo uma
abertura de precipício, o enigma desvendando e escondendo a sua face, o
infinito mascarado com a escuridão, eis a noite. Pesa no homem esta
superposição.
Esse
amálgama de todos os mistérios a um tempo, do mistério cósmico e do mistério
fatal, abate a cabeça humana.
A
pressão da sombra atua em sentido inverso nas diferentes espécies de almas. O
homem, diante da noite, reconhece-se incompleto. Vê a obscuridade e sente a
enfermidade. O céu negro é o homem cego. Entretanto, com a noite, o homem
abate-se, ajoelha-se, prosterna-se, roja-se, arrasta-se para um buraco, ou
procura asas. Quase sempre quer fugir a essa presença informe do desconhecido.
Pergunta
o que é; treme, curva-se, ignora; às vezes quer ir lá.
Aonde?
Lá.
Lá?
O que é? Que há lá?
Essa
curiosidade é evidentemente a das coisas defesas, porque para aquele lado todas
as pontes à roda do homem estão cortadas. Mas o desejo atrai, porque é golfão.
Onde não vai o pé, vai o olhar, onde o olhar pára, pode continuar o espírito.
Não há homem que não tente, por mais fraco e insuficiente que seja. O homem,
segundo a sua natureza, investiga ou espera diante da noite. Para uns é um
rechaçamento, para outros é uma dilatação. O espetáculo é sombrio. Mescla-se a
ele o indefinível.
Vai
a noite serena? É um fundo de sombra. Vai tempestuosa? É um fundo de fumaça. O
ilimitado recusa-se e oferece-se ao mesmo tempo, fechado à experiência, aberto
à conjetura. Infinitas picadas de luz tornam mais negra a obscuridade sem
fundo. Carbúnculos, cintilações, astros. Presenças verificadas no Ignorado;
tremendos reptos para ir tocar esses clarões. São estacas da criação no
absoluto; são marcos de distância lá onde já não há distância; é uma espécie de
numeração impossível, e todavia real, do canal das profundezas. Um ponto
microscópico que fulge, depois outro, mais outro, mais outro; é o
imperceptível, é o enorme. Essa luz é um foco, esse foco é uma estrela, essa
estrela é um sol, esse sol é um universo, esse universo é nada. Todo o número é
zero diante do infinito.
Esses
universos, que nada são, existem. Verificando-os, sente-se a diferença que vai
entre ser nada, e não ser.
O
inacessível ligado ao inexplicável, eis o céu.
Dessa
contemplação solta-se um fenômeno sublime: o crescimento da alma pelo assombro.
O
medo sagrado é próprio do homem; a besta ignora esse medo. A inteligência acha
nesse terror augusto o seu eclipse e a sua prova.
A
sombra é una: vem daí o seu horror. É, ao mesmo tempo, complexa: vem daí o
terror. A sua unidade pesa no nosso espírito e saca-lhe a vontade de resistir.
A
complexidade faz com que se olhe para todos os lados; parece que se devem
recear assaltos súbitos. O homem rende-se e defende-se. Fica em presença de Tudo,
daí vem a submissão, e de Muitos, daí vem a desconfiança. A unidade da sombra
contém um múltiplo. Múltiplo misterioso, visível na matéria, sensível no
pensamento. Faz silêncio, razão de mais para espreitar.
A
noite — já o disse algures quem escreve estas linhas — é o estado próprio,
normal da criação especial de que fazemos parte. O dia, breve na duração como
no espaço, é apenas uma proximidade de estrela.
O
prodígio noturno universal não se realiza sem atritos, e os atritos de uma tal
máquina são as contusões da vida. Os atritos da máquina, é o que chamamos o
Mal. Sentimos nessa obscuridade o mal, desmentido latente da ordem divina,
blasfêmia implícita do fato rebelde ao ideal. O mal acrescenta uma teratologia
de mil cabeças ao vasto conjunto cósmico. O mal está presente em tudo para
protestar. É furacão e atormenta a marcha de um navio, é caos e entrava o
desabrochar de um mundo. O Bem tem a unidade, o Mal tem a ubiquidade. O mal
desconcerta a vida, que é uma lógica. Faz devorar a mosca pelo pássaro, e o
planeta pelo cometa. O mal é um borrão na natureza.
A
obscuridade noturna peja-se de uma vertigem. Quem a aprofunda, submerge-se e
debate-se. Não há fadiga comparável a esse exame de trevas. É o estudo de um
apagamento.
Não
há lugar definitivo para pousar o espírito. Pontos de partida sem ponto de
chegada. O cruzamento das soluções contraditórias, todos os ramos da dúvida a
um tempo, a ramificação dos fenômenos esfoliando-se sem limite sob uma impulsão
indefinida, mistura de todas as leis, uma promiscuidade insondável que faz com
que a mineralização vegete, com que a vegetação viva, com que o pensamento
pese, com que o amor irradie e a gravitação ame; a imensa frente de ataque de
todas as questões desenvolvendo-se na obscuridade sem limites; o entrevisto
esboçando o ignorado; a simultaneidade cósmica em plena aparição, não para o
olhar, mas para a inteligência, no espaço indistinto; o invisível tornado
visão. É a sombra. O homem está embaixo. Não conhece os pormenores, mas
suporta, em qualidade proporcionada ao seu espírito, o peso monstruoso do
conjunto. Esta obsessão impelia os pastores caldeus à astronomia. Saem dos
poros da criação revelações involuntárias; faz-se por si mesma uma transudação
de ciência e invade o ignorante. Debaixo dessa impregnação misteriosa torna-se
o solitário, muitas vezes sem ter consciência, um filósofo natural.
A
obscuridade é indivisível. É habitada. Habitada sem deslocação pelo absurdo;
habitada também com deslocação. Move-se ali dentro alguma coisa, o que é para
assustar. Uma formação sagrada desenvolve ali as suas fases. Premeditações,
potências, destinos intencionais laboram aí em comum uma obra desmedida. Vida
terrível e horrível é o que existe ali dentro. Há vastas evoluções de astros, a
família estelar, a família planetária, o pólen zodiacal, o Quid divinum
das correntes, dos eflúvios, das polarizações e das alterações; há o amplexo e
o antagonismo, um magnífico fluxo e refluxo da antítese universal, o
imponderável em liberdade no meio dos centros; há a seiva nos globos, a luz
fora dos globos, o átomo errante, o germe esparso, curvas de fecundação,
encontros de ajuntamento e de combate, profusões inauditas, distâncias que
parecem sonhos, circulações vertiginosas, mergulhos de mundos no incalculável,
prodígios perseguindo-se nas trevas, um maquinismo definitivo, sopro de esferas
em fuga, rodas que se sente andarem, existe e esconde-se; é inexpugnável, fora
de alcance. Fica-se convencido até à opressão. Tem-se em si uma evidência
negra. Nada se pode agarrar. Esmaga-nos o impalpável.
Por
toda a parte o incompreensível: em parte alguma o inteligível.
E
a tudo isto acrescentai a terrível questão: esta Imanência é um Ser?
Está-se
debaixo da sombra. Olha-se. Escuta-se.
Entretanto
a terra sombria caminha e rola, as flores têm consciência desse movimento
enorme; a silena abre-se às 11 horas da noite e o hemerocale às 5 horas da
manhã. Impressível regularidade.
Em
outras profundidades a gota de água faz-se mundo, o infusório pulula, a
fecundidade gigante sai do animálculo, o imperceptível ostenta a sua grandeza,
o sentido inverso da imensidade manifesta-se; uma diatoméia produz em uma hora
1 milhar e 300 milhões de diatoméias.
Que
proposição de todos os enigmas ao mesmo tempo!
Está
aí o irredutível.
Constrange-se-nos
à fé. Crer por força, eis o resultado. Mas para estar tranquilo não basta ter
fé. A fé tem uma estranha necessidade de forma. Daí vêm as religiões. Nada é
tão opressivo como uma crença sem delineamento.
Qualquer
que seja o pensamento e a vontade, qualquer que seja a resistência interior,
olhar a sombra não é olhar, é contemplar.
Que
fazer desses fenômenos? Como mover-se debaixo de sua convergência? É impossível
decompor esta pressão. Que devaneio se deve ajuntar a todos esses confinantes
misteriosos? Quantas revelações abstrusas, simultâneas, obscurecendo-se em sua
própria multidão, espécie de balbuciar do verbo! A sombra é um silêncio; mas
esse silêncio diz tudo. Surge majestosamente um resultado: Deus. Deus é a noção
incompreensível. Essa noção está no homem. Os silogismos, as querelas, as
negações, os sistemas, as religiões passam por cima sem diminuí-la. A sombra
inteira afirma aquela noção. Mas turva-se tudo o mais. Imanência formidável. A
inexprimível harmonia das forças manifesta-se pelo equilíbrio dessa
obscuridade. O universo pende; nada tomba. O deslocamento incessante e
desmedido opera-se sem acidente e sem fratura. O homem participa deste
movimento de translação e à quantidade de oscilação que suporta chama êle
destino. Onde começa o destino? Onde acaba a natureza? Que diferença há entre
um acontecimento e uma estação, entre um pesar e uma chuva, entre uma virtude e
uma estrela? Uma hora não é uma onda? Continua o movimento da roda, sem
responder ao homem, em sua revolução impassível. O céu estrelado é uma visão de
rodas, de pêndulas e de contrapesos. É a contemplação suprema forrada da
suprema meditação. É toda a realidade e mais a abstração. Nada além daí. O
homem sente-se preso. Fica à discrição da sombra. Não há evasão possível. Vê-se
ele naquele composto de rodas, é parte integrante de um Todo ignorado, sente o
desconhecido que está fora dele. Isto é o anúncio sublime da morte. Que
angústia e, ao mesmo tempo, que fascinação! Aderir ao infinito e por essa
aderência atribuir-se uma imortalidade necessária, quem sabe? Uma eternidade
possível sentir na prodigiosa vaga desse silêncio universal a obstinação
insubmersível do eu! Contemplar os astros e dizer: “Sou uma alma como vós!”
Contemplar a obscuridade e dizer: “Sou um abismo como tu”.
Essas
enormidades são a noite.
Tudo
isso aumentado, pela solidão, pesava em Gilliatt.
Compreendia-o
ele? Não. Sentia-o? Sim.
Gilliatt
era um grande espírito turvado e um grande coração selvagem.
CAPÍTULO VI
GILLIATT
COLOCA A PANÇA EM POSIÇÃO
O
salvamento da máquina, meditado por Gilliatt, era, como dissemos, uma
verdadeira evasão e são conhecidas as paciências da evasão. Também se conhecem
as suas indústrias. A indústria chega ao milagre; a paciência atinge a agonia.
Tal prisioneiro, Thomas, por exemplo, no monte São Miguel, achou meio de
esconder metade de uma parede dentro da palha em que dormia. Outro, em Tulle,
em 1820, cortou chumbo na plataforma de passeio da prisão, não se sabe com que
faca, fundiu-o não se sabe com que fogo, vazou-o numa fôrma feita de migalhas
de pão; com esse chumbo e essa fôrma fez uma chave e com essa chave abriu uma
fechadura que ele apenas conhecia por ter-lhe visto o buraco. Gilliatt tinha
essas habilidades inauditas. Era capaz de subir e descer o penedio Boisrosé. Era
o Trenk de um destroço e o Latude de uma máquina.
O
mar, que era o carcereiro, vigiava-o.
Demais,
por ingrata e má que fosse a chuva, Gilliatt aproveitou-a. Refez com ela a sua
provisão de água doce; mas a sede era inextinguível e Gilliatt esvaziava o
pichel quase tão rapidamente como o enchia.
Um
dia, o último de abril, creio, ou o 1° de maio, tudo estava pronto. O assoalho
da máquina estava como que metido entre os oito-cabos das polés, quatro de um
lado, quatro de outro. As dezesseis aberturas, por onde passavam esses cabos,
estavam ligadas ao tombadilho e à carena. A madeira foi cortada com o machado,
o ferro com a lima, o forro com a faca e o resto com a serra. A parte da quilha
onde estava a máquina foi cortada em quadro e estava pronta para resvalar com a
máquina sustentando-a. Todo esse grupo assustador só estava preso por uma
corrente, a qual dependia só de um golpe de lima. Tão perto do remate, a pressa
era prudência.
A
maré estava baixa, o momento era bom.
Gilliatt
tinha conseguido desmontar a árvore das rodas, cujas extremidades podiam fazer
obstáculo e impedir aquele levantar de âncora. Tinha conseguido amarrar
verticalmente a pesada peça na própria máquina.
Era
tempo de acabar. Gilliatt, como dissemos, não estava cansado porque não queria,
mas as suas ferramentas estavam. A forja tornava-se impossível a pouco e pouco.
A pedra que servia de bigorna tinha-se quebrado. O fole começava a trabalhar
mal. Como a pequena queda hidráulica era de água marinha, formaram-se depósitos
salinos nas junturas do aparelho e impediam-lhe o jogo.
Gilliatt
foi à angra do Homem, passou revista à pança, assegurou-se de que tudo estava
bom, particularmente as quatro argolas pregadas a bombordo e estibordo,
levantou a âncora e remando voltou com a pança às duas Douvres.
O
intervalo das Douvres podia admitir a pança. Havia bastante fundo e bastante
largura. Gilliatt reconheceu, desde o primeiro dia, que podia-se levar a pança
até debaixo da Durande.
A
manobra era contudo excessiva, exigia uma precisão de joalheiro e esta inserção
do barco no escolho era tanto mais delicada quanto que, para o que Gilliatt
queria fazer, era necessário entrar pela popa com o leme na proa. Era
necessário que o mastro e os aparelhos da pança ficassem aquém do casco do
vapor, do lado da entrada.
Este
agravo na manobra tornou a operação difícil ao próprio Gilliatt. Já não era,
como na angra do Homem, uma questão de movimento de leme; era preciso ao mesmo
tempo entrar, puxar, remar e sondar. Gilliatt empregou nisso nada menos de um
quarto de hora, mas conseguiu.
Em
quinze ou vinte minutos a pança ficou colocada debaixo da Durande. Ficou quase
atravessada. Gilliatt, por meio de duas âncoras, segurou a pança. A maior ficou
colocada de modo a trabalhar com o vento mais forte, que era o vento de oeste,
depois, por meio de uma alavanca e de um cabrestante, Gilliatt passou para a
pança as duas caixas, contendo as rodas desmontadas, cujos cabos de guindar
estavam prontos. As duas caixas fizeram lastro.
Desembaraçado
das duas caixas, Gilliatt prendeu ao gancho da corrente do cabrestante o cabo
regulador destinado a conter os guindastes.
Para
a obra de Gilliatt os defeitos da pança tornavam-se qualidades; não tinha
coberta, o carregamento achava mais fundo e podia pousar no porão. Era
mastreada na proa, muito na proa talvez, o carregamento achava mais facilidade
e o mastro ficava fora da máquina, de modo que nada impedia a saída; era uma
espécie de concha, e nada mais estável e sólido no mar corno uma concha.
De
repente Gilliatt viu que a maré enchia. Tratou de ver donde soprava o vento.
CAPÍTULO VII
SURGE UM
PERIGO
Havia
pouca brisa, mas vinha do oeste. É um mau costume do vento no equinócio.
A
maré enchente, conforme o vento que sopra, comporta-se diversamente no escolho
Douvres. Conforme o vento, a onda entra naquele corredor ou por leste ou por
oeste. Se o mar entra por leste a água é boa e mole, se entra por oeste é
furiosa. A razão disto é que o vento de leste, vindo de terra, tem pouco
alento, enquanto que o vento de oeste, que atravessa o Atlântico, traz consigo
o sopro da imensidade. Mesmo quando a brisa é fraca assusta quando vem do
oeste. Rola largas ondas da extensão ilimitada e cospe grossas vagas no
estreito.
A
água que se engolfa é sempre terrível. A água é como a multidão; uma multidão é
um líquido; quando a quantidade que pode entrar é menor que a quantidade que
deseja entrar, a multidão machuca-se e a água convulsiona-se. Enquanto sopra o
vento do poente, ainda a mais fraca brisa, há nas Douvres este assalto duas
vezes por dia. A maré levanta-se, a rocha resiste, a abertura é pequena, a onda
entrando à força, salta e ruge, e um marulho enraivecido bate as duas fachadas
internas da viela. De modo que as Douvres, ao menor vento do oeste, oferecem
este espetáculo singular: no mar, calma, no escolho, tempestade. Esse tumulto
local e circunscrito não é uma tormenta; é apenas uma revolta de vagas, mas
terrível. Quanto aos ventos do norte e do sul, esses fazem pouca ressaca na
garganta do escolho. A entrada por leste, é preciso lembrá-lo, confina com o
rochedo Homem; a abertura temível do oeste fica na extremidade oposta
exatamente entre as duas Douvres.
Nessa
abertura de oeste é que se achava Gilliatt com a Durande naufragada e a pança
ancorada.
Parecia
inevitável uma catástrofe, esta catástrofe iminente tinha, embora pouco, o
vento de que precisava.
Dentro
de poucas horas o inchamento do mar que subia, ia naturalmente entrar em grande
luta, no estreito das Douvres. As primeiras vagas já começavam a rugir.
Inchamento esse, refluxo impetuoso de todo o Atlântico que teria atrás de si a
totalidade do mar. Nenhuma borrasca, nenhuma cólera; mas uma simples onda
soberana, contendo em si uma força de impulsão que, partindo da América para
chegar à Europa, tinha 2 000 léguas de jato. Essa onda, barra gigantesca do
oceano, encontraria o hiato do escolho, e, apertada nas duas Douvres, torres de
entrada, pilares do estreito, inchada pela maré, inchada pelo obstáculo,
repelida pelo rochedo, castigada pelo vento, faria violência ao escolho,
penetraria, com todas as torções do obstáculo encontrado, e todos os frenesis
da vaga entravada, entre as duas muralhas, encontraria a pança e a Durande, e
as estrangularia.
Era
preciso um broquel contra essa eventualidade. Gilliatt tinha-o.
Cumpria
impedir que a maré entrasse toda, impedir que esbarrasse embora enchesse,
tapar-lhe a passagem sem recusar-lhe a entrada, resistir-lhe e ceder-lhe,
prevenir a compressão da onda na boca do rochedo, que era o perigo, substituir
a irrupção pela introdução, conter a raiva e a brutalidade da vaga, obrigar
aquela fúria a ser tranquila. Era preciso substituir ao obstáculo que irrita, o
obstáculo que aplaca.
Gilliatt,
com a destreza que tinha, mais forte que a força, executando uma manobra de
cabrito-montês na montanha ou de macaco na floresta, utilizando com saltos
oscilantes e vertiginosos a menor saliência de pedra, pulando na água, nadando
nos redemoinhos, trepando ao rochedo, com uma corda nos dentes, um martelo na
mão, desatou o cabo que prendia à pequena Douvre o pedaço da amurada de proa da
Durande, fez com as pontas da maroma uma espécie de gonzos prendendo aquele
pedaço de madeira aos grandes pregos metidos no granito, fez voltar naqueles
gonzos aquela armadura de tábuas semelhante ao alçapão de um dique, expô-lo em
flanco, como se faz com um leme, à onda que impelia, e aplicou essa extremidade
à grande Douvre, enquanto os gonzos de cordas retinham na pequena Douvre a
outra extremidade; operou na grande Douvre, por meio de pregos, postos de antemão,
a mesma fixação que na pequena, amarrou solidamente essa vasta placa de madeira
ao duplo pilar da abertura, travou nessa barra uma corrente como um talabarte
numa couraça e, em menos de uma hora, levantou-se o obstáculo contra a maré, e
a viela do escolho ficou fechada como por uma porta.
Este
robusto tapamento, pesada massa de pranchas, que deitado seria uma jangada, e
de pé uma parede, foi, com auxílio da vaga, trabalhado por Gilliatt com uma
agilidade de saltimbanco. Podia-se dizer quase que a coisa foi feita antes que
o mar se apercebesse disso.
Era
um desses casos em que Jean Bart dizia o famoso dito que ele dirigia à vaga do
mar, cada vez que esquivava um naufrágio: “Apanhei-te, inglês!” Sabe-se que
Jean Bart quando queria insultar o oceano chamava-o inglês.
Tapado
o estreito, Gilliatt cuidou da pança. Dividiu o cabo nas duas âncoras para que
ela pudesse subir com a maré. Operação análoga a que os antigos marítimos
chamavam: mouiller avec des embossures.
Em
tudo isso Gilliatt não foi surpreendido, o caso estava previsto; um homem do
oficio reconhecê-lo-ia vendo as duas roldanas de guindar metidas por trás da
pança, nas quais passavam dois pequenos cabos cujas pontas estavam presas às
argolas das duas âncoras.
Entretanto,
crescia a maré; já subira a metade; é nesse momento que os choques das ondas,
mesmo plácidos, podem ser rudes. O que Gilliatt combinara realizou-se. A onda
rolava violentamente para a porta, encontrava-a, inchava e passava por cima.
Fora era o marulho. Dentro a infiltração. Gilliatt imaginou alguma coisa
semelhante às forcas caudinas do mar. A maré estava vencida.
CAPÍTULO
VIII
MAIS
PERÍCIA QUE DESENLACE
Chegara
o tremendo instante.
Tratava-se
agora de pôr a máquina na pança.
Gilliatt
ficou pensativo alguns momentos, tendo o cotovelo do braço esquerdo na mão
direita, e a fronte na mão esquerda.
Depois
subiu à Durande, cuja metade, que era a máquina, devia sair e cujo casco devia
ficar.
Cortou
os quatro cabos que prendiam a estibordo e a bombordo as quatro correntes do
cano. Como era corda, bastou-lhe a faca.
As
quatro correntes, livres, ficaram pendentes ao longo do cano.
Do
navio subiu ele ao aparelho que construíra, bateu com o pé em todas as
pranchas, examinou as roldanas, viu as polés, apalpou os cabos, verificou as
emendas, assegurou-se de que o massame não estava profundamente molhado,
certificou-se de que nada faltava, nem estava bambo, depois, pulando do alto
das peças sobre o tombadilho, tomou posição, ao pé do cabrestante, na parte da
Durande que devia ficar nas Douvres. Era esse o seu posto de trabalho.
Grave,
sentindo somente a comoção útil, lançou um último olhar ao aparelho, depois
tomou uma lima e pôs-se a cortar a corrente que sustentava tudo.
Ouvia-se
o ranger da lima no meio do murmúrio do mar.
A
corrente do cabrestante, presa ao cabo regulador, ficava ao alcance da mão de
Gilliatt.
De
repente, houve um estalo. A argola que a lima cortava, já limada por metade,
tinha-se quebrado; todo o aparelho estava solto. Gilliatt teve apenas tempo de
agarrar o grande cabo.
A
corrente quebrada bateu no rochedo, os oito cabos retesaram-se, toda a massa
cerrada e cortada desprendeu-se do navio, abriu-se o ventre da Durande, o
assoalho de ferro da máquina, pesando sobre os cabos, apareceu debaixo da quilha.
Se
Gilliatt não tivesse chegado a tempo ao cabo regulador, havia uma queda. Mas a
sua mão terrível estava lá; foi apenas uma descida.
Quando
o irmão de Jean Bart, Pierre Bart, aquele bêbado possante e sagaz, aquele pobre
pescador de Dunquerque que tratava o grande almirante por tu, salvou a galera Langeron,
perdida na baía de Ambleteuse, quando, para tirar aquela pesada massa flutuante
dos cachopos da baía furiosa, amarrou a vela grande com juncos marinhos, quando
ele quis que os juncos, quebrando-se por si, abrissem a vela ao vento, fiou-se
na rotura dos juncos, como Gilliatt na fratura da corrente, foi a mesma
estranha audácia coroada pela mesma vitória surpreendente.
A
corda motora, segura por Gilliatt, operou admiravelmente. Devem lembrar-se de
que essa corda tinha por fim diminuir as forças convertidas em uma só e
reduzidas a um movimento de conjunto. Aquela corda tinha alguma relação com uma
bolina; somente em vez de orientar uma vela, equilibrava um maquinismo.
Gilliatt,
de pé e com a mão no cabrestante, tinha por assim dizer a mão no pulso do
aparelho.
Aqui
a invenção de Gilliatt manifestou-se toda.
Produziu-se
uma notável coincidência de forças.
Enquanto
a máquina da Durande separada em massa, descia para a pança, a pança subia para
a máquina. O navio naufragado e o barco salvador, ajudando-se em sentido
inverso, iam encontrando-se. Poupava-se, deste modo, metade do trabalho.
A
maré, enchendo sem rumor entre as duas Douvres, levantava a embarcação e
aproximava-a da Durande. A maré estava mais que vencida, estava domesticada. O
oceano fazia parte do maquinismo.
A
vaga subindo, levantava a pança sem choque, brandamente, quase com precaução e
como se ela fosse de porcelana.
Gilliatt
combinava e proporcionava os dois trabalhos, o da água e do aparelho, e,
imóvel, no cabrestante, espécie de estátua temível, obedecida por todos os
movimentos ao mesmo tempo, regulava a lentidão da descida pela lentidão da
subida.
Nenhum
abalo na água, nenhum balanço nas pranchas. Era uma estranha colaboração de
todas as forças naturais dominadas. De um lado a gravitação levava a máquina;
do outro a maré trazia o barco. A atração dos astros, que é o fluxo, e a
atração do globo, que é a gravidade, pareciam harmonizar-se para servir a
Gilliatt. A sua subordinação não tinha hesitação nem parada, e, debaixo da
pressão de uma alma, aquelas duas potências passivas tornavam-se ativas
auxiliares. A obra caminhava de minuto a minuto; o intervalo entre a pança e a
Durande diminuía insensivelmente. Fazia-se a aproximação em silêncio e com uma
espécie de terror pelo homem que estava ali. O elemento recebia uma ordem e
executava-a.
Quase
no momento em que a maré cessou de subir, os cabos cessaram de correr
subitamente, mas sem comoção; as roldanas pararam. A máquina, como se fosse
colocada a mão, assentou-se no fundo da pança. Estava direita, de pé, imóvel,
sólida. A placa que a sustentava apoiava-se com os seus quatro ângulos e a
prumo no porão.
Estava
pronto.
Gilliatt
olhou atônito.
A
pobre criatura não tinha tido muitas alegrias em sua vida. Sentiu o
alquebramento de uma imensa felicidade. Dobravam-se-lhe os membros; e diante do
seu triunfo, ele que não se perturbara até então, começou a tremer.
Contemplou
a pança debaixo do navio e a máquina dentro da pança. Parecia não acreditar.
Dissera-se que ele não contava com aquilo. Saíra-lhe um prodígio das mãos, e
ele contemplava-o com espanto.
Mas
esse espanto durou pouco.
Gilliatt
teve o movimento de um homem que desperta, travou da serra, cortou os oito cabos,
depois, separado agora da pança apenas uns 10 pés, deu um salto, caiu dentro,
pegou em um rolo de fio, fez quatro cabos, passou-os nas argolas preparadas de
antemão e prendeu por ambos os lados da pança as quatro correntes do cano que
uma hora antes ainda estavam presas na amurada da Durande.
Amarrada
ao cano, Gilliatt desembaraçou a parte superior da máquina. Um pedaço do
tombadilho da Durande ainda ali estava preso. Gilliatt despregou-o e limpou a
pança daquela porção de tábuas e vergas que atirou sobre os rochedos. Útil
alívio.
Demais,
como é de prever, a pança sustentou com firmeza a carga da máquina. Mergulhou
muito pouca coisa. A máquina da Durande, embora maciça, era menos pesada que o
montão de pedras e o canhão trazido outrora de Herm pela pança.
Tudo
estava acabado. Só restava ir-se embora.
CAPÍTULO IX
INTERROMPE-SE
O ÊXITO
Nem
tudo estava acabado.
Abrir
a entrada das Douvres, fechada pelo pedaço da amurada da Durande, e levar
imediatamente a pança para fora do escolho, nada mais claro do que isto.
No
mar todos os minutos são urgentes. Pouco vento, apenas uma ruga ao longe; a
bela tarde prometia uma bela noite. O mar era de rosas, mas o refluxo começava;
excelente momento para partir. Gilliatt teria a vazante para sair das Douvres,
e a enchente para entrar em Guernesey. Podia estar em Saint-Sampson de
madrugada.
Mas
apresentou-se um obstáculo inesperado. Houve uma lacuna na previdência de
Gilliatt.
A
máquina estava livre, o cano estava preso.
A
maré, aproximando a pança da Durande, tinha diminuído os perigos da descida;
mas essa diminuição do intervalo deixou a parte superior do cano metida na
espécie de quadro que apresentava o bojo aberto da Durande. O cano estava preso
como entre quatro paredes.
O
serviço prestado pelo mar complicava-se com esta dissimulação. Parece que o
mar, obrigado a obedecer, teve uma segunda tenção.
É
verdade que aquilo que a enchente fizera ia desfazê-lo a vazante.
O
cano, tendo mais de 3 toesas de altura, tinha uns 8 pés metidos na Durande; o nível
da água aí baixaria 12 pés; o cano, descendo com a pança, teria 4 pés de espaço
acima de si, e poderia sair.
Mas
quanto tempo era preciso para isto? Seis horas.
Daí
a seis horas seria meia-noite. Que meio tentaria Gilliatt para sair àquela
hora, que canal tomaria através daqueles cachopos, já tão inextrincáveis de
dia, e como arriscar-se no meio da noite em semelhante emboscada de bancos de
pedras?
Era
força esperar até o dia seguinte. Aquelas seis horas perdidas faziam perder ao
menos doze horas.
Era
mesmo necessário não adiantar trabalho abrindo a entrada ao cachopo. O
tapamento era preciso até a maré próxima.
Gilliatt
devia repousar.
Cruzar
os braços era a única coisa que ele não tinha feito desde que estava no escolho
Douvres.
Irritou-o,
indignou-o quase, como se fosse culpa dele, aquele descanso. Disse consigo:
“Que pensaria de mim Déruchette se me visse aqui sem fazer nada?”
Contudo,
não lhe era inútil refazer as forças.
Estando
a pança à sua disposição, Gilliatt resolveu passar a noite a bordo.
Foi
buscar a pele de carneiro no alto da grande Douvre, desceu, comeu algumas
conchas e duas ou três castanhas do mar, bebeu por ter muita sede os últimos
goles da água doce do pichel quase vazio, embrulhou-se na pele cuja lã deu-lhe
prazer ao corpo, deitou-se como um cão de guarda ao pé da máquina, abaixou o
chapéu sobre os olhos e adormeceu.
Dormiu
profundamente. Tem-se daqueles sonos depois das obras acabadas.
CAPÍTULO X
AS
ADVERTÊNCIAS DO MAR
No
meio da noite, bruscamente, e como por mola, Gilliatt acordou.
Abriu
os olhos.
As
Douvres, acima da cabeça dele, estavam iluminadas como pela reverberação de uma
grande brasa branca. Havia em toda a fachada negra do escolho um reflexo de
fogo.
Donde
vinha o fogo?
Da
água.
O
mar estava extraordinário.
Parecia
que a água incendiava-se. Onde os olhos alcançavam, no escolho e fora do
escolho, flamejava o oceano. Não era uma flama vermelha; não se parecia com a
grande flama viva das crateras e das fornalhas. Nenhuma crepitação, nenhum
ardor, nenhum avermelhado, nenhum ruído. Rastilhos azulados imitavam na água as
dobras de uma mortalha. Um grande clarão lívido estremecia na água. Não era
incêndio; era o espectro dele.
Era
uma coisa semelhante ao abrasamento lívido do interior de um sepulcro por uma
chama ideal.
Imaginai
trevas acesas.
A
noite, a vasta noite turva e difusa, parecia ser um combustível daquele fogo
gelado. Era uma claridade feita de cegueira. A sombra entrava como elemento
naquela luz fantasma.
Os
marinheiros da Mancha conhecem todas essas indescritíveis fosforescências, que
advertem o navegante. Em parte alguma são mais surpreendentes do que no Grande
V, perto de Isigny.
Diante
desta luz as coisas perdem a realidade. Uma penetração fantástica torna-as como
que transparentes. Os rochedos são apenas lineamentos. Os cabos das âncoras
parecem barras de ferro ardentes. As redes dos pescadores parecem um crivo de
fogo debaixo da água. Metade do remo é de ébano, a outra metade debaixo da água
é de prata. Os pingos da água que caem dos remos fazem estrelas no mar. Todos
os barcos arrastam um cometa. Os marinheiros molhados e luminosos parecem
homens que ardem. Mergulha-se a mão no mar e sai calçada de chama: é uma chama
morta, não se sente. O braço parece um tição aceso. Vêem-se as formas que estão
no mar rolarem debaixo das vagas alumiadas. A espuma cintila. Os peixes são
línguas de fogo e uns pedaços de relâmpago serpenteiam naquela pálida
profundidade.
Gilliatt
acordou porque o clarão atravessou-lhe as pálpebras fechadas.
Acordou
a tempo.
A
maré tinha descido; começava a encher de novo.
O
cano da máquina, solto durante o sono de Gilliatt, ficou outra vez preso no
casco do navio.
Subia
lentamente.
Mais
palmo e meio, e o cano estaria dentro da Durande.
Para
isso ainda havia meia hora. Gilliatt, se quisesse aproveitar a ocasião, tinha
essa meia hora diante de si.
Levantou-se
sobressaltado.
Por
mais urgente que fosse a situação, ele não pôde deixar de ficar alguns
instantes de pé, contemplando a fosforescência e meditando.
Gilliatt
conhecia o mar a fundo. Embora tivesse sido muito maltratado por ele, o mar era
já de muito tempo companheiro de Gilliatt. Aquele ente misterioso que se chama
oceano não podia ter nenhuma ideia que Gilliatt não a adivinhasse. Gilliatt, à
força de observação, de cisma e de solidão, tornara-se um vidente do tempo,
aquilo que se chama, em inglês, um wheater wise.
Gilliatt
correu às amarras e guindou-as; depois, já não estando retido pelas âncoras,
travou do croque da pança e, apoiando-se nas rochas, afastou-a para fora
algumas braças distante da Durande perto do tapamento de tábuas. Havia rang,
corno dizem os marítimos de Guernesey. Em menos de dez minutos a pança estava
fora do casco. Já não havia receio de que o cano pudesse ficar preso.
Entretanto,
Gilliatt não se mostrava disposto a partir.
Contemplou
ainda a fosforescência e levantou as âncoras, mas não era para navegar, era
para ancorar de novo a pança, e muito solidamente; é verdade que o barco ficou
junto da porta.
Até
então só tinha usado das duas âncoras da pança, e não tinha ainda empregado a
pequena âncora da Durande, achada, como se sabe, nos cachopos. Essa colocou-a
ele, pronta para as urgências, num canto da pança entre maromas e polés, e
juntamente o cabo guarnecido de boças. Gilliatt deitou ao mar essa terceira
âncora, tendo cuidado de prender o cabo a outro cabo pequeno, cuja ponta
passava na argola da âncora, ficando a outra ponta no ferro de guindar. Deste
modo amarrou a pança com três âncoras, o que era mui forte. Indicava isto uma
viva preocupação e um redobrar de cautelas. Qualquer marinheiro reconheceria,
nessa operação, alguma coisa semelhante a um deitar ferros obrigado, quando há
a recear uma corrente que possa fazer garrar o navio.
A
fosforescência sobre a qual Gilliatt tinha os olhos fixos ameaçava-o talvez,
mas ao mesmo tempo servia-o. Se não fosse ela, Gilliatt era prisioneiro do sono
e vítima da morte. Ela não só o despertou, senão que o alumiava também.
Havia
no escolho uma luz opaca. Mas esse clarão, por mais assustador que parecesse a
Gilliatt, foi-lhe útil porque tornou-lhe o perigo visível e a manobra possível.
Agora,
quando Gilliatt quisesse abrir vela, a pança, carregando a máquina, estava
livre.
Somente
Gilliatt parecia pensar cada vez menos em partir. Ancorada a pança, foi ele
buscar a mais forte corrente que tinha no depósito e prendeu-a nos pregos
metidos nas duas Douvres, fortificou com ela o baluarte de vergas e barrotes já
protegido pelo lado de fora pela outra corrente. Longe de abrir caminho,
Gilliatt tapava-o.
A
fosforescência ainda iluminava, mas ia diminuindo. É verdade que o dia começava
a romper.
De
repente, Gilliatt prestou ouvidos.
CAPÍTULO XI
PARA UM
BOM ENTENDEDOR MEIA PALAVRA BASTA
Pareceu-lhe
ouvir, imensamente longe, um quê de fraco e indistinto.
As
profundezas, em certas horas, têm um certo rugido.
Gilliatt
atentou pela segunda vez. O rumor longínquo recomeçou. Gilliatt sacudiu a
cabeça como quem sabia o que era.
Momentos
depois, estava ele na outra extremidade da viela do escolho, na entrada de
leste, livre até ali, e com grandes marteladas meteu grossos pregos no granito
dos portais daquela abertura vizinha do rochedo Homem.
Os
buracos desses rochedos estavam preparados e guarnecidos de cavilhas de
madeira, quase tudo carvalho. O escolho desse lado estava escalavrado, tinha
muitas fendas, e Gilliatt pôde meter aí mais pregos ainda que no esvaziamento
das Douvres.
Num
momento dado, e como se lhe soprassem de cima, a fosforescência apagou-se; o
crepúsculo, cada vez mais luminoso, substituía-a.
Metidos
os pregos, Gilliatt arrastou umas pranchas, depois cordas, depois correntes, e,
sem desviar os olhos do trabalho, sem se distrair um momento, começou a
construir na abertura do Homem, com tábuas fixadas horizontalmente e presas por
cabos, um desses tapamentos de clarabóia, que a ciência já adotou, e qualifica
de quebra-mar.
Os
que viram, por exemplo, na Rocquaine em Guernesey, ou no Bouryd’eau na França,
o efeito que fazem algumas estacas pregadas no rochedo, compreendem a força
desses trabalhos símplices. O quebra-mar é a combinação daquilo que na França
se chama epi e daquilo que na Inglaterra se chama dick. O
quebra-mar são os cavalos de frisa das fortificações contra as tempestades. Não
se pode lutar contra o mar senão aproveitando a divisibilidade dessa força.
Entretanto,
levantara-se o sol, perfeitamente puro. O dia estava claro, o mar calmo.
Gilliatt
apressava o trabalho. Também ele estava calmo, mas na sua pressa havia
ansiedade.
Passava,
em grandes pulos, de rocha em rocha, do tapamento ao depósito e do depósito ao
tapamento. Voltava puxando apressadamente, ora um gancho, ora um cabo.
Manifestou-se então a necessidade daquele depósito de destroços. Era evidente
que Gilliatt estava diante de uma eventualidade prevista.
Uma
forte barra de ferro servia-lhe de alavanca para mover os barrotes.
O
trabalho executava-se tão depressa que mais parecia um crescimento que uma
construção. Quem não viu trabalhar um portageiro militar não pode fazer ideia
daquela rapidez.
A
abertura de leste era ainda mais estreita que a de oeste. Tinha apenas 5 ou 6
pés de largura. A estreiteza ajudava Gilliatt. Sendo estreito o espaço que
tinha de fortificar e fechar, a armadura seria mais sólida e podia ser mais
simples. Bastavam, pois, vigas horizontais; as peças verticais eram inúteis.
Postos
os primeiros travessões do quebra-mar, Gilliatt trepou em cima e escutou.
O
rugido tornava-se expressivo.
Gilliatt
continuou a construção. Acrescentou-lhe dois cepos da Durande ligados às pontas
das vigas com driças passadas nas três rodas das polés. Ligou tudo com
correntes.
Essa
construção era nada menos que uma espécie de grade colossal; as pranchas eram
as tenazes e as correntes eram os vimes.
Parecia
entrançado como parecia construído.
Gilliatt
multiplicou os laços e pôs mais pregos onde era preciso.
Tendo
muito ferro redondo na Durande, pôde fazer uma grande provisão desses pregos.
Ao
mesmo tempo que trabalhava ia mastigando biscoito. Tinha sede, mas não podia
beber, por já não ter água doce. Esgotara o pichel na noite anterior.
Acrescentou
ainda quatro ou cinco tábuas, depois trepou em cima de tudo. Escutou.
Cessou
o rumor ao longe e calava-se tudo.
O
mar estava manso e soberbo; merecia todos os madrigais que lhe dirigem os
burgueses quando estão contentes com ele — um espelho, um mar de rosas, um
tanque, um mar de leite. O azul profundo do céu correspondia ao verde profundo
do oceano. Aquela safira e aquela esmeralda podiam admirar-se ambas. Não tinham
de que exprobrar-se. Nenhuma nuvem em cima, nenhuma espuma embaixo. No meio
desse esplendor subia magnificamente o sol de abril. Era impossível ver mais
belo dia.
No
extremo horizonte uma fila negra de aves de arribação atravessava o céu. Iam depressa.
Dirigiam-se para a terra. Parecia uma fuga.
Gilliatt
continuou a levantar o quebra-mar.
Levantou-o
o mais que pôde, tão alto como lhe permitiu a curvatura dos rochedos.
Ao
meio-dia, o sol pareceu-lhe mais quente do que devia estar. Meio-dia é a hora
crítica do dia. Gilliatt, de pé na robusta clarabóia que acabava de construir,
entrou a contemplar a extensão.
O
mar estava mais que tranquilo, estava estagnado. Não se via uma vela. O céu
estava límpido; somente o azul tornara-se mais branco. Era um branco singular.
No horizonte, a oeste, havia uma manchazinha de aparência ruim. Essa mancha
estava imóvel, mas crescia. Junto dos cachopos o mar palpitava brandamente.
Gilliatt
fizera bem em construir o quebra-mar.
Aproximava-se
uma tempestade.
O
abismo resolvera dar batalha.
LIVRO
TERCEIRO
A LUTA
CAPÍTULO
PRIMEIRO
O EXTREMO
TOCA O EXTREMO E O CONTRÁRIO ANUNCIA O CONTRÁRIO
Nada
tão ameaçador corno o equinócio que retarda.
Há
no mar um fenômeno medonho que se pode chamar a chegada dos ventos do largo.
Em
todas as estações, especialmente na época das sizígias, no momento em que menos
se espera, o mar apresenta uma súbita e estranha tranquilidade. Aplaca-se
aquele prodigioso movimento contínuo; cai em madorna e languidez; parece que
vai descansar; crer-se-ia que está fatigado. Todos os trapos marinhos, desde as
flâmulas de pesca, até às insígnias de guerra, pendem ao longo dos mastros. Os
pavilhões almirantes, reais, imperiais, dormem todos.
De
repente esses panos começam a mexer-se discretamente.
É
a hora, se há nuvens, de espreitar a formação dos cirros; se o sol se põe, é a
hora de examinar a cor da tarde; se é de noite e há luar, é a hora de estudar
as auréolas planetárias.
Nessa
hora, o capitão ou chefe de esquadra que tem a fortuna de possuir um desses
vidros de tempestade, cujo inventor não se conhece, observa o vidro com o
microscópio e toma as suas precauções contra o vento do sul, se a mistura tem
aspecto de açúcar fundido; e contra o vento do norte, se a mistura se esfolha
em cristalizações semelhantes aos tufos de ervas ou aos bosques de pinheiro.
Nessa hora, depois de ter consultado o gnomo misterioso gravado pelos romanos,
ou pelos demônios, numa dessas estreitas pedras enigmáticas que na Bretanha se
chamam menires, e na Irlanda cruachs, o pobre pescador irlandês ou
bretão retira a sua barca do mar.
Persiste
entretanto a serenidade do céu e do oceano. A manhã rompe radiosa e a aurora
sorri, o que enchia de religioso horror os antigos poetas e os antigos
adivinhos, assustados de que se pudesse crer na deslealdade do sol. Solem
quis dicere falsum audeat?
A
sombria visão do possível latente é interceptada ao homem pela opacidade fatal
das coisas. O mais temível e o mais pérfido aspecto é a máscara do abismo.
Diz-se:
anguis in herba; devia dizer-se: borrasca na calma.
Assim
se passam horas e, às vezes, dias. Os pilotos assestam os seus óculos. O rosto
dos velhos marinheiros tem um ar de severidade que se prende à cólera secreta
da expectação.
De
súbito ouve-se um grande murmúrio confuso. Há uma espécie de diálogo misterioso
no ar.
Não
se vê coisa alguma.
A
extensão fica impassível.
Entretanto
o rumor cresce, engrossa, eleva-se. Acentua-se o diálogo.
Há
alguém por trás do horizonte.
Pessoa
terrível essa, é o vento.
O
vento, isto é, a população de titãs que chamamos Tufões.
Imensa
plebe da sombra.
A
Índia chamava-os Morouts, a Judéia Querubins, a Grécia Aquilões. São os
invisíveis pássaros ferozes do infinito. Esses Bóreas precipitam-se.
CAPÍTULO II
OS VENTOS
DO LARGO
Donde
vêm eles? Do incomensurável. Os seus grandes vôos exigem o diâmetro do golfão.
As suas asas desmedidas precisam das solidões indefinidas. O Atlântico, o
Pacífico, essas vastas aberturas azuis, eis o que lhes convém. Fazem-nas sombrias.
Voam em bandos. O Comandante Page viu de uma vez, no mar alto, sete trombas a
um tempo. Aí são medonhas. Premeditam os desastres. Têm por trabalho deles o
intumescimento efêmero e eterno dos vagalhões. Ignora-se o que eles podem,
desconhece-se o que eles querem. São as esfinges do abismo; e Vasco da Gama é o
seu Édipo. Faces de nuvens aparecem nessa obscuridade da extensão sempre em
movimento. Quem descobre os seus lineamentos lívidos nessa dispersão que é o
horizonte do mar sente-se em presença da força irredutível. Dissera-se que a
inteligência humana os assusta, e eriçam-se contra ela. A inteligência é
invencível, mas o elemento é indomável. Que fazer contra a ubiquidade que se
não sujeita! O vento faz-se massa e torna-se vento outra vez. Os ventos combatem
esmagando e defendem-se esvaindo-se.
Quem
depara com eles só pode lançar mão de expedientes. Eles frustram-nos pelo
assalto diverso e repercutido. Tanto atacam como fogem. São os impalpáveis
tenazes. Como vencê-los? A proa do navio Argo, esculpida em um carvalho de
Dodona, ao mesmo tempo proa e piloto, costumava falar-lhes. Eles maltratavam
aquela proa deusa. Cristóvão Colombo, vendo-os vir de encontro à Pinta, subiu
ao tombadilho e dirigiu-lhes os primeiros versículos do Evangelho de São João.
Surcouf insultava-os. “Aí vem a pandilha”, dizia ele. Napier descarregava-lhes
tiros em cima. Eles têm a ditadura do caos.
Têm
o caos. Que fazem dele? Fazem uma coisa implacável. A cova dos ventos é mais
monstruosa que a cova dos leões. Quantos cadáveres debaixo dessas dobras sem
fundo! Os ventos empurram sem piedade a grande massa obscura e amarga. A gente
os ouve sempre, mas eles não ouvem a ninguém. Cometem coisas que parecem
crimes. Não se sabe sobre quem atiram eles os punhados brancos de espuma. Que ferocidade
ímpia no naufrágio! Que afronta à Providência! Às vezes parecem que cospem em
Deus. São os tiranos dos lugares desconhecidos. “Luoghi spaventosi”, murmuravam
os marinheiros de Veneza.
Os
espaços trêmulos suportam os seus ataques. É inexprimível o que se passa nesses
grandes abandonos. Mistura-se à sombra um elemento equestre. O ar faz um rumor
de floresta. Não se vê nada, mas ouve-se um ruído de cavalos. É meio-dia, de
súbito anoitece; passa um tornado; é meia-noite, de repente esclarece, acende-se
o eflúvio polar. Alternam em sentido inverso os turbilhões, espécie de dança
hedionda, tripúdio dos flagelos sobre o elemento. Quebra-se pelo meio uma
pesada nuvem, e os pedaços vão precipitar-se no mar. Outras nuvens,
purpureadas, iluminam e roncam, depois escurecem lugubremente; a nuvem,
esvaziada de raio, é carvão apagado. Sacos de chuva rompem-se em bruma.
Fornalha em que chove, onda que vomita luz. As nuvens do mar debaixo do
aguaceiro iluminam surpreendentes quadros; desfiguram-se espessuras onde se
reproduzern as semelhanças. Monstruoso umbigo vai rompendo as nuvens. Volteiam
os vapores, saracoteiam as vagas; rolam embriagadas as náiades; a perder de
vista, o mar maciço e mole move-se sempre sem jamais deslocar-se; tudo é
lívido; desesperados gritos sobem desse palor.
No
fundo da obscuridade inacessível tremem grandes germes de sombra. De quando em
quando há paroxismo. O rumor torna-se tumulto, do mesmo modo que a vaga se
torna marulho. O horizonte, superposição confusa de vagas, oscilação sem fim,
murmura continuamente; ali arrebentam estranhamente uns arremessos de fracasso;
parece-se ouvir as hidras espirrando; sopram hálitos frios, seguem-se hálitos
quentes. A trepidação do mar anuncia um medo que tudo espera. Inquietação.
Angústia. Terror profundo das águas. Subitamente, o furacão, como uma besta,
desce a beber no oceano; sorvo inaudito, a água sobe para a boca invisível,
forma-se uma ventosa, incha o tumor; é a tromba, o Prester dos antigos,
estalactite em cima, estalagmite embaixo, duplo cone inverso girante, uma ponta
equilibrada em cima de outra, beijo de duas montanhas, uma montanha de espuma
que se levanta, uma montanha de nuvem que desce; coito medonho da vaga e da
sombra. A tromba, como a coluna da Bíblia, é tenebrosa de dia e luminosa de
noite. Diante da tromba cala-se o trovão. Parece que tem medo.
Há
uma escala, na vasta turvação das solidões; temível crescendo; a brisa, a
lufada, a borrasca, o temporal, a tormenta, a tempestade, a tromba; as sete
cordas da lira do vento, as sete notas do abismo. O céu é uma largura, o mar é
um arredondado; passa um vento, já não há nada disso, tudo é fúria e confusão.
Tais
são aqueles severos sítios.
Os
ventos correm, voam, abatem-se, expiram, revivem, pairam, asso-viam, rugem,
riem: frenéticos, lascivos, desvairados, tomam conta da vaga irascível. Têm
harmonia esses berradores. Tornam sonoro todo o céu. Sopram nas nuvens como num
metal; embocam o espaço, e cantam no infinito, com todas as vozes amalgamadas
dos clarins, buzinas e trombetas, uma espécie de tangeres prometeanos. Quem os
ouve, ouve Pã. O que mais assusta é vê-los assim. Têm uma colossal alegria
composta de sombra. Fazem nas solidões a batida dos navios. Sem tréguas, noite
e dia, em todas as estações, no trópico, como no pólo, tocando a trombeta
delirante, vão eles, por meio do travamento da nuvem e da vaga, fazendo a
grande caça negra dos naufrágios. São os donos das matilhas. Divertem-se. Fazem
ladrar as ondas, que são os seus cães, contra as rochas. Combinam e desunem as
nuvens. Amassam, como se tivessem milhões de mãos, a flexibilidade da água
imensa.
A
água é flexível porque é incompressível. Resvala debaixo do esforço. Apertada
por um lado, escapa por outro. É assim que a água se faz onda. A vaga é a sua
liberdade.
CAPÍTULO III
EXPLICAÇÃO
DO RUMOR OUVIDO POR GILLIATT
A
grande aproximação dos ventos para a terra faz-se nos equinócios. Nessas épocas
o grande balanço do trópico e do pólo e a colossal maré atmosférica derramam o
seu fluxo em um hemisfério, e o refluxo em outro. Há constelações que
significam esses fenômenos. Libra e Aquário. É a hora das tempestades.
O
mar espera silencioso.
Às
vezes o céu tem feio aspecto. Fica baço, e como que coberto por um grande pano
obscuro; os marinheiros contemplam ansiosos o ar oprimido de sombra.
Mas
o que eles temem é o ar alegre. Céu risonho no equinócio é a tempestade com pés
de lã. Com céus desses, a Torre das Carpideiras de Amsterdão enchia-se de
mulheres que examinavam o horizonte.
Quando
se demora a tempestade invernal ou outonal é que está ajuntando uma massa ainda
maior. Entesoura para destruir. Desconfia da acumulação de juros. Ango dizia:
“O mar é bom pagador”.
Quando
a demora é demasiado longa, o mar trai a sua impaciência pela calma. Somente a
tensão magnética se manifesta naquilo que se pode chamar a inflamação da água.
Rompem clarões da vaga. Ar elétrico, água fosfórica. Os marinheiros sentem-se
estafados. É uma hora especialmente perigosa para os encouraçados; o casco de
ferro pode produzir falsas indicações da bússola e perdê-los. Assim pereceu o
paquete transatlântico Yowa.
Para
os que estão familiarizados com o mar, o seu aspecto nesses momentos é
estranho; dissera-se que o mar deseja e receia o ciclone. Certos himeneus,
aliás impostos pela natureza, são acolhidos assim. A leoa desejosa foge diante
do leão. Também a água tem o seu calor, e daí lhe vem o estremecimento.
Vai
realizar-se o imenso consórcio.
Este
consórcio, como as núpcias dos antigos imperadores, celebra-se com
exterminações. É uma festa temperada de desastres.
Atenção,
aí vem o fato equinocial.
Conspira
a tempestade. A velha mitologia entrevia essas personalidades indistintas
misturadas à grande natureza difusa. Éolo harmoniza-se com Bóreas. O acordo do
elemento com o elemento é necessário. Distribuem entre si a tarefa. Há
impulsões para a vaga, para a nuvem, para o eflúvio; a noite é um auxiliar;
deve ser empregada. Há bússolas para desviar, faróis para apagar, estrelas para
esconder. É preciso que o mar coopere. Todas as tempestades são precedidas de
um murmúrio. Por trás do horizonte há o cochicho prévio dos furacões.
É
o que se ouve, na obscuridade, ao longe, por cima do silêncio assustado do mar.
Gilliatt
ouviu esse cochichar tremendo. A fosforescência foi a primeira advertência; o
rumor foi a segunda.
Se
existe o demônio Legião, esse demônio é o Vento, com certeza.
O
vento é múltiplo, mas o mar é um.
Daí
esta consequência: toda tempestade é mista. A unidade de ar o exige.
Abismo
implica tempestade. O oceano inteiro está numa borrasca. A totalidade das suas
forças entra em linha e toma parte nela. Uma vaga é o golfão de baixo; um tufão
é o golfão de cima. Lutar com uma tempestade é lutar com o mar inteiro e o céu
inteiro.
Messier,
o homem da marinha, o astrônomo pensativo da choça de Cluny, dizia: “O vento de
toda a parte está em todas as partes”. Ele não acreditava nos ventos presos,
mesmo nos mares fechados. Para ele não havia ventos mediterrâneos. Dizia que os
conhecia na passagem. Afirmava que em tal dia, a tal hora, o Fohn do lago de
Constança, o antigo Favônio de Lucrécio, atravessara no horizonte de Paris; em
outro dia era o Bora do Adriático; em outro era o Noto giratório que se
pretende estar encerrado nas Cícladas. Especificava os eflúvios. Não pensava
que o vento que gira entre Malta e Túnis e o vento que gira entre a Córsega e
as Baleares estivessem na impossibilidade de se libertarem. Não admitia os
ventos, como ursos, fechados em jaula. Dizia: “Todas as chuvas vêm do trópico,
e todos os raios do pólo”. O vento, com efeito, satura-se de eletricidade na
intercessão dos coluros, que marca as extremidades do eixo, e da água no
equador; traz-nos da linha o líquido e dos pólos o fluido.
Ubiquidade
é o vento.
Não
quer isto dizer que não existam as zonas dos ventos. Nada mais demonstrado que
as correntes contínuas, e dia virá em que a navegação aérea, servida pelos
navios do ar (air-navires) que chamamos, por mania de grego, aeróscafos,
utilizará as linhas principais. A canalização do ar pelo vento é incontestável:
há rios de vento, ribeiros de vento, riachos de vento; somente ao invés das
ramificações da água, são os riachos que saem dos ribeiros, e os ribeiros que
saem dos rios, em vez de serem afluentes: em vez de concentração, dispersão.
Essa
disposição é que faz a solidariedade dos ventos e a unidade da atmosfera. Uma
molécula deslocada desloca outra molécula. Os ventos agitam todos juntos. A
estas profundas causas do amálgama, acrescentai o relevo do globo, rasgando a
atmosfera com todas as suas montanhas, fazendo nós e torções nas carreiras do
vento e determinando em todos os sentidos as contracorrentes. Irradiação
ilimitada.
O
fenômeno do vento é a oscilação de dois oceanos um sobre outro; o oceano do ar,
sobreposto ao oceano de água, apóia-se nessa fuga e vacila nessa vacilação.
O
indivisível não usa compartimentos. Não há tabique entre uma onda e outra. As
ilhas da Mancha sentem o empurrão do cabo da Boa Esperança. A navegação
universal faz frente a um monstro único. Todo o mar é uma só hidra. As vagas cobrem
o mar de uma espécie de escama. Oceano é Ceto.
Nessa
unidade abate-se o inumerável.
CAPÍTULO IV
“TURBA,
TURMA”
Para
a bússola há 32 ventos, isto é, 32 direções; mas essas direções podem
subdividir-se indefinidamente. O vento, classificado por direções, é o
incalculável; classificado por espécie, é o infinito.
Homero
recuaria ante esse recenseamento.
A
corrente polar roça na corrente tropical. Eis o frio e o calor combinados, o
equilíbrio começa pelo choque, sai a onda dos ventos, inchada, esparsa e toda
dilacerada em jorros medonhos. A dispersão dos tufões sacode nos quatro cantos
do horizonte o prodigioso esgadelhado do ar.
Aí
estão todos os rumos; o vento da Gulf Stream, que despeja tanta névoa na Terra
Nova; o vento do Peru, região de céu mudo onde jamais se ouviram trovoadas; o
vento da Nova Escócia, onde voa o grande Auk, Alca impennis, de bico riscado;
os turbilhões de Ferro dos mares da China; o vento de Moçambique que maltrata
os juncos; o vento elétrico do Japão denunciado pelo gongo; o vento da África
que habita entre a montanha da Mesa e a montanha do Diabo, e que se desencadeia
daí; o vento do equador que passa por cima dos ventos regulares, e traça uma
parábola cujo cimo fica a oeste; o vento plutônico que sai das crateras e que é
o temível sopro das chamas; o estranho vento próprio do vulcão Awu que faz
sempre surgir do norte uma nuvem azeitonada; a monção de Java, contra a qual
estão construídas aquelas casamatas chamadas casas do furacão; a brisa
ramificada que os ingleses chamam busk, bebida; os grãos arqueados do
estreito de Malaca observados por Horsburgh; o possante vento de sudoeste,
chamado Pampeiro no Chile, e Rebojo em Buenos Aires, que carrega o condor em
pleno mar e o salva da cova onde o esperava, debaixo de uma pele de boi
arrancada de fresco, o selvagem deitado de costas e retesando o arco com os
pés; o vento químico que, segundo Lemery, faz nas nuvens pedras de trovoadas; o
Harmattan dos cafres; o sopra-nevespolar, que se prende aos eternos gelos e os
arrasta; o vento do golfo de Bengala, que vai até Nijnii-Novogorod devastar o
triângulo das barracas de pau onde se faz a feira da Ásia; o vento das
cordilheiras, agitador das grandes vagas e das grandes florestas; o vento dos
arquipélagos da Austrália onde os caçadores de mel arrancam as colméias
silvestres escondidas nos galhos do eucalipto gigante; o siroco; o mistral; o
hurricane; o vento de seca; os ventos de inundação; os diluvianos; os tórridos;
os que lançam nas ruas de Gênova a poeira das planícies do Brasil; os que
obedecem à rotação diurna; os que a contrariam e fazem dizer a Herrera: “Malo
viento torna contra el sol”; os que vão aos pares, para destruir,
desfazendo um o que o outro faz; e aqueles ventos antigos que assaltaram
Colombo na costa de Veraguas; e os que durante quarenta dias, desde 21 de
outubro a 28 de novembro de 1520, puseram em questão Magalhães abordando o
Pacífico, e os que desfizeram a Armada, e sopraram sobre Filipe II.
Outros
ventos mais, e como achar-lhes o fim? Os ventos carregadores de sapos e
gafanhotos que sopram nuvens e bichos por cima do oceano; os que operam o que
se chama salto de vento, e que têm por tarefa acabar com os náufragos;
os que, com um sopro único, deslocam a carga do navio e o obrigam a continuar
viagem todo inclinado; os ventos que constroem os circum-cúmulos; os ventos que
constroem os circum-estratos; pesados ventos cegos, túmidos de chuva; os ventos
do granizo; os ventos da febre; os ventos cuja aproximação faz ferver os salsos
e os solfatários da Calábria; os ventos que fazem brilhar o pêlo das panteras
da África andando nos espinheiros do cabo de Ferro; os que vêm sacudindo fora
da sua nuvem, como uma língua trigonocéfala, o temível relâmpago de forquilha;
os que trazem neves negras. Tal é o exército.
O
escolho Douvres, no momento em que Gilliatt construía o quebra-mar, ouvia-lhes
o galope longínquo.
Já
o dissemos, o Vento compõe-se de todos os ventos. Acercava-se toda aquela
horda.
De
um lado, essa legião.
Do
outro, Gilliatt.
CAPÍTULO V
GILLIATT
PODE ESCOLHER
As
misteriosas forças escolheram bem o momento.
O
acaso, se é que existe, é hábil.
Enquanto
a pança esteve guardada na angra do Homem, enquanto a máquina esteve metida no
casco da Durande, Gilliatt foi inexpugnável. A pança estava em segurança, a
máquina estava abrigada; as Douvres, que sustentavam a máquina, condenavam-na a
uma destruição lenta, mas protegiam-na contra uma surpresa. Em todos os casos,
ficava a Gilliatt um recurso. A máquina destruída não destruía a Gilliatt.
Tinha a pança para salvar-se.
Mas
esperar que a pança estivesse fora do ancoradouro, onde era inacessível,
deixá-la por entre as Douvres, esperar que ela lá estivesse presa também pelo
escolho, consentir que Gilliatt operasse o salvamento e o transporte da
máquina, não impedir esse maravilhoso trabalho, consentir nesse triunfo, esse
era o laço. Via-se agora, como uma espécie de lineamento sinistro, a sombria
astúcia do abismo.
Agora,
a máquina, a pança, Gilliatt, estavam todos reunidos na viela dos rochedos.
Eram apenas um. A pança esmigalhada no escolho, a máquina metida a pique,
Gilliatt, afogado, era negócio de um esforço único num só ponto. Tudo podia ser
desfeito de uma vez, ao mesmo tempo, e sem dispersão; tudo podia ser destruído
de um lance.
Não
há situação mais crítica do que a de Gilliatt.
A
esfinge possível, que os sonhadores suspeitam estar no fundo da sombra, parecia
propor-lhe este dilema.
Fica
ou parte.
Partir
era insensato, ficar era medonho.
CAPÍTULO VI
O COMBATE
Gilliatt
trepou à grande Douvre.
Daí
via todo o mar.
Era
surpreendente o oeste. Saía dele uma muralha. Muralha de nuvem, tapando a
extensão, subia lentamente do horizonte para o zênite. Essa muralha retilínea,
vertical, sem um rombo no alto, sem um rasgão na orla, parecia feita a esquadro,
e esticada a corda. Era a nuvem semelhante a granito. O declive dessa nuvem,
completamente perpendicular na extremidade sul, dobrava-se um pouco para o
norte, como dobra uma folha, e oferecia o vago aspecto de um plano inclinado.
Alargava e crescia sem que a cimalha deixasse um instante de ser paralela à
linha do horizonte, quase indistinta na obscuridade que se ia fazendo. Essa
muralha do ar subia de uma só peça e silenciosamente. Nenhuma ondulação,
nenhuma dobra, nenhuma saliência. Era lúgubre aquela imobilidade em movimento.
O sol, lívido por trás de uma certa transparência mórbida, alumiava aquele
lineamento de apocalipse. A nuvem invadia já quase metade do espaço. Dissera-se
o medonho talude do abismo. Era um como que levantar de montanha de sombra
entre a terra e o céu.
Era,
em pleno dia, a ascensão da noite.
Havia
no ar um calor de fogão. Uma lixívia de estufa saía daquele amontoado
misterioso. O céu, que de azul tornara-se branco, de branco tornou-se cinzento.
Dissera-se uma grande ardósia. Embaixo o mar escuro e de chumbo era outra
ardósia enorme. Nem um sopro, nem um rumor. Ao longe o mar deserto. Nenhuma
vela. Os pássaros tinham-se escondido. Sentia-se a traição do infinito.
O
crescimento de toda aquela sombra amplificava-se insensivelmente.
A
montanha movediça de vapores que se dirigia para as Douvres era uma dessas
nuvens que se podem chamar nuvens de combate. Nuvens vesgas. Através daqueles
amontoados escuros, estranho estrabismo fita o homem.
Temível
era a aproximação.
Gilliatt
examinou firmemente a nuvem e murmurou entre dentes: “Tenho sede, vais dar-me
água”.
Ficou
alguns momentos imóvel com os olhos fitos na nuvem. Parecia medir a tempestade.
Tinha
o barrete no bolso, tirou-o e pô-lo na cabeça. Tirou do buraco onde por tanto
tempo dormira o fato de reserva, e vestiu tudo, grevas e capotão, como um
cavalheiro veste a armadura para entrar em combate. Sabem que perdera os
sapatos, mas os pés descalços tinham-se endurecido nos rochedos.
Preparado
o vestuário de guerra, contemplou ele o quebra-mar, empunhou vivamente a corda
de nós, desceu da plataforma das Douvres, tomou pé nas rochas de baixo, e
correu ao depósito. Instantes depois trabalhava. A vasta nuvem muda pôde
ouvir-lhe os sons do martelo. Que fazia Gilliatt? Com o resto dos pregos,
cordas e vigas, construía na abertura de leste uma segunda porta de 10 a 12 pés
por trás da primeira.
Profundo
era o silêncio. Os talos de erva nas fendas do escolho nem mesmo tremiam.
Subitamente,
o sol desapareceu. Gilliatt levantou a cabeça.
A
nuvem ascendente acabava de atingir o sol. Foi como que uma extinção da luz
substituída por uma reverberação mesclada e pálida.
A
muralha de nuvens mudara de aspecto. Já não tinha unidade. Encrespara-se
horizontalmente tocando o zênite, pendendo em todo o resto do céu. Tinha agora
divisões. A formação da tempestade desenhava-se como uma seção dividida.
Distinguiam-se as camadas da chuva e os jazigos do granizo. Não havia relâmpago
mas um horrível clarão espesso; porque a ideia do horror pode ligar-se à ideia
da luz. Ouvia-se o vago respirar da tempestade. Aquele silêncio palpitava
obscuramente. Gilliatt, também silencioso, via agruparem-se por cima dele todos
aqueles montões de bruma e compor-se a deformidade das nuvens. No horizonte
pesava e estendia-se uma faixa de nevoeiro cor de cinza, e no zênite uma faixa
cor de chumbo; lívidos farrapos pendiam das nuvens de cima sobre os nevoeiros
de baixo. O fundo, que era a parede de nuvens, estava baço, leitoso, térreo,
lívido, indescritível. Uma delgada e alvacenta nuvem transversal, vinda não se
sabe donde, cortava obliquamente, de norte a sul, a alta muralha sombria. Uma
das extremidades dessa nuvem arrastava no mar. No ponto em que tocava na
compressão das nuvens, via-se na obscuridade um abafamento de vapor vermelho.
Por baixo da longa nuvem pálida, pequenas nuvens, mui baixas e pretas, voavam
em sentido inverso umas das outras, como se não soubessem para onde iriam. A
possante nuvem do fundo crescia de todas as partes a um tempo, aumentava o eclipse,
e continuava a sua interposição lúgubre. A leste, por trás de Gilliatt, havia
apenas um portal de céu claro que ia ser fechado. Sem a menor impressão de
vento, passou uma estranha difusão de penugem cinzenta, esparsa em migalhas,
como se algum pássaro gigantesco acabasse de ser depenado por trás daquele muro
de tênebras. Formou-se um teto de negrume compacto que, no extremo horizonte,
tocava no mar e misturava-se na noite. Sentia-se alguma coisa que se avançava.
Era vasta e pesada e medonha. A obscuridade tornava-se mais espessa. De súbito,
roncou imenso trovão.
Gilliatt
sentiu o abalo. Há sonho no trovão. Essa realidade brutal na região visionária
tem alguma coisa de terrífico. Acredita-se ouvir a queda de um móvel no
aposento dos gigantes.
Nenhum
flamejar elétrico acompanhara o som. Foi um trovão negro. Voltou o silêncio.
Houve uma espécie de intervalo como quando se toma posição. Depois um após
outro, e lentamente, romperam-se informes relâmpagos. Eram todos mudos. Nem um
rugido. Cada relâmpago iluminava. A muralha de nuvens era agora um antro. Havia
nela abóbadas e arcarias. Viam-se traços. Esboçavam-se monstruosas cabeças;
distendiam-se pescoços; entreviam-se e desapareciam elefantes carregados de
torres. Uma coluna de bruma, reta, redonda, negra, com uma fumaça branca em
cima, simulava o cimo de um vapor colossal, engolido, bufando debaixo da vaga
fumegante. Ondulavam toalhas de nuvem. Acreditava-se ver dobras de bandeiras.
No centro, debaixo de vermelhas espessuras, mergulhava-se, imóvel, um caroço de
nevoeiro denso, inerte, impenetrável às faíscas elétricas, espécie de feto
hediondo no ventre da tempestade.
Gilliatt
sentiu subitamente que um vento lhe agitou os cabelos. Três ou quatro largas
aranhas de chuva despedaçaram-se em roda dele na rocha. Depois houve um segundo
trovão. Começou o vento.
A
espera da sombra chegara ao cúmulo; o primeiro trovão agitara o mar, o segundo
rachou a muralha de nuvens de alto a baixo, abriu-se uma fenda, toda a bátega
suspensa jorrou por esse lado, o buraco tornou-se uma boca aberta cheia de
chuva, e o vômito da tempestade começou. Tremendo foi o instante.
Aguaceiro,
furacão, relâmpagos, raios, vagas até às nuvens, espuma, detonações, torções
frenéticas, gritos, roncos, assovios, tudo a um tempo. Desencadear de monstros.
O
vento fulminava. A chuva não caía, desabava.
Para
um pobre homem, metido, como Gilliatt, com um barco carregado, num intervalo de
dois rochedos, em pleno mar, não há crise mais ameaçadora. O perigo da maré de
que Gilliatt triunfara nada era ao pé do perigo da tempestade.
Eis
a situação: Gilliatt, em volta de quem tudo era precipício, descobriu no último
momento, e diante do risco supremo, uma estratégia engenhosa. Fez ponto de
apoio no próprio inimigo; associou-se ao escolho; o rochedo Douvres, outrora
seu adversário, era agora o seu padrinho naquele imenso duelo. Gilliatt tinha-o
debaixo de si. Fez daquele sepulcro uma fortaleza. Assestou-se naquele
pardieiro formidável do mar. Estava bloqueado, mas entrincheirado. Estava, por
assim dizer, agregado ao escolho, face a face com o furacão. Pôr barricadas ao
estreito, essa rua das vagas. Era a única coisa que podia fazer. Parece que o
oceano, que é um déspota, pode ser também vencido pelas barricadas. A pança
podia ser considerada segura por três lados. Estreitamente apertada, entre as
duas fachadas internas do escolho, triplicemente ancorada, estava abrigada ao
norte pela pequena Douvre, ao sul pela grande, penedos selvagens, mais afeitos
a produzir naufrágios que a impedi-los. A oeste era protegida pelo tapamento de
barrotes atados e pregados aos rochedos, tapamento já provado que vencera o
rude fluxo do alto-mar, verdadeira porta de cidadela tendo por ombreiras as
próprias colunas do escolho, as duas Douvres. Nada havia que recear por esse
lado. O perigo estava a leste.
A
leste havia apenas o quebra-mar. Um quebra-mar é um aparelho de pulverização.
Precisa ao menos duas lumeeiras. Gilliatt teve apenas tempo de fazer uma.
Construía a segunda mesmo com a tempestade.
Felizmente
o vento chegava de nordeste. O mar tem descaídas. Aquele vento, que era o
galerno antigo, tinha pouco efeito nas Douvres. Assaltava o escolho de través,
e não impelia a onda nem sobre uma e nem sobre outra das aberturas da garganta,
de modo que em vez de entrar em uma rua esbarrava-se numa muralha. A tempestade
atacava mal.
Mas
os ataques do vento são curvos, e devia esperar-se alguma viravolta súbita. Se
essa viravolta se fizesse a leste, antes que a segunda clarabóia do quebra-mar
estivesse construída, o perigo seria grande. A invasão da viela de rochedos
pela tempestade realizava-se e tudo estava perdido.
Crescia
a vertigem da tempestade. A tempestade é golpe sobre golpe. Essa é a sua força,
esse é o seu defeito. A força de ser uma raiva dá lugar à inteligência, e o
homem defende-se; mas debaixo de que destruição! Nada mais monstruoso que isso.
Nenhuma dilação, nenhuma interrupção, nenhuma trégua, nenhum descanso para
tomar alento. Há um não sei quê de covardia nessa prodigalidade do inesgotável.
Toda
a imensidade tumultuosa atirava-se sobre o escolho Douvres. Ouviam-se vozes sem
número. Quem gritava assim? Estava ali o antigo terror pânico. De quando em
quando, parecia que era alguém que falava, como se fizesse um comando. Depois
clamores, clarins, estranhas tremuras, e aquele grande e majestoso urro que os
marinheiros dizem ser a chamada do oceano.
As
espirais indefinidas e fugazes do vento assoviavam torcendo a onda; as vagas,
tornadas discos debaixo daqueles torneamentos, eram atiradas contra os parcéis
como chapas gigantescas por atletas invisíveis.
A
enorme escuma eriçava todas as rochas. Torrentes em cima, saliva embaixo.
Depois redobravam os mugidos. Nenhum rumor humano ou bestial poderia dar ideia
dos fracassos misturados àquelas deslocações do mar. A nuvem canhoneava, a
saraiva metralhava, o marulho escalava. Certos pontos pareciam imóveis, em
outros o vento fazia 20 toesas por segundo. O mar ao longe estava todo branco;
10 léguas de água de sabão enchiam o horizonte. Abriam-se portas de fogo. Algumas
nuvens pareciam queimadas por outras, e sobre montões de nuvens vermelhas,
semelhantes às brasas, assemelhavam-se essas ao fumo.
Configurações
flutuantes esbarravam-se e amalgamavam-se, desfazendo-se umas por outras.
Escorria uma água incomensurável, ouviam-se fogos de pelotão no firmamento.
Havia no meio do teto de sombra uma espécie de vasta alcofa virada, donde caíam
em confusão a tromba, a chuva, as nuvens, as cores rubras, os relâmpagos, a
noite, a luz, os raios, tão formidáveis são essas inclinações do golfão!
Gilliatt
parecia não atender a nada. Tinha a cabeça inclinada no trabalho. A segunda
clarabóia começava a levantar-se. A cada trovão respondia ele com uma
martelada. Ouvia-se essa cadência naquele caos. Estava com a cabeça descoberta.
Uma lufada levou-lhe o chapéu.
Tinha
uma sede ardente. Provavelmente estava com febre. Lagoinhas de chuva tinham-se
formado à roda dele nas covas dos rochedos. De quando em quando tirava água com
a palma da mão e bebia. Depois, sem examinar em que ia a tempestade, continuava
a obra.
Tudo
podia depender de um instante. Sabia o que o esperava se não terminasse a tempo
o quebra-mar. Por que motivo perder um minuto para ver aproximar-se a face da
morte?
A
desordem em torno dele era como uma caldeira fervendo. Havia fracasso e motim.
Às vezes o raio parecia descer uma escada. As percussões elétricas voltavam
constantemente aos mesmos pontos do rochedo. Havia pedras de chuva da grossura
de uma mão fechada. Gilliatt era obrigado a sacudir as dobras da japona. Até as
algibeiras tinham pedras.
O
temporal estava já no oeste, e batia o tapamento das duas Douvres; mas Gilliatt
tinha confiança nesse tapamento, e com razão. Esse tapamento, feito do grande
pedaço da proa da Durande, recebia sem dureza o choque da onda; a elasticidade
é uma resistência; os cálculos de Stevenson estabelecem que, contra a vaga, por
si própria elástica, uma reunião de paus, com a dimensão desejada, ligada e
amarrada de certo modo, faz melhor obstáculo que um break water de
madeira. O tapamento das Douvres preenchia essas condições; era, além disso,
tão engenhosamente atado que a onda, batendo em cima, fazia como um martelo que
mete o prego, apoiava-o ao rochedo e consolidava-o; para demoli-lo, era preciso
derrubar as Douvres. A lufada apenas conseguiu atirar à pança, por cima do
obstáculo, alguns jorros de espuma. Por esse lado, graças ao tapamento, a
tempestade tornava-se cuspo. Gilliatt voltava as costas a esse esforço. Sentia
tranquilamente atrás de si essa raiva inútil.
Os
flocos de espuma, saindo de todos os lados, assemelhavam-se a lã. A água, vasta
e irritada, afogava os rochedos, trepava por eles, entrava dentro, penetrava na
rede de fendas internas, e saía das massas graníticas por fendas estreitas,
espécies de bocas inesgotáveis que faziam naquele dilúvio pequenas fontes
plácidas. Filetes de água caíam graciosamente daqueles buracos no mar.
A
clarabóia de reforço do tapamento de leste estava quase concluída. Mais umas
voltas de cordas e correntes e aproximava-se o momento de também lutar esse
tapamento.
De
súbito, fez-se um grande clarão, a chuva cessou, as nuvens separaram-se, era o
vento que mudava, uma espécie de janela grande crepuscular abriu-se no zênite,
e apagaram-se os relâmpagos; pareceu que estava acabado. Era o começo.
O
vento mudou de sudoeste para nordeste.
A
tempestade ia recomeçar com uma nova matilha de furacões. Vinha do norte,
violento assalto. Os marinheiros chamam a isso o vento de esboroar. O vento do
sul tem mais água, o vento do norte tem mais raios.
Vindo
do nordeste, a agressão ia dirigir-se ao ponto fraco.
Desta
vez Gilliatt parou o trabalho e olhou. Colocou-se de pé sobre uma saliência de
rochedo inclinado por trás da segunda clarabóia quase terminada. Se a primeira
chapa do quebra-mar fosse afundada, desabaria a segunda, ainda não consolidada,
e debaixo dessa demolição esmagaria Gilliatt. Gilliatt, no lugar que escolhera,
seria achatado antes de ver a pança e a máquina e toda a sua obra abismar-se no
golfão. Tal era a eventualidade. Gilliatt aceitou-a, e, terrível, ele a queria.
Nesse
naufrágio de todas as suas esperanças, morrer primeiro convinha-lhe a ele;
morrer primeiro, porque a máquina fazia-lhe o efeito de uma pessoa. Levantou
com a mão esquerda os cabelos colados nos olhos pela chuva, apertou o martelo,
inclinou-se para trás ameaçante, e esperou.
Não
esperou muito.
Um
ribombo deu o sinal, fechou-se a abertura pálida do zênite, precipitou-se uma
rajada de chuva, tudo tornou-se escuro, e não houve outro facho mais que o
relâmpago. Começava o sombrio ataque.
Possante
vagalhão, visível entre os relâmpagos, levantou-se a leste além do rochedo
Homem. Parecia um grande rolo de vidro. Era verde e sem escuma nem ondas.
Inchava aproximando-se; era um largo cilindro de trevas rolando no oceano. A
trovoada roncava surdamente.
Esse
vagalhão chegou ao rochedo Homem, partiu-se em dois e continuou. Os dois
pedaços juntos tornaram a ligar-se, e fizeram uma grande montanha de água, e,
de paralela que estava ao quebra-mar, tornou-se perpendicular. Era uma vaga com
a forma de uma viga.
Atirou-se
ao quebra-mar aquele aríete. Rugiu o choque. Tudo desapareceu em espuma.
Não
se pode imaginar o que são essas avalanchas de neve que o mar ajunta, e debaixo
das quais engole rochedos de mais de 100 pés de altura, tais, por exemplo, como
o grande Anderlo, em Guernesey, e o Pináculo, em Jersey. Em Santa Maria de
Madagáscar, saltam por cima da ponta de Tintingue.
Durante
alguns instantes o rolo de mar tapou tudo. Só ficou visível um montão furioso,
uma escuma imersa, a alvura de um sudário flutuando no vento do sepulero, uma
mistura de ruído e de tempestade debaixo da qual trabalhava o extermínio.
Dissipou-se
a escuma. Gilliatt estava de pé.
O
tapamento resistira. Nem uma corrente arrebentou, nem um prego saiu. O
tapamento mostrou à prova as duas qualidades do quebra-mar; foi flexível como
um caniço e sólido como uma parede. O vagalhão dissolveu-se em chuva.
A
espuma escorrendo ao longo dos ziguezagues do estreito foi morrer debaixo da
pança.
O
homem que fizera aquele açaimo ao oceano não repousou.
A
tempestade divagou felizmente durante algum tempo. O encarniçamento das vagas
voltou-se para as partes muradas do escolho. Foi uma trégua. Gilliatt
aproveitou-a para completar a clarabóia de trás.
O
dia expirou nesse trabalho. A tormenta continuava as suas violências no flanco
do escolho com uma solenidade lúgubre. A urna de água e a urna de fogo que
existe nas nuvens esvaziavam-se sem esgotar nunca. As ondulações altas e baixas
do vento pareciam movimentos de um dragão.
Quando
a noite chegou, já havia noite; não se pôde reparar nela.
Mas
não era obscuridade completa. As tempestades iluminadas e cegas pelo relâmpago
têm intermitências de visível e invisível. Tudo está claro, depois tudo fica
escuro. Assiste-se à saída das visões e à entrada das trevas.
Uma
zona de fósforo, cor da aurora boreal, flutuava como um farrapo de flama
espectral por trás das espessuras de nuvens. Resultava uma vasta palidez. As
chapas de chuva eram luminosas.
E
esses clarões ajudavam Gilliatt e o dirigiam. Ele voltou-se para o relâmpago e
disse: “Segura-me a vela!”
Com
o auxílio dessa claridade pôde ele levantar a clarabóia de trás, ainda mais
acima da da frente. O quebra-mar estava quase completo. Quando Gilliatt
amarrava ao ponto culminante um cabo de reforço, o vento soprou-lhe na cara em
cheio. Isto fez-lhe levantar a cabeça. O vento voltara bruscamente para
nordeste. O assalto da abertura de leste recomeçava. Gilliatt olhou para o mar.
O quebra-mar ia ser atacado outra vez. Vinha um novo vagalhão.
Esse
foi rudemente vibrado; depois veio outro, mais outro, mais outro, cinco ou seis
em tumulto, quase juntos; finalmente um último e tremendo.
Este,
que era um como que total de forças, tinha a figura de uma coisa viva. Não era
difícil imaginar, naquela intumescência e naquela transparência, inauditos
aspectos com escamas. Achatou-se e partiu-se no quebra-mar. A sua forma quase
animada dilacerou-se num esguicho. Naquele montão de rochedos e tábuas, foi uma
espécie de esmagamento de hidra. A onda morrendo devastava. Profundo tremor
agitou o escolho. Misturava-se a isso um grunhir de animal. A espuma
assemelhava-se à saliva de um leviatã.
A
espuma que caía deixava ver uma devastação. O vagalhão fez obra. Dessa vez o
quebra-mar sofreu um pouco. Uma longa e pesada viga, arrancada da clarabóia da
frente, foi lançada por cima do tapamento de trás, sobre a rocha inclinada,
escolhida por Gilliatt para o lugar do combate. Felizmente desta vez não estava
ele aí. Ficaria morto.
Houve
na queda da viga uma singularidade que, impedindo qualquer movimento da
prancha, salvou Gilliatt de qualquer sobressalto perigoso. Foi ainda útil por
outro modo, como se vai ver.
Entre
a saliência da rocha e o declive interno da garganta, havia um intervalo, um
grande hiato semelhante ao encaixe de um machado ou à alvéola de um canto. Uma
das extremidades da prancha, atirada ao ar pela vaga, caiu no meio dessa
abertura. A abertura alargou-se.
Gilliatt
teve uma ideia.
Pesar
na outra extremidade.
A
prancha, presa por uma ponta na fenda do rochedo que alargara, saía daí como um
braço estendido. Essa espécie de braço alargava-se, paralelamente à faixa
interna da garganta, e a extremidade livre da prancha afastava-se desse ponto
de apoio cerca de 18 ou 20 polegadas. Boa distância para fazer o esforço.
Gilliatt
estreitou com os pés, os joelhos e os braços o rochedo e meteu ombros à enorme
viga. A viga era comprida, o que aumentava a força do peso. A rocha já estava
abalada. Contudo, Gilliatt teve de tentar a coisa quatro vezes. Caía-lhe dos
cabelos mais suor do que chuva. O quarto esforço foi frenético. Houve um estalo
na rocha, a abertura abriu-se como uma boca e a pesada massa caiu no estreito
intervalo com um ruído terrível, réplica aos trovões.
Caiu
direita, se esta expressão é possível, isto é, sem quebrar-se.
Imaginai
um menir precipitado todo inteiro.
A
viga acompanhou o rochedo, e Gilliatt, cedendo ao mesmo tempo, escapou de cair
também.
O
fundo estava muito atravancado, e tinha pouca água. O monólito, numa agitação
de espuma, que foi respingar em Gilliatt, deitou-se entre as duas grandes
rochas paralelas da garganta e fez uma parede transversal, espécie de linha de
união dos dois rochedos. Tocavam as duas pontas; era um pouco mais longo, e o
cume, que era de rocha macia, ficou esmigalhado. Resultou dessa queda uma
espécie de beco sem saída que ainda hoje pode ser visto. A água, por detrás
dessa barra de pedra, é quase sempre tranquila.
Era
um baluarte aquele ainda mais invencível que a amurada da Durande ajustada
entre as duas Douvres.
Esse
tapamento interveio a propósito.
Os
vagalhões tinham continuado. A vaga teima sempre contra o obstáculo. A primeira
clarabóia começava a desarticular-se. Uma malha de quebra-mar desfeita é uma
grande avaria. É inevitável o alargamento do buraco, e nenhum meio pode
remediar logo. A vaga carregaria o trabalhador.
Uma
descarga elétrica, que iluminou o escolho, descobriu a Gilliatt o estrago que
se fazia no quebra-mar, as vigas soltas, as cordas e correntes começando a
flutuar ao vento, um rasgão no centro do aparelho. A segunda clarabóia estava
intata.
O
penedo, tão poderosamente lançado por Gilliatt no intervalo das rochas, por
trás do quebra-mar, era a mais sólida barreira, mas tinha um defeito: era demasiado
baixo. As vagas não podiam rompê-lo, mas podiam galgá-lo.
Era
impossível fazê-lo crescer. Só massas da rocha podiam ser utilmente sobrepostas
àquele tapamento de pedra; mas como arrancar essas massas, como arrastá-las,
como levantá-las, como colocá-las, como fixá-las? Pregam-se tábuas, não se
pregam rochedos.
Gilliatt
não era Encélado.
A
pouca elevação daquele pequeno istmo de granito preocupava Gilliatt.
Breve
fez-se sentir o defeito. Os ventos já não deixavam o quebra-mar; já se não encarniçavam,
parecia que se aplicavam. Ouvia-se naquela construção abalada uma espécie de
escoiceamento regular.
De
repente, um pedaço de peça de viga, destacado da deslocação, pulou por cima da
segunda clarabóia, voou por cima da rocha transversal, e foi cair na garganta
do rochedo, onde a água a levou pelas sinuosidades da viela. É provável que
fosse esbarrar na pança. Felizmente, no interior do escolho, a água, fechada
por todos os lados, mal se ressentia da agitação exterior. Havia pouco marulho,
e o choque não devia ser forte. Gilliatt nem teve tempo de ocupar-se com essa
avaria, se avaria houve; todos os perigos se erguiam a um tempo, a tempestade
concentrava-se no ponto vulnerável, a iminência estava diante dele.
Profunda
foi, por alguns instantes, a escuridão, interrompeu-se o relâmpago, conivência
sinistra; a nuvem e a vaga eram a mesma coisa; houve um golpe surdo.
Depois
um fracasso.
Gilliatt
adiantou a cabeça. A clarabóia que tapava a frente estava deslocada. Viam-se as
pontas de vigas saltar na vaga. O mar servia-se do primeiro quebra-mar para
atacar o segundo.
Gilliatt
sentiu o que sentiria um general vendo voltar a vanguarda.
A
segunda tapagem resistiu ao choque. A armadura de trás estava fortemente
ligada. Mas a clarabóia despedaçada era pesada, estava à disposição das vagas
que a atiravam e tomavam, as ligaduras que lhe restavam impediam-na de
partir-se em pedaços e mantinham-lhe todo o volume, e as qualidades que
Gilliatt lhe dera como aparelho de defesa faziam agora daquilo uma excelente
ferramenta de destruição. De broquel tornara-se maça. Além disso, as fraturas
eriçavam-na, saíam-lhe pontas em toda ela, cobriam-na de dentes e esporas.
Nenhuma arma contundente mais temível e própria para ser manejada pela
tempestade do que aquela.
Era
o projétil, e o mar a catapulta.
Sucediam-se
os golpes com uma espécie de regularidade trágica. Gilliatt, pensativo por trás
daquela porta tapada por ele, ouvia esse bater da morte querendo entrar.
Ele
refletiu amargamente que, se não fosse o cano da Durande tão fatalmente retido
no casco, estaria àquela hora, e desde manhã, em Guernesey, e no porto, com a
pança abrigada e a máquina salva.
Realizou-se
o tremendo perigo. Fez-se a efração. Foi como uma agonia de moribundo. Todo o
madeiramento do quebra-mar, as duas armaduras confundidas e despedaçadas
juntas, foi numa tromba-d’água rolar no tapamento de pedra, como um caos numa
montanha, e parou. Foi um travamento informe de paus embrenhados, penetrável às
vagas, mas pulverizando-as ainda. Aquele baluarte vencido agonizava
heroicamente. O mar quebrou-o, ele quebrava o mar. Derrubado, ainda ficava um
pouco eficaz. A rocha que servia de tapagem, obstáculo sem recurso possível,
retinha-o pelo pé. A garganta, naquele ponto, era muito estreita; a tempestade
vitoriosa tinha empurrado, misturado e empilhado todo o quebra-mar naquele
lugar angustioso; a violência da impulsão, misturando a massa, e metendo as
fraturas umas nas outras, fez daquela demolição uma coisa sólida. Estava
destruído e inabalável. Só algumas peças de pau ficaram destacadas.
Dispersou-as a vaga. Uma passou no ar, perto de Gilliatt. Ele sentiu o ar
agitado pela tábua na fronte.
Mas
algumas vagas, essas grossas vagas que nos temporais voltam sempre, com uma
periodicidade imperturbável, saltavam por cima das ruínas do quebra-mar. Caíam
na garganta, e, a despeito dos cotovelos que a viela tinha, chegavam a levantar
a água. A onda do estreito começava a agitar-se de um modo feio. Acentuava-se o
beijo obscuro das vagas nas rochas.
Como
impedir agora que essa agitação se propagasse até a pança?
Não
precisava muito tempo para que toda a água interior ficasse tempestuosa, e, com
algumas ondas, a pança seria estripada, e a máquina iria a pique.
Gilliatt
cismava trêmulo.
Mas
não se desconcertou. Para aquela alma não havia derrota possível.
O
furacão engolfava-se agora freneticamente entre as duas muralhas do estreito.
De
súbito, ressoou e prolongou-se a alguma distância por trás de Gilliatt um
estalo mais assustador que tudo quanto Gilliatt até então ouvira. Era do lado
da pança.
Passava-se
ali alguma coisa funesta.
Gilliatt
correu.
Do
lado do leste, onde se achava, não podia ele ver a pança por causa dos
ziguezagues da viela. Na última volta parou e esperou o relâmpago. Rompeu o relâmpago
e mostrou-lhe a situação.
À
vaga da abertura de leste, correspondeu um tufão na abertura de oeste.
Esboçava-se um desastre.
A
pança não tinha avaria visível; ancorada como estava, dava pouco flanco, mas o
casco da Durande estava em risco de cair.
Aquela
ruína, em semelhante tempestade, apresentava uma vítima. Estava toda fora da
água, no ar, oferecida ao temporal. O buraco que Gilliatt praticara para
extrair a máquina enfraquecera o casco. O barrote da quilha estava cortado. O
esqueleto tinha a coluna vertebral despedaçada.
Soprara
em cima o furacão.
Não
precisou mais. A amurada dobrou-se como um livro que se abre. Fez-se o
desmembramento. Foi esse estalo que, no meio da tempestade, chegara aos ouvidos
de Gilliatt.
O
que ele viu ao chegar parecia quase irremediável.
A
incisão operada por ele tornara-se uma chaga. Dessa abertura fez o vento uma
fratura. O corte transversal separava em duas a Durande. A parte posterior, a
que ficava em frente de Gilliatt, vizinha da pança, ficara sólida nos rochedos.
A parte anterior, que fazia face a Gilliatt, estava pendurada. Uma fratura é um
gonzo. Aquela massa oscilava sobre as suas fendas, e o vento balançava-a, com
um tremendo rumor.
Felizmente
a pança já não estava embaixo.
Mas
o balanço abalava a outra metade do casco, ainda presa e imóvel entre as duas
Douvres. Do abalo à queda, a distância era pequena. Com a teima do vento, a
parte deslocada podia subitamente arrastar a outra que tocava quase na pança, e
tudo, pança e máquina, ficaria engolido.
Gilliatt
tinha isso diante dos olhos.
Era
a catástrofe.
Como
desviá-la?
Gilliatt
era daqueles que tiram recurso do próprio perigo. Refletiu um momento.
Depois,
foi ao depósito e tirou o machado.
O
martelo trabalhara muito; era chegada a vez do machado.
Gilliatt
subiu à Durande. Firmou-se na parte do navio, que ainda estava segura, e,
inclinado sobre o precipício do intervalo das Douvres, pôs-se a cortar as
tábuas quebradas e tudo quanto ainda prendia o pedaço de casco pendente.
Consumar
a separação dos dois pedaços do casco, libertar a metade sólida, deitar ao mar
aquilo que o vento destruíra, dar o quinhão à tempestade, tal era a operação.
Era mais perigosa que difícil. A metade pendente do casco, empuxada pelo vento
e pelo peso, aderia apenas por alguns pontos. O conjunto do casco
assemelhava-se a um díptico, partido em dois pedaços, e batendo ambos um no
outro. Cinco ou seis peças apenas, vergadas e arrebatadas, mas não
completamente soltas, ainda sustentavam o casco. As fraturas guinchavam e
alargavam-se a cada sopro do vento, e o machado apenas ajudava. Esta
circunstância, que tornava fácil o trabalho, tornava-o arriscado também. Tudo
podia esboroar ao mesmo tempo debaixo de Gilliatt.
A
tempestade atingiu o paroxismo. Até então fora terrível, agora fez-se horrível.
A convulsão do mar reproduziu-se no céu. A nuvem até então fora soberana,
parecia executar a sua vontade, dava o impulso, derramava às vagas a loucura,
conservando sempre uma lucidez sinistra. Embaixo havia demência, em cima cólera.
O céu era o sopro, o oceano era apenas a espuma. Daí vem a autoridade do vento.
O furacão é gênio. Entretanto, a embriaguez de seu próprio horror tinha-o
perturbado. Agora era o turbilhão. Era a cegueira produzindo a noite. Há nos
temporais um momento insensato; é para o céu urna espécie de sangue que sobe à
cabeça.
O
abismo já não sabe o que faz. Fulmina às apalpadelas.
Nada
mais horrendo. E a hora hedionda. Chegara ao cúmulo o tremor do escolho. A
tempestade tem um plano misterioso; mas nesse instante perde-o. É a má hora da
tempestade. Nesse instante, “o vento”, dizia Thoinas Fuller, “é um doido
furioso”. E nesse instante que as tempestades fazem essa despesa contínua de
eletricidade que Piddington chama a “cascata de relâmpagos”. É nesse instante
que aparece nas nuvens mais negras, não se sabe por que e como que para espiar
o terror universal, aquele círculo azul que os velhos marinheiros espanhóis
chamavam o olho da tempestade, “el ojo de ia tempestad”. Esse olho
lúgubre fitava Gilliatt.
Gilliatt,
de seu lado, contemplava a nuvem. Levantou a cabeça. Dava uma machadada e
levantava-se altivo. Estava, ou parecia estar demasiado perdido, para que não
tivesse orgulho. Desesperava? Não. Ante o supremo acesso de raiva do oceano,
Gilliatt era tão prudente quanto audaz. Em cima do casco, só pisava o ponto
sólido. Arriscava-se e preservava-se. Também ele chegara ao paroxismo.
Decuplicou-se-lhe o vigor. Estava desvairado de intrepidez. Os golpes de
machado soavam como desafios. Parecia ter ganho o que tinha perdido a
tempestade. Conflito patético. De um lado o inesgotável, do outro o
infatigável. Estavam a ver qual dos dois venceria. As nuvens terríveis
modelavam na imensidade máscaras de górgonas, produzia-se toda a intimidação
possível, a chuva surgia das vagas, a espuma tombava das nuvens, curavam-se os
fantasmas dos ventos, faces de meteoro avermelhavam-se e eclipsavam-se, e a
obscuridade, após tantos desmaios, era monstruosa; havia um só derramamento,
vindo por todos os lados ao mesmo tempo; tudo era ebulição; a sombra em massa
transbordava; cúmulos carregados de granizo, esfarelados, cor de cinza,
pareciam andar num frenesi giratório, havia no ar um rumor de grãos secos,
sacudidos numa peneira, as eletricidades inversas observadas por Volta faziam de
nuvem em nuvem os fulminantes disparos, os prolongamentos do raio eram
terríficos, os relâmpagos aproximavam-se em torno de Gilliatt. O abismo parecia
espantado. Gilliatt andava na Durande fazendo tremer o tombadilho debaixo dos
pés, batendo, cortando, rachando, machado em punho, lívido diante dos
relâmpagos, esguedelhado, descalço, roto, com a face coberta dos escarros do
mar, grande naquela sentina de trovões.
Contra
o delírio das forças, só a destreza pode lutar. A destreza era o triunfo de
Gilliatt. Ele queria uma queda de todo o destroço deslocado. Por isso
enfraqueceu as fraturas sem rompê-las completamente, deixando algumas fibras
que sustentavam o resto. Subitamente, parou com o machado no ar, a operação
estava acabada. Todo o pedaço destacou-se. Essa metade do casco rolou entre as
duas Douvres abaixo de Gilliatt, que ficou em pé noutra metade, inclinado e
olhando; mergulhou-se perpendicularmente, arrombou os rochedos e parou na
garganta antes de chegar ao fundo. Ficou uma parte fora da água, tanto quanto
era suficiente para dominar a onda mais de 12 pés; foi mais uma barricada entre
as duas Douvres; bem como a rocha atirada no estreito, deixava apenas filtrar
um pouco de espuma nas suas extremidades, e foi essa a quinta barricada
improvisada por Gilliatt, contra a tempestade, naquela rua do mar.
O
furacão, cego, trabalhava a última.
Foi
uma felicidade que o angustiado das paredes internas impedisse de ir ao fundo
aquela tapagem. Dava-lhe mais altura; demais a água podia passar por baixo do
obstáculo, o que afetava a força das ondas. Aquilo que passa por baixo não
salta por cima. É esse em parte o segredo de quebra-mar flutuante.
Doravante,
houvesse o que houvesse, já não havia que recear nem quanto à pança, nem quanto
à máquina. A água já não podia agitar-se à roda delas. Entre a tapagem das
Douvres que as cobria a oeste e o navio, tapamento que as protegia a leste,
nenhuma onda, nenhum vento poderia atingi-las.
Gilliatt
tirara da catástrofe a salvação. Ajudara-o a tempestade.
Feito
isto, apanhou um punhado de água da chuva, bebeu e disse à nuvem: “Cântaro!”
É
uma alegria irônica para a inteligência combatente atestar a vasta estupidez
das forças furiosas concluindo por prestar serviços, e Gilliatt sentiu essa
imemorial necessidade de insultar o inimigo, que remonta aos heróis de Homero.
Gilliatt
desceu à pança e aproveitou os relâmpagos para examiná-la. Era tempo que a
pobre barquinha fosse socorrida; tinha sido muito sacudida e começava a
arquear. Gilliatt, com aquele olhar sumário, não viu nenhuma avaria. Contudo,
era certo que ela devia ter recebido violentos choques. Acalmada a água,
endireitou o casco; as âncoras portaram-se bem; quanto à máquina, as quatro
correntes mantiveram-na admiravelmente.
Quando
Gilliatt acabava a revista, uma coisa branca passou por ele e mergulhou na
sombra. Era uma gaivota.
Não
há melhor aparição nas tempestades. Quando os pássaros chegam, é que a
tempestade vai-se embora.
Outro
sinal excelente: o trovão redobrava.
As
supremas violências da tempestade desorganizavam-na. Todos os marinheiros o
sabem, a última prova é rude mas curta. O excesso do raio anuncia-lhe o fim.
A
chuva parou repentinamente. Depois houve apenas um ruído nas nuvens. O temporal
cessou como uma prancha que cai no chão. Quebrou-se por assim dizer. Desfez-se
a imensa máquina das nuvens. Uma fenda de céu claro disjungiu as trevas.
Gilliatt ficou espantado; era dia claro.
A
tempestade durara quase vinte horas.
O
vento que a trouxera levou-a. Um desabamento de escuridão depressa encheu o
horizonte. As brumas rotas e fugitivas amontoaram-se em tumulto, houve de uma
ponta à outra da linha do horizonte um movimento de retirada, ouviu-se um longo
rumor decrescente, caíram algumas gotas últimas de chuva, e toda aquela sombra
cheia de trovões foi-se como uma turba de carros terríveis.
Bruscamente,
fez-se azul o céu.
Gilliatt
reparou que estava cansado. O sono abate-se sobre a fadiga como uma ave de
rapina. Gilliatt deixou-se cair na barca sem escolher lugar e dormiu. Ficou
assim algumas horas inerte e estendido, pouco distinto das pranchas e barrotes
entre os quais adormecera.
LIVRO QUARTO
O FORRO
DO OBSTÁCULO
CAPÍTULO
PRIMEIRO
QUEM TEM
FOME ACHA MAIS QUEM TENHA
Quando
Gilliatt acordou, teve fome.
Acalmava-se
o mar. Havia, porém, alguma agitação ao largo, que impedia a partida imediata.
Demais, o dia já estava adiantado. Com o carregamento da pança, para chegar a
Guernesey antes da meia-noite, era preciso sair de manhã.
Embora
a fome urgisse, Gilliatt começou por despir-se, único meio de aquecer-se.
As
roupas estavam molhadas da chuva, mas a água da chuva lavara a água do mar, o
que fez com que agora pudessem secar as roupas.
Gilliatt
apenas ficou com as calças, que arregaçou até os joelhos.
Estendeu,
com pesos em cima, nas saliências do rochedo, todo o resto da roupa.
Depois
pensou em comer.
Gilliatt
recorreu à faca que teve o cuidado de afiar e tê-la em bom estado, e arrancou
do granito alguns mariscos. Comeu-os crus. Mas, depois de tantos trabalhos,
fraca era a pitança. Já não tinha biscoito. Quanto à água, não lhe faltava.
Estava mais que saciado, estava inundado.
Aproveitou
a vazante para perlustrar os rochedos à cata de lagostas. Já havia muita rocha
descoberta; podia apanhar boa caça.
Somente
não refletia ele que já não podia cozer peixe algum. Se tivesse de ir ao
depósito, veria tudo derrubado pela chuva. O pau e o carvão estavam encharcados
e da provisão de estopa que lhe servia de isca, não tinha um fio que não
estivesse molhado. Não havia meio de sacar fogo.
De
resto, o fole estava desorganizado; a tempestade saqueou-lhe o laboratório. Com
o resto da ferramenta, Gilliatt, a rigor, podia ainda trabalhar de carpinteiro,
não de forja. Mas Gilliatt, naquele momento, não pensava na oficina.
Empuxado
pelo estômago, sem mais reflexão, entrou a procurar comida. Errava, não na
garganta do escolho, mas fora, nas dobras dos cachopos. Foi desse lado que a
Durande, dez semanas antes, esbarrara nas pedras.
Para
a caça que Gilliatt fazia, o exterior da viela valia mais que o interior. Os
caranguejos, nas águas baixas, têm costume de tomar ar. Aquecem-se ao sol. Amam
o sol aqueles entes disformes. É uma coisa estranha a saída deles em plena luz.
Quase indigna-se a gente com eles. Quando os vemos, com seu aspecto oblíquo,
subir pesadamente, um por um, os andares inferiores dos rochedos como degraus
de uma escada, acreditamos por força que o oceano também tem os seus piolhos.
Desses
piolhos vivia Gilliatt há dois meses.
Contudo
nesse dia os caranguejos e as lagostas andavam escondidos. A tempestade
empurrara aqueles solitários para os seus esconderijos, e ainda não se animavam
a sair. Gilliatt tinha na mão a faca aberta, e arrancava de quando em quando
uma concha debaixo do sargaço. Comia andando.
Não
devia estar longe do lugar onde se perdera o Sr. Clubin.
Quando
Gilliatt já se resignara aos ouriços e castanhas do mar, fez-se um movimento a
seus pés. Um grande caranguejo, assustado com a presença dele, tinha pulado na
água. O caranguejo não mergulhou tanto que Gilliatt não o visse.
Gilliatt
começou a correr atrás do caranguejo no esvazamento da rocha. O caranguejo
fugia.
De
repente, não viu mais nada.
O
caranguejo metera-se por algum buraco debaixo do rochedo.
Gilliatt
atracou-se aos relevos da pedra e esticou o pescoço para ver se via alguma
coisa.
Havia,
com efeito, uma anfratuosidade. O caranguejo devia ter-se refugiado aí.
Era
mais que uma fenda, era um pórtico.
O
mar entrava por baixo desse pórtico, mas não era profundo. Via-se o fundo
coberto de pedrinhas. Essas pedrinhas eram esverdeadas e revestidas de
filamentos, o que indicava que nunca estavam a seco. Assemelhavam-se a cabeças
de crianças com cabelos verdes.
Gilliatt
pôs a faca nos dentes, desceu do alto da rocha e saltou na água. Teve água
quase até os ombros. Meteu-se pelo pórtico. Achou-se num corredor gasto, com um
esboço de abóbada ogival por cima. As paredes eram polidas e lisas. Já não via
o caranguejo. Tomara pé. Caminhava e diminuía-se a luz. Começou a não ver coisa
alguma.
Depois
de quinze passos, cessou a abóbada. Estava fora do corredor. Havia mais espaço,
e por consequência mais luz; as pupilas tinham-se-lhe dilatado; via bem. Teve
uma surpresa.
Acabava
de entrar naquela cava estranha visitada por ele um mês antes. Somente desta
vez entrou pelo mar.
Aquela
arcaria que ele vira afogada era a mesma por onde agora passou. Em certas marés
baixas era praticável.
Os
olhos iam-se acostumando ao lugar. Via cada vez melhor. Estava estupefato.
Tornava a achar aquele extraordinário palácio da sombra, aquela abóbada,
aqueles pilares, aqueles rubros, aquela vegetação de pedras, e no fundo aquela
cripta, quase santuário, e aquela pedra, quase altar.
Não
se lhe despertava muito os pormenores, mas tinha no espírito a ideia do todo, e
reconheceu.
Via
diante dele, em certa altura, na rocha, o buraco por onde penetrou a primeira
vez, e que, do ponto onde estava agora, parecia inacessível.
Tornara
a ver, perto da arcaria ogival, as grotas baixas e obscuras, espécie de cavas
na cava, que já observara de longe. A que ficava mais perto dele estava a seco
e era fácil de se lhe chegar.
Mais
perto ainda que essa descobriu ele, ao alcance da mão, uma fenda horizontal no
granito. Provavelmente estava ali o caranguejo. Meteu a mão o mais que pôde, e
procurou às apalpadelas naquele buraco de trevas.
De
repente, sentiu que lhe agarravam no braço.
O
que ele experimentou, nesse momento, foi o horror indescritível.
Uma
coisa que era delgada, áspera, chata, gelada, pegajosa e viva torcia-se na sombra
à roda de seu braço nu, e subia-lhe para o peito. Era a pressão de uma correia,
e o impulso de uma verruma. Em menos de um segundo, uma espécie de espiral
tinha-lhe invadido o punho e o cotovelo e tocava-lhe o ombro. A ponta
metia-se-lhe no sovaco.
Gilliatt
atirou-se para trás, e mal pôde fazê-lo. Estava como que pregado. Com a mão
esquerda que ficava livre pegou na faca que tinha entre os dentes, e com essa
mão, que segurava a faca, apoiou-se no rochedo com um esforço desesperado para
sacar o braço. Só conseguiu inquietar a ligadura, que se apertou mais. Era
flexível como o couro, sólida como o aço, fria como a noite.
Outra
correia, estreita e pontuda, saiu do buraco da rocha. Era uma espécie de língua
saindo de uma goela. Lambeu medonhamente o corpo nu de Gilliatt, e, de repente,
esticando-se, desmedida e fina, aplicou-se-lhe na pele e enrolou-se no corpo.
Ao mesmo tempo um sofrimento inaudito, sem comparação neste mundo, levantava os
músculos de Gilliatt. Sentia que lhe abriam a pele em muitos pontos, de um modo
horrível. Parecia-lhe que inúmeros lábios, pregados à carne, procuravam
beber-lhe o sangue.
Terceira
correia saiu fora do rochedo, apalpou Gilliatt e chicoteou-lhe os lados como
uma corda. Afinal fixou-se como as outras.
A
angústia, no paroxismo, é muda. Gilliatt não soltou um grito. Havia bastante
luz para que ele pudesse ver as formas repelentes aplicadas ao corpo dele.
Quarta
ligadura, esta rápida como uma echa, saltou-lhe em roda do ventre e
enrolou-se-lhe.
Era
impossível cortar e nem arrancar aquelas correias viscosas que aderiam
estreitamente ao corpo de Gilliatt e por muitíssimos pontos. Cada um desses
pontos era um foco de terrível e estranha dor. Era o que sentiria quem fosse
engolido ao mesmo tempo por uma porção de bocas pequeninas.
Quinta
ligadura rompeu do tronco. Sobrepôs-se às outras e foi enroscar-se no diafragma
de Gilliatt. A compressão ajuntava-se à ansiedade. Gilliatt mal podia respirar.
Aquelas
ligaduras, pontudas na extremidade, iam alargando como lâminas de espada para o
punho. Todas cinco pertenciam evidentemente ao mesmo centro. Caminhavam e
arrastavam-se para Gilliatt. Ele sentia deslocarem-se essas pressões obscuras
que lhe pareciam bocas.
Bruscamente
uma larga viscosidade redonda e chata saiu de dentro da rocha. Era o centro; as
cinco ligaduras prendiam-se a ele, como raios a um eixo; distinguia-se do lado
oposto daquele disco imundo o começo de outros três tentáculos, presos no fundo
do buraco. No meio dessa viscosidade havia dois olhos.
Olhavam
eles para Gilliatt.
Gilliatt
reconheceu que era uma pieuvre.
CAPÍTULO II
O MONSTRO
Para
acreditar na pieuvre é preciso tê-la visto.
Comparadas
à pieuvre, as velhas hidras fazem sorrir.
Em
certos momentos parece que o elemento fugitivo que flutua em nossos sonhos
encontra na realidade ímãs aos quais esses lineamentos se prendem, e dessas
obscuras ficções do sonho surgem criaturas. O ignoto dispõe do prodígio e
serve-se dele para compor o monstro. Orfeu, Homero e Hesíodo só puderam fazer a
quimera; Deus fez a pieuvre.
Quando
Deus quer, excede no execrável.
A
razão desta vontade é o medo do pensador religioso.
Admitidos
todos os ideais, se o terror é um fim, a pieuvre é uma obra-prima.
A
baleia é enorme, a pieuvre é pequena; o hipopótamo tem uma couraça, a pieuvre é
nua; a jararaca tem um silvo, a pieuvre é muda; o rinoceronte tem um chifre, a
pieuvre não tem chifre; o escorpião tem um dardo, a pieuvre não tem dardo; o
macaco tem uma cauda, a pieuvre não tem cauda; o tubarão tem barbatanas cortantes,
a pieuvre não tem barbatanas; o vespertílio-vampiro tem asas com unhas, a
pieuvre não tem asas; o porco-espinho tem espinhos, a pieuvre não tem espinho;
o espadarte tem um gládio, a pieuvre não tem gládio; o torpedo tem um raio, a
pieuvre não tem raio; o sapo tem um vírus, a pieuvre não tem vírus; a víbora
tem veneno, a pieuvre não tem veneno; o leão tem garras, a pieuvre não tem
garras; o gipaeto tem um bico, a pieuvre não tem bico; o crocodilo tem uma
goela, a pieuvre não tem dentes.
A
pieuvre não tem massa muscular, nem grito ameaçador, nem couraça, nem chifre,
nem dardo, nem cauda, nem barbatanas, nem asas, nem espinhos, nem espada, nem
descarga elétrica, nem vírus, nem veneno, nem garras, nem bico, nem dentes. A
pieuvre é, de todos os animais, o mais formidavelmente armado.
O
que é a pieuvre? É a ventosa.
Nos
escolhos em pleno mar, onde a água mostra e esconde todos os seus esplendores,
nas cavas de rochedos não visitadas, nas cavas desconhecidas onde abundam as
vegetações, os crustáceos e as conchas, debaixo dos profundos pórticos do
oceano, o nadador que se arrisca, arrastado pela beleza do lugar, corre o risco
de um encontro. Se tiveres esse encontro, não sejas curioso, foge. Entra-se
fascinado, sai-se apavorado.
Eis
o que é esse encontro sempre possível nas rochas do mar alto.
Uma
forma cinzenta oscila na água, da grossura de 1 braça e de meia vara de
comprido; é um trapo; essa forma assemelha-se a um guarda-chuva sem capa; a
pouco e pouco o trapo caminha para o homem. De repente abre-se, oito raios saem
bruscamente da roda de uma face que tem dois olhos; esses raios vivem; flamejam
ondeando; é uma espécie de roda desenrolada, tem 4 ou 5 pés de diâmetro.
Desenrolamento medonho. Atira-se ao infeliz.
A
hidra arpoa o homem.
Este
animal aplica-se à sua presa, cobre-a, envolve-a com os seus longos braços. Por
baixo é amarelada, por cima é térrea; nada pode imitar esse inexplicável matiz
de poeira; dissera-se um animal feito de cinza, e morando na água. É aracnídeo
pela forma, é cameleão pelo colorido. Irritada, torna-se roxa. Coisa horrível,
é flácida.
Os
seus nós garroteiam; o seu contato paralisa.
Tem
um aspecto de escorbuto e de gangrena. É a moléstia feita monstruosidade.
Não
se pode arrancá-la; agarra-se estreitamente à sua presa. Como? Pelo vácuo.
As
oito antenas, largas na origem, vão estreitando-se e terminam como agulhas;
debaixo de cada uma delas alongam-se paralelamente duas filas de pústulas
decrescentes, as grossas perto da cabeça, as pequenas na ponta, e cada fila tem
25. Há cinquenta pústulas em cada antena, e todo o animal tem quatrocentas.
Essas pústulas são ventosas.
As
ventosas são cartilagens cilíndricas e lívidas. Na grande espécie vão
diminuindo de diâmetro — desde uma moeda de 5 francos até a grossura de uma
lentilha. Esses pedaços de tubos saem e entram no animal. Podem meter-se no
corpo de um homem mais de 1 polegada.
Este
aparelho de sucção tem a delicadeza de um teclado. Levanta-se, esconde-se.
Obedece à menor intenção do animal. As sensibilidades mais delicadas não
igualam à contratibilidade dessas ventosas, sempre proporcionadas aos
movimentos internos do bicho e aos incidentes externos. Este dragão é uma
sensitiva.
Este
monstro é aquele que os marinheiros chamam polvo, que a ciência chama
cefalópode e a que a legenda chama kraken. Os marinheiros ingleses
chamam-no devil-fish, o peixe-diabo. Chamam-no também blood-sucker,
chupador de sangue. Nas ilhas da Mancha chamam-na pieuvre.
É
muito rara em Guernesey, muito pequena em Jersey, muito grande e frequente em
Serk.
Uma
estampa da edição de Buffon por Sonnini representa um cefalópode estreitando
uma fragata. Dionísio Montfort pensa que na verdade o polvo das altas latitudes
pode meter um navio a pique. Bory Saint-Vincent nega-o, mas atesta que nas
nossas regiões o polvo ataca o homem. Quem for a Serk verá perto de Brecq-Hou o
buraco do rochedo onde uma pieuvre há anos agarrou, reteve e afogou um pescador
de lagostas. Peron e Lamarck enganam-se quando duvidam que o polvo, não tendo
barbatanas, possa nadar. Aquele que escreve estas linhas viu com seus próprios
olhos, em Serk, na cova das Lojas, uma pieuvre perseguir, a nado, um homem que
tomava banho. Foi morta e medida; tinha 4 pés ingleses de largura e pôde-se
contar quatrocentos chupadores. O bicho agonizante atirava-os para longe de si
convulsamente.
Segundo
Dionísio Montfort, um desses observadores, cuja alta intuição faz descer ou
subir até o magismo, o polvo tem quase as paixões do homem; o polvo odeia. E no
absoluto ser hediondo é odiar.
O
disforme debate-se debaixo de uma necessidade de eliminação que o torna hostil.
A
pieuvre nadando conserva-se, por assim dizer, na bainha. Nada com as antenas
fechadas. Imaginem uma manga cosida com um punho dentro. Esse punho, que é a
cabeça, impele o líquido e avança com um vago movimento ondulatório; os dois
olhos, embora grandes, são pouco distintos por serem da cor da água.
A
pieuvre, quando espreita a caça, esquiva-se; diminui-se, condensa-se; reduz-se
à mais simples expressão. Confunde-se com a penumbra. Parece uma dobra de vaga.
Assemelha-se a tudo, exceto a coisa viva.
A
pieuvre é o hipócrita. Não se repara nela; repentinamente, abre-se.
Que
há aí de mais medonho que isso: uma viscosidade com uma vontade! O viscoso
amassado de ódio.
É
no mais belo azul da água límpida que surge essa hedionda estrela voraz do mar.
O que é terrível é que não se sente de longe. Quando a gente a vê, já está
agarrada.
Contudo,
à noite, e particularmente na estação do desejo, a pieuvre é fosfórica; aquele
pavor tem os seus amores. Aguarda o himeneu. Faz-se bela, ilumina-se, e, do
alto de algum rochedo, pode-se vê-la nas profundas trevas aberta numa
irradiação, sol espectro.
A
pieuvre anda; também nada. É um tanto peixe e um tanto réptil. Arrasta-se no
fundo do mar. Utiliza as suas oito pernas. Roja-se como a lagarta.
Não
tem osso, nem sangue e nem carne. É flácida. Não tem nada dentro. É uma pele.
Pode-se virar-lhe os tentáculos de dentro para fora, como dedos de uma luva.
Tem
um só orifício no centro dos oito raios. É fria toda ela.
Repelente
bicho, é um do mediterrâneo. É um contato hediondo, essa gelatina animada que
envolve o nadador, onde as mãos mergulham, onde as unhas trabalham, bicho que
se rasga sem matar, e que se puxa sem tirar, espécie de criatura resvaladiça e
tenaz, que escorrega entre os dedos; mas nada iguala a súbita aparição da
pieuvre, Medusa servida por oito serpentes.
Não
há aperto igual ao do cefalópode.
É
uma máquina pneumática que ataca. Luta-se com o nada ornado de patas. Nem unhas
nem dentes; uma escarificação indizível. Uma mordedura é temível; é menos ainda
que urna sucção. A garra não iguala a ventosa. A garra é o animal que entra na
carne; a ventosa é o homem que entra no bicho. Incham-se os músculos, torcem-se
as fibras, rebenta a pele, debaixo de um peso imundo, jorra o sangue, e
mistura-se horrivelmente à linfa do molusco. O bicho sobrepõe-se ao homem por
mil bocas infames; a hidra incorpora-se ao homem; o homem amalgama-se à hidra.
Ficam sendo um só. Pesa aquele sonho. O tigre pode antes apenas devorar; o
polvo (horror!) aspira. Puxa o homem a si e em si, e, atado, enviscado,
impotente, o homem sente-se lentamente esvaziado naquele terrível saco, que é
um monstro.
Além
do terrível, que é ser comido vivo, há o inexprimível, que é ser bebido vivo.
Essas
estranhas animações são ao princípio rejeitadas pela ciência, segundo o hábito
de sua excessiva prudência; depois estuda-as, descreve-as, classifica-as,
inscreve-as, põe-lhes rótulos, procura exemplares; expõe-nas em museus; elas
entram na nomenclatura; ela os qualifica moluscos, invertebrados, raiados;
verifica-lhes as fronteiras; um pouco além os calamares, um pouco aquém os
depiários; para estas hidras da água salgada acham um análago na água doce, o
argironete; divide-as em grande, média e pequena espécie; admite mais
facilmente a pequena espécie que a grande, o que é, em todas as regiões, a
tendência da ciência, a qual é mais microscópica que telescópica; olha a sua
construção e chama-os cefalópodes; conta as suas antenas e chama-os octópodes.
Feito isto, deixa-os assim. Onde a ciência os larga, a filosofia os retoma.
A
filosofia estuda por sua vez esses entes. Ela vai menos longe e mais longe que
a ciência. Não os disseca, medita-os. Onde o escalpelo trabalhou, imerge a hipótese.
Procura a causa final. Profundo tormento de pensador. Essas criaturas o
inquietam quase sobre o criador. São as surpresas hediondas. São os
perturbadores do contemplativo. Ele as verifica desvairado. São as formas
intencionais do mal. Que fazer diante dessas blasfêmias da criação contra si
própria? A quem deve ele queixar-se?
O
possível é uma matriz formidável. O mistério concentra-se em monstros. Lanhos
de sombra saem deste penedo — a iminência —, rasgam-se, destacam-se, rolam,
flutuam, condensam-se, enchem-se do negrume ambiente, recebem as polarizações
desconhecidas, tomam vida, compõem uma forma com obscuridade e uma alma com o
miasma, e vão-se, larvas através da vitalidade. É alguma coisa semelhante às
trevas feitas animais. Por quê? Para quê? Volta a questão eterna.
Esses
animais são fantasmas e monstros, a um tempo. São provados e improváveis. Ser é
o fato, não ser é o direito. São os anfíbios da morte. A sua inverossimilhança
complica a sua existência. Tocam a fronteira humana e povoam o limite
quimérico. Negais o vampiro, aparece a pieuvre. E uma certeza que desconcerta a
nossa segurança. O otimismo, que é a verdade, perde-se quase diante deles. São
a extremidade visível dos círculos negros. Marcam a transição da nossa
realidade a outra. Parecem pertencer a esse começo de entes terríveis que o
sonhador entrevê confusamente na noite.
Esses
prolongamentos de monstros, no invisível ao princípio, no possível depois,
foram suspeitados, vistos talvez, pelo êxtase severo, e pelo olhar fixo dos magos
e dos filósofos. Daí a conjetura de um inferno. O demônio é o tigre do
invisível. A besta feroz das almas foi denunciada ao gênero humano por dois
visionários, um que se chama João, outro que se chama Dante.
Se,
com efeito, os círculos da sombra continuam indefinidamente, se, depois de um
anel há outro, se isto vai em progressão ilimitada, se existe a cadeia, de que
estamos resolvidos a duvidar, é certo que a pieuvre numa extremidade prova
Satanás na outra.
É
certo que o mau num limite prova a maldade no outro.
Todo
animal feroz, como toda inteligência perversa, é esfinge. Esfinge terrível,
propondo o enigma terrível. O enigma do mal.
Essa
perfeição do mal é que faz inclinar às vezes os grandes espíritos para a crença
do Deus duplo, para o tremendo bifronte dos maniqueus.
Uma
rede chinesa, roubada na última guerra, no palácio do império da China,
representa o tubarão comendo o crocodilo, o qual come a serpente, a qual come a
águia, a qual come a andorinha, a qual come a lagarta.
Toda
a natureza devora ou é devorada. As presas mastigam-se umas às outras.
Entretanto
os sábios que também são filósofos, e por consequência benévolos para a
criação, acham ou acreditam achar a explicação disto. O fim destas coisas
aparece, entre outros, a Bonnet de Genebra, aquele misterioso espírito exato,
que foi oposto a Buffon, como mais tarde Geoffroy Saint-Hilaire o foi a Cuvier.
A explicação dizem ser esta: a morte exige a inumação. Esses vorazes são
coveiros.
Todas
as criaturas entram umas nas outras. Podridão é alimentação. Assustadora
limpeza do globo. O homem, carnívoro, também é coveiro. A nossa vida é feita de
morte. Tal é a lei terrífica. Somos sepulcros.
No
nosso mundo crepuscular, esta fatalidade da ordem produz monstros. Perguntais:
por quê? É por isto.
Será
isto a explicação? Será esta a resposta? Mas então por que não será outra a
ordem? Reaparece a questão.
Vivamos,
seja.
Mas
façamos com que a morte nos seja progresso. Aspiremos aos mundos menos
tenebrosos.
Sigamos
a consciência que nos leva para lá.
Porquanto,
não o esqueçamos nunca, o preferível só é achado pelo melhor.
CAPÍTULO III
OUTRA
FORMA DE COMBATE NO ABISMO
Tal
era o animal a quem, desde alguns instantes, Gilliatt pertencia.
Aquele
monstro era o habitante daquela grota. Era o medonho gênio do lugar. Espécie de
sombrio demônio da água.
Todas
essas magnificências tinham por centro o horror.
Um
mês antes, no dia que pela primeira vez Gilliatt penetrou na caverna, a forma
escura, entrevista por este nas dobras da água secreta, era aquela pieuvre.
Estava
ela em sua casa.
Quando
Gilliatt, entrando pela segunda vez na caverna, em busca do caranguejo, viu o
buraco onde pensou que o caranguejo se tivesse refugiado, a pieuvre estava no
seu buraco à espreita.
Pode-se
imaginar esta espera?
Nenhum
pássaro ousaria chocar, nenhum ovo ousaria abrir, nenhuma flor ousaria
desabrochar, nenhum seio ousaria aleitar, nenhum coração ousaria amar, nenhum
espírito ousaria voar, se se pensasse nas sinistras emboscadas do abismo.
Gilliatt
metera o braço no buraco; a pieuvre agarrou-o.
Gilliatt
estava preso.
Era
a mosca daquela aranha.
Gilliatt
tinha água até a cintura, os pés agarrados nos seixos arredondados e
resvaladiços, com o braço direito atado pelas correias da pieuvre, e o tronco
do corpo desaparecendo quase debaixo das dobras e cruzamentos daquela atadura
horrível.
Dos
oitos braços da pieuvre, três aderiam à rocha, cinco aderiam a Gilliatt. Deste
modo agarrados ao granito por um lado e ao homem pelo outro, encadeavam Gilliatt
ao rochedo. Gilliatt tinha em si 250 chupadores. Complicação de angústia e de
enjôo. Estava apertado dentro de uma grande mão, cujos dedos elásticos e do
comprimento de 1 metro são inteiramente cheios de pústulas vivas que lhe
fuçavam na carne.
Já
o dissemos, não se pode arrancar a pieuvre. Quem o tenta, fica mais fortemente
amarrado. Ela aperta-se mais. O seu esforço cresce na razão do esforço do
homem. Quanto maior é a sacudidela, maior é a constrição.
Gilliatt
só tinha um recurso, a faca.
Tinha
a mão esquerda livre; é sabido que ele usava dela poderosamente. Podia dizer-se
que tinha duas mãos direitas.
Nessa
mão tinha ele a faca aberta.
Não
se cortam as antenas da pieuvre; é um couro impossível de cortar, resvala
debaixo da lâmina; demais, a superposição é tal que um corte nessas correias
iria até à carne.
O
polvo é formidável, há, contudo, uma maneira de vencê-lo. Os pescadores de Serk
o sabem; quem os viu executar no mar certos movimentos bruscos, também o sabe.
Os ouriços-do-mar também conhecem esse modo; têm uma maneira de morder a siba
que lhe corta a cabeça. Daí vem que se encontram muitas sibas e pieuvres sem
cabeça no mar alto.
O
polvo, na verdade, só é vulnerável na cabeça.
Gilliatt
não o ignorava.
Nunca
tinha visto uma pieuvre daquele tamanho. Logo da primeira vez, achava-se
agarrado pela grande espécie. Qualquer outro ter-se-ia perturbado.
Há
um momento para vencer a pieuvre, como o touro; é o instante em que o touro
curva o pescoço, é o instante em que a pieuvre estica a cabeça; instante
rápido. Quem o deixa escapar está perdido.
Tudo
o que acabamos de dizer passou-se em alguns minutos. Gilliatt sentia crescer a
sucção das 250 ventosas.
A
pieuvre é traidora. Procura apavorar a presa. Agarra e espera o mais que pode.
Gilliatt
tinha a faca na mão. As sucções aumentavam.
Ele
olhava para a pieuvre, a pieuvre olhava para ele.
De
repente, o bicho desprendeu do rochedo a sexta antena e, atirando-a sobre
Gilliatt, procurou agarrar-lhe o braço esquerdo.
Ao
mesmo tempo esticou vivamente a cabeça. Mais um segundo e a sua boca
aplicar-se-ia sobre o peito de Gilliatt. Gilliatt, sangrado no corpo e preso
pelos braços, estaria morto.
Mas
Gilliatt vigiava. Espreitado, espreitava.
Evitou
a antena, e, no momento em que o bicho ia agarrar-lhe o peito, a sua mão armada
abateu-se sobre o bicho.
Houve
duas convulsões em sentido inverso: a da pieuvre e a de Gilliatt. Foi luta de
dois relâmpagos.
Gilliatt
mergulhou a ponta da faca na viscosidade chata e, com um movimento giratório
semelhante à torção de uma chicotada, fazendo um círculo à roda dos dois olhos,
arrancou a cabeça como quem arranca um dente.
Estava
acabado.
O
bicho caiu.
Parecia
uma roupa que se desprende. Destruída a bomba aspirante, desfez-se o vácuo. As
quatrocentas ventosas largaram ao mesmo tempo o rochedo e o homem. Aquele
andrajo foi ao fundo da água.
Gilliatt,
ofegante da luta, pôde ver a seus pés, em cima das pedras do fundo, dois montes
gelatinosos e informes, a cabeça de um lado, o resto de outro. Dizemos resto,
porque não se poderia dizer corpo.
Gilliatt,
contudo, receando algum ataque convulsivo da agonia, colocou-se fora de alcance
dos tentáculos.
Mas
o animal estava bem morto. Gilliatt fechou a faca.
CAPÍTULO IV
NADA SE
ESCONDE, NADA SE PERDE
Era
tempo de matar a pieuvre. Gilliatt estava quase sem fôlego; tinha o braço
direito e o corpo roxos; esboçavam-se neles mais de duzentos tumores; alguns
vertiam sangue. O remédio para essas lesões é a água salgada; Gilliatt
mergulhou na água. Ao mesmo tempo esfregava-se com a palma da mão e os tumores
desapareciam.
Recuando
e mergulhando na água, achou-se ele próximo da espécie de cava que ficava ao pé
do buraco onde a pieuvre o agarrou.
A
cava prolongava-se obliquamente, e a seco, debaixo das grandes paredes da
caverna. Os seixos que ali se tinham ajuntado levantavam o fundo acima das
marés ordinárias. Essa anfratuosidade era um largo címbrio abatido, um homem
podia entrar curvando-se. A claridade verde da caverna penetrava ali e
iluminava-a fracamente.
Aconteceu
que, esfregando a pele intumescida, Gilliatt levantou maquinalmente os olhos.
Olhou para dentro da cava. Estremeceu.
Pareceu-lhe
ver no fundo desse buraco, na sombra, uma espécie de cara rindo.
Gilliatt
ignorava a palavra alucinação, mas conhecia a coisa. Os misteriosos encontros
com o inverossímil que chamamos alucinações existem na natureza. Ilusões ou
realidades, as visões aparecem. Quem está presente vê-as passar. Gilliatt, como
dissemos, era um pensativo. Tinha a grandeza de ser às vezes alucinado como um
profeta. Não se é impunemente sonhador dos lugares solitários.
Acreditou
em uma dessas miragens das quais, homem noturno como era, mais de uma vez teve
medo.
A
anfratuosidade figurava exatamente um forno de cal. Era um nicho baixo, em
forma de asa de cesto, cujas curvaturas abruptas iam estreitando-se até a
extremidade da cripta onde os seixos e a abóbada se juntavam e fechavam.
Gilliatt
entrou e, inclinando a cabeça, dirigiu-se para o que estava no fundo.
Era,
com efeito, alguma coisa que ria. Era uma caveira.
Não
havia só a caveira, havia também o esqueleto. Um esqueleto humano estava
deitado na cava.
O
olhar de um homem audaz, em tais ocasiões, quer saber das coisas a fundo.
Gilliatt
olhou em roda de si.
Estava
cercado de uma porção de caranguejos.
Não
se mexiam eles. Era o aspecto de um formigueiro morto. Todos os caranguejos
estavam mortos. Estavam vazios.
Os
grupos, semeados, faziam no chão de seixos que enchiam a cava constelações
disformes.
Gilliatt,
com o olhar fito em outra parte, caminhara por cima sem reparar.
Na
extremidade da cripta onde chegara Gilliatt, havia maior espessura. Era um
montão imóvel de antenas, de patas e de mandíbulas. Pinças abertas
conservavam-se direitas, e já se não fechavam. As caixas de ossos não se mexiam
debaixo de sua crosta de espinhos; algumas viradas mostravam o interior lívido.
Este amontoado parecia uma multidão de sitiantes e tinha o entravamento de um
espinheiro.
Debaixo
desse montão estava o esqueleto.
Via-se,
debaixo dessa porção de tentáculos e escamas, o crânio com as estrias, as
vértebras, os fêmures, as tíbias, os longos dedos nodosos, com unhas. As
costelas estavam cheias de caranguejos. Tinha palpitado ali algum coração. Os
buracos dos olhos estavam atopetados de bolor marinho. Algumas conchas tinham
deixado a sua baba nas fossas nasais. Não havia nesse recanto da caverna nem
sargaços, nem ervas, nem sopro de ar. Nenhum movimento. Os dentes riam.
O
lado assustador do riso é a imitação que faz dele uma caveira.
Aquele
maravilhoso palácio do abismo bordado e incrustado de todas as pedrarias do mar
revelava por fim o seu segredo. Era um covil, a pieuvre morava aí; e era uma
tumba, aí jazia um homem.
A
imobilidade espectral do esqueleto e dos moluscos oscilava vagamente, por causa
da reverberção das águas subterrâneas que tremia naquela petrificação. Os
caranguejos, mistura medonha, pareciam ter acabado a sua refeição. Aquelas
cascas pareciam comer aquele esqueleto. Nada mais estranho do que aquela bicharia
morta, sobre aquele homem finado. Sombrias continuações da morte.
Gilliatt
tinha, diante de si, o armário da pieuvre.
Visão
lúgubre, donde surgia o horror profundo das coisas. Os caranguejos tinham
comido o homem, a pieuvre tinha comido os caranguejos.
Não
havia nenhum resto de roupa ao pé do cadáver. O homem devia ter sido agarrado
nu.
Gilliatt,
atento e examinando, começou a tirar os caranguejos de cima do homem. Quem era
esse homem? O cadáver estava admiravelmente dissecado. Dissera-se uma preparação
de anatomia; toda a carne estava eliminada; já não restava nenhum músculo. Se
Gilliatt fosse do ofício, reconheceria isso. Os periósteos estavam brancos,
polidos e como que lustrados. Sem alguns filamentos verdes que apareciam aqui e
ali, seria marfim puro. As divisões cartilaginosas estavam delicadamente
afiladas. A tumba faz essas joalherias sinistras.
O
cadáver estava como que enterrado debaixo dos caranguejos mortos. Gilliatt
desenterrava-o.
De
repente, inclinou-se vivamente.
Acabava
de ver, à roda da coluna vertebral, uma espécie de atilho. Era um cinto de
couro, que evidentemente fora atado ao ventre do homem antes de morrer.
O
couro estava cheio de mofo. A fivela estava enferrujada.
Gilliatt
puxou o cinto; as vértebras resistiram, e Gilliatt teve de quebrá-las, para
tirar o cinto. O cinto estava intato. Começava a formar-se nele uma crosta de
conchas.
Gilliatt
apalpou o cinto, e sentiu um objeto duro de forma quadrada no interior. Não era
possível abrir a fivela, Gilliatt cortou o couro com a faca.
O
cinto continha uma caixinha de ferro e algumas moedas de ouro. Gilliatt contou
20 guinéus.
A
caixinha era uma velha boceta de marinheiro, abrindo-se por mola. Estava muito
enferrujada. A mola, completamente oxidada, já não funcionava.
A
faca veio em auxílio de Gilliatt. Com a ponta da lâmina, fez ele pular a tampa
da boceta.
A
boceta abriu-se.
Só
havia papel dentro dela.
Um
macinho de folhas finas, dobradas em quatro, estava no fundo da boceta. Estavam
úmidas, mas não alteradas. A boceta, hermeticamente fechada, preservou-as.
Gilliatt abriu-as.
Eram
três notas do banco de 1.000 libras esterlinas cada uma, formando uma soma de
75.000 francos.
Gilliatt
dobrou-as, pô-las na caixinha, aproveitou o pouco lugar que restava para deitar
dentro os 20 guinéus, e fechou a caixinha o melhor que pôde.
Depois
examinou o cinto.
O
couro, outrora envernizado pela parte de fora, não o era no interior. Aí
estavam traçadas algumas letras com tinta gordurosa. Gilliatt decifrou as
letras e leu: “Sr. Clubin”.
CAPÍTULO V
HÁ LUGAR
PARA ALOJAR-SE A MORTE NO INTERVALO QUE SEPARA 6 POLEGADAS DE 2 PÉS
Gilliatt
meteu outra vez a caixinha no cinto, e pôs o cinto na algibeira da calça.
Deixou
o esqueleto aos caranguejos com a pieuvre morta ao pé.
Enquanto
Gilliatt esteve com a pieuvre e o esqueleto, a maré enchente tinha tapado o
bocal da entrada. Gilliatt só pôde sair mergulhando por baixo do arco. Foi-lhe
fácil; conhecia a saída, e era mestre nessas ginásticas do mar.
Adivinhava-se
o drama que se passara ali dez semanas antes. Um monstro agarrara o outro. A
pieuvre agarrara Clubin.
Foi
isso, na sombra inexorável, o que se poderia chamar o encontro das hipocrisias.
Houve, no fundo do abismo, um embate dessas duas existências feitas de emboscada
e de trevas, e uma, que era a besta, executou a outra, que era a alma.
Sinistras justiças.
O
caranguejo alimenta-se da carne morta, a pieuvre alimenta-se de caranguejos. A
pieuvre apanha um animal que nada, uma lontra, um cão, um homem se pode, bebe-lhe
o sangue, e deixa no fundo da água o corpo morto. Os caranguejos são
escaravelhos necróforos do mar. Atrai-os a carne pútrida; eles aproximam-se,
comem o cadáver; a pieuvre os come depois. As coisas mortas desaparecem no
caranguejo, o caranguejo desaparece na pieuvre. Já indicamos esta lei.
Clubin
foi o engodo da pieuvre.
A
pieuvre reteve-o e afogou-o; os caranguejos o devoraram. Alguma vaga o levou
para aquela cava, no fundo da anfratuosidade onde Gilliatt o achou.
Gilliatt
voltou, procurando nos rochedos outra coisa que não fosse caranguejos.
Parecer-lhe-ia comer carne humana.
Demais,
ele tratava de cear o melhor possível antes de partir. Já nada o retinha no
rochedo. As grandes tempestades são sempre seguidas de uma calma que dura
muitos dias às vezes. Nenhum perigo havia ainda quanto ao mar. Gilliatt estava
resolvido a partir no dia seguinte de manhã. Era conveniente conservar durante
a noite, por causa da maré, o tapamento ajustado entre as Douvres; mas Gilliatt
contava desfazer de madrugada essa tapagem, empurrar a pança para fora, e abrir
vela para Saint-Sampson. A brisa de calma que soprava, e que era sudoeste, era
exatamente o vento que lhe era preciso.
Entrava
o primeiro quarto de lua de maio; os dias eram longos.
Quando
Gilliatt, terminada a pesquisa dos rochedos e mais ou menos satisfeito do
estômago, voltou para a garganta das Douvres, onde estava a pança, já o sol
caíra no poente, e o crespúsculo redobrava com aquele meio luar que se pode
chamar o luar do crescente; a maré, que tinha enchido completamente, começava a
vazar. O cano da máquina, de pé acima da pança, estava coberto pela espuma da
tempestade de uma camada de sal que a lua embranquecia.
Isto
lembrou a Gilliatt que a tempestade deitara, dentro da pança, muita água de
chuva e do mar, e que, se quisesse partir no dia seguinte, era preciso esvaziar
a barca.
Tinha
verificado, ao deixar a pança para ir procurar caranguejos, que havia cerca de
6 polegadas de água no porão. A pá de esgoto bastaria para deitar essa água fora.
Chegando
à pança, Gilliatt teve um movimento de terror. Havia na pança perto de 2 pés de
água.
Incidente
terrível, a pança fazia água.
Enchera-se
pouco a pouco durante a ausência de Gilliatt. Carregada como estava, 20
polegadas de água eram sobreposse. Mais um pouco e a pança iria a pique. Se
Gilliatt chegasse uma hora mais tarde, só acharia fora da água o casco e o
mastro.
Não
podia perder um minuto em deliberação.
Era
preciso procurar o buraco, tapá-lo, depois esvaziar a barca, ou ao menos aliviá-la.
As bombas da Durande tinham-se perdido no naufrágio; Gilliatt estava reduzido à
pá de esgoto.
Procurar
o buraco, antes de tudo. Era o mais urgente.
Gilliatt
pôs mãos à obra, sem mesmo dar-se tempo de vestir, e todo trêmulo. Já não
sentia fome, nem frio.
A
pança continuava a encher. Felizmente não havia vento. O menor abalo da onda
meteria a pança a pique.
A
lua desaparecera.
Gilliatt,
às apalpadelas, curvado, mergulhado mais de metade na água, levou muito tempo
na pesquisa. Afinal encontrou a avaria.
Durante
a tempestade, no momento crítico em que a pança se arqueava, a robusta barca
tinha batido violentamente contra o rochedo. Um dos relevos da pequena Douvre
fizera-lhe uma fratura no casco, a estibordo.
Este
buraco estava infelizmente, podia-se quase dizer perfidamente, situado perto do
ponto do encontro das duas porcas, o que, junto ao aturdimento da tempestade,
impedia Gilliatt, na revista obscura e rápida que fizera, com o temporal, de
descobrir o estrago.
A
fratura assustava porque era larga, e tranquilizava porque, embora imersa neste
momento pela enchente interna da água, ficava acima do lume da água.
No
momento em que rompeu o buraco, a vaga era loucamente sacudida no estreito, e
já não havia nível de flutuação, a onda penetrara pela efração na pança; a
pança, com mais essa carga, mergulhou algumas polegadas, e, mesmo depois do
apaziguamento das vagas, o peso do líquido filtrado, fazendo levantar a linha
de flutuação, manteve o buraco debaixo da água. Daí vinha a iminência do
perigo. A cheia aumentara de 6 polegadas a 20. Mas, conseguindo tapar o buraco,
podia-se esvaziar a pança; esvaziada a pança, voltaria à flutuação normal, a
fratura sairia da água, e a seco, a reparação seria fácil, ou ao menos
possível. Gilliatt, como dissemos, tinha ainda a ferramenta de carpintaria em
bom estado.
Mas
quantas incertezas antes de chegar a isso! Quantos perigos! Quantas más
probabilidades! Gilliatt ouviu a água correr inexoravelmente. Um empuxão e tudo
iria a pique. Que desgraça! Talvez já não fosse tempo.
Gilliatt
acusou-se amargamente. Deveria ter visto a avaria. As 6 polegadas de água no
porão deviam tê-lo advertido. Foi estupidez atribuir as 6 polegadas de água à
chuva e à espuma. Exprobrou-se o ter dormido e o ter comido; exprobrou-se a
fadiga, e quase também a tempestade e a noite. Tudo era culpa dele.
Essas
coisas duras, que ele dizia a si próprio, iam de envolta com o vaivém do
trabalho e não o impediam de observar.
Achar
o buraco era o primeiro passo; tapá-lo era o segundo. Não se podia mais agora.
Não se faz carpintaria debaixo da água.
Havia
uma circunstância favorável, era que o buraco do casco foi aberto no espaço
compreendido entre as duas correntes que prendiam a estibordo o cano da
máquina. A estopa podia prender-se a essas correntes.
Entretanto,
a água subia. Já passava de 2 pés.
Gilliatt
tinha água acima dos joelhos.
CAPÍTULO VI
“DE
PROFUNDIS AD ALTUM”
Gilliatt
tinha à sua disposição, na reserva do aparelho da pança, um grande pano
alcatroado com as competentes cordas longas nas quatro pontas.
Pegou
nesse pano, amarrou dois cantos pelos cabos às duas argolas das correntes do
cano do lado do buraco, e atirou o pano por cima da borda. O pano caiu como uma
toalha entre a pequena Douvre e a barca, e mergulhou. A água, querendo entrar
na pança, aplicou o pano ao casco sobre o buraco. Quanto mais a água batia,
mais aderia o pano. Foi colocado pela vaga sobre a fratura. A chaga da barca
estava pensada.
A
lona alcatroada interpunha-se entre o interior do porão e as vagas de fora. Já
não entrava nem gota de água sequer.
O
buraco estava tapado, mas não estopado.
Era
uma espera.
Gilliatt
começou a esvaziar a pança. Era tempo de aliviá-la. O trabalho aqueceu-o um
pouco, mas extrema era a fadiga. Gilliat confessava que não iria ao fim e não
chegaria a estancar o porão. Gilliatt comera muito pouco, e tinha a humilhação
de sentir-se extenuado.
Media
o progresso dos trabalhos pela baixa do nível da água nos seus joelhos. A
descida era lenta.
Além
disso, a entrada da água estava apenas interrompida. O mal estava paliado, mas
não reparado. O pano, empurrado na fratura pela vaga, começava a fazer um tumor
pelo lado de dentro. Parecia que havia uma mão fechada debaixo do pano,
procurando romper o buraco. A lona, sólida e alcatroada, resistia; mas o
inchamento e a tensão iam aumentando; não era certo que o pano não cedesse, e,
de um momento para outro, o tumor poderia romper. Recomeçaria então a irrupção
da água.
Em
tal caso, as equipagens em perigo o sabem, não há outro recurso mais que um
batoque. Apanham-se trapos de toda a espécie, o que se acha à mão, tudo quanto
a língua especial chama forro e mete-se o mais que se pode na fenda do tumor da
lona.
Desse
forro Gilliatt não tinha nenhum. Todos os panos e estopas armazenados foram
empregados no trabalho ou dispersos pelo vento.
Podia
achar alguns restos no rochedo, quando muito. A pança já estava bastante
aliviada, e ele podia ausentar-se um quarto de hora; mas como procurar sem luz?
Completa era a escuridão. Já não havia lua; apenas o sombrio céu estrelado.
Gilliatt não tinha fios secos para fazer uma mecha, nem sebo para fazer uma
vela, nem fogo para acendê-la, nem lanterna para abrigá-la. Tudo estava confuso
e indistinto na barca e no escolho. Ouvia a água rumorejar à roda do casco
ferido, nem sequer podia ver o buraco; foi com as mãos que Gilliatt pôde
averiguar a tensão crescente do pano. Era impossível fazer naquela obscuridade
uma pesquisa útil de pedaços de lona e massame esparsos nos cachopos. Como
colher esses andrajos sem luz? Gilliatt contemplava tristemente a noite. Todas
as estrelas e nem uma vela.
A
massa líquida diminuíra na barca, a pressão externa aumentara. Crescia o
inchamento do pano. Intumescia-se cada vez mais. Era um abscesso prestes a abrir.
A situação, um momento melhorada, tornava-se ameaçadora.
Era
imperiosamente necessário um batoque.
Gilliatt
apenas tinha as suas roupas.
Tinha-as
posto a secar nas saliências do rochedo da pequena Douvre. Foi buscá-las, e
depositou-as na borda da pança.
Pegou
no capote alcatroado e, ajoelhando-se na água, meteu-o no buraco, empurrando o
tumor do pano para fora, e portanto esvaziando-o. Depois meteu a pele de
carneiro, depois a camisa de lã, depois a japona. Tudo.
Tinha
apenas uma roupa, tirou-a, e com a calça engrossou e apertou o batoque. Estava
pronto e não parecia insuficiente.
O
batoque saía pelo buraco, tendo o pano por invólucro.
A
água querendo entrar, apertava o obstáculo, alargava-o utilmente na fratura, e
consolidava-o. Era uma espécie de compressa exterior.
No
interior, tendo sido empurrado apenas o centro da lona, ficava à roda do buraco
e do batoque em rolete circular do pano tanto mais aderente quanto que as
desigualdades da fratura o retinham. A via da água estava tapada.
Mas
nada mais precário do que aquilo. Os relevos agudos da fratura que fixavam o
pano podiam furá-lo e, por esses buracos, entraria a água. Gilliatt, na
obscuridade, não descobria isso. Era pouco provável que o batoque durasse até
de manhã. A ansiedade de Gilliatt mudou de forma, mas ele sentia-a crescer ao
mesmo tempo que sentia quebrarem-se-lhe as forças.
Continuou
a esvaziar o porão, mas os seus braços, no extremo esforço, apenas podiam
levantar a pá da água. Estava nu e tremia.
Gilliatt
sentia a aproximação sinistra da extremidade. Talvez houvesse uma vela ao
largo, um pescador que por acaso passasse nas águas de Douvres podia ajudá-lo.
Era chegado o momento em que se tornava necessário um colaborador. Um homem e
uma lanterna, e tudo estaria salvo. Sendo dois, esvaziava-se facilmente a
barca; uma vez estancada, sem aquela sobrecarga líquida, voltaria ao nível de
flutuação, o buraco sairia da água, o reparo seria exequível, podia-se
imediatamente substituir o batoque por uma peça de madeira, e o aparelho
provisório por um conserto definitivo. Senão, era preciso esperar até de manhã,
esperar a noite toda! Funesta demora que podia ser a perdição. Gilliatt tinha a
febre da urgência. Se por acaso algum farol de navio estava à vista, Gilliatt
poderia fazer sinais do alto da grande Douvre. O tempo estava calmo, não havia
vento, não havia mar, um homem agitando-se no fundo estrelado do céu tinha a
possibilidade de ser visto. Um capitão de navio, e mesmo um patrão de lancha,
não anda de noite nas águas das Douvres sem pôr o óculo no escolho; é a
precaução.
Gilliatt
esperava que o vissem.
Escalou
o casco da Durande, empunhou a corda e subiu à grande Douvre.
Nenhuma
vela no horizonte. Nenhum farol.
A
água estava deserta a perder de vista.
Nenhuma
assistência possível e nenhuma resistência possível. Gilliatt, coisa que até
então não sentira, sentiu-se desarmado.
A
fatalidade obscura assenhoreara-se dele. Ele, com a barca, com a máquina da
Durande, com o trabalho, com o bom êxito, com a coragem, tudo isso pertencia ao
golfão. Já não tinha recurso de luta; tornava-se passivo. Como impedir a maré e
a noite? O batoque era o único ponto de apoio. Gilliatt exaurira-se em compô-lo
e completá-lo; fortificá-lo é que já não podia; o batoque devia ficar assim e
fatalmente tinha acabado todo o esforço. O mar tinha à sua discrição aquele
aparelho prematuro aplicado ao buraco. Como resistiria aquele obstáculo inerte?
Chegara-lhe a vez de combater, depois de Gilliatt. Entrava o trapo, retirava-se
o espírito. O intumescimento de uma onda bastava para abrir a fratura. Maior ou
menor pressão, a questão era essa.
O
desfecho ia nascer por uma luta maquinal entre duas quantidades mecânicas.
Gilliatt não podia agora, nem ajudar o auxiliar, nem impedir o inimigo. Era
apenas o espectador da sua vida ou da sua morte. Aquele Gilliatt que tinha sido
uma providência foi substituído no supremo instante por uma resistência
inconsciente.
Nenhuma
das provas e dos pavores que Gilliatt atravessara era igual a esta.
Chegando
ao escolho Douvres, viu-se cercado, como que agarrado pela solidão. A solidão
fazia mais que cercá-lo, envolvia-o. A um tempo mais de mil ameaças o
desafiavam. O vento estava ali, prestes a soprar; ali estava o mar, prestes a
rugir. Era impossível amordaçar a goela ao vento, era impossível desarmar a
boca do mar. E contudo tinha ele combatido; homem, lutara corpo a corpo com o
oceano, engalfinhara-se com a tempestade.
Tinha
afrontado outras ansiedades e necessidades. Pelejou contra outros perigos.
Foi-lhe preciso trabalhar sem ferramenta, carregar fardos sem auxílio, resolver
problemas sem ciência, comer e beber sem provisões, dormir sem leito e sem
teto.
Naquele
rochedo, ecúleo trágico, puseram-lhe a questão as diversas fatalidades iníquas
da natureza, mãe quando quer, algoz quando lhe apraz.
Venceu
o isolamento, venceu a fome, venceu a sede, venceu o frio, venceu a febre,
venceu o trabalho, venceu o sono. Encontrou no caminho os obstáculos
coalizados. Depois da nudez, o elemento; depois da maré, a tempestade; depois
da tempestade, a pieuvre; depois do monstro, o espectro.
Lúgubre
ironia final. Naquele escolho donde Gilliatt contava sair triunfante, Clubin
morto olhara rindo para ele.
Tinha
razão o riso do espectro. Gilliatt via-se perdido. Via-se tão morto como
Clubin.
O
inverno, a fome, a fadiga, o desaparelhar do casco, o transporte da máquina, o
equinócio, o vento, o trovão, a pieuvre, tudo isso nada era ao pé do
arrombamento da pança. Podia-se ter, e Gilliatt os teve, contra o frio, o fogo;
contra a fome, as conchas; contra a sede, a chuva; contra as dificuldades, a
indústria e a energia; contra a maré e a tempestade, o quebra-mar; contra a
pieuvre, a faca. Contra o arrombamento, nada.
O
furacão deixava-lhe aquele adeus sinistro. Última repetição, pérfida estocada,
ataque sorrateiro do vencido ao vencedor. A tempestade fugitiva lançava-lhe
aquela flecha. A derrota olhava para trás e feria. Era o coup de Jarnac
do abismo.
Combate-se
a tempestade; mas como combater um esgoto?
Se
o batoque cedesse, nada podia impedir que a pança fosse a pique. Era a ligadura
da artéria que se rompe. E apenas fosse ao fundo da água, com a máquina dentro,
não havia meio de arrancá-la.
O
magnânimo esforço de dois meses titânicos acabava por um aniquilamento.
Recomeçar era impossível. Gilliatt já não tinha nem forja, nem materiais.
Talvez tivesse ele de ver, ao romper do dia, mergulhar-se lentamente e
irremediavelmente toda a sua obra no golfão.
Coisa
assustadora é sentir debaixo de si a força sombria.
O
golfão atraía-o.
Engolida
a barca, restava-lhe morrer de fome e de frio como o náufrago do rochedo Homem.
Durante
dois longos meses, as consciências e as providências que existem no invisível
tinham assistido a isto: de um lado a extensão, as vagas, os ventos, os relâmpagos,
os meteoros, do outro lado um homem; de um lado o mar, do outro uma alma; de um
lado o infinito, do outro um átomo. E houve batalha.
E
abortava talvez aquele prodígio.
Assim
chegou à impotência o inaudito heroísmo, acabava-se pelo desespero aquele
formidável combate, aquela luta de Nada contra Tudo, aquela Ilíada de um.
Gilliatt,
desvairado, contemplava o espaço.
Nem
mesmo tinha roupa, estava nu diante da imensidade.
Então,
no acabrunhamento de toda aquela enormidade desconhecida, não sabendo já o que
queriam dele, confrontando-se com a sombra, em presença daquela obscuridade
irredutível, no rumor das águas, das ondas, dos marulhos, das espumas, das
lufadas, debaixo das nuvens, debaixo dos ventos, debaixo da vasta força
esparsa, debaixo daquele misterioso firmamento das asas, dos astros e das
tumbas, debaixo da intenção possível das coisas desmesuradas, tendo à roda de
si e em baixo de si o oceano, e acima as constelações, debaixo do insondável,
Gilliatt abateu-se, desistiu, deitou-se ao comprido sobre a rocha, voltado para
as estrelas, vencido, e pondo as mãos diante da profundeza terrível, bradou ao
infinito: “Piedade!”
Abatido
pela imensidade, Gilliatt implorou.
Estava
só naquela noite, em cima daquele rochedo, no meio daquele mar, caído de
cansaço, semelhante a um fulminado, nu como o gladiador no circo, tendo em vez
do circo o abismo, em vez das feras as trevas, em vez dos olhos do povo o olhar
do ignoto, em vez das vestais as estrelas, em vez de César, Deus.
Pareceu-lhe
que se dissolvia no frio, no cansaço, na impotência, na oração, na sombra e
fecharam-se-lhe os olhos.
CAPÍTULO VII
HÁ UM
OUVIDO NO IGNOTO
Correram
algumas horas.
O
sol levantava-se deslumbrante.
O
seu primeiro raio iluminou na plataforma da grande Douvre uma forma imóvel. Era
Gilliatt.
Continuava
estendido em cima do rochedo.
Já
não estremecia aquela nudez gelada e endurecida. Estavam lívidas as pálpebras
fechadas. Era difícil dizer que não era um cadáver.
O
sol parecia contemplá-lo.
Se
aquele homem nu não estava morto, devia estar tão perto disso que bastaria o
menor vento frio para acabá-lo.
Começou
a soprar o vento, tépido e vivificante; era o hálito vernal de maio.
Entretanto,
o sol subia no profundo céu azul; o seu raio menos horizontal ia-se
purpureando. A luz fez-se calor. Cingiu Gilliatt.
Gilliatt
não se mexia. Se respirava, era uma respiração quase extinta que mal poderia
embaciar um espelho.
O
sol continuava a sua ascensão cada vez menos oblíqua sobre Gilliatt. O vento,
que era tépido ao princípio, tornou-se cálido.
Aquele
corpo rígido e nu continuava sem movimento; entretanto a pele parecia menos
lívida.
O
sol, acercando-se do zênite, caía a prumo sobre a plataforma da Douvre. Vertia
do alto do céu uma prodigalidade de luz; juntava-se a ela a vasta reverberação
do mar tranquilo, o rochedo começava a ficar tépido e aquecia o homem.
O
peito de Gilliatt levantou-se com um suspiro.
Vivia.
O
sol continuava as suas carícias, quase ardentes. O vento, que já era o vento do
meio-dia, e o vento de verão, aproximava-se de Gilliatt como uma boca, soprando
molemente.
Gilliatt
fez um movimento.
Era
inexprimível a tranquilidade do mar, tinha um murmúrio de ama ao pé do filho.
As vagas pareciam embalar o escolho.
As
aves marinhas que conheciam Gilliatt voavam inquietas por sobre ele. Já não era
o medo selvagem do princípio. Era um quê de terno e fraternal. Soltavam
pequenos guinchos. Pareciam chamá-lo; uma gaivota que o amava, sem dúvida, teve
a familiaridade de descer para junto dele. Começou a falar-lhe. Ele não parecia
ouvi-la.
Ela
saltou-lhe sobre o ombro e começou a brincar docemente com o bico nos seus
lábios.
Gilliatt
abriu os olhos.
Os
pássaros, alegres e ariscos, voaram.
Gilliatt
levantou-se e espreguiçou-se como o leão acordando, correu a bordo da
plataforma e olhou para o intervalo das Douvres.
A
pança estava intata. O batoque resistira: provavelmente o mar maltratara-o
pouco.
Tudo
estava salvo.
Gilliatt
já não estava cansado. Refizeram-se-lhe as forças. O desmaio foi um sono.
Esvaziou
a pança, pôs a avaria fora da flutuação, vestiu-se, bebeu, comeu, tornou-se
alegre.
O
buraco, examinado de dia, demandava mais trabalho do que Gilliatt pensou. Era
uma grande avaria. Gilliatt gastou o dia inteiro em repará-lo.
No
dia seguinte, de madrugada, depois de desfazer a tapagem e abrir a saída do
estreito, vestido com os andrajos que tinham vencido a avaria, tendo consigo o
cinto de Clubin e os 75.000 francos, em pé na pança consertada, ao lado da
máquina salva, com um vento de feição e mar admirável, Gilliatt saiu do escolho
Douvres.
Aproou
sobre Guernesey.
No
momento em que se afastava do escolho, alguém que lá estivesse tê-lo-ia ouvido
entoar a meia-voz a canção Bonny Dundee.
DÉRUCHETTE
LIVRO PRIMEIRO
NOITE E
LUA
CAPÍTULO
PRIMEIRO
O SINO DO
PORTO
O
Saint-Sampson de hoje é quase uma cidade; o Saint-Sampson de há quarenta anos
era quase uma aldeia.
Chegando
a primavera, e acabadas as vigílias de inverno, deitavam-se todos cedo.
Saint-Sampson era uma antiga paróquia de tocar a recolher, tendo conservado o
hábito de apagar cedo as luzes. Os habitantes deitavam-se e levantavam-se com o
dia. As velhas aldeias normandas são voluntariamente galinheiros.
Digamos
além disso que Saint-Sarpson, à exceção de algumas ricas famílias, é uma
população de pedreiros e carpinteiros. O porto é um lugar de consertar navios.
Durante o dia extraem-se pedras ou trabalham-se pranchas: aqui a picareta, além
o martelo. Perpétuo meneio de pau e granito. À tarde tudo cai de cansaço e
dorme como chumbo. Os rudes trabalhos fazem os duros sonos.
Uma
noite dos princípios de maio, depois de ter por alguns instantes contemplado o
crescente da lua nas árvores e ouvido o passo de Déruchette passeando sozinha,
ao fresco da noite, no jardim de Bravées, Mess Lethierry entrou para seu quarto
situado sobre o porto e deitou-se. Doce e Graça estavam na cama. Exceto
Déruchette, tudo dormia na casa. Portas e postigos estavam fechados. Ninguém
andava nas ruas. Raras luzes, semelhantes ao piscar de olhos, que vão
fechar-se, brilhavam aqui e ali nas janelas dos sótãos, anúncio do deitar dos
criados. Já 9 horas tinham batido na velha torre romana, coberta de hera, que
partilha com a Igreja de Saint-Brelade de Jersey a singularidade de ter por
data quatro uns: 1111, o que significa mil cento e onze.
A
popularidade de Mess Lethierry em Saint-Sampson vinha do bom êxito da Durande.
Acabado este, fez-se o vácuo. Parece que o enguiço pega, e que as pessoas
infelizes têm a peste consigo, tão rápida é a quarentena em que as metem. Os
lindos filhos-famílias evitavam Déruchette. O isolamento em roda da casa de
Lethierry era tal que nem mesmo se soube aí o pequeno grande acontecimento
local que nesse dia agitou Saint-Sampson. O cura da paróquia, o Reverendo Joe
Ebenezer Caudray, estava rico. O tio dele, o magnífico decano de Saint-Asaph,
morrera em Londres. A notícia foi trazida pelo sloop de posta Cashmere,
chegado da Inglaterra nessa manhã, e cujo mastro via-se no porto de
Saint-Sampson. O Cashmere devia voltar para Southampton no dia seguinte ao
meio-dia, e dizia-se que devia levar o reverendo cura, chamado à Inglaterra sem
demora para a abertura oficial do testamento, sem contar as outras urgências de
uma grande herança para recolher. Durante o dia Saint-Sampson dialogou
confusamente. O Cashmere, o Reverendo Ebenezer, o tio morto, a riqueza,
a partida, as promoções possíveis no futuro foram o fundo do burburinho. Só uma
casa, que nada sabia, ficara silenciosa, a de Lethierry.
Mess
Lethierry atirou-se à maca vestido.
Depois
da catástrofe da Durande, atirar-se à maca era o recurso dele. Deitar-se no
grabato é o recurso do prisioneiro, e Mess Lethierry era prisioneiro da
tristeza. Deitava-se; era uma trégua, um descanso, uma suspensão de idéias. Dormia?
Não. Velava? Não. Propriamente falando, havia dois meses e meio — já dois meses
e meio —, Mess Lethierry estava em sonambulismo. Não era ainda senhor de si.
Andava nesse estado misto e difuso que costumam ter os que sofreram grandes
abatimentos. As suas reflexões não eram pensamentos, o seu sono não era
repouso. De dia não era um homem acordado, de noite não era um homem
adormecido. Estava em pé, estava deitado, eis tudo. Quando estava na maca,
esquecia-se um pouco; a isso chamava ele dormir; as quimeras flutuavam nele e
por sobre ele a nuvem noturna, cheia de faces confusas, atravessava-lhe o
cérebro; o Imperador Napoleão ditava-lhe as suas memórias, havia muitas
Déruchettes, estranhos pássaros pousavam nas árvores, as ruas de
Lons-le-Saulnier tornavam-se serpentes. O pesadelo era o descanso do desespero.
Passava as noites a sonhar e os dias a cismar.
As
vezes ficava uma tarde inteira, imóvel à janela do quarto que dava para o
porto, com a cabeça baixa, os cotovelos sobre o peitoril de pedra, as orelhas
nas mãos, as costas voltadas para o mundo inteiro, o olhar fito na velha argola
de ferro pregada no muro da casa a alguns pés da janela, onde outrora amarrava
a Durande. Contemplava a ferrugem que invadia a argola.
Mess
Lethierry estava reduzido à função maquinal de viver.
Os
homens mais valentes, privados da sua ideia realizável, atingem a isto. É esse
o efeito das existências esvaziadas. A vida é a viagem, a ideia é o itinerário.
Sem itinerário, pára-se. Perdido o alvo, morre a força. A sorte é um obscuro
poder discricionário. Pode bater com as suas vergastas o nosso ser moral. O
desespero é quase a destituição da alma. Só os grandes espíritos resistem. E
ainda assim…
Mess
Lethierry meditava continuamente, se a absorção pode chamar-se meditação, no
fundo de uma espécie de precipício turvo. Escapavam-lhe palavras desoladoras
como estas: “Só me resta pedir ao céu o meu bilhete de saída”.
Notemos
uma contradição nesta natureza, complexa como o mar, de que Mess Lethierry era,
por assim dizer, o produto; Mess Lethierry não rezava.
Ser
impotente é uma força. Diante das nossas duas grandes cegueiras, o destino e a
natureza, é na sua impotência que o homem acha o ponto de apoio, a oração.
O
homem socorre-se do próprio medo; pede auxílio ao pavor; a ansiedade aconselha
o ajoelhar.
A
oração, enorme força própria da alma, é da mesma espécie que o mistério. A
oração dirige-se à magnanimidade das trevas; a oração contempla o mistério com
os olhos da sombra, e, diante da fixidez poderosa desse olhar súplice, sente-se
um desarmamento possível no ignoto.
Essa
possibilidade entrevista é já uma consolação.
Mas
Lethierry não orava.
No
tempo em que era feliz, Deus existia para ele, pode dizer-se em carne e osso;
Lethierry falava-lhe, dava-lhe a sua palavra, dava-lhe quase, de quando em
quando, um aperto de mão. Mas no infortúnio de Lethierry, fenômeno aliás frequente,
Deus eclipsava-se. Isto acontece a quem imagina um Deus bonachão.
Não
havia para Lethierry, no estado a que chegara, mais que uma visão pura, o
sorriso de Déruchette. Fora desse sorriso, tudo era negro.
Desde
algum tempo, sem dúvida por causa da perda da Durande, cujo choque ela sentia,
tornou-se raro o delicioso riso de Déruchette. Parecia preocupada.
Extinguia-se-lhe a gentileza de pássaro e de criança. Já ninguém a via, ao tiro
de peça da manhã, fazer uma cortesia e dizer ao sol: “Bom…jour!… queira
entrar”. Tinha às vezes um ar sério, coisa triste naquela doce criatura.
Entretanto fazia esforço para rir a Mess Lethierry, e para distraí-lo, mas a
sua alegria apagava-se dia a dia, e cobria-se de poeira, como a asa de uma
borboleta que um alfinete atravessou. Acrescentemos que, seja porque a tristeza
do tio a fizesse triste, e há dores de reflexo, seja por outras razões, ela
parecia agora inclinar-se muito para a religião. No tempo do antigo cura,
Jaquemin Herodes, ela ia apenas quatro vezes à igreja. Agora era muito assídua.
Não faltava a ofício algum, nem aos domingos, nem às quintas-feiras. As almas
piedosas da paróquia viam com satisfação esta emenda. Porquanto é uma grande
ventura para uma moça, que corre tantos perigos entre os homens, voltar-se para
Deus.
Ao
menos isso faz com que os pais fiquem tranquilos a respeito de namoricos.
De
noite, sempre que o tempo permitia, passeava no jardim, uma ou duas horas.
Andava quase tão pensativa como Mess Lethierry, e sempre só. Déruchette
deitava-se por último. Mas isto não impedia que Graça e Doce não a perdessem de
vista, por este instinto de espionar que anda ligado à domesticidade; espionar
desenfada de servir.
Quanto
a Mess Lethierry, no estado obscurecido em que se achava o seu espírito, não
percebia essas pequenas alterações nos hábitos de Déruchette. Demais, ele não
nascera aio. Nem mesmo notava a pontualidade de Déruchette aos ofícios da
paróquia. Tenaz no seu preconceito contra as coisas e os homens do clero, teria
visto sem prazer essas frequências à igreja.
Não
é que a sua situação moral não estivesse em caminho de modificar-se. O pesar é
nuvem e muda de forma.
As
almas robustas, como dissemos, são às vezes, em certas desgraças, destituídas
quase, mas não de todo. Os caracteres viris, tais como Lethierry, reagem num
tempo dado. O desespero tem graus ascendentes. Do acabrunhamento sobe-se ao
abatimento, do abatimento à aflição, da aflição à melancolia. A melancolia é um
crepúsculo. Aí o sofrimento funde-se em sombria alegria.
A
melancolia é a ventura de ser triste.
Essas
atenuações elegíacas não eram feitas para Lethierry; nem a natureza do seu
temperamento, nem o gênero da sua desgraça, comportavam essas variações.
Somente, no momento em que o encontramos, a cisma do seu primeiro desespero
tendia a dissipar-se; sem estar menos triste, Lethierry estava menos inerte;
continuava a estar sombrio, mas já não estava amortecido; voltava-lhe uma certa
percepção dos fatos e dos acontecimentos; e começava a sentir alguma coisa
desse fenômeno que se poderia chamar a entrada na realidade.
Assim
que, de dia, na sala baixa, não escutava as palavras, mas ouvia-as. Graça veio
uma manhã, triunfante, dizer a Déruchette que Mess Lethierry rasgara o
invólucro do seu jornal.
Esta
meia aceitação da realidade é em si um bom sintoma. É a convalescença. As
grandes desgraças aturdem. Sai-se do aturdimento por aquele modo. Mas essa
melhora parece ao princípio um agravo. O estado do sonho anterior embotava a
dor; antes via-se turvo, sentia-se pouco; agora a vista é clara, não se escapa
a coisa alguma, sangra-se por tudo. Aviva-se a chaga. A dor acentua-se com
todos os pormenores que se vêem. Revê-se tudo na memória. Achar tudo, é
lamentar tudo. Há nesta volta à realidade todas as provas amargas. Fica-se
melhor e pior. É o que Lethierry sentia. Sofria mais distintamente.
O
que trouxera Mess Lethierry ao sentimento da realidade foi um abalo. Digamos
qual foi ele.
Uma
tarde, a 15 ou 20 de abril, ouviu-se na porta da sala baixa as duas pancadas
que anunciavam o correio. Doce abriu a porta. Era uma carta.
Vinha
do mar a carta. Era dirigida a Mess Lethierry. Trazia o selo de Lisboa.
Doce
levou a carta a Mess Lethierry que estava fechado no quarto. Ele pegou na
carta, pô-la maquinalmente na mesa, e nem olhou. A carta ficou ali uma boa
semana sem ser aberta.
Aconteceu,
porém, que uma manhã Doce disse a Mess Lethierry:
—
Devo tirar a poeira de que está cheia a carta?
Lethierry
pareceu acordar.
—
Sim — disse ele.
E
abriu a carta. Leu isto:
“No mar, 10 de março.
“Mess Lethierry, de
Saint-Sampson.
“Receberá o senhor com
prazer notícias minhas.
“Estou no Tamaulipas, em
viagem para não voltar. Há na equipagem um marujo Ahier-Tostevin, de Guernesey,
que há de voltar aí, e que lhe há de contar alguma coisa. Aproveito o encontro
do navio Hernán Cortés, com destino a Lisboa, para mandar-lhe esta carta.
“Espante-se. Sou um homem
honesto.
“Tão honesto como o Sr.
Clubin.
“Devo crer que já sabe o
que aconteceu; contudo, não será mal que lhe lembre o caso.
“Ei-lo:
“Restituí-lhe os seus
capitais.
“Tomei-lhes emprestados,
um pouco incorretamente, 50.000 francos. Antes de deixar Saint-Malo, entreguei,
para o senhor, ao seu homem de confiança, o Sr. Clubin, três notas do banco de
1.000 libras cada uma, o que faz 75.000 francos. Creio que há de achar esse
reembolso suficiente.
“O Sr. Clubin tratou dos
seus interesses, e recebeu o seu dinheiro com energia. Parece-me um homem
zeloso; é por isso que o advirto.
“O seu homem de confiança,
“RANTAINE.”
“Post scriptum. — O Sr. Clubin tinha um revólver, e foi por isso
que não tive recibo.”
Tocai
um torpedo, tocai uma garrafa de Leyde carregada, e sentireis o mesmo que
sentiu Mess Lethierry lendo esta carta.
Debaixo
daquela sobrecarta, naquela folha de papel dobrada em quatro, a que, no
primeiro momento, dera pouca atenção, havia uma comoção.
Lethierry
reconheceu a letra, reconheceu a assinatura. Quanto ao fato, nada compreendeu
ao princípio.
A
comoção foi tal que lhe pôs, por assim dizer, o espírito em pé.
O
fenômeno dos 75.000 francos que Rantaine confiara a Clubin era um enigma, e era
por isso o lado útil do abalo, visto que obrigava Lethierry a refletir. Fazer
uma conjetura é, para o pensamento, uma ocupação sã. Acorda o raciocínio,
convoca-se a lógica.
Desde
algum tempo, a opinião pública de Guernesey ocupava-se em julgar Clubin, o
honrado homem que por tantos anos foi unanimemente admitido na circulação da
estima. Interrogavam-se uns aos outros, duvidava-se, apostava-se pró e contra.
Apareceram singulares esclarecimentos. Clubin começava a aparecer em toda a
luz, isto é, tornava-se negro.
Houve
em Saint-Maio uma devassa judiciária para saber onde parava o guarda-costa 619.
A perspicácia legal enganara-se, o que lhe acontece muitas vezes. Partia da
suposição de que o guarda-costa fora atraído por Zuela e embarcado no Tamaulipas
para o Chile. Esta hipótese engenhosa trouxe consigo muitas aberrações. A
miopia da justiça não chegou a ver Rantaine. Mas no decurso da pesquisa os
magistrados descobriram outros rastos; complicara-se o negócio que já era
obscuro. Clubin entrava no enigma. Havia uma coincidência, alguma relação
talvez, entre a partida do Tamaulipas e a perda da Durande. Na taverna
da porta Dinan, onde Clubin acreditava não ser conhecido, foi conhecido; o
taverneiro falou; Clubin tinha comprado uma garrafa de aguardente. Para quem? O
armeiro da Rua de São Vicente também falou; Clubin comprara um revólver. Contra
quem? O dono da hospedaria João também falou: Clubin costumava ter ausências
inexplicáveis. O Capitão Gertrais-Gaboureau também falou; Clubin quis partir,
apesar de avisado e sabendo que devia haver nevoeiro. A tripulação da Durande
também falou. O carregamento era falho e mal arranjado, negligência fácil de
compreender, se o capitão quer perder o navio. Também falou o passageiro
guernesiano; Clubin cuidou ter naufragado nos Hanois. Também falou a gente de
Torteval; Clubin foi ali alguns dias antes do naufrágio e dirigiu-se para
Plainmont, vizinho dos Hanois. Levava uma mala, e não voltou com ela.
Igualmente falaram os furta-ninhos; a história deles parecia prender-se ao
desaparecimento de Clubin, contanto que, em vez de almas do outro mundo, fossem
contrabandistas. Finalmente a própria casa mal-assombrada de Plainmont falou;
algumas pessoas, resolvidas a se esclarecerem, tinham-na escalado, e o que
acharam dentro? Exatamente a mala de Clubin.
Os
magistrados de Torteval apreenderam a mala e abriram-na. Continha provisões de
boca, um óculo, um cronômetro, roupas de homem e roupa branca marcada com as
iniciais de Clubin. Tudo isso, nas conversas de Saint-Maio e Guernesey, ia-se
acumulando, e já roçava pela fraude. Comparavam-se sintomas confusos;
averiguavam-se o desdém singular pelos conselhos, a afronta do nevoeiro, a
negligência na arrumação das cargas, a garrafa de aguardente, o timoneiro
ébrio, a substituição do capitão ao timoneiro, o movimento do leme, ao menos
desastrado. O heroísmo em ficar no navio tornava-se velhacaria. Demais, Clubin
enganou-se no escolho. Admitida a intenção de fraude, compreendeu-se a escolha
dos Hanois, a facilidade de nadar para a costa, e a residência na casa
mal-assombrada até chegar a ocasião de fugir. A mala acabava a demonstração.
Qual o elo que prendia esta aventura à do guarda-costa, ainda não se tinha
descoberto. Adivinhava-se uma correlação; nada mais. Entrevia-se, quanto a esse
homem, o guarda-costa 619, um drama trágico. Clubin talvez não representasse
nele, mas descobriam-no nos bastidores.
Nem
tudo se explicava pela fraude. Havia um revólver sem emprego. O revólver entrou
talvez no caso do guarda.
O
faro do povo é fino e acertado. O instinto público é hábil nestas restaurações
da verdade feitas de pedaços soltos. Somente, nesses fatos, de que resultava
uma fraude verossímil, havia sérias incertezas.
Tudo
concordava; mas não havia base.
Não
se perde um navio pelo gosto de perdê-lo. Não se correm os riscos do nevoeiro,
do escolho, do nadar, do refúgio e da fuga, sem um interesse. Qual seria o
interesse de Clubin?
Via-se
o ato, não se via o motivo.
Daí
vinha a dúvida a muitos espíritos. Onde não há motivo, parece que não há ato.
A
lacuna era grave.
Ora,
a carta de Rantaine vinha preencher a lacuna.
A
carta dava o motivo de Clubin. Queria roubar 75.000 francos.
Rantaine
era o Deus ex machina. Descia das nuvens com uma vela na mão.
A
carta era o esclarecimento final.
Explicava
tudo essa carta e, de mais a mais, anunciava uma testemunha: Ahier-Tostevin.
Coisa
decisiva, sabia-se agora o emprego do revólver. Rantaine estava
incontestavelmente informado de tudo. A sua carta fazia tocar tudo com o dedo.
Nenhuma
atenuante possível na malvadeza de Clubin. Premeditara o naufrágio, e a prova
era a mala levada para a casa Plainmont. E supondo-o inocente, admitindo o
naufrágio fortuito, não devia ele, no último momento, decidido ao sacrifício,
entregar os 75.000 francos aos homens que se salvaram na chalupa? Era evidente.
Mas que era feito de Clubin? Foi provavelmente vítima do seu erro. Pereceu sem
dúvida no escolho Douvres.
O
andaime de conjeturas, todas conformes, na realidade, ocupou durante muitos
dias o espírito de Mess Lethierry. A carta de Rantaine teve a utilidade de obrigá-lo
a pensar. Teve um primeiro abalo de surpresa, depois fez esforço de refletir.
Fez outro esforço mais difícil ainda para informar-se. Aceitou e procurou mesmo
as conversas. No fim de oito dias tornou-se prático até certo ponto; o espírito
fortaleceu-se e quase ficou curado. Saiu do estado turvo.
A
carta de Rantaine, admitindo que Mess Lethierry tivesse algum dia a esperança
do reembolso, fez desaparecer a última probabilidade.
À
catástrofe da Durande ajuntava-se o naufrágio dos 75.000 francos. A carta
empossava-o do dinheiro tanto quanto lhe bastava para sentir a perda.
Mostrava-lhe o fundo da ruína.
Daí
veio um sofrimento novo e agudíssimo, que já indicamos. Começou, coisa que há
dois meses não fazia, a preocupar-se com a casa, do que havia, e que reformas
devia fazer. Tédio eriçado de mil pontas, quase pior que o desespero. Odiosa
coisa é suportar a desgraça por miúdo, disputar passo a passo ao fato realizado
o terreno que ele vem tomar. Aceita-se a massa do infortúnio, a poeira não. O
conjunto acabrunha, o pormenor tortura. Há pouco a catástrofe fulminava, agora
mortifica.
Essa
é a humilhação agravante do infortúnio. É uma segunda anulação que vem
ajuntar-se à primeira, e feia. Desce-se um degrau do nada. Depois do sudário, o
andrajo.
Nada
mais triste do que pensar em decair.
Parece
simples estar arruinado. Golpe violento; brutalidade da sorte; é a catástrofe
uma vez por todas. Seja. Aceita-se. Tudo está acabado. Fica-se arruinado. Está
dito, morreu. Qual! Vive-se. É o que no dia seguinte começa-se a sentir. Por
quê? Por alfinetadas. Passa um homem sem tirar o chapéu, chovem as contas das
lojas, ri-se um inimigo. Ri-se talvez do último trocadilho de Arnal, mas é o
mesmo, o trocadilho pareceu-lhe mais engraçado, exatamente porque estás pobre.
Lês a tua decadência até nos olhares indiferentes; as pessoas que jantavam em
tua casa acham demasiado os três pratos da tua mesa; os teus defeitos saltam
aos olhos de todos; as ingratidões, não tendo que esperar mais nada, tiram a
máscara; todos os imbecis predisseram o que te acontece; os maus dilaceram-te,
os piores lamentam-te. E mais cem pormenores mesquinhos. A náusea sucede às
lágrimas. Bebias vinho, beberás sidra. Duas criadas! Uma seria demais. Devia-se
despedir esta, sobrecarregar aquela. Há flores demais no jardim; planta antes
batatas. Davas flores aos amigos, vende-as agora no mercado. Quanto aos pobres,
já não deves pensar neles; também não és pobre? As toaletes, questão pungente.
Diminuir uma fita a uma mulher, que suplício! Recusar o enfeite, a quem te dá a
beleza! Ter ares de avarento! Talvez que ela te diga: “Pois que! Tiraste as
flores do meu jardim, e agora as tiras do meu chapéu!”
Ai
triste! Condená-la aos vestidos velhos! A mesa de família é silenciosa.
Parece-te que te querem mal. Os rostos amados parecem preocupados. Eis o que é
a decadência. Cumpre-te morrer todos os dias. Cair não é nada, é a fornalha.
Decair é o fogo lento.
A
queda é Waterloo; a decadência é Santa Helena. A sorte, encarnada em
Wellington, tem ainda alguma dignidade; mas, quando se faz Hudson Lowe, que
vilania! O destino torna-se um bigorrilhas. Vê-se o homem de Campoformio
querelando por um par de meias de seda. Agorentou-se a Inglaterra, agorentando
Napoleão.
Essas
duas fases, Waterloo e Santa Helena, reduzidas às proporções burguesas, todos
as atravessam.
Na
noite de que falamos e que era uma das primeiras noites de maio, Lethierry,
deixando Déruchette passear ao luar, no jardim, deitou-se mais triste que
nunca.
Rolavam-lhe
no espírito todas essas minúcias mesquinhas e desagradáveis, complicações de
fortunas perdidas, todas essas preocupações de terceira ordem, que começam por
ser insípidas e acabam lúgubres. Triste acumulação de misérias. Mess Lethierry
sentia a sua queda irremediável. Que devia fazer agora? Que seria dele? Que
sacrifícios devia impor a Déruchette? Quem devia despedir, Doce ou Graça?
Venderia a casa? Seria obrigado a abandonar a ilha? Não ser coisa alguma onde
se foi tudo é uma decadência insuportável.
E
pensar que estava acabado! Recordar as viagens da França ao arquipélago, a
partida às terças-feiras, a chegada às sextas, a chusma no cais, aqueles
grandes carregamentos, aquela indústria, aquela prosperidade, aquela navegação
direta e altiva, aquela máquina sujeita à vontade do homem, aquela caldeira
onipotente, aquele fumo, aquela realidade! O vapor é a bússola completa; a
bússola indica o caminho, o vapor segue por ele. Uma propõe, a outra executa.
Onde estava agora a sua Durande, aquela magnífica e soberana Durande, aquela
senhora do mar, aquela rainha que o fazia rei? Ter sido o homem ideia, o homem
triunfo, o homem revolução! E renunciar! Abdicar! Não existir! Fazer rir aos
outros! Ser um saco onde já houve alguma coisa! Ser o passado quem foi o
futuro! Merecer a compaixão altiva dos idiotas! Ver triunfar a rotina, a
obstinação, o ramerrão, o egoísmo, a ignorância! Ver começar outra vez as
viagens dos cúteres góticos sacudidos pela vaga! Ver a antiqualha rejuvenescer!
Perder a vida! Perder a luz e sofrer o eclipse! Ah! Como era belo ver sobre as
vagas aquele cano orgulhoso, aquele prodigioso cilindro, aquele pilar de um
capitel de fumo, aquela coluna maior que a de Vendôme, porque havendo nesta
apenas um homem, ostentava-se naquela o progresso! O oceano está por baixo; era
a certeza em pleno mar. Viu-se aquilo, naquela pequena ilha, naquele pequeno
porto, naquele pequeno Saint-Sanlpson? Sim, viu-se! Pois quê! Viu-se e não se
verá mais!
Toda
esta obsessão da saudade mortificava Lethierry. Há soluços no pensamento.
Talvez nunca sentisse mais amargamente a sua perda. Depois de tais excessos
agudos costuma vir um entorpecimento. Debaixo desse peso de tristeza Lethierry
adormeceu.
Ficou
cerca de duas horas com as pálpebras fechadas, dormindo pouco, sonhando muito,
febril. Esses torpores cobrem um obscuro e fatigante trabalho do cérebro. Pela
meia-noite, um pouco antes, ou um pouco depois, Lethierry sacudiu o
adormecimento. Acordou, abriu os olhos, a janela estava em frente à maca, viu
uma coisa extraordinária.
Havia
uma forma diante da janela. Forma inaudita. O cano de um vapor.
Mess
Lethierry levantou-se de um salto. A maca oscilou, como se fosse abalada pela
tempestade. Lethierry olhou. Havia na janela uma visão. O porto, iluminado pela
lua, refletia-se nos vidros, e, no meio do luar e próxima à casa, surgia uma
soberba forma reta, redonda e negra.
Era
um tubo de máquina.
Lethierry
precipitou-se para fora da maca, correu à janela, levantou a vidraça,
inclinou-se e reconheceu.
O
cano da Durande estava diante dele.
Estava
no lugar do costume.
As
quatro correntes prendiam o cano à borda de um barco dentro do qual
distinguia-se uma massa de forma complicada.
Lethierry
recuou, voltou as costas à janela e caiu assentado na maca. Voltou-se outra vez
e viu a mesma visão.
Um
momento depois, apenas o espaço de um relâmpago, estava ele no cais com uma
lanterna na mão.
À
velha argola onde se prendia a Durande estava amarrada uma barca trazendo um
pouco à ré um vulto maciço donde saía o cano que ficava em frente à janela. A
proa da barca prolongava-se além do canto da parede da casa e encostada ao
cais.
Não
havia ninguém na barca.
A
barca tinha uma forma especial, conhecida por todos em Guernesey; era a pança.
Lethierry
pulou dentro. Correu à massa que ficava além do mastro. Era a máquina.
Era
ela, inteira, completa, intata, sentada sobre o fundo de metal; a caldeira
estava com todas as peças; a árvore das rodas estava arranjada e amarrada perto
da caldeira; a bomba estava no seu lugar; nada faltava.
Lethierry
examinou a máquina.
A
lanterna e a lua ajudaram-lhe o exame.
Passou
em revista todo o mecanismo.
Viu
as duas caixas que estavam ao pé. Olhou para a árvore das rodas.
Foi
ao camarote; estava vazio.
Voltou
à máquina e apalpou-a. Meteu a cabeça na caldeira. Ajoelhou-se para ver dentro.
Colocou
na caldeira a lanterna que iluminava todo o mecanismo e produzia o efeito de
uma máquina acesa.
Depois
deu uma gargalhada, e, levantando-se, com o olhar fixo na máquina e os braços
estendidos para o cano, gritou: “Socorro!”
O
sino do porto ficava perto. Lethierry correu a ele, segurou a corda, e começou
a sacudir o sino impetuosamente.
CAPÍTULO II
AINDA O
SINO DO PORTO
Gilliatt,
com efeito, depois de uma travessia sem incidente, mas um pouco demorada por
causa do peso do carregamento, chegou a SaintSampson de noite, mais perto das
10 horas que das 9.
Gilliatt
calculara a hora. A maré começava a encher. Havia luz e água; podia-se entrar
no porto.
O
porto estava adormecido. Havia alguns navios ancorados, cascos sem vergas,
cestos de gávea recolhidos e sem faróis. Descobria-se no fundo alguns navios em
conserto postos no estaleiro. Grandes cascos desmastreados, levantando acima
das amuradas furadas as pontas curvas de seus membros desnudos, semelhantes a
escaravelhos mortos deitados de costas e com as pernas para o ar.
Gilliatt,
apenas entrou no porto, examinou o cais. Não havia luz em parte alguma, nem na
casa de Lethierry nem nas outras. Não havia ninguém na rua, exceto talvez um
homem que acabava de entrar ou sair do presbitério. E ainda assim poderia ser
que não fosse uma pessoa, porque a noite esfuma tudo quanto desenha e o luar
faz tudo indeciso. A distância ajudava a obscuridade. O presbitério de então
era situado do outro lado do porto, no lugar onde outrora havia uma estiva
coberta.
Gilliatt
encostou-se silenciosamente ao muro e amarrou a pança na argola da Durande,
debaixo da janela de Mess Lethierry.
Depois
saltou para terra.
Gilliatt,
deixando atrás de si a pança, rodeou a casa, atravessou uma viela, depois
outra, nem mesmo olhou para o entroncamento do caminho que ia ter à casa dele,
e no fim de alguns minutos parou no recanto da parede onde havia um pé de malva
silvestre com flores cor-de-rosa em junho, azevinho, hera e urtigas. Era daí
que, escondido no espinheiro, assentado na pedra, tantas vezes, nos dias de
verão e durante longas horas e meses inteiros, tinha ele contemplado, por cima
do muro, tão baixinho que tentava um pulo, o jardim de Bravées e, através das
árvores, duas janelas de um quarto da casa. Achou a pedra, o espinheiro, o muro
baixo, o ângulo obscuro, e, como um animal que volta ao buraco, antes
escorregando que andando, Gilliatt agachou-se. Depois de assentado não fez
movimento algum. Olhou. Tornou a ver o jardim, as alamedas, as grutas, os
canteiros, a casa, as duas janelas do quarto. A lua mostrava-lhe aquele sonho.
Era-lhe horrível ter de respirar. Gilliatt forcejava por conter a respiração.
Parecia-lhe
ver um paraíso fantasma. Tinha medo que lhe voasse tudo aquilo. Era quase impossível
que aquelas coisas estivessem diante dele; e se estavam, eram sem dúvida
prestes a esvair-se como acontece com as coisas divinas. Bastava um sopro para
desaparecer tudo. Gilliatt tremia por isso.
Perto
dele, e em frente, no jardim, à beira de uma alameda, havia um banco de pau
pintado de verde. Os leitores lembram-se desse banco.
Gilliatt
contemplava as duas janelas. Pensava em alguém que estivesse dormindo naquele
quarto. Quisera não estar onde estava. Preferia morrer a retirar-se. Pensava
numa respiração levantando um seio. Ela, aquela miragem, aquela alvura dentro
de uma nuvem, aquela obsessão de seu espírito, estava ali! Gilliatt pensava no
inacessível que dormia, e tão perto, e ao alcance do seu êxtase; pensava na
mulher impossível adormecida e visitada também pelas quimeras; na criatura
desejada, remota, esvaecente, fechando os olhos com a fronte na mão; no
mistério do sono da criatura ideal; nos sonhos que pode ter um sonho. Não
ousava pensar além e pensava; arriscava-se nas faltas de respeito do devaneio;
perturbava-o a quantidade de forma feminina que pode haver no anjo. A hora
noturna faz com que os olhos tímidos lancem furtivos olhares; censurava-se por
ir tão longe, receava profanar com a reflexão; a seu pesar, constrangido,
trêmulo, Gilliatt olhava para o invisível. Sentia a comoção e quase o
sofrimento de imaginar uma saia numa cadeira, um manto atirado ao tapete, um
cinto desenlaçado, um lenço de pescoço. Imaginava um colete, um atacador
arrastando no chão, meias, ligas. Tinha a alma nas estrelas.
As
estrelas são feitas tanto para o coração humano de um pobre, como para o
coração de um milionário. Em certo grau de paixão todos os homens são sujeitos
às fascinações profundas. Se a natureza é áspera e primitiva, razão de mais. A
condição selvagem aumenta o sonho.
A
fascinação é uma plenitude que transborda como todas. Ver as janelas era quase
demais para Gilliatt.
De
repente, viu ele a própria moça.
Dentre
os ramos de uma moita, já espessa pela primavera, saiu com inefável lentidão,
fantástica e celeste, uma figura, um vestido, um rosto divino, quase um clarão
no meio do luar.
Gilliatt
sentiu-se desfalecer. Era Déruchette.
Déruchette
aproximou-se. Parou. Deu alguns passos para afastar-se, parou ainda, depois
voltou e assentou-se no banco de pau. A lua batia nas árvores, algumas nuvens
erravam por entre as estrelas pálidas, o mar falava às coisas da sombra, a
meia-voz, a cidade dormia, do horizonte subia uma neblina, a melancolia era
profunda.
Déruchette
inclinava a fronte com aquele olhar pensativo que contempla atentamente o
vácuo; estava sentada de perfil, com a cabeça quase descoberta, tendo um
barretinho desatado que lhe deixava ver na nuca delicada a origem dos cabelos,
enrolava maquinalmente nos dedos uma fita do barrete, a penumbra modulava as
suas mãos de estátua, o vestido era de uma dessas cores que de noite se fazem
brancas, as árvores moviam-se como se fossem suscetíveis ao encanto que
ressumbrava dela, via-se a pontinha de um de seus pés, havia nos seus cílios
fechados aquela vaga contração que anuncia uma lágrima represa ou um pensamento
repelido, os seus braços tinham a indecisão fascinante de não achar onde
encostar-se, misturava-se-lhe à postura alguma coisa flutuante, era antes um
clarão que uma luz, antes uma graça que uma deusa, as dobras da barra da saia
eram delicadas, o seu admirável rosto meditava virginalmente. Estava tão perto,
que era terrível. Gilliatt ouvia-a respirar.
Havia
ao longe um rouxinol que cantava. A passagem do vento nos ramos punha em movimento
o inefável silêncio noturno. Déruchette, gentil e sagrada, aparecia naquele
crepúsculo como o resultado daqueles raios e daqueles perfumes; o encanto
imenso e esparso ia ter misteriosamente a ela, nela condensava-se, era a sua
irradiação. Parecia a alma flor de toda aquela sombra.
Toda
aquela sombra, flutuante em Déruchette, pesava sobre Gilliatt. Estava
desvairado. O que ele sentia não cabe dizê-lo em palavras; a comoção é sempre
nova e as palavras já serviram muito; daí vem a impossibilidade de exprimir a
comoção. Existe o abatimento do encanto. Ver Déruchette, vê-la ela própria,
ver-lhe o vestido, ver-lhe o barrete, ver-lhe a fita que ela enrolava nos
dedos, pode-se acaso imaginar semelhante coisa?
Estar
perto dela, era acaso possível? Ouvi-la respirar; respirava pois! Então os
astros respiram. Gilliatt estremecia. Era o mais miserável e o mais inebriado
dos homens. Não sabia que fazer. O delírio de vê-la esmagava-o. Pois quê! Era
ela quem ali estava, era ele quem estava ali! As suas idéias, deslumbradas e
fixas, paravam naquela criatura como se fora um rubi. Contemplava aquela nuca e
aqueles cabelos. Gilliatt nem mesmo pensava que tudo aquilo lhe pertencia, que
em pouco tempo, talvez amanhã, ele teria o direito de tirar-lhe aquela coifa e
deslaçar aquela fita.
Sonhar
até esse ponto era um excesso de audácia que ele não poderia conceber um
momento. Tocar com o pensamento e quase tocar com a mão. O amor era para
Gilliatt como mel para urso, o sonho exímio e delicado. Pensava confusamente.
Não sabia o que tinha. O rouxinol cantava. Ele sentia-se expirar.
Levantar-se,
galgar o muro, aproximar-se, dizer “sou eu”, falar a Déruchette, foi ideia que
não teve. Se a tivesse, fugiria. Se alguma coisa semelhante a um pensamento
chegou a despontar no seu espírito, era que Déruchette estava ali, que ele não
tinha necessidade de mais coisa alguma, e que a eternidade começava.
Um
rumor arrancou a ambos, ela do devaneio, ele do êxtase.
Andava
alguém no jardim. Não se via por causa das árvores. Era um passo de homem.
Déruchette
levantou os olhos.
Os
passos aproximaram-se e cessaram. Quem quer que era, parou. Devia estar perto.
O caminho onde estava o banco perdia-se entre duas moitas. Era aí que estava
essa pessoa, nesse intervalo, a poucos passos do banco.
O
acaso tinha disposto a espessura dos ramos de tal modo, que Déruchette via a
pessoa, sem que Gilliatt a visse.
O
luar projetava no chão, fora das moitas, e até ao banco, uma sombra. Gilliatt
viu essa sombra.
Olhou
para Déruchette.
Ela
estava pálida. A boca, entreaberta, esboçava um grito de surpresa. Levantou-se
um pouco do banco, tornou a sentar-se; havia na sua atitude uma mistura de fuga
e de fascinação. O seu pasmo era um encanto cheio de receio. Tinha nos lábios
quase a irradiação do sorriso, e um reflexo de lágrimas nos olhos. Estava como
que transfigurada por aquela presença. Não parecia que a criatura ali chegada
fosse da terra. Havia no olhar de Déruchette a reverberação de um anjo.
A
pessoa, que era apenas uma sombra para Gilliatt, falou enfim. Saiu das moitas
uma voz, mais doce que uma voz de mulher, e voz de homem, contudo. Gilliatt
ouviu estas palavras:
—
Vejo-a todos os domingos e quintas-feiras; disseram-me que outrora a senhora
não ia lá tantas vezes. Fizeram este reparo, peço-lhe perdão. Nunca lhe falei,
era o meu dever; falo-lhe hoje, é meu dever. Antes de tudo devo dirigir-me à
senhora. O Cashmere parte amanhã; foi por isso que eu vim. A senhora
passeia todas as noites neste jardim. Eu fazia mal em conhecer tantos os seus
hábitos se não tivesse o pensamento que tenho. A senhora é pobre. Eu sou rico
desde esta manhã. Quer-me por seu marido?
Déruchette
ajuntou as duas mãos como uma suplicante, e olhou para aquele que falava, muda,
olhar fixo, trêmula da cabeça aos pés.
A
voz continuou:
—
Amo-a, Deus não fez o coração do homem para que se cale. Se ele promete a
eternidade, é porque quer o consórcio. Há para mim na terra uma mulher, é a
senhora. Penso na senhora como numa oração. A minha fé está em Deus, na senhora
a minha esperança. As asas que tenho é a senhora quem as traz. A senhora é a
minha vida, e já o meu céu.
—
Senhor — disse Déruchette —, não há na casa ninguém para responder-lhe.
A
voz soou de novo:
—
Tive este lindo sonho. Deus não proíbe os sonhos. A senhora faz-me o efeito de
uma glória. Amo-a apaixonadamente. A santa inocência é a senhora. Sei que esta
é a hora em que todos estão dormindo, mas eu não tinha outra ocasião à minha
escolha. Lembra-se daquele passo da Bíblia que nos leram? Gênesis, capítulo 25.
Muitas vezes pensei nele. Reli-o muitas vezes. O Reverendo Herodes dizia-me:
“É-lhe preciso uma mulher rica”. Eu respondi: “Não, preciso de uma mulher
pobre”. Falo-lhe de longe, e recuarei mesmo se a senhora não quiser que a minha
sombra toque em seus pés. É a senhora a soberana; virá a mim se quiser. Assim o
espero. A senhora é a forma viva da bênção.
—
Senhor — balbuciou Déruchette —, eu não sabia que reparavam em mim aos domingos
e quintas-feiras.
A
voz continuou:
—
Nada se pode contra as coisas angélicas. Toda a lei é amor. O casamento é
Canaã. A senhora é a beleza prometida. Ave, cheia de graça!
Déruchette
respondeu:
—
Eu pensava que não fazia mal indo como as outras pessoas à igreja.
A
voz continuou:
—
Deus pôs as suas intenções nas flores, na aurora, na primavera, e Ele quer que
se ame. A senhora é bela nesta sacra obscuridade da noite. Este jardim foi
cultivado pela senhora, e no perfume há alguma coisa de seu hálito. Os
encontros das almas não dependem delas. Não é culpa nossa. A senhora ia à
igreja, nada de mais; eu estava lá, nada de mais. Nada fiz senão sentir que a
amava. Algumas vezes os meus olhos levantaram-se para a senhora. Fiz mal, mas
como não? Foi contemplando-a que eu fiquei assim. Não podia impedi-lo. Há
vontades misteriosas acima de nós. O primeiro templo é o coração. Ter a sua
alma em minha casa, tal é o paraíso terrestre a que eu aspiro. Aceita? Enquanto
fui pobre nada disse. Eu sei a sua idade. Tem vinte anos, eu tenho 26. Parto
amanhã, se me recusa não voltarei. Quer ser minha noiva? Os meus olhos já lhe
fizeram esta pergunta mais de uma vez e a meu pesar. Amo-a, responda-me.
Falarei a seu tio quando ele puder receber-me, mas em primeiro lugar à senhora.
É a Rebeca que se pede Rebeca. Só se me não ama.
Déruchette
inclinou a fronte e murmurou:
—
Oh! Eu o adoro!
Isto
foi dito em voz tão baixa que só Gilliatt ouviu. Ela abaixou a fronte, como se
o rosto na sombra pusesse na sombra o pensamento.
Houve
uma pausa. As folhas das árvores não se mexiam. Era esse momento severo e
aprazível em que o sono das coisas ajunta-se ao sono das criaturas e em que a
noite parece escutar as palpitações da natureza. Neste recolhimento elevava-se,
como uma harmonia que completa um silêncio, o ruído imenso do mar.
A
voz continuou:
—
Senhora.
Déruchette
estremeceu.
A
voz continuou:
—
Estou esperando.
—
O que espera?
—
A sua resposta.
Deus
a ouviu — disse Déruchette.
Então
a voz tornou-se quase sonora e ao mesmo tempo mais doce que nunca. Estas
palavras saíram da moita como de uma sarça ardente.
—
Tu és minha noiva. Levanta-te e vem. Que o teto azul, onde estão os astros,
assista a esta aceitação da minha alma pela tua alma, e que o nosso primeiro
beijo se misture ao firmamento!
Déruchette
levantou-se e ficou um instante imóvel e com o olhar fixo diante de si,
fitando, sem dúvida, outro olhar. Depois, a passos lentos, com a cabeça
erguida, os braços pendentes e os dedos das mãos abertos, como quando se
caminha para um amparo desconhecido, ela dirigiu-se para a moita e desapareceu.
Um
instante depois, em vez de uma sombra na areia, havia duas, confundiam-se
ambas, e Gilliatt via a seus pés o abraço daquelas duas sombras.
O
tempo corre de nós como de uma ampulheta, e nós não temos o sentimento dessa
fuga, sobretudo em certos instantes supremos. De um lado aquele par, que
ignorava a testemunha e não a via, do outro aquela testemunha que não via os
dois, mas que sabia que eles ali estavam, quantos minutos ficaram assim nessa
misteriosa suspensão? Seria impossível dizêlo. De súbito ecoou um ruído
longínquo e uma voz gritou: “Socorro!” E o sino do porto começou a soar. É
provável que a felicidade ébria e celeste não ouvisse o tumulto.
O
sino continuou a soar. Quem procurasse Gilliatt no ângulo do muro já o não
encontraria.
LIVRO
SEGUNDO
RECONHECIMENTO
EM PLENO DESPOTISMO
CAPÍTULO
PRIMEIRO
ALEGRIA
CERCADA DE ANGÚSTIA
Mess
Lethierry agitava o sino com sofreguidão. De súbito parou. Viu um homem voltar
a esquina do cais. Era Gilliatt.
Mess
Lethierry correu a ele, ou, para melhor dizer, atirou-se a ele, tomou-lhe a mão
entre as suas, e olhou-o fitamente em silêncio; um desses silêncios de
explosão, não sabendo por onde irromper.
Depois,
com violência, sacudindo, e puxando, e apertando-o nos braços, fez entrar Gilliatt
na sala baixa de Bravées, empurrou a porta com o tacão, que ficou entreaberta,
assentou-se ou caiu, em uma cadeira ao lado de uma grande mesa iluminada pela
lua, cujo reflexo embranquecia vagamente o rosto de Gilliatt, e, com uma voz
onde havia gargalhadas e soluços misturados, gritou:
—
Ah! Meu Filho! Homem do bagpipe! Gilliatt! Eu bem sabia que eras tu! A
pança! Que diabo! Conta-me isso! Pois foste! Há cem anos queimavam-te. É
feitiçaria. Não falta nada. Já examinei, reconheci, apalpei. Adivinho que as
rodas estão nas duas caixas. Então chegaste. Fui procurar-te na pança. Toquei o
sino. Procurava-te. Eu dizia comigo: onde está ele? Quero devorá-lo. É preciso
convir que se passam coisas extraordinárias. Aquele animal volta do escolho
Douvres. Traz-me a vida. Com os diabos! Tu és um anjo. Sim, sim, sim, é a minha
máquina. Ninguém acredita. Hão de vê-la e dizer: não falta nem uma serpentina.
O tubo de água não se deslocou. É incrível que não houvesse avaria. Falta só
pôr um pouco de azeite. Mas como foi? E a Durande vai agora navegar! A árvore
das rodas está desmontada como se fosse feita por um ourives. Dá-me a tua
palavra de honra que eu não estou doido.
Levantou-se,
respirou e prosseguiu:
—
Jura-me. Que revolução! Dou beliscões em mim mesmo, vejo que não sonho. Tu és
meu filho, és meu rapaz, és: Deus. Ah! Meu filho. Ir buscar a minha pobre
máquina! No mar alto! Naquela emboscada do escolho! Tenho visto muita coisa
espantosa em minha vida. Nunca vi coisa assim. Vi os parisienses que são uns
satanases. Boas! Não faziam isto. É pior que a Bastilha. Vi os gaúchos lavrarem
nos pampas, tendo por charrua um galho de árvore, do comprimento de 1 côvado e
por grade um feixe de espinhos puxado por corda de couro; colhem, com isto,
grãos de trigo do tamanho de avelãs. Não valem dois caracóis ao pé de ti.
Fizeste um milagre, um verdadeiro milagre. Ah! Tratante! Salta-me ao pescoço.
Como vai rosnar a gente de Saint-Sarpson! Vou tratar já e já de fazer o navio.
É admirável não ter quebrado a vara da redouça. Meus senhores, ele foi às
Douvres. Às Douvres! Um penedo que não tem rival. Já sabes, está provado que a
coisa foi feita de propósito. Clubin perdeu a Durande para furtar-me o dinheiro
que devia trazer-me. Embriagou Tangrouille. É longo, depois te contarei a pirataria
dele. Eu era um bruto, tinha confiança em Clubin. Mas o malvado não pôde
naturalmente sair de lá. Há um Deus, canalha! Olha, Gilliatt, quanto antes,
ferro na forja, vamos reconstruir a Durande. Dar-lhe-emos 20 pés mais. Agora
fazem-se os navios mais compridos. Hei de comprar madeira em Dantzig e Bremen.
Agora que tenho a máquina hão de emprestar-me dinheiro. A confiança voltará.
Mess
Lethierry deteve-se, levantou os olhos com aquele olhar que vê o céu através do
teto, disse entre dentes: “Há um meio”.
Depois
pôs o dedo médio da mão direita entre as sobrancelhas, com a unha apoiada no
alto do nariz, o que indica passagem de um projeto no cérebro, e continuou:
—
É o mesmo, para começar em grande escala, algum dinheiro basta. Ah! Se eu
tivesse as minhas três notas de banco que o tratante de Rantaine me restituiu e
que o tratante de Clubin me roubou!
Gilliatt,
em silêncio, procurou na algibeira alguma coisa, que colocou diante de si. Era
o cinto de Clubin. Abriu e pôs na mesa o cinto, no interior do qual a lua
deixava ler a palavra: Clubin; tirou da abertura uma caixinha, e da caixinha
três pedaços de papel que desenrolou e estendeu a Mess Lethierry.
Mess
Lethierry examinou os três pedaços de papel. Havia bastante claridade para que
o número 1.000 e a palavra thousand fossem perfeitamente visíveis. Mess
Lethierry pegou nos três bilhetes, pô-los na mesa um ao lado do outro, olhou
para eles, olhou para Gilliatt e ficou um momento calado, depois foi como que
uma erupção depois de uma explosão.
—
Também isto! Tu és prodigioso. As minhas notas do banco! Todas três! Mil cada
uma! Os meus 75.000 francos! Então foste ao inferno? É o cinto de Clubin. Por
Deus: leio-lhe o nojento nome. Gilliatt traz a máquina e mais o dinheiro! Isto
deve ser contado nos diários públicos. Vou comprar madeira de primeira
qualidade. Adivinho, achaste o esqueleto. Clubin apodreceu lá em algum canto.
Compraremos pinho em Dantzig e carvalho em Bremen, faremos um bom casco,
carvalho por dentro, pinho por fora. Em outro tempo fabricavam-se navios menos
perfeitos e eles duravam mais; é que a madeira era mais seca porque não se
construía tanto. Faremos talvez a quilha de olmo. O olmo é bom para estar
sempre na água: andando ora molhado, ora seco, apodrece: o olmo alimenta-se de
água. Que bela Durande vamos fazer! Não me hão de impor. Já não preciso
crédito. Tenho dinheiro. Já se viu coisa assim como Gilliatt? Eu estava
prostrado, abatido, morto. Chega ele e põe-me de pé. E eu que não pensava nele!
Já nem me lembrava. Agora lembra-me tudo. Pobre rapaz! Ah! Bem, sabes, tu casas
com Déruchette.
Gilliatt
encostou-se à parede como se vacilasse e baixinho, mas distintamente, disse:
—
Não.
Mess
Lethierry teve um sobressalto.
—
Como, não?
Gilliatt
respondeu:
—
Não a amo.
Mess
Lethierry foi à janela, abriu-a e fechou-a, pegou nas três notas do banco,
dobrou-as, pôs a caixa em cima, coçou a cabeça, pegou no cinto de Clubin,
atirou-o violentamente contra a parede e disse:
—
Há alguma coisa!
Meteu
as mãos nos bolsos, e continuou:
—
Não amas Déruchette! Era então por minha causa que tocavas bagpipe?
Gilliatt,
sempre encostado à parede, empalidecia como um homem que está prestes a não
respirar. À proporção que se tornava pálido, Lethierry tornava-se vermelho.
—
Vejam este parvo! Não ama Déruchette! Pois trata de amá-la, porque ela não há
de casar senão contigo. Que histórias são essas? Cuidas que te acredito? Estás
doente? Pois bem, manda chamar um médico, mas não digas extravagâncias, é
impossível que tivesses tempo de brigar com ela e ficares arrufado. É verdade
que os namorados são uns tolos! Vamos, tens alguma razão? Se tens, fala;
ninguém é tolo sem ter razão. Demais, eu tenho algodão nos ouvidos, talvez
ouvisse mal, repete o que disseste.
Gilliatt
replicou:
—
Disse que não.
—
Disseste que não. E teima o bruto! Tens alguma coisa, é claro. Disseste que
não! É uma estupidez que passa os limites do mundo conhecido. Por muito menos
dão-se banhos medicinais a uma criatura. Ah! Tu não amas Déruchette! Então foi
por amor do velhote que fizeste tudo isto! Foi pelos bonitos olhos do papá que
foste às Douvres, que tiveste frio, que tiveste calor, que tiveste fome e sede,
que comeste bichos do rochedo, que tiveste por quarto de dormir o nevoeiro, a
chuva e o vento, e que me trouxeste a máquina como se traz a uma mulher bonita
o canário que fugiu? E a tempestade de há três dias! Se tu imaginas que eu não
faço ideia do que passaste! Estiveste em boas! Foi então com o pensamento em
mim que cortaste, rachaste, viraste, arrastaste, limaste, serraste, inventaste,
e fizeste tantos milagres, tu só, mais que todos os santos do paraíso? Ah!
Idiota! Pois olha que me aborreceste com a tua sanfona! Na Bretanha chama-se biniou.
Sempre a mesma toada, animal! Ah! Tu não amas Déruchette! Não sei o que tens.
Lembra-me agora, eu estava neste canto. Déruchette disse: “Casava-me”. E há de
casar contigo. Ah! Não a amas! Feitas as reflexões, eu não compreendo nada. Ou
tu estás doido ou eu! E não diz palavra! Não é lícito fazer o que fizeste e
dizer no fim: “Não amo Déruchette”. Não se faz um obséquio à gente para
obrigá-la a ficar com raiva. Pois bem, se não te casas com ela, Déruchette não
se casa com pessoa alguma, fica para tia. Em primeiro lugar, preciso de ti.
Serás piloto da Durande. Se cuidas que vou deixar-te ir assim! Ta, ta, ta,
nada, meu amigo, já te não largo. És meu. Nem te quero ouvir. Onde há um
marinheiro como tu? És o meu homem. Mas fala, com os diabos!
O
sino tinha acordado a gente da casa e da vizinhança. Doce e Graça tinham-se
levantado e acabavam de entrar na sala baixa, espantadas, sem dizer palavra.
Graça trazia uma vela. Um grupo de vizinhos, burgueses, marinheiros e aldeões,
saídos à pressa, estava fora no cais, contemplando com pasmo e susto o cano da
Durande na pança.
Alguns,
ouvindo a voz de Lethierry na sala baixa, começavam a entrar silenciosamente
pela porta entreaberta. Entre duas caras de comadres, passava a cabeça do Sr.
Landoys, que por acaso costumava sempre estar presente nos lugares onde
sentiria se não estivesse.
As
grandes alegrias querem sempre um público. Agrada-lhes o ponto de apoio um
pouco esparso que oferece uma multidão; partem daí. Mess Lethierry descobriu
repentinamente que tinha gente à roda de si. Aceitou logo o auditório.
—
Ah! Vocês estão aí? Que felicidade. Já sabem a notícia. Este homem lá foi e de
lá trouxe aquilo. Bom dia, Sr. Landoys. Ainda há pouco quando acordei vi o
cano. Estava debaixo da minha janela. Não falta nem um prego. Fizeram-se
gravuras de Napoleão; eu prefiro isto à batalha de Austerlitz. Sabem vocês da
coisa. A Durande chegou enquanto dormiam. Enquanto se metiam nos lençóis e
apagavam as velas, há pessoas que são heróis. Uns são covardes, vadios, aquecem
os seus reumatismos; felizmente isso não impede que haja espíritos fogosos.
Esses vão aonde é preciso ir, fazem o que é preciso fazer. O homem da casa
mal-assombrada chegou do rochedo Douvres. Pescou a Durande do fundo do mar,
pescou o dinheiro da algibeira de Clubin, abismo mais profundo que o outro. Mas
como fizeste isso? Tinhas todos os diabos contra ti, o vento e a maré, a maré e
o vento. É verdade que tu és feiticeiro. Os que dizem isto já não são tão
pascácios. Voltou a Durande! Em vão se enfurecem as tempestades, este
estrangula-as. Meus amigos, anuncio-lhes que já não há naufrágios. Já examinei
a máquina. Está como nova, está completa! Movem-se os cilindros tão facilmente
como dantes. Parecia novinha em folha. Sabem que a água que sai é levada para
fora do navio por um tubo colocado em outro tubo por onde passa a água que
entra para utilizar o calor; pois bem, os dois tubos estão salvos. A máquina
toda! As rodas também! Ah! Hás de casar com ela!
—
Com quem? Com a máquina? — perguntou o Sr. Landoys.
—
Não, a pequena. Sim, a máquina. Ambas. Há de ser duas vezes meu genro. Goodbye,
Capitão Gilliatt. Vamos ter Durande! Vamos fazer negócio, vai haver circulação
e comércio, e transporte de bois e carneiros! Não troco Saint-Sampson por
Londres. E aqui está o autor. Digo-lhes que é uma aventura. Há de ler-se isto
sábado na gazeta de Mauger. O engenhoso Gilliatt é um finório. Que dinheiro é
este em ouro?
Mess
Lethierry acabava de ver, pela fresta da tampa, que havia ouro na caixinha
posta sobre as notas de banco. Pegou nela, abriu-a, esvaziou-a na palma da mão,
pôs o punhado de guinéus sobre a mesa.
—
Para os pobres. Sr. Landoys, dê estes pounds da minha parte ao
condestável de Saint-Sampson. Sabe da carta de Rantaine? Mostrei-lha outro dia;
pois bem; aqui estão as notas do banco. Com isto posso comprar carvalho e
pinho, e fazer a carpintaria. Veja. Lembra-se do tempo que houve há três dias?
Que ataque de vento e de chuva! O céu disparava tiros de canhão. Gilliatt
recebeu tudo isso nas Douvres, sem que lhe obstasse o desaferrar o navio como
eu tiro o meu relógio da parede. Graças a Gilliatt, já sou alguém. A galeota do
pai Lethierry vai continuar o serviço, senhores e senhoras. Uma casca de noz
com duas rodas, e um tubo de cachimbo, foi sempre a minha mania. Disse sempre
comigo: “Hei de fazer uma máquina destas!” Data de longe; foi uma ideia que
tive em Paris, no café que faz a esquina da Rua Cristina e da Rua Delfina,
lendo um jornal que falava do invento. Sabem que Gilliatt era capaz de meter a
máquina de Marly na algibeira e passear com ela? Este homem é de ferro batido,
é aço de têmpera, é diamante, um marujo de polpa, um ferreiro, um rapazola
extraordinário, mais espantoso que o Príncipe Hohenlohe. A isto chamo eu um
homem de engenho. Nós não valemos nada. Os lobos-do-mar somos nós; o
leão-do-mar é ele. Hurrah, Gilliatt! Não sei o que ele fez, mas certamente fez
o diabo, e como é que não lhe hei de dar Déruchette!
Desde
alguns instantes Déruchette entrara na sala. Não dissera palavra, não fizera
rumor. Entrou como uma sombra. Assentara-se, quase despercebida, em uma cadeira
por trás de Mess Lethierry de pé, loquaz, tempestuoso, alegre, abundante de
gestos, e falando em voz alta. Um pouco atrás dela veio outra aparição muda. Um
homem vestido de preto, de gravata branca, com o chapéu na mão, parara na
abertura da porta. Havia agora muitas velas no grupo lentamente engrossado. As
luzes batiam de lado no homem vestido de preto; o seu perfil, de alvura jovem e
deliciosa, desenhava-se no fundo obscuro com uma pureza de medalha; apoiava o
cotovelo numa almofada da porta, e tinha a fronte na mão esquerda, atitude que
lhe era graciosa, sem ser meditada, e que fazia valer a grandeza da fronte na
pequenez da mão. Havia uma ruga de angústia no canto de seus lábios contraídos.
Examinava e ouvia com atenção profunda. Os assistentes, tendo reconhecido o
Reverendo Ebenezer Caudray, cura da paróquia, tinham-se afastado para deixá-lo
passar, mas ele ficou na soleira. Havia hesitação na sua postura e decisão no
seu olhar. O olhar de quando em quando encontrava o de Déruchette. Quanto a
Gilliatt, ou por acaso ou de propósito, estava na sombra, e mal se podia vê-lo.
Mess
Lethierry não viu ao princípio o Sr. Ebenezer, mas viu Déruchette. Foi a ela e
beijou-a com toda a sofreguidão que pode ter um beijo na fronte. Ao mesmo tempo
estendia o braço para o canto escuro onde estava Gilliatt.
—
Déruchette — disse ele —, estás outra vez rica e o teu marido é aquele.
Déruchette
levantou a cabeça desvairada e olhou para a sombra.
Mess
Lethierry continuou:
—
Há de se fazer o casamento quanto antes, amanhã, se for possível, há de haver
dispensas, mas as formalidades são simples, o decano faz o que quer, casa-se a
gente antes de gritar: guarda de baixo! Não é como na França, onde se precisam
banhos, publicações, dilações, um chuveiro de formalidades e tu serás mulher de
um homem valente e não há de que dizer, é um marinheiro, sempre o pensei desde
o dia em que o vi voltar de Herm com a peça de artilharia. Agora volta das
Douvres com a tua fortuna, e a minha, e a fortuna da terra; é um homem que há
de dar o que falar; tu disseste: “Caso-me com ele”; pois hás de casar; e hão de
ter filhos, e eu serei avô, e terás fortuna de ser a lady de um rapagão
sério, que trabalha, que é útil, que é surpreendente, que vale por cem, que
salva as invenções dos outros, que é uma providência, e ao menos não casarás,
como todas as raparigas ricas deste lugar, com um soldado ou um padre, isto é,
o homem que mata e o homem que mente. Mas que fazes aí metido no canto,
Gilliatt? Ninguém te vê. Doce! Graça! Todos! Luzes! Iluminem o meu genro a
giorno. Caso-os, meus filhos, e eis teu marido, e eis o meu genro, o Gilliatt
da casa mal-assombrada, o grande marinheiro, e eu não terei outro genro, e não
terás outro marido, torno a dar a minha palavra de honra a Deus. Ah! Ah! E
Vossa Reverendíssima, senhor cura, há de casar-me estes pequenos.:
O
olhar de Mess Lethierry acabava de cair no Reverendo Ebenezer.
Doce
e Graça tinham obedecido. Duas velas postas na mesa iluminavam Gilliatt da
cabeça aos pés.
—
Como está bonito! — gritou Lethierry.
Gilliatt
estava hediondo.
Estava
tal qual saíra, naquela manhã, do escolho Douvres, em frangalhos, os cotovelos
rotos, a barba longa, os cabelos eriçados, os olhos queimados e vermelhos, a
face esfolada, as mãos sangrentas; tinha os pés descalços. Algumas das pústulas
da pieuvre estavam visíveis nos braços cabeludos.
Lethierry
contemplava-o.
É
o meu verdadeiro genro. Como se bateu com o mar! Está em frangalhos! Que
ombros! Que pés! Como és belo!
Graça
correu a Déruchette, amparou-lhe a cabeça. Déruchette tinha desmaiado.
CAPÍTULO II
A MALA DE
COURO
Desde
madrugada Saint-Sampson estava de pé e Saint-Pierre-Port começava a chegar. A
ressurreição de Durande fazia na ilha um rumor comparável ao que fez no
meio-dia da França a Salette. Havia multidão no cais para contemplar o cano que
saía da pança. Tinham vontade de ver e tocar na máquina, mas Lethierry, depois
de repetir, e à luz do dia, a inspeção triunfante da mecânica, tinha posto na
pança dois marinheiros encarregados de impedir que ninguém se aproximasse. O
cano, porém, bastava à contemplação. A multidão pasmava. Só se falava de
Gilliatt. Comentava-se e aceitava-se a alcunha de engenhoso, a admiração
acabava sempre por esta frase: “Nem sempre é agradável ter na ilha gente capaz
de fazer coisas destas”.
De
fora via-se Mess Lethierry assentado à mesa diante da janela e escrevendo, com
um olho no papel, e outro na máquina. Estava de tal modo absorto que apenas uma
vez interrompeu-se para gritar: “Doce!” e para pedir notícias de Déruchette.
Doce respondeu: “A menina levantou-se e saiu”. Mess Lethierry disse: “Faz bem
tomar ar. Esteve incomodada de noite por causa do calor. Havia muita gente na
sala. E depois a surpresa, a alegria e as janelas fechadas. Vai ter um marido
soberbo!” E tornou a escrever. Já tinha escrito e fechado duas cartas dirigidas
aos mais notáveis construtores de Bremen. Acabava de fechar a terceira.
O
rumor de uma roda no cais fez-lhe levantar a cabeça. Inclinou-se à janela e viu
desembocar do atalho que ia ter à casa de Gilliatt um rapaz empurrando um
carrinho de mão. O rapaz dirigia-se para o lado de Saint-Pierre-Port. Havia no
carrinho uma mala de couro amarela com pregos de cobre e estanho.
Mess
Lethierry falou ao rapaz:
—
Aonde vais?
O
rapaz parou, e respondeu:
—
Ao Cashmere.
—
Para quê?
—
Levar esta mala.
—
Pois bem, levarás também estas três cartas.
Mess
Lethierry abriu a gaveta da mesa, e pegou num pedaço de barbante, enlaçou as
três cartas que acabava de escrever, e atirou o embrulho ao rapaz que o recebeu
no ar entre as duas mãos.
—
Dirás ao capitão do Cashmere que sou eu quem escrevo, e que ele tenha
cuidado com elas. É para a Alemanha. Bremen via Londres.
—
Não falarei ao capitão, Mess Lethierry.
—
Por quê?
—
O Cashmere não está no cais.
—
Ah!
—
Está na barra.
—
É justo, por causa do mar.
—
Só posso falar ao patrão do escaler.
—
Recomenda-lhe as minhas cartas.
—
Sim, Mess Lethierry.
—
A que horas parte o Cashmere?
—
Ao meio-dia.
—
Ao meio-dia hoje, é a enchente da maré. Tem contra si a maré.
—
Mas tem vento de feição.
—
Rapaz — disse Mess Lethierry pondo o dedo índex no cano da máquina — vês isto?
Isto zomba do vento e da maré.
O
rapaz pôs as cartas na algibeira, pegou outra vez no carrinho, e continuou a
viagem para a cidade.
Mess
Lethierry chamou:
—
Doce! Graça!
Graça
entreabriu a porta.
—
Que há, Mess?
—
Entra e espera.
Mess
Lethierry pegou numa folha de papel e começou a escrever; se Graça, de pé atrás
dele, fosse curiosa e esticasse o pescoço, poderia ler, por cima do ombro,
isto:
“Escrevo
a Bremen para ver madeira. Tenho de falar durante o dia aos carpinteiros para a
avaliação. Vai ter à casa do decano para arranjar as dispensas. Desejo que o
casamento se faça o mais cedo possível, e já, será melhor. Estou tratando de
Durande, trata tu de Déruchette.”
Datou
e assinou “Lethierry”.
Não
se deu ao trabalho de fechar a carta, dobrou-a simplesmente em quatro e deu-a a
Graça.
—
Leva isto a Gilliatt.
LIVRO
TERCEIRO
A PARTIDA
DO “CASHMERE”
CAPÍTULO
PRIMEIRO
A
ANGRAZINHA PRÓXIMA DA IGREJA
Saint-Sampson
não pode estar apinhado de gente sem que Saint-Pierre-Port fique deserto. Uma
coisa curiosa num ponto dado é uma bomba aspirante. As notícias correm depressa
nas terras pequenas; ir ver o cano da Durande debaixo da janela de Mess
Lethierry foi desde o romper do dia a grande ocupação de Guernesey. Qualquer
outro acontecimento desaparecia diante desse. Eclipse da morte do decano de
Saint-Asaph; já ninguém curava do Reverendo Ebenezer Caudray, nem da sua repentina
riqueza, nem da sua partida no Cashmere. A máquina da Durande, trazida das
Douvres, estava na ordem do dia. Ninguém acreditava. O naufrágio parecera
extraordinário, mas o salvamento parecia impossível. Todos queriam ver com os
seus próprios olhos. Todas as ocupações ficaram suspensas. Longas fileiras de
burgueses em família, desde o vesin até o mess, homens, mulheres,
gentlemen, mães com filhos e filhos com bonecas, dirigiam-se por todas as
estradas para ver a coisa, em Bravées, e davam-se as costas a Saint-Pierre-Port.
Muitas lojas de Saint-Pierre-Port estavam fechadas; no Commercial Arcade,
estagnação absoluta de venda e de negócio; toda a atenção estava voltada para a
Durande, nenhum mercador estreou, exceto um ourives que se maravilhava
de ter vendido um anel de ouro para casamento — “a uma espécie de homem que
parecia muito apressado e que lhe perguntou onde morava o sr. decano”. As lojas
que ficaram abertas eram os lugares de conversa onde se comentava ruidosamente
o milagroso salvamento da máquina. Ninguém passeava na Hyvreuse, que se chama
hoje, não se sabe por quê, Cambridge-Park; ninguém em HighStreet, que se
chamava então a Rua Grande, nem em Smith Street, que se chamava a Rua das
Forjas; ninguém em Hauteville; a própria Esplanada estava deserta. Dissera-se
um domingo. Uma alteza real, que ali fosse de visita, e passasse em revista a
milícia de Ancresse, não despovoaria melhor a cidade. Todo aquele abalo a
propósito de uma coisa à toa, como Gilliatt, fazia erguer os ombros aos homens
graves e às pessoas corretas.
A
Igreja de Saint-Pierre-Port, tríplice carreta sobreposta com transepto e
flecha, fica situada à beira da praia no fundo do porto quase sobre o
desembarque. Dá a saudação aos que chegam e o adeus aos que saem. Aquela igreja
é a maiúscula de uma longa linha que faz a fachada da cidade sobre o oceano.
É
ao mesmo tempo a paróquia de Saint-Pierre-Port e chefe de toda a ilha. Tem por
pároco o sub-rogado do bispo, clergyman com plenos poderes.
O
ancoradouro de Saint-Pierre-Port, hoje largo e magnífico porto, era naquela
época, e ainda há dez anos, menos considerável que o ancoradouro de
Saint-Sampson. Eram duas grossas paredes ciclópicas, curvas, partindo da praia
a estibordo e bombordo e ligando-se quase na extremidade, onde havia um farolzinho
branco. Debaixo daquele farol uma garganta, que ainda tinha as duas argolas da
corrente que a fechava na Idade Média, dava passagem aos navios. Imaginem uma
unha de lagosta aberta, era o ancoradouro de Saint-Pierre-Port. Aquela tenaz
tomava ao mar um pouco de água que obrigava a ficar tranquila. Mas, com vento
de leste, havia marulho na entrada, o porto ficava agitado, e era acertado não
penetrar lá. Foi o que fez nesse dia o Cashmere, que ficou fora.
Os
navios, quando soprava o leste, faziam isso que, no fim das contas, economizava
as despesas do porto. Nesses casos, os bateleiros da cidade, tribo valente de
marinheiros que o novo porto destituíra, iam tomar em seus barcos os viajantes,
ou no cais, ou nas estações da praia, e os transportavam, a eles e às bagagens,
muitas vezes com marés agitadas e sempre sem acidentes, aos navios que deviam
sair. O vento de leste é um vento de flanco muito bom para ir à Inglaterra; o
mar é agitado sem que o navio estremeça.
Quando
o navio ficava no porto, todos embarcavam no porto; quando estava fora,
podia-se escolher uma das costas vizinhas do ancoradouro do navio. Achavam-se
em todas as angras bateleiros à vontade.
A
Angrazinha era dessas. Aquele cais ficava próximo à cidade, mas tão solitário,
que parecia longe. Devia a solidão às duas grandes penedias do forte de São
Jorge que dominavam aquele sítio discreto. Chegava-se à Angrazinha por caminhos
diversos. O mais direto ia pela praia; tinha a vantagem de ir dar à cidade e à
igreja em cinco minutos, e o inconveniente de ser coberto pela maré duas vezes
por dia.
Outros
caminhos, mais ou menos abruptos, mergulhavam nas anfratuosidades dos rochedos.
A Angrazinha, mesmo em pleno dia, ficava numa penumbra. Grandes pedras
amontoadas pendiam de todos os lados. Havia espessuras de espinhos, fazendo uma
espécie de noite suave naquela desordem de rochas e vagas; nada mais aprazível
do que aquela angra em tempo calmo, nada mais tumultuoso nas grossas águas.
Havia pontas de galhos perpetuamente molhados pela escuma. Na primavera ficava
cheia de flores, ninhos, perfumes, aves, borboletas e abelhas. Graças aos
trabalhos recentes, essa selvajaria já não existe; foi substituída por belas
linhas retas; há obras de pedreiro, cais, jardins; tudo foi derrubado; o gosto
destruiu as extravagâncias da montanha e a incorreção dos rochedos.
CAPÍTULO II
O
DESESPERO DIANTE DO DESESPERO
Era
pouco menos de 10 horas da manhã: “o quarto de hora antes”, como se diz em
Guernesey.
O
povo, segundo todas as aparências, ia engrossando em Saint-Sampson. A
população, febricitante de curiosidade, ia toda para o norte da ilha, de
maneira que a Angrazinha, que fica ao sul, estava mais deserta que nunca.
Contudo,
viam-se aí um bote e um remador. No bote havia um saco de viagem. O bateleiro
parecia esperar.
Via-se
ao largo o Cashmere ancorado, que, devendo partir lá para o meio-dia,
não fazia nenhum movimento de aparelho.
O
viandante que, de qualquer dos caminhos-escadas tivesse prestado o ouvido,
ouviria um murmúrio de palavras na Angrazinha, e inclinando-se por cima, veria
a alguma distância do bote, num recanto de pedras e galhos onde não podia
penetrar o olhar do bateleiro, duas pessoas; um homem e uma mulher, Ebenezer e
Déruchette.
Esses
asilos obscuros das praias, que tentam as banhistas, não são tão solitários
como se pensa. Às vezes espreita-se e ouve-se de fora. Os que se refugiam podem
ser facilmente acompanhados através das espessuras das vegetações, e graças à
multiplicidade e entravamento dos atalhos. Os granitos e árvores que escondem o
refugiado podem esconder também uma testemunha.
E
unindo-se a ele, cruzou-lhe os dez dedos por trás do pescoço, como para fazer
com os seus braços enlaçados em Ebenezer e com as suas mãos juntas uma oração a
Deus.
Ele
deslaçou aquela cadeia delicada, que resistiu enquanto pôde.
Déruchette
caiu assentada numa ponta de rocha coberta de hera, levantando com um gesto
maquinal a manga do vestido até o cotovelo, mostrando o seu delicioso braço nu,
com uma luz afogada e pálida nos olhos fixos. O bote aproximava-se.
Ebenezer
segurou-lhe a cabeça nas mãos; aquela virgem tinha o ar de uma viúva e aquele
mancebo tinha o ar de um avô. Tocou-lhe os cabelos com uma espécie de precaução
religiosa; fitou os olhos nela durante alguns instantes, depositou-lhe na
fronte um desses beijos debaixo dos quais parece que deveria abrir uma estrela
e, com uma voz que tremia na suprema angústia e onde se sentia a dilaceração da
alma, disse-lhe esta palavra, a palavra das profundezas: “Adeus!”
Déruchette
rompeu em soluços.
Neste
momento ouviram uma voz lenta e grave que dizia:
—
Por que motivo não se casam?
Ebenezer
voltou a cabeça. Déruchette levantou os olhos.
Gilliatt
estava diante deles.
Acabava
de entrar por um atalho lateral.
Gilliatt
já não era o mesmo homem da véspera. Tinha penteado os cabelos, fez a barba,
calçou os sapatos, vestiu camisa branca de marinheiro com grandes colarinhos
caídos, vestiu a roupa de marinheiro mais nova. Via-se um anel de ouro no dedo
mínimo. Parecia profundamente calmo. Estava lívido.
Bronze
que sofre, tal era aquele rosto.
Os
dois olharam para ele estupefatos. Embora não se pudesse reconhecê-lo,
Déruchette reconheceu-o. Quanto às palavras que ele acabava de pronunciar,
estavam tão longe do que eles pensavam nesse momento, que resvalaram-lhe no
espírito.
Gilliatt
continuou:
—
Que necessidade é essa de se dizerem adeus? Casem-se. Embarquem depois.
Déruchette
estremeceu da cabeça aos pés.
Gilliatt
continuou:
—
Miss Déruchette tem 21 anos. É senhora de sua vontade. Seu tio é apenas seu
tio. Amam-se…
Déruchette
interrompeu docemente:
—
Como é que o senhor está aqui?
—
Casem-se — continuou Gilliatt.
Déruchette
começava a perceber o que lhe dizia aquele homem. Murmurou:
—
O meu pobre tio…
—
Recusaria se o casamento estivesse por fazer — disse Gilliatt —, e consentirá
quando o casamento estiver concluído. Demais, vão embarcar ambos. Quando
voltarem, ele os perdoará.
Gilliatt
acrescentou com um tom amargo:
—
E depois, ele já não pensa senão em construir o vapor. Isso o distrairá durante
a sua ausência. Tem Durande para consolá-lo.
—
Eu não quisera — balbuciou Déruchette num espanto misturado de alegria —, não
quisera deixar pesares indo-me embora…
—
Não durarão muito tempo os pesares — disse Gilliatt.
Ebenezer
e Déruchette tiveram uma espécie de deslumbramento. Tranquilizaram-se. Na sua
decrescente perturbação, iam entendendo as palavras de Gilliatt. Ainda havia
alguma nuvem, mas a obrigação deles dois não era resistir ao conselho. Quem
salva domina sempre. Fracas são as objeções quando se trata de voltar ao Eden.
Havia na atitude de Déruchette, imperceptivelmente apoiada em Ebenezer, alguma
coisa que fazia causa comum com o que dizia Gilliatt. Quanto ao enigma da
presença daquele homem e das suas palavras que, no espírito de Déruchette em
particular, produziam muitas espécies de assombro, eram questões à parte.
Aquele homem dizia-lhes: “Casem-se”. Era claro. Se houvesse uma
responsabilidade, era ele quem a tomava sobre si. Déruchette sentia confusamente
que, por diversas razões, ele tinha o direito de fazê-lo. O que ele dizia de
Mess Lethierry era verdade. Ebenezer, pensativo, murmurou:
—
Um tio não é um pai.
Ebenezer
sentia a corrupção de uma peripécia súbita e feliz. Os escrúpulos prováveis do
padre fundiam-se e dissolviam-se naquele pobre coração apaixonado.
A
voz de Gilliatt tornou-se breve e dura; sentia-se nela umas pulsações de febre:
—
Imediatamente. O Cashmere parte daqui a duas horas. Têm tempo, mas não
de sobra; venham ambos.
Ebenezer
examinava-o atentamente.
De
súbito exclamou:
—
Conheço-o. Foi o senhor quem me salvou a vida.
Gilliatt
respondeu:
—
Não creio.
—
Lá adiante, na ponta dos Bancos.
—
Não conheço esse lugar.
—
No mesmo dia em que cheguei.
—
Não percamos tempo — disse Gilliatt.
—
E não me engano, o senhor é o homem de ontem à noite.
—
Talvez.
—
Como se chama?
Gilliatt
alçou a voz:
—
Ó do bote, espere-nos. Já voltamos. Miss, a senhora perguntou-me por que
motivo estava eu aqui, é simples, eu acompanhei-os. A senhora tem 21 anos.
Nesta terra quem chega à maioridade e depende de si casa-se em um quarto de
hora. Tomemos o caminho da praia. Está praticável, a maré há de encher lá para
o meio-dia. Mas vamos já. Venham comigo.
Déruchette
e Ebenezer pareciam consultar-se com o olhar. Estavam de pé, juntinhos, sem
mexer-se; pareciam ébrios. Há dessas tentações estranhas à beira desse abismo
que se chama felicidade. Compreendiam sem compreender.
—
Ele se chama Gilliatt — disse Déruchette baixinho a Ebenezer.
Gilliatt
continuou com uma espécie de autoridade:
—
Que esperam? Já lhes disse que me acompanhassem.
—
Aonde? — perguntou Ebenezer.
—
Ali.
E
Gilliatt mostrou com o dedo a torre da igreja. Os dois acompanharam-no.
Gilliatt
ia adiante. O seu passo era firme. Os dois vacilavam.
À
proporção que se aproximavam da torre, via-se despontar naqueles puros e belos
rostos de Ebenezer e Déruchette alguma coisa que seria dentro de pouco tempo o
sorriso. A proximidade da igreja iluminava-os. Nos olhos fundos de Gilliatt
havia trevas.
Dissera-se
um espectro levando duas almas ao paraíso.
Ebenezer
e Deruchette não compreendiam muito o que se estava passando. A intervenção
daquele homem era o ramo a que se agarra o afogado. Eles acompanhavam Gilliatt
com a docilidade que o desespero tem para com a primeira pessoa que lhe
aparece. Quem se sente morrer não é difícil em aceitar os incidentes.
Déruchette, mais ignorante, era mais confiante. Ebenezer pensava. Déruchette
era maior. As formalidades do casamento inglês são simplíssimas, sobretudo nos
países autóctones onde os párocos têm quase um poder discricionário; mas o
decano celebraria o casamento sem saber se o tio consentia? Havia uma questão
nisto. Contudo, podia-se tentar. Em todo o caso era uma delonga.
Mas
quem era aquele homem? E se era ele quem, na véspera, foi declarado genro de
Mess Lethierry, como explicar o que estava fazendo? Ele, que era o obstáculo,
tornava-se a providência. Ebenezer prestava-se a tudo, mas dava ao que se
estava passando o consentimento tácito e rápido do homem que se sente salvo.
O
caminho era desigual, às vezes molhado e difícil. Ebenezer, absorto, não
prestava atenção aos charcos de água e às pedras. De quando em quando, Gilliatt
voltava-se e dizia a Ebenezer: “Cuidado com essas pedras, dê-lhe a mão”.
CAPÍTULO III
A
PREVIDÊNCIA DA ABNEGAÇÃO
Soavam
10 horas e meia quando eles entravam na igreja. Por causa da hora, e também por
causa da solidão da cidade naquele dia, a igreja estava vazia.
No
fundo, porém, perto da mesa que, nas igrejas reformadas, substitui o altar,
havia três pessoas: eram o decano, o seu evangelista, e mais o lançador dos
registros. O decano, que era o Reverendo Jaquemin Herodes, estava assentado; o
evangelista e o lançador estavam de pé.
O
Livro, aberto, estava sobre a mesa.
Ao
lado havia outro livro, era o registro da paróquia, igualmente aberto, e no
qual um olhar atento poderia notar uma página escrita de fresco. Uma pena e um
tinteiro ficavam ao lado do registro.
Vendo
entrar o Reverendo Ebenezer Caudray, o Reverendo Jaquemin Herodes levantou-se.
—
Esperava-o — disse ele. — Tudo está pronto.
O
decano, com efeito, estava com o hábito de oficiante.
Ebenezer
olhou para Gilliatt.
O
Reverendo Herodes continuou:
—
Estou às suas ordens, meu colega.
E
fez-lhe uma cortesia.
A
cortesia não foi nem para a esquerda nem para a direita. Era evidente, pela
direção do raio visual do decano, que, para ele, só Ebenezer existia. Ebenezer
era clergyrman e gentleman. O decano não compreendia no seu
cumprimento nem Déruchette, que estava ao seu lado, nem Gilliatt, que estava
atrás. Havia no seu olhar um parêntese em que só Ebenezer era admitido. A
manutenção destas distinções faz parte da boa ordem e consolida as sociedades.
O
decano continuou com uma amenidade graciosamente altiva:
—
Meu colega, faço-lhe o meu duplo cumprimento. Morreu-lhe o tio, e o senhor
casa-se; fica rico por um lado e feliz por outro. Demais, agora, graças a este
vapor que vai ser restabelecido, Miss Lethierry também é rica, o que eu aprovo.
Miss Lethierry nasceu nesta paróquia, verifiquei a data do nascimento no livro
dos assentos. Miss Lethierry é maior e dispõe de si. Depois, seu tio, que é
toda a sua família, consente. Querem casar-se já por causa da viagem, compreendo,
mas sendo este casamento o do cura da paróquia, eu quisera mais alguma
solenidade. Abrevio para fazer-lhes o gosto. O essencial pode fazer-se no
sumário. O ato já está escrito no livro do registro que está aqui, e falta só
pôr os nomes. Nos termos da lei e do costume, o casamento pode ser celebrado
logo depois da inscrição. A declaração necessária para a licença já foi feita.
Tomo a responsabilidade de uma pequena irregularidade, porque o pedido de
licença devia ser previamente registrado sete dias antes; mas eu reconheço a
necessidade e a urgência da partida. Seja. Vou casá-los. O meu evangelista será
a testemunha do esposo; quanto à esposa…
O
decano voltou-se para Gilliatt.
Gilliatt
fez um sinal de cabeça.
—
Basta — disse o decano.
Ebenezer
ficara imóvel. Déruchette era o êxtase petrificado.
O
decano continuou:
—
Há, porém, um obstáculo.
Déruchette
fez um movimento.
O
decano continuou:
—
O enviado de Mess Lethierry, que aqui está presente, e pediu a licença e
assinou a declaração no registro — e com o polegar da mão esquerda o decano
indicou Gilliatt, o que o isentava de articular nenhum nome — o enviado de Mess
Lethierry disse-me esta manhã que Mess Lethierry, por muito ocupado, não podia
vir, e desejava que o casamento se fizesse incontinente. Esse desejo,
verbalmente expresso, não é suficiente. Não posso, por causa das dispensas e da
irregularidade que tomo sobre mim, ir além disto sem informar-me de Mess
Lethierry, a menos que me mostrem a assinatura dele. Qualquer que seja a minha
boa vontade, não posso contentar-me com uma palavra que me repetem. Preciso de
um escrito.
—
Não sirva isto de empecilho — disse Gilliatt.
E
apresentou ao decano um papel.
O
decano pegou no papel, percorreu com um olhar, pareceu passar algumas linhas,
sem dúvida, inúteis, e leu alto:
“—
Vai ter à casa do decano para arranjar as dispensas. Desejo que o casamento se
faça o mais cedo possível, e já, será melhor”.
Pôs
o papel em cima da mesa e continuou:
—
Assinado: “Lethierry”. A coisa seria mais respeitosa se fosse dirigida a mim.
Mas, como se trata de um colega, não exijo mais.
Ebenezer
olhou de novo para Gilliatt. Há almas que se entendem. Ebenezer sentia naquilo
uma fraude; e não teve força, não teve mesmo ideia de denunciá-lo. Ou fosse obediência
a um heroísmo latente que ele antevia, ou fosse que se lhe aturdisse a
consciência pela ventura súbita, Ebenezer não teve palavras.
O
decano tomou a pena e encheu, com o auxílio do lançador dos assentos, os claros
da página escrita no livro, depois levantou-se, e com o gesto convidou Ebenezer
e Déruchette a aproximar-se da mesa.
Começou
a cerimônia.
Ebenezer
e Déruchette estavam ao pé um do outro diante do ministro. Quem tiver sonhado
que se está casando saberá o que eles sentiam.
Gilliatt
estava a alguma distância na obscuridade dos pilares.
Déruchette,
ao levantar-se da cama, desesperada, pensando no túmulo e no sudário,
vestira-se de branco. Esta ideia de morte veio a propósito para as núpcias. O
vestido branco fez dela uma noiva. Também os túmulos são esponsais.
Déruchette
irradiava. Nunca foi o que era naquele instante. Déruchette tinha o defeito de
ser demasiado linda e não bastante formosa. A sua beleza pecava, se é pecar,
por excesso de graça. Déruchette em repouso, isto é, fora da paixão e da dor,
já o dissemos, era sobretudo gentil. A transfiguração da moça encantadora é a
virgem ideal. Déruchette, engrandecida pelo amor e pelo sofrimento, tinha tido
esse progresso, deixem passar a palavra. Tinha a mesma candura, com mais dignidade,
a mesma frescura, com mais perfume. Era uma espécie de bonina que se torna
lírio.
Tinha
no rosto sinais de lágrimas estanques. Havia ainda talvez uma lágrima no canto
do sorriso. As lágrimas estanques, vagamente visíveis, são um sombrio e doce
ornato da felicidade.
O
decano, de pé perto da mesa, pôs um dedo na Bíblia aberta e perguntou em voz
alta:
—
Há oposição?
Ninguém
respondeu.
—
Amém — disse o decano.
Ebenezer
e Déruchette deram um passo para o Reverendo Jaquemin Herodes.
O
decano disse:
—
Joe Ebenezer Caudray, queres esta mulher por tua esposa?
Ebenezer
respondeu:
—
Quero.
O
decano continuou:
—
Durande Déruchette Lethierry, queres este homem por teu marido?
Déruchette,
na agonia da alma demasiado feliz, como a da lâmpada demasiado cheia de óleo,
murmurou em vez de pronunciar:
—
Quero.
Então,
segundo o belo rito do casamento anglicano, o decano olhou em roda de si, e fez
na sombra da igreja esta solene pergunta:
—
Quem dá esta mulher a este homem?
—
Eu — disse Gilliatt.
Houve
um momento de silêncio. Ebenezer e Déruchette sentiram uma vaga opressão
através da sua felicidade.
O
decano pôs a mão direita de Déruchette na mão direita de Ebenezer, e Ebenezer
disse a Déruchette:
—
Déruchette, tomo-te por minha mulher, quer sejas melhor ou pior, mais rica ou
mais pobre, doente ou com saúde, para amar-te até à morte, e dou-te a minha fé.
O
decano pôs a mão direita de Ebenezer na mão direita de Déruchette, e Déruchette
disse a Ebenezer:
—
Ebenezer, tomo-te por meu marido, quer sejas melhor ou pior, mais rico ou mais
pobre, doente ou com saúde, para amar-te e obedecer-te até à morte, e dou-te a
minha fé.
O
decano continuou:
—
Onde está o anel?
Isto
era o imprevisto. Ebenezer não tinha anel.
Gilliatt
tirou o anel de ouro que tinha no dedo mínimo e apresentou ao decano. Era
provavelmente o anel de casamento comprado de manhã ao ourives de Commercial
Arcade.
O
decano pôs o anel no livro, depois entregou-o a Ebenezer. Ebenezer pegou na
mãozinha esquerda, trêmula, de Déruchette, meteu o anel no quarto dedo e disse:
—
Desposo-te com este anel.
—
Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo — disse o decano.
—
Assim seja — disse o evangelista.
O
decano alçou a voz:
—
Estais casados.
—
Assim seja — disse o evangelista.
O
decano continuou:
—
Oremos.
Ebenezer
e Déruchette voltaram-se para a mesa e ajoelharam-se.
Gilliatt,
que estava de pé, inclinou a cabeça.
Eles
ajoelhavam-se diante de Deus, Gilliatt curvava-se ao destino.
CAPÍTULO IV
“PARA TUA
MULHER QUANDO TE CASARES”
Saindo
da igreja viram o Cashmere que começava a aparelhar.
—
Chegam a tempo — disse Gilliatt.
Seguiram
pelo caminho da Angrazinha.
Os
dois iam adiante, Gilliatt agora caminhava atrás.
Eram
dois sonâmbulos. Mudara apenas o atordoamento. Não sabiam nem onde estavam nem
o que faziam; apressavam-se maquinalmente, não se lembravam da existência de
coisa alguma, sentiam-se um outro, não podiam ligar duas idéias. Não pode
pensar quem está em êxtase como não pode nadar quem está numa torrente.
Pareciam ir penetrando num paraíso. Não se falavam, conversavam com a alma.
Déruchette apertava contra si o braço de Ebenezer.
O
passo de Gilliatt atrás deles fazia-lhes ver que ele estava presente. Iam
profundamente comovidos mas sem dizer palavra; o excesso da comoção
transforma-se em estupefação. A deles era deliciosa, mas acabrunhava. Estavam
casados. Adiavam o resto, esperavam voltar, o que Gilliatt fez era bem-feito,
eis tudo. O fundo desses dois corações agradecia-lhe ardente e vagamente.
Déruchette dizia consigo que havia alguma coisa para deslindar, mais tarde.
Entretanto, aceitavam o fato. Sentiam-se à discrição daquele homem decisivo e
súbito, que, por autoridade, fazia a felicidade deles dois. Fazer-lhe
perguntas, conversar com ele, era impossível. Eram de sobejo as impressões que
se lhes precipitavam em cima ao mesmo tempo. Estavam engolfados; era perdoável.
Os
fatos são às vezes uma saraiva. Crivam a criatura. Ensurdecem. A precipitação
dos incidentes, caindo em existências habitualmente calmas, torna logo
ininteligíveis os acontecimentos aos que os sofrem ou deles se aproveitam. Não
se pode conhecer a sua própria ventura. Fica-se esmagado sem adivinhar,
venturoso sem compreender. Déruchette, em particular, desde algumas horas
recebera todas as comoções; primeiramente a fascinação, Ebenezer no jardim;
depois o pesadelo, aquele monstro declarado seu marido; depois a desolação, o
anjo abrindo as asas e prestes a partir; agora era a alegria, uma alegria
inaudita, com um fundo indecifrável; o monstro dava-lhe o anjo; o casamento
saía da agonia; o Gilliatt, catástrofe de ontem, salvação de hoje. Déruchette
não compreendia nada. Era evidente que, desde manhã, Gilliatt não teve outra
ocupação senão a de casá-los; fez tudo; respondeu por Mess Lethierry, falou ao
decano, pediu licença, assinou a declaração necessária; eis aí como se realizou
o casamento. Mas Déruchette não compreendia nada; demais, mesmo quando ela
compreendesse o como, não compreenderia o porquê.
Fechar
os olhos, agradecer, mentalmente, esquecer a terra, e a vida, deixar-se levar
para o céu por aquele bom demônio, eis o que lhe cumpria fazer. Esclarecer
seria longo, agradecer não seria bastante. Déruchette calava-se naquele doce
embrutecimento da ventura.
Restava-lhe
ainda algum pensamento, suficiente para guiá-la. Debaixo da água há pedaços de
esponja que ficam brancos. Eles tinham a soma de lucidez necessária para
distinguir o mar da terra e o Cashmere de qualquer outro navio.
Dentro
de poucos minutos estavam eles na Angrazinha.
Ebenezer
foi o primeiro a entrar no bote. No momento em que Déruchette ia acompanhá-lo,
sentiu a sua manga docemente puxada. Era Gilliatt que tinha posto um dedo numa
dobra do vestido.
—
Senhora — disse ele —, não esperava partir. Eu cuido que naturalmente há de
precisar de vestidos e roupa. Achará a bordo do Cashmere um caixotinho com
objetos de mulher. Foi minha mãe quem mo deu. Era destinado à mulher com quem
eu casasse. Consinta que lho ofereça.
Déruchette
acordou a meio do sonho em que estava. Voltou-se para Gilliatt, em voz baixa e
que mal se ouvia, continuou:
—
Agora, não é para demorá-la, mas, olhe, eu creio que devo explicar-lhe uma
coisa. No dia em que houve aquela desgraça, a senhora estava assentada na sala
baixa, e disse umas palavras. Não se lembra disso, é natural. Ninguém é
obrigado a lembrar-se das palavras que diz. Mess Lethierry sofria muito. A
verdade é que era um belo navio e prestimoso. O desastre aconteceu; a terra
estava alvoroçada e compungida, são coisas que naturalmente se esquecem. Só
havia aquele navio perdido na costa. Não se pode pensar sempre em um acidente.
Somente o que eu queria dizer é que, como se dizia que ninguém era capaz de lá
ir, eu fui. Diziam eles que era impossível; não era impossível aquilo.
Agradeço-lhe o prestar-me atenção por alguns instantes. Compreende a senhora
que se eu lá fui ao escolho, não foi para ofendê-la. Demais, a coisa data de
longe. Eu sei que está com pressa. Se houvesse tempo, falaríamos,
recordaríamos, mas isso de nada serve. A coisa data de um dia em que caiu neve.
E depois eu passei uma vez, e cuido tê-la visto sorrir. É assim que tudo se
explica. Quanto ao que se passou ontem, eu não tive tempo de ir a casa, acabava
do trabalho, estava todo rasgado, meti-lhe medo, a senhora desmaiou, fiz mal,
não se entra assim na casa dos outros, peço-lhe que me perdoe. É isto mais ou
menos o que eu queria dizer-lhe. Vai partir. Tem um belo tempo. Acha justo que
eu lhe fale, não? É o último minuto.
—
Penso na caixinha — respondeu Déruchette — Por que não há de guardá-la para a
sua mulher, quando se casar?
—
Senhora — disse Gilliatt —, provavelmente eu não me casarei nunca.
—
Pois é pena, porque é uma boa alma. Obrigada.
E
Déruchette sorriu. Gilliatt retribuiu-lhe com outro sorriso. Depois ajudou
Déruchette a entrar no escaler.
Menos
de um quarto de hora depois, o escaler aonde iam Ebenezer e Déruchette atracava
ao Cashmere.
CAPÍTULO V
A GRANDE
TUMBA
Gilliatt
seguiu pela praia, parou rapidamente em Saint-Pierre-Port, depois caminhou para
Saint-Sampson ao longo do mar, fugindo aos encontros, evitando as estradas
cheias de caminhantes, por culpa dele.
Desde
muito tempo, como se sabe, Gilliatt tinha um modo de atravessar a terra em
todos os sentidos sem ser visto por ninguém. Conhecia os atalhos, fez para si
itinerários isolados e em ziguezagues: tinha o hábito feroz do ente que não se
julga estimado; andava de longe. Ainda criança, vendo pouco agasalho no rosto
dos homens, tomou o costume, que depois tornou-se-lhe instinto, de andar sempre
afastado.
Passou
a Esplanada, depois a Salerie. De tempos a tempos, voltava-se e olhava para o
Cashmere na barra, que lhe ficava por trás; e o Cashmere abria as velas.
Havia pouco vento, Gilliatt ia mais depressa que o Cashmere.
Gilliatt
caminhava nas rochas extremas da praia, com a cabeça baixa. A maré começava a
subir.
Em
certo momento parou e, voltando as costas para o mar, contemplou durante alguns
minutos, além dos rochedos que escondiam a estrada do Vale, uma moita de
carvalhos. Eram os carvalhos do lugar chamado Basses Maisons. Foi ali, debaixo
daquelas árvores, que outrora o dedo de Déruchette escreveu o nome Gilliatt na
neve. Havia muito tempo que essa neve estava desfeita.
Prosseguiu
o caminho.
O
dia estava mais belo que nenhum outro naquele ano. A manhã tinha um quê de
nupcial. Era um desses dias vernais em que maio ostenta-se todo inteiro; a
criação parecia não ter outro fim que dar uma festa e fazer a própria
felicidade. Sob todos aqueles rumores, da floresta como da aldeia, da vaga como
da atmosfera, sentiam-se uns sons de arrulho. As primeiras borboletas pousavam
nas primeiras rosas. Tudo era novo na natureza, as ervas, os musgos, as folhas,
os perfumes, os raios. Parecia que o sol nunca tinha servido. Os seixos estavam
lavados de fresco. A profunda canção das árvores era cantada por aves nascidas
na véspera. Era provável que a casquinha do ovo quebrada pelo biquinho dessas
aves ainda estivesse no ninho. Ensaios de asas rumorejavam nas folhas trêmulas.
Cantavam o primeiro canto, davam o primeiro vôo. Era uma doce conversa de todos
a um tempo, poupas, melharucos, pintassilgos, barbirruivos, pardais. Os
lilases, os lírios, as dafnes, as glicínias compunham nas moitas uma deliciosa
variedade de cores. Uma linda lentilha aquática que há em Guernesey cobria as
lagoas de uma toalha de esmeralda. Banhavam-se as alvéloas nas lagoas, onde
costumam fazer tão graciosos ninhos. Via-se o céu através de todas as falhas da
vegetação. Algumas nuvens lascivas perseguiam-se no ar ondeando como ninfas.
Como que se sentia a passagem de beijos mandados por bocas invisíveis. Nenhum
velho muro deixava de ter, como um noivo, o seu ramalhete de girófleas. Os
abrunheiros silvestres e os codessos estavam em flor; viam-se aqueles montinhos
brancos luzindo e aqueles montinhos amarelos fulgurando através do cruzamento
dos ramos.
A
primavera atirava toda a sua prata e ouro no imenso cesto rasgado dos bosques.
Os pimpolhos novos eram verdes de fresco. Ouvia-se no ar um grito de saudação.
Estio hospitaleiro abria a porta aos pássaros longínquos. Era a hora da chegada
das andorinhas. Os tirsos dos juncos orlavam os caminhos cavados, esperando os
tirsos dos pilriteiros. O belo e o lindo faziam boa vizinhança: o soberbo
contemplava-se pelo gracioso; o grande não tolhia o pequeno; não se perdia
nenhuma nota do concerto; as magnificências microscópicas estavam em plano
próprio naquela vasta beleza universal; distinguia-se tudo como numa água
límpida. Por toda a parte uma divina plenitude e um intumescimento misterioso
faziam adivinhar o esforço pânico e sagrado da seiva em ação. O que brilhava,
brilhava mais; o que amava, amava melhor. Havia um hino na flor e uma
irradiação no ruído. Escutava-se a grande harmonia difusa. O que começava a
despontar procurava o que começava a surdir. Uma turvação, que surgia de baixo,
e vertia também de cima, agitava vagamente os corações, corruptíveis à
influência espessa e subterrânea dos germes. A flor prometia obscuramente o
fruto, todas as virgens cismavam, a reprodução dos seres, premeditada pela
imensa alma da sombra, esboçava-se na irradiação das coisas. Era o universal
noivado. A vida, que é a esposa, abraçava o infinito, que é o esposo. O dia
estava claro, formoso e ardente; através das sebes, nas cercas, viam-se rir as
crianças. Algumas jogavam a palheta. As macieiras, os pessegueiros, as
cerejeiras, as pereiras cobriam os vergéis com os seus grossos tufos pálidos ou
vermelhos. Na relva, as primaveras, as pervincas, as mil-folhas, as margaridas,
os amarílis, os jacintos, as violetas e as verônicas. As borragens azuis, os
íris amarelos pululavam, com as belas estrelinhas cor-de-rosa que florescem
sempre aos bandos e que por esse motivo chamam-se as companheiras. Animálculos
dourados corriam por entre as pedras. O saião florescente purpureava os tetos
das cabanas. As operárias das colméias andavam por fora. A abelha trabalhava. A
extensão estava cheia do murmúrio dos mares e do zumbido das moscas. A
natureza, permeável na primavera, estava úmida de voluptuosidade.
Quando
Gilliatt chegou a Saint-Sampson, ainda a maré não enchera e ele pôde atravessar
a praia a pé seco, despercebido por trás dos cascos de navios no estaleiro. Um
cordão de pedras chatas, postas de espaço a espaço, auxiliava a passagem.
Gilliatt
não foi observado. O povo estava do outro lado do porto, perto da saída, junto
à casa de Lethierry. Aí andava o nome dele de boca em boca. Falava-se tanto
dele que o não chegavam a ver. Gilliatt passou escondido de algum modo pelo
próprio rumor que causava.
Viu
de longe a pança no lugar onde a amarrara, com o cano da máquina entre as
quatro correntes, com um movimento de carpinteiros trabalhando, lineamentos
confusos de pessoas que iam e vinham de um para outro lado, e ouviu a voz
tonante e alegre de Mess Lethierry dando ordens.
Meteu-se
pelas ruelas dentro.
Não
havia ninguém por trás de Bravées, toda a curiosidade convergia para a frente.
Gilliatt tomou o atalho que costeava o muro baixinho do jardim. Parou no ângulo
onde estava a malva silvestre; tornou a ver a pedra onde costumava sentar-se;
tornou a ver o banco de Déruchette. Olhava para o chão da alameda onde viu
abraçarem-se as duas sombras, que tinham desaparecido.
Foi
a caminho. Galgou a colina do castelo do Vale, desceu-a, e dirigiu-se para a
casa mal-assombrada, onde morava.
O
Houmet Paradis estava solitário.
A
casa estava tal qual ele a deixara de manhã depois de vestir-se para ir a
Saint-Pierre-Port.
Havia
uma janela aberta. Via-se por ela o bagpipe pendurado em um prego da parede.
Via-se
na mesa a pequena Bíblia, dada em agradecimento a Gilliatt por um desconhecido,
que era Ebenezer.
A
chave estava na porta. Gilliatt aproximou-se, pôs a mão na chave, fechou a
porta com duas voltas, pôs a chave no bolso, e afastou-se.
Afastou-se,
não para o lado de terra, mas para o lado do mar.
Atravessou
diagonalmente o jardim, pelo lado mais curto, pisando os canteiros, mas tendo
cuidado de poupar os sea kales que plantara por serem do gosto de
Déruchette.
Galgou
o parapeito e desceu aos arrecifes.
Continuou
a andar, indo sempre para a frente, pela longa e estreita linha de cachopos que
ligava a casa dele àquele grande obelisco de granito de pé, no meio do mar, que
se chamava Corne de la Bête. Era ali que ficava a Cadeira Gild-Holm-‘Ur.
Passava
de um recife a outro como um gigante caminha nos cabeços. Andar em uma crosta
de recifes assemelha-se a andar na borda de um telhado.
Uma
pescadora de rede que andava com os pés descalços, nos charcos que ficavam
próximos, e voltava para a praia, gritou-lhe: “Cuidado. A maré está enchendo”.
Gilliatt
continuou a andar. Chegando ao grande rochedo da ponta, que formava um pináculo
no mar, parou. Acabava a terra. Era a extremidade do pequeno promontório.
Olhou.
Ao
largo pescavam alguns barcos, com âncoras fora. Via-se de quando em quando
naqueles barcos um gotejar de prata: eram as redes que saíam da água. O Cashmere
ainda não estava na altura de Saint-Sampson; desenrolara a mezena. Estava entre
Herm e Jethou.
Gilliatt
torneou o rochedo. Chegou à beira da Cadeira Gild-Holm-‘Ur, ao pé dessa espécie
de escada tosca que, menos de três meses antes, Ebenezer descera ajudado por
ele.
Gilliatt
subiu.
A
maior parte dos degraus já estava debaixo da água. Apenas dois ou três estavam
a seco. Gilliatt escalou-os.
Os
degraus iam ter à Cadeira Gild-Holm-‘Ur. Chegou à cadeira, contemplou-a por um
momento, apoiou a mão nos olhos e fê-la passar de uma a outra sobrancelha,
gesto com que parece que se apaga o passado, depois assentou-se na cava da
rocha, com o grande declive por trás de si, e o oceano aos pés.
O
Cashmere, nesse momento, passava pela grande torre arredondada e imersa,
defendida por um sargento e um canhão, e que marca na baía a metade do caminho
entre Herm e Saint-Pierre-Port.
Nas
fendas do rochedo tremiam algumas flores, por sobre a cabeça de Gilliatt. A
água estava toda azul. O vento era de leste, havia pouca ressaca à roda de
Serk, da qual em Guernesey só se vê a costa ocidental. Via-se ao longe a França
como uma bruma e a longa faixa amarela de areias de Carteret. De quando em
quando passava uma borboleta branca. As borboletas gostam de passear sobre o
mar.
Fraca
era a brisa. Todo aquele azul, embaixo, e em cima, estava imóvel. Nenhuma
tremura agitava aquelas serpentes de um azul mais claro ou mais carregado, que
marcavam na superfície do mar as torções latentes dos baixios.
O
Cashmere, pouco impelido pelo vento, içou os cutelos para apanhar alguma
brisa. Cobriu-se todo de panos. Mas o vento era de través, o efeito dos cutelos
obrigava-o a costear de perto Guernesey. Já tinha passado a baliza de
Saint-Sampson. Atingia a colina do castelo do Vale. Estava quase próximo ao
promontório da casa de Gilliatt.
Gilliatt
via-o aproximar-se.
O
ar e o mar estavam como que adormecidos. A maré enchia, não por meio de ondas,
mas por intumescimento. O nível da água ia-se levantando sem palpitação. O
vento do largo mar, extinto, assemelhava-se a um hálito de infante.
Ouviam-se
na direção da porta de Saint-Sampson pequenos golpes surdos, que eram
marteladas. Provavelmente eram os carpinteiros que levantavam guindastes e
pranchas para tirar a máquina da pança. Esse rumor mal chegava a Gilliatt, por
causa da massa de granito a que ele estava encostado.
O
Cashmere aproximava-se com uma lentidão de fantasma.
Gilliatt
esperava.
De
súbito uma agitação da água e uma sensação de frio obrigaram-no a olhar para
baixo. A água tocava-lhe os pés.
Gilliatt
abaixou os olhos e levantou-os.
O
Cashmere estava perto.
O
rochedo onde as chuvas tinham cavado a Cadeira Gild-Holm-‘Ur era tão vertical,
e havia tanta água naquele sítio, que os navios podiam, em tempo de calma,
passar ali à distância de algumas braças.
O
Cashmere chegou. Surgiu, alçou-se. Parecia crescer sobre a água. Foi
como que um crescimento de sombra. Todo o aparelho destacou-se como massa
negra, no céu azul, e no magnífico balanço do mar. As longas velas, por um
instante sobrepostas ao sol, tornavam-se quase cor-de-rosa e tiveram urna
transparência inefável. As ondas tinham um murmúrio indistinto. Nenhum rumor
perturbava o resvalar majestoso daquela massa. De terra via-se o que se passava
a bordo como se lá se estivesse.
O
Cashmere roçou quase pela rocha.
O
timoneiro estava no leme, um grumete trepava aos ovéns, alguns passageiros,
encostados à amurada, contemplavam a serenidade do tempo, o capitão fumava. Mas
não era nada disso o que Gilliatt contemplava.
Havia
no tombadilho um lugar cheio de sol. Era para ali que ele olhava. Ali estavam
Ebenezer e Déruchette. Estavam assentados debaixo daquela luz, ele juntinho
dela. Contraíam-se graciosamente ao lado um do outro, como dois pássaros que se
aquecem a um raio do meio-dia, num desses bancos cobertos de um assento
alcatroado que os navios bem preparados oferecem aos viajantes, e nos quais
costuma ler-se, quando o navio é inglês: “For ladies only”. A cabeça de
Déruchette caía sobre o ombro de Ebenezer, o braço de Ebenezer estava por trás
da cintura de Déruchette, tinham as mãos agarradas uma à outra e os dedos
entrelaçados nos dedos. As diferenças de um anjo a outro mostravam-se
claramente naqueles dois delicados rostos feitos de inocência. Um era mais
virginal, o outro mais sideral. Era expressivo aquele casto abraço, que
encerrava o himeneu e o pudor. Aquele banco era já uma alcova e quase um ninho.
Ao mesmo tempo, era uma glória; a doce glória do amor fugindo numa nuvem.
O
silêncio era celeste.
O
olhar de Ebenezer agradecia e contemplava; moviam-se os lábios de Déruchette; e
nesse silêncio delicioso, como o vento vinha do lado oposto, no instante rápido
em que o sloop resvalou a algumas toesas da Cadeira Gild-Holm-‘Ur,
Gilliatt ouvia a voz terna e delicada de Déruchette que dizia:
—
Olha! Parece que há um homem no rochedo.
A
aparição passou.
O
Cashmere deixou a ponta do promontório atrás de si, e mergulhou-se no
franzido profundo das vagas. Em menos de um quarto de hora, mastros e velas
assemelhavam-se a uma espécie de obelisco branco diminuindo no horizonte.
Gilliatt tinha água até os joelhos.
Via
o sloop afastar-se.
A
brisa refrescava ao longe. Gilliatt pôde ver o Cashmere içar os cutelos
baixos para aproveitar o aumento do vento. O Cashmere já estava fora das
águas de Guernesey. Gilliatt não tirava os olhos do navio.
A
água chegava-lhe à cintura.
A
maré levantava-se. O tempo corria.
As
cotovias e os corvos-marinhos esvoaçavam inquietos em roda dele. Dissera-se que
procuravam adverti-lo. Talvez houvesse naqueles bandos alguma gaivota ainda das
Douvres que o reconhecia.
Decorreu
uma hora.
O
vento do largo não soprava no porto, mas a diminuição do Cashmere era
rápida. O sloop, segundo as aparências, ia a toda a força. Já estava
quase na altura de Casquets.
Não
havia espuma à roda do rochedo Gild-Holin-‘Ur, nenhuma vaga batia no granito. A
água inchava vagarosamente. Já estava quase na altura dos ombros de Gilliatt.
Decorreu
outra hora.
O
Cashmere estava já além das águas de Aurigny. O rochedo Ortach
escondeu-o por um momento. Ocultou-se atrás desse rochedo, e saiu depois, como
de um eclipse. O sloop fugia para o norte. Já entrava no mar alto. Era
apenas um ponto, tendo, por causa do sol, a cintilação de uma luz. Os pássaros
soltavam pios a Gilliatt. Já não se via mais que a cabeça dele. O mar subia com
uma brandura sinistra. Gilliatt, imóvel, olhava para o Cashmere que se
desvanecia. A maré estava quase cheia. Caía a tarde. Por trás de Gilliatt, no
porto, alguns barcos de pesca voltavam para terra.
Os
olhos de Gilliatt, presos ao longe no sloop, estavam fixos.
Aqueles
olhos fixos não se pareciam com coisa alguma que se possa ver na terra. Havia o
inexprimível naquela pálpebra trágica e calma. O olhar continha toda a soma de
tranquilidade que deixa o sonho abortado; era a aceitação lúgubre de outro
complemento. Uma fuga de estrela deve ser acompanhada por olhares semelhantes.
De quando em quando a obscuridade celeste aparecia naquela pálpebra cujo raio
visual estava fixo num ponto do espaço. Ao mesmo tempo que a água infinita
subia à roda do rochedo Gild-Holm-‘Ur, ia subindo a imensa tranquilidade da
sombra nos olhos profundos de Gilliatt.
O
Cashmere, tornando-se imperceptível, era já uma mancha misturada à
bruma. Para distingui-lo era preciso saber onde ele estava.
A
pouco e pouco, aquela mancha, que já não era uma forma, foi empalidecendo.
Depois
diminuiu.
Depois
dissipou-se.
No
momento em que o navio dissipava-se no horizonte, a cabeça desaparecia debaixo
da água. Tudo acabou; só restava o mar.
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[1] Gênesis, cap. III, vers. 16: “Tu parirás com dor”.
[2] Gênesis, cap. I, vers. 4.
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APRENDENDO PORTUGUÊS – Lição 02 – ARREAR X ARRIAR