© Copyright 2017, VirtualBooks
Editora e Livraria Ltda
Publicado pela Livraria Garnier em 1900, embora em sua folha de rosto mostrasse
o ano de 1899. Capa: Lilith com uma
cobra, John Collier • 1886 DOM CASMURRO,
Joaquim Maria Machado de Assis (1839 — 1908). Pará de Minas, MG, Brasil: Editora VirtualBooks – ISBN: 9781521761007 – Todos
os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98.
DOM CASMURRO
Machado de Assis
DO TÍTULO
Uma noite destas, vindo da cidade para
o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu
conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da
Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os
versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu
estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele
interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.
— Continue, disse eu acordando.
— Já acabei, murmurou ele.
— São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los
outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte
entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro.
Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à
alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos
da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom
Casmurro, domingo vou jantar com você”.— “Vou para Petrópolis, Dom
Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho
Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo”.— “Meu caro Dom Casmurro,
não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade;
dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça”.
Não consultes dicionários. Casmurro não
está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem
calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me
fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título
para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este
mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com
pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros
que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.
CAPÍTULO II
DO LIVRO
Agora que expliquei o título, passo a
escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na
mão.
Vivo só, com um criado. A casa em que
moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão
particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos,
lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de
Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que
desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o
mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas
alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou
menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam
nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das
estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e
Massinissa, com os nomes por baixo… Não alcanço a razão de tais personagens.
Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, já ela estava assim decorada; vinha
do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e
figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e parecido.
Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça
velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da
vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.
O meu fim evidente era atar as duas
pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não
consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a
fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se
mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.
O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e
nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias;
o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade
poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim.
Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a
geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos,
outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela
aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários,
e tal freqüência é cansativa.
Entretanto, vida diferente não quer
dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga
aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que
perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma
recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo.
Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e
não durmo mal.
Ora, como tudo cansa, esta monotonia
acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro.
Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças
necessárias. Depois, pensei em fazer uma História dos Subúrbios, menos
seca que as memórias do padre Luís Gonçalves dos Santos, relativas à cidade;
era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo árido
e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a
dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos,
pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as
sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o
do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?…
Fiquei tão alegre com esta idéia, que
ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu,
grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o
conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste
modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo.
Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me
esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou
do espírito. É o que vais entender, lendo.
CAPÍTULO III
A DENÚNCIA
Ia a entrar na sala de visitas, quando
ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da rua de
Mata-cavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de
trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias
velhas; o ano era de 1857.
— D. Glória, a senhora persiste na
idéia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo, e já agora pode
haver uma dificuldade.
— Que dificuldade?
— Uma grande dificuldade.
Minha mãe quis saber o que era. José
Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no
corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade
estava na casa ao pé, a gente do Pádua.
— A gente do Pádua?
— Há algum tempo estou para lhe dizer
isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido
nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque
se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.
— Não acho. Metidos nos cantos?
— É um modo de falar. Em segredinhos,
sempre juntos. Bentinho quase não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai
faz que não vê; tomara ele que as coisas corressem de maneira que… Compreendo
o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe que todos têm a
alma cândida…
— Mas, Sr. José Dias, tenho visto os
pequenos brincando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta a idade;
Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze à semana passada; são dois criançolas.
Não se esqueça que foram criados juntos, desde aquela grande enchente, há dez
anos, em que a família Pádua perdeu tanta coisa; daí vieram as nossas relações.
Pois eu hei de crer? … Mano Cosme, você que acha?
Tio Cosme respondeu com um “Ora!”
que, traduzido em vulgar, queria dizer: “São imaginações do José Dias; os
pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?”
— Sim, creio que o senhor está
enganado.
— Pode ser, minha senhora. Oxalá tenham
razão; mas creia que não falei senão depois de muito examinar…
— Em todo caso, vai sendo tempo,
interrompeu minha mãe; vou tratar de metê-lo no seminário quanto antes.
— Bem, uma vez que não perdeu a idéia
de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho há de satisfazer os
desejos de sua mãe. E depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não
esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó governou o
Império…
— Governo como a cara dele! atalhou tio
Cosme, cedendo a antigos rancores políticos.
— Perdão, doutor, não estou defendendo
ninguém, estou citando. O que eu quero é dizer que o clero ainda tem grande
papel no Brasil.
— Você o que quer é um capote; ande, vá
buscar o gamão. Quanto ao pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que
não comece a dizer missa atrás das portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo
necessidade de fazê-lo padre?
— É promessa, há de cumprir-se.
— Sei que você fez promessa… mas uma
promessa assim… não sei… Creio que, bem pensado… Você que acha, prima
Justina?
— Eu?
— Verdade é que cada um sabe melhor de
si, continuou tio Cosme; Deus é que sabe de todos. Contudo, uma promessa de
tantos anos… Mas, que é isso, mana Glória? Está chorando? Ora esta! Pois isto
é coisa de lágrimas?
Minha mãe assoou-se sem responder.
Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto
silêncio, durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra força
maior, outra emoção… Não pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer.
Prima Justina exortava: “Prima Glória! Prima Glória!” José Dias
desculpava-se: “Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração,
pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo…”
CAPÍTULO IV
UM DEVER AMARÍSSIMO!
José Dias amava os superlativos. Era um
modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, servia a prolongar as
frases. Levantou-se para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa.
Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engomadas,
presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no
Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe
ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um arco de aço por
dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste
caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era magro, chupado, com
um princípio de calva; teria os seus cinqüenta e cinco anos. Levantou-se com o
passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado dos preguiçosos, mas um
vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da
conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever amaríssimo!
CAPÍTULO V
O AGREGADO
Nem sempre ia naquele passo vagaroso e
rígido. Também se descompunha em acionados, era muita vez rápido e lépido nos
movimentos, tão natural nesta como naquela maneira. Outrossim, ria largo, se
era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo, a tal ponto as
bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, toda a pessoa, todo o mundo
pareciam rir nele. Nos lances graves, gravíssimo.
Era nosso agregado desde muitos anos;
meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um
dia apareceu ali vendendo-se por médico homeopata; levava um Manual e
uma botica. Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma
escrava, e não quis receber nenhuma remuneração. Então meu pai propôs-lhe ficar
ali vivendo, com pequeno ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo
levar a saúde à casa de sapé do pobre.
— Quem lhe impede que vá a outras
partes? Vá aonde quiser, mas fique morando conosco.
— Voltarei daqui a três meses.
Voltou dali a duas semanas, aceitou
casa e comida sem outro estipêndio, salvo o que quisessem dar por festas. Quando
meu pai foi eleito deputado e veio para o Rio de Janeiro com a família, ele
veio também, e teve o seu quarto ao fundo da chácara. Um dia, reinando outra
vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que fosse ver a nossa escravatura.
José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou confessando que não era
médico. Tomara este título para ajudar a propaganda da nova escola, e não o fez
sem estudar muito e muito; mas a consciência não lhe permitia aceitar mais
doentes.
— Mas, você curou das outras vezes.
— Creio que sim; o mais acertado,
porém, é dizer que foram os remédios indicados nos livros. Eles, sim; eles,
abaixo de Deus. Eu era um charlatão… Não negue; os motivos do meu
procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia é a verdade, e, para servir
à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo.
Não foi despedido, como pedia então;
meu pai já não podia dispensá-lo. Tinha o dom de se fazer aceito e necessário;
dava-se por falta dele, como de pessoa da família. Quando meu pai morreu, a dor
que o pungiu foi enorme, disseram-me, não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito
grata, e não consentiu que ele deixasse o quarto da chácara; ao sétimo dia,
depois da missa, ele foi despedir-se dela.
— Fique, José Dias.
— Obedeço, minha senhora.
Teve um pequeno legado no testamento,
uma apólice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e
pendurou-as no quarto, por cima da cama. “Esta é a melhor apólice”,
dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa
audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era
amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas
alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da
índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das pessoas que enxovalham
depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado,
de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o bastante
para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum fenômeno, falar dos
efeitos do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre. Contava muita vez uma
viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado
para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de
Deus, era tudo.
— Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio
Cosme um dia.
— Abaixo, repetiu José Dias cheio de
veneração.
E minha mãe, que era religiosa, gostou
de ver que ele punha Deus no devido lugar, e sorriu aprovando. José Dias
agradeceu de cabeça. Minha mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio
Cosme, que era advogado, confiava-lhe a cópia de papéis de autos.
CAPÍTULO VI
TIO COSME
Tio Cosme vivia com minha mãe, desde
que ela enviuvou. Já então era viúvo, como prima Justina; era a casa dos três
viúvos.
A fortuna troca muita vez as mãos à
natureza. Formado para as serenas funções do capitalismo, tio Cosme não
enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório na antiga rua das Violas,
perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no crime. José Dias não
perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com
muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais
modesto que quisesse ser, sorria de persuasão.
Era gordo e pesado, tinha a respiração
curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordações mais antigas era vê-lo
montar todas as manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao
escritório. O preto que a tinha ido buscar à cocheira, segurava o freio,
enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo; a isto seguia-se um minuto de
descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo ameaçava
subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito. Enfim, após alguns
instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e morais, dava o
último surto da terra, e desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta
deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme
acomodava as carnes, e a besta partia a trote.
Também não me esqueceu o que ele me fez
uma tarde. Posto que nascido na roça (donde vim com dois anos) e apesar dos
costumes do tempo, eu não sabia montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou
em mim e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos),
sozinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar desesperadamente:
“Mamãe! mamãe!” Ela acudiu, pálida e trêmula, cuidou que me
estivessem matando, apeou-me, afagou-me, enquanto o irmão perguntava:
— Mana Glória, pois um tamanhão destes
tem medo de besta mansa?
— Não está acostumado.
— Deve acostumar-se. Padre que seja, se
for vigário na roça, é preciso que monte a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não
sendo padre, se quiser florear como os outros rapazes, e não souber, há de
queixar-se de você, mana Glória.
— Pois que se queixe; tenho medo.
— Medo! Ora, medo!
A verdade é que eu só vim a aprender
equitação mais tarde, menos por gosto que por vergonha de dizer que não sabia
montar. “Agora é que ele vai namorar deveras”, disseram quando eu
comecei as lições. Não se diria o mesmo de tio Cosme. Nele era velho costume e
necessidade. Já não dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi aceito de
muitas damas, além de partidário exaltado; mas os anos levaram-lhe o mais do
ardor político e sexual, e a gordura acabou com o resto de idéias públicas e
específicas. Agora só cumpria as obrigações do ofício e sem amor. Nas horas de
lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez dizia pilhérias.
CAPÍTULO VII
D. GLÓRIA
Minha mãe era boa criatura. Quando lhe
morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de
idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em
que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns
que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e
deixou-se estar na casa de Mata-cavalos, onde vivera os dois últimos anos de
casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a
família Fernandes.
Ora, pois, naquele ano da graça de 1857,
D. Maria da Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dois anos de idade.
Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por
mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Vivia metida em um
eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e
abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em bandós, eram apanhados sobre
a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de
folhos. Lidava assim, com os seus sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado
e outro, vendo e guiando os serviços todos da casa inteira, desde manhã até à
noite.
Tenho ali na parede o retrato dela, ao
lado do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda
dá idéia de ambos. Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e
usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham
para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço
sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um
trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava
então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a
flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal
pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de
sociedade.
Concluo que não se devem abolir as
loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má
a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte
há de ela ficar. Aqui os tenho aos dois bem casados de outrora, os bem-amados,
os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho
provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para
eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatídica. São retratos que valem
por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer:
“Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!” O de meu pai, olhando para a
gente, faz este comentário: “Vejam como esta moça me quer…” Se
padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e
comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou
muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes
tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade.
CAPÍTULO VIII
É TEMPO
Mas é tempo de tornar àquela tarde de
novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho da
rua em que morávamos. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o que
sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em
cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia… Agora é que eu
ia começar a minha ópera. “A vida é uma ópera”, dizia-me um velho
tenor italiano que aqui viveu e morreu… E explicou-me um dia a definição, em
tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena dá-la; é só um capítulo.
CAPÍTULO IX
A ÓPERA
Já não tinha voz, mas teimava em dizer
que a tinha. “O desuso é que me faz mal”, acrescentava. Sempre que
uma companhia nova chegava da Europa, ia ao empresário e expunha-lhe todas as
injustiças da Terra e do Céu; o empresário cometia mais uma, e ele saía a
bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papéis. Quando
andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilônia. Às vezes,
cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais idoso que ele ou tanto;
vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui jantar comigo algumas
vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a definição do costume, e
como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma ópera como uma viagem de
mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou:
— A vida é uma ópera e uma grande
ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos
comprimários, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em
presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários. Há coros numerosos, muitos
bailados, e a orquestração é excelente…
— Mas, meu caro Marcolini…
— Quê?…
E, depois, de beber um gole de licor,
pousou o cálice, e expôs-me a história da criação, com palavras que vou
resumir.
Deus é o poeta. A música é de Satanás,
jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de
Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na
distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e
mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio
essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele
expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não
houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal
gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito
consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, — e
acaso para reconciliar-se com o céu, — compôs a partitura, e logo que a acabou
foi levá-la ao Padre Eterno.
— Senhor, não desaprendi as lições
recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a
executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés…
— Não, retorquiu o Senhor, não quero
ouvir nada.
— Mas, Senhor…
— Nada! nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor
fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a
ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta,
e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e
comprimárias, coros e bailarinos.
— Ouvi agora alguns ensaios!
— Não, não quero saber de ensaios.
Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos
de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela
resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga
teriam evitado. Com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a
música, para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a beleza da
composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Éden, a ária de
Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances
se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de
repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais,
encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são
aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.
Os amigos do maestro querem que
dificilmente se possa achar obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas
rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas
sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se
negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao
pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o
libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto
seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente
diversa e até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do
poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres Patuscas de Windsor.
Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem
eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa
nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve
outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que
parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.
— Esta peça, concluiu o velho tenor,
durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele
demolido por utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem
pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra
da divisão é aquilo da Escritura: “Muitos são os chamados, poucos os
escolhidos”. Deus recebe em ouro, Satanás em papel.
— Tem graça…
— Graça? bradou ele com fúria; mas
aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho
horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e última. Um dia, quando todos
os livros forem queimados por inúteis, há de haver alguém, pode ser que tenor,
e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu
amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré,
etc. Este cálice (e enchia-o novamente), este cálice é um breve estribilho. Não
se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera…
CAPÍTULO X
ACEITO A TEORIA
Que é demasiada metafísica para um só
tenor, não há dúvida; mas a perda da voz explica tudo, e há filósofos que são,
em resumo, tenores desempregados.
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do
meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a
verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo,
depois um trio, depois um quatuor… Mas não
adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava,
porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim.
A mim é que ele me denunciou.
CAPÍTULO XI
A PROMESSA
Tão depressa vi desaparecer o agregado
no corredor, deixei o esconderijo, e corri à varanda do fundo. Não quis saber
de lágrimas nem da causa que as fazia verter a minha mãe. A causa eram provavelmente
os seus projetos eclesiásticos, e a ocasião destes é a que vou dizer, por ser
já então história velha; datava de dezesseis anos.
Os projetos vinham do tempo em que fui
concebido. Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com
Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo na
igreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse nada a meu pai, nem antes, nem
depois de me dar à luz; contava fazê-lo quando eu entrasse para a escola, mas
enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o terror de separar-se de mim; mas era tão
devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação, confiando a
promessa a parentes e familiares. Unicamente, para que nos separássemos o mais
tarde possível, fez-me aprender em casa primeiras letras, latim e doutrina, por
aquele padre Cabral, velho amigo do tio Cosme, que ia lá jogar às noites.
Prazos largos são fáceis de subscrever;
a imaginação os faz infinitos. Minha mãe esperou que os anos viessem vindo.
Entretanto, ia-me afeiçoando à idéia da igreja; brincos de criança, livros
devotos, imagens de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar.
Quando íamos à missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que
reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de missa,
— um tanto às escondidas, porque minha mãe dizia que missa não era coisa de
brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristão, e
alterávamos o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia entre nós; a hóstia era
sempre um doce. No tempo em que brincávamos assim, era muito comum ouvir à
minha vizinha: “Hoje há missa?” Eu já sabia o que isto queria dizer,
respondia afirmativamente, e ia pedir hóstia por outro nome. Voltava com ela,
arranjávamos o altar, engrolávamos o latim e precipitávamos as
cerimônias. Dominus, non sum dignus… Isto, que eu devia dizer
três vezes, penso que só dizia uma, tal era a gulodice do padre e do sacristão.
Não bebíamos vinho nem água; não tínhamos o primeiro, e a segunda viria
tirar-nos o gosto do sacrifício.
Ultimamente não me falavam já do
seminário, a tal ponto que eu supunha ser negócio findo. Quinze anos, não
havendo vocação, pediam antes o seminário do mundo que o de São José. Minha mãe
ficava muita vez a olhar para mim, como alma perdida, ou pegava-me na mão, a
pretexto de nada, para apertá-la muito.
CAPÍTULO XII
NA VARANDA
Parei na varanda; ia tonto, atordoado,
as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela boca fora. Não me
atrevia a descer à chácara, e passar ao quintal vizinho. Comecei a andar de um
lado para outro, estacando para amparar-me, e andava outra vez e estacava.
Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias:
“Sempre juntos…”
“Em segredinhos…”
“Se eles pegam de namoro…”
Tijolos que pisei e repisei naquela
tarde, colunas amareladas que me passastes à direita ou à esquerda, segundo eu
ia ou vinha, em vós me ficou a melhor parte da crise, a sensação de um gozo
novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me dispersava, e me trazia arrepios,
e me derramava não sei que bálsamo interior. Às vezes dava por mim, sorrindo,
um ar de riso de satisfação, que desmentia a abominação do meu pecado. E as
vozes repetiam-se confusas:
“Em segredinhos…”
“Sempre juntos…”
“Se eles pegam de namoro…”
Um coqueiro, vendo-me inquieto e
adivinhando a causa, murmurou de cima de si que não era feio que os meninos de
quinze anos andassem nos cantos com as meninas de quatorze; ao contrário, os
adolescentes daquela idade não tinham outro ofício, nem os cantos outra
utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda
que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estio,
toda a gente viva do ar era da mesma opinião.
Com que então eu amava Capitu, e Capitu
a mim? Realmente, andava cosido às saias dela, mas não me ocorria nada entre
nós que fosse deveras secreto. Antes dela ir para o colégio, eram tudo
travessuras de criança; depois que saiu do colégio, é certo que não
restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no
último ano era completa. Entretanto, a matéria das nossas conversações era a de
sempre. Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão, uma flor; outras pegava-me
nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e
palavras, o prazer que sentia quando ela me passava a mão pelos cabelos,
dizendo que os achava lindíssimos. Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os
dela eram muito mais lindos que os meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma
grande expressão de desengano e melancolia, tanto mais de espantar quanto que
tinha os cabelos realmente admiráveis; mas eu retorquia chamando-lhe maluca.
Quando me perguntava se sonhara com ela na véspera, e eu dizia que não,
ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram aventuras extraordinárias, que
subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançávamos na Lua, ou então que os anjos
vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros anjos que acabavam
de nascer. Em todos esses sonhos andávamos unidinhos. Os que eu tinha com ela
não eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não
passavam da simples repetição do dia, alguma frase, algum gesto. Também eu os
contava. Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram mais bonitos
que os meus; eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa
que sonhava… Fez-se cor de pitanga.
Pois, francamente, só agora entendia a
comoção que me davam essas e outras confidências. A emoção era doce e nova, mas
a causa dela fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os silêncios dos
últimos dias, que me não descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma
coisa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os
cuidados, o gosto de recordar a infância. Também adverti que era fenômeno
recente acordar com o pensamento em Capitu, e escutá-la de memória, e
estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa,
prestava mais atenção que dantes, e, segundo era louvor ou crítica, assim me
trazia gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos somente
companheiros de travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele
mês, com intervalos, é verdade, mas com exclusivismo também.
Tudo isto me era agora apresentado pela
boca de José Dias, que me denunciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o
mal que dissera, o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de outro.
Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que ele, nem a eterna
Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu amava-me! E as
minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de abarcar o
mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si
própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer
outra sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente
também por ser a primeira.
CAPÍTULO XIII
CAPITU
De repente, ouvi bradar uma voz de
dentro da casa ao pé:
— Capitu!
E no quintal:
— Mamãe!
E outra vez na casa:
— Vem cá!
Não me pude ter. As pernas desceram-me
os três degraus que davam para a chácara, e caminharam para o quintal vizinho.
Era costume delas, às tardes, e às manhãs também. Que as pernas também são
pessoas, apenas inferiores aos braços, e valem de si mesmas, quando a cabeça
não as rege por meio de idéias. As minhas chegaram ao pé do muro. Havia ali uma
porta de comunicação mandada rasgar por minha mãe, quando Capitu e eu éramos
pequenos. A porta não tinha chave nem taramela; abria-se empurrando de um lado
ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente de uma corda.
Era quase que exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos visita batendo de um
lado, e sendo recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de
Capitu adoeciam, o médico era eu. Entrava no quintal dela com um pau debaixo do
braço, para imitar o bengalão do doutor João da Costa; tomava o pulso à doente,
e pedia-lhe que mostrasse a língua. “É surda, coitada!”, exclamava
Capitu. Então eu coçava o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe
umas sanguessugas ou dar-lhe um vomitório: era a terapêutica habitual do
médico.
— Capitu!
— Mamãe!
— Deixa de estar esburacando o muro;
vem cá.
A voz da mãe era agora mais perto, como
se viesse já da porta dos fundos. Quis passar ao quintal, mas as pernas, há
pouco tão andarilhas, pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço,
empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pé do muro fronteiro, voltada para
ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la olhar para trás; ao dar
comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder alguma coisa. Caminhei
para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e
perguntou-me inquieta:
— Que é que você tem?
— Eu? Nada.
— Nada, não; você tem alguma coisa.
Quis insistir que nada, mas não achei
língua. Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com
certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze
anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os
cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à
moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz
reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de
alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem
águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula.
Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.
— Que é que você tem? repetiu.
— Não é nada, balbuciei finalmente.
E emendei logo:
— É uma notícia.
— Notícia de quê?
Pensei em dizer-lhe que ia entrar para
o seminário e espreitar a impressão que lhe faria. Se a consternasse é que
realmente gostava de mim; se não, é que não gostava. Mas todo esse cálculo foi
obscuro e rápido; senti que não poderia falar claramente, tinha agora a vista
não sei como…
— Então?
— Você sabe…
Nisto olhei para o muro, o lugar em que
ela estivera riscando, escrevendo ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns
riscos abertos, e lembrou-me o gesto que ela fizera para cobri-los. Então quis
vê-los de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me, mas, ou por temer que eu
acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e apagou o
escrito. Foi o mesmo que acender em mim o desejo de ler o que era.
CAPÍTULO XIV
A INSCRIÇÃO
Tudo o que contei no fim do outro
capítulo foi obra de um instante. O que se lhe seguiu foi ainda mais rápido.
Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li estes dois nomes, abertos ao
prego, e assim dispostos:
BENTO
CAPITOLINA
Voltei-me para ela; Capitu tinha os
olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro…
Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser
poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro falou por nós. Não nos movemos,
as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se,
apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata daquele gesto. Devia tê-la marcado;
sinto a falta de uma nota escrita naquela mesma noite, e que eu poria aqui com
os erros de ortografia que trouxesse, mas não traria nenhum, tal era a
diferença entre o estudante e o adolescente. Conhecia as regras do escrever,
sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres.
Não soltamos as mãos, nem elas se
deixaram cair de cansadas ou de esquecidas. Os olhos fitavam-se e
desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a meter-se uns pelos
outros… Padre futuro, estava assim diante dela como de um altar, sendo uma
das faces a Epístola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o cálice, os
lábios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguém aprende,
e é a língua católica dos homens. Não me tenhas por sacrílego, leitora minha
devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no estilo.
Estávamos ali com o céu em nós. As mãos, unindo os nervos, faziam das duas
criaturas uma só, mas uma só criatura seráfica. Os olhos continuaram a dizer coisas
infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração
caladas como vinham…
CAPÍTULO XV
OUTRA VOZ REPENTINA
Outra voz repentina, mas desta vez uma
voz de homem:
— Vocês estão jogando o siso?
Era o pai de Capitu, que estava à porta
dos fundos, ao pé da mulher. Soltamos as mãos depressa, e ficamos atrapalhados.
Capitu foi ao muro, e, com o prego, disfarçadamente, apagou os nossos nomes
escritos.
— Capitu!
— Papai!
— Não me estragues o reboco do muro.
Capitu riscava sobre o riscado, para
apagar bem o escrito. Pádua saiu ao quintal, a ver o que era, mas já a filha
tinha começado outra coisa, um perfil, que disse ser o retrato dele, e tanto
podia ser dele como da mãe; fê-lo rir, era o essencial. De resto, ele chegou
sem cólera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso ou menos que duvidoso em que
nos apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braços curtos, costas
abauladas, donde lhe veio a alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe pôs.
Ninguém lhe chamava assim lá em casa; era só o agregado.
— Vocês estavam jogando o siso?
perguntou.
Olhei para um pé de sabugueiro que
ficava perto; Capitu respondeu por ambos.
— Estávamos, sim, senhor; mas Bentinho
ri logo, não agüenta.
— Quando eu cheguei à porta, não ria.
— Já tinha rido das outras vezes; não
pode. Papai quer ver?
E séria, fitou em mim os olhos,
convidando-me ao jogo. O susto é naturalmente sério; eu estava ainda sob a ação
do que trouxe a entrada de Pádua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse
fazê-lo, para legitimar a resposta de Capitu. Esta, cansada de esperar, desviou
o rosto, dizendo que eu não ria daquela vez por estar ao pé do pai. E nem assim
ri. Há coisas que só se aprendem tarde; é mister nascer com elas para fazê-las
cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde. Capitu, após duas
voltas, foi ter com a mãe, que continuava à porta da casa, deixando-nos a mim e
ao pai encantados dela; o pai, olhando para ela e para mim, dizia-me, cheio de
ternura:
— Quem dirá que esta pequena tem
quatorze anos? Parece dezessete. Mamãe está boa? continuou voltando-se
inteiramente para mim.
— Está.
— Há muitos dias que não a vejo. Estou
com vontade de dar um capote ao doutor, mas não tenho podido, ando com
trabalhos da repartição em casa; escrevo todas as noites que é um desespero;
negócio de relatório. Você já viu o meu gaturamo? Está ali no fundo. Ia agora
mesmo buscar a gaiola; ande ver.
Que o meu desejo era nenhum, crê-se
facilmente, sem ser preciso jurar pelo Céu nem pela Terra. Meu desejo era ir
atrás de Capitu e falar-lhe agora do mal que nos esperava; mas o pai era o pai,
e demais amava particularmente os passarinhos. Tinha-os de vária espécie, cor e
tamanho. A área que havia no centro da casa era cercada de gaiolas de canários,
que faziam cantando um barulho de todos os diabos. Trocava pássaros com outros
amadores, comprava-os, apanhava alguns, no próprio quintal, armando alçapões.
Também, se adoeciam, tratava deles como se fossem gente.
CAPÍTULO XVI
O ADMINISTRADOR INTERINO
Pádua era empregado em repartição
dependente do ministério da guerra. Não ganhava muito, mas a mulher gastava
pouco, e a vida era barata. Demais, a casa em que morava, assobradada como a
nossa, posto que menor, era propriedade dele. Comprou-a com a sorte grande que
lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez contos de réis. A primeira idéia do
Pádua, quando lhe saiu o prêmio, foi comprar um cavalo do Cabo, um adereço de
brilhantes para a mulher, uma sepultura perpétua de família, mandar vir da
Europa alguns pássaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que ali está à
porta dos fundos da casa, em pé, falando à filha, alta, forte, cheia, como a
filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a mulher é que lhe disse que o
melhor era comprar a casa, e guardar o que sobrasse para acudir às moléstias
grandes. Pádua hesitou muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha mãe,
a quem D. Fortunata pediu auxílio. Nem foi só nessa ocasião que minha mãe lhes
valeu; um dia chegou a salvar a vida do Pádua. Escutai; a anedota é curta.
O administrador da repartição em que
Pádua trabalhava teve de ir ao Norte, em comissão. Pádua, ou por ordem
regulamentar, ou por especial designação, ficou substituindo o administrador
com os respectivos honorários. Esta mudança de fortuna trouxe-lhe certa
vertigem; era antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a roupa e a
copa, atirou-se às despesas supérfluas, deu jóias à mulher, nos dias de festa
matava um leitão, era visto em teatros, chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim
vinte e dois meses na suposição de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em
nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque chegara o efetivo
naquela manhã. Pediu à minha mãe que velasse pelas infelizes que deixava; não
podia sofrer a desgraça, matava-se. Minha mãe falou-lhe com bondade, mas ele
não atendia a coisa nenhuma.
— Não, minha senhora, não consentirei
em tal vergonha! Fazer descer a família, tornar atrás… Já disse, mato-me! Não
hei de confessar à minha gente esta miséria. E os outros? Que dirão os
vizinhos? E os amigos? E o público?
— Que público, Sr. Pádua? Deixe-se
disso; seja homem. Lembre-se que sua mulher não tem outra pessoa… e que há de
fazer? Pois um homem… Seja homem, ande.
Pádua enxugou os olhos e foi para casa,
onde viveu prostrado alguns dias, mudo, fechado na alcova, — ou então no
quintal, ao pé do poço, como se a idéia da morte teimasse nele. D. Fortunata
ralhava:
— Joãozinho, você é criança?
Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que
teve medo, e um dia correu a pedir à minha mãe que lhe fizesse o favor de ver
se lhe salvava o marido que se queria matar. Minha mãe foi achá-lo à beira do
poço, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquela de parecer que ia
ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menos, e perder um emprego
interino? Não, senhor, devia ser homem, pai de família, imitar a mulher e a
filha… Pádua obedeceu; confessou que acharia forças para cumprir a vontade de
minha mãe.
— Vontade minha, não; obrigação sua.
— Pois seja obrigação; não desconheço
que é assim mesmo.
Nos dias seguintes, continuou a entrar
e sair de casa, cosido à parede, cara no chão. Não era o mesmo homem que
estragava o chapéu em cortejar a vizinhança, risonho, olhos no ar, antes mesmo
da administração interina. Vieram as semanas, a ferida foi sarando. Pádua
começou a interessar-se pelos negócios domésticos, a cuidar dos passarinhos, a
dormir tranqüilo as noites e as tardes, a conversar e dar notícias da rua. A
serenidade regressou; atrás dela veio a alegria, um domingo, na figura de dois
amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já ele ria, já brincava, tinha o ar do
costume; a ferida sarou de todo.
Com o tempo veio um fenômeno
interessante. Pádua começou a falar da administração interina, não somente sem
as saudades dos honorários, nem o vexame da perda, mas até com desvanecimento e
orgulho. A administração ficou sendo a hégira, donde ele contava para diante e
para trás.
— No tempo em que eu era
administrador…
Ou então:
— Ah! sim, lembra-me, foi antes da
minha administração, um ou dois meses antes… Ora espere; a minha
administração começou… É isto, mês e meio antes; foi mês e meio antes, não
foi mais.
Ou ainda:
— Justamente; havia já seis meses que
eu administrava…
Tal é o sabor póstumo das glórias
interinas. José Dias bradava que era a vaidade sobrevivente; mas o padre
Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que com o vizinho Pádua se dava
a lição de Elifás a Jó: “Não desprezes a correção do Senhor; Ele fere e
cura”.
CAPÍTULO XVII
OS VERMES
“Ele fere e
cura!”. Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também
curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma
dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos,
livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para
achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os
próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos
por eles.
— Meu senhor, respondeu-me um longo
verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem
escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.
Não lhe arranquei mais nada. Os outros
todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez
esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o
roído.
CAPÍTULO XVIII
UM PLANO
Pai nem mãe foram ter conosco, quando
Capitu e eu, na sala de visitas, falávamos do seminário. Com os olhos em mim,
Capitu queria saber que notícia era a que me afligia tanto. Quando lhe disse o
que era, fez-se cor de cera.
— Mas eu não quero, acudi logo, não
quero entrar em seminários; não entro, é escusado teimarem comigo; não entro.
Capitu, a princípio, não disse nada.
Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixou-se estar com as pupilas vagas e
surdas, a boca entreaberta, toda parada. Então eu, para dar força às
afirmações, comecei a jurar que não seria padre. Naquele tempo jurava muito e
rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse
na hora da morte se fosse para o seminário. Capitu não parecia crer nem
descrer, não parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis chamá-la,
sacudi-la, mas faltou-me ânimo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara,
dançara, creio até que dormira comigo, deixava-me agora com os braços atados e
medrosos. Enfim, tornou a si, mas tinha a cara lívida, e rompeu nestas palavras
furiosas:
— Beata! carola! papa-missas!
Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto
de minha mãe, e minha mãe dela, que eu não podia entender tamanha explosão. É
verdade que também gostava de mim, e naturalmente mais, ou melhor, ou de outra
maneira, coisa bastante a explicar o despeito que lhe trazia a ameaça da
separação; mas os impropérios, como entender que lhe chamasse nomes tão feios,
e principalmente para deprimir costumes religiosos, que eram os seus? Que ela
também ia à missa, e três ou quatro vezes minha mãe é que a levou, na nossa
velha sege. Também lhe dera um rosário, uma cruz de ouro e um livro de Horas…
Quis defendê-la, mas Capitu não me deixou, continuou a chamar-lhe beata e
carola, em voz tão alta que tive medo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi tão
irritada como então; parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes,
abanava a cabeça… Eu, assustado, não sabia que fizesse; repetia os
juramentos, prometia ir naquela mesma noite declarar em casa que, por nada
neste mundo, entraria no seminário.
— Você? Você entra.
— Não entro.
— Você verá se entra ou não.
Calou-se outra vez. Quando tornou a
falar, tinha mudado; não era ainda a Capitu do costume, mas quase. Estava
séria, sem aflição, falava baixo. Quis saber a conversação da minha casa; eu
contei-lha toda, menos a parte que lhe dizia respeito.
— E que interesse tem José Dias em
lembrar isto? perguntou-me no fim.
— Acho que nenhum; foi só para fazer
mal. É um sujeito muito ruim; mas, deixe estar que me há de pagar. Quando eu
for dono da casa, quem vai para a rua é ele, você verá; não me fica um instante.
Mamãe é boa demais; dá-lhe atenção demais. Parece até que chorou.
— José Dias?
— Não, mamãe.
— Chorou por quê?
— Não sei; ouvi só dizer que ela não
chorasse, que não era coisa de choro… Ele chegou a mostrar-se arrependido, e
saiu; eu então, para não ser apanhado, deixei o canto e corri para a varanda.
Mas, deixe estar, que ele me paga!
Disse isto fechando o punho, e proferi
outras ameaças. Ao relembrá-las, não me acho ridículo; a adolescência e a
infância não são, neste ponto, ridículas; é um dos seus privilégios. Este mal
ou este perigo começa na mocidade, cresce na madureza e atinge o maior grau na
velhice. Aos quinze anos, há até certa graça em ameaçar muito e não executar
nada.
Capitu refletia. A reflexão não era
coisa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo apertado dos olhos. Pediu-me
algumas circunstâncias mais, as próprias palavras de uns e de outros, e o tom
delas. Como eu não queria dizer o ponto inicial da conversa, que era ela mesma,
não lhe pude dar toda a significação. A atenção de Capitu estava agora
particularmente nas lágrimas de minha mãe; não acabava de entendê-las. Em meio
disto, confessou que certamente não era por mal que minha mãe me queria fazer
padre; era a promessa antiga, que ela, temente a Deus, não podia deixar de
cumprir. Fiquei tão satisfeito de ver que assim espontaneamente reparava as
injúrias que lhe saíram do peito, pouco antes, que peguei da mão dela e
apertei-a muito. Capitu deixou-se ir, rindo; depois a conversa entrou a
cochilar e dormir. Tínhamos chegado à janela; um preto, que, desde algum tempo,
vinha apregoando cocadas, parou em frente e perguntou:
— Sinhazinha, qué cocada hoje?
— Não, respondeu Capitu.
— Cocadinha tá boa.
— Vá-se embora, replicou ela sem
rispidez.
— Dê cá! disse eu descendo o braço para
receber duas.
Comprei-as, mas tive de as comer
sozinho; Capitu recusou. Vi que, em meio da crise, eu conservava um canto para
as cocadas, o que tanto pode ser perfeição como imperfeição, mas o momento não
é para definições tais; fiquemos em que a minha amiga, apesar de equilibrada e
lúcida, não quis saber de doce, e gostava muito de doce. Ao contrário, o pregão
que o preto foi cantando, o pregão das velhas tardes, tão sabido do bairro e da
nossa infância:
Chora, menina, chora,
Chora, porque não tem
Vintém,
a modo que lhe deixara uma impressão
aborrecida. Da toada não era; ela a sabia de cor e de longe, usava repeti-la
nos nossos jogos da puerícia, rindo, saltando, trocando os papéis comigo, ora
vendendo, ora comprando um doce ausente. Creio que a letra, destinada a picar a
vaidade das crianças, foi que a enojou agora, porque logo depois me disse:
— Se eu fosse rica, você fugia,
metia-se no paquete e ia para a Europa.
Dito isto, espreitou-me os olhos, mas
creio que eles não lhe disseram nada, ou só agradeceram a boa intenção. Com
efeito, o sentimento era tão amigo que eu podia escusar o extraordinário da
aventura.
Como vês, Capitu, aos quatorze anos,
tinha já idéias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas
eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e
alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. Não sei se me
explico bem. Suponde uma concepção grande executada por meios pequenos. Assim,
para não sair do desejo vago e hipotético de me mandar para a Europa, Capitu,
se pudesse cumpri-lo, não me faria embarcar no paquete e fugir; estenderia uma
fila de canoas daqui até lá, por onde eu, parecendo ir à fortaleza da Laje em
ponte movediça, iria realmente até Bordéus, deixando minha mãe na praia, à
espera. Tal era a feição particular do caráter da minha amiga; pelo que, não
admira que, combatendo os meus projetos de resistência franca, fosse antes
pelos meios brandos, pela ação do empenho, da palavra, da persuasão lenta e
diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem podíamos contar. Rejeitou tio
Cosme; era um “boa-vida”; se não aprovava a minha ordenação, não era
capaz de dar um passo para suspendê-la. Prima Justina era melhor que ele, e
melhor que os dois seria o Padre Cabral, pela autoridade, mas o padre não havia
de trabalhar contra a igreja; só se eu lhe confessasse que não tinha vocação…
— Posso confessar?
— Pois, sim, mas seria aparecer
francamente, e o melhor é outra coisa. José Dias…
— Que tem José Dias?
— Pode ser um bom empenho.
— Mas se foi ele mesmo que falou…
— Não importa, continuou Capitu; dirá
agora outra coisa. Ele gosta muito de você. Não lhe fale acanhado. Tudo é que
você não tenha medo, mostre que há de vir a ser dono da casa, mostre que quer e
que pode. Dê-lhe bem a entender que não é favor. Faça-lhe também elogios; ele
gosta muito de ser elogiado. D. Glória presta-lhe atenção; mas o principal não
é isso; é que ele, tendo de servir a você, falará com muito mais calor que
outra pessoa.
— Não acho, não, Capitu.
— Então vá para o seminário.
— Isso não.
— Mas que se perde em experimentar?
Experimentemos; faça o que lhe digo. Dona Glória pode ser que mude de
resolução; se não mudar, faz-se outra coisa, mete-se então o Padre Cabral. Você
não se lembra como é que foi ao teatro pela primeira vez, há dois meses? D.
Glória não queria, e bastava isso para que José Dias não teimasse; mas ele
queria ir, e fez um discurso, lembra-se?
— Lembra-me; disse que o teatro era uma
escola de costumes.
— Justo; tanto falou que sua mãe acabou
consentindo, e pagou a entrada aos dois… Ande, peça, mande. Olhe; diga-lhe
que está pronto a ir estudar leis em São Paulo.
Estremeci de prazer. São Paulo era um
frágil biombo, destinado a ser arredado um dia, em vez da grossa parede
espiritual e eterna. Prometi falar a José Dias nos termos propostos. Capitu
repetiu-os, acentuando alguns, como principais; e inquiria-me depois sobre
eles, a ver se entendera bem, se não trocara uns por outros. E insistia em que
pedisse com boa cara, mas assim como quem pede um copo de água a pessoa que tem
obrigação de o trazer. Conto estas minúcias para que melhor se entenda aquela
manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da manhã e da tarde se fará o
primeiro dia, como no Gênesis, onde se fizeram sucessivamente sete.
CAPÍTULO XIX
SEM FALTA
Quando voltei a casa era noite. Vim
depressa, não tanto, porém, que não pensasse nos termos em que falaria ao
agregado. Formulei o pedido de cabeça, escolhendo as palavras que diria e o tom
delas, entre seco e benévolo. Na chácara, antes de entrar em casa, repeti-as
comigo, depois em voz alta, para ver se eram adequadas e se obedeciam às
recomendações de Capitu: “Preciso falar-lhe, sem falta,
amanhã; escolha o lugar e diga-me”. Proferi-as lentamente, e mais
lentamente ainda as palavras sem falta, como para sublinhá-las.
Repeti-as ainda, e então achei-as secas demais, quase ríspidas, e, francamente,
impróprias de um criançola para um homem maduro. Cuidei de escolher outras, e
parei.
Afinal disse comigo que as palavras
podiam servir, tudo era dizê-las em tom que não ofendesse. E a prova é que,
repetindo-as novamente, saíram-me quase súplices. Bastava não carregar tanto,
nem adoçar muito, um meio-termo. “E Capitu tem razão, pensei, a casa é
minha, ele é um simples agregado… Jeitoso é, pode muito bem trabalhar por
mim, e desfazer o plano de mamãe.”
CAPÍTULO XX
MIL PADRE-NOSSOS E MIL AVE-MARIAS
Levantei os olhos ao céu, que começava
a embruscar-se, mas não foi para vê-lo coberto ou descoberto. Era ao outro Céu
que eu erguia a minha alma; era ao meu refúgio, ao meu amigo. E então disse de
mim para mim: “Prometo rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, se José
Dias arranjar que eu não vá para o seminário”.
A soma era enorme. A razão é que eu
andava carregado de promessas não cumpridas. A última foi de duzentos
padre-nossos e duzentas ave-marias, se não chovesse em certa tarde de passeio a
Santa Teresa. Não choveu, mas eu não rezei as orações. Desde pequenino
acostumara-me a pedir ao Céu os seus favores, mediante orações que diria, se
eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e à medida que se
amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos números vinte, trinta,
cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de peitar a
vontade divina pela quantia das orações; além disso, cada promessa nova era
feita e jurada no sentido de pagar a dívida antiga. Mas vão lá matar a preguiça
de uma alma que a trazia do berço e não a sentia atenuada pela vida! O Céu
fazia-me o favor, eu adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas.
— Mil, mil, repeti comigo.
Realmente, a matéria do benefício era
agora imensa, não menos que a salvação ou o naufrágio da minha existência
inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que pagasse os atrasados todos.
Deus podia muito bem, irritado com os esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem
muito dinheiro… Homem grave, é possível que estas agitações de menino te
enfadem, se é que não as achas ridículas. Sublimes não eram. Cogitei muito no
modo de resgatar a dívida espiritual. Não achava outra espécie em que, mediante
a intenção, tudo se cumprisse, fechando a escrituração da minha consciência
moral sem deficit. Mandar dizer cem missas, ou subir de joelhos a
ladeira da Glória para ouvir uma, ir à Terra Santa, tudo o que as velhas
escravas me contavam de promessas célebres, tudo me acudia sem se fixar de vez
no espírito. Era muito duro subir uma ladeira de joelhos; devia feri-los por
força. A Terra Santa ficava muito longe. As missas eram numerosas, podiam
empenhar-me outra vez a alma…
CAPÍTULO XXI
PRIMA JUSTINA
Na varanda achei prima Justina,
passeando de um lado para outro. Veio ao patamar e perguntou-me onde estivera.
— Estive aqui ao pé, conversando com D.
Fortunata, e distraí-me. É tarde, não é? Mamãe perguntou por mim?
— Perguntou, mas eu disse que você já
tinha vindo.
A mentira espantou-me, não menos que a
franqueza da notícia. Não é que prima Justina fosse de biocos, dizia
francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de
Pedro; mas, confessar que mentira é que me pareceu novidade. Era quadragenária,
magra e pálida, boca fina e olhos curiosos. Vivia conosco por favor de minha
mãe, e também por interesse; minha mãe queria ter uma senhora íntima ao pé de
si, e antes parenta que estranha.
Passeamos alguns minutos na varanda,
alumiada por um lampião. Quis saber se eu não esquecera os projetos
eclesiásticos de minha mãe, e dizendo-lhe eu que não, inquiriu-me sobre o gosto
que eu tinha à vida de padre. Respondi esquivo:
— Vida de padre é muito bonita.
— Sim, é bonita; mas o que pergunto é
se você gostaria de ser padre, explicou rindo.
— Eu gosto do que mamãe quiser.
— Prima Glória deseja muito que você se
ordene, mas ainda que não desejasse, há cá em casa quem lhe meta isso na
cabeça.
— Quem é?
— Ora, quem! Quem é que há de ser?
Primo Cosme não é, que não se importa com isso; eu também não.
— José Dias? concluí.
— Naturalmente.
Enruguei a testa interrogativamente,
como se não soubesse nada. Prima Justina completou a notícia dizendo que ainda
naquela tarde José Dias lembrara a minha mãe a promessa antiga.
— Prima Glória pode ser que, em
passando os dias, vá esquecendo a promessa; mas como há de esquecer se uma
pessoa estiver sempre, nos ouvidos, zás que darás, falando do seminário? E os
discursos que ele faz, os elogios da igreja, e que a vida de padre é isto e
aquilo, tudo com aquelas palavras que só ele conhece, e aquela afetação… Note
que é só para fazer mal, porque ele é tão religioso como este lampião. Pois é
verdade, ainda hoje. Você não se dê por achado… Hoje de tarde falou como você
não imagina…
— Mas falou à toa? perguntei, a ver se
ela contava a denúncia do meu namoro com a vizinha.
Não contou; fez apenas um gesto como
indicando que havia outra coisa que não podia dizer. Novamente me recomendou
que não me desse por achado, e recapitulou todo o mal que pensava de José Dias,
e não era pouco, um intrigante, um bajulador, um especulador, e, apesar da
casca de polidez, um grosseirão. Eu, passados alguns instantes, disse:
— Prima Justina, a senhora era capaz de
uma coisa?
— De quê?
— Era capaz de… Suponha que eu não
gostasse de ser padre… a senhora podia pedir a mamãe…
— Isso não, atalhou prontamente; prima
Glória tem este negócio firme na cabeça, e não há nada no mundo que a faça
mudar de resolução; só o tempo. Você ainda era pequenino, já ela contava isto a
todas as pessoas da nossa amizade, ou só conhecidas. Lá avivar-lhe a memória,
não, que eu não trabalho para a desgraça dos outros; mas também, pedir outra
coisa, não peço. Se ela me consultasse, bem; se ela me dissesse: “Prima
Justina, você que acha?”, a minha resposta era: “Prima Glória, eu
penso que, se ele gosta de ser padre, pode ir; mas, se não gosta, o melhor é
ficar”. É o que eu diria e direi se ela me consultar algum dia. Agora, ir
falar-lhe sem ser chamada, não faço.
CAPÍTULO XXII
SENSAÇÕES ALHEIAS
Não alcancei mais nada, e para o fim
arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de Capitu. Então, como eu
quisesse ir para dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do
calor e da próxima festa da Conceição, dos meus velhos oratórios, e finalmente
de Capitu. Não disse mal dela; ao contrário, insinuou-me que podia vir a ser uma
moça bonita. Eu, que já a achava lindíssima, bradaria que era a mais bela
criatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto. Entretanto, como prima
Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o
trabalhar para os seus, o amor que tinha a minha mãe, tudo isto me acendeu a
ponto de elogiá-la também. Quando não era com palavras, era com o gesto de
aprovação que dava a cada uma das asserções da outra, e certamente com a
felicidade que devia iluminar-me a cara. Não adverti que assim confirmava a
denúncia de José Dias, ouvida por ela, à tarde, na sala de visitas, se é que
também ela não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti que os
olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me,
cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos. Ciúmes não podiam
ser; entre um pirralho da minha idade e uma viúva quarentona não havia lugar
para ciúmes. É certo que, após algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e
até lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco trêfega e olhava por
baixo; mas ainda assim, não creio que fossem ciúmes. Creio antes… sim… sim,
creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias
uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que
narram.
CAPÍTULO XXIII
PRAZO DADO
— Preciso falar-lhe amanhã, sem falta;
escolha o lugar e diga-me.
Creio que José Dias achou desusado este
meu falar. O tom não me saíra tão imperativo como eu receava, mas as palavras o
eram, e o não interrogar, não pedir, não hesitar, como era próprio da criança e
do meu estilo habitual, certamente lhe deu idéia de uma pessoa nova e de uma
nova situação. Foi no corredor, quando íamos para o chá; José Dias vinha
andando cheio da leitura de Walter Scott que fizera a minha mãe e a prima
Justina. Lia cantado e compassado. Os castelos e os parques saíam maiores da
boca dele, os lagos tinham mais água e a “abóbada celeste” contava
alguns milhares mais de estrelas cintilantes. Nos diálogos, alternava o som das
vozes, que eram levemente grossas ou finas, conforme o sexo dos interlocutores,
e reproduziam com moderação a ternura e a cólera.
Ao despedir-se de mim, na varanda,
disse-me ele:
— Amanhã, na rua. Tenho umas compras
que fazer, você pode ir comigo, pedirei a mamãe. É dia de lição?
— A lição foi hoje.
— Perfeitamente. Não lhe pergunto o que
é; afirmo desde já que é matéria grave e pura.
— Sim, senhor.
— Até amanhã.
Fez-se tudo o melhor possível. Houve só
uma alteração; minha mãe achou o dia quente e não consentiu que eu fosse a pé;
entramos no ônibus, à porta de casa.
— Não importa, disse-me José Dias;
podemos apear-nos à porta do Passeio Público.
CAPÍTULO XXIV
DE MÃE E DE SERVO
José Dias tratava-me com extremos de
mãe e atenções de servo. A primeira coisa que conseguiu logo que comecei a
andar fora, foi dispensar-me o pajem; fez-se pajem, ia comigo à rua. Cuidava
dos meus arranjos em casa, dos meus livros, dos meus sapatos, da minha higiene
e da minha prosódia. Aos oito anos os meus plurais careciam, alguma vez, da
desinência exata, ele a corrigia, meio sério para dar autoridade à lição, meio
risonho para obter o perdão da emenda. Ajudava assim o mestre de primeiras
letras. Mais tarde, quando o Padre Cabral me ensinava latim, doutrina e
história sagrada, ele assistia às lições, fazia reflexões eclesiásticas, e, no
fim, perguntava ao padre: “Não é verdade que o nosso jovem amigo caminha
depressa?” Chamava-me “um prodígio”; dizia a minha mãe ter
conhecido outrora meninos muito inteligentes, mas que eu excedia a todos esses,
sem contar que, para a minha idade, possuía já certo número de qualidades
morais sólidas. Eu, posto não avaliasse todo o valor deste outro elogio,
gostava do elogio; era um elogio.
CAPÍTULO XXV
NO PASSEIO PÚBLICO
Entramos no Passeio Público. Algumas
caras velhas, outras doentes ou só vadias espalhavam-se melancolicamente no
caminho que vai da porta ao terraço. Seguimos para o terraço. Andando, para me
dar ânimo, falei do jardim:
— Há muito tempo que não venho aqui,
talvez um ano.
— Perdoe-me, atalhou ele, não há três
meses que esteve aqui com o nosso vizinho Pádua; não se lembra?
— É verdade, mas foi tão de passagem. .
.
— Ele pediu a sua mãe que o deixasse
trazer consigo, e ela, que é boa como a mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já
que falamos nisto, não é bonito que você ande com o Pádua na rua.
— Mas eu andei algumas vezes…
— Quando era mais jovem; era criança,
era natural, ele podia passar por criado. Mas você está ficando moço e ele vai
tomando confiança. D. Glória, afinal, não pode gostar disso. A gente Pádua não
é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu… Você já
reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar
deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! a adulação! D.
Fortunata merece estima, e ele não nego que seja honesto, tem um bom emprego,
possui a casa em que mora, mas honestidade e estima não bastam, e as outras
qualidades perdem muito de valor com as más companhias em que ele anda. Pádua
tem uma tendência para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com ele.
Não digo isto por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu,
há dias, dos meus sapatos acalcanhados…
— Perdão, interrompi suspendendo o
passo, nunca ouvi que falasse mal do senhor; pelo contrário, um dia, não há
muito tempo, disse ele a um sujeito, em minha presença, que o senhor era
“um homem de capacidade e sabia falar como um deputado nas câmaras.”
José Dias sorriu deliciosamente, mas
fez um esforço grande e fechou outra vez o rosto; depois replicou:
— Não lhe agradeço nada. Outros, de
melhor sangue, me têm feito o favor de juízos altos. E nada disso impede que
ele seja o que lhe digo.
Tínhamos outra vez andado, subimos ao
terraço, e olhamos para o mar.
— Vejo que o senhor não quer senão o
meu benefício, disse eu depois de alguns instantes.
— Pois que outra coisa, Bentinho?
— Neste caso, peço-lhe um favor.
— Um favor? Mande, ordene, que é?
— Mamãe…
Durante algum tempo não pude dizer o
resto, que era pouco, e vinha de cor. José Dias tornou a perguntar o que era,
sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e espetava os olhos em mim,
ansioso também, como a prima Justina na véspera.
— Mamãe quê? Que é que tem mamãe?
— Mamãe quer que eu seja padre, mas eu
não posso ser padre, disse finalmente.
José Dias endireitou-se pasmado.
— Não posso, continuei eu, não menos
pasmado que ele, não tenho jeito, não gosto da vida de padre. Estou por tudo o
que ela quiser; mamãe sabe que eu faço tudo o que ela manda; estou pronto a ser
o que for do seu agrado, até cocheiro de ônibus. Padre, não; não posso ser
padre. A carreira é bonita, mas não é para mim.
Todo esse discurso não me saiu assim,
de vez, enfiado naturalmente, peremptório, como pode parecer do texto, mas aos
pedaços, mastigado, em voz um pouco surda e tímida. Não obstante, José Dias
ouvira-o espantado. Não contava certamente com a resistência, por mais acanhada
que fosse; mas o que ainda mais o assombrou foi esta conclusão:
— Conto com o senhor para salvar-me.
Os olhos do agregado escancararam-se,
as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer que eu contava dar-lhe com a escolha
da proteção não se mostrou em nenhum dos músculos. Toda a cara dele era pouca para
a estupefação. Realmente, a matéria do discurso revelara em mim uma alma nova;
eu próprio não me conhecia. Mas a palavra final é que trouxe um vigor único.
José Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram às dimensões ordinárias:
— Mas que posso eu fazer? perguntou.
— Pode muito. O senhor sabe que, em
nossa casa, todos o apreciam. Mamãe pede muita vez os seus conselhos, não é?
Tio Cosme diz que o senhor é pessoa de talento…
— São bondades, retorquiu lisonjeado.
São favores de pessoas dignas, que merecem tudo… Aí está! nunca ninguém me há
de ouvir dizer nada de pessoas tais; por quê? porque são ilustres e virtuosas.
Sua mãe é uma santa, seu tio é um cavalheiro perfeitíssimo. Tenho conhecido
famílias distintas; nenhuma poderá vencer a sua em nobreza de sentimentos. O
talento que seu tio acha em mim confesso que o tenho, mas é só um, — é o
talento de saber o que é bom e digno de admiração e de apreço.
— Há de ter também o de proteger os
amigos, como eu.
— Em que lhe posso valer, anjo do céu?
Não hei de dissuadir sua mãe de um projeto que é, além de promessa, a ambição e
o sonho de longos anos. Quando pudesse, é tarde. Ainda ontem fez-me o favor de
dizer: “José Dias, preciso meter Bentinho no seminário”.
Timidez não é tão ruim moeda, como parece.
Se eu fosse destemido, é provável que, com a indignação que experimentei,
rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas então seria preciso confessar-lhe que
estivera à escuta, atrás da porta, e uma ação valia outra. Contentei-me de
responder que não era tarde.
— Não é tarde, ainda é tempo, se o
senhor quiser.
— Se eu quiser? Mas que outra coisa
quero eu, senão servi-lo. Que desejo, senão que seja feliz, como merece?
— Pois ainda é tempo. Olhe, não é por
vadiação. Estou pronto para tudo; se ela quiser que eu estude leis, vou para
São Paulo…
CAPÍTULO XXVI
AS LEIS SÃO BELAS
Pela cara de José Dias passou algo
parecido com o reflexo de uma idéia, — uma idéia que o alegrou
extraordinariamente. Calou-se alguns instantes; eu tinha os olhos nele, ele voltara
os seus para o lado da barra. Como insistisse:
— É tarde, disse ele; mas, para lhe
provar que não há falta de vontade, irei falar a sua mãe. Não prometo vencer,
mas lutar; trabalharei com alma. Deveras, não quer ser padre? As leis são
belas, meu querido… Pode ir a São Paulo, a Pernambuco, ou ainda mais longe.
Há boas universidades por esse mundo fora. Vá para as leis, se tal é a sua
vocação. Vou falar a Dona Glória, mas não conte só comigo; fale também a seu
tio.
— Hei de falar.
— Pegue-se também com Deus, — com Deus
e a Virgem Santíssima, concluiu apontando para o céu.
O céu estava meio enfarruscado. No ar,
perto da praia, grandes pássaros negros faziam giros, avançando ou pairando, e
desciam a roçar os pés na água, e tornavam a erguer-se para descer novamente.
Mas nem as sombras do céu, nem as danças fantásticas dos pássaros me desviavam
o espírito do meu interlocutor. Depois de lhe responder que sim, emendei-me:
— Deus fará o que o senhor quiser.
— Não blasfeme. Deus é dono de tudo;
ele é, só por si, a Terra e o Céu, o passado, o presente e o futuro. Peça-lhe a
sua felicidade, que eu não faço outra coisa… Uma vez que você não pode ser
padre, e prefere as leis… As leis são belas, sem desfazer na teologia, que é
melhor que tudo, como a vida eclesiástica é a mais santa. Por que não há de ir
estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo para alguma universidade, e ao mesmo
tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos; veremos as terras estrangeiras,
ouviremos inglês, francês, italiano, espanhol, russo e até sueco. Dona Glória
provavelmente não poderá acompanhá-lo; ainda que possa e vá, não quererá guiar
os negócios, papéis, matrículas, e cuidar de hospedarias, e andar com você de
um lado para outro… Oh! as leis são belíssimas!
— Está dito, pede a mamãe que me não
meta no seminário?
— Pedir, peço, mas pedir não é
alcançar. Anjo do meu coração, se vontade de servir é poder de mandar, estamos
aqui, estamos a bordo. Ah! você não imagina o que é a Europa; oh! a Europa…
Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma
das suas ambições era tornar à Europa, falava dela muitas vezes, sem acabar de
tentar minha mãe nem tio Cosme, por mais que louvasse os ares e as belezas…
Não contava com esta possibilidade de ir comigo, e lá ficar durante a eternidade
dos meus estudos.
— Estamos a bordo, Bentinho, estamos a
bordo!
CAPÍTULO XXVII
AO PORTÃO
No portão do Passeio, um mendigo
estendeu-nos a mão. José Dias passou adiante, mas eu pensei em Capitu e no
seminário, tirei dois vinténs do bolso e dei-os ao mendigo. Este beijou a
moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de que eu pudesse
satisfazer todos os meus desejos.
— Sim, meu devoto!
— Chamo-me Bento, acrescentei para
esclarecê-lo.
CAPÍTULO XXVIII
NA RUA
José Dias ia tão contente que trocou o
homem dos momentos graves, como era na rua, pelo homem dobradiço e inquieto.
Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me parar a cada passo diante de um
mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-me o enredo de algumas peças,
recitava monólogos em verso. Fez os recados todos, pagou contas, recebeu
aluguéis de casa; para si comprou um vigésimo de loteria. Afinal, o homem teso
rendeu o flexível, e passou a falar pausado, com superlativos. Não vi que a
mudança era natural; temi que houvesse mudado a resolução assentada, e entrei a
tratá-lo com palavras e gestos carinhosos, até entrarmos no ônibus.
CAPÍTULO XXIX
O IMPERADOR
Em caminho, encontramos o Imperador,
que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os
veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche
imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idéia fantástica, a
idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não
confiaria esta idéia a Capitu. “Sua Majestade pedindo, mamãe cede”,
pensei comigo.
Vi então o Imperador escutando-me,
refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu
beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à esperar, até que
ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o Imperador! toda
a gente chegava às janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à
nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança:
“O Imperador entrou em casa de D. Glória! Que será? Que não será?” A
nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão.
Então o Imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, — não me
lembra bem, os sonhos são muita vez confusos, — pedia a minha mãe que me não
fizesse padre, — e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não.
— A Medicina, — por que lhe não manda
ensinar Medicina?
— Uma vez que é do agrado de Vossa
Majestade…
— Mande ensinar-lhe Medicina; é uma
bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi à nossa Escola? É
uma bela Escola. Já temos médicos de primeira ordem, que podem ombrear com os
melhores de outras terras. A Medicina é uma grande ciência; basta só isto de
dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias, combatê-las, vencê-1as… A
senhora mesma há de ter visto milagres. Seu marido morreu, mas a doença era
fatal, e ele não tinha cuidado em si… É uma bonita carreira; mande-o para a
nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho?
— Mamãe querendo…
— Quero, meu filho. Sua Majestade
manda.
Então o Imperador dava outra vez a mão
a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janelas
atopetadas, um silêncio de assombro; o Imperador entrava no coche, inclinava-se
e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: “A Medicina, a nossa
Escola.” E o coche partia entre invejas e agradecimentos.
Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação
de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do
impossível precisa mais que de um recanto de ônibus. Consolei-me por instantes,
digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos
dos meus companheiros.
CAPÍTULO XXX
O SANTÍSSIMO
Terás entendido que aquela lembrança do
Imperador acerca da Medicina não era mais que a sugestão da minha pouca vontade
de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos do acordado são como os outros sonhos,
tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações. Vá que
fosse para São Paulo, mas a Europa… Era muito longe, muito mar e muito tempo.
Viva a Medicina! Iria contar estas esperanças a Capitu.
— Parece que vai sair o Santíssimo,
disse alguém no ônibus. Ouço um sino; é, creio que é em Santo Antônio dos
Pobres. Pare, Sr. recebedor!
O recebedor das passagens puxou a
correia que ia ter ao braço do cocheiro, o ônibus parou, e o homem desceu. José
Dias deu duas voltas rápidas à cabeça, pegou-me no braço e fez-me descer
consigo. Iríamos também acompanhar o Santíssimo. Efetivamente, o sino chamava
os fiéis àquele serviço da última hora. Já havia algumas pessoas na sacristia.
Era a primeira vez que me achava em momento tão grave; obedeci, a princípio
constrangido, mas logo depois satisfeito, menos pela caridade do serviço que
por me dar um ofício de homem. Quando o sacristão começou a distribuir as opas,
entrou um sujeito esbaforido; era o meu vizinho Pádua, que também ia acompanhar
o Santíssimo. Deu conosco, veio cumprimentar-nos. José Dias fez um gesto de
aborrecido, e apenas lhe respondeu com uma palavra seca, olhando para o padre,
que lavava as mãos. Depois, como Pádua falasse ao sacristão, baixinho,
aproximou-se deles; eu fiz a mesma coisa. Pádua solicitava ao sacristão uma das
varas do pálio. José Dias pediu uma para si.
— Há só uma disponível, disse o
sacristão.
— Pois essa, disse José Dias.
— Mas eu tinha pedido primeiro,
aventurou Pádua.
— Pediu primeiro, mas entrou tarde,
retorquiu José Dias; eu já cá estava. Leve uma tocha.
Pádua, apesar do medo que tinha ao
outro, teimava em querer a vara, tudo isto em voz baixa e surda. O sacristão
achou meio de conciliar a rivalidade, tomando a si obter de um dos outros
seguradores do pálio que cedesse a vara ao Pádua, conhecido na paróquia, como
José Dias. Assim fez; mas José Dias transtornou ainda esta combinação. Não, uma
vez que tínhamos outra vara disponível, pedia-a para mim, “jovem
seminarista”, a quem esta distinção cabia mais diretamente. Pádua ficou
pálido, como as tochas. Era pôr à prova o coração de um pai. O sacristão, que
me conhecia de me ver ali com minha mãe, aos domingos, perguntou de curioso se
eu era deveras seminarista.
— Ainda não, mais vai sê-lo, respondeu
José Dias, piscando o olho esquerdo para mim, que, apesar do aviso, fiquei
zangado.
— Bem, cedo ao nosso Bentinho, suspirou
o pai de Capitu.
Pela minha parte, quis ceder-lhe a
vara; lembrou-me que ele costumava acompanhar o Santíssimo Sacramento aos
moribundos, levando uma tocha, mas que a última vez conseguira uma vara do
pálio. A distinção especial do pálio vinha de cobrir o vigário e o sacramento;
para tocha qualquer pessoa servia. Foi ele mesmo que me contou e explicou isto,
cheio de uma glória pia e risonha. Assim fica entendido o alvoroço com que
entrara na igreja; era a segunda vez do pálio, tanto que cuidou logo de ir
pedi-lo. E nada! E tornava à tocha comum, outra vez a interinidade
interrompida; o administrador regressava ao antigo cargo… Quis ceder-lhe a
vara; o agregado tolheu-me esse ato de generosidade, e pediu ao sacristão que
nos pusesse, a ele e a mim, com as duas varas da frente, rompendo a marcha do
pálio.
Opas enfiadas, tochas distribuídas e
acesas, padre e cibório prontos, o sacristão de hissope e campainha nas mãos,
saiu o préstito à rua. Quando me vi com uma das varas, passando pelos fiéis,
que se ajoelhavam, fiquei comovido. Pádua roía a tocha amargamente. É uma
metáfora, não acho outra forma mais viva de dizer a dor e a humilhação do meu
vizinho. De resto, não pude mirá-lo por muito tempo, nem ao agregado, que,
paralelamente a mim, erguia a cabeça com o ar de ser ele próprio o Deus dos
exércitos. Com pouco, senti-me me cansado; os braços caíam-me, felizmente a
casa era perto, na Rua do Senado.
A enferma era uma senhora viúva,
tísica, tinha uma filha de quinze ou dezesseis anos, que estava chorando à
porta do quarto. A moça não era formosa, talvez nem tivesse graça; os cabelos
caíam despenteados, e as lágrimas faziam-lhe encarquilhar os olhos. Não
obstante, o total falava e cativava o coração. O vigário confessou a doente,
deu-lhe a comunhão e os santos óleos. O pranto da moça redobrou tanto que senti
os meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma janela. Pobre criatura! A
dor era comunicativa em si mesma; complicada da lembrança de minha mãe, doeu-me
mais, e, quando enfim pensei em Capitu, senti um ímpeto de soluçar também,
enfiei pelo corredor, e ouvi alguém dizer-me:
— Não chore assim!
A imagem de Capitu ia comigo, e a minha
imaginação, assim como lhe atribuíra lágrimas, há pouco, assim lhe encheu a
boca de riso agora; vi-a escrever no muro, falar-me, andar à volta, com os
braços no ar; ouvi distintamente o meu nome, de uma doçura que me embriagou, e
a voz era dela. As tochas acesas, tão lúgubres na ocasião, tinham-me ares de um
lustre nupcial… Que era lustre nupcial? Não sei; era alguma coisa contrária à
morte, e não vejo outra mais que bodas. Esta nova sensação me dominou tanto que
José Dias veio a mim, e me disse ao ouvido, em voz baixa:
— Não ria assim!
Fiquei sério depressa. Era o momento da
saída. Peguei da minha vara; e, como já conhecia a distância, e agora
voltávamos para a igreja, o que fazia a distância menor, — o peso da vara era
muito pequeno. Demais, o sol cá fora, a animação da rua, os rapazes da minha
idade que me fitavam cheios de inveja, as devotas que chegavam às janelas ou
entravam nos corredores e se ajoelhavam à nossa passagem, tudo me enchia a alma
de lepidez nova.
Pádua, ao contrário, ia mais humilhado.
Apesar de substituído por mim, não acabava de se consolar da tocha, da
miserável tocha. E contudo havia outros que também traziam tocha, e apenas
mostravam a compostura do ato; não iam garridos, mas também não iam tristes.
Via-se que caminhavam com honra.
CAPÍTULO XXXI
AS CURIOSIDADES DE CAPITU
Capitu preferia tudo ao seminário. Em
vez de ficar abatida com a ameaça da larga separação, se vingasse a idéia da
Europa, mostrou-se satisfeita. E quando eu lhe contei o meu sonho imperial:
— Não, Bentinho, deixemos o Imperador
sossegado, replicou; fiquemos por ora com a promessa de José Dias. Quando é que
ele disse que falaria a sua mãe?
— Não marcou dia; prometeu que ia ver,
que falaria logo que pudesse, e que me pegasse com Deus.
Capitu quis que lhe repetisse as
respostas todas do agregado, as alterações do gesto e até a pirueta, que apenas
lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e atenta; a narração e o
diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também se pode dizer que conferia,
rotulava e pregava na memória a minha exposição. Esta imagem é porventura
melhor que a outra, mas a ótima delas é nenhuma. Capitu era Capitu, isto é, uma
criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não
disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na
alma do leitor, à força de repetição.
Era também mais curiosa. As
curiosidades de Capitu dão para um capítulo. Eram de vária espécie, explicáveis
e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas;
gostava de saber tudo. No colégio onde, desde os sete anos, aprendera a ler,
escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por
exemplo, a fazer renda; por isso mesmo, quis que prima Justina lhe ensinasse.
Se não estudou latim com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de lhe
propor gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou-me
um dia que esta razão acendeu nela o desejo de o saber. Em compensação, quis
aprender inglês com um velho professor amigo do pai e parceiro deste ao solo,
mas não foi adiante. Tio Cosme ensinou-lhe gamão.
— Anda apanhar um capotinho, Capitu,
dizia-lhe ele.
Capitu obedecia e jogava com
facilidade, com atenção, não sei se diga com amor. Um dia fui achá-la
desenhando a lápis um retrato; dava os últimos rasgos, e pediu-me que esperasse
para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado da tela que minha mãe
tinha na sala e que ainda agora está comigo. Perfeição não era; ao contrário,
os olhos saíram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos círculos uns sobre
outros. Mas, não tendo ela rudimento algum de arte, e havendo feito aquilo de
memória em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento;
descontai-me a idade e a simpatia. Ainda assim, estou que aprenderia facilmente
pintura, como aprendeu música mais tarde. Já então namorava o piano da nossa
casa, velho traste inútil, apenas de estimação. Lia os nossos romances,
folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruínas, das pessoas,
das campanhas, o nome, a história, o lugar. José Dias dava-lhe essas notícias
com certo orgulho de erudito. A erudição deste não avultava muito mais que a
sua homeopatia de Cantagalo.
Um dia, Capitu quis saber o que eram as
figuras da sala de visitas. O agregado disse-lho sumariamente, demorando-se um
pouco mais em César, com exclamações e latins:
— César! Júlio César! Grande
homem! Tu quoque, Brute?
Capitu não achava bonito o perfil de
César, mas as ações citadas por José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou
muito tempo com a cara virada para ele. Um homem que podia tudo! que fazia
tudo! Um homem que dava a uma senhora uma pérola do valor de seis milhões de
sestércios!
— E quanto valia cada sestércio?
José Dias, não tendo presente o valor
do sestércio, respondeu entusiasmado:
— É o maior homem da história!
A pérola de César acendia os olhos de
Capitu. Foi nessa ocasião que ela perguntou a minha mãe por que é que já não
usava as jóias do retrato; referia-se ao que estava na sala, com o de meu pai;
tinha um grande colar, um diadema e brincos.
— São jóias viúvas, como eu, Capitu.
— Quando é que botou estas?
— Foi pelas festas da Coroação.
— Oh! conte-me as festas da Coroação!
Sabia já o que os pais lhe haviam dito,
mas naturalmente tinha para si que eles pouco mais conheceriam do que o que se
passou nas ruas. Queria a notícia das tribunas da Capela Imperial e dos salões
dos bailes. Nascera muito depois daquelas festas célebres. Ouvindo falar várias
vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fora este acontecimento;
disseram-lho, e achou que o Imperador fizera muito bem em querer subir ao trono
aos quinze anos. Tudo era matéria às curiosidades de Capitu, mobílias antigas,
alfaias velhas, costumes, notícias de Itaguaí, a infância e a mocidade de minha
mãe, um dito daqui, uma lembrança dali, um adágio dacolá…
CAPÍTULO XXXII
OLHOS DE RESSACA
Tudo era matéria às curiosidades de
Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez
ambas as coisas, como eu. É o que contarei no outro capítulo. Neste direi
somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui ver a minha
amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal, nem
esperou que eu lhe perguntasse pela filha.
— Está na sala, penteando o cabelo,
disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um susto.
Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho
traiu-me. Este pode ser que não fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a
barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão,
pendente da parede, entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o pé. Um ou
outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou
pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta:
— Há alguma coisa?
— Não há nada, respondi; vim ver você
antes que o Padre Cabral chegue para a lição. Como passou a noite?
— Eu bem. José Dias ainda não falou?
— Parece que não.
— Mas então quando fala?
— Disse-me que hoje ou amanhã pretende
tocar no assunto; não vai logo de pancada, falará assim por alto e por longe,
um toque. Depois, entrará em matéria. Quer primeiro ver se mamãe tem a
resolução feita…
— Que tem, tem, interrompeu Capitu. E
se não fosse preciso alguém para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu
já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que
você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?… Ele é atendido; se,
porém… É um inferno isto! Você teime com ele, Bentinho.
— Teimo; hoje mesmo ele há de falar.
— Você jura?
— Juro! Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me lembrado a definição que José
Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada.” Eu não
sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar
assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca
os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas.
A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou
que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos,
constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos,
crescidos e sombrios, com tal expressão que…
Retórica dos namorados, dá-me uma
comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não
me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles
foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia
daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma
força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias
de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às
orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa
buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura,
ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele
jogo? Só os relógios do Céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A
eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber
a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos
bem-aventurados do Céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no
inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão
gozado no Céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno.
Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar
poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me
definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe, —
para dizer alguma coisa, — que era capaz de os pentear, se quisesse.
— Você?
— Eu mesmo.
— Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso
sim.
— Se embaraçar, você desembaraça
depois.
— Vamos ver.
CAPÍTULO XXXIII
O PENTEADO
Capitu deu-me as costas, voltando-se
para o espelhinho. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los
com o pente, desde a testa até as últimas pontas, que lhe desciam à cintura. Em
pé não dava jeito: não esquecestes que ela era um nadinha mais alta que eu, mas
ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.
— Senta aqui, é melhor.
Sentou-se. “Vamos ver o grande
cabeleireiro”, disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito
cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não
as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício,
mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios grossos, que eram
parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de
propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da
pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas,
enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não
pedi ao Céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia
ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei
penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem
envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos parecer
enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes
as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa… Uma ninfa! Todo eu estou
mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a
escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa; digamos somente uma criatura
amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs. Enfim, acabei as
duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas? Em cima da mesa, um
triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um
laço, retoquei a obra alargando aqui, achatando ali, até que exclamei:
— Pronto!
— Estará bom?
— Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais
que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim.
Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e
ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela, rosto
a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que
levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe
que estava feia; mas nem esta razão a moveu.
— Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e
ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci
os meus, e…
Grande foi a sensação do beijo; Capitu
ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem
fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam, vi que Capitu tinha os seus
no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua.
Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me
atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas… Não mofes dos meus quinze
anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não
pensava ainda na diferença dos sexos.
CAPÍTULO XXXIV
SOU HOMEM!
Ouvimos passos no corredor; era D.
Fortunata. Capitu compôs-se depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou à
porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarelo, nenhuma contração de
acanhamento, um riso espontâneo e claro, que ela explicou por estas palavras
alegres:
— Mamãe, olhe como este senhor
cabeleireiro me penteou; pediu-me para acabar o penteado, e fez isto. Veja que
tranças!
— Que tem? acudiu a mãe, transbordando
de benevolência . Está muito bem, ninguém dirá que é de pessoa que não sabe
pentear.
— O que, mamãe? Isto? redargüiu Capitu,
desfazendo as tranças. Ora, mamãe!
E com um enfadamento gracioso e
voluntário que às vezes tinha, pegou do pente e alisou os cabelos para renovar
o penteado. D. Fortunata chamou-lhe tonta, e disse-me que não fizesse caso, não
era nada, maluquices da filha. Olhava com ternura para mim e para ela. Depois,
parece-me que desconfiou. Vendo-me calado, enfiado, cosido à parede, achou
talvez que houvera entre nós algo mais que penteado, e sorriu por
dissimulação…
Como eu quisesse falar também para
disfarçar o meu estado, chamei algumas palavras cá de dentro, e elas acudiram
de pronto, mas de atropelo, e encheram-me a boca sem poder sair nenhuma. O
beijo de Capitu fechava-me os lábios. Uma exclamação, um simples artigo, por
mais que investissem com força, não logravam romper de dentro. E todas as
palavras recolheram-se ao coração, murmurando: “Eis aqui um que não fará
grande carreira no mundo, por menos que as emoções o dominem…”
Assim, apanhados pela mãe, éramos dois
e contrários, ela encobrindo com a palavra o que eu publicava pelo silêncio. D.
Fortunata tirou-me daquela hesitação, dizendo que minha mãe me mandara chamar
para a lição de latim; o Padre Cabral estava à minha espera. Era uma saída;
despedi-me e enfiei pelo corredor. Andando, ouvi que a mãe censurava as maneira
da filha, mas a filha não dizia nada.
Corri ao meu quarto, peguei dos livros,
mas não passei à sala da lição; sentei-me na cama, recordando o penteado e o
resto. Tinha estremeções, tinha uns esquecimentos em que perdia a consciência
de mim e das coisas que me rodeavam, para viver não sei onde nem como. E
tornava a mim, e via a cama, as paredes, os livros, o chão, ouvia algum som de
fora, vago, próximo ou remoto, e logo perdia tudo para sentir somente os beiços
de Capitu… Sentia-os estirados, embaixo dos meus, igualmente esticados para
os dela, e unindo-se uns aos outros. De repente, sem querer, sem pensar,
saiu-me da boca esta palavra de orgulho:
— Sou homem!
Supus que me tivessem ouvido, porque a
palavra saiu em voz alta, e corri à porta da alcova. Não havia ninguém fora.
Voltei para dentro e, baixinho, repeti que era homem. Ainda agora tenho o eco
aos meus ouvidos. O gosto que isto me deu foi enorme. Colombo não o teve maior,
descobrindo a América, e perdoai a banalidade em favor do cabimento; com
efeito, há em cada adolescente um mundo encoberto, um almirante e um Sol de
outubro. Fiz outros achados mais tarde; nenhum me deslumbrou tanto. A denúncia
de José Dias alvoroçara-me, a lição do velho coqueiro também, a vista dos
nossos nomes abertos por ela no muro do quintal deu-me grande abalo, como
vistes; nada disso valeu a sensação do beijo. Podiam ser mentira ou ilusão.
Sendo verdade, eram os ossos da verdade, não eram a carne e o sangue dela. As
próprias mãos, tocadas, apertadas, como que fundidas, não podiam dizer tudo.
— Sou homem!
Quando repeti isto, pela terceira vez,
pensei no seminário, mas como se pensa em perigo que passou, um mal abortado,
um pesadelo extinto; todos os meus nervos me disseram que homens não são
padres. O sangue era da mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitu.
Talvez abuso um pouco das reminiscências osculares; mas a saudade é isto mesmo;
é o passar e repassar das memórias antigas. Ora, de todas as daquele tempo
creio que a mais doce é esta, a mais nova, a mais compreensiva, a que
inteiramente me revelou a mim mesmo. Outras tenho, vastas e numerosas, doces
também, de vária espécie, muitas intelectuais, igualmente intensas. Grande
homem que fosse, a recordação era menor que esta.
CAPÍTULO XXXV
O PROTONOTÁRIO APOSTÓLICO
Enfim, peguei dos livros e corri
à lição. Não corri precisamente; a meio caminho parei, advertindo que devia ser
muito tarde, e podiam ler-me no semblante alguma coisa. Tive idéia de mentir,
alegar uma vertigem que me houvesse deitado ao chão; mas o susto que causaria a
minha mãe fez-me rejeitá-la. Pensei em prometer algumas dezenas de
padre-nossos; tinha, porém, outra promessa em aberto e outro favor pendente…
Não, vamos ver; fui andando, ouvi vozes alegres, conversavam ruidosamente.
Quando entrei na sala, ninguém ralhou comigo.
O Padre Cabral recebera na véspera um
recado do internúncio; foi ter com ele, e soube que, por decreto pontifício,
acabava de ser nomeado protonotário apostólico. Esta distinção do papa dera-lhe
grande contentamento e a todos os nossos. Tio Cosme e prima Justina repetiam o
título com admiração; era a primeira vez que ele soava aos nossos ouvidos,
acostumados a cônegos, monsenhores, bispos, núncios, e internúncios; mas que
era protonotário apostólico? O Padre Cabral explicou que não era propriamente o
cargo da cúria, mas as honras dele. Tio Cosme viu exalçar-se no parceiro de
voltarete, e repetia:
— Protonotário apostólico!
E voltando-se para mim:
— Prepara-te, Bentinho; tu podes vir a
ser protonotário apostólico.
Cabral ouvia com gosto a
repetição do título. Estava em pé, dava alguns passos, sorria ou tamborilava na
tampa da boceta. O tamanho do título como que lhe dobrava a magnificência,
posto que, para ligá-lo ao nome, era demasiado comprido; esta segunda reflexão
foi tio Cosme que a fez. Padre Cabral acudiu que não era preciso dizê-lo todo,
bastava que lhe chamassem o protonotário Cabral. Subentendia-se apostólico.
— Protonotário Cabral.
— Sim, tem razão; protonotário Cabral.
— Mas, Sr. protonotário, — acudiu prima
Justina para se ir acostumando ao uso do título, — isto o obriga a ir a Roma?
— Não, D. Justina.
— Não, são só as honras, observou minha
mãe.
— Agora, não impede — disse Cabral, que
continuava a refletir, — não impede que nos casos de maior formalidade, atos
públicos, cartas de cerimônia, etc; se empregue o título inteiro: protonotário
apostólico. No uso comum, basta protonotário.
— Justamente, assentiram todos.
José Dias, que entrou pouco depois de
mim, aplaudia a distinção, e recordou, a propósito, os primeiros atos políticos
de Pio IX, grandes esperanças da Itália; mas ninguém pegou do assunto; o
principal da hora e do lugar era o meu velho mestre de latim. Eu, voltando a
mim do receio, entendi que devia cumprimentá-lo também, e este aplauso não lhe
foi menos ao coração que os outros. Bateu-me na bochecha paternalmente, e
acabou dando-me férias. Era muita felicidade para uma só hora. Um beijo e
férias! Creio que o meu rosto disse isto mesmo, porque tio Cosme, sacudindo a
barriga, chamou-me peralta; mas José Dias corrigiu a alegria:
— Não tem que festejar a vadiação; o
latim sempre lhe há de ser preciso, ainda que não venha a ser padre.
Conheci aqui o meu homem. Era a
primeira palavra, a semente lançada à terra, assim de passagem, como para
acostumar os ouvidos da família. Minha mãe sorriu para mim, cheia de amor e de
tristeza, mas respondeu logo:
— Há de ser padre, e padre bonito.
— Não se esqueça, mana Glória, e
protonotário também. Protonotário apostólico.
— O protonotário Santiago, acentuou
Cabral.
Se a intenção do meu mestre de latim
era ir acostumando ao uso do título com o nome, não sei bem; o que sei é que
quando ouvi o meu nome ligado a tal título, deu-me vontade de dizer um
desaforo. Mas a vontade aqui foi antes uma idéia, uma idéia sem língua, que se
deixou ficar quieta e muda, tal como daí a pouco outras idéias… Mas essas
pedem um capítulo especial. Rematemos este dizendo que o mestre de latim falou
algum tempo da minha ordenação eclesiástica, ainda que sem grande interesse.
Ele buscava um assunto alheio para se mostrar esquecido da própria glória, mas
era esta que o deslumbrava na ocasião. Era um velho magro, sereno, dotado de
qualidades boas. Alguns defeitos tinha; o mais excelso deles era ser guloso,
não propriamente glutão; comia pouco, mas estimava o fino e o raro, e a nossa
cozinha, se era simples, era menos pobre que a dele. Assim, quando minha mãe
lhe disse que viesse jantar, a fim de se lhe fazer uma saúde, os olhos com que
aceitou seriam de protonotário, mas não eram apostólicos. E para agradar a
minha mãe, novamente pegou em mim, descrevendo o meu futuro eclesiástico, e
queria saber se ia para o seminário agora, no ano próximo, e oferecia-se a
falar ao “senhor bispo”, tudo marchetado do “protonotário
Santiago.”
CAPÍTULO XXXVI
IDÉIA SEM PERNAS E IDÉIA SEM BRAÇOS
Deixei-os, a pretexto de brincar, e
fui-me outra vez a pensar na aventura da manhã. Era o que melhor podia fazer,
sem latim, e até com latim. Ao cabo de cinco minutos, lembrou-me ir correndo à
casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças, refazê-las e concluí-las
daquela maneira particular, boca sobre boca. É isto, vamos, é isto… Idéia só!
idéia sem pernas! As outras pernas não queriam correr nem andar. Muito depois é
que saíram vagarosamente e levaram-me à casa de Capitu. Quando ali cheguei, dei
com ela na sala, na mesma sala, sentada na marquesa, almofada no regaço,
cosendo em paz. Não me olhou de rosto, mas a furto e a medo, ou, se preferes a
fraseologia do agregado, oblíqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de
encravada a agulha no pano. Eu, do lado oposto da mesa, não sabia que fizesse;
e outra vez me fugiram as palavras que trazia. Assim gastamos alguns minutos
compridos, até que ela deixou inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-me.
Fui ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma coisa; respondeu-me que
não. A boca com que respondeu era tal que cuido haver-me provocado um gesto de
aproximação. Certo é que Capitu recuou um pouco.
Era ocasião de pegá-la, puxá-la,
beijá-la… Idéia só! idéia sem braços! Os meus ficaram caídos e mortos. Não
conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável que o espírito de Satanás
me fizesse dar à língua mística do Cântico um sentido direto e
natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: “Aplique ele os lábios,
dando-me o ósculo da sua boca”. E pelo que respeita aos braços, que tinha
inertes, bastaria cumprir o vers. 6.° do cap. II: “A sua mão esquerda se
pôs já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois”.
Vedes aí a cronologia dos gestos. Era só executá-la; mas ainda que eu
conhecesse o texto, as atitudes de Capitu eram agora tão retraídas, que não sei
se não continuaria parado. Foi ela, entretanto, que me tirou daquela situação.
CAPÍTULO XXXVII
A ALMA É CHEIA DE MISTÉRIOS
— Padre Cabral estava esperando há
muito tempo?
— Hoje não dei lição; tive férias.
Expliquei-lhe o motivo das férias.
Contei-lhe também que o Padre Cabral falara da minha entrada no seminário,
apoiando a resolução de minha mãe, e disse dele coisas feias e duras. Capitu
refletiu algum tempo, e acabou perguntando-me se podia ir cumprimentar o padre,
à tarde, em minha casa.
— Pode, mas para quê?
— Papai naturalmente há de querer ir
também, mas é melhor que ele vá à casa do padre, é mais bonito. Eu não, que já
sou meia moça, concluiu rindo.
O riso animou-me. As palavras pareciam
ser uma troça consigo mesma, uma vez que, desde manhã, era mulher, como eu era
homem. Achei-lhe graça e, para dizer tudo, quis provar-lhe que era moça
inteira. Peguei-lhe levemente na mão direita, depois na esquerda, e fiquei
assim pasmado e trêmulo. Era a idéia com mãos. Quis puxar as de Capitu, para
obrigá-la a vir atrás delas, mas ainda agora a ação não respondeu à intenção.
Contudo, achei-me forte e atrevido. Não imitava ninguém; não vivia com rapazes,
que me ensinassem anedotas de amor. Não conhecia a violação de Lucrécia. Dos
romanos apenas sabia que falavam pela artinha do Padre Pereira e eram patrícios
de Pôncio Pilatos. Não nego que o final do penteado da manhã era um grande
passo no caminho da movimentação amorosa, mas o gesto de então foi justamente o
contrário deste. De manhã, ela derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso
que os lances diferiam; em outro ponto, parecendo haver repetição, houve
contraste.
Penso que ameacei puxá-la a mim. Não
juro, começava a estar tão alvoroçado, que não pude ter toda a consciência dos
meus atos; mas concluo que sim, porque ela recuou e quis tirar as mãos das
minhas; depois, talvez por não poder recuar mais, colocou um dos pés adiante e
o outro atrás, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a reter-lhe
as mãos com força. O busto afinal cansou e cedeu, mas a cabeça não quis ceder
também, e caída para trás, inutilizava todos os meus esforços, porque eu já
fazia esforços, leitor amigo. Não conhecendo a lição do Cântico,
não me acudiu estender a mão esquerda por baixo da cabeça dela; demais, este
gesto supõe um acordo de vontades, e Capitu, que me resistia agora,
aproveitaria o gesto para arrancar-se à outra mão e fugir-me inteiramente.
Ficamos naquela luta, sem estrépito, porque apesar do ataque e da defesa, não
perdíamos a cautela necessária para não sermos ouvidos lá de dentro; a alma é
cheia de mistérios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar; até
que cansou; mas então foi a vez da boca. A boca de Capitu iniciou um movimento
inverso, relativamente à minha, indo para um lado, quando eu a buscava do outro
oposto. Naquele desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e
bastaria um pouco mais…
Nisto ouvimos bater à porta e falar no
corredor. Era o pai de Capitu, que voltava da repartição um pouco mais cedo,
como usava às vezes. “Abre, Nanata! Capitu, abre!” Aparentemente era
o mesmo lance da manhã, quando a mãe deu conosco, mas só aparentemente;
verdade, era outro. Considerai que de manhã tudo estava acabado, e o passo de
D. Fortunata foi um aviso para que nos compuséssemos. Agora lutávamos com as
mãos presas, e nada estava sequer começado.
Ouvimos o ferrolho da porta que dava
para o corredor interno; era a mãe que abria. Eu, uma vez que confesso tudo,
digo aqui que não tive tempo de soltar as mãos da minha amiga; pensei nisso,
cheguei a tentá-lo, mas Capitu, antes que o pai acabasse de entrar, fez um
gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e deu de vontade o que estava a
recusar à força. Repito, a alma é cheia de mistérios.
CAPÍTULO XXXVIII
QUE SUSTO, MEU DEUS!
Quando Pádua, vindo pelo interior,
entrou na sala de visitas, Capitu, em pé, de costas para mim, inclinada sobre a
costura, como a recolhê-la, perguntava em voz alta:
— Mas, Bentinho, que é protonotário
apostólico?
— Ora, vivam! exclamou o pai.
— Que susto, meu Deus!
Agora é que o lance é o mesmo; mas se
conto aqui, tais quais, ou dois lances de há quarenta anos, é para mostrar que
Capitu não se dominava só em presença da mãe; o pai não lhe meteu mais medo. No
meio de uma situação que me atava a língua, usava da palavra com a maior
ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que o coração não lhe batia mais
nem menos. Alegou susto, e deu à cara um ar meio enfiado; mas eu, que sabia
tudo, vi que era mentira e fiquei com inveja. Foi logo falar ao pai, que
apertou a minha mão, e quis saber por que a filha falava em protonotário
apostólico. Capitu repetiu-lhe o que ouvira de mim, e opinou logo que o pai
devia ir cumprimentar o padre em casa dele; ela iria à minha. E coligindo os
petrechos da costura, enfiou pelo corredor, bradando infantilmente:
— Mamãe, jantar, papai chegou!
CAPÍTULO XXXIX
A VOCAÇÃO
Padre Cabral estava naquela primeira
hora das honras em que as mínimas congratulações valem por odes. Tempo chega em
que os dignificados recebem os louvores como um tributo usual, cara morta, sem
agradecimentos. O alvoroço da primeira hora é melhor; esse estado de alma que
vê na inclinação do arbusto, tocado do vento, um parabém da flora universal,
traz sensações mais íntimas e finas que qualquer outro. Cabral ouviu as
palavras de Capitu com infinito prazer.
— Obrigado, Capitu, muito obrigado;
estimo que você goste também. Papai está bom? E mamãe? A você não se pergunta;
essa cara é mesmo de quem vende saúde. E como vamos de rezas?
A todas as perguntas, Capitu ia
respondendo prontamente e bem. Trazia um vestidinho melhor e os sapatos de
sair. Não entrou com a familiaridade do costume, deteve-se um instante à porta
da sala, antes de ir beijar a mão a minha mãe e ao padre. Como desse a este,
duas vezes em cinco minutos, o título de protonotário, José Dias, para se
desforrar da concorrência, fez um pequeno discurso em honra “ao coração
paternal e augustíssimo de Pio IX.”
— Você é um grande prosa,
disse tio Cosme, quando ele acabou.
José Dias sorriu sem vexame. Padre
Cabral confirmou os louvores do agregado, sem os seus superlativos; ao que este
acrescentou que o Cardeal Mastai evidentemente fora talhado para a tiara desde
o princípio dos tempos. E, piscando-me o olho, concluiu:
— A vocação é tudo. O estado
eclesiástico é perfeitíssimo, contanto que o sacerdote venha já destinado do
berço. Não havendo vocação, falo de vocação sincera e real, um jovem pode muito
bem estudar as letras humanas, que também são úteis e honradas.
Padre Cabral retorquia:
— A vocação é muito, mas o poder de
Deus é soberano. Um homem pode não ter gosto à igreja e até persegui-la, e um
dia a voz de Deus lhe fala, e ele sai apóstolo; veja São Paulo.
— Não contesto, mas o que eu digo é
outra coisa. O que eu digo é que se pode muito bem servir a Deus sem ser padre,
cá fora; pode-se ou não se pode?
— Pode-se.
— Pois então! exclamou José Dias
triunfalmente, olhando em volta de si. Sem vocação é que não há bom padre, e em
qualquer profissão liberal se serve a Deus, como todos devemos.
— Perfeitamente, mas vocação não é só
do berço que se traz.
— Homem, é a melhor.
— Um moço sem gosto nenhum à vida
eclesiástica pode acabar por ser muito bom padre; tudo é que Deus o determine.
Não me quero dar por modelo, mas aqui estou eu que nasci com a vocação da
Medicina; meu padrinho, que era coadjutor de Santa Rita, teimou com meu pai
para que me metesse no seminário; meu pai cedeu. Pois, senhor, tomei tal gosto
aos estudos e à companhia dos padres, que acabei ordenando-me. Mas, suponha que
não acontecia assim, e que eu não mudava de vocação, o que é que acontecia?
Tinha estudado no seminário algumas matérias que é bom saber, e são sempre
melhor ensinadas naquelas casas.
Prima Justina interveio:
— Como? Então pode-se entrar para o
seminário e não sair padre?
Padre Cabral respondeu que sim, que se
podia, e, voltando-se para mim, falou da minha vocação, que era manifesta; os
meus brinquedos foram sempre de igreja, e eu adorava os ofícios divinos. A
prova não provava; todas as crianças do meu tempo eram devotas. Cabral
acrescentou que o reitor de São José, a quem contara ultimamente a promessa de
minha mãe, tinha o meu nascimento por milagre; ele era da mesma opinião.
Capitu, cosida às saias de minha mãe, não atendia aos olhos ansiosos que eu lhe
mandava; também não parecia escutar a conversação sobre o seminário e suas
conseqüências, e, aliás, decorou o principal, como vim a saber depois. Duas
vezes fui à janela, esperando que ela fosse também, e ficássemos à vontade,
sozinhos, até acabar o mundo, se acabasse, mas Capitu não me apareceu. Não deixou
minha mãe, senão para ir embora. Eram ave-marias, despediu-se.
— Vai com ela, Bentinho, disse minha
mãe.
— Não precisa, não, D. Glória, acudiu
ela rindo, eu sei o caminho. Adeus, Sr. protonotário…
— Adeus, Capitu.
Tendo dado um passo no sentido de
atravessar a sala, é claro que o meu dever, o meu gosto, todos os impulsos da
idade e da ocasião eram atravessá-la de todo, seguir a vizinha corredor fora,
descer à chácara, entrar no quintal, dar-lhe terceiro beijo, e despedir-me. Não
me importou a recusa, que cuidei simulada, e enfiei pelo corredor; mas, Capitu
que ia depressa, estacou e fez-me sinal que voltasse. Não obedeci; cheguei-me a
ela.
— Não venha, não; amanhã falaremos.
— Mas eu queria dizer a você…
— Amanhã.
— Escuta!
— Fica!
Falava baixinho; pegou-me na mão, e pôs
o dedo na boca. Uma preta, que veio de dentro acender o lampião do corredor,
vendo-nos naquela atitude quase às escuras, riu de simpatia e murmurou, em tom
que ouvíssemos, alguma coisa que não entendi bem nem mal. Capitu segredou-me
que a escrava desconfiara, e ia talvez contar às outras. Novamente me intimou
que ficasse, e retirou-se; eu deixei-me estar parado, pregado, agarrado ao
chão.
CAPÍTULO XL
UMA ÉGUA
Ficando só, refleti algum tempo, e tive
uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias. Contei-vos a da visita
imperial; disse-vos a desta casa do Engenho Novo, reproduzindo a de
Mata-cavalos… A imaginação foi a companheira de toda a minha existência,
viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas
capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. Creio haver lido em Tácito
que as éguas iberas concebiam pelo vento; se não foi nele, foi noutro autor
antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste particular, a
minha imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro,
que saía logo cavalo de Alexandre; mas deixemos de metáforas atrevidas e
impróprias dos meus quinze anos. Digamos o caso simplesmente. A fantasia
daquela hora foi confessar a minha mãe os meus amores para lhe dizer que não
tinha vocação eclesiástica. A conversa sobre vocação tornava-me agora toda
inteira, e, ao passo que me assustava, abria-me uma porta de saída. “Sim,
é isto, pensei; vou dizer a mamãe que não tenho vocação, e confesso o nosso
namoro; se ela duvidar, conto-lhe o que se passou outro dia, o penteado e o
resto…”
CAPÍTULO XLI
A AUDIÊNCIA SECRETA
O resto fez-me ficar mais algum tempo,
no corredor, pensando. Vi entrar o Doutor João da Costa, e preparou-se logo o
voltarete do costume. Minha mãe saiu da sala, e, dando comigo, perguntou se
acompanhara Capitu.
— Não, senhora, ela foi só.
E quase investindo para ela:
— Mamãe, eu queria dizer-lhe uma coisa.
— Que é?
Toda assustada, quis saber o que é que
me doía, se a cabeça, se o peito, se o estômago, e apalpava-me a testa para ver
se tinha febre.
— Não tenho nada, não, senhora.
— Mas então que é?
— É uma coisa, mamãe… Mas, escute,
olhe, é melhor depois do chá; logo… Não é nada mau; mamãe assusta-se por
tudo; não é coisa de cuidado.
— Não é moléstia?
— Não, senhora.
— É, isso é volta de constipação.
Disfarças para não tomar suadouro, mas tu estás constipado; conhece-se pela
voz.
Tentei rir, para mostrar que não tinha
nada. Nem por isso permitiu adiar a confidência, pegou em mim, levou-me ao
quarto dela, acendeu vela, e ordenou-me que lhe dissesse tudo. Então eu
perguntei-lhe, para principiar, quando é que ia para o seminário.
— Agora só para o ano, depois das
férias.
— Vou… para ficar?
— Como ficar?
— Não volto para casa?
— Voltas aos sábados e pelas férias; é
melhor. Quando te ordenares padre, vens morar comigo.
Enxuguei os olhos e o nariz. Ela
afagou-me, depois quis repreender-me, mas creio que a voz lhe tremia, e
pareceu-me que tinha os olhos úmidos. Disse-lhe que também sentia a nossa
separação. Negou que fosse separação; era só alguma ausência, por causa dos
estudos; só os primeiros dias. Em pouco tempo eu me acostumaria aos
companheiros e aos mestres, e acabaria gostando de viver com eles.
— Eu só gosto de mamãe.
Não houve cálculo nesta palavra, mas
estimei dizê-la, por fazer crer que ela era a minha única afeição; desviava as
suspeitas de cima de Capitu. Quantas intenções viciosas há assim que embarcam,
a meio caminho, numa frase inocente e pura! Chega a fazer suspeitar que a
mentira é, muita vez, tão involuntária como a transpiração. Por outro lado,
leitor amigo, nota que eu queria desviar as suspeitas de cima de Capitu, quando
havia chamado minha mãe justamente para confirmá-las; mas as contradições são
deste mundo. A verdade é que minha mãe era cândida como a primeira aurora,
anterior ao primeiro pecado; nem por simples intuição era capaz de deduzir uma
coisa de outra, isto é, não concluiria da minha repentina oposição que eu
andasse em segredinhos com Capitu, como lhe dissera José Dias. Calou-se durante
alguns instantes; depois replicou-me sem imposição nem autoridade, o que me
veio animando à resistência. Daí o falar-lhe na vocação que se discutira
naquela tarde, e que eu confessei não sentir em mim.
— Mas tu gostavas tanto de ser padre,
disse ela; não te lembras que até pedias para ir ver sair os seminaristas de
São José, com as suas batinas? Em casa, quando José Dias te chamava
Reverendíssimo, tu rias com tanto gosto! Como é que agora?… Não creio, não,
Bentinho. E depois… Vocação? Mas a vocação vem com o costume, continuou
repetindo as reflexões que ouvira ao meu professor de latim.
Como eu buscasse contestá-la,
repreendeu-me sem aspereza, mas com alguma força, e eu tornei ao filho submisso
que era. Depois, ainda falou gravemente e longamente sobre a promessa que
fizera; não me disse as circunstâncias, nem a ocasião, nem os motivos dela,
coisas que só vim a saber mais tarde. Afirmou o principal, isto é, que a havia
de cumprir, em pagamento a Deus.
— Nosso Senhor me acudiu, salvando a
tua existência, não lhe hei de mentir nem faltar, Bentinho; são coisas que não
se fazem sem pecado, e Deus que é grande e poderoso, não me deixaria assim,
não, Bentinho; eu sei que seria castigada e bem castigada. Ser padre é bom e
santo; você conhece muitos, como o Padre Cabral, que vive tão feliz com a irmã;
um tio meu também foi padre, e escapou de ser bispo, dizem… Deixa de manha,
Bentinho.
Creio que os olhos que lhe deitei foram
tão queixosos, que ela emendou logo a palavra; manha, não, não podia ser manha,
sabia muito bem que eu era amigo dela, e não seria capaz de fingir um
sentimento que não tivesse. Moleza é o que queria dizer, que me deixasse de
moleza, que me fizesse homem e obedecesse ao que cumpria, em benefício dela e
para bem da minha alma. Todas essas coisas e outras foram ditas um pouco
atropeladamente, e a voz não lhe saía clara, mas velada e esganada. Vi que a
emoção dela era outra vez grande, mas não recuava dos seus propósitos, e
aventurei-me a perguntar-lhe:
— E se mamãe pedisse a Deus que a
dispensasse da promessa?
— Não, não peço. Estás tonto, Bentinho?
E como havia de saber que Deus me dispensava?
— Talvez em sonho; eu sonho às vezes
com anjos e santos.
— Também eu, meu filho; mas é inútil…
Vamos, é tarde; vamos para a sala. Está entendido: no primeiro ou no segundo
mês do ano que vem, irás para o seminário. O que eu quero é que saibas bem os
livros que estás estudando; é bonito, não só para ti, como para o Padre Cabral.
No seminário há interesse em conhecer-te, porque o Padre Cabral fala de ti com
entusiasmo.
Caminhou para a porta, saímos ambos.
Antes de sair, voltou-se para mim, e quase a vi saltar-me ao colo e dizer-me
que não seria padre. Este era já o seu desejo íntimo, à proporção que se
aproximava o tempo. Quisera um modo de pagar a dívida contraída, outra moeda,
que valesse tanto ou mais, e não achava nenhuma.
CAPÍTULO XLII
CAPITU REFLETINDO
No dia seguinte fui à casa vizinha,
logo que pude. Capitu despedia-se de duas amigas que tinham ido visitá-la,
Paula e Sancha, companheiras de colégio, aquela de quinze, esta de dezessete
anos, a primeira filha de um médico, a segunda de um comerciante de objetos
americanos. Estava abatida, trazia um lenço atado na cabeça; a mãe contou-me
que fora excesso de leitura na véspera, antes e depois do chá, na sala e na
cama, até muito depois da meia-noite, e com lamparina…
— Se eu acendesse vela, mamãe
zangava-se. Já estou boa.
E como desatasse o lenço, a mãe
disse-lhe timidamente que era melhor atá-lo, mas Capitu respondeu que não era
preciso, estava boa.
Ficamos sós na sala; Capitu confirmou a
narração da mãe, acrescentando que passara mal por causa do que ouvira em minha
casa. Também eu lhe contei o que se dera comigo, a entrevista com minha mãe, as
minhas súplicas, as lágrimas dela, e por fim as últimas respostas decisivas;
dentro de dois ou três meses iria para o seminário. Que faríamos agora? Capitu
ouvia-me com atenção sôfrega, depois sombria; quando acabei, respirava a custo,
como prestes a estalar de cólera, mas conteve-se.
Há tanto tempo que isto sucedeu que não
posso dizer com segurança se chorou deveras, ou se somente enxugou os olhos;
cuido que os enxugou somente. Vendo-lhe o gesto, peguei-lhe na mão para
animá-la, mas também eu precisava ser animado. Caímos no canapé, e ficamos a
olhar para o ar. Minto; ela olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi
assim… Mas eu creio que Capitu olhava para dentro de si mesma, enquanto que eu
fitava deveras o chão, o roído das fendas, duas moscas andando e um pé de
cadeira lascada. Era pouco, mas distraía-me da aflição. Quando tornei a olhar
para Capitu, vi que não se mexia, e fiquei com tal medo que a sacudi
brandamente. Capitu tornou cá fora e pediu-me que outra vez lhe contasse o que
se passara com minha mãe. Satisfi-la, atenuando o texto desta vez, para não
amofiná-la. Não me chames dissimulado, chama-me compassivo; é certo que receava
perder Capitu, se lhe morressem as esperanças todas, mas doía-me vê-la padecer.
Agora, a verdade última, a verdade das verdades, é que já me arrependia de
haver falado a minha mãe, antes de qualquer trabalho efetivo por parte de José
Dias; examinando bem, não quisera ter ouvido um desengano que eu reputava certo,
ainda que demorado. Capitu refletia, refletia, refletia…
CAPÍTULO XLIII
VOCÊ TEM MEDO?
De repente, cessando a reflexão, fitou
em mim os olhos de ressaca, e perguntou-me se tinha medo.
— Medo?
— Sim, pergunto se você tem medo.
— Medo de quê?
— Medo de apanhar, de ser preso, de
brigar, de andar, de trabalhar…
Não entendi. Se ela tem dito
simplesmente: “Vamos embora!” pode ser que eu obedecesse ou não; em
todo caso, entenderia. Mas aquela pergunta assim, vaga e solta, não pude atinar
o que era.
— Mas… não entendo. De apanhar?
— Sim.
— Apanhar de quem? Quem é que me dá
pancada?
Capitu fez um gesto de impaciência. Os
olhos de ressaca não se mexiam e pareciam crescer. Sem saber de mim, e, não
querendo interrogá-la novamente, entrei a cogitar donde me viriam pancadas, e
por que, e também por que é que seria preso, e quem é que me havia de prender.
Valha-me Deus! vi de imaginação o aljube, uma casa escura e infecta. Também vi
a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correção. Todas essas belas
instituições sociais me envolviam no seu mistério, sem que os olhos de ressaca
de Capitu deixassem de crescer para mim, a tal ponto que as fizeram esquecer de
todo. O erro de Capitu foi não deixá-los crescer infinitamente, antes diminuir
até às dimensões normais, e dar-lhes o movimento do costume. Capitu tornou ao
que era, disse-me que estava brincando, não precisava afligir-me, e, com um
gesto cheio de graça, bateu-me na cara, sorrindo, e disse:
— Medroso!
— Eu? Mas…
— Não é nada, Bentinho. Pois quem é que
há de dar pancada ao prender você? Desculpe, que eu hoje estou meia maluca;
quero brincar, e…
— Não, Capitu; você não está brincando;
nesta ocasião, nenhum de nós tem vontade de brincar.
— Tem razão, foi só maluquice; até
logo.
— Como até logo?
— Está-me voltando a dor de cabeça; vou
botar uma rodela de limão nas fontes.
Fez o que disse, e atou o lenço outra
vez na testa. Em seguida, acompanhou-me ao quintal para se despedir de mim;
mas, ainda aí nos detivemos por alguns minutos, sentados sobre a borda do poço.
Ventava, o céu estava coberto. Capitu falou novamente da nossa separação, como
de um fato certo e definitivo, por mais que eu, receoso disso mesmo, buscasse
agora razões para animá-la. Capitu, quando não falava, riscava no chão, com um
pedaço de taquara, narizes e perfis. Desde que se metera a desenhar, era uma
das suas diversões; tudo lhe servia de papel e lápis. Como me lembrassem os
nossos nomes abertos por ela no muro, quis fazer o mesmo no chão, e pedi-lhe a
taquara. Não me ouviu ou não me atendeu.
CAPÍTULO XLIV
O PRIMEIRO FILHO
— Dê cá, deixe escrever uma coisa.
Capitu olhou para mim, mas de um modo
que me fez lembrar a definição de José Dias, oblíquo e dissimulado; levantou o
olhar, sem levantar os olhos. A voz, um tanto sumida, perguntou-me:
— Diga-me uma coisa, mas fale verdade,
não quero disfarce; há de responder com o coração na mão.
— Que é? Diga.
— Se você tivesse de escolher entre mim
e sua mãe, a quem é que escolhia?
— Eu?
Fez-me sinal que sim.
— Eu escolhia… mas para que escolher?
Mamãe não é capaz de me perguntar isso.
— Pois sim, mas eu pergunto. Suponha
você que está no seminário e recebe a notícia de que eu vou morrer…
— Não diga isso!
—… Ou que me mato de saudades, se
você não vier logo, e sua mãe não quiser que você venha, diga-me, você vem?
— Venho.
— Contra a ordem de sua mãe?
— Contra a ordem de mamãe.
— Você deixa seminário, deixa sua mãe,
deixa tudo, para me ver morrer?
— Não fale em morrer, Capitu!
Capitu teve um risinho descorado e
incrédulo, e com a taquara escreveu uma palavra no chão, inclinei-me e
li: mentiroso.
Era tão estranho tudo aquilo, que não
achei resposta. Não atinava com a razão do escrito, como não atinava com a do
falado. Se me acudisse ali uma injúria grande ou pequena, é possível que a
escrevesse também, com a mesma taquara, mas não me lembrava nada. Tinha a
cabeça vazia. Ao mesmo tempo tomei-me de receio de que alguém nos pudesse ouvir
ou ler. Quem, se éramos sós? D. Fortunata chegara uma vez à porta da casa, mas
entrou logo depois. A solidão era completa. Lembra-me que umas andorinhas
passaram por cima do quintal e foram para os lados do morro de Santa Teresa;
ninguém mais. Ao longe, vozes vagas e confusas, na rua um tropel de bestas, do
lado da casa o chilrear dos passarinhos do Pádua. Nada mais, ou somente este
fenômeno curioso, que o nome escrito por ela não só me espiava do chão com
gesto escarninho, mas até me pareceu que repercutia no ar. Tive então uma idéia
ruim; disse-lhe que, afinal de contas, a vida de padre não era má, e eu podia
aceitá-la sem grande pena. Como desforço, era pueril; mas eu sentia a secreta
esperança de vê-la atirar-se a mim lavada em lágrimas. Capitu limitou-se a
arregalar muito os olhos, e acabou por dizer:
— Padre é bom, não há dúvida; melhor
que padre só cônego, por causa das meias roxas. O roxo é cor muito bonita.
Pensando bem, é melhor cônego.
— Mas não se pode ser cônego sem ser
primeiramente padre, disse-lhe eu mordendo os beiços.
— Bem; comece pelas meias pretas,
depois virão as roxas. O que eu não quero perder é a sua missa nova; avise-me a
tempo para fazer um vestido à moda, saia balão e babados grandes. . . Mas
talvez nesse tempo a moda seja outra. A igreja há de ser grande, Carmo ou São
Francisco.
— Ou Candelária.
— Candelária também. Qualquer serve,
contanto que eu ouça a missa nova. Hei de fazer um figurão. Muita gente há de
perguntar: “Quem é aquela moça faceira que ali está com um vestido tão
bonito?” — “Aquela é D. Capitolina, uma moça que morou na Rua de
Mata-cavalos…”
— Que morou? Você vai mudar-se?
— Quem sabe onde é que há de morar
amanhã? disse ela com um tom leve de melancolia; mas, tornando logo ao
sarcasmo: E você no altar, metido na alva, com a capa de ouro por cima,
cantando… Pater noster…
Ah! como eu sinto não ser um poeta
romântico para dizer que isto era um duelo de ironias! Contaria os meus botes e
os dela, a graça de um e a prontidão de outro, e o sangue correndo, e o furor
na alma, até ao meu golpe final que foi este:
— Pois sim, Capitu, você ouvirá a minha
missa nova, mas com uma condição.
Ao que ela respondeu:
— Vossa Reverendíssima pode falar.
— Promete uma coisa?
— Que é?
— Diga se promete.
— Não sabendo o que é, não prometo.
— A falar verdade são duas coisas,
continuei eu, por haver-me acudido outra idéia.
— Duas? Diga quais são.
— A primeira é que só se há de
confessar comigo, para eu lhe dar a penitência e a absolvição. A segunda é
que…
— A primeira está prometida, disse ela
vendo-me hesitar, e acrescentou que esperava a segunda.
Palavra que me custou, e antes não me
chegasse a sair da boca; não ouviria o que ouvi, e não escreveria aqui uma
coisa que vai talvez achar incrédulos.
— A segunda… sim… é que… Promete-me
que seja eu o padre que case você?
— Que me case? disse ela um tanto
comovida.
Logo depois fez descair os lábios, e
abanou a cabeça.
— Não, Bentinho, disse, seria esperar
muito tempo; você não vai ser padre já amanhã, leva muitos anos… Olhe, prometo
outra coisa; prometo que há de batizar o meu primeiro filho.
CAPÍTULO XLV
ABANE A CABEÇA, LEITOR
Abane a cabeça leitor; faça todos os
gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não
obrigou a isso antes; tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só agora, fio
que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na
veracidade do autor. Todavia, não há nada mais exato. Foi assim mesmo que
Capitu falou, com tais palavras e maneiras. Falou do primeiro filho, como se
fosse a primeira boneca.
Quanto ao meu espanto, se também foi
grande, veio de mistura com uma sensação esquisita. Percorreu-me um fluido.
Aquela ameaça de um primeiro filho, o primeiro filho de Capitu, o casamento
dela com outro, portanto, a separação absoluta, a perda, a aniquilação, tudo
isso produzia um tal efeito, que não achei palavra nem gesto; fiquei estúpido.
Capitu sorria; eu via o primeiro filho brincando no chão…
CAPÍTULO XLVI
AS PAZES
As pazes fizeram-se como a guerra,
depressa. Buscasse eu neste livro a minha glória, e diria que as negociações
partiram de mim; mas não, foi ela que as iniciou. Alguns instantes depois, como
eu estivesse cabisbaixo, ela abaixou também a cabeça, mas voltando os olhos
para cima a fim de ver os meus. Fiz-me de rogado; depois quis levantar-me para
ir embora, mas nem me levantei, nem sei se iria. Capitu fitou-me uns olhos tão
ternos, e a posição os fazia tão súplices, que me deixei ficar, passei-lhe o
braço pela cintura, ela pegou-me na ponta dos dedos, e…
Outra vez D. Fortunata apareceu à porta
da casa; não sei para que, se nem me deixou tempo de puxar o braço; desapareceu
logo. Podia ser um simples descargo de consciência, uma cerimônia, como as
rezas de obrigação, sem devoção, que se dizem de tropel; a não ser que fosse
para certificar aos próprios olhos a realidade que o coração lhe dizia…
Fosse o que fosse, o meu braço
continuou a apertar a cintura da filha, e foi assim que nos pacificamos. O
bonito é que cada um de nós queria agora as culpas para si, e pedíamos
reciprocamente perdão. Capitu alegava a insônia, a dor de cabeça, o abatimento
do espírito, e finalmente “os seus calundus”.Eu, que era muito chorão por
esse tempo, sentia os olhos molhados… Era amor puro, era efeito dos
padecimentos da amiguinha, era a ternura da reconciliação.
CAPÍTULO XLVII
“A SENHORA SAIU”
— Está bom, acabou, disse eu
finalmente; mas, explique-me só uma coisa, por que é que você me perguntou se
eu tinha medo de apanhar?
— Não foi por nada, respondeu Capitu,
depois de alguma hesitação… Para que bulir nisso?
— Diga sempre. Foi por causa do
seminário?
— Foi; ouvi dizer que lá dão pancada…
Não? Eu também não creio.
A explicação agradou-me; não tinha
outra. Se, como penso, Capitu não disse a verdade, força é reconhecer que não
podia dizê-la, e a mentira é dessas criadas que se dão pressa em responder às
visitas que “a senhora saiu”, quando a senhora não quer falar a
ninguém. Há nessa cumplicidade um gosto particular; o pecado em comum iguala
por instantes a condição das pessoas, não contando o prazer que dá a cara das
visitas enganadas, e as costas com que elas descem… A verdade não saiu, ficou
em casa, no coração de Capitu, cochilando o seu arrependimento. E eu não desci
triste nem zangado; achei a criada galante, apetecível, melhor que a ama.
As andorinhas vinham agora em sentido
contrário, ou não seriam as mesmas. Nós é que éramos os mesmos; ali ficamos,
somando as nossas ilusões, os nossos temores, começando já a somar as nossas saudades.
CAPÍTULO XLVIII
JURAMENTO DO POÇO
— Não! exclamei de repente.
— Não quê?
Tinha havido alguns minutos de
silêncio, durante os quais refleti muito e acabei por uma idéia; o tom da
exclamação, porém, foi tão alto que espantou a minha vizinha.
— Não há de ser assim, continuei. Dizem
que não estamos em idade de casar, que somos crianças, criançolas, — já ouvi
dizer criançolas. Bem; mas dois ou três anos passam depressa. Você jura uma
coisa? Jura que só há de casar comigo?
Capitu não hesitou em jurar, e até lhe
vi as faces vermelhas de prazer. Jurou duas vezes e uma terceira:
— Ainda que você case com outra,
cumprirei o meu juramento, não casando nunca.
— Que eu case com outra?
— Tudo pode ser, Bentinho. Você pode
achar outra moça que lhe queira, apaixonar-se por ela e casar. Quem sou eu para
você lembrar-se de mim nessa ocasião?
— Mas eu também juro! Juro, Capitu,
juro por Deus Nosso Senhor que só me casarei com você. Basta isto?
— Devia bastar, disse ela; eu não me
atrevo a pedir mais. Sim, você jura… Mas juremos por outro modo; juremos que
nos havemos de casar um com outro, haja o que houver.
Compreendeis a diferença; era mais que
a eleição do cônjuge, era a afirmação do matrimônio. A cabeça da minha amiga
sabia pensar claro e depressa. Realmente, a fórmula anterior era limitada,
apenas exclusiva. Podíamos acabar solteirões, como o sol e a lua, sem mentir ao
juramento do poço. Esta fórmula era melhor, e tinha a vantagem de me fortalecer
o coração contra a investidura eclesiástica. Juramos pela segunda fórmula, e
ficamos tão felizes que todo receio de perigo desapareceu. Éramos religiosos,
tínhamos o céu por testemunha. Eu nem já temia o seminário.
— Se teimarem muito, irei; mas faço de
conta que é um colégio qualquer; não tomo ordens.
Capitu temia a nossa separação, mas
acabou aceitando este alvitre, que era o melhor. Não afligíamos minha mãe, e o
tempo correria até o ponto em que o casamento pudesse fazer-se. Ao contrário,
qualquer resistência ao seminário confirmaria a denúncia de José Dias. Esta
reflexão não foi minha, mas dela.
CAPÍTULO XLIX
UMA VELA AOS SÁBADOS
Eis aqui como, após tantas canseiras,
tocávamos o porto a que nos devíamos ter abrigado logo. Não nos censures,
piloto de má morte, não se navegam corações como os outros mares deste mundo.
Estávamos contentes, entramos a falar do futuro. Eu prometia à minha esposa uma
vida sossegada e bela, na roça ou fora da cidade. Viríamos aqui uma vez por
ano. Se fosse em arrabalde, seria longe, onde ninguém nos fosse aborrecer. A
casa, na minha opinião, não devia ser grande nem pequena, um meio-termo;
plantei-lhe flores, escolhi móveis, uma sege e um oratório. Sim, havíamos de
ter um oratório bonito, alto, de jacarandá, com a imagem de Nossa Senhora da
Conceição. Demorei-me mais nisto que no resto, em parte porque éramos
religiosos, em parte para compensar a batina que eu ia deitar às urtigas; mas
ainda restava uma parte que atribuo ao intuito secreto e inconsciente de captar
a proteção do céu. Havíamos de acender uma vela aos sábados…
CAPÍTULO L
UM MEIO-TERMO
Meses depois fui para o seminário de
São José. Se eu pudesse contar as lágrimas que chorei na véspera e na manhã,
somaria mais que todas as vertidas desde Adão e Eva. Há nisto alguma
exageração; mas é bom ser enfático, uma ou outra vez, para compensar este
escrúpulo de exatidão que me aflige. Entretanto, se eu me ativer só à lembrança
da sensação, não fico longe da verdade; aos quinze anos, tudo é infinito.
Realmente, por mais preparado que estivesse, padecia muito. Minha mãe também
padeceu, mas sofria com alma e coração; demais, o Padre Cabral achara um
meio-termo: experimentar-me a vocação; se no fim de dois anos, eu não revelasse
vocação eclesiástica, seguiria outra carreira.
— As promessas devem ser cumpridas
conforme Deus quer. Suponha que Nosso Senhor nega disposição a seu filho, e que
o costume do seminário não lhe dá o gosto que me concedeu a mim, é que a
vontade divina é outra. A senhora não podia pôr em seu filho, antes de nascido,
uma vocação que Nosso Senhor lhe recusou…
Era uma concessão do padre. Dava a
minha mãe um perdão antecipado, fazendo vir do credor a relevação da dívida. Os
olhos dela brilharam, mas a boca disse que não. José Dias, não tendo alcançado
ir comigo para a Europa, agarrou-se ao mais próximo, e apoiou o “alvitre
do Sr. protonotário”; só lhe parecia que um ano era bastante.
— Estou certo, disse ele, piscando-me o
olho, que dentro de um ano a vocação eclesiástica do nosso Bentinho se
manifesta clara e decisiva. Há de dar um padre de mão-cheia. Também, se não
vier em um ano…
E a mim, mais tarde, em particular:
— Vá por um ano; um ano passa depressa.
Se não sentir gosto nenhum, é que Deus não quer, como diz o padre, e nesse
caso, meu amiguinho, o melhor remédio é a Europa.
Capitu deu-me igual conselho, quando
minha mãe lhe anunciou a minha ida definitiva para o seminário:
— Minha filha, você vai perder o seu
companheiro de criança…
Fez-lhe tão bem este tratamento
de filha (era a primeira vez que minha mãe lho dava), que nem
teve tempo de ficar triste; beijou-lhe a mão, e disse-lhe que já sabia disso
por mim mesmo. Em particular animou-me a suportar tudo com paciência; no fim de
um ano as coisas estariam mudadas, e um ano andava depressa. Não foi ainda a
nossa despedida; esta fez-se na véspera, por um modo que pede capítulo
especial. O que unicamente digo aqui é que, ao passo que nos prendíamos um ao
outro, ela ia prendendo minha mãe, fez-se mais assídua e terna, vivia ao pé
dela, com os olhos nela. Minha mãe era de natural simpático, e igualmente
sensível; tanto se doía como se aprazia de qualquer coisa. Entrou a achar em
Capitu uma porção de graças novas, de dotes finos e raros; deu-lhe um anel dos
seus e algumas galanterias. Não consentiu em fotografar-se, como a pequena lhe
pedia, para lhe dar um retrato; mas tinha uma miniatura, feita aos vinte e
cinco anos, e, depois de algumas hesitações, resolveu dar-lha. Os olhos de
Capitu, quando recebeu o mimo, não se descrevem; não eram oblíquos, nem de
ressaca, eram direitos, claros, lúcidos. Beijou o retrato com paixão, minha mãe
fez-lhe a mesma coisa a ela. Tudo isto me lembra a nossa despedida.
CAPÍTULO LI
ENTRE LUZ E FUSCO
Entre luz e fusco, tudo há de ser breve
como esse instante. Nem durou muito a nossa despedida, foi o mais que pôde, em
casa dela, na sala de visitas, antes do acender das velas; aí é que nos
despedimos de uma vez. Juramos novamente que havíamos de casar um com o outro,
e não foi só o aperto de mão que selou o contrato, como no quintal, foi a
conjunção das nossas bocas amorosas… Talvez risque isto na impressão, se até
lá não pensar de outra maneira; se pensar, fica. E desde já fica, porque, em
verdade, é a nossa defesa. O que o mandamento divino quer é que não
juremos em vão pelo santo nome de Deus. Eu não ia mentir ao
seminário, uma vez que levava um contrato feito no próprio cartório do céu.
Quanto ao selo, Deus, como fez as mãos limpas, assim fez os lábios limpos, e a
malícia está antes na tua cabeça perversa que na daquele casal de adolescentes…
Oh! minha doce companheira da meninice, eu era puro, e puro fiquei, e puro
entrei na aula de São José, a buscar de aparência a investidura sacerdotal, e
antes dela a vocação. Mas a vocação eras tu, a investidura eras tu.
CAPÍTULO LII
O VELHO PÁDUA
Já agora conto também os adeuses do
velho Pádua. Logo cedo veio à nossa casa. Minha mãe disse-lhe que fosse
falar-me ao quarto.
— Dá licença? perguntou metendo a
cabeça pela porta.
Fui apertar-lhe a mão; ele abraçou-me
com ternura.
— Seja feliz! disse-me. A mim e a toda
a minha gente creia que ficam muitas saudades. Todos nós estimamos muito ao
senhor, como merece. Se lhe disserem outra coisa, não acredite. São intrigas.
Também eu, quando me casei, fui vítima de intrigas; desfizeram-se. Deus é
grande e descobre a verdade. Se algum dia perder sua mãe e seu tio, — coisa que
eu, por esta luz que me alumia, não desejo, porque são boas pessoas, excelentes
pessoas, e eu sou grato às finezas recebidas… Não, eu não sou como outros,
certos parasitas, vindos de fora para desunião das famílias, aduladores baixos,
não; eu sou de outra espécie; não vivo papando os jantares nem morando em casa
alheia… Enfim, são os mais felizes!
— Por que falará assim? pensei.
Naturalmente sabe que José Dias diz mal dele.”
— Mas, como ia dizendo, se algum dia
perder os seus parentes, pode contar com a nossa companhia. Não é suficiente em
importância, mas a afeição é imensa, creia. Padre que seja, a nossa casa está
às suas ordens. Quero só que me não esqueça; não esqueça o velho Pádua…
Suspirou e continuou:
— Não esqueça o seu velho Pádua, e, se
tem algum trapinho que me deixe em lembrança, um caderno latino, qualquer
coisa, um botão de colete, coisa que já lhe não preste para nada. O valor é a
lembrança.
Tive um sobressalto. Havia embrulhado
em um papel um cacho dos meus cabelos, tão grandes e tão bonitos, cortados na
véspera. A intenção era levá-los a Capitu, ao sair; mas tive idéia de dá-lo ao
pai, a filha saberia tomá-lo e guardá-lo. Peguei do embrulho e dei-lho.
— Aqui está, guarde.
— Um cachinho dos seus cabelos!
exclamou Pádua abrindo e fechando o embrulho. Oh! obrigado! obrigado por mim e
pela minha gente! Vou dá-lo à velha, para guardá-lo, ou à pequena, que é mais
cuidadosa que a mãe. Que lindos que são! Como é que se corta uma beleza destas?
Dê cá um abraço! outro! mais outro! adeus!
Tinha os olhos úmidos deveras; levava a
cara dos desenganados, como quem empregou em um só bilhete todas as suas
economias de esperanças, e vê sair branco o maldito número, — um número tão
bonito!
CAPÍTULO LIII
A CAMINHO!
Fui para o seminário. Poupa-me as
outras despedidas. Minha mãe apertava-me ao peito. Prima Justina suspirava.
Talvez chorasse mal ou nada. Há pessoas a quem as lágrimas não acodem logo nem
nunca; diz-se que padecem mais que as outras. Prima Justina disfarçava
naturalmente os seus padecimentos íntimos, emendando os descuidos de minha mãe,
fazendo-me recomendações, dando ordens. Tio Cosme, quando eu lhe beijei a mão
em despedida, disse-me rindo:
— Anda lá, rapaz, volta-me papa!
José Dias, composto e grave, não dizia
nada a princípio; tínhamos falado na véspera, no quarto dele, onde fui ver se
era ainda possível evitar o seminário. Já não era, mas deu-me esperanças e
principalmente animou-me muito. Antes de um ano estaríamos a bordo. Como eu
achasse muito breve, explicou-se.
— Dizem que não é bom tempo de
atravessar o Atlântico, vou indagar; se não for, iremos em março ou abril.
— Posso estudar Medicina aqui mesmo.
José Dias correu os dedos pelos
suspensórios com um gesto de impaciência, apertou os beiços, até que
formalmente rejeitou o alvitre.
— Não duvidaria aprovar a idéia, disse
ele, se na Escola de Medicina não ensinassem, exclusivamente, a podridão
alopata. A alopatia é o erro dos séculos, e vai morrer; é o assassinato, é a
mentira, é a ilusão. Se lhe disserem que pode aprender na Escola de Medicina
aquela parte da ciência comum a todos os sistemas, é verdade; a alopatia é erro
na terapêutica. Fisiologia, anatomia, patologia, não são alopáticas nem
homeopáticas, mas é melhor aprender logo tudo de uma vez, por livros e por
língua de homens cultores da verdade…
Assim falara na véspera e no quarto.
Agora não dizia nada, ou proferia algum aforismo sobre a religião e a família;
lembro-me deste: “Dividi-lo com Deus é ainda possuí-lo”. Quando minha
mãe me deu o último beijo: “Quadro amantíssimo!” suspirou ele. Era
manhã de um lindo dia. Os moleques cochichavam; as escravas tomavam a bênção:
“Bênção, nhô Bentinho! não se esqueça de sua Joana! Sua Miquelina fica
rezando por você!” Na rua, José Dias insistiu nas esperanças:
— Agüente um ano; até lá tudo estará
arranjado.
CAPÍTULO LIV
PANEGÍRICO DE SANTA MÔNICA
No seminário… Ah! não vou contar o
seminário, nem me bastaria a isso um capítulo. Não, senhor meu amigo; algum
dia, sim, é possível que componha um abreviado do que ali vi e vivi, das
pessoas que tratei, dos costumes, de todo o resto. Esta sarna de escrever,
quando pega aos cinqüenta anos, não despega mais. Na mocidade é possível
curar-se um homem dela; e, sem ir mais longe, aqui mesmo no seminário tive um
companheiro que compôs versos, à maneira dos de Junqueira Freire, cujo livro de
frade-poeta era recente. Ordenou-se; anos depois encontrei-o no coro de São
Pedro e pedi-lhe que me mostrasse os versos novos.
— Que versos? perguntou meio espantado.
— Os seus. Pois não se lembra que no
seminário…
— Ah! sorriu ele.
Sorriu, e continuando a procurar num
livro aberto a hora em que tinha de cantar no dia seguinte, confessou-me que
não fizera mais versos depois de ordenado. Foram cócegas da mocidade; coçou-se,
passou, estava bom. E falou-me em prosa de uma infinidade de coisas do dia, a
vida cara, um sermão do Padre X…, uma vigairaria mineira…
Contrário a isso foi um seminarista que
não seguiu a carreira. Chamava-se… Não é preciso dizer o nome; baste o caso.
Tinha composto um Panegírico de Santa Mônica, elogiado por algumas
pessoas e então lido entre os seminaristas. Alcançou licença de imprimi-lo, e
dedicou-o a Santo Agostinho. Tudo isso é história velha; o que é mais moço é
que um dia, em 1882, indo ver certo negócio em repartição de marinha, ali dei
com este meu colega, feito chefe de uma seção administrativa. Deixara
seminário, deixara letras, casara e esquecera tudo, menos o Panegírico
de Santa Mônica, umas vinte e nove páginas, que veio distribuindo pela vida
fora. Como eu precisasse de algumas informações, fui pedir-lhas, e seria
impossível achar melhor nem mais pronta vontade; deu-me tudo, claro, certo,
copioso. Naturalmente conversamos do passado, memórias pessoais, casos de
estudo, incidentes de nada, um livro, um verbo, um mote, toda a velha palhada
saiu cá fora, e rimos juntos, e suspiramos de companhia. Vivemos algum tempo do
nosso velho seminário. Ou porque eram dele, ou porque éramos então moços, as
recordações traziam tal poder de felicidade que, se alguma sombra contrária
houve então, não apareceu agora. Ele confessou-me que perdera de vista todos os
companheiros do seminário.
— Também eu, quase todos; uma vez
ordenados, voltaram naturalmente às suas províncias, e os daqui tomaram
vigairarias fora.
— Bom tempo! suspirou ele.
E, após alguma reflexão, fitando em mim
uns olhos murchos e teimosos, perguntou-me:
— Conservou o meu Panegírico?
Não achei nada que dizer; tentei mover
os beiços, mas não tinha palavra; afinal, perguntei:
— Panegírico? Que panegírico?
— O meu Panegírico de Santa
Mônica.
Não me lembrou logo, mas a explicação
devia bastar; e depois de alguns instantes de pesquisa mental, respondi que por
muito tempo o conservara, mas as mudanças, as viagens…
— Hei de levar-lhe um exemplar.
Antes de vinte e quatro horas estava em
minha casa, com o folheto, um velho folheto de vinte e seis anos, encardido,
manchado do tempo, mas sem lacuna, com uma dedicatória manuscrita e respeitosa.
— É o penúltimo exemplar, disse-me;
agora só me resta um, que não posso dar a ninguém.
E como me visse folhear o opúsculo:
— Veja se lhe lembra algum pedaço,
disse-me.
Vinte e seis anos de intervalo fazem
morrer amizades mais estreitas e assíduas, mas era cortesia, era quase caridade
recordar alguma lauda; li uma delas, acentuando certas frases para lhe dar a
impressão de que achavam eco em minha memória. Concordou que fossem belas, mas
preferia outras, e apontou-as.
— Recorda-se bem?
— Perfeitamente. Panegírico de
Santa Mônica! Como isto me faz remontar os anos da minha mocidade! Nunca me
esqueceu o seminário, creia. Os anos passam, os acontecimentos vêm uns sobre
outros, e as sensações também, e vieram amizades novas, que também se foram
depois, como é lei da vida… Pois, meu caro colega, nada fez apagar aquele
tempo da nossa convivência, os padres, as lições, os recreios… os nossos
recreios, lembra-se? o Padre Lopes, oh! o Padre Lopes…
Ele, com os olhos no ar, devia estar
ouvindo, e naturalmente ouvia, mas só me disse uma palavra, e ainda assim
depois de algum tempo de silêncio, recolhendo os olhos e um suspiro!
— Tem agradado muito este meu Panegírico!
CAPÍTULO LV
UM SONETO
Dita a palavra, apertou-me as mãos com
as forças todas de um vasto agradecimento, despediu-se e saiu. Fiquei só com
o Panegírico, e o que as folhas dele me lembraram foi tal que
merece um capítulo ou mais. Antes, porém, e porque também eu tive o meu Panegírico,
contarei a história de um soneto que nunca fiz. Era no tempo do seminário, e o
primeiro verso é o que ides ler:
Oh! flor do céu! oh! flor cândida e
pura!
Como e por que me saiu este verso da
cabeça, não sei; saiu assim, estando eu na cama, como uma exclamação solta, e,
ao notar que tinha a medida de verso, pensei em compor com ele alguma coisa, um
soneto. A insônia, musa de olhos arregalados, não me deixou dormir uma longa
hora ou duas; as cócegas pediam-me unhas, e eu coçava-me com alma. Não escolhi
logo, logo, o soneto; a princípio cuidei de outra forma, e tanto de rima como
de verso solto, mas afinal ative-me ao soneto. Era um poema breve e prestadio.
Quanto à idéia, o primeiro verso não era ainda uma idéia, era uma exclamação; a
idéia viria depois. Assim na cama, envolvido no lençol, tratei de poetar. Tinha
o alvoroço da mãe que sente o filho, e o primeiro filho. Ia ser poeta, ia
competir com aquele monge da Bahia, pouco antes revelado, e então na moda; eu,
seminarista, diria em verso as minhas tristezas, como ele dissera as suas no
claustro. Decorei bem o verso, e repetia-o em voz baixa, aos lençóis;
francamente, achava-o bonito, e ainda agora não me parece mau:
Oh! flor do céu! oh! flor cândida e
pura!
Quem era a flor? Capitu, naturalmente;
mas podia ser a virtude, a poesia, a religião, qualquer outro conceito a que
coubesse a metáfora da flor, e flor do céu. Aguardei o resto, recitando sempre
o verso, e deitado ora sobre o lado direito, ora sobre o esquerdo; afinal
deixei-me estar de costas, com os olhos no teto, mas nem assim vinha mais nada.
Então adverti que os sonetos mais gabados eram os que concluíam com chave de
ouro, isto é, um desses versos capitais no sentido e na forma. Pensei em forjar
uma de tais chaves, considerando que o verso final, saindo cronologicamente dos
treze anteriores, com dificuldade traria a perfeição louvada; imaginei que tais
chaves eram fundidas antes da fechadura. Assim foi que me determinei a compor o
último verso do soneto e, depois de muito suar, saiu este:
Perde-se a vida, ganha-se a batalha!
Sem vaidade, e falando como se fosse de
outro, era um verso magnífico. Sonoro, não há dúvida. E tinha um pensamento, a
vitória ganha à custa da própria vida, pensamento alevantado e nobre. Que não
fosse novidade, é possível, mas também não era vulgar; e ainda agora não
explico por que via misteriosa entrou numa cabeça de tão poucos anos. Naquela
ocasião achei-o sublime. Recitei uma e muitas vezes a chave de ouro; depois
repeti os dois versos seguidamente, e dispus-me a ligá-los pelos doze centrais.
A idéia agora, à vista do último verso, pareceu-me melhor não ser Capitu; seria
a justiça. Era mais próprio dizer que, na pugna pela justiça, perder-se-ia
acaso a vida, mas a batalha ficava ganha. Também me ocorreu aceitar a batalha,
no sentido natural, e fazer dela a luta pela pátria, por exemplo; nesse caso a
flor do céu seria a liberdade. Esta acepção, porém, sendo o poeta um
seminarista, podia não caber tanto como a primeira, e gastei alguns minutos em
escolher uma ou outra. Achei melhor a justiça, mas afinal aceitei
definitivamente uma idéia nova, a caridade, e recitei os dois versos, cada um a
seu modo, um languidamente:
Oh! flor do céu! oh! flor cândida e
pura!
e o outro com grande brio:
Perde-se a vida, ganha-se a batalha!
A sensação que tive é que ia sair um
soneto perfeito. Começar bem e acabar bem não era pouco. Para me dar um banho
de inspiração, evoquei alguns sonetos célebres, e notei que os mais deles eram
facílimos; os versos saíam uns dos outros, com a idéia em si, tão naturalmente,
que se não acabava de crer se ela é que os fizera, se eles é que a suscitavam.
Então tornava ao meu soneto, e novamente repetia o primeiro verso e esperava o
segundo; o segundo não vinha, nem terceiro, nem quarto; não vinha nenhum. Tive
alguns ímpetos de raiva, e mais de uma vez pensei em sair da cama e ir ver
tinta e papel; pode ser que, escrevendo, os versos acudissem, mas…
Cansado de esperar, lembrou-me alterar
o sentido do último verso, com a simples transposição de duas palavras, assim:
Ganha-se a vida, perde-se a batalha!
O sentido vinha a ser justamente o
contrário, mas talvez isso mesmo trouxesse a inspiração. Neste caso, era uma
ironia: não exercendo a caridade, pode-se ganhar a vida, mas perde-se a batalha
do Céu. Criei forças novas e esperei. Não tinha janela; se tivesse, é possível
que fosse pedir uma idéia à noite. E quem sabe se os vaga-lumes, luzindo cá
embaixo, não seriam para mim como rimas das estrelas, e esta viva metáfora não
me daria os versos esquivos, com os seus consoantes e sentidos próprios?
Trabalhei em vão, busquei, catei,
esperei, não vieram os versos. Pelo tempo adiante escrevi algumas páginas em
prosa, e agora estou compondo esta narração, não achando maior dificuldade que
escrever, bem ou mal. Pois, senhores, nada me consola daquele soneto que não
fiz. Mas, como eu creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os
dramas, e as demais obras de arte, por uma razão de ordem metafísica, dou esses
dois versos ao primeiro desocupado que os quiser. Ao domingo, ou se estiver
chovendo, ou na roça, em qualquer ocasião de lazer, pode tentar ver se o soneto
sai. Tudo é dar-lhe uma idéia e encher o centro que falta.
CAPÍTULO LVI
UM SEMINARISTA
Tudo me ia repetindo o diabo do
opúsculo, com as suas letras velhas e citações latinas. Vi sair daquelas folhas
muitos perfis de seminaristas, os irmãos Albuquerques, por exemplo, um dos
quais é cônego na Bahia, enquanto o outro seguiu Medicina e dizem haver
descoberto um específico contra a febre amarela. Vi o Bastos, um magricela, que
está de vigário em Meia-Ponte, se não morreu já; Luís Borges, apesar de padre,
fez-se político, e acabou senador do império… Quantas outras caras me fitavam
das páginas frias do Panegírico! Não, não eram frias; traziam o calor
da juventude nascente, o calor do passado, o meu próprio calor. Queria lê-las
outra vez, e lograva entender algum texto, tão recente como no primeiro dia,
ainda que mais breve. Era um encanto ir por ele; às vezes, inconscientemente,
dobrava a folha como se estivesse lendo de verdade; creio que era quando os
olhos me caíam na palavra do fim da página, e a mão, acostumada a ajudá-los,
fazia o seu ofício…
Eis aqui outro seminarista. Chamava-se
Ezequiel de Sousa Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco
fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo. Quem não
estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde
lhe pegasse. Não fitava de rosto, não falava claro nem seguido; as mãos não
apertavam as outras, nem se deixavam apertar delas, porque os dedos, sendo
delgados e curtos, quando a gente cuidava tê-los entre os seus, já não tinha
nada. O mesmo digo dos pés, que tão depressa estavam aqui como lá. Esta
dificuldade em pousar foi a maior obstáculo que achou para tomar os costumes do
seminário. O sorriso era instantâneo, mas também ria folgado e largo. Uma coisa
não seria tão fugitiva como o resto, a reflexão; íamos dar com ele, muita vez,
olhos enfiados em si, cogitando. Respondia-nos sempre que meditava algum ponto
espiritual, ou então que recordava a lição da véspera. Quando ele entrou na
minha intimidade pedia-me freqüentemente explicações e repetições miúdas, e
tinha memória para guardá-las todas, até as palavras. Talvez esta faculdade
prejudicasse alguma outra.
Era mais velho que eu três anos, filho
de um advogado de Curitiba, aparentado com um comerciante do Rio de Janeiro,
que servia de correspondente ao pai. Este era homem de fortes sentimentos
católicos. Escobar tinha uma irmã, que era um anjo, dizia ele.
— Não é só na beleza que é um anjo, mas
também na bondade. Não imagina que boa criatura que ela é. Escreve-me muita
vez, hei de mostrar-lhe as cartas dela.
De fato, eram simples e afetuosas,
cheias de carícias e conselhos. Escobar contava-me histórias dela,
interessantes, todas as quais vinham a dar na bondade e no espírito daquela
criatura; tais eram que me fariam capaz de acabar casando com ela, se não fosse
Capitu. Morreu pouco depois. Eu, seduzido pelas palavras dele, estive quase a
contar-lhe logo, logo, a minha história. A princípio fui tímido, mas ele fez-se
entrado na minha confiança. Aqueles modos fugitivos cessavam quando ele queria,
e o meio e o tempo os fizeram mais pousados. Escobar veio abrindo a alma toda,
desde a porta da rua até ao fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é
uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e
ar puro. Também as há fechadas e escuras, sem janelas, ou com poucas e
gradeadas, à semelhança de conventos e prisões. Outrossim, capelas e bazares,
simples alpendres ou paços suntuosos.
Não sei o que era a minha. Eu não era
ainda casmurro, nem dom casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas
como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar
empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que…
CAPÍTULO LVII
DE PREPARAÇÃO
Ah! mas não eram só os seminaristas que
me iam saindo daquelas folhas velhas do Panegírico. Elas me
trouxeram também sensações passadas, tais e tantas que eu não poderia dizê-las
todas, sem tirar espaço ao resto. Uma dessas, e das primeiras, quisera contá-la
aqui em latim. Não é que a matéria não ache termos honestos em nossa língua,
que é casta para os castos, como pode ser torpe para os torpes. Sim, leitora
castíssima, como diria o meu finado José Dias, podeis ler o capítulo até ao
fim, sem susto nem vexame.
Já agora meto a história em outro
capítulo. Por mais composto que este me saia, há sempre no assunto alguma coisa
menos austera, que pede umas linhas de repouso e preparação. Sirva este de
preparação. E isto é muito, leitor meu amigo; o coração, quando examina a
possibilidade do que há de vir, as proporções dos acontecimentos e a cópia
deles, fica robusto e disposto, e o mal é menor mal. Também, se não fica então,
não fica nunca. E aqui verás tal ou qual esperteza minha; porquanto, ao ler o
que vais ler, é provável que o aches menos cru do que esperavas.
CAPÍTULO LVIII
O TRATADO
Foi o caso que, uma segunda-feira,
voltando eu para o seminário, vi cair na rua uma senhora. O meu primeiro gesto,
em tal caso, devia ser de pena ou de riso; não foi uma nem outra coisa,
porquanto (e é isto que eu quisera dizer em latim), porquanto a senhora tinha
as meias muito lavadas, e não as sujou, levava ligas de seda, e não as perdeu.
Várias pessoas acudiram, mas não tiveram tempo de a levantar; ela ergueu-se
muito vexada, sacudiu-se, agradeceu, e enfiou pela rua próxima.
— Este gosto de imitar as francesas da
Rua do Ouvidor, dizia-me José Dias andando e comentando a queda, é
evidentemente um erro. As nossas moças devem andar como sempre andaram, com seu
vagar e paciência, e não este tique-tique afrancesado…
Eu mal podia ouvi-lo. As meias e as
ligas da senhora branqueavam e enroscavam-se diante de mim, e andavam, caíam,
erguiam-se e iam-se embora. Quando chegamos à esquina, olhei para a outra rua,
e vi, a distância, a nossa desastrada, que ia no mesmo passo, tique-tique,
tique-tique…
— Parece que não se machucou, disse eu.
— Tanto melhor para ela, mas é impossível
que não tenha arranhado os joelhos; aquela presteza é manha…
Creio que foi “manha” que ele
disse; eu fiquei “nos joelhos arranhados”. Dali em diante, até o
seminário, não vi mulher na rua, a quem não desejasse uma queda; a algumas
adivinhei que traziam as meias esticadas e as ligas justas… Tal haveria que
nem levasse meias… Mas eu as via com elas… Ou então… Também é possível…
Vou esgarçando isto com reticências,
para dar uma idéia das minhas idéias, que eram assim difusas e confusas; com
certeza não dou nada. A cabeça ia-me quente, e o andar não era seguro. No
seminário, a primeira hora foi insuportável. As batinas traziam ar de saias, e
lembravam-me a queda da senhora. Já não era uma só que eu via cair; todas as
que eu encontrara na rua, mostravam-me agora de relance as ligas azuis; eram
azuis. De noite, sonhei com elas. Uma multidão de abomináveis criaturas veio
andar à roda de mim, tique-tique… Eram belas, umas finas, outras grossas,
todas ágeis como o diabo. Acordei, busquei afugentá-las com esconjuros e outros
métodos, mas tão depressa dormi como tornaram, e, com as mãos presas em volta
de mim, faziam um vasto círculo de saias, ou, trepadas no ar, choviam pés e
pernas sobre a minha cabeça. Assim fui até madrugada. Não dormi mais; rezei
padre-nossos, ave-marias, e credos, e sendo este livro a verdade pura, é força
confessar que tive de interromper mais de uma vez as minhas orações para
acompanhar no escuro uma figura ao longe, tique-tique, tique-tique… Pegava
depressa na oração, sempre no meio para concertá-la bem, como se não tivesse
havido interrupção, mas certamente não unia a frase nova à antiga.
Vindo o mal pela manhã adiante, tentei
vencê-lo, mas por um modo que o não perdesse de todo. Sábios da Escritura,
adivinhai o que podia ser. Foi isto. Não podendo rejeitar de mim aqueles
quadros, recorri a um tratado entre a minha consciência e a minha imaginação.
As visões feminis seriam de ora avante consideradas como simples encarnações
dos vícios, e por isso mesmo contempláveis, como o melhor modo de temperar o
caráter e aguerri-lo para os combates ásperos da vida. Não formulei isto por
palavras, nem foi preciso; o contrato fez-se tacitamente, com alguma
repugnância, mas fez-se. E por alguns dias, era eu mesmo que evocava as visões
para fortalecer-me, e não as rejeitava, senão quando elas mesmas, de cansadas,
se iam embora.
CAPÍTULO LIX
CONVIVAS DE BOA MEMÓRIA
Há dessas reminiscências que não
descansam antes que a pena ou a língua as publique. Um antigo dizia arrenegar de
conviva que tem boa memória. A vida é cheia de tais convivas, e eu sou acaso um
deles, conquanto a prova de ter a memória fraca seja exatamente não me acudir
agora o nome de tal antigo; mas era um antigo, e basta.
Não, não, a minha memória não é boa. Ao
contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem
guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstâncias. A quem passe
a vida na mesma casa de família, com os seus eternos móveis e costumes, pessoas
e afeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. Como eu
invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não
atino com a das que enfiei ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro
essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão.
E antes seja olvido que confusão;
explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos
livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O
que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que
não achei nele. Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões
profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos
me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, os seus altares; e os
generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as
notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista.
É que tudo se acha fora de um livro
falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher
as minhas.
CAPÍTULO LX
QUERIDO OPÚSCULO
Assim fiz eu ao Panegírico de
Santa Mônica, e fiz mais: pus-lhe não só o que faltava da santa, mas ainda
coisas que não eram dela. Viste o soneto, as meias, as ligas, o seminarista
Escobar e vários outros. Vais agora ver o mais que naquele dia me foi saindo
das páginas amarelas do opúsculo.
Querido opúsculo, tu não prestavas para
nada, mas que mais presta um velho par de chinelas? Entretanto, há muita vez no
casal de chinelas um como aroma e calor de dois pés. Gastas e rotas, não deixam
de lembrar que uma pessoa as calçava de manhã, ao erguer da cama, ou as
descalçava à noite, ao entrar nela. E se a comparação não vale, porque as
chinelas são ainda uma parte da pessoa e tiveram o contato dos pés, aqui estão
outras lembranças, como a pedra da rua, a porta da casa, um assobio particular,
um pregão de quitanda, como aquele das cocadas que contei no cap. XVIII.
Justamente, quando contei o pregão das cocadas, fiquei tão curtido de saudades
que me lembrou fazê-lo escrever por um amigo, mestre de música, e grudá-lo às
pernas do capítulo. Se depois jarretei o capítulo, foi porque outro músico, a
quem o mostrei, me confessou ingenuamente não achar no trecho escrito nada que
lhe acordasse saudades. Para que não aconteça o mesmo aos outros profissionais
que porventura me lerem, melhor é poupar ao editor do livro o trabalho e a
despesa da gravura. Vês que não pus nada, nem ponho. Já agora creio que não
basta que os pregões de rua, como os opúsculos de seminário, encerrem casos,
pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no
tempo, sem o que tudo é calado e incolor.
Mas, vamos ao mais que me foi saindo
das páginas amarelas.
CAPÍTULO LXI
A VACA DE HOMERO
O mais foi muito. Vi saírem os
primeiros dias da separação, duros e opacos, sem embargo das palavras de
conforto que me deram os padres e os seminaristas, e as de minha mãe e tio
Cosme, trazidas por José Dias ao seminário.
— Todos estão saudosos, disse-me este,
mas a maior saudade está naturalmente no maior dos corações; e qual é ele?
perguntou escrevendo a resposta nos olhos.
— Mamãe, acudi eu.
José Dias apertou-me as mãos com
alvoroço, e logo pintou a tristeza de minha mãe, que falava de mim todos os
dias, quase a todas as horas. Como a aprovasse sempre, e acrescentasse alguma
palavra relativamente aos dotes que Deus lhe dera, o desvanecimento de minha
mãe nessas ocasiões era indescritível; e contava-me tudo isso cheio de uma
admiração lacrimosa. Tio Cosme também se enternecia muito.
— Ontem até se deu um caso
interessante. Tendo eu dito à Excelentíssima que Deus lhe dera, não um filho,
mas um anjo do céu, o doutor ficou tão comovido que não achou outro modo de
vencer o choro senão fazendo-me um daqueles elogios de galhofa que só ele sabe.
Não é preciso dizer que D. Glória enxugou furtivamente uma lágrima. Ou ela não
fosse mãe! Que coração amantíssimo!
— Mas, Sr. José Dias, e a minha saída
daqui?
— Isso é negócio meu. A viagem à Europa
é o que é preciso, mas pode fazer-se daqui a um ou dois anos, em 1859 ou
1860…
— Tão tarde!
— Era melhor que fosse este mesmo ano,
mas demos tempo ao tempo. Tenha paciência, vá estudando, não se perde nada em
ir sabendo já daqui alguma coisa; e, demais, ainda não acabando padre, a vida do
seminário é útil, e vale sempre entrar no mundo ungido com os santos óleos da
teologia…
Neste ponto, — lembra-me como se fosse
hoje, — os olhos de José Dias fulguraram tão intensamente que me encheram de
espanto. As pálpebras caíram depois, e assim ficaram por alguns instantes, até
que novamente se ergueram, e os olhos fixaram-se na parede do pátio, como que
embebidos em alguma coisa, se não era em si mesmos; depois despegaram-se da
parede e entraram a vagar pelo pátio todo. Podia compará-lo aqui à vaca de
Homero; andava e gemia em volta da cria que acabava de parir. Não lhe perguntei
o que é que tinha, já por acanhamento, já porque dois lentes, um deles de
teologia, vinham caminhando na nossa direção. Ao passarem por nós, o agregado,
que os conhecia, cortejou-os com as deferências devidas, e pediu-lhes notícias
minhas.
— Por ora nada se pode afiançar, disse
um deles, mas parece que dará conta da mão.
— É o que eu lhe dizia agora mesmo,
acudiu José Dias. Conto ouvir-lhe a missa nova; mas ainda que não chegue a
ordenar-se, não pode ter melhores estudos que os que fizer aqui. Para a viagem
da existência, concluiu demorando mais as palavras, irá ungido com os santos
óleos da teologia…
Desta vez a fulguração dos olhos foi
menor, as pálpebras não lhe caíram nem as pupilas fizeram os movimentos
anteriores. Ao contrário, todo ele era atenção e interrogação; quando muito, um
sorriso claro e amigo lhe errava nos lábios. O lente de teologia gostou da
metáfora, e disse-lho; ele agradeceu, explicando que eram idéias que lhe
escapavam no correr da conversação; não escrevia nem orava. Eu é que não gostei
nada; e logo que os lentes se foram, sacudi a cabeça:
— Não quero saber dos santos óleos da
teologia; desejo sair daqui o mais cedo que puder, ou já…
— Já, meu anjo, não pode ser; mas pode
suceder que muito antes do que imaginamos. Quem sabe se este mesmo ano de 58?
Tenho um plano feito, e penso já nas palavras com que hei de expô-lo a D.
Glória; estou certo que ela cederá e irá conosco.
— Duvido que mamãe embarque.
— Veremos. Mãe é capaz de tudo; mas,
com ela ou sem ela, tenho por certa a nossa ida, e não haverá esforço que eu
não empregue, deixe estar. Paciência é que é preciso. E não faça aqui nada que
dê lugar a censuras ou queixas; muita docilidade e toda a aparente satisfação.
Não ouviu o elogio do lente? É que você tem-se portado bem. Pois continue.
— Mas, 1859 ou 1860 é muito tarde.
— Será este ano, replicou José Dias.
— Daqui a três meses?
— Ou seis.
— Não; três meses.
— Pois sim. Tenho agora um plano, que
me parece melhor que outro qualquer. É combinar a ausência de vocação
eclesiástica e a necessidade de mudar de ares. Você por que não tosse?
— Por que não tusso?
— Já, já, não, mas eu hei de avisar
você para tossir, quando for preciso, aos poucos, uma tossezinha seca, e algum
fastio; eu irei preparando a Excelentíssima… Oh! tudo isto é em benefício
dela. Uma vez que o filho não pode servir a Igreja, como deve ser servida, o
melhor modo de cumprir a vontade de Deus é dedicá-lo a outra coisa. O mundo
também é igreja para os bons…
Pareceu-me outra vez a vaca de Homero,
como se este “mundo também é igreja para os bons”, fosse outro
bezerro, irmão dos “santos óleos da teologia”.Mas não dei tempo à ternura
materna, e repliquei:
— Ah! entendo! mostrar que estou doente
para embarcar, não é?
José Dias hesitou um pouco, depois
explicou-se:
— Mostrar a verdade, porque,
francamente, Bentinho, eu há meses que desconfio do seu peito. Você não anda
bom do peito. Em pequeno, teve umas febres e uma ronqueira… Passou tudo, mas
há dias em que está mais descorado. Não digo que já seja o mal, mas o mal pode
vir depressa. Numa hora cai a casa. Por isso, se aquela santa senhora não
quiser ir conosco, — ou para que vá mais depressa, acho que uma boa tosse… Se
a tosse há de vir de verdade, melhor é apressá-la… Deixe estar, eu aviso…
— Bem, mas em saindo daqui não há de
ser para embarcar logo; saio primeiro, depois cuidaremos do embarque; o
embarque é que pode ficar para o ano. Não dizem que o melhor tempo é abril ou
maio? Pois seja maio. Primeiro deixo o seminário, daqui a dois meses…
E porque a palavra me estivesse a
pigarrear na garganta, dei uma volta rápida, e perguntei-lhe à queima-roupa:
— Capitu como vai?
CAPÍTULO LXII
UMA PONTA DE IAGO
A pergunta era imprudente, na ocasião
em que eu cuidava de transferir o embarque. Equivalia a confessar que o motivo
principal ou único da minha repulsa ao seminário era Capitu, e fazer crer
improvável a viagem. Compreendi isto depois que falei; quis emendar-me, mas nem
soube como, nem ele me deu tempo.
— Tem andado alegre, como sempre; é uma
tontinha. Aquilo, enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com
ela…
Estou que empalideci; pelo menos, senti
correr um frio pelo corpo todo. A notícia de que ela vivia alegre, quando eu
chorava todas as noites, produziu-me aquele efeito, acompanhado de um bater de
coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvi-lo. Há alguma exageração
nisto; mas o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e
partes diminutas, que se compensam, ajustando-se. Por outro lado, se
entendermos que a audiência aqui não é das orelhas, senão da memória,
chegaremos à exata verdade. A minha memória ouve ainda agora as pancadas do coração
naquele instante. Não esqueças que era a emoção do primeiro amor. Estive quase
a perguntar a José Dias que me explicasse a alegria de Capitu, o que é que ela
fazia, se vivia rindo, cantando ou pulando, mas retive-me a tempo, e depois
outra idéia…
Outra idéia, não, — um sentimento cruel
e desconhecido, o puro ciúme, leitor das minhas entranhas. Tal foi o que me
mordeu, ao repetir comigo as palavras de José Dias: “Algum peralta da
vizinhança”.Em verdade, nunca pensara em tal desastre. Vivia tão nela, dela e
para ela, que a intervenção de um peralta era como uma noção sem realidade;
nunca me acudiu que havia peraltas na vizinhança, vária idade e feitio, grandes
passeadores das tardes. Agora lembrava-me que alguns olhavam para Capitu, — e
tão senhor me sentia dela que era como se olhassem para mim, um simples dever
de admiração e de inveja. Separados um do outro pelo espaço e pelo destino, o
mal aparecia-me agora, não só possível, mas certo. E a alegria de Capitu
confirmava a suspeita; se ela vivia alegre é que já namorava a outro,
acompanhá-lo-ia com os olhos na rua, falar-lhe-ia à janela, às ave-marias,
trocariam flores e…
E… quê? Sabes o que é que trocariam
mais; se o não achas por ti mesmo, escusado é ler o resto do capítulo e do
livro, não acharás mais nada, ainda que eu o diga com todas as letras da
etimologia. Mas se o achaste, compreenderás que eu, depois de estremecer,
tivesse um ímpeto de atirar-me pelo portão fora, descer o resto da ladeira,
correr, chegar à casa do Pádua, agarrar Capitu e intimar-lhe que me confessasse
quantos, quantos, quantos já lhe dera o peralta da vizinhança. Não fiz nada. Os
mesmos sonhos que ora conto não tiveram, naqueles três ou quatro minutos, esta
lógica de movimentos e pensamentos. Eram soltos, emendados e mal emendados, com
o desenho truncado e torto, uma confusão, um turbilhão, que me cegava e
ensurdecia. Quando tornei a mim, José Dias concluía uma frase, cujo princípio
não ouvi, e o mesmo fim era vago: “A conta que dará de si”.Que conta e
quem? Cuidei naturalmente que falava ainda de Capitu, e quis perguntar-lho, mas
a vontade morreu ao nascer, como tantas outras gerações delas. Limitei-me a
inquirir do agregado quando é que iria a casa ver minha mãe.
— Estou com saudades de mamãe. Posso ir
já esta semana?
— Vai sábado.
— Sábado? Ah! sim! sim! Peça a mamãe
que me mande buscar sábado! Sábado! Este sábado, não? Que me mande buscar, sem
falta.
CAPÍTULO LXIII
METADES DE UM SONHO
Fiquei ansioso pelo sábado. Até lá os
sonhos perseguiam-me, ainda acordado, e não os digo aqui para não alongar esta
parte do livro. Um só ponho, e no menor número de palavras, ou antes porei
dois, porque um nasceu de outro, a não ser que ambos formem duas metades de um
só. Tudo isto é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso sexo, que
perturbava assim a adolescência de um pobre seminarista. Não fosse ele, e este
livro seria talvez uma simples prática paroquial, se eu fosse padre, ou uma
pastoral, se bispo, ou uma encíclica, se papa, como me recomendara tio Cosme:
“Anda lá, meu rapaz, volta-me papa!” Ah! por que não cumpri esse
desejo? Depois de Napoleão, tenente e imperador, todos os destinos estão neste
século.
Quanto ao sonho foi isto. Como
estivesse a espiar os peraltas da vizinhança, vi um destes que conversava com a
minha amiga ao pé da janela. Corri ao lugar, ele fugiu; avancei para Capitu,
mas não estava só, tinha o pai ao pé de si, enxugando os olhos e mirando um
triste bilhete de loteria. Não me parecendo isto claro, ia pedir a explicação,
quando ele de si mesmo a deu; o peralta fora levar-lhe a lista dos prêmios da
loteria, e o bilhete saíra branco. Tinha o número 4004. Disse-me que esta
simetria de algarismos era misteriosa e bela, e provavelmente a roda andara
mal; era impossível que não devesse ter a sorte grande. Enquanto ele falava,
Capitu dava-me com os olhos todas as sortes grandes e pequenas. A maior destas
devia ser dada com a boca. E aqui entra a segunda parte do sonho. Pádua
desapareceu, como as suas esperanças do bilhete, Capitu inclinou-se para fora, eu
relancei os olhos pela rua, estava deserta. Peguei-lhe nas mãos, resmunguei não
sei que palavras, e acordei sozinho no dormitório.
O interesse do que acabas de ler não
está na matéria do sonho, mas nos esforços que fiz para ver se dormia novamente
e pegava nele outra vez. Nunca dos nuncas poderás saber a energia e obstinação
que empreguei em fechar os olhos, apertá-los bem, esquecer tudo para dormir,
mas não dormia. Esse mesmo trabalho fez-me perder o sono até à madrugada. Sobre
a madrugada, consegui conciliá-lo, mas então nem peraltas, nem bilhetes de
loteria, nem sortes grandes ou pequenas, — nada dos nadas veio ter comigo. Não
sonhei mais aquela noite, e dei mal as lições daquele dia.
CAPÍTULO LXIV
UMA IDÉIA E UM ESCRÚPULO
Relendo o capítulo passado, acode-me
uma idéia e um escrúpulo. O escrúpulo é justamente de escrever a idéia, não a
havendo mais banal na terra, posto que daquela banalidade do sol e da lua, que
o Céu nos dá todos os dias e todos os meses. Deixei o manuscrito, e olhei para
as paredes. Sabes que esta casa do Engenho Novo, nas dimensões, disposições e
pinturas, é reprodução da minha antiga casa de Mata-cavalos. Outrossim, como te
disse no capítulo II, o meu fim em imitar a outra foi ligar as duas pontas da
vida, o que aliás não alcancei. Pois o mesmo sucedeu àquele sonho do seminário,
por mais que tentasse dormir e dormisse. Donde concluo que um dos ofícios do
homem é fechar e apertar muito os olhos, e ver se continua pela noite velha o
sonho truncado na noite moça. Tal é a idéia banal e nova que eu não quisera pôr
aqui, e só provisoriamente a escrevo.
Antes de concluir este capítulo, fui à
janela indagar da noite por que razão os sonhos hão de ser assim tão tênues que
se esgarçam ao menor abrir de olhos ou voltar de corpo, e não continuam mais. A
noite não me respondeu logo. Estava deliciosamente bela, os morros palejavam de
luar e o espaço morria de silêncio. Como eu insistisse, declarou-me que os
sonhos já não pertencem à sua jurisdição. Quando eles moravam na ilha que
Luciano lhes deu, onde ela tinha o seu palácio, e donde os fazia sair com as
suas caras de vária feição, dar-me-ia explicações possíveis. Mas os tempos
mudaram tudo. Os sonhos antigos foram aposentados, e os modernos moram no
cérebro da pessoa. Estes, ainda que quisessem imitar os outros, não poderiam
fazê-lo; a ilha dos sonhos, como a dos amores, como todas as ilhas de todos os
mares, são agora objeto da ambição e da rivalidade da Europa e dos Estados
Unidos.
Era uma alusão às Filipinas. Pois que
não amo a política, e ainda menos a política internacional, fechei a janela e
vim acabar este capítulo para ir dormir. Não peço agora os sonhos de Luciano,
nem outros, filhos da memória ou da digestão; basta-me um sono quieto e
apagado. De manhã, com a fresca, irei dizendo o mais da minha história e suas
pessoas.
CAPÍTULO LXV
A DISSIMULAÇÃO
Chegou o sábado, chegaram outros
sábados, e eu acabei afeiçoando-me à vida nova. Ia alternando a casa e o
seminário. Os padres gostavam de mim, os rapazes também, e Escobar mais que os
rapazes e os padres. No fim de cinco semanas estive quase a contar a este as
minhas penas e esperanças; Capitu refreou-me.
— Escobar é muito meu amigo, Capitu!
— Mas não é meu amigo.
— Pode vir a ser; ele já me disse que
há de vir cá para conhecer mamãe.
— Não importa; você não tem direito de
contar um segredo que não é só seu, mas também meu, e eu não lhe dou licença de
dizer nada a pessoa nenhuma.
Era justo, calei-me e obedeci. Outra
coisa em que obedeci às suas reflexões foi logo no primeiro sábado, quando eu
fui à casa dela, e, após alguns minutos de conversa, me aconselhou a ir embora.
— Hoje não fique aqui mais tempo; vá
para casa, que eu lá vou logo. É natural que D. Glória queira estar com você
muito tempo, ou todo, se puder.
Em tudo isso mostrava a minha amiga
tanta lucidez que eu bem podia deixar de citar um terceiro exemplo, mas os
exemplos não se fizeram senão para ser citados, e este é tão bom que a omissão
seria um crime. Foi à minha terceira ou quarta vinda à casa. Minha mãe, depois
que lhe respondi as mil perguntas que me fez sobre o tratamento que me davam,
os estudos, as relações, a disciplina, e se me doía alguma coisa, e se dormia
bem, tudo o que a ternura das mães inventa para cansar a paciência de um filho,
concluiu voltando-se para José Dias:
— Sr. José Dias, ainda duvida que saia
daqui um bom padre?
— Excelentíssima…
— E você, Capitu, interrompeu minha mãe
voltando-se para a filha do Pádua que estava na sala, com ela, — você não acha
que o nosso Bentinho dará um bom padre?
— Acho que sim, senhora, respondeu
Capitu cheia de convicção.
Não gostei da convicção. Assim lhe
disse, na manhã seguinte, no quintal dela, recordando as palavras da véspera, e
lançando-lhe em rosto, pela primeira vez, a alegria que ela mostrara desde a
minha entrada no seminário, quando eu vivia curtido de saudades. Capitu fez-se
muito séria, e perguntou-me como é que queria que se portasse, uma vez que
suspeitavam de nós; também tivera noites desconsoladas, e os dias, em casa
dela, foram tão tristes como os meus; podia indagá-lo do pai e da mãe. A mãe
chegou a dizer-lhe, por palavras encobertas, que não pensasse mais em mim.
— Com D. Glória e D. Justina mostro-me
naturalmente alegre, para que não pareça que a denúncia de José Dias é verdadeira.
Se parecesse, elas tratariam de separar-nos mais, e talvez acabassem não me
recebendo… Para mim, basta o nosso juramento de que nos havemos de casar um
com outro.
Era isto mesmo; devíamos dissimular
para matar qualquer suspeita, e ao mesmo tempo gozar toda a liberdade anterior,
e construir tranqüilos o nosso futuro. Mas o exemplo completa-se com o que ouvi
no dia seguinte, ao almoço; minha mãe, dizendo tio Cosme que ainda queria ver
com que mão havia eu de abençoar o povo à missa, contou que, dias antes,
estando a falar de moças que se casam cedo, Capitu lhe dissera: “Pois a
mim quem me há de casar há de ser o Padre Bentinho; eu espero que ele se
ordene!” Tio Cosme riu da graça, José Dias não dessorriu, só prima Justina
é que franziu a testa, e olhou para mim interrogativamente. Eu, que havia
olhado para todos, não pude resistir ao gesto da prima, e tratei de comer. Mas
comi mal; estava tão contente com aquela grande dissimulação de Capitu que não
vi mais nada, e, logo que almocei, corri a referir-lhe a conversa e a
louvar-lhe a astúcia. Capitu sorriu de agradecida.
— Você tem razão, Capitu, concluí eu;
vamos enganar toda esta gente.
— Não é? disse ela com ingenuidade.
CAPÍTULO LXVI
INTIMIDADE
Capitu ia agora entrando na alma de
minha mãe. Viviam o mais do tempo juntas, falando de mim, a propósito do sol e
da chuva, ou de nada; Capitu ia lá coser, às manhãs; alguma vez ficava para
jantar.
Prima Justina não acompanhava a parenta
naquelas finezas, mas não tratava de todo mal a minha amiga. Era assaz sincera
para dizer o mal que sentia de alguém, e não sentia bem de pessoa alguma.
Talvez do marido, mas o marido era morto; em todo caso, não existira homem
capaz de competir com ele na afeição, no trabalho e na honestidade, nas
maneiras e na agudeza de espírito. Esta opinião, segundo tio Cosme, era
póstuma, pois em vida andavam às brigas, e os últimos seis meses acabaram
separados. Tanto melhor para a justiça dela; o louvor dos mortos é um modo de
orar por eles. Também gostaria de minha mãe, ou se algum mal pensou dela foi
entre si e o travesseiro. Compreende-se que, de aparência, lhe desse a estima
devida. Não penso que ela aspirasse a algum legado; as pessoas assim dispostas
excedem os serviços naturais, fazem-se mais risonhas, mais assíduas,
multiplicam os cuidados, precedem os fâmulos. Tudo isso era contrário à
natureza de prima Justina, feita de azedume e de implicância. Como vivesse de
favor na casa, explica-se que não desestimasse a dona e calasse os seus
ressentimentos, ou só dissesse mal dela a Deus e ao Diabo.
Caso tivesse ressentimentos de minha
mãe, não era uma razão mais para detestar Capitu, nem ela precisava de razões
suplementares. Contudo, a intimidade de Capitu fê-la mais aborrecível à minha
parenta. Se a princípio não a tratava mal, com o tempo trocou de maneiras e
acabou fugindo-lhe. Capitu, atenta, desde que a não via, indagava dela e ia
procurá-la. Prima Justina tolerava esses cuidados. A vida é cheia de obrigações
que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringir deslavadamente.
Demais, Capitu usava certa magia que cativa; prima Justina acabava sorrindo,
ainda que azedo, mas a sós com minha mãe achava alguma palavra ruim que dizer
da menina.
Como minha mãe adoecesse de uma febre,
que a pôs às portas da morte, quis que Capitu lhe servisse de enfermeira. Prima
Justina, posto que isto a aliviasse de cuidados penosos, não perdoou à minha
amiga a intervenção. Um dia, perguntou-lhe se não tinha que fazer em casa;
outro dia, rindo, soltou-lhe este epigrama: “Não precisa correr tanto; o
que tiver de ser seu às mãos lhe há de ir”.
CAPÍTULO LXVII
UM PECADO
Já agora não tiro a doente da cama sem
contar o que se deu comigo. Ao cabo de cinco dias, minha mãe amanheceu tão
transtornada que ordenou me mandassem buscar ao seminário. Em vão tio Cosme:
— Mana Glória, você assusta-se sem
motivo, a febre passa…
— Não! não! mandem buscá-lo! Posso
morrer, e a minha alma não se salva, se Bentinho não estiver ao pé de mim.
— Vamos assustá-lo.
— Pois não lhe digam nada, mas vão
buscá-lo, já, já, não se demorem.
Cuidaram fosse delírio; mas, não
custando nada trazer-me, José Dias foi incumbido do recado. Entrou tão
atordoado que me assustou. Contou particularmente ao reitor o que havia, e
recebi licença para ir a casa. Na rua, íamos calados, ele não alterando o passo
do costume, — a premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da
conclusão, — mas cabisbaixo e suspirando, eu temendo ler no rosto dele alguma
notícia dura e definitiva. Só me falara na doença, como negócio simples; mas o
chamado, o silêncio, os suspiros podiam dizer alguma coisa mais. O coração
batia-me com força, as pernas bambeavam-me, mais de uma vez cuidei cair…
O anseio de escutar a verdade
complicava-se em mim com o temor de a saber. Era a primeira vez que a morte me
aparecia assim perto, me envolvia, me encarava com os olhos furados e escuros.
Quanto mais andava aquela Rua dos Barbonos, mais me aterrava a idéia de chegar
a casa, de entrar, de ouvir os prantos, de ver um corpo defunto… Oh! eu não
poderia nunca expor aqui tudo o que senti naqueles terríveis minutos. A rua,
por mais que José Dias andasse superlativamente devagar, parecia fugir-me
debaixo dos pés, as casas voavam de um e outro lado, e uma corneta que nessa
ocasião tocava no quartel dos Municipais Permanentes ressoava aos meus ouvidos
como a trombeta do juízo final.
Fui, cheguei aos Arcos, entrei na Rua
de Mata-cavalos. A casa não era logo ali, mas muito além da dos Inválidos,
perto da do Senado. Três ou quatro vezes, quisera interrogar o meu companheiro,
sem ousar abrir a boca; mas agora, já nem tinha tal desejo. Ia só andando,
aceitando o pior, como um gesto do destino, como uma necessidade da obra
humana, e foi então que a Esperança, para combater o Terror, me segredou ao coração,
não estas palavras, pois nada articulou parecido com palavras, mas uma idéia
que poderia ser traduzida por elas: “Mamãe defunta, acaba o
seminário”.
Leitor, foi um relâmpago. Tão depressa
alumiou a noite, como se esvaiu, e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo efeito
do remorso que me ficou. Foi uma sugestão da luxúria e do egoísmo. A piedade
filial desmaiou um instante, com a perspectiva da liberdade certa, pelo
desaparecimento da dívida e do devedor; foi um instante, menos que um instante,
o centésimo de um instante, ainda assim o suficiente para complicar a minha
aflição com um remorso.
José Dias suspirava. Uma vez olhou para
mim tão cheio de pena que me pareceu haver-me adivinhado, e eu quis pedir-lhe
que não dissesse nada a ninguém, que eu ia castigar-me, etc. Mas a pena trazia
tanto amor, que não podia ser pesar do meu pecado; mas então era sempre a morte
de minha mãe… Senti uma angústia grande, um nó na garganta, e não pude mais,
chorei de uma vez.
— Que é, Bentinho?
— Mamãe…?
— Não! não! Que idéia é essa? O estado
dela é gravíssimo, mas não é mal de morte, e Deus pode tudo. Enxugue os olhos,
que é feio um mocinho da sua idade andar chorando na rua. Não há de ser nada,
uma febre… As febres, assim como dão com força, assim também se vão embora…
Com os dedos, não; onde está o lenço?
Enxuguei os olhos, posto que de todas
as palavras de José Dias uma só me ficasse no coração; foi aquele gravíssimo.
Vi depois que ele só queria dizer grave, mas o uso do superlativo
faz a boca longa, e, por amor do período, José Dias fez crescer a minha
tristeza. Se achares neste livro algum caso da mesma família, avisa-me, leitor,
para que o emende na segunda edição; nada há mais feio que dar pernas
longuíssimas a idéias brevíssimas. Enxuguei os olhos, repito, e fui andando,
ansioso agora por chegar a casa, e pedir perdão a minha mãe do ruim pensamento
que tive. Enfim, chegamos, entramos, subi trêmulo os seis degraus da escada, e
daí a pouco, debruçado sobre a cama, ouvia as palavras ternas de minha mãe que
me apertava muito as mãos, chamando-me seu filho. Estava queimando, os olhos
ardiam nos meus, toda ela parecia consumida por um vulcão interno. Ajoelhei-me
ao pé do leito, mas como este era alto, fiquei longe das suas carícias:
— Não, meu filho, levanta, levanta!
Capitu, que estava na alcova, gostou de
ver a minha entrada, os meus gestos, palavras e lágrimas, segundo me disse
depois; mas não suspeitou naturalmente todas as causas da minha aflição.
Entrando no meu quarto, pensei em dizer tudo a minha mãe, logo que ela ficasse
boa, mas esta idéia não me mordia, era uma veleidade pura, uma ação que eu não
faria nunca, por mais que o pecado me doesse. Então, levado do remorso, usei
ainda uma vez do meu velho meio das promessas espirituais, e pedi a Deus que me
perdoasse e salvasse a vida de minha mãe, e eu lhe rezaria dois mil
padre-nossos. Padre que me lês, perdoa este recurso; foi a última vez que o
empreguei. A crise em que me achava, não menos que o costume e a fé, explica
tudo. Eram mais dois mil; onde iam os antigos? Não paguei uns nem outros, mas
saindo de almas cândidas e verdadeiras tais promessas são como a moeda
fiduciária, — ainda que o devedor as não pague, valem a soma que dizem.
CAPÍTULO LXVIII
ADIEMOS A VIRTUDE
Poucos teriam ânimo de confessar aquele
meu pensamento da Rua de Mata-cavalos. Eu confessarei
tudo o que importar à minha história. Montaigne escreveu de si: ce ne
sont pas mes gestes que j’escris; c’est moi, c’est mon essence. Ora, há só um modo de escrever a
própria essência, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me
vai lembrando e convidando à construção ou reconstrução de mim mesmo. Por
exemplo, agora que contei um pecado, diria com muito gosto alguma bela ação
contemporânea, se me lembrasse, mas não me lembra; fica transferida a melhor
oportunidade.
Nem perderás em esperar, meu amigo; ao
contrário, acode-me agora que… Não só as belas ações são belas em qualquer
ocasião, como são também possíveis e prováveis, pela teoria que tenho dos
pecados e das virtudes, não menos simples que clara. Reduz-se a isto que cada
pessoa nasce com certo número deles e delas, aliados por matrimônio para se
compensarem na vida. Quando um de tais cônjuges é mais forte que o outro, ele
só guia o indivíduo, sem que este, por não haver praticado tal virtude ou
cometido tal pecado, se possa dizer isento de um ou de outro; mas a regra é
dar-se a prática simultânea dos dois, com vantagem do portador de ambos, e
alguma vez com resplendor maior da Terra e do Céu. É pena que eu não possa
fundamentar isto com um ou mais casos estranhos; falta-me tempo.
Pelo que me toca, é certo que nasci com
alguns daqueles casais, e naturalmente ainda os possuo. Já me sucedeu, aqui no
Engenho Novo, por estar uma noite com muita dor de cabeça, desejar que o trem
da Central estourasse longe dos meus ouvidos e interrompesse a linha por muitas
horas, ainda que morresse alguém; e no dia seguinte perdi o trem da mesma
estrada, por ter ido dar a minha bengala a um cego que não trazia bordão. Voilà
mes gestes, voilà mon essence.
CAPÍTULO LXIX
A MISSA
Um dos gestos que melhor exprimem a
minha essência foi a devoção com que corri no domingo próximo a ouvir missa em
São Antônio dos Pobres. O agregado quis ir comigo, e principiou a vestir-se,
mas era tão lento nos suspensórios e nas presilhas, que não pude esperar por
ele. Demais, eu queria estar só. Sentia necessidade de evitar qualquer
conversação que me desviasse o pensamento do fim a que ia, e era reconciliar-me
com Deus, depois do que se passou no capítulo LXVII. Nem era só pedir-lhe
perdão do pecado, era também agradecer o restabelecimento de minha mãe, e,
visto que digo tudo, fazê-lo renunciar ao pagamento da minha promessa. Jeová,
posto que divino, ou por isso mesmo, é um Rothschild muito mais humano, e não
faz moratórias, perdoa as dívidas integralmente, uma vez que o devedor queira
deveras emendar a vida e cortar nas despesas. Ora, eu não queria outra coisa;
dali em diante não faria mais promessas que não pudesse pagar, e pagaria logo
as que fizesse.
Ouvi missa; ao levantar a Deus,
agradeci a vida e saúde de minha mãe; depois pedi perdão do pecado e revelação
da dívida, e recebi a bênção final do oficiante como um ato solene de
reconciliação. No fim, lembrou-me que a Igreja estabeleceu no confessionário um
cartório seguro, e na confissão o mais autêntico dos instrumentos para o ajuste
de contas morais entre o homem e Deus. Mas a minha incorrigível timidez me
fechou essa porta certa; receei não achar palavras com que dizer ao confessor o
meu segredo. Como o homem muda! Hoje chego a publicá-lo.
CAPÍTULO LXX
DEPOIS DA MISSA
Rezei ainda, persignei-me, fechei o
livro de missa e caminhei para a porta. A gente não era muita, mas a igreja
também não é grande, e não pude sair logo, logo, mas devagar. Havia homens e
mulheres, velhos e moços, sedas e chitas, e provavelmente olhos feios e belos,
mas eu não vi uns nem outros. Ia na direção da porta, com a onda, ouvindo as
saudações e os cochichos. No adro, onde se fez claro, parei e olhei para todos.
Vi então uma moça e um homem, que saíam da igreja e pararam; e a moça olhava
para mim falando ao homem, e o homem olhava para mim, ouvindo a moça. E
chegaram-me estas palavras:
— Mas que queres?
— Queria saber dela; papai pergunte.
Era sinhazinha Sancha, a companheira de
colégio de Capitu, que queria notícias de minha mãe. O pai veio a mim;
disse-lhe que estava restabelecida. Depois saímos, mostrou-me a casa dele, e,
como eu vinha na mesma direção, viemos juntos. Gurgel era homem de quarenta
anos ou pouco mais, com propensão a engrossar o ventre; era muito obsequioso;
chegando à porta da casa, quis por força que eu fosse almoçar com ele.
— Obrigado; mamãe espera-me.
— Manda-se lá um preto dizer que o
senhor fica almoçando, e irá mais tarde.
— Venho outro dia.
Sinhazinha Sancha, voltada para o pai,
ouvia e esperava. Não era feia; só se lhe podia notar a semelhança do nariz,
que também acabava grosso, mas há feições que tiram a graça de uns para dá-la a
outros. Vestia simples. Gurgel era viúvo e morria pela filha. Como eu recusasse
o almoço, quis que descansasse alguns minutos. Não pude recusar e subi. Quis
saber a minha idade, os meus estudos, a minha fé, e dava-me conselhos para o
caso de vir a ser padre; disse-me o número do armazém, Rua da Quitanda. Enfim,
despedi-me, veio ao patamar da escada; a filha deu-me recomendações para Capitu
e para minha mãe. Da rua olhei para cima; o pai estava à janela e fez-me um
gesto largo de despedida.
CAPÍTULO LXXI
VISITA DE ESCOBAR
Em casa, tinham já mentido dizendo a
minha mãe que eu voltara e estava mudando de roupa.
“A missa das oito já há de ter
acabado… Bentinho devia estar de volta… Teria acontecido alguma coisa, mano
Cosme?… Mandem ver…” Assim falava ela, de minuto a minuto, mas eu
entrei e comigo a tranqüilidade.
Era o dia das boas sensações. Escobar
foi visitar-me e saber da saúde de minha mãe. Nunca me visitara até ali, nem as
nossas relações estavam já tão estreitas, como vieram a ser depois; mas,
sabendo a razão da minha saída, três dias antes, aproveitou o domingo para ir
ter comigo e perguntar se continuava o perigo ou não. Quando lhe disse que não,
respirou.
— Tive receio, disse ele.
— Os outros souberam?
— Parece que sim: alguns souberam.
Tio Cosme e José Dias gostaram do moço;
o agregado disse-lhe que vira uma vez o pai no Rio de Janeiro. Escobar era
muito polido; e, conquanto falasse mais do que veio a falar depois, ainda assim
não era tanto como os rapazes da nossa idade; naquele dia achei-o um pouco mais
expansivo que de costume. Tio Cosme quis que jantasse conosco. Escobar refletiu
um instante e acabou dizendo que o correspondente do pai esperava por ele. Eu,
lembrando-me das palavras do Gurgel, repeti-as:
— Manda-se lá um preto dizer que o
senhor janta aqui, e irá depois.
— Tanto incômodo!
— Incômodo nenhum, interveio tio Cosme.
Escobar aceitou, e jantou. Notei que os
movimentos rápidos que tinha e dominava na aula, também os dominava agora, na
sala como na mesa. A hora que passou comigo foi de franca amizade. Mostrei-lhe
os poucos livros que possuía. Gostou muito do retrato de meu pai; depois de
alguns instantes de contemplação, virou-se e disse-me:
— Vê-se que era um coração puro!
Os olhos de Escobar, claros como já
disse, eram dulcíssimos; assim os definiu José Dias, depois que ele saiu, e
mantenho esta palavra, apesar dos quarenta anos que traz em cima de si. Nisto
não houve exageração do agregado. A cara rapada mostrava uma pele alva e lisa.
A testa é que era um pouco baixa, vindo a risca do cabelo quase em cima da
sobrancelha esquerda; mas tinha sempre a altura necessária para não afrontar as
outras feições, nem diminuir a graça delas. Realmente, era interessante de
rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz curvo e delgado. Tinha o sestro de
sacudir o ombro direito, de quando em quando, e veio a perdê-lo, desde que um
de nós lho notou, um dia, no seminário; primeiro exemplo que vi de que um homem
pode corrigir-se muito bem dos defeitos miúdos.
Nunca deixei de sentir tal ou qual
desvanecimento em que os meus amigos agradassem a todos. Em casa, ficaram
querendo bem a Escobar; a mesma prima Justina achou que era um moço muito
apreciável, apesar… — Apesar de quê? perguntou-lhe José Dias, vendo que ela
não acabava a frase. Não teve resposta, nem podia tê-la; prima Justina
provavelmente não viu defeito claro ou importante no nosso hóspede; o apesar era
uma espécie de ressalva para algum que lhe viesse a descobrir um dia; ou então
foi obra de uso velho, que a levou a restringir, onde não achara restrição.
Escobar despediu-se logo depois de
jantar; fui levá-lo à porta, onde esperamos a passagem de um ônibus. Disse-me
que o armazém do correspondente era na Rua dos Pescadores, e ficava aberto até
às nove horas: ele é que se não queria demorar fora. Separamo-nos com muito
afeto: ele, de dentro do ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me
à porta, a ver se, ao longe, ainda olharia para trás, mas não olhou.
— Que amigo é esse tamanho? perguntou
alguém de uma janela ao pé.
Não é preciso dizer que era Capitu. São
coisas que se adivinham na vida, como nos livros, sejam romances, sejam
histórias verdadeiras. Era Capitu, que nos espreitara desde algum tempo, por
dentro da veneziana, e agora abrira inteiramente a janela, e aparecera. Viu as
nossas despedidas tão rasgadas e afetuosas, e quis saber quem era que me
merecia tanto.
— É o Escobar, disse eu indo pôr-me
embaixo da janela, a olhar para cima.
CAPÍTULO LXXII
UMA REFORMA DRAMÁTICA
Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer
outra pessoa desta história poderia responder mais, tão certo é que o destino,
como todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho. Eles
chegam a seu tempo, até que o pano cai, apagam-se as luzes, e os espectadores
vão dormir. Nesse gênero há porventura alguma coisa que reformar, e eu
proporia, como ensaio, que as peças começassem pelo fim. Otelo mataria a si e a
Desdêmona no primeiro ato, os três seguintes seriam dados à ação lenta e
decrescente do ciúme, e o último ficaria só com as cenas iniciais da ameaça dos
turcos, as explicações de Otelo e Desdêmona, e o bom conselho do fino Iago:
“Mete dinheiro na bolsa”.Desta maneira, o espectador, por um lado, acharia
no teatro a charada habitual que os periódicos lhe dão, por que os últimos atos
explicam o desfecho do primeiro, espécie de conceito, e, por outro lado, ia
para a cama com uma boa impressão de ternura e de amor:
Ela amou o que me afligira,
Eu amei a piedade dela.
CAPÍTULO LXXIII
O CONTRA-REGRA
O destino não é só dramaturgo, é também
o seu próprio contra-regra, isto é, designa a entrada dos personagens em cena,
dá-lhes as cartas e outros objetos, e executa dentro os sinais correspondentes
ao diálogo, uma trovoada, um carro, um tiro. Quando eu era moço, representou-se
aí, em não sei que teatro, um drama que acabava pelo juízo final. O principal
personagem era Asaverus, que no último quadro concluía um monólogo por esta
exclamação: “Ouço a trombeta do arcanjo!” Não se ouviu trombeta
nenhuma. Asaverus, envergonhado, repetiu a palavra, agora mais alto, para advertir
o contra-regra, mas ainda nada. Então caminhou para o fundo, disfarçadamente
trágico, mas efetivamente com o fim de falar ao bastidor, e dizer em voz surda:
“O pistão! o pistão! o pistão!” O público ouviu esta palavra e
desatou a rir, até que, quando a trombeta soou deveras, e Asaverus bradou pela
terceira vez que era a do arcanjo, um gaiato da platéia corrigiu cá de baixo:
“Não, senhor, é o pistão do arcanjo!”
Assim se explicam a minha estada
debaixo da janela de Capitu e a passagem de um cavaleiro, um dandi,
como então dizíamos. Montava um belo cavalo alazão, firme na sela, rédea na mão
esquerda, a direita à cinta, botas de verniz, figura e postura esbeltas: a cara
não me era desconhecida. Tinham passado outros, e ainda outros viriam atrás;
todos iam às suas namoradas. Era uso do tempo namorar a cavalo. Relê Alencar:
“Porque um estudante (dizia um dos seus personagens de teatro de 1858) não
pode estar sem estas duas coisas, um cavalo e uma namorada”.Relê Álvares de
Azevedo. Uma das suas poesias é destinada a contar (1851) que residia em
Catumbi, e, para ver a namorada no Catete, alugara um cavalo por três
mil-réis… Três mil-réis! tudo se perde na noite dos tempos!
Ora, o dandi do cavalo
baio não passou como os outros; era a trombeta do juízo final e soou a tempo;
assim faz o Destino, que é o seu próprio contra-regra. O cavaleiro não se
contentou de ir andando, mas voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de
Capitu, e olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava, a cabeça do
homem deixava-se ir voltando para trás. Tal foi o segundo dente de ciúme que me
mordeu. A rigor, era natural admirar as belas figuras; mas aquele sujeito
costumava passar ali, às tardes; morava no antigo Campo da Aclamação, e
depois… e depois… Vão lá raciocinar com um coração de brasa, como era o
meu! Nem disse nada a Capitu; saí da rua à pressa, enfiei pelo meu corredor, e,
quando dei por mim, estava na sala de visitas.
CAPÍTULO LXXIV
A PRESILHA
Na sala de visitas, tio Cosme e José
Dias conversavam, um sentado, outro andando e parando. A vista de José Dias
lembrou-me o que ele me dissera no seminário: “Aquilo, enquanto não pegar
algum peralta da vizinhança que case com ela…” Era certamente alusão ao
cavaleiro. Tal recordação agravou a impressão que eu trazia da rua; mas não
seria essa palavra, inconscientemente guardada, que me dispôs a crer na malícia
dos seus olhares? A vontade que tive foi pegar em José Dias pela gola, levá-lo
ao corredor e perguntar-lhe se falara de verdade ou por hipótese; mas José Dias,
que parara ao ver-me entrar, continuou a andar e a falar. Eu, impaciente,
queria ir à casa ao pé, imaginava que Capitu saísse da janela assustada e não
tardasse a aparecer, para indagar e explicar… E os dois falavam, até que tio
Cosme ergueu-se para ir ver a doente, e José Dias veio ter comigo, ao vão da
outra janela.
Há um instante tinha eu desejo de lhe
perguntar o que havia entre Capitu e os peraltas do bairro; agora, imaginando
que vinha justamente dizer-mo, fiquei com medo de ouvi-lo. Quis tapar-lhe a
boca. José Dias viu no meu rosto algum sinal diferente da expressão habitual, e
perguntou-me com interesse:
— Que é, Bentinho?
Para não fitá-lo, deixei cair os olhos.
Os olhos, caindo, viram que uma das presilhas das calças do agregado estava desabotoada,
e, como ele insistisse em saber o que é que eu tinha, respondi apontando com o
dedo:
— Olhe a presilha, abotoe a presilha.
José Dias inclinou-se, eu saí correndo.
CAPÍTULO LXXV
O DESESPERO
Escapei ao agregado, escapei a minha
mãe não indo ao quarto dela, mas não escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto,
e entrei atrás de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à cama, e
rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços com a ponta do lençol. Jurei não
ir ver Capitu aquela tarde, nem nunca mais, e fazer-me padre de uma vez. Via-me
já ordenado, diante dela, que choraria de arrependimento e me pediria perdão,
mas eu, frio e sereno, não teria mais que desprezo, muito desprezo; voltava-lhe
as costas. Chamava-lhe perversa. Duas vezes dei por mim mordendo os dentes,
como se a tivesse entre eles.
Da cama ouvi a voz dela, que viera
passar o resto da tarde com minha mãe, e naturalmente comigo, como das outras
vezes; mas, por maior que fosse o abalo que me deu, não me fez sair do quarto.
Capitu ria alto, falava alto, como se me avisasse; eu continuava surdo, a sós
comigo e o meu desprezo. A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no
pescoço, enterrá-las bem, até ver-lhe sair a vida com o sangue…
CAPÍTULO LXXVI
EXPLICAÇÃO
Ao fim de algum tempo, estava
sossegado, mas abatido. Como me achasse estirado na cama, com os olhos no teto,
lembrou-me a recomendação que minha mãe fazia de me não deitar depois do jantar
para evitar alguma congestão. Ergui-me de golpe, mas não saí do quarto. Capitu
ria agora menos e falava mais baixo; estaria aflita com a minha reclusão, mas
nem por isso me abalou.
Não ceei e dormi mal. Na manhã seguinte
não estava melhor, estava diferente. A minha dor agora complicava-se do receio
de haver ido além do que convinha, deixando de examinar o negócio. Posto que a
cabeça me doesse um pouco, simulei maior incômodo, com o fim de não ir ao
seminário e falar a Capitu. Podia estar zangada comigo, podia não querer-me
agora e preferir o cavaleiro. Quis resolver tudo, ouvi-la e julgá-la; podia ser
que tivesse defesa e explicação.
Tinha ambas as coisas. Quando soube a
causa da minha reclusão da véspera, disse-me que era grande injúria que lhe
fazia; não podia crer que depois da nossa troca de juramentos, tão leviana a
julgasse que pudesse crer… E aqui romperam-lhe lágrimas, e fez um gesto de
separação; mas eu acudi de pronto, peguei-lhe das mãos e beijei-as com tanta
alma e calor que as senti estremecer. Enxugou os olhos com os dedos, eu os
beijei de novo, por eles e pelas lágrimas; depois suspirou, depois abanou a
cabeça. Confessou-me que não conhecia o rapaz, senão como os outros que ali
passavam às tardes, a cavalo ou a pé. Se olhara para ele, era prova exatamente
de não haver nada entre ambos; se houvesse, era natural dissimular.
— E que poderia haver, se ele vai
casar? concluiu.
— Vai casar?
Ia casar, disse-me com quem, com uma
moça da Rua dos Barbonos. Esta razão quadrou-me mais que tudo, e ela o sentiu
no meu gesto; nem por isso deixou de dizer que, para evitar nova equivocação,
deixaria de ir mais à janela.
— Não! não! não! não lhe peço isto!
Consentiu em retirar a promessa, mas
fez outra, e foi que, à primeira suspeita da minha parte, tudo estaria
dissolvido entre nós. Aceitei a ameaça, e jurei que nunca a haveria de cumprir;
era a primeira suspeita e a última.
CAPÍTULO LXXVII
PRAZER DAS DORES VELHAS
Contando aquela crise do meu amor
adolescente, sinto uma coisa que não sei se explico bem, e é que as dores
daquela quadra, a tal ponto se espiritualizaram com o tempo, que chegam a
diluir-se no prazer. Não é claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos
livros. A verdade é que sinto um gosto particular em referir tal aborrecimento,
quando é certo que ele me lembra outros que não quisera lembrar por nada.
CAPÍTULO LXXVIII
SEGREDO POR SEGREDO
De resto, naquele mesmo tempo senti tal
ou qual necessidade de contar a alguém o que se passava entre mim e Capitu. Não
referi tudo, mas só uma parte, e foi Escobar que a recebeu. Quando voltei ao
seminário, na quarta-feira, achei-o inquieto; disse-me que era sua intenção ir
ver-me, se eu me demorasse mais um dia em casa. Perguntava-me com interesse o
que é que tivera, e se estava bom de todo.
— Estou.
Ouvia, espetando-me os olhos. Três dias
depois disse que me estavam achando muito distraído; era bom disfarçar o mais
que pudesse. Ele, à sua parte, tinha razões para andar distraído também, mas
buscava ficar atento.
— Então parece-lhe?…
— Sim, você às vezes está que não ouve
nada, olhando para ontem; disfarce, Santiago.
— Tenho motivos…
— Creio; ninguém se distrai à toa.
— Escobar…
Hesitei; ele esperou.
— Que é?
— Escobar, você é meu amigo, eu sou seu
amigo também; aqui ao seminário você é a pessoa que mais me tem entrado no
coração, e lá fora, a não ser a gente da família, não tenho propriamente um
amigo.
— Se eu disser a mesma coisa, retorquiu
ele sorrindo, perde a graça; parece que estou repetindo. Mas a verdade é que
não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro e creio que já notaram;
mas eu não me importo com isso.
Comovido, senti que a voz se me
precipitava da garganta.
— Escobar, você é capaz de guardar um
segredo?
— Você que pergunta é porque duvida, e
nesse caso…
— Desculpe, é um modo de falar. Eu sei
que é moço sério, e faço de conta que me confesso a um padre.
— Se precisa de absolvição, está
absolvido.
— Escobar, eu não posso ser padre.
Estou aqui, os meus acreditam, e esperam; mas eu não posso ser padre.
— Nem eu, Santiago.
— Nem você?
— Segredo por segredo; também eu tenho
o propósito de não acabar o curso; meu desejo é o comércio, mas não diga nada,
absolutamente nada; fica só entre nós. E não é que eu não seja religioso; sou
religioso, mas o comércio é a minha paixão.
— Só isso?
— Que mais há de ser?
Dei duas voltas e sussurrei a primeira
palavra da minha confidência, tão escassa e surda, que não a ouvi eu mesmo; sei
porém que disse “uma pessoa…” com reticência. Uma pessoa?… Não
foi preciso mais para que ele entendesse. Uma pessoa devia ser uma moça. Nem
cuides que pasmou de me ver namorado; achou até natural e espetou-me outra vez
os olhos. Então contei-lhe por alto o que podia, mas demoradamente para ter o
gosto de repisar o assunto. Escobar escutava com interesse; no fim da nossa
conversação, declarou-me que era segredo enterrado em cemitério. Deu-me de
conselho que não me fizesse padre. Não podia levar para a igreja um coração que
não era do Céu, mas da Terra; seria um mau padre, nem seria padre. Ao
contrário, Deus protegia os sinceros; uma vez que eu só podia servi-lo no
mundo, aí me cumpria ficar.
Não calculas o prazer que me deu a
confidência que lhe fiz. Era como que uma felicidade mais. Aquele coração moço
que me ouvia e me dava razão, trazia a este mundo um aspecto extraordinário.
Era um grande e belo mundo, a vida uma carreira excelente, e eu nem mais nem
menos um mimoso do céu; eis a minha sensação. Nota que eu não lhe disse tudo,
nem o melhor; não lhe referi o capítulo do penteado, por exemplo, nem outros
assim; mas o contado era muito.
Que voltamos ao assunto, não é preciso
dizê-lo. Voltamos uma e muitas vezes; eu louvava as qualidades morais de
Capitu, matéria adequada à admiração de um seminarista, a simpleza, a modéstia,
o amor do trabalho e os costumes religiosos. Não lhe tocava nas graças físicas,
nem ele me perguntava por elas; apenas insinuei a conveniência de a conhecer de
vista.
— Agora não é possível, disse-lhe na
primeira semana, ao voltar de casa; Capitu vai passar uns dias com uma amiga da
Rua dos Inválidos. Quando ela vier, você irá lá; mas pode ir antes, pode ir
sempre; por que não foi ontem jantar comigo?
— Você não me convidou.
— Pois precisa convidar? Lá em casa
todos ficaram gostando muito de você.
— Também eu fiquei gostando de todos,
mas se é possível fazer distinção, confesso-lhe que sua mãe é uma senhora
adorável.
— Não é verdade? retorqui cheio de
alvoroço.
CAPÍTULO LXXIX
VAMOS AO CAPÍTULO
Com efeito, gostei de ouvi-lo falar
assim. Sabes a opinião que eu tinha de minha mãe. Ainda agora, depois de
interromper esta linha para mirar-lhe o retrato que pende da parede, acho que
trazia no rosto impressa aquela qualidade. Nem de outro modo se explica a
opinião de Escobar, que apenas trocara com ela quatro palavras. Uma só bastava
a penetrar-lhe a essência íntima; sim, sim, minha mãe era adorável. Por mais
que me estivesse então obrigando a uma carreira que eu não queria, não podia
deixar de sentir que era adorável, como uma santa.
E porventura era certo que me obrigava
à carreira eclesiástica? Aqui chego a um ponto, que esperei viesse depois,
tanto que já pesquisava em que altura lhe daria um capítulo. Realmente, não
cabia dizer agora o que só mais tarde presumi descobrir; mas, uma vez que
toquei no ponto, melhor é acabar com ele. É grave e complexo, delicado e sutil,
um destes em que o autor tem de atender ao filho, e o filho há de ouvir o
autor, para que um e outro digam a verdade, só a verdade, mas toda a verdade.
Cabe ainda notar que esse ponto é que torna justamente a santa mais adorável,
sem prejuízo (ao contrário!) da parte humana e terrestre que havia nela. Basta
de prefácio ao capítulo; vamos ao capítulo.
CAPÍTULO LXXX
VENHAMOS AO CAPÍTULO
Venhamos ao capítulo. Minha mãe era
temente a Deus; sabes disto, e das suas práticas religiosas, e da fé pura que
as animava. Nem ignoras que a minha carreira eclesiástica era objeto de
promessa feita quando fui concebido. Tudo está contado oportunamente.
Outrossim, sabes que, para o fim de apertar o vínculo moral da obrigação,
confiou os seus projetos e motivos a parentes e familiares. A promessa, feita
com fervor, aceita com misericórdia, foi guardada por ela, com alegria, no mais
íntimo do coração. Penso que lhe senti o sabor da felicidade no leite que me
deu a mamar. Meu pai, se vivesse, é possível que alterasse os planos, e, como
tinha a vocação da política, é provável que me encaminhasse somente à política,
embora os dois ofícios não fossem nem sejam inconciliáveis, e mais de um padre
entre na luta dos partidos e no governo dos homens. Mas meu pai morrera sem
saber nada, e ela ficou diante do contrato, como única devedora.
Um dos aforismos de Franklin é que,
para quem tem de pagar na páscoa, a quaresma é curta. A nossa quaresma não foi
mais longa que as outras, e minha mãe, posto me mandasse ensinar latim e
doutrina, começou a adiar a minha entrada no seminário. É o que se chama,
comercialmente falando, reformar uma letra. O credor era arquimilionário, não
dependia daquela quantia para comer, e consentiu nas transferências de pagamento,
sem sequer agravar a taxa do juro. Um dia, porém, um dos familiares que serviam
de endossantes da letra, falou da necessidade de entregar o preço ajustado;
está num dos capítulos primeiros. Minha mãe concordou e recolhi-me a São José.
Ora, nesse mesmo capítulo, verteu ela
umas lágrimas, que enxugou sem explicar, e que nenhum dos presentes, nem tio
Cosme, nem prima Justina, nem o agregado José Dias entendeu absolutamente; eu,
que estava atrás da porta, não as entendi mais que eles. Bem examinadas, apesar
da distância, vê-se que eram saudades prévias, a mágoa da separação, — e pode
ser também (é o princípio do ponto), pode ser que arrependimento da promessa.
Católica e devota, sentia muito bem que as promessas se cumprem; a questão é se
é oportuno e adequado fazê-las todas, e naturalmente inclinava-se à negativa.
Por que é que Deus a puniria, negando-lhe um segundo filho? A vontade divina
podia ser a minha vida, sem necessidade de lhe dedicar ab ovo. Era
um raciocínio tardio; devia ter sido feito no dia em que fui gerado. Em todo
caso, era uma conclusão primeira; mas, não bastando concluir para destruir,
tudo se manteve, e eu fui para o seminário.
Um cochilo da fé teria resolvido a
questão a meu favor, mas a fé velava com os seus grandes olhos ingênuos. Minha
mãe faria, se pudesse, uma troca de promessa, dando parte dos seus anos para
conservar-me consigo, fora do clero, casado e pai; é o que presumo, assim como
suponho que rejeitou tal idéia, por lhe parecer uma deslealdade. Assim a senti
sempre na corrente da vida ordinária.
Sucedeu que a minha ausência foi logo
temperada pela assiduidade de Capitu. Esta começou a fazer-se-lhe necessária.
Pouco a pouco veio-lhe a persuasão de que a pequena me faria feliz. Então (é o
final do ponto anunciá-lo), a esperança de que o nosso amor, tornando-me
absolutamente incompatível com o seminário, me levasse a não ficar lá nem por
Deus nem pelo Diabo, esta esperança íntima e secreta entrou a invadir o coração
de minha mãe. Neste caso, eu romperia o contrato sem que ela tivesse culpa. Ela
ficava comigo sem ato propriamente seu. Era como se, tendo confiado a alguém a
importância de uma dívida para levá-la ao credor, o portador guardasse o
dinheiro consigo e não levasse nada. Na vida comum, o ato de terceiro não
desobriga o contratante; mas a vantagem de contratar com o Céu é que intenção
vale dinheiro.
Hás de ter tido conflitos parecidos com
esse, e, se és religioso, haverás buscado alguma vez conciliar o Céu e a Terra,
por modo idêntico ou análogo. O Céu e a Terra acabam conciliando-se; eles são
quase irmãos gêmeos, tendo o Céu sido feito no segundo dia e a Terra no
terceiro. Como Abraão, minha mãe levou o filho ao monte da Visão, e mais a
lenha para o holocausto, o fogo e o cutelo. E atou Isaac em cima do feixe de
lenha, pegou do cutelo e levantou-o ao alto. No momento de fazê-lo cair, ouve a
voz do anjo que lhe ordena da parte do Senhor: “Não faças mal algum a teu
filho; conheci que temes a Deus”. Tal seria a esperança secreta de minha
mãe.
Capitu era naturalmente o anjo da
Escritura. A verdade é que minha mãe não podia tê-la agora longe de si. A
afeição crescente era manifesta por atos extraordinários. Capitu passou a ser a
flor da casa, o sol das manhãs, o frescor das tardes, a lua das noites; lá
vivia horas e horas, ouvindo, falando e cantando. Minha mãe apalpava-lhe o
coração, revolvia-lhe os olhos, e o meu nome era entre ambas como a senha da
vida futura.
CAPÍTULO LXXXI
UMA PALAVRA
Assim contado o que descobri mais
tarde, posso trasladar para aqui uma palavra de minha mãe. Agora se entenderá
que ela me dissesse, no primeiro sábado, quando eu cheguei a casa, e soube que
Capitu estava na Rua dos Inválidos, com sinhazinha Gurgel:
— Por que não vais vê-la? Não me
disseste que o pai de Sancha te ofereceu a casa?
— Ofereceu.
— Pois então? Mas é se queres. Capitu
devia ter voltado hoje para acabar um trabalho comigo; certamente a amiga
pediu-lhe que dormisse lá.
— Talvez ficassem namorando, insinuou
prima Justina.
Não a matei por não ter à mão ferro nem
corda, pistola nem punhal; mas os olhos que lhe deitei, se pudessem matar,
teriam suprido tudo. Um dos erros da Providência foi deixar ao homem unicamente
os braços e os dentes, como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou
de defesa. Os olhos bastavam ao primeiro efeito. Um mover deles faria parar ou
cair um inimigo ou um rival, exerceriam vingança pronta, com este acréscimo
que, para desnortear a justiça, os mesmos olhos matadores seriam olhos
piedosos, e correriam a chorar a vítima. Prima Justina escapou aos meus; eu é
que não escapei ao efeito da insinuação, e no domingo, às onze horas, corri à
Rua dos Inválidos.
O pai de Sancha recebeu-me em desalinho
e triste. A filha estava enferma; caíra na véspera com uma febre, que se ia
agravando. Como ele queria muito à filha, pensava já vê-la morta, e anunciou-me
que se mataria também. Eis aqui um capítulo fúnebre como um cemitério, mortes,
suicídios e assassinatos. Eu ansiava por um raio de luz clara e céu azul. Foi
Capitu que os trouxe à porta da sala, vindo dizer ao pai de Sancha que a filha
o mandara chamar.
— Está pior? perguntou Gurgel
assustado.
— Não, senhor, mas quer falar-lhe.
— Fique aqui um bocadinho, disse-lhe
ele; e voltando-se para mim: É a enfermeira de Sancha, que não quer outra; eu
já volto.
Capitu trazia sinais de fadiga e
comoção, mas tão depressa me viu, ficou toda outra, a mocinha de sempre, fresca
e lépida, não menos que espantada. Custou-lhe a crer que fosse eu. Falou-me,
quis que lhe falasse, e efetivamente conversamos por alguns minutos, mas tão
baixo e abafado que nem as paredes ouviram, elas que têm ouvidos. De resto, se
elas ouviram algo, nada entenderam, nem elas nem os móveis, que estavam tão
tristes como o dono.
CAPÍTULO LXXXII
O CANAPÉ
Deles, só o canapé pareceu haver
compreendido a nossa situação moral, visto que nos ofereceu os serviços da sua
palhinha, com tal insistência que os aceitamos e nos sentamos. Data daí a
opinião particular que tenho do canapé. Ele faz aliar a intimidade e o decoro,
e mostra a casa toda sem sair da sala. Dois homens sentados nele podem debater
o destino de um império, e duas mulheres a graça de um vestido; mas, um homem e
uma mulher só por aberração das leis naturais dirão outra coisa que não seja de
si mesmos. Foi o que fizemos, Capitu e eu. Vagamente lembra-me que lhe
perguntei se a demora ali seria grande…
— Não sei; a febre parece que cede…
mas…
Também me lembra, vagamente, que lhe
expliquei a minha visita à Rua dos Inválidos, com a pura verdade, isto é, a
conselho de minha mãe.
— Conselho dela? murmurou Capitu.
E acrescentou com os olhos, que
brilhavam extraordinariamente:
— Seremos felizes!
Repeti estas palavras, com os simples
dedos, apertando os dela. O canapé, quer visse ou não, continuou a prestar os
seus serviço às nossas mãos presas e às nossas cabeças juntas ou quase juntas.
CAPÍTULO LXXXIII
O RETRATO
Gurgel tornou à sala e disse a Capitu
que a filha chamava por ela. Eu levantei-me depressa e não achei compostura;
metia os olhos pelas cadeiras. Ao contrário, Capitu ergueu-se naturalmente e
perguntou-lhe se a febre aumentara.
— Não, disse ele.
Nem sobressalto nem nada, nenhum ar de
mistério da parte de Capitu; voltou-se para mim, e disse-me que levasse
lembranças a minha mãe e a prima Justina, e que até breve; estendeu-me a mão e
enfiou pelo corredor. Todas as minhas invejas foram com ela. Como era possível
que Capitu se governasse tão facilmente e eu não?
— Está uma moça, observou Gurgel
olhando também para ela.
Murmurei que sim. Na verdade, Capitu ia
crescendo às carreiras, as formas arredondavam-se e avigoravam-se com grande
intensidade; moralmente, a mesma coisa. Era mulher por dentro e por fora,
mulher à direita e à esquerda, mulher por todos os lados, e desde os pés até à
cabeça. Esse arvorecer era mais apressado, agora que eu a via de dias a dias;
de cada vez que vinha a casa achava-a mais alta e mais cheia; os olhos pareciam
ter outra reflexão, e a boca outro império. Gurgel, voltando-se para a parede
da sala, onde pendia um retrato de moça, perguntou-me se Capitu era parecida
com o retrato.
Um dos costumes da minha vida foi
sempre concordar com a opinião provável do meu interlocutor, desde que a
matéria não me agrava, aborrece ou impõe. Antes de examinar se efetivamente
Capitu era parecida com o retrato, fui respondendo que sim. Então ele disse que
era o retrato da mulher dele, e que as pessoas que a conheceram diziam a mesma
coisa. Também achava que as feições eram semelhantes, a testa principalmente e
os olhos. Quanto ao gênio, era um; pareciam irmãs.
— Finalmente, até a amizade que ela tem
a Sanchinha; a mãe não era mais amiga dela… Na vida há dessas semelhanças
assim esquisitas.
CAPÍTULO LXXXIV
CHAMADO
No saguão e na rua, examinei ainda
comigo se efetivamente ele teria desconfiado alguma coisa, mas achei que não e
pus-me a andar. Ia satisfeito com a visita, com a alegria de Capitu, com os
louvores de Gurgel, a tal ponto que não acudi logo a uma voz que me chamava:
— Sr. Bentinho! Sr. Bentinho!
Só depois que a voz cresceu e o dono
dela chegou à porta é que eu parei e vi o que era e onde estava. Estava já na
Rua de Mata-cavalos. A casa era uma loja de louça, escassa e pobre; tinha as
portas meio cerradas, e a pessoa que me chamava era um pobre homem grisalho e
mal vestido.
— Sr. Bentinho, disse-me ele chorando;
sabe que meu filho Manduca morreu?
— Morreu?
— Morreu há meia hora, enterra-se
amanhã. Mandei recado a sua mãe agora mesmo, e ela fez-me a caridade de mandar
algumas flores para botar no caixão. Meu pobre filho! Tinha de morrer, e foi
bom que morresse, coitado, mas apesar de tudo sempre dói. Que vida que ele
teve!… Um dia destes ainda se lembrou do senhor, e perguntou se estava no
seminário… Quer vê-lo? Entre, ande vê-lo…
Custa-me dizer isto, mas antes peque
por excessivo que por diminuto. Quis responder que não, que não queria ver o
Manduca, e fiz até um gesto para fugir. Não era medo; noutra ocasião pode ser
até que entrasse com facilidade e curiosidade, mas agora ia tão contente! Ver
um defunto ao voltar de uma namorada… Há coisas que se não ajustam nem
combinam. A simples notícia era já uma turvação grande. As minhas idéias de
ouro perderam todas a cor e o metal para se trocarem em cinza escura e feia, e
não distingui mais nada. Penso que cheguei a dizer que tinha pressa, mas
provavelmente não falei por palavras claras, nem sequer humanas, porque ele,
encostado ao portal, abria-me espaço com o gesto, e eu, sem alma para entrar
nem fugir, deixei ao corpo fazer o que pudesse, e o corpo acabou entrando.
Não culpo ao homem; para ele, a coisa
mais importante do momento era o filho. Mas também não me culpem a mim; para
mim, a coisa mais importante era Capitu. O mal foi que os dois casos se
conjugassem na mesma tarde, e que a morte de um viesse meter o nariz na vida do
outro. Eis o mal todo. Se eu passasse antes ou depois, ou se o Manduca
esperasse algumas horas para morrer, nenhuma nota aborrecida viria interromper
as melodias da minha alma. Por que morrer exatamente há meia hora? Toda hora é
apropriada ao óbito; morre-se muito bem às seis ou sete horas da tarde.
CAPÍTULO LXXXV
O DEFUNTO
Tal foi o sentimento confuso com que
entrei na loja de louça. A loja era escura, e o interior da casa menos luz
tinha, agora que as janelas da área estavam cerradas. A um canto da sala de
jantar vi a mãe chorando; à porta da alcova duas crianças olhavam espantadas
para dentro, com o dedo na boca. O cadáver jazia na cama; a cama…
Suspendamos a pena e vamos à janela
espairecer a memória. Realmente, o quadro era feio, já pela morte, já pelo
defunto, que era horrível… Isto aqui, sim, é outra coisa. Tudo o que vejo lá
fora respira vida, a cabra que rumina ao pé de uma carroça, a galinha que
marisca no chão da rua, o trem da Estrada Central que bufa, assobia, fumega e
passa, a palmeira que investe para o céu, e finalmente aquela torre de igreja,
apesar de não ter músculos nem folhagem. Um rapaz, que ali no beco empina um
papagaio de papel, não morreu nem morre, posto também se chame Manduca.
Verdade é que o outro Manduca era mais
velho que este, pouco mais velho. Teria dezoito ou dezenove anos, mas tanto lhe
darias quinze como vinte e dois, a cara não permitia trazer a idade à vista,
antes a escondia nas dobras da… Vá, diga-se tudo; é morto, os seus parentes
são mortos, se existe algum não é em tal evidência que se vexe ou doa. Diga-se
tudo; Manduca padecia de uma cruel enfermidade, nada menos que a lepra. Vivo
era feio; morto pareceu-me horrível. Quando eu vi, estendido na cama, o triste
corpo daquele meu vizinho, fiquei apavorado e desviei os olhos. Não sei que mão
oculta me compeliu a olhar outra vez, ainda que de fugida; cedi, olhei, tornei
a olhar, até que recuei de todo e saí do quarto.
— Padeceu muito! suspirou o pai.
— Coitado de Manduca! soluçava a mãe.
Eu cuidei de sair, disse que era
esperado em casa, e despedi-me. O pai perguntou-me se lhe faria o favor de ir
ao enterro; respondi com a verdade, que não sabia, faria o que minha mãe
quisesse. E rápido saí, atravessei a loja, e saltei à rua.
CAPÍTULO LXXXVI
AMAI, RAPAZES!
Era tão perto, que antes de três
minutos me achei em casa. Parei no corredor, a tomar fôlego; buscava esquecer o
defunto, pálido e disforme, e o mais que não disse para não dar a estas páginas
um aspecto repugnante, mas podes imaginá-lo. Tudo arredei da vista, em poucos
segundos; bastou-me pensar na outra casa, e mais na vida e na cara fresca e
lépida de Capitu… Amai, rapazes! e, principalmente, amai moças lindas e
graciosas; elas dão remédio ao mal, aroma ao infecto, trocam a morte pela
vida… Amai, rapazes!
CAPÍTULO LXXXVII
A SEGE
Chegara ao último degrau, e uma idéia
me entrou no cérebro, como se estivesse a esperar por mim, entre as grades da
cancela. Ouvi de memória as palavras do pai de Manduca pedindo-me que fosse ao
enterro no dia seguinte. Parei no degrau. Refleti um instante; sim, podia ir ao
enterro, pediria a minha mãe que me alugasse um carro…
Não cuides que era o desejo de andar de
carro, por mais que tivesse o gosto da condução. Em pequeno, lembra-me que ia
assim muita vez com minha mãe às visitas de amizade ou de cerimônia, e à missa,
se chovia. Era uma velha sege de meu pai, que ela conservou o mais que pôde. O
cocheiro, que era nosso escravo, tão velho como a sege, quando me via à porta,
vestido, esperando minha mãe, dizia-me rindo:
— Pai João vai levar nhonhô!
E era raro que eu não lhe recomendasse:
— João, demora muito as bestas; vai
devagar.
— Nhá Glória não gosta.
— Mas demora!
Fica entendido que era para saborear a
sege, não pela vaidade, porque ela não permitia ver as pessoas que iam dentro.
Era uma velha sege obsoleta, de duas rodas, estreita e curta, com duas cortinas
de couro na frente, que corriam para os lados quando era preciso entrar ou
sair. Cada cortina tinha um óculo de vidro, por onde eu gostava de espiar para
fora.
— Senta, Bentinho!
— Deixa espiar, mamãe!
E em pé, quando era mais pequeno, metia
a cara no vidro, e via o cocheiro com as suas grandes botas, escanchado na mula
da esquerda, e segurando a rédea da outra; na mão levava o chicote grosso e
comprido. Tudo incômodo, as botas, o chicote e as mulas, mas ele gostava e eu
também. Dos lados via passar as casas, lojas ou não, abertas ou fechadas, com
gente ou sem ela, e na rua as pessoas que iam e vinham, ou atravessavam diante
da sege, com grandes pernadas ou passos miúdos. Quando havia impedimento de
gente ou de animais, a sege parava, e então o espetáculo era particularmente
interessante; as pessoas paradas na calçada ou à porta das casas, olhavam para
a sege e falavam entre si, naturalmente sobre quem iria dentro. Quando fui
crescendo em idade imaginei que adivinhavam e diziam: “É aquela senhora da
Rua de Mata-cavalos, que tem um filho, Bentinho…”
A sege ia tanto com a vida recôndita de
minha mãe, que quando já não havia nenhuma outra, continuamos a andar nela, e
era conhecida na rua e no bairro pela “sege antiga”. Afinal minha mãe
consentiu em deixá-la, sem a vender logo; só abriu mão dela porque as despesas
de cocheira a obrigaram a isso. A razão de a guardar inútil foi exclusivamente
sentimental; era a lembrança do marido. Tudo o que vinha de meu pai era
conservado como um pedaço dele, um resto da pessoa, a mesma alma integral e
pura. Mas o uso, esse era filho também do carrancismo que ela confessava aos
amigos. Minha mãe exprimia bem a fidelidade aos velhos hábitos, velhas
maneiras, velhas idéias, velhas modas. Tinha o seu museu de relíquias, pentes
desusados, um trecho de mantilha; umas moedas de cobre datadas de 1824 e 1825,
e, para que tudo fosse antigo, a si mesma se queria fazer velha; mas já deixei
dito que, neste ponto, não alcançava tudo o que queria.
CAPÍTULO LXXXVIII
UM PRETEXTO HONESTO
Não, a idéia de ir ao enterro não vinha
da lembrança do carro e suas doçuras. A origem era outra: era porque,
acompanhando o enterro no dia seguinte, não iria ao seminário, e podia fazer
outra visita a Capitu, um tanto mais demorada. Eis aí o que era. A lembrança do
carro podia vir acessoriamente depois, mas a principal e imediata foi aquela.
Voltaria à Rua dos Inválidos, a pretexto de saber de sinhazinha Gurgel. Contava
que tudo me saísse como naquele dia. Gurgel aflito, Capitu comigo no canapé, as
mãos presas, o penteado…
— Vou pedir a mamãe.
Abri a cancela. Antes de transpô-la,
assim como ouvira da memória a palavra do pai do morto, ouvi agora a da mãe, e
repeti a meia voz:
— Coitado de Manduca!
CAPÍTULO LXXXIX
A RECUSA
Minha mãe ficou perplexa quando lhe
pedi para ir ao enterro.
— Perder um dia de seminário…
Fiz-lhe notar a amizade que o Manduca
me tinha, e depois era gente pobre… Tudo o que me lembrou dizer, disse. Prima
Justina opinou pela negativa.
— Você acha que não deve ir?
perguntou-lhe minha mãe.
— Acho que não. Que amizade é essa que
eu nunca vi?
Prima Justina venceu. Quando referi o
caso ao agregado, este sorriu, e disse-me que o motivo escondido da prima era
provavelmente não dar ao enterro “o lustre da minha pessoa”. Fosse o
que fosse, fiquei amuado; no dia seguinte, pensando no motivo, não me
desagradou; mais tarde achei-lhe um sabor particular.
CAPÍTULO XC
A POLÊMICA
No dia seguinte, passei pela casa do
defunto, sem entrar nem parar, — ou, se parei, foi só um instante, ainda mais
breve que este em que vo-lo digo. Se me não engano, andei até mais depressa,
receando que me chamassem como na véspera. Uma vez que não ia ao enterro, antes
longe que próximo. Fui andando e pensando no pobre diabo.
Não éramos amigos, nem nos conhecíamos
de muito. Intimidade, que intimidade podia haver entre a doença dele e a minha
saúde? Tivemos relações breves e distantes. Fui pensando nelas, recordando
algumas. Reduziam-se todas a uma polêmica, entre nós, dois anos antes, a
propósito… Mal podeis crer a que propósito foi. Foi a guerra da Criméia.
Manduca vivia no interior da casa, deitado
na cama, lendo por desfastio. Ao domingo, sobre a tarde, o pai enfiava-lhe uma
camisola escura, e trazia-o para o fundo da loja, donde ele espiava um palmo da
rua e a gente que passava. Era todo o seu recreio. Foi ali que o vi uma vez, e
não fiquei pouco espantado; a doença ia-lhe comendo parte das carnes, os dedos
queriam apertar-se; o aspecto não atraía, decerto. Tinha eu de treze para
quatorze anos. Da segunda vez que o vi ali, como falássemos da guerra da
Criméia, que então ardia e andava nos jornais, Manduca disse que os aliados
haviam de vencer, e eu respondi que não.
— Pois veremos, tornou ele. Só se a
justiça não vencer neste mundo, o que é impossível, e a justiça está com os
aliados.
— Não, senhor, a razão é dos russos.
Naturalmente, íamos com o que nos
diziam os jornais da cidade, transcrevendo os de fora, mas pode ser também que
cada um de nós tivesse a opinião do seu temperamento. Fui sempre um tanto
moscovita nas minhas idéias. Defendi o direito da Rússia, Manduca fez o mesmo
ao dos aliados, e o terceiro domingo em que entrei na loja tocamos outra vez no
assunto. Então Manduca propôs que trocássemos a argumentação por escrito, e na
terça ou quarta-feira recebi duas folhas de papel contendo a exposição e defesa
do direito dos aliados, e da integridade da Turquia, concluindo por esta frase
profética:
“Os russos não hão de entrar em
Constantinopla!”
Li-a e meti-me a
refutá-la. Não me recorda um só dos argumentos que empreguei, nem talvez interesse
conhecê-los, agora que o século está a expirar; mas a idéia que me ficou deles
é que eram irrespondíveis. Fui eu mesmo levar-lhe o meu papel. Fizeram-me
entrar na alcova, onde ele jazia estirado na cama, mal coberto por uma colcha
de retalhos. Ou gosto da polêmica ou qualquer outra causa que não alcanço, não
me deixou sentir toda a repugnância que saía da cama e do doente, e o prazer
com que lhe dei o papel foi sincero. Manduca, pela sua parte, por mais nojosa
que tivesse então a cara, o sorriso que a acendeu dissimulou o mal físico. A
convicção com que me recebeu o papel e disse que ia ler e responderia é que não
tem palavras nossas nem alheias que a digam de todo e com verdade; não era
exaltada, não era ruidosa, não tinha gestos, nem a moléstia os permitiria; era
simples, grande, profunda, um gozo infinito de vitória, antes de saber os meus
argumentos. Tinha já papel, pena e tinta ao pé da cama. Dias depois recebi a
réplica; não me lembra se trazia coisas novas ou não; o calor é que crescia, e
o final era o mesmo:
“Os russos não hão de entrar em
Constantinopla!”
Trepliquei, e daí continuou por algum
tempo uma polêmica ardente, em que nenhum de nós cedia, defendendo cada um os
seus clientes com força e brio. Manduca era mais longo e pronto que eu.
Naturalmente a mim sobravam mil coisas que distraíam, o estudo, os recreios, a
família, e a própria saúde, que me chamava a outros exercícios. Manduca, salvo
o palmo de rua ao domingo de tarde, tinha só esta guerra, assunto da cidade e
do mundo, mas que ninguém ia tratar com ele. O acaso dera-lhe em mim um
adversário; ele, que tinha gosto à escrita, deitou-se ao debate, como a um
remédio novo e radical. As horas tristes e compridas eram agora breves e
alegres; os olhos desaprenderam de chorar, se porventura choravam antes. Senti
esta mudança dele nas próprias maneiras do pai e da mãe.
— Não imagina como ele anda agora,
depois que o senhor lhe escreve aqueles papéis, dizia-me o dono da loja, uma
vez, à porta da rua. Fala e ri muito. Logo que eu mando o caixeiro levar-lhe os
papéis dele, entra a indagar da resposta, e se demorará muito, e que pergunte
ao moleque, quando passar. Enquanto espera, relê jornais e toma notas. Mas
também, apenas recebe os seus papéis, atira-se a lê-los, e começa logo a
escrever a resposta. Há ocasiões em que não come ou come mal; tanto que eu
queria pedir-lhe uma coisa, é que não os mande à hora do almoço ou de jantar…
Fui eu que cansei primeiro. Comecei a
demorar as respostas, até que não dei mais nenhuma; ele ainda teimou duas ou
três vezes depois do meu silêncio, mas não recebendo contestação alguma, por
fadiga também ou por não aborrecer, acabou de todo com as suas apologias. A
última, como a primeira, como todas, afirmava a mesma predição eterna:
“Os russos não hão de entrar em
Constantinopla!”
Não entraram, efetivamente, nem então,
nem depois, nem até agora. Mas a predição será eterna? Não chegarão a entrar
algum dia? Problema difícil. O próprio Manduca, para entrar na sepultura,
gastou três anos de dissolução, tão certo é que a natureza, como a história,
não se faz brincando. A vida dele resistiu como a Turquia; se afinal cedeu foi
porque lhe faltou uma aliança como a anglo-francesa, não se podendo considerar
tal o simples acordo da Medicina e da farmácia. Morreu afinal, como os Estados
morrem; no nosso caso particular, a questão é saber, não se a Turquia morrerá,
porque a morte não poupa a ninguém, mas se os russos entrarão algum dia em
Constantinopla; essa era a questão para o meu vizinho leproso, debaixo da
triste, rota e infecta colcha de retalhos…
CAPÍTULO XCI
ACHADO QUE CONSOLA
É claro que as reflexões que aí deixo
não foram feitas então, a caminho do seminário, mas agora no gabinete do
Engenho Novo. Então, não fiz propriamente nenhuma, a não ser esta: que servi de
alívio um dia ao meu vizinho Manduca. Hoje, pensando melhor, acho que não só
servi de alívio, mas até lhe dei felicidade. E o achado consola-me; já agora
não esquecerei mais que dei dois ou três meses de felicidade a um pobre diabo,
fazendo-lhe esquecer o mal e o resto. É alguma coisa na liquidação da minha
vida. Se há no outro mundo tal ou qual prêmio para as virtudes sem intenção,
esta pagará um ou dois dos meus muitos pecados. Quanto ao Manduca, não creio
que fosse pecado opinar contra a Rússia, mas, se era, ele estará purgando há
quarenta anos a felicidade que alcançou em dois ou três meses, — donde
concluirá (já tarde) que era ainda melhor haver gemido somente, sem opinar
coisa nenhuma.
CAPÍTULO XCII
O DIABO NÃO É TÃO FEIO COMO SE PINTA
Manduca enterrou-se sem mim. A muitos
outros aconteceu a mesma coisa, sem que eu sentisse nada, mas este caso
afligiu-me particular mente pela razão já dita. Também senti não sei que
melancolia ao recordar a primeira polêmica da vida, o gosto com que ele recebia
os meus papéis e se propunha a refutá-los, não contando o gosto do carro… Mas
o tempo apagou depressa todas essas saudades e ressurreições. Nem foi só ele;
duas pessoas vieram ajudá-lo: Capitu, cuja imagem dormiu comigo na mesma noite,
e outra que direi no capítulo que vem. O resto deste capítulo é só para pedir
que, se alguém tiver de ler o meu livro com alguma atenção mais da que lhe
exigir o preço do exemplar, não deixe de concluir que o Diabo não é tão feio
como se pinta. Quero dizer…
Quero dizer que o meu vizinho de
Mata-cavalos, temperando o mal com a opinião anti-russa, dava à podridão das
suas carnes um reflexo espiritual que as consolava. Há consolação maiores,
decerto, e uma das mais excelentes é não padecer esse nem outro mal algum, mas
a natureza é tão divina que se diverte com tais contrastes, e aos mais nojentos
ou mais aflitos acena com uma flor. E talvez saia assim a flor mais bela; o meu
jardineiro afirma que as violetas, para terem um cheiro superior, hão mister de
estrume de porco. Não examinei, mas deve ser verdade.
CAPÍTULO XCIII
UM AMIGO POR UM DEFUNTO
Quanto à outra pessoa que teve a força
obliterativa, foi o meu colega Escobar que no domingo, antes do meio-dia, veio
ter a Mata-cavalos. Um amigo supria assim um defunto, e tal amigo que durante
cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas, como se me não
visse desde longos meses.
— Você janta comigo, Escobar?
— Vim para isto mesmo.
Minha mãe agradeceu-lhe a amizade que
me tinha, e ele respondeu com muita polidez, ainda que um tanto atado, como se
carecesse de palavra pronta. Já viste que não era assim, a palavra
obedecia-lhe, mas o homem não é sempre o mesmo em todos os instantes. O que ele
disse, em resumo, foi que me estimava pelas minhas boas qualidades e aprimorada
educação; no seminário todos me queriam bem, nem podia deixar de ser assim,
acrescentou. Insistia na educação, nos bons exemplos, “na doce e rara
mãe” que o céu me deu… Tudo isso com a voz engasgada e trêmula.
Todos ficaram gostando dele. Eu estava
tão contente como se Escobar fosse invenção minha. José Dias desfechou-lhe dois
superlativos, tio Cosme dois capotes, e prima Justina não achou tacha que lhe
pôr; depois, sim, no segundo ou terceiro domingo, veio ela confessar-nos que o
meu amigo Escobar era um tanto metediço e tinha uns olhos policiais a que não
escapava nada.
— São os olhos dele, expliquei.
— Nem eu digo que sejam de outro.
— São olhos refletidos, opinou tio
Cosme.
— Seguramente, acudiu José Dias;
entretanto, pode ser que a senhora D. Justina tenha alguma razão. A verdade é
que uma coisa não impede outra, e a reflexão casa-se muito bem à curiosidade
natural. Parece curioso, isso parece, mas…
— A mim parece-me um mocinho muito
sério, disse minha mãe.
— Justamente! confirmou José Dias para
não discordar dela.
Quando eu referi a Escobar aquela
opinião de minha mãe (sem lhe contar as outras, naturalmente), vi que o prazer
dele foi extraordinário. Agradeceu, dizendo que eram bondades, e elogiou também
minha mãe, senhora grave, distinta e moça, muito moça… Que idade teria?
— Já fez quarenta, respondi eu
vagamente por vaidade.
— Não é possível! exclamou Escobar.
Quarenta anos! Nem parece trinta; está muito moça e bonita. Também a alguém há
de você sair, com esses olhos que Deus lhe deu; são exatamente os dela.
Enviuvou há muitos anos?
Contei-lhe o que sabia da vida dela e
de meu pai. Escobar escutava atento, perguntando mais, pedindo explicação das
passagens omissas ou só escuras. Quando eu lhe disse que não me lembrava nada
da roça, tão pequenino viera, contou-me duas ou três reminiscências dos seus
três anos de idade, ainda agora frescas. E não contávamos voltar à roça?
— Não, agora não voltamos mais. Olhe,
aquele preto que ali vai passando, é de lá. Tomás!
— Nhonhô!
Estávamos na horta da minha casa, e o
preto andava em serviço; chegou-se a nós e esperou.
— É casado, disse eu para Escobar.
Maria onde está?
— Está socando milho, sim, senhor.
— Você ainda se lembra da roça, Tomás?
— Alembra, sim, senhor.
— Bem, vá-se embora.
Mostrei outro, mais outro, e ainda
outro, este Pedro, aquele José, aquele outro Damião…
— Todas as letras do alfabeto,
interrompeu Escobar.
Com efeito, eram diferentes letras, e
só então reparei nisto; apontei ainda outros escravos, alguns com os mesmos
nomes, distinguindo-se por um apelido, ou da pessoa, como João Fulo, Maria
Gorda, ou de nação como Pedro Benguela, Antônio Moçambique…
— E estão todos aqui em casa? perguntou
ele.
— Não, alguns andam ganhando na rua,
outros estão alugados. Não era possível ter todos em casa. Nem são todos os da
roça; a maior parte ficou lá.
— O que me admira é que D. Glória se
acostumasse logo a viver em casa da cidade, onde tudo é apertado; a de lá é
naturalmente grande.
— Não sei, mas parece. Mamãe tem outras
casas maiores que esta; diz porém que há de morrer aqui. As outras estão
alugadas. Algumas são bem grandes, como a da Rua da Quitanda…
— Conheço essa; é bonita.
— Tem também no Rio Comprido, na
Cidade-Nova, uma no Catete…
— Não lhe hão de faltar tetos, concluiu
ele sorrindo com simpatia.
Caminhamos para o fundo. Passamos o
lavadouro; ele parou um instante aí, mirando a pedra de bater roupa e fazendo
reflexões a propósito do asseio; depois continuamos. Quais foram as reflexões
não me lembra agora; lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu
também. A minha alegria acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão
claro, que a natureza parecia rir também conosco. São assim as boas horas deste
mundo. Escobar confessou esse acordo do interno com o externo, por palavras tão
finas e altas que me comoveram; depois, a propósito da beleza moral que se
ajusta à física, tornou a falar de minha mãe, “um anjo dobrado”,
disse ele.
CAPÍTULO XCIV
IDÉIAS ARITMÉTICAS
Não digo o mais, que foi muito. Nem ele
sabia só elogiar é pensar, sabia também calcular depressa e bem. Era das
cabeças aritméticas de Holmes (2 + 2 = 4). Não se imagina a facilidade com que
ele somava ou multiplicava de cor. A divisão, que foi sempre uma das operações
difíceis para mim, era para ele como nada: cerrava um pouco os olhos, voltados
para cima, e sussurrava as denominações dos algarismos; estava pronto. Isto com
sete, treze, vinte algarismos. A vocação era tal que o fazia amar os próprios
sinais das somas, e tinha esta opinião que os algarismos, sendo poucos, eram
muito mais conceituosos que as vinte e cinco letras do alfabeto.
— Há letras inúteis e letras
dispensáveis, dizia ele. Que serviço diverso prestam o d e
o t? Têm quase o mesmo som. O mesmo digo do b e
do p, o mesmo do s, do c e do z, o
mesmo do k e do g, etc. São trapalhices
caligráficas. Veja os algarismos: não há dois que façam o mesmo ofício; 4 é 4,
e 7 é 7. E admire a beleza com que um 4 e um 7 formam esta coisa que se exprime
por 11. Agora dobre 11 e terá 22; multiplique por igual número, dá 484, e assim
por diante. Mas onde a perfeição é maior é no emprego do zero. O
valor do zero é, em si mesmo, nada; mas o ofício deste sinal
negativo é justamente aumentar. Um 5 sozinho é um 5; ponha-lhe dois 00, é 500.
Assim, o que não vale nada faz valer muito, coisa que não fazem as letras
dobradas, pois eu tanto aprovo com um p como
com dois pp.
Criado na ortografia de meus pais,
custava-me a ouvir tais blasfêmias, mas não ousava refutá-lo. Contudo, um dia,
proferi algumas palavras de defesa, ao que ele respondeu que era um
preconceito, e acrescentou que as idéias aritméticas podiam ir ao infinito, com
a vantagem que eram mais fáceis de menear. Assim que, eu não era capaz de
resolver de momento um problema filosófico ou lingüístico, ao passo que ele
podia somar, em três minutos, quaisquer quantias.
— Por exemplo… dê-me um caso, dê-me
uma porção de números que eu não saiba nem possa saber antes… olhe, dê-me o
número das casas de sua mãe e os aluguéis de cada uma, e se eu não disser a
soma total em dois, em um minuto, enforque-me!
Aceitei a aposta, e na semana seguinte
levei-lhe escritos em um papel os algarismos das casas e dos aluguéis. Escobar
pegou o papel, passou-os pelos olhos a fim de os decorar, e enquanto eu fitava
o relógio, ele erguia as pupilas, cerrava as pálpebras, e sussurrava… Oh! o
vento não é mais rápido! Foi dito e feito; em meio minuto bradava-me:
— Dá tudo 1:070$000 mensais.
Fiquei pasmado. Considera que eram não
menos de nove casas, e que os aluguéis variavam de uma para outra, indo de
70$000 a 180$000. Pois tudo isto em que eu gastaria três ou quatro minutos, — e
havia de ser no papel, — fê-lo Escobar de cor, brincando. Olhava-me
triunfalmente, e perguntava se não era exato. Eu, só por lhe mostrar que sim,
tirei do bolso o papelzinho que levava com a soma total, e mostrei-lho; era
aquilo mesmo, nem um erro: 1:070$000.
— Isto prova que as idéias aritméticas
são mais simples, e portanto mais naturais. A natureza é simples. A arte é
atrapalhada.
Fiquei tão entusiasmado com a
facilidade mental do meu amigo, que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio;
outros seminaristas notaram a nossa efusão; um padre que estava com eles não
gostou.
— A modéstia, disse-nos, não consente
esses gestos excessivos; podem estimar-se com moderação.
Escobar observou-me que os outros e o
padre falavam de inveja e propôs-me viver separados. Interrompi-o dizendo que
não; se era inveja, tanto pior para eles.
— Quebremos-lhe a castanha na boca!
— Mas…
— Fiquemos ainda mais amigos que até
aqui.
Escobar apertou-me a mão às escondidas,
com tal força que ainda me doem os dedos. É ilusão, decerto, se não é efeito
das longas horas que tenho estado a escrever sem parar. Suspendamos a pena por
alguns instantes…
CAPÍTULO XCV
O PAPA
A amizade de Escobar fez-se grande e
fecunda; a de José Dias não lhe quis ficar atrás. Na primeira semana disse-me
este em casa:
— Agora é certo que você vai sair já do
seminário.
— Como?
— Espere até amanhã. Vou jogar com eles
que me chamaram; amanhã, lá no quarto, no quintal, ou na rua, indo à missa,
conto-lhe o que há. A idéia é tão santa que não está mal no santuário. Amanhã,
Bentinho.
— Mas é coisa certa?
— Certíssima!
No dia seguinte revelou-me o mistério.
Ao primeiro aspecto, confesso que fiquei deslumbrado. Trazia uma nota de
grandeza e de espiritualidade que falava aos meus olhos de seminarista. Era não
menos que isto. Minha mãe, ao parecer dele, estava arrependida do que fizera, e
desejaria ver-me cá fora, mas entendia que o vínculo moral da promessa a
prendia indissoluvelmente. Cumpria rompê-lo, e para tanto valia a Escritura,
com o poder de desligar dado aos apóstolos. Assim que, ele e eu iríamos a Roma
pedir a absolvição do papa… Que me parecia?
— Parece-me bem, respondi depois de
alguns segundos de reflexão. Pode ser um bom remédio.
— É o único, Bentinho, é o único! Vou
já hoje conversar com D. Glória, exponho-lhe tudo, e podemos partir daqui a
dois meses, ou antes…
— Melhor é falar domingo que vem;
deixe-me pensar primeiro…
— Oh! Bentinho! interrompeu o agregado.
Pensar em quê? Você o que quer… Digo? Não se amofina com o seu velho? Você o
que quer é consultar a uma pessoa.
Rigorosamente, eram duas pessoas,
Capitu e Escobar, mas eu neguei a pés juntos que quisesse consultar ninguém. E
que pessoa, o reitor? Não era natural que lhe confiasse tal assunto. Não, nem
reitor, nem professor, nem ninguém; era só o tempo de refletir, uma semana, no
domingo daria a resposta, e desde já lhe dizia que a idéia não me parecia má.
— Não?
— Não.
— Pois resolvamos hoje mesmo.
— Não se vai a Roma brincando.
— Quem tem boca vai a Roma, e boca no
nosso caso é a moeda. Ora, você pode muito bem gastar consigo… Comigo, não;
um par de calças, três camisas e o pão diário, não preciso mais. Serei como São
Paulo, que vivia do ofício enquanto ia pregando a palavra divina. Pois eu vou,
não pregá-la, mas buscá-la. Levaremos cartas do internúncio e do bispo, cartas
para o nosso ministro, cartas de capuchinhos… Bem sei a objeção que se pode
opor a esta idéia; dirão que é dado pedir a dispensa cá de longe; mas, além do
mais que não digo, basta refletir que é muito mais solene e bonito ver entrar
no Vaticano, e prostrar-se aos pés do papa o próprio objeto do favor, o levita
prometido, que vai pedir para sua mãe terníssima e dulcíssima a dispensa de
Deus. Considere o quadro, você beijando o pé ao príncipe dos apóstolos; Sua
Santidade, com o sorriso evangélico, inclina-se, interroga, ouve, absolve e
abençoa. Os anjos o contemplam, a Virgem recomenda ao santíssimo filho que
todos os seus desejos, Bentinho, sejam satisfeitos, e que o que você amar na
Terra seja igualmente amado no Céu…
Não digo mais, porque é preciso acabar
o capítulo, e ele não acabou o discurso. Falou a todos os meus sentimentos de
católico e de namorado. Vi a alma aliviada de minha mãe, vi a alma feliz de
Capitu, ambas em casa, e eu com elas, e ele conosco, tudo mediante uma pequena
viagem a Roma, que eu só geograficamente sabia onde ficava; espiritualmente,
também, mas a distância que estaria da vontade de Capitu é que não. Eis o ponto
essencial. Se Capitu achasse longe, não iria; mas era preciso ouvi-la, e assim
também a Escobar, que me daria um bom conselho.
CAPÍTULO XCVI
UM SUBSTITUTO
Expus a Capitu a idéia de José Dias.
Ouviu-me atentamente, e acabou triste.
— Você indo, disse ela, esquece-me
inteiramente.
— Nunca!
— Esquece. A Europa dizem que é tão
bonita, e a Itália principalmente. Não é de lá que vêm as cantoras? Você
esquece-me, Bentinho. E não haverá outro meio? D. Glória está morta para que
você saia do seminário.
— Sim, mas julga-se presa pela
promessa.
Capitu não achava outra idéia, nem
acabava de adotar esta. De caminho, pediu-me que, se acaso fosse a Roma,
jurasse que no fim de seis meses estaria de volta.
— Juro.
— Por Deus?
— Por Deus, por tudo. Juro que no fim
de seis meses estarei de volta.
— Mas se o papa não tiver ainda soltado
a você?
— Mando dizer isso mesmo.
— E se você mentir?
Esta palavra doeu-me muito, e não achei
logo que lhe replicasse. Capitu meteu o negócio à bulha, rindo e chamando-me
disfarçado. Depois, declarou crer que eu cumpriria o juramento, mas ainda assim
não consentiu logo; ia ver se não haveria outra coisa, e eu que visse também por
meu lado.
Quando voltei ao seminário, contei tudo
ao meu amigo Escobar, que me ouviu com igual atenção e acabou com a mesma
tristeza da outra. Os olhos, de costume fugidios, quase me comeram de
contemplação. De repente, vi-lhe no rosto um clarão, um reflexo de idéia. E
ouvi-lhe dizer com volubilidade:
— Não, Bentinho, não é preciso isso. Há
melhor, — não digo melhor, porque o Santo Padre vale sempre mais que tudo, —
mas há coisa que produz o mesmo efeito.
— Que é?
— Sua mãe fez promessa a Deus de lhe
dar um sacerdote, não é? Pois bem, dê-lhe um sacerdote, que não seja você. Ela
pode muito bem tomar a si algum mocinho órfão, fazê-lo ordenar à sua custa,
está dado um padre ao altar, sem que você…
— Entendo, entendo, é isso mesmo.
— Não acha? continuou ele. Consulte
sobre isto o protonotário; ele lhe dirá se não é a mesma coisa, ou eu mesmo
consulto, se quer; e se ele hesitar, fala-se ao Sr. bispo.
Eu, refletindo:
— Sim, parece que é isso; realmente, a
promessa cumpre-se, não se perdendo o padre.
Escobar observou que, pelo lado
econômico, a questão era fácil; minha mãe gastaria o mesmo que comigo, e um
órfão não precisaria grandes comodidades. Citou a soma dos aluguéis das casas,
1.070$000, além dos escravos…
— Não há outra coisa, disse eu.
— E saímos juntos.
— Você também?
— Também eu. Vou melhorar o meu latim e
saio; nem dou teologia. O próprio latim não é preciso; para que no comércio?
— In hoc signo vinces,
disse eu rindo.
Sentia-me pilhérico. Oh! como a
esperança alegra tudo. Escobar sorriu, parecendo gostar da resposta. Depois
ficamos a cuidar de nós mesmos, cada um com os seus olhos perdidos,
provavelmente. Os dele estavam assim, quando tornei de longe, e agradeci de
novo o plano lembrado; não podia havê-lo melhor. Escobar ouviu-me
contentíssimo.
— Ainda uma vez, disse ele gravemente,
a religião e a liberdade fazem boa companhia.
CAPÍTULO XCVII
A SAÍDA
Tudo se fez por esse teor. Minha mãe
hesitou um pouco, mas acabou cedendo, depois que o Padre Cabral, tendo consultado
o bispo, voltou a dizer-lhe que sim, que podia ser. Saí do seminário no fim do
ano.
Tinha então pouco mais de dezessete…
Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e
chego quase ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há
mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda,
pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão
por anos, e assim chegaremos ao fim. Um dos sacrifícios que faço a esta dura
necessidade é a análise das minhas emoções dos dezessete anos. Não sei se
alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves saber que é a idade em que a
metade do homem e a metade do menino formam um só curioso. Eu era um
curiosíssimo, diria o meu agregado José Dias, e não diria mal. O que essa
qualidade superlativa me rendeu não poderia nunca dizê-lo aqui, sem cair no
erro que acabo de condenar; a análise das minhas emoções daquele tempo é que
entrava no meu plano. Posto que filho do seminário e de minha mãe, sentia já
debaixo do recolhimento casto uns assomos de petulância e de atrevimento; eram
do sangue, mas eram também das moças que na rua ou da janela não me deixavam
viver sossegado. Achavam-me lindo, e diziam-mo; algumas queriam mirar de mais perto
a minha beleza, e a vaidade é um princípio de corrupção.
CAPÍTULO XCVIII
CINCO ANOS
Venceu a razão; fui-me aos estudos.
Passei os dezoito anos, os dezenove, os
vinte, os vinte e um; aos vinte e dois era bacharel em Direito.
Tudo mudara em volta de mim. Minha mãe
resolvera-se a envelhecer; ainda assim os cabelos brancos vinham de má vontade,
aos poucos e espalhadamente; a touca, os vestidos, os sapatos rasos e surdos
eram os mesmos de outrora. Já não andaria tanto de um lado para outro. Tio Cosme
padecia do coração e ia descansar. A prima Justina apenas estava mais idosa.
José Dias também, não tanto que me não fizesse a fineza de ir assistir à minha
graduação, e descer comigo a serra, lépido e viçoso, como se o bacharel fosse
ele. A mãe de Capitu falecera, o pai aposentara-se no mesmo cargo em que quis
dar demissão da vida.
Escobar começava a negociar em café
depois de haver trabalhado quatro anos em uma das primeiras casas do Rio de
Janeiro. Era opinião de prima Justina que ele afagara a idéia de convidar minha
mãe a segundas núpcias; mas, se tal idéia houve, cumpre não esquecer a grande
diferença de idade. Talvez ele não pensasse em mais que associá-la aos seus
primeiros tentâmens comerciais, e de fato, a pedido meu, minha mãe adiantou-lhe
alguns dinheiros, que ele lhe restituiu, logo que pôde, não sem este remoque:
“D. Glória é medrosa e não tem ambição.”
A separação não nos esfriou. Ele foi o
terceiro na troca das cartas entre mim e Capitu. Desde que a viu animou-me
muito no nosso amor. As relações que travou com o pai de Sancha estreitaram as
que já trazia com Capitu, e fê-lo servir a ambos nós, como amigo. A princípio,
custou-lhe a ela aceitá-lo, preferia José Dias, mas José Dias repugnava-me por
um resto de respeito de criança. Venceu Escobar; posto que vexada, Capitu
entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das outras. Nem depois de
casado suspendeu ele o obséquio… Que ele casou, — adivinha com quem, — casou
com a boa Sancha, a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma vez,
escrevendo-me, chamava a esta a “sua cunhadinha”.Assim se formam as
afeições e os parentescos, as aventuras e os livros.
CAPÍTULO XCIX
O FILHO É A CARA DO PAI
Minha mãe, quando eu regressei bacharel
quase estalou de felicidade. Ainda ouço a voz de José Dias, lembrando o
evangelho de São João, e dizendo ao ver-nos abraçados:
— Mulher, eis aí o teu filho! Filho,
eis aí a tua mãe!
Minha mãe, entre lágrimas:
— Mano Cosme, é a cara do pai, não é?
— Sim, tem alguma coisa, os olhos, a
disposição do rosto. É o pai, um pouco mais moderno, concluiu por chalaça. E
diga-me agora, mana Glória, não foi melhor que ele não teimasse em ser padre?
Veja se este peralta daria um padre capaz.
— Como vai o meu substituto?
— Vai indo, ordena-se para o ano,
respondeu tio Cosme. Hás de ir ver a ordenação; eu também, se o meu senhor
coração consentir. É bom que te sintas na alma do outro, como se recebesses em
ti mesmo a sagração.
— Justamente! exclamou minha mãe. Mas
veja bem, mano Cosme, veja se não é a figura do meu defunto. Olha, Bentinho,
olha bem para mim. Sempre achei que te parecias com ele, agora é muito mais. O
bigode é que desfaz um pouco…
— Sim, mana Glória, o bigode
realmente… mas é muito parecido.
E minha mãe beijava-me com uma ternura
que não sei escrever. Tio Cosme, para alegrá-la, chamava-me doutor, José Dias
também, e todos em casa, a prima, os escravos, as visitas, Pádua, a filha, e
ela mesma repetiam-me o título.
CAPÍTULO C
“TU SERÁS FELIZ, BENTINHO”
No quarto, desfazendo a mala e tirando
a carta de bacharel de dentro da lata, ia pensando na felicidade e na glória.
Via o casamento e a carreira ilustre, enquanto José Dias me ajudava, calado e
zeloso. Uma fada invisível desceu ali e me disse em voz igualmente macia e
cálida: “Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz.”
— E por que não seria feliz? perguntou
José Dias, endireitando o tronco e fitando-me.
— Você ouviu? perguntei eu erguendo-me
também, espantado.
— Ouviu o quê?
— Ouviu uma voz que dizia que eu serei
feliz?
— É boa! Você mesmo é que está
dizendo…
Ainda agora sou capaz de jurar que a
voz era da fada; naturalmente as fadas, expulsas dos contos e dos versos,
meteram-se no coração da gente e falam de dentro para fora. Esta, por exemplo,
muita vez a ouvi clara e distinta. Há de ser prima das feiticeiras da Escócia:
“Tu serás rei, Macbeth!” — “Tu serás feliz, Bentinho!” Ao
cabo, é a mesma predição, pela mesma toada universal e eterna. Quando voltei do
meu espanto, ouvi o resto do discurso de José Dias:
—…Há de ser feliz, como merece, assim
como mereceu esse diploma que ali está, que não é favor de ninguém. A distinção
que tirou em todas as matérias é prova disso; já lhe contei que ouvi da boca
dos lentes, em particular, os maiores elogios. Demais, a felicidade não é só a
glória, é também outra coisa… Ah! você não confiou tudo ao velho José Dias! O
pobre José Dias está aí para um canto, é caju chupado, não vale nada; agora são
os novos, os Escobares… Não lhe nego que é moço muito distinto, e trabalhador,
e marido de truz; mas, enfim, velho também sabe amar…
— Mas que é?
— Que há de ser? Quem é que não sabe
tudo?… Aquela intimidade de vizinhos tinha de acabar nisto, que é
verdadeiramente uma bênção do céu, porque ela é um anjo, é um anjíssimo…
Perdoe a cincada, Bentinho, foi um modo de acentuar a perfeição daquela moça.
Cuidei o contrário, outrora; confundi os modos de criança com expressões de
caráter, e não vi que essa menina travessa e já de olhos pensativos era a flor
caprichosa de um fruto sadio e doce… Por que é que não me contou também o que
outros sabem, e cá em casa está mais que adivinhado e aprovado?
— Mamãe aprova deveras?
— Pois então? Temos falado sobre isso,
e ela fez-me o favor de pedir a minha opinião. Pergunte-lhe o que é que eu lhe
disse em termos claros e positivos; pergunte-lhe. Disse-lhe que não podia
desejar melhor nora para si, boa, discreta, prendada, amiga da gente… e uma
dona de casa, que não lhe digo nada. Depois da morte da mãe, tomou conta de
tudo. Pádua, agora que se aposentou, não faz mais que receber o ordenado e
entregá-lo à filha. A filha é que distribui o dinheiro, paga as contas, faz o
rol das despesas, cuida de tudo, mantimento, roupa, luz; você já a viu o ano
passado. E quanto à formosura você sabe melhor que ninguém…
— Mas, deveras, mamãe consultou o
senhor sobre o nosso casamento?
— Positivamente, não; fez-me o favor de
perguntar se Capitu não daria uma boa esposa; eu é que, na resposta, falei em
nora. D. Glória não negou e até deu um ar de riso.
— Mamãe sempre que me escrevia, falava
de Capitu.
— Você sabe que elas se dão muito, e
por isso é que sua prima anda cada vez mais amuada. Talvez agora case mais
depressa.
— Prima Justina?
— Não sabe? São contos, naturalmente;
mas enfim, o Doutor João da Costa enviuvou há poucos meses, e dizem (não sei, o
protonotário é que me contou), dizem que os dois andam meio inclinados a acabar
com a viuvez, entre si, casando-se. Há de ver que não há nada, mas não é fora
de propósito, conquanto ela sempre achasse que o doutor era um feixe de
ossos… Só se ela é um cemitério, comentou rindo; e logo sério: Digo isto por
gracejo…
Não ouvi o resto. Ouvia só a voz da
minha fada interior, que me repetia, mas já então sem palavras: “Tu serás
feliz, Bentinho!” E a voz de Capitu me disse a mesma coisa, com termos
diversos, e assim também a de Escobar, os quais ambos me confirmaram a notícia
de José Dias pela sua própria impressão. Enfim, minha mãe, algumas semanas
depois, quando lhe fui pedir licença para casar, além do consentimento, deu-me
igual profecia, salva a redação própria de mãe: “Tu serás feliz, meu
filho!
CAPÍTULO CI
NO CÉU
Pois sejamos felizes de uma vez, antes
que o leitor pegue em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte;
casemo-nos. Foi em 1865, uma tarde de março, por sinal que chovia. Quando
chegamos ao alto da Tijuca, onde era o nosso ninho de noivos, o céu recolheu a
chuva e acendeu as estrelas, não só as já conhecidas, mas ainda as que só serão
descobertas daqui a muitos séculos. Foi grande fineza e não foi única. São
Pedro, que tem as chaves do Céu, abriu-nos as portas dele, fez-nos entrar, e
depois de tocar-nos com o báculo, recitou alguns versículos da sua primeira
epístola: “As mulheres sejam sujeitas a seus maridos… Não seja o adorno
delas o enfeite dos cabelos riçados ou as rendas de ouro, mas o homem que está
escondido no coração… Do mesmo modo, vós, maridos, coabitai com elas,
tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e herdeiras convosco da graça
da vida…” Em seguida, fez sinal aos anjos, e eles entoaram um trecho
do Cântico, tão concertadamente, que desmentiriam a hipótese do
tenor italiano, se a execução fosse na Terra; mas era no Céu. A música ia com o
texto, como se houvessem nascido juntos, à maneira de uma ópera de Wagner.
Depois, visitamos uma parte daquele lugar infinito. Descansa que não farei
descrição alguma, nem a língua humana possui formas idôneas para tanto.
Ao cabo, pode ser que tudo fosse um
sonho; nada mais natural a um ex-seminarista que ouvir por toda a parte latim e
Escritura. É verdade que Capitu, que não sabia Escritura nem latim, decorou
algumas palavras, como estas, por exemplo: “Sentei-me à sombra daquele que
tanto havia desejado”.Quanto às de São Pedro, disse-me no dia seguinte que
estava por tudo, que eu era a única renda e o único enfeite que jamais poria em
si. Ao que eu repliquei que a minha esposa teria sempre as mais finas rendas
deste mundo.
CAPÍTULO CII
DE CASADA
Imagina um relógio que só tivesse
pêndulo, sem mostrador, de maneira que não se vissem as horas escritas. O
pêndulo iria de um lado para outro, mas nenhum sinal externo mostraria a marcha
do tempo. Tal foi aquela semana da Tijuca.
De quando em quando, tornávamos ao
passado e divertíamo-nos em relembrar as nossas tristezas e calamidades, mas
isso mesmo era um modo de não sairmos de nós. Assim vivemos novamente a nossa
longa espera de namorados, os anos da adolescência, a denúncia que está nos
primeiros capítulos, e ríamos de José Dias que conspirou a nossa desunião, e
acabou festejando o nosso consórcio. Uma ou outra vez, falávamos em descer, mas
as manhãs marcadas eram sempre de chuva ou de sol, e nós esperávamos um dia
encoberto, que teimava em não vir.
Não obstante, achei que Capitu estava
um tanto impaciente por descer. Concordava em ficar, mas ia falando do pai e de
minha mãe, da falta de notícias nossas, disto e daquilo, a ponto que nos
arrufamos um pouco. Perguntei-lhe se já estava aborrecida de mim.
— Eu?
— Parece.
— Você há de ser sempre criança, disse
ela fechando-me a cara entre as mãos e chegando muito os olhos aos meus. Então
eu esperei tantos anos para aborrecer-me em sete dias? Não, Bentinho; digo isto
porque é realmente assim, creio que eles podem estar desejosos de ver-nos e
imaginar alguma doença; e confesso, pela minha parte, que queria ver papai.
— Pois vamos amanhã.
— Não; há de ser com tempo encoberto,
redargüiu rindo.
Peguei-lhe no riso e na palavra, mas a
impaciência continuou, e descemos com sol.
A alegria com que pôs o seu chapéu de
casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o
braço para andar na rua, tudo me mostrou que a causa da impaciência de Capitu
eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre
quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também. E quando
eu me vi embaixo, pisando as ruas com ela, parando, olhando, falando, senti a
mesma coisa. Inventava passeios para que me vissem, me confirmassem e me
invejassem. Na rua, muitos voltavam a cabeça curiosos, outros paravam, alguns
perguntavam: “Quem são?” e um sabido explicava: “Este é o Doutor
Santiago, que casou há dias com aquela moça, D. Capitolina, depois de uma longa
paixão de crianças; moram na Glória, as famílias residem em Mata-cavalos.”
E ambos os dois: “É uma mocetona!”
CAPÍTULO CIII
A FELICIDADE TEM BOA ALMA
Mocetona é vulgar; José Dias achou
melhor. Foi a única pessoa cá de baixo que nos visitou na Tijuca, levando
abraços dos nossos e palavras suas, mas palavras que eram músicas verdadeiras;
não as ponho aqui para ir poupando papel, mas foram deliciosas. Um dia,
comparou-nos a aves criadas em dois vãos de telhados contíguos. Imagina o
resto, as aves emplumando as asas e subindo ao céu, e o céu agora mais largo
para poder contê-las também. Nenhum de nós riu; ambos escutávamos comovidos e
convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de 1857… A felicidade tem boa
alma.
CAPÍTULO CIV
AS PIRÂMIDES
José Dias dividia-se agora entre mim e
minha mãe, alternando os jantares da Glória com os almoços de Mata-cavalos.
Tudo corria bem. Ao fim de dois anos de casado, salvo o desgosto grande de não
ter um filho, tudo corria bem. Perdera meu sogro, é verdade, e o tio Cosme
estava por pouco, mas a saúde de minha mãe era boa; a nossa excelente.
Eu era advogado de algumas casas ricas,
e os processos vinham chegando. Escobar contribuíra muito para as minhas
estréias no foro. Interveio com um advogado célebre para que me admitisse à sua
banca, e arranjou-me algumas procurações, tudo espontaneamente.
Demais, as nossas relações de família
estavam previamente feitas; Sancha e Capitu continuavam depois de casadas a
amizade da escola, Escobar e eu a do seminário. Eles moravam em Andaraí, aonde
queriam que fôssemos muitas vezes, e, não podendo ser tantas como desejávamos,
íamos lá jantar alguns domingos, ou eles vinham fazê-lo conosco. Jantar é
pouco. Íamos sempre muito cedo, logo depois do almoço, para gozarmos o dia
compridamente, e só nos separávamos às nove, dez e onze horas, quando não podia
ser mais. Agora que penso naqueles dias de Andaraí e da Glória, sinto que a
vida e o resto não sejam tão rijos como as Pirâmides.
Escobar e a mulher viviam felizes;
tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de uma aventura do marido, negócio de
teatro, não sei que atriz ou bailarina, mas se foi certo, não deu escândalo.
Sancha era modesta, o marido trabalhador. Como eu um dia dissesse a Escobar que
lastimava não ter um filho, replicou-me:
— Homem, deixa lá. Deus os dará quando
quiser, e se não der nenhum é que os quer para si, e melhor será que fiquem no
Céu.
— Uma criança, um filho é o complemento
natural da vida.
— Virá, se for necessário.
Não vinha. Capitu pedia-o em suas
orações, eu mais de uma vez dava por mim a rezar e a pedi-lo. Já não era como
em criança; agora pagava antecipadamente, como os aluguéis da casa.
CAPÍTULO CV
OS BRAÇOS
No mais, tudo corria bem. Capitu
gostava de rir e divertir-se, e, nos primeiros tempos, quando íamos a passeios
ou espetáculos, era como um pássaro que saísse da gaiola. Arranjava-se com
graça e modéstia. Embora gostasse de jóias, como as outras moças, não queria
que eu lhe comprasse muitas nem caras, e um dia afligiu-se tanto que prometi
não comprar mais nenhuma; mas foi só por pouco tempo.
A nossa vida era mais ou menos plácida.
Quando não estávamos com a família ou com amigos, ou se não íamos a algum
espetáculo ou serão particular (e estes eram raros), passávamos as noites à
nossa janela da Glória, mirando o mar e o céu, a sombra das montanhas e dos navios,
ou a gente que passava na praia. Às vezes, eu contava a Capitu a história da
cidade, outras dava-lhe notícias de astronomia; notícias de amador que ela
escutava atenta e curiosa, nem sempre tanto que não cochilasse um pouco. Não
sabendo piano, aprendeu depois de casada, e depressa, e daí a pouco tocava nas
casas de amizade. Na Glória era uma das nossas recreações; também cantava, mas
pouco e raro, por não ter voz; um dia chegou a entender que era melhor não
cantar nada e cumpriu o alvitre. De dançar gostava, e enfeitava-se com amor
quando ia a um baile; os braços é que… Os braços merecem um período.
Eram belos, e na primeira noite que os
levou nus a um baile, não creio que houvesse iguais na cidade, nem os seus,
leitora, que eram então de menina, se eram nascidos, mas provavelmente estariam
ainda no mármore, donde vieram, ou nas mãos do divino escultor. Eram os mais
belos da noite, a ponto que me encheram de desvanecimento. Conversava mal com
as outras pessoas, só para vê-los, por mais que eles se entrelaçassem aos das
casacas alheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse, quando vi que os
homens não se fartavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir, e
que roçavam por eles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro não
fui, e aqui tive o apoio de Escobar, a quem confiei candidamente os meus
tédios; concordou logo comigo.
— Sanchinha também não vai, ou irá de
mangas compridas; o contrário parece-me indecente.
— Não é? Mas não diga o motivo; hão de
chamar-nos seminaristas. Capitu já me chamou assim.
Nem por isso deixei de contar a Capitu
a aprovação de Escobar. Ela sorriu e respondeu que os braços de Sanchinha eram
mal feitos, mas cedeu depressa, e não foi ao baile; a outros foi, mas levou-os
meio vestidos de escumilha ou não sei que, que nem cobria nem descobria
inteiramente, como o cendal de Camões.
CAPÍTULO CVI
DEZ LIBRAS ESTERLINAS
Já disse que era poupada, ou fica dito
agora, e não só de dinheiro mas também de coisas usadas, dessas que se guardam
por tradição, por lembrança ou por saudade. Uns sapatos, por exemplo, uns
sapatinhos rasos de fitas pretas que se cruzavam no peito do pé e princípio da
perna, os últimos que usou antes de calçar botinas, trouxe-os para casa, e
tirava-os de longe em longe da gaveta da cômoda, com outras velharias,
dizendo-me que eram pedaços de criança. Minha mãe, que tinha o mesmo gênio,
gostava de ouvir falar e fazer assim.
Quanto às puras economias de dinheiro,
direi um caso, e basta. Foi justamente por ocasião de uma lição de astronomia,
à Praia da Glória. Sabes que alguma vez a fiz cochilar um pouco. Uma noite
perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciúmes.
— Você não me ouve, Capitu.
— Eu? Ouço perfeitamente.
— O que é que eu dizia?
— Você…você falava de Sírius.
— Qual Sírius, Capitu. Há vinte minutos
que eu falei de Sírius.
— Falava de… falava de Marte, emendou
ela apressada.
Realmente, era de Marte, mas é claro
que só apanhara o som da palavra, não o sentido. Fiquei sério, e o ímpeto que
me deu foi deixar a sala; Capitu, ao percebê-lo, fez-se a mais mimosa das
criaturas, pegou-me na mão, confessou-me que estivera contando, isto é, somando
uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava. Tratava-se de uma
conversão de papel em ouro. A princípio supus que era um recurso para
desenfadar-me, mas daí a pouco estava eu mesmo calculando também, já então com
papel e lápis, sobre o joelho, e dava a diferença que ela buscava.
— Mas que libras são essas?
perguntei-lhe no fim.
Capitu fitou-me rindo, e replicou que a
culpa de romper o segredo era minha. Ergueu-se, foi ao quarto e voltou com dez
libras esterlinas, na mão; eram as sobras do dinheiro que eu lhe dava
mensalmente para as despesas.
— Tudo isto?
— Não é muito, dez libras só; é o que a
avarenta de sua mulher pôde arranjar, em alguns meses, concluiu fazendo tinir o
ouro na mão.
— Quem foi o corretor?
— O seu amigo Escobar.
— Como é que ele não me disse nada?
— Foi hoje mesmo.
— Ele esteve cá?
— Pouco antes de você chegar; eu não
disse para que você não desconfiasse.
Tive vontade de gastar o dobro do ouro
em algum presente comemorativo, mas Capitu deteve-me. Ao contrário,
consultou-me sobre o que havíamos de fazer daquelas libras.
— São suas, respondi.
— São nossas, emendou.
— Pois você guarde-as.
No dia seguinte, fui ter com Escobar ao
armazém, e ri-me do segredo de ambos. Escobar sorriu e disse-me que estava para
ir ao meu escritório contar-me tudo. A cunhadinha (continuava a dar este nome a
Capitu) tinha-lhe falado naquilo por ocasião da nossa última visita a Andaraí,
e disse-lhe a razão do segredo.
— Quando contei isto a Sanchinha,
concluiu ele, ficou espantada: “Como é que Capitu pode economizar, agora
que tudo está tão caro?” — “Não sei, filha; sei que arranjou dez libras.”
— Vê se ela aprende também.
— Não creio; Sanchinha não é
gastadeira, mas também não é poupada; o que lhe dou chega, mas só chega.
Eu, depois de alguns instantes de
reflexão:
— Capitu é um anjo!
Escobar concordou de cabeça, mas sem
entusiasmo, como quem sentia não poder dizer o mesmo da mulher. Assim pensarias
tu também, tão certo é que as virtudes das pessoas próximas nos dão tal ou qual
vaidade, orgulho ou consolação.
CAPÍTULO CVII
CIÚMES DO MAR
Se não fosse a astronomia, não
descobriria eu tão cedo as dez libras de Capitu; mas não é por isso que torno a
ela, é para que não cuides que a vaidade de professor é que me fez padecer com
a desatenção de Capitu e ter ciúmes do mar. Não, meu amigo. Venho explicar-te que
tive tais ciúmes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher, não fora ou
acima dela. É sabido que as distrações de uma pessoa podem ser culpadas, metade
culpadas, um terço, um quinto, um décimo de culpadas, pois que em matéria de
culpa a graduação é infinita. A recordação de uns simples olhos basta para
fixar outros que os recordem e se deleitem com a imaginação deles. Não é mister
pecado efetivo e mortal, nem papel trocado, simples palavra, aceno, suspiro ou
sinal ainda mais miúdo e leve. Um anônimo ou anônima que passe na esquina da
rua faz com que metamos Sírius dentro de Marte, e tu sabes, leitor, a diferença
que há de um a outro na distância e no tamanho, mas a astronomia tem dessas
confusões. Foi isto que me fez empalidecer, calar e querer fugir da sala para
voltar, Deus sabe quando; provavelmente, dez minutos depois. Dez minutos
depois, estaria eu outra vez na sala, ao piano ou à janela, continuando a lição
interrompida:
— Marte está à distância de…
Tão pouco tempo? Sim, tão pouco tempo, dez
minutos. Os meus ciúmes eram intensos, mas curtos; com pouco derrubaria tudo,
mas com o mesmo pouco ou menos reconstruiria o céu, a terra e as estrelas.
A verdade é que fiquei mais amigo de
Capitu, se era possível, ela ainda mais meiga, o ar mais brando, as noites mais
claras, e Deus mais Deus. E não foram propriamente as dez libras esterlinas que
fizeram isto, nem o sentimento de economia que revelavam e que eu conhecia, mas
as cautelas que Capitu empregou para o fim de descobrir-me um dia o cuidado de
todos os dias. Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas
visitas foram-se tornando mais próximas, e as nossas conversações mais íntimas.
CAPÍTULO CVIII
UM FILHO
Pois nem tudo isso me matava a sede de
um filho, um triste menino que fosse, amarelo e magro, mas um filho, um filho
próprio da minha pessoa. Quando íamos a Andaraí e víamos a filha de Escobar e
Sancha, familiarmente Capituzinha, por diferençá-la de minha mulher, visto que
lhe deram o mesmo nome à pia, ficávamos cheios de invejas. A pequena era
graciosa e gorducha, faladeira e curiosa. Os pais, como os outros pais,
contavam as travessuras e agudezas da menina, e nós, quando voltávamos à noite
para a Glória, vínhamos suspirando as nossas invejas, e pedindo mentalmente ao Céu
que no-las matasse…
…As invejas morreram, as esperanças
nasceram, e não tardou que viesse ao mundo o fruto delas. Não era escasso nem
feio, como eu já pedia, mas um rapagão robusto e lindo.
A minha alegria quando ele nasceu, não
sei dizê-la; nunca a tive igual, nem creio que a possa haver idêntica, ou que
de longe ou de perto se pareça com ela. Foi uma vertigem e uma loucura. Não
cantava na rua por natural vergonha, nem em casa para não afligir Capitu
convalescente. Também não caía, porque há um deus para os pais novos. Fora,
vivia com o espírito no menino; em casa, com os olhos, a observá-lo, a mirá-lo,
a perguntar-lhe donde vinha, e por que é que eu estava tão inteiramente nele, e
várias outras tolices sem palavras, mas pensadas ou deliradas a cada instante.
Talvez perdi algumas causas no foro por descuido.
Capitu não era menos terna para ele e
para mim. Dávamos as mãos um ao outro, e, quando não olhávamos para o nosso
filho, conversávamos de nós, do nosso passado e do nosso futuro. As horas de maior
encanto e mistério eram as de amamentação. Quando eu via o meu filho chupando o
leite da mãe, e toda aquela união da natureza para a nutrição e vida de um ser
que não fora nada, mas que o nosso destino afirmou que seria, e a nossa
constância e o nosso amor fizeram que chegasse a ser, ficava que não sei dizer
nem digo; positivamente não me lembra, e receio que o que dissesse me saísse
escuro.
Escusai minúcias. Assim que, não é
preciso contar a dedicação de minha mãe e de Sancha, que também foi passar com
Capitu os primeiros dias e noites. Quis rejeitar o obséquio de Sancha;
respondeu-me que eu não tinha nada com isso; também Capitu, em solteira, fora
tratá-la à Rua dos Inválidos.
— Não se lembra que o senhor foi lá
vê-la?
— Lembra-me; mas Escobar…
— Eu virei jantar com vocês, e às
noites sigo para Andaraí; oito dias, e está tudo passado. Bem se vê que você é
pai de primeira viagem.
— Também você; onde está a segunda?
Usávamos então estas graças em família.
Hoje, que me recolhi à minha casmurrice, não sei se ainda há tal linguagem, mas
deve haver. Escobar cumpriu o que disse; jantava conosco, e ia-se à noite.
Sobre tarde descíamos à praia ou íamos ao Passeio Público, fazendo ele os seus
cálculos, eu os meus sonhos. Eu via o meu filho médico, advogado, negociante,
meti-o em várias universidades e bancos, e até aceitei a hipótese de ser poeta.
A possibilidade de político foi consultada, e cri que me saísse orador, e
grande orador.
— Pode ser, redargüia Escobar; ninguém
diria o que veio a se Demóstenes.
Escobar acompanhava muita vez as minhas
criancices; também interrogava o futuro. Chegou a falar da hipótese de casar o
pequeno com a filha. A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as
de Escobar, ao ouvir-lhe isto, e na total ausência de palavras com que ali
assinei o pacto; estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que
batia com grande força. Aceitei a lembrança, e propus que os encaminhássemos a
este fim, pela educação igual e comum, pela infância unida e correta.
Era minha idéia que Escobar fosse
padrinho do pequeno; a madrinha devia ser e seria minha mãe. Mas a primeira
parte se trocou por intervenção do tio Cosme, que, ao ver a criança, disse-lhe
entre outros carinhos:
— Anda, toma a bênção a teu padrinho,
velhaco.
E, voltando-se para mim:
— Não desisto do favor; e há de ser
depressa o batizado, antes que a minha doença me leve de vez.
Contei discretamente a anedota a
Escobar, para que ele me compreendesse e desculpasse; riu-se e não se magoou.
Fez mais, quis que o almoço do batizado fosse na chácara dele, e foi. Eu ainda
tentei espaçar a cerimônia a ver se tio Cosme sucumbia primeiro à doença, mas
parece que esta era mais de aborrecer que de matar. Não houve remédio senão
levar o menino à pia, onde se lhe deu o nome de Ezequiel; era o de Escobar, e
eu quis suprir deste modo a falta de compadrio.
CAPÍTULO CIX
UM FILHO ÚNICO
Ezequiel, quando começou o capítulo
anterior, não era ainda gerado; quando acabou era cristão e católico. Este
outro é destinado a fazer chegar o meu Ezequiel aos cinco anos, um rapagão
bonito, com os seus olhos claros, já inquietos, como se quisessem namorar todas
as moças da vizinhança, ou quase todas.
Agora, se considerares que ele foi
único, que nenhum outro veio, certo nem incerto, morto nem vivo, um só e único,
imaginarás os cuidados que nos deu, os sonos que nos tirou, e que sustos nos
meteram as crises dos dentes e outras, a menor febrícula, toda a existência
comum das crianças. A tudo acudíamos, segundo cumpria e urgia, coisa que não
era necessário dizer, mas há leitores tão obtusos, que nada entendem, se lhes
não relata tudo e o resto. Vamos ao resto.
CAPÍTULO CX
RASGOS DA INFÂNCIA
O resto come-me ainda muitos capítulos;
há vidas que os têm menos, e fazem-se ainda assim completas e acabadas.
Aos cinco e seis anos, Ezequiel não
parecia desmentir os meus sonhos da Praia da Glória; ao contrário,
adivinhavam-se nele todas as vocações possíveis, desde vadio até apóstolo.
Vadio é aqui posto no bom sentido, no sentido de homem que pensa e cala;
metia-se às vezes consigo, e nisto fazia lembrar a mãe, desde pequena. Assim
também, agitava-se todo e instava por ir persuadir às vizinhas que os doces que
eu lhe trazia eram doces deveras; não o fazia antes de farto deles, mas também
os apóstolos não levam a boa doutrina senão depois de a terem toda no coração.
Escobar, bom negociante, opinava que a causa principal desta outra inclinação,
talvez fosse convidar implicitamente as vizinhas a igual apostolado, quando os
pais lhe trouxessem doces; e ria-se da própria graça, e anunciava-me que o
faria seu sócio.
Gostava de música, não menos que de
doce, e eu disse a Capitu que lhe tirasse ao piano o pregão do preto das
cocadas de Mata-cavalos…
— Não me lembra.
— Não diga isso; você não se lembra
daquele preto que vendia doce, às tardes…
— Lembra-me de um preto que vendia
doce, mas não sei mais da toada.
— Nem das palavras?
— Nem das palavras.
A leitora, que ainda se lembrará das
palavras, dado que me tenha lido com atenção, ficará espantada de tamanho
esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda as vozes da sua infância e
adolescência; haverá olvidado algumas, mas nem tudo fica na cabeça. Assim me
replicou Capitu, e não achei tréplica. Fiz, porém, o que ela não esperava;
corri aos meus papéis velhos. Em São Paulo, quando estudante, pedi a um
professor de música que me transcrevesse a toada do pregão; ele o fez com
prazer (bastou-me repetir-lho de memória), e eu guardei o papelzinho; fui
procurá-lo. Daí a pouco interrompi um romance que ela tocava, com o pedacinho
de papel na mão. Expliquei-lho; ela teclou as dezesseis notas.
Capitu achou à toada um sabor
particular, quase delicioso; contou ao filho a história do pregão, e assim o
cantava e teclava. Ezequiel aproveitou a música para pedir-me que desmentisse o
texto, dando-lhe algum dinheiro.
Fazia de médico, de militar, de ator e
bailarino. Nunca lhe dei oratórios; mas cavalos de pau e espada à cinta eram
com ele. Já não falo dos batalhões que passavam na rua, e que ele corria a ver;
todas as crianças o fazem. O que nem todas fazem é ter os olhos que esta tinha.
Em nenhuma vi as ânsias de gosto com que assistia à passagem da tropa e ouvia
tocar a marcha dos tambores.
— Olha, papai! olha!
— Estou vendo, meu filho!
— Olha o comandante! Olha o cavalo do
comandante! Olha os soldados!
Um dia amanheceu tocando corneta com a
mão; dei-lhe uma cornetinha de metal. Comprei-lhe soldadinhos de chumbo,
gravuras de batalhas que ele mirava por muito tempo, querendo que lhe explicasse
uma peça de artilharia, um soldado caído, outro de espada alçada, e todos os
seus amores iam para o de espada alçada. Um dia (ingênua idade!) perguntou-me
impaciente:
— Mas, papai, por que é que ele não
deixa cair a espada de uma vez?
— Meu filho, é porque é pintado.
— Mas então por que é que ele se
pintou?
Ri-me do engano e expliquei-lhe que não
era o soldado que se tinha pintado no papel, mas o gravador, e tive de explicar
também o que era gravador e o que era gravura: as curiosidades de Capitu, em
suma.
Tais são os principais rasgos da
infância: mais um e acabo o capítulo. Um dia, na chácara de Escobar, deu com um
gato que tinha um rato atravessado na boca. O gato nem deixava a presa, nem via
por onde fugisse. Ezequiel não disse nada, deteve-se, acocorou-se, e ficou
olhando. Ao vê-lo assim atento, perguntamos-lhe de longe o que era; fez-nos
sinal que nos calássemos. Escobar concluiu:
— Vão ver que é o gato que apanhou
algum rato. Os ratos continuam a infestar-me a casa, que é o diabo. Vamos ver.
Capitu quis também ver o filho;
acompanhei-os. Efetivamente, era um gato e um rato, lance banal, sem interesse
nem graça. A única circunstância particular era estar o rato vivo, esperneando,
e o meu pequeno enlevado. De resto, o instante foi curto. O gato, logo que
sentiu mais gente, dispôs-se a correr; o menino, sem tirar-lhe os olhos de
cima, fez-nos outro sinal de silêncio; e o silêncio não podia ser maior. Ia
dizer religioso, risquei a palavra, mas aqui a ponho outra vez, não só por significar
a totalidade do silêncio, mas também porque havia naquela ação do gato e do
rato alguma coisa que prendia com ritual. O único rumor eram os últimos
guinchos do rato, aliás frouxíssimos; as pernas mal se lhe moviam e
desordenadamente. Um tanto aborrecido, bati palmas para que o gato fugisse, e o
gato fugiu. Os outros nem tiveram tempo de atalhar-me, Ezequiel ficou abatido.
— Ora, papai!
— Que foi? A esta hora o rato está
comido.
— Pois sim, mas eu queria ver.
Os dois riram-se; eu mesmo achei-lhe
graça.
CAPÍTULO CXI
CONTADO DEPRESSA
Achei-lhe graça, e não lhe nego ainda
agora, apesar do tempo passado, dos sucessos ocorridos e da tal ou qual
simpatia ao rato que acho em mim; teve graça. Não me pesa dizê-lo; os que amam
a natureza como ela quer ser amada, sem repúdio parcial nem exclusões injustas,
não acham nela nada inferior. Amo o rato, não desamo o gato. Já pensei em os
fazer viver juntos, mas vi que são incompatíveis. Em verdade, um rói-me os
livros, outro o queijo; mas não é muito que eu lhes perdoe, se já perdoei a um
cachorro que me levou o descanso em piores circunstâncias. Contarei o caso
depressa.
Foi quando nasceu Ezequiel; a mãe
estava com febre, Sancha vivia ao pé dela, e três cães na rua latiam toda a
noite. Procurei o fiscal, e foi como se procurasse o leitor, que só agora sabe
disto. Então resolvi matá-los; comprei veneno, mandei fazer três bolas de
carne, e eu mesmo inseri nelas a droga. De noite, saí; era uma hora; nem a
doente, nem a enfermeira podiam dormir, com a bulha dos cães. Quando eles me
viram, afastaram-se, dois desceram para o lado da Praia do Flamengo, um ficou a
curta distância, como que esperando. Fui-me a ele, assobiando e dando
estalinhos com os dedos. O diabo ainda latiu, mas fiado nos sinais de amizade, foi-se
calando, até que se calou de todo. Como eu continuasse, ele veio a mim,
devagar, mexendo a cauda, que é o seu modo de rir deles; eu tinha já na mão as
bolas envenenadas, e ia deitar-lhe uma delas, quando aquele riso especial,
carinho, confiança ou o que quer que seja, me atou a vontade; fiquei assim não
sei como, tocado de pena e guardei as bolas no bolso. Ao leitor pode parecer
que foi o cheiro da carne que remeteu o cão ao silêncio. Não digo que não; eu
cuido que ele não me quis atribuir perfídia ao gesto, e entregou-se-me. A
conclusão é que se livrou.
CAPÍTULO CXII
AS IMITAÇÕES DE EZEQUIEL
Tal não faria Ezequiel. Não comporia
bolas envenenadas, suponho, mas não as recusaria também. O que faria com
certeza era ir atrás dos cães, a pedrada, até onde lhe dessem as pernas. E se
tivesse um pau, iria a pau. Capitu morria por aquele batalhador futuro.
— Não sai a nós, que gostamos da paz,
disse-me ela um dia, mas papai em moço era assim também; mamãe é que contava.
— Sim, não sairá maricas, repliquei; eu
só lhe descubro um defeitozinho, gosta de imitar os outros.
— Imitar como?
— Imitar os gestos, os modos, as
atitudes; imita prima Justina, imita José Dias; já lhe achei até um jeito dos
pés de Escobar e dos olhos…
Capitu deixou-se estar pensando e
olhando para mim, e disse afinal que era preciso emendá-lo. Agora reparava que
realmente era vezo do filho, mas parecia-lhe que era só imitar por imitar, como
sucede a muitas pessoas grandes, que tomam as maneiras dos outros; e para que
não fosse mais longe…
— Também não vamos mortificá-lo. Sempre
há tempo de corrigi-lo.
— Há, vou ver. Você também não era
assim, quando se zangava com alguém…
— Quando me zangava, concordo; vingança
de menino.
— Sim, mas eu não gosto de imitações em
casa.
— E naquele tempo gostavas de mim?
disse eu batendo-lhe na face.
A resposta de Capitu foi um riso doce
de escárnio, um desses risos que não se descrevem, e apenas se pintarão; depois
estirou os braços e atirou-mos sobre os ombros, tão cheios de graça que
pareciam (velha imagem!) um colar de flores. Eu fiz o mesmo aos meus, e senti
não haver ali um escultor que nos transferisse a atitude a um pedaço de
mármore. Só brilharia o artista, é certo. Quando uma pessoa ou um grupo saem
bem, ninguém quer saber do modelo, mas da obra, e a obra é que fica. Não
importa; nós saberíamos que éramos nós.
CAPÍTULO CXIII
EMBARGOS DE TERCEIRO
Por falar nisto, é natural que me
perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho
e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me
afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez só a
indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um
par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou
desconfiança. É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio mais próprio a
tal fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver também, e não há ver sem mostrar
que se vê.
A senhora que me disse isto cuido que
gostou de mim, e foi naturalmente por não achar da minha parte correspondência
aos seus afetos que me explicou daquela maneira os seus olhos teimosos. Outros
olhos me procuravam também, não muitos, e não digo nada sobre eles, tendo aliás
confessado a princípio as minhas aventuras vindouras, mas eram ainda vindouras.
Naquele tempo, por mais mulheres bonitas que achasse, nenhuma receberia a
mínima parte do amor que tinha a Capitu. A minha própria mãe não queria mais
que metade. Capitu era tudo e mais que tudo; não vivia nem trabalhava que não
fosse pensando nela. Ao teatro íamos juntos; só me lembra que fosse duas vezes
sem ela, um benefício de ator, e uma estréia de ópera, a que ela não foi por
ter adoecido, mas quis por força que eu fosse. Era tarde para mandar o camarote
a Escobar; saí, mas voltei no fim do primeiro ato. Encontrei Escobar à porta do
corredor.
— Vinha falar-te, disse-me ele.
Expliquei-lhe que tinha saído para o
teatro donde voltara receoso de Capitu, que ficara doente.
— Doente de quê? perguntou Escobar.
— Queixava-se da cabeça e do estômago.
— Então, vou-me embora. Vinha para
aquele negócio dos embargos…
Eram uns embargos de terceiro; ocorrera
um incidente importante, e, tendo ele jantado na cidade, não quis ir para casa
sem dizer-me o que era, mas já agora falaria depois…
— Não, falemos já, sobe; ela pode estar
melhor. Se estiver pior, desces.
Capitu estava melhor e até boa.
Confessou-me que apenas tivera uma dor de cabeça de nada, mas agravara o
padecimento para que eu fosse divertir-me. Não falava alegre, o que me fez
desconfiar que mentia, para me não meter medo, mas jurou que era a verdade
pura. Escobar sorriu e disse:
— A cunhadinha está tão doente como
você ou eu. Vamos aos embargos.
CAPÍTULO CXIV
EM QUE SE EXPLICA O EXPLICADO
Antes de ir aos embargos, expliquemos
ainda um ponto que já ficou explicado, mas não bem explicado. Viste que eu pedi
(cap. CX) a um professor de música de São Paulo que me escrevesse a toada
daquele pregão de doces de Mata-cavalos. Em si, a matéria é chocha, e não vale
a pena de um capítulo, quanto mais dois; mas há matérias tais que trazem
ensinamentos interessantes, senão agradáveis. Expliquemos o explicado.
Capitu e eu tínhamos jurado não
esquecer mais aquele pregão; foi em momento de grande ternura, e o tabelião
divino sabe as coisas que se juram em tais momentos, ele que as registra nos
livros eternos.
— Você jura?
— Juro, disse ela estendendo
tragicamente o braço.
Aproveitei o gesto para beijar-lhe a
mão; estava ainda no seminário. Quando fui para São Paulo, querendo um dia
relembrar a toada, vi que a ia perdendo inteiramente; consegui recordá-la e
corri ao professor, que me fez o obséquio de a escrever no pedacinho de papel.
Foi para não faltar ao juramento que fiz isto. Mas hás de crer que, quando
corri aos papéis velhos, naquela noite da Glória, também não me lembrava já da
toada nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e este é que foi o meu
pecado; esquecer, qualquer esquece.
Ao certo, ninguém sabe se há de manter
ou não um juramento. Coisas futuras! Portanto, a nossa constituição política,
transferindo o juramento à afirmação simples, é profundamente moral. Acabou com
um pecado terrível. Faltar ao compromisso é sempre infidelidade, mas a alguém
que tenha mais temor a Deus que aos homens não lhe importará mentir, uma vez ou
outra, desde que não mete a alma no purgatório. Não confundam purgatório com
inferno, que é o eterno naufrágio. Purgatório é uma casa de penhores, que
empresta sobre todas as virtudes, a juro alto e prazo curto. Mas os prazos
renovam-se, até que um dia uma ou duas virtudes medianas pagam todos os pecados
grandes e pequenos.
CAPÍTULO CXV
DÚVIDAS SOBRE DÚVIDAS
Vamos agora aos embargos… E por que
iremos aos embargos? Deus sabe o que custa escrevê-los, quanto mais contá-los.
Da circunstância nova que Escobar me trazia apenas digo o que lhe disse então,
isto é, que não valia nada.
— Nada?
— Quase nada.
— Então vale alguma coisa.
— Para reforçar as razões que já temos
vale menos que o chá que você vai tomar comigo.
— É tarde para tomar chá.
— Tomaremos depressa.
Tomamos depressa. Durante ele, Escobar
olhava para mim desconfiado, como se cuidasse que eu recusava a circunstância
nova por forrar-me a escrevê-la; mas tal suspeita não ia com a nossa amizade.
Quando ele saiu, referi as minhas
dúvidas a Capitu; ela as desfez com a arte fina que possuía, um jeito, uma
graça toda sua, capaz de dissipar as mesmas tristezas de Olímpio.
— Seria o negócio dos embargos,
concluiu; e ele que veio até aqui, a esta hora, é que está impressionado com a
demanda.
— Tens razão.
Palavra puxa palavra, falei de outras
dúvidas. Eu era então um poço delas; coaxavam dentro de mim, como verdadeiras
rãs, a ponto de me tirarem o sono algumas vezes. Disse-lhe que começava a achar
minha mãe um tanto fria e arredia com ela. Pois aqui mesmo valeu a arte fina de
Capitu!
— Já disse a você o que é; coisas de
sogra. Mamãezinha tem ciúmes de você; logo que eles passem e as saudades
aumentem, ela torna a ser o que era. Em lhe faltando o neto…
— Mas eu tenho notado que já é fria
também com Ezequiel. Quando ele vai comigo, mamãe não lhe faz as mesmas graças.
— Quem sabe se não anda doente?
— Vamos nós jantar com ela amanhã?
— Vamos… Não… Pois vamos.
Fomos jantar com a minha velha. Já lhe
podia chamar assim, posto que os seus cabelos brancos não o fossem todos nem
totalmente, e o rosto estivesse comparativamente fresco; era uma espécie de
mocidade qüinquagenária ou de ancianidade viçosa, à escolha… Mas nada de melancolias;
não quero falar dos olhos molhados, à entrada e à saída. Pouco entrou na
conversação. Também não era diferente da costumada. José Dias falou do
casamento e suas belezas, da política, da Europa e da homeopatia, tio Cosme das
suas moléstias, prima Justina da vizinhança, ou de José Dias, quando este saía
da sala.
Quando voltamos, à noite, viemos por
ali a pé, falando das minhas dúvidas. Capitu novamente me aconselhou que
esperássemos. Sogras eram todas assim; lá vinha um dia e mudavam. Ao passo que
me falava, recrudescia de ternura. Dali em diante foi cada vez mais doce
comigo; não me ia esperar à janela, para não espertar-me os ciúmes, mas quando
eu subia, via no alto da escada, entre as grades da cancela, a cara deliciosa
da minha amiga e esposa, risonha como toda a nossa infância. Ezequiel às vezes
estava com ela; nós o havíamos acostumado a ver o ósculo da chegada e da saída,
e ele enchia-me a cara de beijos.
CAPÍTULO CXVI
FILHO DO HOMEM
Apalpei José Dias sobre as maneiras
novas de minha mãe; ficou espantado. Não havia nada, nem podia haver coisa
nenhuma, tantos eram os louvores incessantes que ele ouvia “à bela e
virtuosa Capitu.”
— Agora, quando os ouço, entro também
no coro; mas a princípio ficava envergonhadíssimo. Para quem chegou, como eu, a
arrenegar deste casamento, era duro confessar que ele foi uma verdadeira bênção
do Céu. Que digna senhora nos saiu a criança travessa de Mata-cavalos! O pai é
que nos separou um pouco, enquanto não nos conhecíamos, mas tudo acabou em bem.
Pois, sim, senhor, quando D. Glória elogia a sua nora e comadre…
— Então, mamãe?…
— Perfeitamente!
— Mas, por que é que não nos visita há
tanto tempo?
— Creio que tem andado mais achacada
dos seus reumatismos. Este ano tem feito muito frio… Imagine a aflição dela,
que andava o dia inteiro; agora é obrigada a estar quieta, ao pé do irmão, que
lá tem o seu mal…
Quis observar-lhe que tal razão
explicava a interrupção das visitas, e não a frieza quando íamos nós a
Mata-cavalos; mas não estendi tão longe a intimidade do agregado. José Dias
pediu para ver o nosso “profetazinho” (assim chamava a Ezequiel) e
fez-lhe as festas do costume. Desta vez falou ao modo bíblico (estivera na
véspera a folhear o livro de Ezequiel, como soube depois) e perguntava-lhe: “Como
vai isso, filho do homem?” “Dize-me, filho do homem, onde estão os
teus brinquedos?” “Queres comer doce, filho do homem?”
— Que filho do homem é esse?
perguntou-lhe Capitu agastada.
— São os modos de dizer da Bíblia.
— Pois eu não gosto deles, replicou ela
com aspereza.
— Tem razão, Capitu, concordou o
agregado. Você não imagina como a Bíblia é cheia de expressões cruas e
grosseiras. Eu falava assim para variar… Tu como vais, meu anjo? Meu anjo,
como é que eu ando na rua?
— Não, atalhou Capitu; já lhe vou
tirando esse costume de imitar os outros.
— Mas tem muita graça; a mim, quando
ele copia os meus gestos, parece-me que sou eu mesmo, pequenino. Outro dia
chegou a fazer um gesto de D. Glória, tão bem que ela lhe deu um beijo em paga.
Vamos, como é que eu ando?
— Não, Ezequiel, disse eu, mamãe não
quer.
Eu mesmo achava feio tal sestro. Alguns
dos gestos já lhe iam ficando mais repetidos, como os das mãos e pés de
Escobar; ultimamente, até apanhara o modo de voltar a cabeça deste, quando
falava, e o de deixá-la cair, quando ria. Capitu ralhava. Mas o menino era
travesso, como o diabo; apenas começamos a falar de outra coisa, saltou ao meio
da sala, dizendo a José Dias:
— O senhor anda assim.
Não podemos deixar de rir, eu mais que
ninguém. A primeira pessoa que fechou a cara, que o repreendeu e chamou a si
foi Capitu.
— Não quero isso, ouviu?
CAPÍTULO CXVII
AMIGOS PRÓXIMOS
Já então Escobar deixara Andaraí e
comprara uma casa no Flamengo, casa que ainda ali vi, há dias, quando me deu na
gana experimentar se as sensações antigas estavam mortas ou dormiam só; não
posso dizê-lo bem, porque os sonos, quando são pesados, confundem vivos e
defuntos, a não ser a respiração. Eu respirava um pouco, mas pode ser que fosse
do mar, meio agitado. Enfim, passei, acendi um charuto, e dei por mim no
Catete; tinha subido pela Rua da Princesa, uma rua antiga… Ó ruas antigas! ó
casas antigas! ó pernas antigas! Todos nós éramos antigos, e não é preciso
dizer que no mau sentido, no sentido de velho e acabado.
Velha é a casa, mas não lhe alteraram
nada. Não sei até se ainda tem o mesmo número. Não digo que número é para não
irem indagar e cavar a história. Não é que Escobar ainda lá more nem sequer
viva; morreu pouco depois, por um modo que hei de contar. Enquanto viveu, uma
vez que estávamos tão próximos, tínhamos por assim dizer uma só casa, eu vivia
na dele, ele na minha, e o pedaço de praia entre a Glória e o Flamengo era como
um caminho de uso próprio e particular. Fazia-me pensar nas duas casas de
Mata-cavalos, com o seu muro de permeio.
Um historiador da nossa língua, creio
que João de Barros, põe na boca de um rei bárbaro algumas palavras mansas,
quando os portugueses lhe propunham estabelecer ali ao pé uma fortaleza; dizia
o rei que os bons amigos deviam ficar longe uns dos outros, não perto, para se
não zangarem como as águas do mar que batiam furiosas no rochedo que eles viam
dali. Que a sombra do escritor me perdoe, se eu duvido que o rei dissesse tal
palavra nem que ela seja verdadeira. Provavelmente foi o mesmo escritor que a
inventou para adornar o texto, e não fez mal, porque é bonita; realmente, é
bonita. Eu creio que o mar então batia na pedra, como é seu costume, desde
Ulisses e antes. Agora que a comparação seja verdadeira é que não. Seguramente
há inimigos contíguos, mas também há amigos de perto e do peito. E o escritor
esquecia (salvo se ainda não era do seu tempo), esquecia o adágio: longe dos
olhos, longe do coração. Nós não podíamos ter os corações agora mais perto. As
nossas mulheres viviam na casa uma da outra, nós passávamos as noites cá ou lá
conversando, jogando ou mirando o mar. Os dois pequenos passavam dias, ora no
Flamengo, ora na Glória.
Como eu observasse que podia acontecer
com eles o que se dera entre mim e Capitu, acharam todos que sim, e Sancha
acrescentou que até já se iam parecendo. Eu expliquei:
— Não; é porque Ezequiel imita os
gestos dos outros.
Escobar concordou comigo, e insinuou
que alguma vez as crianças que se freqüentam muito acabam parecendo-se umas com
as outras. Opinei de cabeça, como me sucedia nas matérias que eu não sabia bem
nem mal. Tudo podia ser. O certo é que eles se queriam muito, e podiam acabar
casados, mas não acabaram casados.
CAPÍTULO CXVIII
A MÃO DE SANCHA
Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo,
a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura, dura muito tempo. Esta
segunda parte não acha crentes fáceis; ao contrário, a idéia de que um castelo
de vento dura mais que o mesmo vento de que é feito, dificilmente se despegará
da cabeça, e é bom que seja assim, para que se não perca o costume daquelas
construções quase eternas.
O nosso castelo era sólido, mas um
domingo… Na véspera tínhamos passado a noite no Flamengo, não só os dois
casais inseparáveis, como ainda o agregado e prima Justina. Foi então que
Escobar, falando-me à janela, disse-me que fôssemos lá jantar no dia seguinte;
precisávamos falar de um projeto em família, um projeto para os quatro.
— Para os quatro? Uma contradança.
— Não. Não és capaz de adivinhar o que
seja, nem eu digo. Vem amanhã.
Sancha não tirava os olhos de nós
durante a conversa, ao canto da janela. Quando o marido saiu, veio ter comigo.
Perguntou-me de que é que faláramos; disse-lhe que de um projeto que eu não
sabia qual fosse; ela pediu-me segredo, e revelou-me o que era: uma viagem à
Europa dali a dois anos. Disse isto de costas para dentro, quase suspirando. O
mar batia com grande força na praia; havia ressaca.
— Vamos todos? perguntei por fim.
— Vamos.
Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim
com tanto prazer que eu, graças às relações dela e Capitu, não se me daria
beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões
fraternais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra coisa, e não tardou
que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. A
noite era clara.
Dali mesmo busquei os olhos de Sancha,
ao pé do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns
dos outros, uns esperando que os outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se
dá na rua entre dois teimosos. A cautela desligou-nos; eu tornei a voltar-me
para fora. E assim posto entrei a cavar na memória se alguma vez olhara para
ela com a mesma expressão, e fiquei incerto. Tive uma certeza só, é que um dia
pensei nela, como se pensa na bela desconhecida que passa; mas então dar-se-ia
que ela, adivinhando… Talvez o simples pensamento me transluzisse cá fora, e
ela me fugisse outrora irritada ou acanhada, e agora por um movimento
invencível… Invencível; esta palavra foi como uma bênção de padre à missa,
que a gente recebe e repete em si mesma.
— O mar amanhã está de desafiar a
gente, disse-me a voz de Escobar, ao pé de mim.
— Você entra no mar amanhã?
— Tenho entrado com mares maiores,
muito maiores. Você não imagina o que é um bom mar em hora bravia. É preciso
nadar bem, como eu, e ter estes pulmões, disse ele batendo no peito, e estes
braços; apalpa.
Apalpei-lhe os braços, como se fossem
os de Sancha. Custa-me esta confissão, mas não posso suprimi-la; era jarretar a
verdade. Não só os apalpei com essa idéia, mas ainda senti outra coisa;
achei-os mais grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja; acresce que
sabiam nadar.
Quando saímos, tornei a falar com os
olhos à dona da casa. A mão dela apertou muito a minha, e demorou-se mais que
de costume.
A modéstia pedia então, como agora, que
eu visse naquele gesto de Sancha uma sanção ao projeto do marido e um
agradecimento. Assim devia ser, mas um fluido particular que me correu todo o
corpo desviou de mim a conclusão que deixo escrita. Senti ainda os dedos de
Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e
de pecado. Passou depressa no relógio do tempo; quando cheguei o relógio ao
ouvido trabalhavam só os minutos da virtude e da razão.
—… Uma senhora deliciosíssima,
concluiu José Dias um discurso que vinha fazendo.
— Deliciosíssima! repeti com algum
ardor, que moderei logo, emendando-me: Realmente, uma bela noite!
— Como devem ser todas as daquela casa,
continuou o agregado. Cá fora, não; cá fora o mar está zangado; escute.
Ouvia-se o mar forte, — como já se
ouvia de casa, — a ressaca era grande e, a distância, viam-se crescer as ondas.
Capitu e prima Justina, que iam adiante, detiveram-se numa das voltas da praia,
e fomos conversando os quatro; mas eu conversava mal. Não havia meio de
esquecer inteiramente a mão de Sancha nem os olhos que trocamos. Agora
achava-lhes isto, agora aquilo. Os instantes do Diabo intercalavam-se nos
minutos de Deus, e o relógio foi assim marcando alternativamente a minha
perdição e a minha salvação. José Dias despediu-se de nós à porta. Prima
Justina dormiu em nossa casa; iria embora, no dia seguinte, depois do almoço e
da missa. Eu recolhi-me ao meu gabinete, onde me demorei mais que de costume.
O retrato de Escobar, que eu tinha ali,
ao pé do de minha mãe, falou-me como se fosse a própria pessoa. Combati
sinceramente os impulsos que trazia do Flamengo; rejeitei a figura da mulher do
meu amigo, e chamei-me desleal. Demais, quem me afirmava que houvesse alguma
intenção daquela espécie no gesto da despedida e nos anteriores? Tudo podia
ligar-se ao interesse da nossa viagem. Sancha e Capitu eram tão amigas que
seria um prazer mais para elas irem juntas. Quando houvesse alguma intenção
sexual, quem me provaria que não era mais que uma sensação fulgurante,
destinada a morrer com a noite e o sono? Há remorsos que não nascem de outro
pecado, nem têm maior duração. Agarrei-me a esta hipótese que se conciliava com
a mão de Sancha, que eu sentia de memória dentro da minha mão, quente e
demorada, apertada e apertando…
Sinceramente, eu achava-me mal entre um
amigo e a atração. A timidez pode ser que fosse outra causa daquela crise; não
é só o Céu que dá as nossas virtudes, a timidez também, não contando o acaso,
mas o acaso é um mero acidente; a melhor origem delas é o céu. Entretanto, como
a timidez vem do céu, que nos dá a compleição, a virtude, filha dela, é,
genealogicamente, o mesmo sangue celestial. Assim refletiria, se pudesse; mas a
princípio vaguei à toa. Paixão não era, nem inclinação. Capricho seria, ou quê?
Ao fim de vinte minutos era nada, inteiramente nada. O retrato de Escobar
pareceu falar-me; vi-lhe a atitude franca e simples, sacudi a cabeça e fui
deitar-me.
CAPÍTULO CXIX
NÃO FAÇA ISSO, QUERIDA!
A leitora, que é minha amiga e abriu
este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje,
quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso,
querida; eu mudo de rumo.
CAPÍTULO CXX
OS AUTOS
Na manhã seguinte acordei livre das
abominações da véspera; chamei-lhes alucinações, tomei café, percorri os
jornais e fui estudar uns autos. Capitu e prima Justina saíram para a missa das
nove, na Lapa. A figura de Sancha desapareceu inteiramente no meio das
alegações da parte adversa, que eu ia lendo nos autos, alegações falsas,
inadmissíveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era fácil ganhar a
demanda; consultei Dalloz, Pereira e Sousa…
Uma só vez olhei para o retrato de Escobar.
Era uma bela fotografia tirada um ano antes. Estava de pé, sobrecasaca
abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita metida ao peito, o
olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. A
moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita embaixo, não nas
costas do cartão: “Ao meu querido Bentinho o seu querido Escobar 20-
4-70”.Estas palavras fortaleceram-me os pensamentos daquela manhã, e espancaram
de todo as recordações da véspera. Naquele tempo a minha vista era boa; eu
podia lê-las do lugar em que estava. Tornei aos autos.
CAPÍTULO CXXI
A CATÁSTROFE
No melhor deles, ouvi passos
precipitados na escada, a campainha soou, soaram palmas, golpes na cancela,
vozes, acudiram todos, acudi eu mesmo. Era um escravo da casa de Sancha que me
chamava:
— Para ir lá… sinhô nadando, sinhô
morrendo.
Não disse mais nada, ou eu não lhe ouvi
o resto. Vesti-me, deixei recado a Capitu e corri ao Flamengo.
Em caminho, fui adivinhando a verdade.
Escobar meteu-se a nadar, como usava fazer, arriscou-se um pouco mais fora que
de costume, apesar do mar bravio, foi enrolado e morreu. As canoas que acudiram
mal puderam trazer-lhe o cadáver.
CAPÍTULO CXXII
O ENTERRO
A viúva… Poupo-vos as lágrimas da
viúva, as minhas, as da outra gente. Saí de lá cerca de onze horas; Capitu e
prima Justina esperavam-me, uma com o parecer abatido e estúpido, outra
enfastiada apenas.
— Vão fazer companhia à pobre
Sanchinha; eu vou cuidar do enterro.
Assim fizemos. Quis que o enterro fosse
pomposo, e a afluência dos amigos foi numerosa. Praia, ruas, Praça da Glória,
tudo eram carros, muitos deles particulares. A casa não sendo grande, não
podiam lá caber todos; muitos estavam na praia, falando do desastre, apontando
o lugar em que Escobar falecera, ouvindo referir a chegada do morto. José Dias
ouviu também falar dos negócios do finado, divergindo alguns na avaliação dos
bens, mas havendo acordo em que o passivo devia ser pequeno. Elogiavam as
qualidades de Escobar, um ou outro discutia o recente gabinete Rio Branco;
estávamos em março de 1871. Nunca me esqueceu o mês nem o ano.
Como eu houvesse resolvido falar no
cemitério, escrevi algumas linhas e mostrei-as em casa a José Dias, que as
achou realmente dignas do morto e de mim. Pediu-me o papel, recitou lentamente
o discurso, pesando as palavras, e confirmou a primeira opinião; no Flamengo
espalhou a notícia. Alguns conhecidos vieram interrogar-me:
— Então, vamos ouvi-lo?
— Quatro palavras.
Poucas mais seriam. Tinha-as escrito
com receio de que a emoção me impedisse de improvisar. No tílburi em que andei
uma ou duas horas, não fizera mais que recordar o tempo do seminário, as
relações de Escobar, as nossas simpatias, a nossa amizade, começada, continuada
e nunca interrompida, até que um lance da fortuna fez separar para sempre duas
criaturas que prometiam ficar por muito tempo unidas. De quando em quando
enxugava os olhos. O cocheiro aventurou duas ou três perguntas sobre a minha
situação moral; não me arrancando nada, continuou o seu ofício. Chegando a
casa, deitei aquelas emoções ao papel; tal seria o discurso.
CAPÍTULO CXXIII
OLHOS DE RESSACA
Enfim, chegou a hora da encomendação e
da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance
consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só
Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra,
queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns
instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe
saltassem algumas lágrimas poucas e caladas…
As minhas cessaram logo. Fiquei a ver
as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na
sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece
que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o
defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e
abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador
da manhã.
CAPÍTULO CXXIV
O DISCURSO
— Vamos, são horas…
Era José Dias que me convidava a fechar
o ataúde. Fechamo-lo, e eu peguei numa das argolas; rompeu o alarido final.
Palavra que, quando cheguei à porta, vi o sol claro, tudo gente e carros, as
cabeças descobertas, tive um daqueles meus impulsos que nunca chegavam à
execução: foi atirar à rua caixão, defunto e tudo. No carro disse a José Dias
que se calasse. No cemitério tive de repetir a cerimônia da casa, desatar as
correias, e ajudar a levar o féretro à cova. O que isto me custou imagina.
Descido o cadáver à cova, trouxeram a cal e a pá; sabes disto, terás ido a mais
de um enterro, mas o que não sabes nem pode saber nenhum dos teus amigos,
leitor, ou qualquer outro estranho, é a crise que me tomou quando vi todos os
olhos em mim, os pés quietos, as orelhas atentas, e, ao cabo de alguns
instantes de total silêncio, um sussurro vago, algumas vozes interrogativas,
sinais, e alguém, José Dias, que me dizia ao ouvido:
— Então, fale.
Era o discurso. Queriam o discurso.
Tinham jus ao discurso anunciado. Maquinalmente, meti a mão no bolso, saquei o
papel e li-o aos trambolhões, não todo, nem seguido, nem claro; a voz
parecia-me entrar em vez de sair, as mãos tremiam-me. Não era só a emoção nova
que me fazia assim, era o próprio texto, as memórias do amigo, as saudades
confessadas, os louvores à pessoa e aos seus méritos; tudo isto que eu era
obrigado a dizer e dizia mal. Ao mesmo tempo, temendo que me adivinhassem a
verdade, forcejava por escondê-la bem. Creio que poucos me ouviram, mas o gesto
geral foi de compreensão e de aprovação. As mãos que me deram a apertar eram de
solidariedade; alguns diziam: “Muito bonito! muito bem! magnífico!”
José Dias achou que a eloqüência estivera na altura da piedade. Um homem, que
me pareceu jornalista, pediu-me licença para levar o manuscrito e imprimi-lo.
Só a minha grande turvação recusaria um obséquio tão simples.
CAPÍTULO CXXV
UMA COMPARAÇÃO
Príamo julga-se o mais infeliz dos
homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho. Homero é que relata
isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas
em verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha; eu
acabava de louvar as virtudes do homem que recebera, defunto, aqueles olhos…
É impossível que algum Homero não tirasse da minha situação muito melhor
efeito, ou quando menos, igual. Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa
apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Príamos
procuram a sombra e o silêncio. As lágrimas, se as têm, são enxugadas atrás da
porta, para que as caras apareçam limpas e serenas; os discursos são antes de
alegria que de melancolia, e tudo passa como se Aquiles não matasse Heitor.
CAPÍTULO CXXVI
CISMANDO
Pouco depois de sair do cemitério,
rasguei o discurso e deitei os pedaços pela portinhola fora, sem embargo dos
esforços de José Dias para impedi-lo.
— Não presta para nada, disse-lhe eu, e
como posso ter a tentação de dá-lo a imprimir, fica já destruído de uma vez.
Não presta, não vale nada.
José Dias demonstrou longamente o
contrário, depois elogiou o enterro, e por último fez o panegírico do morto,
uma grande alma, espírito ativo, coração reto, amigo, bom amigo, digno da
esposa amantíssima que Deus lhe dera…
Neste ponto do discurso, deixei-o falar
sozinho e peguei a cismar comigo. O que cismei foi tão escuro e confuso que não
me deixou tomar pé. No Catete mandei parar o carro, disse a José Dias que fosse
buscar as senhoras ao Flamengo e as levasse para casa; eu iria a pé.
— Mas…
— Vou fazer uma visita.
A razão disto era acabar de cismar, e
escolher uma resolução que fosse adequada ao momento. O carro andaria mais
depressa que as pernas; estas iriam pausadas ou não, podia afrouxar o passo,
parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse à vontade. Fui andando
e cismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na véspera e o desespero
daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva era realmente amantíssima. Assim se
desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade. Não seria o mesmo caso de Capitu?
Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de
pessoas que devia naturalmente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que
dissimular. O que aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma
barafunda de idéias e sensações, graças aos solavancos do carro e às
interrupções de José Dias. Agora, porém, raciocinava e evocava claro e bem.
Concluí de mim para mim que era a antiga paixão que me ofuscava ainda e me
fazia desvairar como sempre.
Quando cheguei a esta conclusão final,
chegava também à porta de casa, mas voltei para trás, e subi outra vez a Rua do
Catete. Eram as dúvidas que me afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com
a minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas; andei largo espaço,
até que me senti sossegar, e endireitei para casa. Batiam oito horas numa
padaria.
CAPÍTULO CXXVII
O BARBEIRO
Perto de casa, havia um barbeiro, que
me conhecia de vista, amava a rabeca e não tocava inteiramente mal. Na ocasião
em que ia passando, executava não sei que peça. Parei na calçada a ouvi-lo
(tudo são pretextos a um coração agoniado), ele viu-me, e continuou a tocar.
Não atendeu a um freguês, e logo a outro, que ali foram, a despeito da hora e
de ser domingo, confiar-lhe as caras à navalha. Perdeu-os sem perder uma nota;
ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar francamente à porta da
loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a cortina de chita que fechava o
interior da casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido claro, flor no cabelo.
Era a mulher dele; creio que me descobriu de dentro, e veio agradecer-me com a
presença o favor que eu fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizê-lo com
os olhos. Quanto ao marido, tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem
ver fregueses, grudava a face no instrumento, passava a alma ao arco, e tocava,
tocava…
Divina arte! Ia-se formando um grupo,
deixei a porta da loja e vim andando para casa; enfiei pelo corredor e subi as
escadas sem estrépito. Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar
ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta máxima, que os
compiladores podem tirar daqui e inserir nos compêndios de escola. A máxima é
que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e verdadeiramente não as
esquece nunca. Pobre barbeiro! perdeu duas barbas naquela noite, que eram o pão
do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um transeunte. Supõe agora que este,
em vez de ir-se embora, como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e a enamorar-lhe
a mulher; então é que ele, todo arco, todo rabeca, tocaria desesperadamente.
Divina arte!
CAPÍTULO CXXVIII
PUNHADO DE SUCESSOS
Como ia dizendo, subi as escadas sem
estrépito, empurrei a cancela, que estava apenas encostada, e dei com prima
Justina e José Dias jogando cartas na saleta próxima. Capitu levantou-se do
canapé e veio a mim. O rosto dela era agora sereno e puro. Os outros
suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da viúva. Capitu censurou a
imprudência de Escobar, e não dissimulou a tristeza que lhe trazia a dor da
amiga. Perguntei-lhe por que não ficara com Sancha aquela noite.
— Tem lá muita gente; ainda assim
ofereci-me, mas não quis. Também lhe disse que era melhor vir para cá, e passar
aqui uns dias conosco.
— Também não quis?
— Também não.
— Entretanto, a vista do mar há de
ser-lhe penosa, todas as manhãs, ponderou José Dias, e não sei como poderá…
— Mas passa; o que é que não passa?
atalhou prima Justina.
E como em torno desta idéia, começássemos
uma troca de palavras, Capitu saiu para ver se o filho dormia. Ao passar pelo
espelho, concertou os cabelos tão demoradamente que pareceria afetação, se não
soubéssemos que ela era muito amiga de si. Quando tornou trazia os olhos
vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo, pensara na filhinha de
Sancha, e na aflição da viúva. E, sem se lhe dar das visitas, nem reparar se
havia algum criado, abraçou-me e disse-me que, se quisesse pensar nela, era
preciso pensar primeiro na minha vida. José Dias achou a frase
“lindíssima”, e perguntou a Capitu por que é que não fazia versos.
Tentei meter o caso à bulha, e assim acabamos a noite.
No dia seguinte, arrependi-me de haver
rasgado o discurso, não que quisesse dá-lo a imprimir, mas era lembrança do
finado. Pensei em recompô-lo, mas só achei frases soltas, que uma vez juntas
não tinham sentido. Também pensei em fazer outro, mas era já difícil, e podia
ser apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemitério. Quanto a
recolher os pedacinhos de papel deitados à rua, era tarde; estariam já
varridos.
Inventariei as lembranças de Escobar,
livros, um tinteiro de bronze, uma bengala de marfim, um pássaro, o álbum de
Capitu, duas paisagens do Paraná e outras. Também ele as possuía de minha mão.
Vivemos assim a trocar memórias e regalos, ora em dia de anos, ora sem razão
particular. Tudo isso me empanava os olhos… Vieram os jornais do dia: davam
notícia do desastre e da morte de Escobar, os estudos e os negócios deste, as
qualidades pessoais, a simpatia do comércio, e também falavam dos bens
deixados, da mulher e da filha. Tudo isso foi na segunda-feira. Na terça-feira
foi aberto o testamento, que me nomeava segundo testamenteiro; o primeiro lugar
cabia à mulher. Não me deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta
separada eram sublimes de amizade e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas
compôs-se depressa.
Testamento, inventário, tudo andou
quase tão depressa como aqui vai dito. Ao cabo de pouco tempo, Sancha
retirou-se para a casa dos parentes no Paraná.
CAPÍTULO CXXIX
A D. SANCHA
D. Sancha, peço-lhe que não leia este
livro; ou, se o houver lido até aqui, abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor
será queimá-lo, para lhe não dar tentação e abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso,
quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo pelo mal que receber. O que já
lhe tiver feito, contando os gestos daquele sábado, esse acabou, uma vez que os
acontecimentos, e eu com eles, desmentimos a minha ilusão; mas o que agora a
alcançar, esse é indelével. Não, amiga minha, não leia mais. Vá envelhecendo,
sem marido nem filha, que eu faço a mesma coisa, e é ainda o melhor que se pode
fazer depois da mocidade. Um dia, iremos daqui até à porta do Céu, onde nos
encontraremos renovados, como as plantas novas, come piante novelle,
Rinovellate di
novelle fronde.
O resto em Dante.
CAPÍTULO CXXX
UM DIA…
Porquanto, um dia Capitu quis saber o
que é que me fazia andar calado e aborrecido. E propôs-me a Europa, Minas,
Petrópolis, uma série de bailes, mil desses remédios aconselhados aos
melancólicos. Eu não sabia que lhe respondesse; recusei as diversões. Como
insistisse, repliquei-lhe que os meus negócios andavam mal. Capitu sorriu para
animar-me. E que tinha que andassem mal? Tornariam a andar bem, e até lá as
jóias, os objetos de algum valor seriam vendidos, e iríamos residir em algum
beco. Viveríamos sossegados e esquecidos; depois tornaríamos à tona da água. A
ternura com que me disse isto era de comover as pedras. Pois nem assim. Respondi-lhe
secamente que não era preciso vender nada. Deixei-me estar calado e aborrecido.
Ela propôs-me jogar cartas ou damas, um passeio a pé, uma visita a
Mata-cavalos; e, como eu não aceitasse nada, foi para a sala, abriu o piano, e
começou a tocar; eu aproveitei a ausência, peguei do chapéu e saí.
…Perdão, mas este capítulo devia ser
precedido de outro, em que contasse um incidente, ocorrido poucas semanas
antes, dois meses depois da partida de Sancha. Vou escrevê-lo; podia antepô-lo
a este, antes de mandar o livro ao prelo, mas custa muito alterar o número das
páginas; vai assim mesmo, depois a narração seguirá direita até o fim. Demais,
é curto.
CAPÍTULO CXXXI
ANTERIOR AO ANTERIOR
Foi o caso que a minha vida era outra
vez doce e plácida, a banca do advogado rendia-me bastante, Capitu estava mais
bela, Ezequiel ia crescendo. Começava o ano de 1872.
— Você já reparou que Ezequiel tem nos
olhos uma expressão esquisita? perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim,
um amigo de papai e o defunto Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira
para o lado de papai, não precisa revirar os olhos, assim, assim…
Era depois de jantar; estávamos ainda à
mesa, Capitu brincava com o filho, ou ele com ela, ou um com outro, porque, em
verdade, queriam-se muito, mas é também certo que ele me queria ainda mais a
mim. Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram os olhos de
Escobar, mas não me pareceram esquisitos por isso. Afinal não haveria mais que
meia dúzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças se dariam naturalmente.
Ezequiel não entendeu nada, olhou espantado para ela e para mim, e afinal
saltou-me ao colo:
— Vamos passear, papai?
— Logo, meu filho.
Capitu, alheia a ambos, fitava agora a
outra borda da mesa; mas, dizendo-lhe eu que, na beleza, os olhos de Ezequiel
saíam aos da mãe, Capitu sorriu, abanando a cabeça com um ar que nunca achei em
mulher alguma, provavelmente porque não gostei tanto das outras. As pessoas
valem o que vale a afeição da gente, e é daí que mestre Povo tirou aquele
adágio que quem o feio ama bonito lhe parece. Capitu tinha meia dúzia de gestos
únicos na Terra. Aquele entrou-me pela alma dentro. Assim fica explicado que eu
corresse à minha esposa e amiga e lhe enchesse a cara de beijos; mas este outro
incidente não é radicalmente necessário à compreensão do capítulo passado e dos
futuros; fiquemos nos olhos de Ezequiel.
CAPÍTULO CXXXII
O DEBUXO E O COLORIDO
Nem só os olhos, mas as restantes
feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo. Eram
como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos, e a
figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, até que a família pendura o
quadro na parede, em memória do que foi e já não pode ser. Aqui podia ser e era.
O costume valeu muito contra o efeito da mudança; mas a mudança fez-se, não à
maneira de teatro, fez-se como a manhã que aponta vagarosa, primeiro que se
possa ler uma carta, depois lê-se a carta na rua, em casa, no gabinete, sem
abrir as janelas; a luz coada pelas persianas basta a distinguir as letras. Li
a carta, mal a princípio e não toda, depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, é
certo, metia o papel no bolso, corria a casa, fechava-me, não abria as
vidraças, chegava a fechar os olhos. Quando novamente abria os olhos e a carta,
a letra era clara e a notícia claríssima.
Escobar vinha assim surgindo da
sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me
na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a bênção do
costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para
me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo,
não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém. Quando nem
mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu jurava matá-los a
ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte todos os
minutos da vida embaçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via no
alto da escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e
diferia o castigo de um dia para outro.
O que se passava entre mim e Capitu
naqueles dias sombrios, não se notará aqui, por ser tão miúdo e repetido, e já
tão tarde que não se poderá dizê-lo sem falha nem canseira. Mas o principal
irá. E o principal é que os nossos temporais eram agora contínuos e terríveis.
Antes de descoberta aquela má terra da verdade, tivemos outros de pouca dura;
não tardava que o céu se fizesse azul, o sol claro e o mar chão, por onde
abríamos novamente as velas que nos levavam às ilhas e costas mais belas do
universo, até que outro pé de vento desbaratava tudo, e nós, postos à capa,
esperávamos outra bonança, que não era tardia nem dúbia, antes total, próxima e
firme.
Releva-me estas metáforas; cheiram ao
mar e à maré que deram morte ao meu amigo e comborço Escobar. Cheiram também
aos olhos de ressaca de Capitu. Assim, posto sempre fosse homem de terra, conto
aquela parte da minha vida, como um marujo contaria o seu naufrágio.
Já entre nós só faltava dizer a palavra
última; nós a líamos, porém, nos olhos um do outro, vibrante e decisiva, e
sempre que Ezequiel vinha para nós não fazia mais que separar-nos. Capitu
propôs metê-lo em um colégio, donde só viesse aos sábados; custou muito ao
menino aceitar esta situação.
— Quero ir com papai! Papai há de ir
comigo! bradava ele.
Fui eu mesmo que o levei um dia de
manhã, uma segunda-feira. Era no antigo Largo da Lapa, perto da nossa casa.
Levei-o a pé, pela mão, como levara o ataúde do outro. O pequeno ia chorando e
fazendo perguntas a cada passo, se voltaria para casa, e quando, e se eu iria
vê-lo…
— Vou.
— Papai não vai!
— Vou sim.
— Jura, papai!
— Pois sim.
— Papai não diz que jura.
— Pois juro.
E lá o levei e deixei. A ausência temporária
não atalhou o mal, e toda a arte fina de Capitu para fazê-lo atenuar, ao menos,
foi como se não fosse; eu sentia-me cada vez pior. A mesma situação nova
agravou a minha paixão. Ezequiel vivia agora mais fora da minha vista; mas a
volta dele, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu ficava, ou porque
o tempo fosse andando e completando a semelhança, era a volta de Escobar mais
vivo e ruidoso. Até a voz, dentro de pouco, já me parecia a mesma. Aos sábados,
buscava não jantar em casa e só entrar quando ele estivesse dormindo; mas não
escapava ao domingo, no gabinete, quando eu me achava entre jornais e autos.
Ezequiel entrava turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor, porque o demo
do pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora uma
aversão que mal podia disfarçar, tanto a ela como aos outros. Não podendo
encobrir inteiramente esta disposição moral, cuidava de me não fazer
encontradiço com ele, ou só o menos que pudesse; ora tinha trabalho que me
obrigava a fechar o gabinete, ora saía ao domingo para ir passear pela cidade e
arrabaldes o meu mal secreto.
CAPÍTULO CXXXIII
UMA IDÉIA
Um dia, — era uma sexta-feira, — não
pude mais. Certa idéia, que negrejava em mim, abriu as asas e entrou a batê-las
de um lado para outro, como fazem as idéias que querem sair. O ser sexta-feira
creio que foi acaso, mas também pode ter sido propósito; fui educado no terror
daquele dia; ouvi cantar baladas em casa, vindas da roça e da antiga metrópole,
nas quais a sexta-feira era o dia de agouro. Entretanto, não havendo almanaques
no cérebro, é provável que a idéia não batesse as asas senão pela necessidade
que sentia de vir ao ar e à vida. A vida é tão bela que a mesma idéia da morte
precisa de vir primeiro a ela, antes de se ver cumprida. Já me vais entendendo;
lê agora outro capítulo.
CAPÍTULO CXXXIV
O DIA DE SÁBADO
A idéia saiu finalmente do cérebro. Era
noite, e não pude dormir, por mais que a sacudisse de mim. Também nenhuma noite
me passou tão curta. Amanheceu, quando cuidava não ser mais que uma ou duas
horas. Saí, supondo deixar a idéia em casa; ela veio comigo. Cá fora tinha a
mesma cor escura, as mesmas asas trepidas, e posto avoasse com elas, era como
se fosse fixa; eu a levava na retina, não que me encobrisse as coisas externas,
mas via-as através dela, com a cor mais pálida que de costume, e sem se
demorarem nada.
Não me lembra bem o resto do dia. Sei
que escrevi algumas cartas, comprei uma substância, que não digo, para não
espertar o desejo de prová-la. A farmácia faliu, é verdade; o dono fez-se
banqueiro, e o banco prospera. Quando me achei com a morte no bolso senti
tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior,
porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta. Fui a casa de
minha mãe, com o fim de despedir-me, a título de visita. Ou de verdade ou por
ilusão, tudo ali me pareceu melhor nesse dia, minha mãe menos triste, tio Cosme
esquecido do coração, prima Justina da língua. Passei uma hora em paz. Cheguei
a abrir mão do projeto. Que era preciso para viver? Nunca mais deixar aquela
casa, ou prender aquela hora a mim mesmo…
CAPÍTULO CXXXV
OTELO
Jantei fora. De noite fui ao teatro.
Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca;
sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do
mouro, por causa de um lenço, — um simples lenço!— e aqui dou matéria à
meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar
à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a
mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje são precisos os
próprios lençóis; alguma vez nem lençóis há, e valem só as camisas. Tais eram
as idéias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro
rolava convulso, e Iago destilava a sua calúnia. Nos intervalos não me
levantava da cadeira; não queria expor-me a encontrar algum conhecido. As
senhoras ficavam quase todas nos camarotes, enquanto os homens iam fumar. Então
eu perguntava a mim mesmo se alguma daquelas não teria amado alguém que jazesse
agora no cemitério, e vinham outras incoerências, até que o pano subia e
continuava a peça. O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer.
Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do
mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público.
— E era inocente, vinha eu dizendo rua
abaixo; — que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como
Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso
sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse
a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extinção…
Vaguei pelas ruas o resto da noite.
Ceei, é verdade, um quase nada, mas o bastante para ir até à manhã. Vi as
últimas horas da noite e as primeiras do dia, vi os derradeiros passeadores e
os primeiros varredores, as primeiras carroças, os primeiros ruídos, os
primeiros albores, um dia que vinha depois do outro e me veria ir para nunca
mais voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por si mesmas. Não
tornaria a contemplar o mar da Glória, nem a serra dos Órgãos, nem a fortaleza
de Santa Cruz e as outras. A gente que passava não era tanta, como nos dias
comuns da semana, mas era já numerosa e ia a algum trabalho, que repetiria
depois; eu é que não repetiria mais nada.
Cheguei a casa, abri a porta
devagarinho, subi pé ante pé, e meti-me no gabinete; iam dar seis horas. Tirei
o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a
última, dirigida a Capitu. Nenhuma das outras era para ela; senti necessidade
de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse o remorso da minha morte. Escrevi
dois textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O segundo continha só
o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas
havidas, nem alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de
morrer.
CAPÍTULO CXXXVI
A XÍCARA DE CAFÉ
O meu plano foi esperar o café,
dissolver nele a droga e ingeri-la. Até lá, não tendo esquecido de todo a minha
história romana, lembrou-me que Catão, antes de se matar, leu e releu um livro
de Platão. Não tinha Platão comigo; mas um tomo truncado de Plutarco, em que
era narrada a vida do célebre romano, bastou-me a ocupar aquele pouco tempo, e,
para em tudo imitá-lo, estirei-me no canapé. Nem era só imitá-lo nisso; tinha
necessidade de incutir em mim a coragem dele, assim como ele precisara dos
sentimentos do filósofo, para intrepidamente morrer. Um dos males da ignorância
é não ter este remédio à última hora. Há muita gente que se mata sem ele, e
nobremente expira; mas estou que muita mais gente poria termo aos seus dias, se
pudesse achar essa espécie de cocaína moral dos bons livros. Entretanto, querendo
fugir a qualquer suspeita de imitação, lembra-me bem que, para não ser
encontrado ao pé de mim o livro de Plutarco, nem ser dada a notícia nas gazetas
com a da cor das calças que eu então vestia, assentei de pô-lo novamente no seu
lugar, antes de beber o veneno.
O copeiro trouxe o café. Ergui-me,
guardei o livro, e fui para a mesa onde ficara a xícara. Já a casa estava em
rumores; era tempo de acabar comigo. A mão tremeu-me ao abrir o papel em que
trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive ânimo de despejar a substância na
xícara, e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memória em Desdêmona
inocente; o espetáculo da véspera vinha intrometer-se na realidade da manhã.
Mas a fotografia de Escobar deu-me o animo que me ia faltando; lá estava ele, com
a mão nas costas da cadeira, a olhar ao longe…
“Acabemos com isto”, pensei.
Quando ia a beber, cogitei se não seria
melhor esperar que Capitu e o filho saíssem para a missa; beberia depois; era
melhor. Assim disposto, entrei a passear no gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no
corredor, vi-o entrar e correr a mim bradando:
— Papai! papai!
Leitor, houve aqui um gesto que eu não
descrevo por havê-lo inteiramente esquecido, mas crê que foi belo e trágico.
Efetivamente, a figura do pequeno fez-me recuar até dar de costas na estante.
Ezequiel abraçou-me os joelhos, esticou-se na ponta dos pés, como querendo
subir e dar-me o beijo do costume; e repetia, puxando-me:
— Papai! papai!
CAPÍTULO CXXXVII
SEGUNDO IMPULSO
Se eu não olhasse para Ezequiel, é
provável que não estivesse aqui escrevendo este livro, porque o meu primeiro
ímpeto foi correr ao café e bebê-lo. Cheguei a pegar na xícara, mas o pequeno
beijava-me a mão, como de costume, e a vista dele, como o gesto, deu-me outro
impulso que me custa dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamem-me embora
assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo impulso foi
criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara café.
— Já, papai; vou à missa com mamãe.
— Toma outra xícara, meia xícara só.
— E papai?
— Eu mando vir mais; anda, bebe!
Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a
xícara, tão trêmulo que quase a entornei, mas disposto a fazê-la cair pela
goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café
estava frio… Mas não sei que senti que me fez recuar. Pus a xícara em cima da
mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabeça do menino.
— Papai! papai! exclamava Ezequiel.
— Não, não, eu não sou teu pai!
CAPÍTULO CXXXVIII
CAPITU QUE ENTRA
Quando levantei a cabeça, dei com a
figura de Capitu diante de mim. Eis aí outro lance, que parecerá de teatro, e é
tão natural como o primeiro, uma vez que a mãe e o filho iam à missa, e Capitu
não saía sem falar-me. Era já um falar seco e breve; a maior parte das vezes,
eu nem olhava para ela. Ela olhava sempre, esperando.
Desta vez, ao dar com ela, não sei se
era dos meus olhos, mas Capitu pareceu-me lívida. Seguiu-se um daqueles
silêncios, a que, sem mentir, se pode chamar de um século, tal é a extensão do
tempo nas grandes crises. Capitu recompôs-se; disse ao filho que se fosse
embora, e pediu-me que lhe explicasse…
— Não há que explicar, disse eu.
— Há tudo; não entendo as tuas lágrimas
nem as de Ezequiel. Que houve entre vocês?
— Não ouviu o que lhe disse?
Capitu respondeu que ouvira choro e
rumor de palavras. Eu creio que ouvira tudo claramente, mas confessá-lo seria
perder a esperança do silêncio e da reconciliação; por isso negou a audiência e
confirmou unicamente a vista. Sem lhe contar o episódio do café, repeti-lhe as
palavras do final do capítulo.
— O quê? perguntou ela como se ouvira
mal.
— Que não é meu filho.
Grande foi a estupefação de Capitu, e
não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar as
primeiras testemunhas de vista do nosso foro. Já ouvi que as há para vários
casos, questão de preço; eu não creio, tanto mais que a pessoa que me contou
isto acabava de perder uma demanda. Mas, haja ou não testemunhas alugadas, a
minha era verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não queria duvidar
dela. Assim que, sem atender à linguagem de Capitu, aos seus gestos, à dor que
a retorcia, a coisa nenhuma, repeti as palavras ditas duas vezes com tal
resolução que a fizeram afrouxar. Após alguns instantes, disse-me ela:
— Só se pode explicar tal injúria pela
convicção sincera; entretanto, você que era tão cioso dos menores gestos, nunca
revelou a menor sombra de desconfiança. Que é que lhe deu tal idéia? Diga, —
continuou vendo que eu não respondia nada, — diga tudo; depois do que ouvi,
posso ouvir o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal convicção?
Ande, Bentinho, fale! fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.
— Há coisas que se não dizem.
— Que se não dizem só metade; mas já
que disse metade, diga tudo.
Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da
mesa. Podia estar um tanto confusa, o porte não era de acusada. Pedi-lhe ainda
uma vez que não teimasse.
— Não, Bentinho, ou conte o resto, para
que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa
separação: não posso mais!
— A separação é coisa decidida,
redargüi, pegando-lhe na proposta. Era melhor que a fizéssemos por meias
palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma vez, porém, que a
senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.
Não disse tudo; mas pude aludir aos
amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde deixar de rir, de um
riso que eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente irônico
e melancólico:
— Pois até os defuntos! Nem os mortos
escapam aos seus ciúmes!
Concertou a capinha e ergueu-se.
Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que não pedia outra coisa mais que a
plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras adequadas a este fim.
Capitu olhou para mim com desdém, e murmurou:
— Sei a razão disto; é a casualidade da
semelhança… A vontade de Deus explicará tudo… Ri-se? É natural; apesar do
seminário, não acredita em Deus; eu creio… Mas não falemos nisto; não nos
fica bem dizer mais nada.
CAPÍTULO CXXXIX
A FOTOGRAFIA
Palavra que estive a pique de crer que
era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada
repentina de Ezequiel, gritando: — “Mamãe! mamãe! é hora da missa!”
restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente,
olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a
confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma
fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca,
porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram
para a missa.
CAPÍTULO CXL
VOLTA DA IGREJA
Ficando só, era natural pegar do café e
bebê-lo. Pois, não, senhor; tinha perdido o gosto à morte. A morte era uma
solução; eu acabava de achar outra, tanto melhor quanto que não era definitiva,
e deixava a porta aberta à reparação, se devesse havê-la. Não disse perdão,
mas reparação, isto é, justiça. Qualquer que fosse a razão do ato,
rejeitei a morte, e esperei o regresso de Capitu. Este foi mais demorado que de
costume; cheguei a temer que ela houvesse ido à casa de minha mãe, mas não foi.
— Confiei a Deus todas as minhas
amarguras, disse-me Capitu ao voltar da igreja; ouvi dentro de mim que a nossa
separação é indispensável, e estou às suas ordens.
Os olhos com que me disse isto eram
embuçados, como espreitando um gesto de recusa ou de espera. Contava com a
minha debilidade ou com a própria incerteza em que eu podia estar da paternidade
do outro, mas falhou tudo. Acaso haveria em mim um homem novo, um que aparecia
agora, desde que impressões novas e fortes o descobriam? Nesse caso era um
homem apenas encoberto. Respondi-lhe que ia pensar, e faríamos o que eu
pensasse. Em verdade vos digo que tudo estava pensado e feito.
No intervalo, evocara as palavras do
finado Gurgel, quando me mostrou em casa dele o retrato da mulher, parecido com
Capitu. Hás de lembrar-te delas; se não, relê o capítulo, cujo número não ponho
aqui, por não me lembrar já qual seja, mas não fica longe. Reduzem-se a dizer
que há tais semelhanças inexplicáveis… Pelo dia adiante, e nos outros dias,
Ezequiel ia ter comigo ao gabinete, e as feições do pequeno davam idéia clara
das do outro, ou eu ia atentando mais nelas. De envolta, lembravam-me episódios
vagos e remotos, palavras, encontros e incidentes, tudo em que a minha cegueira
não pôs malícia, e a que faltou o meu velho ciúme. Uma vez em que os fui achar
sozinhos e calados, um segredo que me fez rir, uma palavra dela sonhando, todas
essas reminiscências vieram vindo agora, em tal atropelo que me atordoaram… E
por que os não esganei um dia, quando desviei os olhos da rua onde estavam duas
andorinhas trepadas no fio telegráfico? Dentro, as minhas outras andorinhas
estavam trepadas no ar, os olhos enfiados nos olhos, mas tão cautelosos que se
desenfiaram logo, dizendo-me uma palavra amiga e alegre. Contei-lhes o namoro
das andorinhas de fora, e acharam-lhe graça; Escobar declarou que, para ele,
seria melhor se as andorinhas, em vez de trepadas no fio de arame, estivessem à
mesa do jantar cozidas. “Nunca comi os ninhos delas, continuou, mas devem
ser bons, se os chins os inventaram”.E ficamos a tratar dos chins e dos
clássicos que falaram deles, enquanto Capitu, confessando que a aborrecíamos,
foi a outros cuidados. Agora lembrava-me tudo o que então me pareceu nada.
CAPÍTULO CXLI
A SOLUÇÃO
Aqui está o que fizemos. Pegamos em nós
e fomos para a Europa, não passear, nem ver nada, novo nem velho; paramos na
Suíça. Uma professora do Rio Grande, que foi conosco, ficou de companhia a
Capitu, ensinando a língua materna a Ezequiel, que aprenderia o resto nas
escolas do país. Assim regulada a vida, tornei ao Brasil.
Ao cabo de alguns meses, Capitu
começara a escrever-me cartas, a que respondi com brevidade e sequidão. As dela
eram submissas, sem ódio, acaso afetuosas, e para o fim saudosas; pedia-me que
a fosse ver. Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com
o mesmo resultado. Na volta, os que se lembravam dela, queriam notícias, e eu
dava-lhes, como se acabasse de viver com ela; naturalmente as viagens eram
feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião. Um dia,
finalmente…
CAPÍTULO CXLII
UMA SANTA
Entenda-se que, se nas viagens que fiz
à Europa, José Dias não foi comigo, não é que lhe faltasse vontade; ficava de
companhia a tio Cosme, quase inválido, e a minha mãe, que envelheceu depressa.
Também ele estava velho, posto que rijo. Ia a bordo despedir-se de mim, e as
palavras que me dizia, os gestos de lenço, os próprios olhos que enxugava eram
tais que me comoviam também. A última vez não foi a bordo.
— Venha…
— Não posso.
— Está com medo?
— Não; não posso. Agora, adeus,
Bentinho, não sei se me verá mais; creio que vou para a outra Europa, a
eterna…
Não foi logo; minha mãe embarcou
primeiro. Procura no cemitério de São João Batista uma sepultura sem nome, com
esta única indicação: Uma santa. É aí. Fiz fazer essa inscrição com
alguma dificuldade. O escultor achou-a esquisita; o administrador do cemitério
consultou o vigário da paróquia; este ponderou-me que as santas estão no altar
e no Céu.
— Mas, perdão, atalhei, eu não quero
dizer que naquela sepultura está uma canonizada. A minha idéia é dar com tal
palavra uma definição terrena de todas as virtudes que a finada possuiu na
vida. Tanto é assim que, sendo a modéstia uma delas, desejo conservá-la
póstuma, não lhe escrevendo o nome.
— Todavia, o nome, a filiação, as
datas…
— Quem se importará com datas,
filiação, nem nomes, depois que eu acabar?
— Quer dizer que era uma santa senhora,
não?
— Justamente. O protonotário Cabral, se
fosse vivo, confirmaria aqui o que lhe digo.
— Nem eu contesto a verdade, hesito só
na fórmula. Conheceu então o protonotário?
— Conheci-o. Era um padre-modelo.
— Bom canonista, bom latinista, pio e
caridoso, continuou o vigário.
— E possuía algumas prendas de
sociedade, disse eu; lá em casa sempre ouvi que era insigne parceiro ao
gamão…
— Tinha muito bom dado! suspirou
lentamente o vigário. Um dado de mestre!
— Então, parece-lhe…?
— Uma vez que não há outro sentido, nem
poderia havê-lo, sim, senhor, admite-se…
José Dias assistiu a estas diligências,
com grande melancolia. No fim, quando saímos, disse mal do padre, chamou-lhe
meticuloso. Só lhe achava desculpa por não ter conhecido minha mãe, nem ele nem
os outros homens do cemitério.
— Não a conheceram; se a conhecessem
mandariam esculpir santíssima.
CAPÍTULO CXLIII
O ÚLTIMO SUPERLATIVO
Não foi o último superlativo de José
Dias. Outros teve que não vale a pena escrever aqui, até que veio o último, o
melhor deles, o mais doce, o que lhe fez da morte um pedaço de vida. Já então
morava comigo; posto que minha mãe lhe deixasse uma pequena lembrança, veio
dizer-me que, com legado ou sem ele, não se separaria de mim. Talvez a
esperança dele fosse enterrar-me. Correspondia-se com Capitu, a que pedia que
lhe mandasse o retrato de Ezequiel; mas Capitu ia adiando a remessa de correio
a correio, até que ele não pediu mais nada, a não ser o coração do jovem
estudante; pedia-lhe também que não deixasse de falar a Ezequiel no velho amigo
do pai e do avô, “destinado pelo Céu a amar o mesmo sangue”.Era assim que
ele preparava os cuidados da terceira geração; mas a morte veio antes de
Ezequiel. A doença foi rápida. Mandei chamar um médico homeopata.
— Não, Bentinho, disse ele; basta um
alopata; em todas as escolas se morre. Demais, foram idéias da mocidade, que o
tempo levou; converto-me à fé de meus pais. A alopatia é o catolicismo da
Medicina…
Morreu sereno, após uma agonia curta.
Pouco antes ouviu que o céu estava lindo, e pediu que abríssemos a janela.
— Não, o ar pode fazer-lhe mal.
— Que mal? Ar é vida.
Abrimos a janela. Realmente, estava um céu
azul e claro. José Dias soergueu-se e olhou para fora; após alguns instantes,
deixou cair a cabeça, murmurando: Lindíssimo! Foi a última palavra que proferiu
neste mundo. Pobre José Dias! Por que hei de negar que chorei por ele?
CAPÍTULO CXLIV
UMA PERGUNTA TARDIA
Assim chorem por mim todos os olhos de
amigos e amigas que deixo neste mundo, mas não é provável. Tenho-me feito
esquecer. Moro longe e saio pouco. Não é que haja efetivamente ligado as duas
pontas da vida. Esta casa do Engenho Novo, conquanto reproduza a de
Mata-cavalos, apenas me lembra aquela, e mais por efeito de comparação e de
reflexão que de sentimento. Já disse isto mesmo.
Hão de perguntar-me por que razão,
tendo a própria casa velha, na mesma rua antiga, não impedi que a demolissem e
vim reproduzi-la nesta. A pergunta devia ser feita a princípio, mas aqui vai a
resposta. A razão é que, logo que minha mãe morreu, querendo ir para lá, fiz
primeiro uma longa visita de inspeção por alguns dias, e toda a casa me
desconheceu. No quintal a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o
lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma que eu deixara ao fundo,
mas o tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora um ar de ponto de
interrogação; naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando
algum pensamento que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem
começou a sussurrar alguma coisa que não entendi logo, e parece que era a
cantiga das manhãs novas. Ao pé dessa música sonora e jovial, ouvi também o
grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e filosófica.
Tudo me era estranho e adverso. Deixei
que demolissem a casa, e, mais tarde, quando vim para o Engenho Novo,
lembrou-me fazer esta reprodução por explicações que dei ao arquiteto, segundo
contei em tempo.
CAPÍTULO CXLV
O REGRESSO
Ora, foi já nesta casa que um dia,
estando a vestir-me para almoçar, recebi um cartão com este nome:
Ezequiel A. de Santiago
— A pessoa está aí? perguntei ao
criado.
— Sim, senhor; ficou esperando.
Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns
dez ou quinze minutos na sala. Só depois é que me lembrou que cumpria ter certo
alvoroço e correr, abraçá-lo, falar-lhe na mãe. A mãe, — creio que ainda não
disse que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suíça. Acabei
de vestir-me às pressas. Quando saí do quarto, tomei ares de pai, um pai entre
manso e crespo, metade Dom Casmurro. Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de
costas, mirando o busto de Massinissa, pintado na parede. Vim cauteloso, e não
fiz rumor. Não obstante, ouviu-me os passos, e voltou-se depressa. Conhece-me
pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu
antigo e jovem companheiro do seminário de São José, um pouco mais baixo, menos
cheio de corpo e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo.
Trajava à moderna, naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o aspecto
geral reproduzia a pessoa morta. Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar.
Era o meu comborço; era o filho de seu pai. Vestia de luto pela mãe; eu também
estava de preto. Sentamo-nos.
— Papai não faz diferença dos últimos
retratos, disse-me ele.
A voz era a mesma de Escobar, o sotaque
era afrancesado. Expliquei-lhe que realmente pouco diferia do que era, e
comecei um interrogatório para ter menos que falar e dominar assim a minha
emoção. Mas isto mesmo dava animação à cara dele, e o meu colega do seminário
ia ressurgindo cada vez mais do cemitério. Ei-lo aqui, diante de mim, com igual
riso e maior respeito; total, o mesmo obséquio e a mesma graça. Ansiava por
ver-me. A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente, como o
homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido.
— Morreu bonita, concluiu.
— Vamos almoçar.
Se pensas que o almoço foi amargo,
enganas-te. Teve seus minutos de aborrecimento, é verdade; a princípio doeu-me
que Ezequiel não fosse realmente meu filho, que me não completasse e
continuasse. Se o rapaz tem saído à mãe, eu acabava crendo tudo, tanto mais
facilmente quando que ele parecia haver-me deixado na véspera, evocava a
meninice, cenas e palavras, a ida para o colégio…
— Papai ainda se lembra quando me levou
para o colégio? perguntou rindo.
— Pois não hei de lembrar-me?
— Era na Lapa; eu ia desesperado, e
papai não parava, dava-me cada puxão, e eu com as perninhas… Sim, senhor,
aceito.
Estendeu o copo ao vinho que eu lhe
oferecia, bebeu um gole, e continuou a comer. Escobar comia assim também, com a
cara metida no prato. Contou-me a vida na Europa, os estudos, particularmente
os de arqueologia, que era a sua paixão. Falava da antiguidade com amor,
contava o Egito e os seus milhares de séculos, sem se perder nos algarismos;
tinha a cabeça aritmética do pai. Eu, posto que a idéia da paternidade do outro
me estivesse já familiar, não gostava da ressurreição. Às vezes, fechava os
olhos para não ver gestos nem nada, mas o diabrete falava e ria, e o defunto
falava e ria por ele.
Não havendo remédio senão ficar com
ele, fiz-me pai deveras. A idéia de que pudesse ter visto alguma fotografia de
Escobar, que Capitu por descuido levasse consigo, não me acudiu, nem, se
acudisse, persistiria. Ezequiel cria em mim, como na mãe. Se fosse vivo José
Dias, acharia nele a minha própria pessoa. Prima Justina quis vê-lo; mas,
estando enferma, pediu-me que o levasse lá. Conhecia aquela parenta. Creio que
o desejo de ver Ezequiel era para o fim de verificar no moço o debuxo que
porventura houvesse achado no menino. Seria um regalo último; atalhei-o a
tempo.
— Está muito mal, disse eu a Ezequiel
que queria ir vê-la, qualquer emoção pode trazer-lhe a morte. Iremos vê-la,
quando ficar melhor.
Não fomos; a morte levou-a dentro de
poucos dias. Ela descansa no Senhor ou como quer que seja. Ezequiel viu-lhe a
cara no caixão e não a conheceu, nem podia, tão outra a fizeram os anos e a
morte. No caminho para o cemitério, iam-lhe lembrando uma porção de coisas,
alguma rua, alguma torre, um trecho de praia, e era todo alegria. Assim
acontecia sempre que voltava para casa, ao fim do dia; contava-me as recordações
que ia recebendo das ruas e das casas. Admirava-se que muitas destas fossem as
mesmas que ele deixara, como se as casas morressem meninas.
Ao cabo de seis meses, Ezequiel
falou-me em uma viagem à Grécia, ao Egito, e à Palestina, viagem científica,
promessa feita a alguns amigos.
— De que sexo? perguntei rindo.
Sorriu, vexado, e respondeu-me que as
mulheres eram criaturas tão da moda e do dia que nunca haviam de entender uma
ruína de trinta séculos. Eram dois colegas da universidade. Prometi-lhe
recursos, e dei-lhe logo os primeiros dinheiros precisos. Como disse que uma
das conseqüências dos amores furtivos do pai era pagar eu as arqueologias do
filho; antes lhe pegasse a lepra… Quando esta idéia me atravessou o cérebro,
senti-me tão cruel e perverso que peguei no rapaz, e quis apertá-lo ao coração,
mas recuei; encarei-o depois, como se faz a um filho de verdade; os olhos que
ele me deitou foram ternos e agradecidos.
CAPÍTULO CXLVI
NÃO HOUVE LEPRA
Não houve lepra, mas há febres por
todas essas terras humanas, sejam velhas ou novas. Onze meses depois, Ezequiel
morreu de uma febre tifóide, e foi enterrado nas imediações de Jerusalém, onde
os dois amigos da universidade lhe levantaram um túmulo com esta inscrição,
tirada do profeta Ezequiel, em grego: “Tu eras perfeito nos teus
caminhos”.Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da sepultura,
a conta das despesas e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o triplo
para não tornar a vê-lo.
Como quisesse verificar o texto,
consultei a minha Vulgata, e achei que era exato, mas tinha ainda um
complemento: “Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia da
tua criação”.Parei e perguntei calado: “Quando seria o dia da criação
de Ezequiel?” Ninguém me respondeu. Eis aí mais um mistério para ajuntar
aos tantos deste mundo. Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro.
CAPÍTULO CXLVII
A EXPOSIÇÃO RETROSPECTIVA
Já sabes que a minha alma, por mais
lacerada que tenha sido, não ficou aí para um canto como uma flor lívida e solitária.
Não lhe dei essa cor ou descor. Vivi o melhor que pude sem me faltarem amigas
que me consolassem da primeira. Caprichos de pouca dura, é verdade. Elas é que
me deixavam como pessoas que assistem a uma exposição retrospectiva, e, ou se
fartam de vê-la, ou a luz da sala esmorece. Uma só dessas visitas tinha carro à
porta e cocheiro de libré. As outras iam modestamente, calcante pede,
e, se chovia, eu é que ia buscar um carro de praça, e as metia dentro, com
grandes despedidas, e maiores recomendações.
— Levas o catálogo?
— Levo; até amanhã.
— Até amanhã.
Não voltavam mais. Eu ficava à porta,
esperando, ia até à esquina, espiava, consultava o relógio, e não via nada nem
ninguém. Então, se aparecia outra visita, dava-lhe o braço, entrávamos, mostrava-lhe
as paisagens, os quadros históricos ou de gênero, uma aquarela, um pastel,
uma gouache, e também esta cansava, e ia embora com o catálogo na
mão…
CAPÍTULO CXLVIII
E BEM, E O RESTO?
Agora, por que é que nenhuma dessas
caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque
nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas
não é este propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da Praia
da Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela
por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos
meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. I: “Não
tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia
que aprender de ti”. Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te
lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra,
como a fruta dentro da casca.
E bem, qualquer que seja a solução, uma
coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha
primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também,
quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me… A terra lhes seja
leve! Vamos à História dos Subúrbios.
***
© Copyright 2021, VirtualBooks Editora.
Publicamos seu livro a partir de 20 exemplares
e-books nos formatos: e-pub ou PDF.
Whatsapp +55 37 99173-353
e-mail: capasvb@gmail.com
http://www.virtualbooks.com.br
*
Clube do Livro
VirtualBooks
Caso queira divulgar o seu livro: capa, sinopse e seu e-mail. É grátis!
*
Grátis o e-book: Tales from Shakespeare / Contos de Shakespeare
Edição em Inglês e Português
‘CONTOS DE SHAKESPEARE’ é um livro infantojuvenil escrito por Charles Lamb com sua irmã Mary Lamb em 1807. O livro reduziu o inglês arcaico e o enredo complicado de Shakespeare a um nível simples que os adolescentes podiam ler e compreender com facilidade.
Para ler: https://bit.ly/3oFEZNy