MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS
Machado de Assis
© Copyright 2017, VirtualBooks Editora e Livraria Ltda Publicado
originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na ‘Revista Brasileira’,
em 1881, em livro. Capa: Pandore, Jules Joseph Lefebvre (1834–1912) Todos os direitos
reservados, protegidos pela lei 9.610/98.
Joaquim
Maria Machado de Assis (1839 — 1908) Memórias Póstumas
de Brás Cubas, Machado de Assis. Pará de Minas, MG, Brasil: Editora
VirtualBooks, 2017. ISBN:
9781521762288 CDD- B869 Literatura brasileira.
Romance.
Ao verme
que
primeiro roeu as frias carnes
do meu cadáver
dedico
como saudosa lembrança
estas
Memórias Póstumas
Prólogo da terceira edição
A primeira edição destas Memórias Póstumas
de Brás Cubas foi feita aos pedaços na Revista Brasileira, pelos anos de
1880. Postas mais tarde em livro, corrigi o texto em vários lugares. Agora que
tive de o rever para a terceira edição, emendei ainda alguma coisa e suprimi
duas ou três dúzias de linhas. Assim composta, sai novamente à luz esta obra
que alguma benevolência parece ter encontrado no público.
Capistrano de Abreu, noticiando a publicação do
livro, perguntava: “As Memórias Póstumas de Brás Cubas são um romance?”
Macedo Soares, em carta que me escreveu por esse tempo, recordava amigamente as
Viagens na minha terra. Ao primeiro respondia já o defunto Brás Cubas
(como o leitor viu e verá no prólogo dele que vai adiante) que sim e que não,
que era romance para uns e não o era para outros. Quanto ao segundo, assim se
explicou o finado: “Trata-se de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se
adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe
meti algumas rabugens de pessimismo.” Toda essa gente viajou: Xavier de Maistre
à roda do quarto, Garret na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Brás
Cubas se pode dizer que viajou à roda da vida.
O que faz do meu Brás Cubas um autor particular
é o que ele chama “rabugens de pessimismo”. Há na alma deste livro, por mais
risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir de
seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro
vinho. Não digo mais para não entrar na crítica de um defunto, que se pintou a
si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo.
Machado de Assis.
AO LEITOR
Que Stendhal confessasse haver escrito um de
seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não
admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem
leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez?
Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas,
se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se
lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a
com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que
poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas
aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu
romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos
frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da
opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor
prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e
truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que
empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria
curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra.
A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te
não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas.
CAPÍTULO PRIMEIRO / ÓBITO
DO AUTOR
Algum tempo hesitei se
devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em
primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja
começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente
método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um
defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito
ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte,
não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o
Pentateuco.
Dito isto, expirei às
duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela
chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era
solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por
onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce
que chovia — peneirava uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e
tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta
engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: — “Vós, que o
conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar
chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a
humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que
cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à
Natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso
ilustre finado.”
Bom e fiel amigo! Não,
não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à
cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country
de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego
como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas
nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o
Cotrim, a filha, — um lírio do vale, — e… Tenham paciência! daqui a pouco
lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima,
ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu
mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão,
convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática… Um solteirão que
expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os
elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima
era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca
entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.
— “Morto! morto!” dizia
consigo.
E a imaginação dela,
como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o voo desde o Ilisso às
ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa
senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África
juvenil… Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir
aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo
os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas
folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador
está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da
morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante
chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de
vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e
moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra e lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia;
mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil,
a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é
verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
CAPÍTULO II / O
EMPLASTO
Com efeito, um dia de
manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que
eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer
as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar
a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas,
até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.
Essa ideia era nada
menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro
anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na
petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse
resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens
pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão
profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso
confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas
nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio,
estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a
paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me
argúam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os
hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada
para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado,
sede de nomeada. Digamos: — amor da glória.
Um tio meu, cônego de
prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição
das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio,
oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a
coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua
mais genuína feição.
Decida o leitor entre o
militar e o cônego; eu volto ao emplasto.
CAPÍTULO III / GENEALOGIA
Mas, já que falei nos
meus dois tios, deixem-me fazer aqui um curto esboço genealógico.
O fundador da minha
família foi um certo Damião Cubas, que floresceu na primeira metade do século
XVIII. Era tanoeiro de ofício, natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na
penúria e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se
lavrador, plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas,
até que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, licenciado Luís Cubas.
Neste rapaz é que verdadeiramente começa a série de meus avós — dos avós que a
minha família sempre confessou, — porque o Damião Cubas era afinal de contas um
tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Luís Cubas estudou em Coimbra,
primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei Conde da Cunha.
Como este apelido de
Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu pai, bisneto de
Damião, que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da
África, em prêmio da façanha que praticou, arrebatando trezentas cubas aos
mouros. Meu pai era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um calembour.
Era um bom caráter, meu pai, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verdade,
uns fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? Releva
notar que ele não recorreu à inventiva senão depois de experimentar a
falsificação; primeiramente, entroncou-se na família daquele meu famoso
homônimo, o capitão-mor, Brás Cubas, que fundou a vila de São Vicente, onde
morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de Brás. Opôs-se-lhe,
porém, a família do capitão-mor, e foi então que ele imaginou as trezentas
cubas mouriscas.
Vivem ainda alguns
membros de minha família, minha sobrinha Venância, por exemplo, o lírio do
vale, que é a flor das damas do seu tempo; vive o pai, o Cotrim, um sujeito
que… Mas não antecipemos os sucessos; acabemos de uma vez com o nosso
emplasto.
CAPÍTULO IV / A
IDEIA FIXA
A minha ideia, depois
de tantas cabriolas, constituíra-se ideia fixa. Deus te livre, leitor, de uma
ideia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a
ideia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu;
mas cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma
eterna loureira. Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um
simplório, — ou “uma abóbora” como lhe chamou Sêneca, e um Tito, que mereceu
ser as delícias de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de
demonstrar que dos dois césares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o
“abóbora” de Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te
pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te
apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano.
Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio.
Viva pois a história, a
volúvel história que dá para tudo; e, tornando à ideia fixa, direi que é ela a
que faz os varões fortes e os doidos; a ideia móbil, vaga ou furta-cor é a que
faz os Cláudios, — fórmula Suetônio.
Era fixa a minha ideia,
fixa como… Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua,
talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a
comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz,
só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos.
Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus
confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que
este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado
da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual,
agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama
nem regala, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.
Vamos lá; retifique o
seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a história com os seus caprichos de
dama elegante. Nenhum de nós pelejou a batalha de Salamina, nenhum escreveu a
confissão de Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell,
é só pela ideia de que Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o parlamento,
teria imposto aos ingleses o emplasto Brás Cubas. Não se riam dessa vitória
comum da farmácia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira
grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras
modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não
poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia
à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez
graúda e castelã… Não, a comparação não presta.
CAPÍTULO V / EM QUE
APARECE A ORELHA DE UMA SENHORA
Senão quando, estando
eu ocupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe de
ar; adoeci logo, e não me tratei. Tinha o emplasto no cérebro; trazia comigo a
ideia fixa dos doidos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das
turbas, e remontar ao Céu, como uma águia imortal, e não é diante de tão
excelso espetáculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia
estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem método, nem cuidado, nem
persistência; tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade. Sabem já que
morri numa sexta-feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha
invenção que me matou. Há demonstrações menos lúcidas e não menos triunfantes.
Não era impossível,
entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de um século, e a figurar nas
folhas públicas, entre macróbios. Tinha saúde e robustez. Suponha-se que, em
vez de estar lançando os alicerces de uma invenção farmacêutica, tratava de
coligir os elementos de uma instituição política, ou de uma reforma religiosa.
Vinha a corrente de ar, que vence em eficácia o cálculo humano, e lá se ia
tudo. Assim corre a sorte dos homens.
Com esta reflexão me
despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas com certeza mais formosa
entre as contemporâneas suas, a anônima do primeiro capítulo, a tal, cuja imaginação
à semelhança das cegonhas do Ilisso… Tinha então 54 anos, era uma ruína, uma
imponente ruína. Imagine o leitor que nos amamos, ela e eu, muitos anos antes,
e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar à porta da alcova…
CAPÍTULO
VI / CHIMÈNE, QUI L’EÛT DIT? RODRIGUE, QUI L’EÛT CRU?
Vejo-a assomar à porta
da alcova, pálida, comovida, trajada de preto, e ali ficar durante um minuto,
sem ânimo de entrar, ou detida pela presença de um homem que estava comigo. Da
cama, onde jazia, contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada
ou de fazer nenhum gesto. Havia já dois anos que nos não víamos, e eu via-a
agora não qual era, mas qual fora, quais fôramos ambos, porque um Ezequias
misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas
as misérias, e este punhado de pó, que a morte ia espalhar na eternidade do
nada, pôde mais do que o tempo, que é o ministro da morte. Nenhuma água de
Juventa igualaria ali a simples saudade.
Creiam-me, o menos mau
é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de
Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode
gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se
gosta sem doer.
Não durou muito a evocação;
a realidade dominou logo; o presente expeliu o passado. Talvez eu exponha ao
leitor, em algum canto deste livro, a minha teoria das edições humanas. O que
por agora importa saber é que Virgília — chamava-se Virgília — entrou na
alcova, firme, com a gravidade que lhe davam as roupas e os anos, e veio até o
meu leito. O estranho levantou-se e saiu. Era um sujeito, que me visitava todos
os dias para falar do câmbio, da colonização e da necessidade de desenvolver a
viação férrea; nada mais interessante para um moribundo. Saiu; Virgília
deixou-se estar de pé; durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem
articular palavra. Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões sem
freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dois corações
murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas
enfim saciados. Virgília tinha agora a beleza da velhice, um ar austero e
maternal; estava menos magra do que quando a vi, pela última vez, numa festa de
São João, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora começavam os
cabelos escuros a intercalar-se com alguns fios de prata.
— Anda visitando os
defuntos? disse-lhe eu. — Ora, defuntos! respondeu Virgília com um muxoxo. E
depois de me apertar as mãos: — Ando a ver se ponho os vadios para a rua.
Não tinha a carícia
lacrimosa de outro tempo; mas a voz era amiga e doce. Sentou-se. Eu estava só,
em casa, com um simples enfermeiro; podíamos falar um ao outro, sem perigo.
Virgília deu-me longas notícias de fora, narrando-as com graça, com um certo
travo de má língua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo,
sentia um prazer satânico em mofar dele, em persuadir-me que não deixava nada.
— Que ideias essas!
interrompeu-me Virgília um tanto zangada. Olhe que não volto mais. Morrer!
Todos nós havemos de morrer; basta estarmos vivos.
E vendo o relógio:
— Jesus! são três
horas. Vou-me embora.
— Já?
— Já; virei amanhã ou
depois.
— Não sei se faz bem,
retorqui; o doente é um solteirão e a casa não tem senhoras…
— Sua mana?
— Há de vir cá passar
uns dias, mas não pode ser antes de sábado.
Virgília refletiu um
instante, levantou os ombros e disse com gravidade:
— Estou velha! Ninguém
mais repara em mim. Mas, para cortar dúvidas, virei com o Nhonhô.
Nhonhô era um bacharel,
único filho de seu casamento, que, na idade de cinco anos, fora cúmplice
inconsciente de nossos amores. Vieram juntos, dois dias depois, e confesso que,
ao vê-los ali, na minha alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me
permitiu corresponder logo às palavras afáveis do rapaz. Virgília adivinhou-me
e disse ao filho:
— Nhonhô, não repares
nesse grande manhoso que aí está; não quer falar para fazer crer que está à
morte.
Sorriu o filho, eu
creio que também sorri, e tudo acabou em pura galhofa. Virgília estava serena e
risonha, tinha o aspecto das vidas imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum
gesto que pudesse denunciar nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma
dominação sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocássemos,
casualmente, nuns amores ilegítimos, meio secretos, meio divulgados, vi-a falar
com desdém e um pouco de indignação da mulher de que se tratava, aliás sua
amiga. O filho sentia-se satisfeito, ouvindo aquela palavra digna e forte, e eu
perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões, se Buffon tivesse
nascido gavião…
Era o meu delírio que
começava.
CAPÍTULO VII / O
DELÍRIO
Que me conste, ainda
ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se
o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o
capítulo; vá direito à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe
digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte
a trinta minutos.
Primeiramente, tomei a
figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me
pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.
Logo depois, senti-me
transformado na Suma Teológica de São Tomás, impressa num volume, e
encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu
ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as
minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as
descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um
defunto.
Ultimamente, restituído
à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir,
calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de
tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte
lhe disse que a viagem me parecia sem destino.
— Engana-se, replicou o
animal, nós vamos à origem dos séculos.
Insinuei que deveria
ser muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me entendeu ou não me ouviu, se é
que não fingiu uma dessas coisas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se
era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um
gesto peculiar a estes dois quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha parte
fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá de confessar
que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava a
origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se
valia alguma coisa mais ou menos do que a consumação dos mesmos séculos:
reflexões de cérebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho;
lembra-me só que a sensação de frio aumentava com a jornada, e que chegou uma
ocasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri
os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície branca de neve, e vários
animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve.
Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:
— Onde estamos?
— Já passamos o Éden.
— Bem; paremos na tenda
de Abraão.
— Mas se nós caminhamos
para trás! redarguiu motejando a minha cavalgadura.
Fiquei vexado e
aturdido. A jornada entrou e parecer-me enfadonha e extravagante, o frio
incômodo, a condução violenta, e o resultado impalpável. E depois — cogitações
do enfermo — dado que chegássemos ao fim indicado, não era impossível que os
séculos, irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas,
que deviam ser tão seculares como eles. Enquanto assim pensava, íamos devorando
caminho, e a planície voava debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, e
pude olhar mais tranquilamente em torno de mim. Olhar somente; nada vi, além da
imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até ali azul.
Talvez, a espaços, me parecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando
ao vento as suas largas folhas. O silêncio daquela região era igual ao do
sepulcro: dissera-se que a vida das coisas ficara estúpida diante do homem.
Caiu do ar? destacou-se
da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu
então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a
vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano,
porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita
vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito;
mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se
chamava: curiosidade de delírio.
— Chama-me Natureza ou
Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última
palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que
produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um
longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.
— Não te assustes,
disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma.
Vives; não quero outro flagelo.
— Vivo? perguntei eu,
enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência.
— Sim, verme, tu vives.
Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas
horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste,
vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que
queres viver.
Dizendo isto, a visão
estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora
uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais
quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a
feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna
surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no
coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de
juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e
decrépito dos seres.
— Entendeste-me? disse
ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.
— Não, respondi; nem
quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto,
ou, se é verdade, que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado,
isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza,
tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um
flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que
Pandora?
— Porque levo na minha
bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos
homens. Tremes?
— Sim; o teu olhar
fascina-me.
— Creio; eu não sou
somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te
emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra
ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último som
que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim
mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.
— Pobre minuto!
exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e
seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de
sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia,
a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono,
enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
— Viver somente, não te
peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, senão tu? e, se eu
amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?
— Porque já não preciso
de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto
que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e
perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não
tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o
raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor:
eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou-me
ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei,
durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única.
Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as
raças todas, todas as paixões, o tumulto dos Impérios, a guerra dos apetites e
dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo,
acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma
intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a
ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via
era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar
o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os
olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim,— flagelos
e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama
miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade.
Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a
enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia,
a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo,
como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora
mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em
derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença,
que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o
homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de
uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável,
outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a
agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade,
— ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a
cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma
ilusão.
Ao contemplar tanta
calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora
escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral,
fui eu que me pus a rir, — de um riso descompassado e idiota.
— Tens razão, disse eu,
a coisa é divertida e vale a pena, — talvez monótona — mas vale a pena. Quando
Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá
de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é
divertida, mas digere-me.
A resposta foi
compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que continuavam a
passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas
tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de
Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força
misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: — “Bem, os séculos vão
passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a
decifração da eternidade.” E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que
vinham chegando e passando, já então tranqüilo e resoluto, não sei até se
alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de
apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de
ideias novas, de novas ilusões; cada um deles rebentavam as verduras de uma
primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida
tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a
civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o
tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que
perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a
face do globo, descia ao ventre da Terra, subia à esfera das nuvens,
colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida
e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar
o século presente, e atrás deles os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante,
cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os
primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e
igual monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, — o
último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a
compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram
os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se
no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera,
e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de
um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão,
que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel…
CAPÍTULO VIII / RAZÃO
CONTRA SANDICE
Já o leitor compreendeu
que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e
com melhor jus, as palavras de Tartufo:
La
maison est à moi, c’est à vous d’en sortir.
Mas é sestro antigo da
Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma,
dificilmente lhe farão despejar. É sestro; não se tira daí; há muito que lhe
calejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número de casas que ocupa,
umas de vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta
amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso, houve quase um
distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a
casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a
Sandice se contentava com um cantinho no sótão.
— Não, senhora,
replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o
que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e
ao resto.
— Está bem, deixe-me
ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério…
— Que mistério?
— De dois, emendou a
Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.
A Razão pôs-se a rir.
— Hás de ser sempre a
mesma coisa… sempre a mesma coisa… sempre a mesma coisa…
E dizendo isto,
travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A
Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se
depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando…
CAPÍTULO IX / TRANSIÇÃO
E vejam agora com que
destreza; com que arte faço eu a maior transição deste livro. Vejam: o meu
delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão pecado da juventude;
não há juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como
chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram?
Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada.
De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a rigidez
do método. Na verdade, era tempo. Que isto de método, sendo, como é, uma coisa
indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um
pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do
inspetor de quarteirão. É como a eloquência, que há uma genuína e vibrante, de
uma arte natural e feiticeira, e outra tesa, engomada e chocha. Vamos ao dia 20
de outubro.
CAPÍTULO X / NAQUELE
DIA
Naquele dia, a árvore
dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci; recebeu-me nos braços a Pascoela,
insigne parteira minhota, que se gabava de ter aberto a porta do mundo a uma
geração inteira de fidalgos. Não é impossível que meu pai lhe ouvisse tal
declaração; creio, todavia, que o sentimento paterno é que o induziu a
gratificá-la com duas meias dobras. Lavado e enfaixado, fui desde logo o herói
da nossa casa. Cada qual prognosticava a meu respeito o que mais lhe quadrava
ao sabor. Meu tio João, o antigo oficial de infantaria, achava-me um certo
olhar de Bonaparte, coisa que meu pai não pôde ouvir sem náuseas; meu tio
Ildefonso, então simples padre, farejava-me cônego.
— Cônego é o que ele há
de ser, e não digo mais por não parecer orgulho; mas não me admiraria nada se Deus
o destinasse a um bispado… É verdade, um bispado; não é coisa impossível. Que
diz você, mano Bento?
Meu pai respondia a
todos que eu seria o que Deus quisesse; e alçava-me ao ar, como se intentasse
mostrar-me à cidade e ao mundo; perguntava a todos se eu me parecia com ele, se
era inteligente, bonito…
Digo essas coisas por
alto, segundo as ouvi narrar anos depois; ignoro a mor parte dos pormenores
daquele famoso dia. Sei que a vizinhança veio ou mandou cumprimentar o
recém-nascido, e que durante as primeiras semanas muitas foram as visitas em
nossa casa. Não houve cadeirinha que não trabalhasse; aventou-se muita casaca e
muito calção. Se não conto os mimos, os beijos, as admirações, as bênçãos, é
porque, se os contasse, não acabaria mais o capítulo, e é preciso acabá-lo.
Item, não posso dizer
nada do meu batizado, porque nada me referiram a tal respeito, a não ser que
foi uma das mais galhardas festas do ano seguinte, 1806; batizei-me na igreja
de São Domingos, uma terça-feira de março, dia claro, luminoso e puro, sendo
padrinhos o Coronel Rodrigues de Matos e sua senhora. Um e outro descendiam de
velhas famílias do Norte e honravam deveras o sangue que lhes corria nas veias,
outrora derramado na guerra contra Holanda. Cuido que os nomes de ambos foram
das primeiras coisas que aprendi; e certamente os dizia com muita graça, ou
revelava algum talento precoce, porque não havia pessoa estranha diante de quem
me não obrigassem a recitá-los.
— Nhonhô, diga a estes
senhores como é que se chama seu padrinho.
— Meu padrinho? é o
Excelentíssimo Senhor Coronel Paulo Vaz Lobo César de Andrade e Sousa Rodrigues
de Matos; minha madrinha é a Excelentíssima Senhora D. Maria Luísa de Macedo
Resende e Sousa Rodrigues de Matos.
— É muito esperto o seu
menino! exclamavam os ouvintes.
— Muito esperto,
concordava meu pai; e os olhos babavam-se-lhe de orgulho, e ele espalmava a mão
sobre a minha cabeça, fitava-me longo tempo, namorado, cheio de si.
Item, comecei a andar,
não sei bem quando, mas antes do tempo. Talvez por apressar a natureza,
obrigavam-me cedo a agarrar às cadeiras, pegavam-me da fralda, davam-me
carrinhos de pau. — Só só, nhonhô, só só, dizia-me a mucama. E eu, atraído pelo
chocalho de lata, que minha mãe agitava diante de mim, lá ia para a frente, cai
aqui, cai acolá; e andava, provavelmente mal, mas andava, e fiquei andando.
CAPÍTULO XI / O
MENINO É PAI DO HOMEM
Cresci; e nisso é que a
família não interveio; cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os
gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e com certeza, as magnólias são
menos inquietas do que eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é
pai do homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.
Desde os cinco anos
merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa;
fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e
voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me
negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o
malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da
travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por
pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu
cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos,
à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o,
dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, —
mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — “ai, nhonhô!” — ao que
eu retorquia: — “Cala a boca, besta!” — Esconder os chapéus das visitas, deitar
rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar
beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram
mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um
espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me
repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular
dava-me beijos.
Não se conclua daqui
que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabeça dos outros nem a
esconder-lhes os chapéus; mas opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens,
isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes
puxei pelo rabicho das cabeleiras.
Outrossim, afeiçoei-me
à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a
classifiquei-a por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao
sabor das circunstâncias e lugares. Minha mãe doutrinava-me a seu modo,
fazia-me decorar alguns preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as
orações, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espírito,
que a faz viver, para se tornar uma vã fórmula. De manhã, antes do mingau, e de
noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos
meus devedores; mas entre a manhã e a noite fazia uma grande maldade, e meu
pai, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah!
brejeiro! ah! brejeiro!
Sim, meu pai
adorava-me. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração,
assaz crédula, sinceramente piedosa, — caseira, apesar de bonita, e modesta,
apesar de abastada; temente às trovoadas e ao marido. O marido era na Terra o
seu deus. Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha educação, que, se
tinha alguma coisa boa, era no geral viciosa, incompleta, e, em partes,
negativa. Meu tio cônego fazia às vezes alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que
ele me dava mais liberdade do que ensino, e mais afeição do que emenda; mas meu
pai respondia que aplicava na minha educação um sistema inteiramente superior
ao sistema usado; e por este modo, sem confundir o irmão, iludia-se a si
próprio.
De envolta com a
transmissão e a educação, houve ainda o exemplo estranho, o meio doméstico.
Vimos os pais; vejamos os tios. Um deles, o João, era um homem de língua solta,
vida galante, conversa picaresca. Desde os onze anos entrou a admitir-me às
anedotas reais ou não, eivadas todas de obscenidade ou imundície. Não me
respeitava a adolescência, como não respeitava a batina do irmão; com a
diferença que este fugia logo que ele enveredava por assunto escabroso. Eu não;
deixava-me estar, sem entender nada, a princípio, depois entendendo, e enfim
achando-lhe graça. No fim de certo tempo, quem o procurava era eu; e ele
gostava muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa, quando lá ia
passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo, no fundo da chácara,
no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; aí é que era um
desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que
ninguém podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas,
com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do
tanque, outras fora, inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a
ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redarguindo às pilhérias do tio João, e
a comentá-las de quando em quando com esta palavra:
— Cruz, diabo!… Este
sinhô João é o diabo!
Bem diferente era o tio
cônego. Esse tinha muita austeridade e pureza; tais dotes, contudo, não
realçavam um espírito superior, apenas compensavam um espírito medíocre. Não
era homem que visse a parte substancial da igreja; via o lado externo, a
hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da
sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma
infração dos mandamentos. Agora, a tantos anos de distância, não estou certo se
ele poderia atinar facilmente com um trecho de Tertuliano, ou expor, sem
titubear, a história do símbolo de Nicéia; mas ninguém, nas festas cantadas,
sabia melhor o número e casos das cortesias que se deviam ao oficiante. Cônego
foi a única ambição de sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a
que podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observância das
regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuía algumas virtudes, em que era
exemplar, mas carecia absolutamente da força de as incutir, de as impor aos
outros.
Não digo nada de minha
tia materna, D. Emerenciana, e aliás era a pessoa que mais autoridade tinha
sobre mim; essa diferençava-se grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em
nossa companhia, uns dois anos. Outros parentes e alguns íntimos não merecem a
pena de ser citados; não tivemos uma vida comum, mas intermitente, com grandes
claros de separação. O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e
essa aí fica indicada, — vulgaridade de caracteres, amor das aparências
rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais.
Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor.
CAPÍTULO XII / UM
EPISÓDIO DE 1814
Mas eu não quero passar
adiante, sem contar sumariamente um galante episódio de 1814; tinha nove anos.
Napoleão, quando eu
nasci, estava já em todo o esplendor da glória e do poder; era imperador e
granjeara inteiramente a admiração dos homens. Meu pai, que à força de
persuadir os outros da nossa nobreza, acabara persuadindo-se a si próprio,
nutria contra ele um ódio puramente mental. Era isso motivo de renhidas
contendas em nossa casa, porque meu tio João, não sei se por espírito de classe
e simpatia de ofício, perdoava no déspota o que admirava no general, meu tio
padre era inflexível contra o corso; os outros parentes dividiam-se: daí as
controvérsias e as rusgas.
Chegando ao Rio de
Janeiro a notícia da primeira queda de Napoleão, houve naturalmente grande abalo
em nossa casa, mas nenhum chasco ou remoque. Os vencidos, testemunhas do
regozijo público, julgaram mais decoroso o silêncio; alguns foram além e
bateram palmas. A população, cordialmente alegre, não regateou demonstrações de
afeto à real família; houve iluminações, salvas, Te-Deum, cortejo e
aclamações. Figurei nesses dias com um espadim novo, que meu padrinho me dera
no dia de Santo Antônio; e, francamente, interessava-me mais o espadim do que a
queda de Bonaparte. Nunca me esqueceu esse fenômeno. Nunca mais deixei de
pensar comigo que o nosso espadim é sempre maior do que a espada de Napoleão. E
notem que eu ouvi muito discurso, quando era vivo, li muita página rumorosa de
grandes ideias e maiores palavras, mas não sei por que, no fundo dos aplausos que
me arrancavam da boca, lá ecoava alguma vez este conceito de experimentado:
— Vai-te embora, tu só
cuidas do espadim.
Não se contentou a
minha família em ter um quinhão anônimo no regozijo público; entendeu oportuno
e indispensável celebrar a destituição do imperador com um jantar, e tal jantar
que o ruído das aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou quando menos,
de seus ministros. Dito e feito. Veio abaixo toda a velha prataria, herdada do
meu avô Luís Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras da Índia;
matou-se um capado; encomendaram-se às madres da Ajuda as compotas e as
marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçais,
arandelas, as vastas mangas de vidro, todos os aparelhos do luxo clássico.
Dada a hora, achou-se
reunida uma sociedade seleta: o juiz-de-fora, três ou quatro oficiais
militares, alguns comerciantes e letrados, vários funcionários da
administração, uns com suas mulheres e filhas, outros sem elas, mas todos
comungando no desejo de atolar a memória de Bonaparte no papo de um peru. Não
era um jantar, mas um Te-Deum; foi o que pouco mais ou menos disse um
dos letrados presentes, o Dr. Vilaça, glosador insigne, que acrescentou aos
pratos de casa o acepipe das musas. Lembra-me, como se fosse ontem, lembra-me
de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho, casaca de seda, uma
esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido
o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita,
toda fechada, menos o dedo índice, que apontava para o teto; e, assim posto e
composto, devolver o mote glosado. Não fez uma glosa, mas três; depois jurou
aos seus deuses não acabar mais. Pedia um mote, davam-lhe, ele glosava-o
prontamente, e logo pedia outro e mais outro; a tal ponto que uma das senhoras
presentes não pôde calar a sua grande admiração.
— A senhora diz isso,
retorquia modestamente o Vilaça, porque nunca ouviu o Bocage, como eu ouvi, no
fim do século, em Lisboa. Aquilo sim! que facilidade! e que versos! Tivemos
lutas de uma e duas horas, no botequim do Nicola, a glosarmos, no meio de
palmas e bravos. Imenso talento o do Bocage! Era o que me dizia, há dias, a
senhora Duquesa de Cadaval…
E estas três palavras
últimas, expressas com muita ênfase, produziram em toda a assembleia um frêmito
de admiração e pasmo. Pois esse homem tão dado, tão simples, além de pleitear
com poetas, discreteava com duquesas! Um Bocage e uma Cadaval! Ao contato de
tal homem, as damas sentiam-se superfinas; os varões olhavam-no com respeito,
alguns com inveja, não raros com incredulidade. Ele, entretanto, ia caminho, a
acumular adjetivo sobre adjetivo, advérbio sobre advérbio, a desfiar todas as
rimas de tirano e de usurpador. Era à sobremesa; ninguém já pensava
em comer. No intervalo das glosas, corria um burburinho alegre, um palavrear de
estômagos satisfeitos; os olhos moles e úmidos, ou vivos e cálidos,
espreguiçavam-se ou saltitavam de uma ponta à outra da mesa, atulhada de doces
e frutas, aqui o ananás em fatias, ali o melão em talhadas, as compoteiras de
cristal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarelo como uma gema, —
ou então o melado escuro e grosso, não longe do queijo e do cará. De quando em
quando um riso jovial, amplo, desabotoado, um riso de família, vinha quebrar a
gravidade política do banquete. No meio do interesse grande e comum,
agitavam-se também os pequenos e particulares. As moças falavam das modinhas
que haviam de cantar ao cravo, e do minuete e do solo inglês; nem faltava
matrona que prometesse bailar um oitavado de compasso, só para mostrar como
folgara nos seus bons tempos de criança. Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro
notícia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo cartas que
recebera de Loanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já negociado
cerca de quarenta cabeças, e outra carta em que… Trazia-as justamente na
algibeira, mas não as podia ler naquela ocasião. O que afiançava é que podíamos
contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos.
— Trás… trás…
trás… fazia o Vilaça batendo com as mãos uma na outra. O rumor cessava de
súbito, como um estacado de orquestra, e todos os olhos se voltavam para o
glosador. Quem ficava longe aconcheava a mão atrás da orelha para não perder
palavra; a mor parte, antes mesmo da glosa, tinha já um meio riso de aplauso,
trivial e cândido.
Quanto a mim, lá
estava, solitário e deslembrado, a namorar certa compota da minha paixão. No
fim de cada glosa ficava muito contente, esperando que fosse a última, mas não
era, e a sobremesa continuava intata. Ninguém se lembrava de dar a primeira
voz. Meu pai, à cabeceira, saboreava a goles extensos a alegria dos convivas,
mirava-se todo nos carões alegres, nos pratos, nas flores, deliciava-se com a familiaridade
travada entre os mais distantes espíritos, influxo de um bom jantar. Eu via
isso, porque arrastava os olhos da compota para ele e dele para a compota, como
a pedir-lhe que ma servisse; mas fazia-o em vão. Ele não via nada; via-se a si
mesmo. E as glosas sucediam-se, como bátegas d’água, obrigando-me a recolher o
desejo e o pedido. Pacientei quanto pude; e não pude muito. Pedi em voz baixa o
doce; enfim, bradei, berrei, bati com os pés. Meu pai, que seria capaz de me
dar o sol, se eu lho exigisse, chamou um escravo para me servir o doce; mas era
tarde. A tia Emerenciana arrancara-me da cadeira e entregara-me a uma escrava,
não obstante os meus gritos e repelões.
Não foi outro o delito
do glosador: retardara a compota e dera causa à minha exclusão. Tanto bastou
para que eu cogitasse uma vingança, qualquer que fosse, mas grande e exemplar,
coisa que de alguma maneira o tornasse ridículo. Que ele era um homem grave o
Dr. Vilaça, medido e lento, quarenta e sete anos, casado e pai. Não me
contentava o rabo de papel nem o rabicho da cabeleira; havia de ser coisa pior.
Entrei a espreitá-lo, durante o resto da tarde, a segui-lo, na chácara, aonde
todos desceram a passear. Vi-o conversar com D. Eusébia, irmã do sargento-mor
Domingues, uma robusta donzelona, que se não era bonita, também não era feia.
— Estou muito zangada
com o senhor, dizia ela.
— Por quê?
— Porque… não sei por
quê… porque é a minha sina… creio às vezes que é melhor morrer.
Tinham penetrado numa
pequena moita; era lusco-fusco; eu segui-os. O Vilaça levava nos olhos umas
chispas de vinho e de volúpia.
— Deixe-me! disse ela.
— Ninguém nos vê.
Morrer, meu anjo? Que ideias são essas! Você sabe que eu morrerei também… que
digo?… morro todos os dias, de paixão, de saudades…
D. Eusébia levou o
lenço aos olhos. O glosador vasculhava na memória algum pedaço literário e
achou este, que mais tarde verifiquei ser de uma das óperas do Judeu:
— Não chores, meu bem;
não queiras que o dia amanheça com duas auroras.
Disse isto; puxou-a
para si; ela resistiu um pouco, mas deixou-se ir; uniram os rostos, e eu ouvi
estalar, muito ao de leve, um beijo, o mais medroso dos beijos.
— O Dr. Vilaça deu um
beijo em D. Eusébia! bradei eu correndo pela chácara.
Foi um estouro esta
minha palavra; a estupefação imobilizou a todos; os olhos espraiavam-se a uma e
outra banda; trocavam-se sorrisos, segredos, à socapa, as mães arrastavam as
filhas, pretextando o sereno. Meu pai puxou-me as orelhas, disfarçadamente,
irritado deveras com a indiscrição; mas no dia seguinte, ao almoço, lembrando o
caso, sacudiu-me o nariz a rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro!
CAPÍTULO XIII / UM
SALTO
Unamos agora os pés e
demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler,
escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos
morros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a ociosos.
Tinha amarguras esse
tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas, e pouco mais,
muito pouco e muito leve. Só era pesada, a palmatória, e ainda assim… Ó
palmatória, terror dos meus dias pueris, tu que foste o compelle intrare
com que um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a
prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória, tão praguejada
dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe,
as minhas ignorâncias, e o meu espadim, aquele espadim de 1814, tão superior à
espada de Napoleão! Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras
letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a
vida, que é das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo,
nunca me meteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas
chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada;
vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos
depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro,
pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua
mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te
chorou, salvo um preto velho, — ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da
escrita.
Chamava-se Ludgero o
mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero Barata, — um nome
funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas. Um de nós, o Quincas
Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas, três vezes por semana, havia
de lhe deixar na algibeira das calças, — umas largas calças de enfiar —, ou na
gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava
ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chamejantes,
dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios, malcriados,
moleques. — Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se
estar quieto, com os olhos espetados no ar.
Uma flor, o Quincas
Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a minha vida, achei um menino
mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão de
toda a cidade. A mãe, viúva, com alguma coisa de seu, adorava o filho e
trazia-o amimado, asseado, enfeitado, com um vistoso pajem atrás, um pajem que
nos deixava gazear a escola, ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir
lagartixas nos morros do Livramento e da Conceição, ou simplesmente arruar, à
toa, como dois peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o Quincas
Borba fazer de imperador nas festas do Espírito Santo. De resto, nos nossos
jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma
supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa
magnificência nas atitudes, nos meneios. Quem diria que… Suspendamos a pena;
não adiantemos os sucessos. Vamos de um salto a 1822, data da nossa
independência política, e do meu primeiro cativeiro pessoal.
CAPÍTULO XIV / O
PRIMEIRO BEIJO
Tinha dezessete anos;
pungia-me um buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e
resolutos, eram a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa
arrogância, não se distinguia bem se era uma criança, com fumos de homem, se um
homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava
na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um
corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o
romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso
século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à
margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por
compaixão, o transportou para os seus livros.
Sim, eu era esse garção
bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina que mais de uma dama inclinou
diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De
todas porém a que me cativou logo foi uma… uma… não sei se diga; este livro
é casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há de
dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a “linda
Marcela”, como lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. Era
filha de um hortelão das Astúrias; disse-me ela mesma, num dia de sinceridade,
porque a opinião aceita é que nascera de um letrado de Madri, vítima da invasão
francesa, ferido, encarcerado, espingardeado, quando ela tinha apenas doze
anos.
Cosas de España. Quem quer que fosse,
porém, o pai, letrado ou hortelão, a verdade é que Marcela não possuía a inocência
rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça, lépida, sem
escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia
arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente,
amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amores por um certo
Xavier, sujeito abastado e tísico, — uma pérola.
Vi-a pela primeira vez,
no Rocio Grande, na noite das luminárias, logo que constou a declaração da
independência, uma festa de primavera, um amanhecer da alma pública. Éramos
dois rapazes, o povo e eu; vínhamos da infância, com todos os arrebatamentos da
juventude. Vi-a sair de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto,
ondulante, um desgarre, alguma coisa que nunca achara nas mulheres puras. —
Segue-me, disse ela ao pajem. E eu segui-a, tão pajem como o outro, como se a
ordem me fosse dada, deixei-me ir namorado, vibrante, cheio das primeiras
auroras. A meio caminho, chamaram-lhe “linda Marcela”, lembrou-me que ouvira
tal nome a meu tio João, e fiquei, confesso que fiquei tonto.
Três dias depois
perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a uma ceia de moças, nos
Cajueiros. Fomos; era em casa de Marcela. O Xavier, com todos os seus
tubérculos, presidia ao banquete noturno, em que eu pouco ou nada comi, porque
só tinha olhos para a dona da casa. Que gentil que estava a espanhola! Havia
mais uma meia dúzia de mulheres, — todas de partido —, e bonitas, cheias de
graça, mas a espanhola… O entusiasmo, alguns goles de vinho, o gênio imperioso,
estouvado, tudo isso me levou a fazer uma coisa única; à saída, à porta da rua,
disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a subir as escadas.
— Esqueceu alguma
coisa? perguntou Marcela de pé, no patamar.
— O lenço.
Ela ia abrir-me caminho
para tornar à sala; eu segurei-lhe nas mãos, puxei-a para mim, e dei-lhe um
beijo. Não sei se ela disse alguma coisa, se gritou, se chamou alguém; não sei
nada; sei que desci outra vez as escadas, veloz como um tufão, e incerto como
um ébrio.
CAPÍTULO XV / MARCELA
Gastei trinta dias para
ir do Rocio Grande ao coração de Marcela, não já cavalgando o corcel do cego
desejo, mas o asno da paciência, a um tempo manhoso e teimoso. Que, em verdade,
há dois meios de granjear a vontade das mulheres: o violento, como o touro de
Europa, e o insinuativo, como o cisne de Leda e a chuva de ouro de Danae, três
inventos do Padre Zeus, que, por estarem fora da moda, aí ficam trocados no
cavalo e no asno. Não direi as traças que urdi, nem as peitas, nem as alternativas
de confiança e temor, nem as esperas baldadas, nem nenhuma outra dessas coisas
preliminares. Afirmo-lhes que o asno foi digno do corcel, — um asno de Sancho,
deveras filósofo, que me levou à casa dela, no fim do citado período; apeei-me,
bati-lhe na anca e mandei-o pastar.
Primeira comoção da
minha juventude, que doce que me foste! Tal devia ser,
na criação bíblica, o efeito do primeiro sol. Imagina tu esse efeito do
primeiro sol, a bater de chapa na face de um mundo em flor. Pois foi a mesma coisa,
leitor amigo, e se alguma vez contaste dezoito anos, deves lembrar-te que foi
assim mesmo.
Teve duas fases a nossa
paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de nomes não curo, teve a
fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e
eu, sem que ele jamais acreditasse dividir comigo o governo de Roma; mas,
quando a credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as
insígnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a fase cesariana.
Era meu o universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso coligir
dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas de meu pai;
ele dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repreensão, sem demora, sem frieza;
dizia a todos que eu era rapaz e que ele o fora também. Mas a tal extremo
chegou o abuso, que ele restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois
mais. Então recorri a minha mãe, e induzi-a a desviar alguma coisa, que me dava
às escondidas. Era pouco; lancei mão de um recurso último: entrei a sacar sobre
a herança de meu pai, a assinar obrigações, que devia resgatar um dia com
usura.
— Em verdade, dizia-me
Marcela, quando eu lhe levava alguma seda, alguma joia: em verdade, você quer
brigar comigo… Pois isto é coisa que se faça… um presente tão caro…
E, se era joia, dizia
isto a contemplá-la entre os dedos, a procurar melhor luz, a ensaiá-la em si, e
a rir, e a beijar-me com uma reincidência impetuosa e sincera; mas,
protestando, derramava-se-lhe a felicidade dos olhos, e eu sentia-me feliz com
vê-la assim. Gostava muito das nossas antigas dobras de ouro, e eu levava-lhe
quantas podia obter; Marcela juntava-as todas dentro de uma caixinha de ferro,
cuja chave ninguém nunca jamais soube onde ficava; escondia-a por medo dos
escravos. A casa em que morava, nos Cajueiros, era própria. Eram sólidos e bons
os móveis, de jacarandá lavrado, e todas as demais alfaias, espelhos, jarras,
baixela, — uma linda baixela da Índia, que lhe doara um desembargador. Baixela
do diabo, deste-me grandes repelões aos nervos. Disse-o muita vez à própria
dona; não lhe dissimulava o tédio que me faziam esses e outros despojos dos
seus amores de antanho. Ela ouvia-me e ria, com uma expressão cândida, —
cândida e outra coisa, que eu nesse tempo não entendia bem; mas agora,
relembrando o caso, penso que era um riso misto, como devia ter a criatura que
nascesse, por exemplo, de uma bruxa de Shakespeare com um serafim de Klopstock.
Não sei se me explico. E porque tinha notícia dos meus zelos tardios, parece
que gostava de os açular mais. Assim foi que um dia, como eu lhe não pudesse
dar certo colar, que ela vira num joalheiro, retorquiu-me que era um simples
gracejo, que o nosso amor não precisava de tão vulgar estímulo.
— Não lhe perdoo, se
você fizer de mim essa triste ideia, concluiu ameaçando-me com o dedo.
E logo, súbita como um
passarinho, espalmou as mãos, cingiu-me com elas o rosto, puxou-me a si e fez
um trejeito gracioso, um momo de criança. Depois, reclinada na marquesa, continuou
a falar daquilo, com simplicidade e franqueza. Jamais consentiria que lhe
comprassem os afetos. Vendera muita vez as aparências, mas a realidade,
guardava-a para poucos. Duarte, por exemplo, o alferes Duarte, que ela amara
deveras, dois anos antes, só a custo conseguia dar-lhe alguma coisa de valor,
como me acontecia a mim; ela só lhe aceitava sem relutância os mimos de escasso
preço, como a cruz de ouro, que lhe deu, uma vez, de festas.
— Esta cruz…
Dizia isto, metendo a
mão no seio e tirando uma cruz fina, de ouro, presa a uma fita azul e pendurada
ao colo.
— Mas essa cruz,
observei eu, não me disseste que era teu pai que…
Marcela abanou a cabeça
com um ar de lástima:
— Não percebeste que
era mentira, que eu dizia isso para te não molestar? Vem cá, chiquito,
não sejas assim desconfiado comigo… Amei a outro; que importa, se acabou? Um
dia, quando nos separarmos…
— Não digas isso!
bradei eu.
— Tudo cessa! Um dia…
Não pôde acabar; um
soluço estrangulou-lhe a voz; estendeu as mãos, tomou das minhas, conchegou-me
ao seio, e sussurrou-me baixo ao ouvido: — Nunca, nunca, meu amor! Eu agradeci-lhe
com os olhos úmidos. No dia seguinte levei-lhe o colar que havia recusado.
— Para te lembrares de
mim, quando nos separarmos, disse eu.
Marcela teve primeiro
um silêncio indignado; depois fez um gesto magnífico: tentou atirar o colar à
rua. Eu retive-lhe o braço; pedi-lhe muito que não me fizesse tal desfeita, que
ficasse com a joia. Sorriu e ficou.
Entretanto, pagava-me à
farta os sacrifícios; espreitava os meus mais recônditos pensamentos; não havia
desejo a que não acudisse com alma, sem esforço, por uma espécie de lei da
consciência e necessidade do coração. Nunca o desejo era razoável, mas um
capricho puro, uma criancice, vê-la trajar de certo modo, com tais e tais
enfeites, este vestido e não aquele, ir a passeio ou outra coisa assim, e ela
cedia a tudo, risonha e palreira.
— Você é das Arábias,
dizia-me.
E ia a pôr o vestido, a
renda, os brincos, com uma obediência de encantar.
CAPÍTULO XVI / UMA
REFLEXÃO IMORAL
Ocorre-me uma reflexão
imoral, que é ao mesmo tempo uma correção de estilo. Cuido haver dito, no
capítulo XIV, que Marcela morria de amores pelo Xavier. Não morria, vivia.
Viver não é a mesma coisa que morrer; assim o afirmam todos os joalheiros deste
mundo, gente muito vista na gramática. Bons joalheiros, que seria do amor se
não fossem os vossos dixes e fiados? Um terço ou um quinto do universal
comércio dos corações. Esta é a reflexão imoral que eu pretendia fazer, a qual
é ainda mais obscura do que imoral, porque não se entende bem o que eu quero
dizer. O que eu quero dizer é que a mais bela testa do mundo não fica menos
bela, se a cingir um diadema de pedras finas; nem menos bela, nem menos amada.
Marcela, por exemplo, que era bem bonita, Marcela amou-me…
CAPÍTULO XVII / DO
TRAPÉZIO E OUTRAS COISAS
…Marcela amou-me
durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai, logo que teve
aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as
raias de um capricho juvenil.
— Desta vez, disse ele,
vais para a Europa; vais cursar uma Universidade, provavelmente Coimbra;
quero-te para homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto
de espanto: — Gatuno, sim senhor; não é outra coisa um filho que me faz isto…
Sacou da algibeira os
meus títulos de dívida, já resgatados por ele, e sacudiu-me na cara. — Vês,
peralta? é assim que um moço deve zelar o nome dos seus? Pensas que eu e meus
avós ganhamos o dinheiro em casas de jogo ou a vadiar pelas ruas? Pelintra!
Desta vez ou tomas juízo, ou ficas sem coisa nenhuma.
Estava furioso, mas de
um furor temperado e curto. Eu ouvi-o calado, e nada opus à ordem da viagem,
como de outras vezes fizera; ruminava a ideia de levar Marcela comigo. Fui ter
com ela; expus-lhe a crise e fiz-lhe a proposta. Marcela ouviu-me com os olhos
no ar, sem responder logo; como insistisse, disse-me que ficava, que não podia
ir para a Europa.
— Por que não?
— Não posso, disse ela
com ar dolente; não posso ir respirar aqueles ares, enquanto me lembrar de meu
pobre pai, morto por Napoleão…
— Qual deles: o
hortelão ou o advogado?
Marcela franziu a
testa, cantarolou uma seguidilha, entre dentes; depois queixou-se do calor, e
mandou vir um copo de aluá. Trouxe-lhe a mucama, numa salva de prata, que fazia
parte dos meus onze contos. Marcela ofereceu-me polidamente o refresco; minha
resposta foi dar com a mão no copo e na salva; entornou-se-lhe o líquido no
regaço, a preta deu um grito, eu bradei-lhe que se fosse embora. Ficando a sós,
derramei todo o desespero de meu coração; disse-lhe que ela era um monstro, que
jamais me tivera amor, que me deixara descer a tudo, sem ter ao menos a
desculpa da sinceridade; chamei-lhe muitos nomes feios, fazendo muitos gestos
descompostos. Marcela deixara-se estar sentada, a estalar as unhas nos dentes,
fria como um pedaço de mármore. Tive ímpetos de a estrangular, de a humilhar ao
menos, subjugando-a a meus pés. Ia talvez fazê-lo; mas a ação trocou-se noutra;
fui eu que me atirei aos pés dela, contrito e súplice; beijei-lhes, recordei
aqueles meses da nossa felicidade solitária, repeti-lhe os nomes queridos de
outro tempo, sentado no chão, com a cabeça entre os joelhos dela, apertando-lhe
muito as mãos; ofegante, desvairado, pedi-lhe com lágrimas que me não
desamparasse… Marcela esteve alguns instantes a olhar para mim, calados
ambos, até que brandamente me desviou e, com um ar enfastiado:
— Não me aborreça,
disse.
Levantou-se, sacudiu o
vestido, ainda molhado, e caminhou para a alcova. — Não! bradei eu; não hás de
entrar… não quero… Ia a lançar-lhe as mãos: era tarde; ela entrara e
fechara-se.
Saí desatinado; gastei
duas mortais horas em vaguear pelos bairros mais excêntricos e desertos, onde
fosse difícil dar comigo. Ia mastigando o meu desespero, com uma espécie de
gula mórbida; evocava os dias, as horas, os instantes de delírio, e ora me
comprazia em crer que eles eram eternos, que tudo aquilo era um pesadelo, ora,
enganando-me a mim mesmo, tentava rejeitá-los de mim, como um fardo inútil.
Então resolvia embarcar imediatamente para cortar a minha vida em duas metades,
e deleitava-me com a ideia de que Marcela, sabendo da partida, ficaria ralada
de saudades e remorsos. Que ela amara-me a tonta, devia de sentir alguma coisa,
uma lembrança qualquer, como do alferes Duarte… Nisto, o dente do ciúme
enterrava-se-me no coração; toda a natureza bradava que era preciso levar
Marcela comigo.
— Por força… por
força… dizia eu ferindo o ar com uma punhada.
Enfim, tive uma ideia
salvadora… Ah! trapézio dos meus pecados, trapézio das concepções abstrusas!
A ideia salvadora trabalhou nele, como a do emplasto (capítulo II). Era nada
menos que fasciná-la, fasciná-la muito, deslumbrá-la, arrastá-la; lembrou-me
pedir-lhe por um meio mais concreto do que a súplica. Não medi as
consequências; recorri a um derradeiro empréstimo; fui à Rua dos Ourives, comprei
a melhor joia da cidade, três diamantes grandes encastoados num pente de
marfim; corri à casa de Marcela.
Marcela estava
reclinada numa rede, o gesto mole e cansado, uma das pernas pendentes, a
ver-se-lhe o pezinho calçado de meia de seda, os cabelos soltos, derramados, o
olhar quieto e sonolento.
— Vem comigo, disse eu,
arranjei recursos… temos muito dinheiro, terás tudo o que quiseres… Olha,
toma.
E mostrei-lhe o pente
com os diamantes… Marcela teve um leve sobressalto, ergueu metade do corpo,
e, apoiada num cotovelo, olhou para o pente durante alguns instantes curtos;
depois retirou os olhos; tinha-se dominado. Então, eu lancei-lhe as mãos aos
cabelos, coligi-os, enlacei-os à pressa, improvisei um toucado, sem nenhum
alinho, e rematei-o com o pente de diamantes; recuei, tornei a aproximar-me,
corrigi-lhe as madeixas, abaixei-as de um lado, busquei alguma simetria naquela
desordem, tudo com uma minuciosidade e um carinho de mãe.
— Pronto, disse eu.
— Doudo! foi a sua
primeira resposta.
A segunda foi puxar-me
para si, e pagar-me o sacrifício com um beijo, o mais ardente de todos. Depois
tirou o pente, admirou muito a matéria e o lavor, olhando a espaços para mim, e
abanando a cabeça, com um ar de repreensão:
— Ora você! dizia.
— Vens comigo?
Marcela refletiu um
instante. Não gostei da expressão com que passeava os olhos de mim para a
parede, e da parede para a jóia; mas toda a má impressão se desvaneceu, quando
ela me respondeu resolutamente:
— Vou. Quando embarcas?
— Daqui a dois ou três
dias.
— Vou.
Agradeci-lhe de
joelhos. Tinha achado a minha Marcela dos primeiros dias, e disse-lhe; ela
sorriu, e foi guardar a jóia, enquanto eu descia a escada.
CAPÍTULO XVIII / VISÃO
DO CORREDOR
No fim da escada, ao fundo
do corredor escuro, parei alguns instantes para respirar, apalpar-me, convocar
as ideias dispersas, reaver-me enfim no meio de tantas sensações profundas e
contrárias. Achava-me feliz. Certo é que os diamantes corrompiam-me um pouco a
felicidade; mas não é menos certo que uma dama bonita pode muito bem amar os
gregos e os seus presentes. E depois eu confiava na minha boa Marcela; podia
ter defeitos, mas amava-me…
— Um anjo! murmurei
olhando para o teto do corredor.
E aí, como um escárnio,
vi o olhar de Marcela, aquele olhar que pouco antes me dera uma sombra de
desconfiança, o qual chispava de cima de um nariz, que era ao mesmo tempo o
nariz de Bakbarah e o meu. Pobre namorado das Mil e Uma Noites! Vi-te
ali mesmo correr atrás da mulher do vizir, ao longo da galeria, ela a acenar-te
com a posse, e tu a correr, a correr, a correr, até a alameda comprida, donde
saíste à rua, onde todos os correeiros te apuparam e desancaram. Então
pareceu-me que o corredor de Marcela era a alameda, e que a rua era a de Bagdá.
Com efeito, olhando para a porta, vi na calçada três dos correeiros, um de
batina, outro de libré, outro à paisana, os quais todos três entraram no
corredor, tomaram-me pelos braços, meteram-me numa sege, meu pai à direita, meu
tio cônego à esquerda, o da libré na boleia, e lá me levaram à casa do
intendente de polícia, donde fui transportado a uma galera que devia seguir
para Lisboa. Imaginem se resisti; mas toda a resistência era inútil.
Três dias depois segui
barra fora, abatido e mudo. Não chorava sequer; tinha uma ideia fixa…
Malditas ideias fixas! A dessa ocasião era dar um mergulho no oceano, repetindo
o nome de Marcela.
CAPÍTULO XIX / A
BORDO
Éramos onze
passageiros, um homem doido, acompanhado pela mulher, dois rapazes que iam a
passeio, quatro comerciantes e dois criados. Meu pai recomendou-me a todos,
começando pelo capitão do navio, que aliás tinha muito que cuidar de si,
porque, além do mais, levava a mulher tísica em último grau.
Não sei se o capitão
suspeitou alguma coisa do meu fúnebre projeto, ou se meu pai o pôs de
sobreaviso; sei que não me tirava os olhos de cima; chamava-me para toda a
parte. Quando não podia estar comigo, levava-me para a mulher. A mulher ia
quase sempre numa camilha rasa, a tossir muito, e a afiançar que me havia de
mostrar os arredores de Lisboa. Não estava magra, estava transparente; era
impossível que não morresse de uma hora para outra. O capitão fingia não crer
na morte próxima, talvez por enganar-se a si mesmo. Eu não sabia nem pensava
nada. Que me importava a mim o destino de uma mulher tísica, no meio do oceano?
O mundo para mim era Marcela.
Uma noite, logo no fim
de uma semana, achei ensejo propício para morrer. Subi cauteloso, mas encontrei
o capitão, que junto à amurada, tinha os olhos fitos no horizonte.
— Algum temporal? disse
eu.
— Não, respondeu ele
estremecendo; não; admiro o esplendor da noite. Veja; está celestial!
O estilo desmentia da
pessoa, assaz rude e aparentemente alheia a locuções rebuscadas. Fitei-o; ele
pareceu saborear o meu espanto. No fim de alguns segundos, pegou-me na mão e
apontou para a lua, perguntando-me por que não fazia uma ode à noite;
respondi-lhe que não era poeta. O capitão rosnou alguma coisa, deu dois passos,
meteu a mão no bolso, sacou um pedaço de papel, muito amarrotado; depois, à luz
de uma lanterna, leu uma ode horaciana sobre a liberdade da vida marítima. Eram
versos dele.
— Que tal?
Não me lembra o que lhe
disse; lembra-me que ele me apertou a mão com muita força e muitos
agradecimentos; logo depois recitou-me dois sonetos; ia recitar-me outro,
quando o vieram chamar da parte da mulher. — Lá vou, disse ele; e recitou-me o
terceiro soneto, com pausa, com amor.
Fiquei só; mas a musa
do capitão varrera-me do espírito os pensamentos maus; preferi dormir, que é um
modo interino de morrer. No dia seguinte, acordamos debaixo de um temporal, que
meteu medo a toda a gente, menos ao doido; esse entrou a dar pulos, a dizer que
a filha o mandava buscar, numa berlinda; a morte de uma filha fora a causa da
loucura. Não, nunca me há de esquecer a figura hedionda do pobre homem, no meio
do tumulto das gentes e dos uivos do furacão, a cantarolar e a bailar, com os
olhos a saltarem-lhe da cara, pálido, cabelo arrepiado e longo. Às vezes
parava, erguia ao ar as mãos ossudas, fazia umas cruzes com os dedos, depois um
xadrez, depois umas argolas, e ria muito, desesperadamente. A mulher não podia
já cuidar dele; entregue ao terror da morte, rezava por si mesma a todos os
santos do Céu. Enfim, a tempestade amainou. Confesso que foi uma diversão
excelente à tempestade do meu coração. Eu, que meditava ir ter com a morte, não
ousei fitá-la quando ela veio ter comigo.
O capitão perguntou-me
se tivera medo, se estivera em risco, se não achara sublime o espetáculo: tudo
isso com um interesse de amigo. Naturalmente a conversa versou sobre a vida do
mar; o capitão perguntou-me se não gostava de idílios piscatórios; eu
respondi-lhe ingenuamente que não sabia o que era.
— Vai ver, respondeu.
E recitou-me um
poemazinho, depois outro, — uma égloga, — e enfim cinco sonetos, com os quais
rematou nesse dia a confidência literária. No dia seguinte, antes de me recitar
nada, explicou-me o capitão que só por motivos graves abraçara a profissão marítima,
porque a avó queria que ele fosse padre, e com efeito possuía algumas letras
latinas; não chegou a ser padre, mas não deixou de ser poeta, que era a sua
vocação natural. Para prová-lo, recitou-me logo, de corpo presente, uma centena
de versos. Notei um fenômeno: os ademanes que ele usava eram tais, que uma vez
me fizeram rir; mas o capitão, quando recitava, de tal sorte olhava para dentro
de si mesmo, que não viu nem ouviu nada.
Os dias passavam, e as
águas, e os versos, e com eles ia também passando a vida da mulher. Estava por
pouco. Um dia, logo depois do almoço, disse-me o capitão que a enferma talvez
não chegasse ao fim da semana.
— Já! exclamei.
— Passou muito mal a
noite.
Fui vê-la; achei-a, na
verdade, quase moribunda, mas falando ainda de descansar em Lisboa alguns dias,
antes de ir comigo a Coimbra, porque era seu propósito levar-me à Universidade.
Deixei-a consternado; fui achar o marido a olhar para as vagas, que vinham morrer
no costado do navio, e tratei de o consolar; ele agradeceu-me, relatou-me a
história dos seus amores, elogiou a fidelidade e a dedicação da mulher,
relembrou os versos que lhe fez, e recitou-me. Neste ponto vieram buscá-lo da
parte dela; corremos ambos; era uma crise. Esse e o dia seguinte foram cruéis;
o terceiro foi o da morte; eu fugi ao espetáculo, tinha-lhe repugnância. Meia
hora depois encontrei o capitão, sentado num molho de cabos, com a cabeça nas
mãos, disse-lhe alguma coisa de conforto.
— Morreu como uma
santa, respondeu ele; e, para que estas palavras não pudessem ser levadas à
conta de fraqueza, ergueu-se logo, sacudiu a cabeça, e fitou o horizonte, com
um gesto longo e profundo. — Vamos, continuou, entreguemo-la à cova que nunca
mais se abre.
Efetivamente, poucas
horas depois, era o cadáver lançado ao mar, com as cerimônias do costume. A
tristeza murchara todos os rostos; o do viúvo trazia a expressão de um cabeço
rijamente lascado pelo raio. Grande silêncio. A vaga abriu o ventre, acolheu o
despojo, fechou-se, — uma leve ruga, — e a galera foi andando. Eu deixei-me
estar alguns minutos à popa, com os olhos naquele ponto incerto do mar em que
ficava um de nós… Fui dali ter com o capitão, para distraí-lo.
— Obrigado, disse-me
ele compreendendo a intenção; creia que nunca me esquecerei dos seus bons
serviços. Deus é que lhes há de pagar. Pobre Leocádia! tu te lembrarás de nós
no Céu.
Enxugou com a manga uma
lágrima importuna; eu busquei um derivativo na poesia, que era a paixão dele.
Falei-lhe dos versos, que me lera, e ofereci-me para imprimi-los. Os olhos do
capitão animaram-se um pouco. — Talvez aceite, disse ele; mas não sei… são
bem frouxos versos. Jurei-lhe que não; pedi que os reunisse e me desse antes do
desembarque.
— Pobre Leocádia!
murmurou sem responder ao pedido. Um cadáver… o mar… o céu… o navio…
No dia seguinte veio
ler-me um epicédio composto de fresco, em que estavam memoradas as
circunstâncias da morte e da sepultura da mulher; leu-me com a voz comovida
deveras, e a mão trêmula; no fim perguntou-me se os versos eram dignos do
tesouro que perdera.
— São, disse eu.
— Não haverá estro,
ponderou ele, no fim de um instante, mas ninguém me negará sentimento, se não é
que o próprio sentimento prejudicou a perfeição…
— Não me parece; acho
os versos perfeitos.
— Sim, eu creio que…
Versos de marujo.
— De marujo poeta.
Ele levantou os ombros,
olhou para o papel, e tornou a recitar a composição, mas já então sem tremuras,
acentuando as intenções literárias, dando relevo às imagens e melodia aos
versos. No fim, confessou-me que era a sua obra mais acabada; eu disse-lhe que
sim; ele apertou-me muito a mão e predisse-me um grande futuro.
CAPÍTULO XX / BACHARELO-ME
Um grande futuro!
Enquanto esta palavra me batia no ouvido, devolvia eu os olhos, ao longe, no
horizonte misterioso e vago. Uma ideia expelia outra, a ambição desmontava
Marcela. Grande futuro? Talvez naturalista, literato, arqueólogo, banqueiro,
político, ou até bispo, — bispo que fosse, — uma vez que fosse um cargo, uma
preeminência, uma grande reputação, uma posição superior. A ambição, dado que
fosse águia, quebrou nessa ocasião o ovo, e desvendou a pupila fulva e
penetrante. Adeus, amores! adeus, Marcela! dias de delírio, joias sem preço,
vida sem regímen, adeus! Cá me vou às fadigas e à glória; deixo-vos com as
calcinhas da primeira idade.
E foi assim que
desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A Universidade esperava-me com as
suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o
grau de bacharel; deram-me com a solenidade do estilo, após os anos da lei; uma
bela festa que me encheu de orgulho e de saudades, — principalmente de
saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um
acadêmico estroina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras,
fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos
pretos e das constituições escritas. No dia em que a Universidade me atestou,
em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro,
confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o
diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava-me a responsabilidade.
Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por ali fora assaz desconsolado,
mas sentindo já uns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os
outros, de influir, de gozar, de viver, — de prolongar a Universidade pela vida
adiante…
CAPÍTULO XXI / O
ALMOCREVE
Vai então, empacou o
jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, ele deu dois corcovos, depois
mais três, enfim mais um, que me sacudiu fora da sela, com tal desastre, que o
pé esquerdo me ficou preso no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal,
mas já então, espantado, disparou pela estrada fora. Digo mal: tentou disparar,
e efetivamente deu dois saltos, mas um almocreve, que ali estava, acudiu a
tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem esforço nem perigo. Dominado o
bruto, desvencilhei-me do estribo e pus-me de pé.
— Olhe do que vosmecê
escapou, disse o almocreve.
E era verdade; se o
jumento corre por ali fora, contundia-me deveras, e não sei se a morte não
estaria no fim do desastre; cabeça partida, uma congestão, qualquer transtorno
cá dentro, lá se me ia a ciência em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida;
era positivo; eu sentia-no no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve!
enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele cuidava de consertar os
arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-lhe três moedas de ouro
das cinco que trazia comigo; não porque tal fosse o preço da minha vida, — essa
era inestimável; mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele
me salvou. Está dito, dou-lhe as três moedas.
— Pronto, disse ele,
apresentando-me a rédea da cavalgadura.
— Daqui a nada,
respondi; deixa-me, que ainda não estou em mim…
— Ora qual!
— Pois não é certo que
ia morrendo?
— Se o jumento corre
por aí fora, é possível; mas, com a ajuda do Senhor, viu vosmecê que não
aconteceu nada.
Fui aos alforjes, tirei
um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse
tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas.
Talvez uma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de
alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre-diabo, que nunca jamais vira uma
moeda de ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, vi-a reluzir à luz do sol; não a
viu o almocreve, porque eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez,
entrou a falar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe conselhos,
dizia-lhe que tomasse juízo, que o “senhor doutor” podia castigá-lo; um
monólogo paternal. Valha-me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve
que lhe beijava a testa.
— Olé! exclamei.
— Queira vosmecê
perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça…
Ri-me, hesitei,
meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote
largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha.
Mas a algumas braças de distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me
grandes cortesias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia
ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os dedos no
bolso do colete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os
vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em lugar do cruzado em prata.
Porque, enfim, ele não levou em mira nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um
impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do ofício; acresce que a
circunstância de estar, não mais adiante nem mais atrás, mas justamente no
ponto do desastre, parecia constituí-lo simples instrumento da Providência; e de
um ou de outro modo, o mérito do ato era positivamente nenhum. Fiquei
desconsolado com esta reflexão, chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das
minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?) tive remorsos.
CAPÍTULO XXII / VOLTA
AO RIO
Jumento de uma figa,
cortaste-me o fio às reflexões. Já agora não digo o que pensei dali até Lisboa,
nem o que fiz em Lisboa, na península e em outros lugares da Europa, da velha
Europa, que nesse tempo parecia remoçar. Não, não direi que assisti às alvoradas
do romantismo, que também eu fui fazer poesia efetiva no regaço da Itália; não
direi coisa nenhuma. Teria de escrever um diário de viagem e não umas memórias,
como estas são, nas quais só entra a substância da vida.
Ao cabo de alguns anos
de peregrinação, atendi às súplicas de meu pai: — “Vem, dizia ele na última
carta; se não vieres depressa, acharás tua mãe morta!” Esta última palavra foi
para mim um golpe. Eu amava minha mãe; tinha ainda diante dos olhos as circunstâncias
da última bênção que ela me dera, a bordo do navio. “Meu triste filho, nunca
mais te verei”, soluçava a pobre senhora apertando-me ao peito. E essas
palavras ressoavam-me agora, como uma profecia realizada.
Note-se que eu estava
em Veneza, ainda recendente aos versos de lord Byron; lá estava,
mergulhado em pleno sonho, revivendo o pretérito, crendo-me na Sereníssima
República. É verdade; uma vez aconteceu-me perguntar ao locandeiro se o doge ia
a passeio nesse dia. — Que doge, signor mio? Caí em mim, mas não
confessei a ilusão; disse-lhe que a minha pergunta era um gênero de charada
americana; ele mostrou compreender, e acrescentou que gostava muito das
charadas americanas. Era um locandeiro. Pois deixei tudo isso, o locandeiro, o
doge, a Ponte dos Suspiros, a gôndola, os versos do lorde, as damas do Rialto,
deixei tudo e disparei como uma bala na direção do Rio de Janeiro.
Vim… Mas não; não
alonguemos este capítulo. Às vezes, esqueço-me a escrever, e a pena vai comendo
papel, com grave prejuízo meu, que sou autor. Capítulos compridos quadram
melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-12,
pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas… Não, não
alonguemos o capítulo.
CAPÍTULO XXIII / TRISTE,
MAS CURTO
Vim. Não nego que, ao
avistar a cidade natal, tive uma sensação nova. Não era efeito da minha pátria
política; era-o do lugar da infância, a rua, a torre, o chafariz da esquina, a
mulher de mantilha, o preto do ganho, as coisas e cenas da meninice, buriladas
na memória. Nada menos que uma renascença. O espírito, como um pássaro, não se
lhe deu da corrente dos anos, arrepiou o voo na direção da fonte original, e
foi beber da água fresca e pura, ainda não mesclada do enxurro da vida.
Reparando bem, há aí um
lugar-comum. Outro lugar-comum, tristemente comum, foi a consternação da
família. Meu pai abraçou-me com lágrimas. — Tua mãe não pode viver, disse-me.
Com efeito, não era já o reumatismo que a matava, era um cancro no estômago. A
infeliz padecia de um modo cru, porque o cancro é indiferente às virtudes do
sujeito; quando rói, rói; roer é o seu ofício. Minha irmã Sabina, já então
casada com o Cotrim, andava a cair de fadiga. Pobre moça! dormia três horas por
noite, nada mais. O próprio tio João estava abatido e triste. D. Eusébia e
algumas outras senhoras lá estavam também, não menos tristes e não menos
dedicadas.
— Meu filho!
A dor suspendeu por um
pouco as tenazes; um sorriso alumiou o rosto da enferma, sobre o qual a morte
batia a asa eterna. Era menos um rosto do que uma caveira: a beleza passara,
como um dia brilhante; restavam os ossos, que não emagrecem nunca. Mal poderia
conhecê-la; havia oito ou nove anos que nos não víamos. Ajoelhado, ao pé da
cama, com as mãos dela entre as minhas, fiquei mudo e quieto, sem ousar falar,
porque cada palavra seria um soluço, e nós temíamos avisá-la do fim. Vão temor!
Ela sabia que estava prestes a acabar; disse-me; verificamo-lo na seguinte
manhã.
Longa foi a agonia,
longa e cruel, de uma crueldade minuciosa, fria, repisada, que me encheu de dor
e estupefação. Era a primeira vez que eu via morrer alguém. Conhecia a morte de
outiva; quando muito, tinha-a visto já petrificada no rosto de algum cadáver,
que acompanhei ao cemitério, ou trazia-lhe a ideia embrulhada nas amplificações
de retórica dos professores de coisas antigas, — a morte aleivosa de César, a
austera de Sócrates, a orgulhosa de Catão. Mas esse duelo do ser e do não ser,
a morte em ação, dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou
filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude
encarar. Não chorei; lembra-me que não chorei durante o espetáculo: tinha os
olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta. Quê? uma criatura
tão dócil, tão meiga, tão santa, que nunca jamais fizera verter uma lágrima de
desgosto, mãe carinhosa, esposa imaculada, era força que morresse assim,
trateada, mordida pelo dente tenaz de uma doença sem misericórdia? Confesso que
tudo aquilo me pareceu obscuro, incongruente, insano…
Triste capítulo;
passemos a outro mais alegre.
CAPÍTULO XXIV / CURTO,
MAS ALEGRE
Fiquei prostrado. E
contudo era eu, nesse tempo, um fiel compêndio de trivialidade e presunção.
Jamais o problema da vida e da morte me oprimira o cérebro; nunca até esse dia
me debruçara sobre o abismo do Inexplicável; faltava-me o essencial, que é o
estímulo, a vertigem…
Para lhes dizer a
verdade toda, eu refletia as opiniões de um cabeleireiro, que achei em Módena,
e que se distinguia por não as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros;
por mais demorada que fosse a operação do toucado, não enfadava nunca; ele
intercalava as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um
sabor… Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a Universidade me não
tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o
esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dois
de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da
conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de
todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação…
Talvez espante ao
leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta
que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da
opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar
os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo
as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força
de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso
poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício
hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a
gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se,
despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de
ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem
conhecidos, nem estranhos; não há plateia. O olhar da opinião, esse olhar agudo
e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo
que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não
se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão
incomensurável como o desdém dos finados.
CAPÍTULO XXV/ NA
TIJUCA
Ui! Lá me ia a pena a
escorregar para o enfático. Sejamos simples, como era simples a vida que levei
na Tijuca, durante as primeiras semanas depois da morte de minha mãe.
No sétimo dia, acabada
a missa fúnebre, travei de uma espingarda, alguns livros, roupa, charutos, um
moleque, — o Prudêncio do capítulo XI, — e fui meter-me numa velha casa de
nossa propriedade. Meu pai forcejou por me torcer a resolução, mas eu é que não
podia nem queria obedecer-lhe. Sabina desejava que eu fosse morar com ela algum
tempo, — duas semanas, ao menos; meu cunhado esteve a ponto de me levar à fina
força. Era um bom rapaz este Cotrim; passara de estróina a circunspecto. Agora
comerciava em gêneros de estiva, labutava de manhã até à noite, com ardor, com
perseverança. De noite, sentado à janela, a encaracolar as suíças, não pensava
em outra coisa. Amava a mulher e um filho, que então tinha, e que lhe morreu
alguns anos depois. Diziam que era avaro.
Renunciei tudo; tinha o
espírito atônito. Creio que por então é que começou a desabotoar em mim a
hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e
sutil. — “Que bom que é estar triste e não dizer coisa nenhuma!” — Quando esta
palavra de Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em mim um eco,
um eco delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um tamarineiro, com
o livro do poeta aberto nas mãos, e o espírito ainda mais cabisbaixo do que a
figura, — ou jururu, como dizemos das galinhas tristes. Apertava ao peito a
minha dor taciturna, com uma sensação única, uma coisa a que poderia chamar
volúpia do aborrecimento. Volúpia do aborrecimento: decora esta expressão,
leitor; guarda-a, examina-a, e se não chegares a entendê-la, podes concluir que
ignoras uma das sensações mais sutis desse mundo e daquele tempo.
Às vezes, caçava, outras
dormia, outras lia, — lia muito, — outras enfim não fazia nada; deixava-me
atoar de ideia em ideia, de imaginação em imaginação, como uma borboleta vadia
ou faminta. As horas iam pingando uma a uma, o sol caía, as sombras da noite
velavam a montanha e a cidade. Ninguém me visitava; recomendei expressamente
que me deixassem só. Um dia, dois dias, três dias, uma semana inteira passada
assim, sem dizer palavra, era bastante para sacudir-me da Tijuca fora e
restituir-me ao bulício. Com efeito, ao cabo de sete dias, estava farto da
solidão; a dor aplacara; o espírito já se não contentava com o uso da
espingarda e dos livros, nem com a vista do arvoredo e do céu. Reagia a
mocidade, era preciso viver. Meti no baú o problema da vida e da morte, os
hipocondríacos do poeta, as camisas, as meditações, as gravatas, e ia fechá-lo,
quando o moleque Prudêncio me disse que uma pessoa do meu conhecimento se
mudara na véspera para uma casa roxa, situada a duzentos passos da nossa.
— Quem?
— Nhonhô talvez não se
lembre mais de D. Eusébia…
— Lembra-me… É ela?
— Ela e a filha. Vieram
ontem de manhã.
Ocorreu-me logo o
episódio de 1814, e senti-me vexado; mas adverti que os acontecimentos
tinham-me dado razão. Na verdade, fora impossível evitar as relações íntimas do
Vilaça com a irmã do sargento-mor; antes mesmo do meu embarque, já se boquejava
misteriosamente no nascimento de uma menina. Meu tio João mandou-me dizer
depois que o Vilaça, ao morrer, deixara um bom legado a D. Eusébia, coisa que
deu muito que falar em todo o bairro. O próprio tio João, guloso de escândalos,
não tratou de outro assunto na carta, aliás de muitas folhas. Tinham-me dado
razão os acontecimentos. Ainda porém que ma não dessem, 1814 lá ia longe, e,
com ele, a travessura, e o Vilaça, e o beijo da moita; finalmente, nenhumas
relações estreitas existiam entre mim e ela. Fiz comigo essa reflexão e acabei
de fechar o baú.
— Nhonhô não vai
visitar sinhá D. Eusébia? perguntou-me o Prudêncio. Foi ela quem vestiu o corpo
da minha defunta senhora.
Lembrei-me que a vira,
entre outras senhoras, por ocasião da morte e do enterro; ignorava porém que
ela houvesse prestado a minha mãe esse derradeiro obséquio. A ponderação do
moleque era razoável; eu devia-lhe uma visita; determinei fazê-la imediatamente,
e descer.
CAPÍTULO XXVI / O
AUTOR HESITA
Súbito ouço uma voz: —
Olá, meu rapaz, isto não é vida! Era meu pai, que chegava com duas propostas na
algibeira. Sentei-me no baú e recebi-o sem alvoroço. Ele esteve alguns
instantes de pé, a olhar para mim; depois estendeu-me a mão com um gesto
comovido:
— Meu filho,
conforma-te com a vontade de Deus.
— Já me conformei, foi
a minha resposta, e beijei-lhe a mão.
Não tinha almoçado;
almoçamos juntos. Nenhum de nós aludiu ao triste motivo da minha reclusão. Uma
só vez falamos nisso, de passagem, quando meu pai fez recair a conversa na
Regência: foi então que aludiu à carta de pêsames que um dos Regentes lhe
mandara. Trazia a carta consigo, já bastante amarrotada, talvez por havê-la
lido a muitas outras pessoas. Creio haver dito que era de um dos Regentes. Leu-me
duas vezes.
— Já lhe fui agradecer
este sinal de consideração, concluiu meu pai, e acho que deves ir também…
— Eu?
— Tu; é um homem
notável, faz hoje as vezes de imperador. Demais trago comigo uma ideia, um
projeto, ou… sim, digo-te tudo; trago dois projetos, um lugar de deputado e
um casamento.
Meu pai disse isto com
pausa, e não no mesmo tom, mas dando às palavras um jeito e disposição, cujo
fim era cavá-las mais profundamente no meu espírito. A proposta, porém,
desdizia tanto das minhas sensações últimas, que eu cheguei a não entendê-la
bem. Meu pai não fraqueou e repetiu-a; encareceu o lugar e a noiva.
— Aceitas?
— Não entendo de política,
disse eu depois de um instante; quanto à noiva… deixe-me viver como um urso,
que sou.
— Mas os ursos
casam-se, replicou ele.
— Pois traga-me uma
ursa. Olhe, a Ursa-Maior…
Riu-se meu pai, e
depois de rir, tornou a falar sério. Era-me necessária a carreira política,
dizia ele, por vinte e tantas razões, que deduziu com singular volubilidade,
ilustrando-as com exemplos de pessoas do nosso conhecimento. Quanto à noiva,
bastava que eu a visse; se a visse, iria logo pedi-la ao pai, logo, sem demora
de um dia. Experimentou assim a fascinação, depois a persuasão, depois a
intimação; eu não dava resposta, afiava a ponta de um palito ou fazia bolas de
miolo de pão, a sorrir ou a refletir; e, para tudo dizer, nem dócil nem rebelde
à proposta. Sentia-me aturdido. Uma parte de mim mesmo dizia que sim, que uma
esposa formosa e uma posição política eram bens dignos de apreço; outra dizia
que não; e a morte de minha mãe me aparecia como um exemplo da fragilidade das
coisas, das afeições, da família…
— Não vou daqui sem uma
resposta definitiva, disse meu pai. De-fi-ni-ti-va! repetiu, batendo as sílabas
com o dedo.
Bebeu o último gole de
café; repoltreou-se, e entrou a falar de tudo, do Senado, da Câmara, da
Regência, da restauração, do Evaristo, de um coche que pretendia comprar, da
nossa casa de Mata-cavalos… Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever
desvairadamente num pedaço de papel, com uma ponta de lápis; traçava uma
palavra, uma frase, um verso, um nariz, um triângulo, e repetia-os muitas
vezes, sem ordem, ao acaso, assim:
arma virumque cano
A
Arma virumque cano
arma virumque cano
arma virumque
arma virumque cano
virumque
Maquinalmente tudo
isto; e, não obstante, havia certa lógica, certa dedução; por exemplo, foi o virumque
que me fez chegar ao nome do próprio poeta, por causa da primeira sílaba; ia a
escrever virumque — e sai-me Virgílio, então continuei:
Vir
Virgílio
Virgílio
Virgílio
Virgílio
Virgílio
Meu pai, um pouco
despeitado com aquela indiferença, ergueu-se, veio a mim, lançou os olhos ao
papel…
— Virgílio! exclamou.
És tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente Virgília.
CAPÍTULO XXVII / VIRGÍLIA?
Virgília? Mas então era
a mesma senhora que alguns anos depois?… A mesma; era justamente a senhora,
que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito antes,
teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações. Naquele tempo contava
apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da
nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que ia lhe coubesse a
primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em
que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas
também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era
bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e
eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da
criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante,
pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, —
devoção, ou talvez medo; creio que medo.
Aí tem o leitor, em
poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa que devia influir mais tarde
na minha vida; era aquilo com dezesseis anos. Tu que me lês, se ainda fores viva,
quando estas páginas vierem à luz, — tu que me lês, Virgília amada, não reparas
na diferença entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi?
Crê que era tão sincero então como agora; a morte não me tornou rabugento, nem
injusto.
— Mas, dirás tu, como é
que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de
tantos anos?
Ah! indiscreta! ah!
ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da Terra, é esse poder de
restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a
vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço
pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma
edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva,
que o editor dá de graça aos vermes.
CAPÍTULO XXVIII / CONTANTO
QUE…
— Virgília? interrompi
eu.
— Sim, senhor; é o nome
da noiva. Um anjo, meu pateta, um anjo sem asas. Imagina uma moça assim, desta
altura, viva como um azougue, e uns olhos… filha do Dutra…
— Que Dutra?
— O Conselheiro Dutra,
não conheces; uma influência política. Vamos lá, aceitas?
Não respondi logo;
fitei por alguns segundos a ponta do botim; declarei depois que estava disposto
a examinar as duas coisas, a candidatura e o casamento, contanto que…
— Contanto quê?
— Contanto que não
fique obrigado a aceitar as duas; creio que posso ser separadamente homem
casado ou homem público…
— Todo o homem público
deve ser casado, interrompeu sentenciosamente meu pai. Mas seja como queres;
estou por tudo, fico certo de que a vista fará fé! Demais, a noiva e o
Parlamento são a mesma coisa… isto é, não… saberás depois… Vá; aceito a
dilação, contanto que…
— Contanto quê?…
interrompi eu, imitando-lhe a voz.
— Ah! brejeiro!
Contanto que não te deixes ficar aí inútil, obscuro, e triste; não gastei
dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém,
e a todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustrá-lo ainda
mais. Olha, estou com sessenta anos, mas se fosse necessário começar vida nova,
começava, sem hesitar um só minuto. Teme a obscuridade, Brás; foge do que é
ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de
todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues as vantagens da tua
posição, os teus meios…
E foi por diante o
mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como me faziam, em pequeno, para eu
andar depressa, e a flor da hipocondria recolheu-se ao botão para deixar a
outra flor menos amarela, e nada mórbida, — o amor da nomeada, o emplasto Brás
Cubas.
CAPÍTULO XXIX / A
VISITA
Vencera meu pai;
dispus-me a aceitar o diploma e o casamento, Virgília e a Câmara dos Deputados.
— As duas Virgílias, disse ele num assomo de ternura política. Aceitei-os; meu
pai deu-me dois fortes abraços. Era o seu próprio sangue que ele, enfim,
reconhecia.
— Desces comigo?
— Desço amanhã. Vou
fazer primeiramente uma visita a D. Eusébia…
Meu pai torceu o nariz,
mas não disse nada; despediu-se e desceu. Eu, na tarde desse mesmo dia, fui
visitar D. Eusébia. Achei-a a repreender um preto jardineiro, mas deixou tudo
para vir falar-me, com um alvoroço, um prazer tão sincero, que me desacanhou
logo. Creio que chegou a cingir-me com o seu par de braços robustos. Fez-me
sentar ao pé de si, na varanda, entre muitas exclamações de contentamento:
— Ora, o Brasinho! Um
homem! Quem diria, há anos… Um homenzarrão! E bonito! Qual! Você não se lembra
de mim…
Disse-lhe que sim, que
não era possível esquecer uma amiga tão familiar de nossa casa. D. Eusébia
começou a falar de minha mãe, com muitas saudades, com tantas saudades, que me
cativou logo, posto me entristecesse. Ela percebeu-o nos meus olhos, e torceu a
rédea à conversação; pediu-me que lhe contasse a viagem, os estudos, os
namoros… Sim, os namoros também; confessou-me que era uma velha patusca.
Nisto recordei-me do episódio de 1814, ela, o Vilaça, a moita, o beijo, o meu
grito; e estando a recordá-lo, ouço um ranger de porta, um farfalhar de saias e
esta palavra:
— Mamãe… mamãe…
CAPÍTULO XXX / A
FLOR DA MOITA
A voz a as saias
pertenciam a uma mocinha morena, que se deteve à porta, alguns instantes, ao
ver gente estranha. Silêncio curto e constrangido. D. Eusébia quebrou-o, enfim,
com resolução e franqueza:
— Vem cá, Eugênia,
disse ela, cumprimenta o Dr. Brás Cubas, filho do Sr. Cubas; veio da Europa.
E voltando-se para mim:
— Minha filha Eugênia.
Eugênia, a flor da
moita, mal respondeu ao gesto de cortesia que lhe fiz; olhou-me admirada e
acanhada, e lentamente se aproximou da cadeira da mãe. A mãe arranjou-lhe uma
das tranças do cabelo, cuja ponta se desmanchara. — Ah! travessa! dizia. Não
imagina, doutor, o que isto é… E beijou-a com tão expansiva ternura que me
comoveu um pouco; lembrou-me minha mãe, e, — direi tudo, — tive umas cócegas de
ser pai.
— Travessa? disse eu.
Pois já não está em idade própria, ao que parece.
— Quantos lhe dá?
— Dezessete.
— Menos um.
— Dezesseis. Pois
então! é uma moça.
Não pôde Eugênia
encobrir a satisfação que sentia com esta minha palavra, mas emendou-se logo, e
ficou como dantes, ereta, fria e muda. Em verdade, parecia ainda mais mulher do
que era; seria criança nos seus folgares de moça; mas assim quieta, impassível,
tinha a compostura da mulher casada. Talvez essa circunstância lhe diminuía um
pouco da graça virginal. Depressa nos familiarizamos; a mãe fazia-lhe grandes
elogios, eu escutava-os de boa sombra, e ela sorria com os olhos fúlgidos, como
se lá dentro do cérebro lhe estivesse a voar uma borboletinha de asas de ouro e
olhos de diamante…
Digo lá dentro, porque
cá fora o que esvoaçou foi uma borboleta preta, que subitamente penetrou na
varanda, e começou a bater as asas em derredor de D. Eusébia. D. Eusébia deu um
grito, levantou-se, praguejou umas palavras soltas: — T’esconjuro!… Sai,
diabo!… Virgem Nossa Senhora!…
— Não tenha medo, disse
eu; e, tirando o lenço, expeli a borboleta. D. Eusébia sentou-se outra vez,
ofegante, um pouco envergonhada; a filha, pode ser que pálida de medo,
dissimulava a impressão com muita força de vontade. Apertei-lhes a mão e saí, a
rir comigo da superstição das duas mulheres, um rir filosófico, desinteressado,
superior. De tarde, vi passar a cavalo a filha de D. Eusébia, seguida de um
pajem; fez-me um cumprimento com a ponta do chicote. Confesso que me lisonjeei
com a ideia de que, alguns passos adiante, ela voltaria a cabeça para trás; mas
não voltou.
CAPÍTULO XXXI / A
BORBOLETA PRETA
Na dia seguinte, como
eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão
negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e
ri-me; entrei logo a pensar na filha de D. Eusébia, no susto que tivera, e na
dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar
muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça;
e, porque eu a sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho
retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez
posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu
muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e
achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma
toalha, bati-lhe e ela caiu.
Não caiu morta; ainda
torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da
mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de
alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.
— Também por que diabo
não era ela azul? disse comigo.
E esta reflexão, — uma
das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas, — me
consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a
contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do
mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra,
espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é
sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo.
Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem;
descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha
olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse
consigo: “Este é provavelmente o inventor das borboletas.” A ideia subjugou-a,
aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo
de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando
enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é
impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do
inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.
Pois um golpe de toalha
rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores,
nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de linho
cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se
ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era
impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não
era. Esta última ideia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar,
despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as
próvidas formigas… Não, volto à primeira ideia; creio que para ela era melhor
ter nascido azul.
CAPÍTULO XXXII / COXA
DE NASCENÇA
Fui dali acabar os
preparativos da viagem. Já agora não me demoro mais. Desço imediatamente;
desço, ainda que algum leitor circunspecto me detenha para perguntar se o
capítulo passado é apenas uma sensaboria ou se chega a empulhação… Ai, não
contava com D. Eusébia. Estava pronto, quando me entrou por casa. Vinha
convidar-me para transferir a descida, e ir lá jantar nesse dia. Cheguei a
recusar; mas instou tanto, tanto, tanto, que não pude deixar de aceitar;
demais, era-lhe devida aquela compensação; fui.
Eugênia desataviou-se
nesse dia por minha causa. Creio que foi por minha causa, — se é que não andava
muita vez assim. Sem as bichas de ouro, que trazia na véspera, lhe pendiam
agora das orelhas, duas orelhas finamente recortadas numa cabeça de ninfa. Um
simples vestido branco, de cassa, sem enfeites, tendo ao colo, em vez de
broche, um botão de madrepérola, e outro botão nos punhos, fechando as mangas,
e nem sombra de pulseira.
Era isso no corpo; não
era outra coisa no espírito. Ideias claras, maneiras chãs, certa graça natural,
um ar de senhora, e não sei se alguma outra coisa; sim, a boca, exatamente a
boca da mãe, a qual me lembrava o episódio de 1814, e então dava-me ímpetos de
glosar o mesmo mote à filha…
— Agora vou mostrar-lhe
a chácara, disse a mãe, logo que esgotamos o último gole de café.
Saímos à varanda, dali
à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco,
tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a
filha respondeu sem titubear:
— Não, senhor, sou coxa
de nascença.
Mandei-me a todos os
diabos; chamei-me desastrado, grosseirão. Com efeito, a simples possibilidade
de ser coxa era bastante para lhe não perguntar nada. Então lembrou-me que da
primeira vez que a vi — na véspera — a moça chegara-se lentamente à cadeira da
mãe, e que naquele dia já a achei à mesa de jantar. Talvez fosse para encobrir
o defeito; mas por que razão o confessava agora? Olhei para ela e reparei que
ia triste.
Tratei de apagar os
vestígios de meu desazo; — não me foi difícil, porque a mãe era, segundo
confessara, uma velha patusca, e prontamente travou de conversa comigo. Vimos
toda a chácara, árvores, flores, tanque de patos, tanque de lavar, uma
infinidade de coisas, que ela me ia mostrando, e comentando, ao passo que eu,
de soslaio, perscrutava os olhos de Eugênia…
Palavra que o olhar de
Eugênia não era coxo, mas direito, perfeitamente são; vinha de uns olhos pretos
e tranquilos. Creio que duas ou três vezes baixaram estes, um pouco turvados;
mas duas ou três vezes somente; em geral, fitavam-me com franqueza, sem
temeridade, nem biocos.
CAPÍTULO XXXIII / BEM-AVENTURADOS
OS QUE NÃO DESCEM
O pior é que era coxa.
Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e
coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso
escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta
que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com
a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é
sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e
enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro. Fiquei aliviado
e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espírito, deixou novamente
entrar o bichinho, e aí fiquei eu a noite toda a cavar o mistério, sem
explicá-lo.
Amanheceu chovendo,
transferi a descida; mas no outro dia, a manhã era límpida e azul, e apesar
disso deixei-me ficar, não menos que no terceiro dia, e no quarto, até o fim da
semana. Manhãs bonitas, frescas, convidativas; lá embaixo a família a
chamar-me, e a noiva, e o Parlamento, e eu sem acudir a coisa nenhuma, enlevado
ao pé da minha Vênus Manca. Enlevado é uma maneira de realçar o estilo; não havia
enlevo, mas gosto, uma certa satisfação física e moral. Queria-lhe, é verdade;
ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e coxa, feita de amor e
desprezo, ao pé dela sentia-me bem, e ela creio que ainda se sentia melhor ao
pé de mim. E isto na Tijuca. Uma simples égloga. D. Eusébia vigiava-nos, mas
pouco; temperava a necessidade com a conveniência. A filha, nessa primeira
explosão da natureza, entregava-me a alma em flor.
— O senhor desce
amanhã? disse-me ela no sábado.
— Pretendo.
— Não desça.
Não desci, e
acrescentei um versículo ao Evangelho: — Bem-aventurados os que não descem,
porque deles é o primeiro beijo das moças. Com efeito, foi no domingo esse
primeiro beijo de Eugênia, — o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe
tomara, e não furtado ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor
honesto paga uma dívida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses que ideias me vagavam
pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços nos meus
ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos de 1814,
na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua
origem…
D. Eusébia entrou
inesperadamente, mas não tão súbita, que nos apanhasse ao pé um do outro. Eu
fui até à janela; Eugênia sentou-se a concertar uma das tranças. Que
dissimulação graciosa! que arte infinita e delicada! que tartufice profunda! e
tudo isso natural, vivo, não estudado, natural como o apetite, natural como o
sono. Tanto melhor! D. Eusébia não suspeitou nada.
CAPÍTULO XXXIV / A
UMA ALMA SENSÍVEL
Há aí, entre as cinco
ou dez pessoas que me lêem, há aí uma alma sensível, que está decerto um tanto
agastada com o capítulo anterior, começa a tremer pela sorte de Eugênia, e
talvez… sim, talvez, lá no fundo de si mesma, me chame cínico. Eu cínico,
alma sensível? Pela coxa de Diana! esta injúria merecia ser lavada com sangue,
se o sangue lavasse alguma coisa nesse mundo. Não, alma sensível, eu não sou
cínico, eu fui homem; meu cérebro foi um tablado em que se deram peças de todo
gênero, o drama sacro, o austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada
farsa, os autos, as bufonerias, um pandemônio, alma sensível, uma barafunda de
coisas e pessoas, em que podias ver tudo, desde a rosa de Esmirna até a arruda
do teu quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra até o recanto da praia em
que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se nele pensamentos de vária casta e
feição. Não havia ali a atmosfera somente da águia e do beija-flor; havia
também a da lesma e do sapo. Retira, pois, a expressão, alma sensível, castiga
os nervos, limpa os óculos, — que isso às vezes é dos óculos, — e acabemos de
uma vez com esta flor da moita.
CAPÍTULO XXXV / O
CAMINHO DE DAMASCO
Ora aconteceu, que,
oito dias depois, como eu estivesse no caminho de Damasco, ouvi uma voz
misteriosa, que me sussurrou as palavras da Escritura (At. IX, 7):
“Levanta-te, e entra na cidade.” Essa voz saía de mim mesmo, e tinha duas
origens: a piedade, que me desarmava ante a candura da pequena, e o terror de
vir a amar deveras, e desposá-la. Uma mulher coxa! Quanto a este motivo da
minha descida, não há duvidar que ela o achou e mo disse. Foi na varanda, na
tarde de uma segunda-feira, ao anunciar-lhe que na seguinte manhã viria para
baixo. — Adeus, suspirou ela estendendo-me a mão com simplicidade; faz bem. — E
como eu nada dissesse, continuou: — Faz bem em fugir ao ridículo de casar
comigo. Ia dizer-lhe que não; ela retirou-se lentamente, engolindo as lágrimas.
Alcancei-a a poucos passos, e jurei-lhe por todos os santos do Céu que eu era
obrigado a descer, mas que não deixava de lhe querer e muito; tudo hipérboles
frias, que ela escutou sem dizer nada.
— Acredita-me?
perguntei eu no fim.
— Não, e digo-lhe que
faz bem.
Quis retê-la, mas o
olhar que me lançou não foi já de súplica, senão de império. Desci da Tijuca,
na manhã seguinte, um pouco amargurado, outro pouco satisfeito. Vinha dizendo a
mim mesmo que era justo obedecer a meu pai, que era conveniente abraçar a
carreira política… que a constituição… que a minha noiva… que o meu
cavalo…
CAPÍTULO XXXVI / A
PROPÓSITO DE BOTAS
Meu pai, que me não
esperava, abraçou-me cheio de ternura e agradecimento. — Agora é deveras? disse
ele. Posso enfim…?
Deixei-o nessa reticência,
e fui descalçar as botas, que estavam apertadas. Uma vez aliviado, respirei à
larga, e deitei-me a fio comprido, enquanto os pés, e todo eu atrás deles,
entrávamos numa relativa bem-aventurança. Então considerei que as botas
apertadas são uma das maiores venturas da Terra, porque, fazendo doer os pés,
dão azo ao prazer de as descalçar. Mortifica os pés, desgraçado,
desmortifica-os depois, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros
e de Epicuro. Enquanto esta ideia me trabalhava no famoso trapézio, lançava eu
os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha perder-se no horizonte do
pretérito, e sentia que o meu coração não tardaria também a descalçar as suas
botas. E descalçou-as o lascivo. Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse
rápido, inefável e incoercível momento de gozo, que sucede a uma dor pungente,
a uma preocupação, a um incômodo… Daqui inferi eu que a vida é o mais
engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião
de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade
terrestre. Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de
botas curtas.
Tu, minha Eugênia, é
que não as descalçaste nunca; foste aí pela estrada da vida, manquejando da
perna e do amor, triste como os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa,
até que vieste também para esta outra margem… O que eu não sei é se a tua
existência era muito necessária ao século. Quem sabe? Talvez um comparsa de
menos fizesse patear a tragédia humana.
CAPÍTULO XXXVII / ENFIM!
Enfim! eis aqui
Virgília. Antes de ir à casa do Conselheiro Dutra, perguntei a meu pai se havia
algum ajuste prévio de casamento.
— Nenhum ajuste. Há
tempos, conversando com ele a teu respeito, confessei-lhe o desejo que tinha de
te ver deputado; e de tal modo falei, que ele prometeu fazer alguma coisa, e
creio que o fará. Quanto à noiva, é o nome que dou a uma criaturinha, que é uma
joia, uma flor, uma estrela, uma coisa rara… é a filha dele; imaginei que, se
casasses com ela, mais depressa serias deputado.
— Só isto?
— Só isto.
Fomos dali à casa do
Dutra. Era uma pérola esse homem, risonho, jovial, patriota, um pouco irritado
com os males públicos, mas não desesperando de os curar depressa. Achou que a
minha candidatura era legítima; convinha, porém, esperar alguns meses. E logo
me apresentou à mulher, — uma estimável senhora, — e à filha, que não desmentiu
em nada o panegírico de meu pai. Juro-vos que em nada. Relede o capítulo XXVII.
Eu, que levava ideias a respeito da pequena, fitei-a de certo modo; ela, que
não sei se as tinha, não me fitou de modo diferente; e o nosso olhar primeiro
foi pura e simplesmente conjugal. No fim de um mês estávamos íntimos.
CAPÍTULO XXXVIII / A
QUARTA EDIÇÃO
— Venha cá jantar
amanhã, disse-me o Dutra uma noite.
Aceitei o convite. No
dia seguinte, mandei que a sege me esperasse no Largo de São Francisco de
Paula, e fui dar várias voltas. Lembra-vos ainda a minha teoria das edições
humanas? Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta edição, revista e
emendada, mas ainda inçada de descuidos e barbarismos; defeito que, aliás,
achava alguma compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação, que era
luxuosa. Dadas as voltas, ao passar pela Rua dos Ourives, consulto o relógio e
cai-me o vidro na calçada. Entro na primeira loja que tinha à mão; era um
cubículo, — pouco mais, — empoeirado e escuro.
Ao fundo, por trás do
balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e bexiguento não se
destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava era um espetáculo
curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não
pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce, destruíam-lhe a flor das
graças. As bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam
saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa,
enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma
expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo que eu comecei a
falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da
loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis,
pósteros? essa mulher era Marcela.
Não a conheci logo; era
difícil; ela porém conheceu-me apenas lhe dirigi a palavra. Os olhos chisparam
e trocaram a expressão usual por outra, meio doce e meio triste. Vi-lhe um
movimento como para esconder-se ou fugir; era o instinto da vaidade, que não
durou mais de um instante. Marcela acomodou-se e sorriu.
— Quer comprar alguma
coisa? disse ela estendendo-me a mão.
Não respondi nada.
Marcela compreendeu a causa do meu silêncio (não era difícil), e só hesitou,
creio eu, em decidir o que dominava mais, se o assombro do presente, se a
memória do passado. Deu-me uma cadeira, e, com o balcão permeio, falou-me
longamente de si, da vida que levara, das lágrimas que eu lhe fizera verter,
das saudades, dos desastres, enfim das bexigas, que lhe escalavraram o rosto, e
do tempo, que ajudou a moléstia, adiantando-lhe a decadência. Verdade é que
tinha a alma decrépita. Vendera tudo, quase tudo; um homem, que a amara
outrora, e lhe morreu nos braços, deixara-lhe aquela loja de ourivesaria, mas,
para que a desgraça fosse completa, era agora pouco buscada a loja — talvez
pela singularidade de a dirigir uma mulher. Em seguida pediu-me que lhe
contasse a minha vida. Gastei pouco tempo em dizer-lhe; não era longa, nem
interessante.
— Casou? disse Marcela
no fim de minha narração.
— Ainda não, respondi
secamente.
Marcela lançou os olhos
para a rua, com a atonia de quem reflete ou relembra; eu deixei-me ir então ao
passado, e, no meio das recordações e saudades, perguntei a mim mesmo por que
motivo fizera tanto desatino. Não era esta certamente a Marcela de 1822; mas a
beleza de outro tempo valia uma terça parte dos meus sacrifícios? Era o que eu
buscava saber, interrogando o rosto de Marcela. O rosto dizia-me que não; ao
mesmo tempo os olhos me contavam que, já outrora, como hoje, ardia neles a
flama da cobiça. Os meus é que não souberam ver-lhe; eram olhos da primeira
edição.
— Mas por que entrou
aqui? viu-me da rua? perguntou ela, saindo daquela espécie de torpor.
— Não, supunha entrar
numa casa de relojoeiro; queria comprar um vidro para este relógio; vou a outra
parte; desculpe-me; tenho pressa.
Marcela suspirou com
tristeza. A verdade é que eu me sentia pungido e aborrecido, ao mesmo tempo, e
ansiava por me ver fora daquela casa. Marcela, entretanto, chamou um moleque,
deu-lhe o relógio, e, apesar da minha oposição, mandou-o, a uma loja na
vizinhança, comprar o vidro. Não havia remédio; sentei-me outra vez. Disse ela
então que desejava ter a proteção dos conhecidos de outro tempo; ponderou que
mais tarde ou mais cedo era natural que me casasse, e afiançou que me daria
finas jóias por preços baratos. Não disse preços baratos, mas usou uma
metáfora delicada e transparente. Entrei a desconfiar que não padecera nenhum
desastre (salvo a moléstia), que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava
com o único fim de acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor daquela
existência; foi isso mesmo que me disseram depois.
CAPÍTULO XXXIX / O
VIZINHO
Enquanto eu fazia
comigo mesmo aquela reflexão, entrou na loja um sujeito baixo, sem chapéu,
trazendo pela mão uma menina de quatro anos.
— Como passou de hoje
de manhã? disse ele a Marcela.
— Assim, assim. Vem cá,
Maricota.
O sujeito levantou a
criança pelos braços e passou-a para dentro do balcão.
— Anda, disse ele;
pergunta a D. Marcela como passou a noite. Estava ansiosa por vir cá, mas a mãe
não tinha podido vesti-la.., Então, Maricota? Toma a bênção… Olha a vara de
marmelo! Assim… Não imagina o que ela é lá em casa; fala na senhora a todos
os instantes, e aqui parece uma pamonha. Ainda ontem… Digo, Maricota?
— Não, diga, não,
papai.
— Então foi alguma
coisa feia? perguntou Marcela batendo na cara da menina.
— Eu lhe digo; a mãe
ensina-lhe a rezar todas as noites um padre-nosso e uma ave-maria, oferecidos a
Nossa Senhora; mas a pequena ontem veio pedir-me com voz muito humilde…
imagine o quê?… que queria oferecê-los a Santa Marcela.
— Coitadinha! disse
Marcela beijando-a.
— É um namoro, uma
paixão, como a senhora não imagina… A mãe diz que é feitiço…
Contou mais algumas
coisas o sujeito, todas muito agradáveis, até que saiu levando a menina, não
sem deitar-me um olhar interrogativo ou suspeitoso. Perguntei a Marcela quem
era ele.
— É um relojoeiro da
vizinhança, um bom homem; a mulher também; e a filha é galante, não? Parecem
gostar muito de mim… é boa gente.
Ao proferir estas
palavras havia um tremor de alegria na voz de Marcela; e no rosto como que se
lhe espraiou uma onda de ventura…
CAPÍTULO XL / NA
SEGE
Nisto entrou o moleque
trazendo o relógio com o vidro novo. Era tempo; já me custava estar ali; dei
uma moedinha de prata ao moleque; disse a Marcela que voltaria noutra ocasião,
e saí a passo largo. Para dizer tudo, devo confessar que o coração me batia um
pouco; mas era uma espécie de dobre de finados. O espírito ia travado de
impressões opostas. Notem que aquele dia amanhecera alegre para mim. Meu pai,
ao almoço, repetiu-me, por antecipação, o primeiro discurso que eu tinha de
proferir na Câmara dos Deputados; rimo-nos muito, e o sol também, que estava
brilhante, como nos mais belos dias do mundo; do mesmo modo que Virgília devia
rir, quando eu lhe contasse as nossas fantasias do almoço. Vai senão quando,
cai-me o vidro do relógio; entro na primeira loja que me fica à mão; e eis me
surge o passado, ei-lo que me lacera e beija; ei-lo que me interroga, com um
rosto cortado de saudades e bexigas…
Lá o deixei; meti-me às
pressas na sege, que me esperava no Largo de São Francisco de Paula, e ordenei
ao boleeiro que rodasse pelas ruas fora. O boleeiro atiçou as bestas, a sege entrou
a sacolejar-me, as molas gemiam, as rodas sulcavam rapidamente a lama que
deixara a chuva recente, e tudo isso me parecia estar parado. Não há, às vezes,
um certo vento morno, não forte nem áspero, mas abafadiço, que nos não leva o
chapéu da cabeça, nem rodomoinha nas saias das mulheres, e todavia é ou parece
ser pior do que se fizesse uma e outra coisa, porque abate, afrouxa, e como que
dissolve os espíritos? Pois eu tinha esse vento comigo; e, certo de que ele me
soprava por achar-me naquela espécie de garganta entre o passado e o presente,
almejava por sair à planície do futuro. O pior é que a sege não andava.
— João, bradei eu ao
boleeiro. Esta sege anda ou não anda?
— Uê! nhonhô! Já
estamos parados na porta de sinhô conselheiro.
CAPÍTULO XLI / A
ALUCINAÇÃO
Era verdade. Entrei
apressado; achei Virgília ansiosa, mau humor, fronte nublada. A mãe, que era
surda, estava na sala com ela. No fim dos cumprimentos disse-me a moça com
sequidão:
— Esperávamos que
viesse mais cedo.
Defendi-me do melhor
modo; falei do cavalo que empacara, e de um amigo, que me detivera. De repente
morre-me a voz nos lábios, fico tolhido de assombro. Virgília… seria Virgília
aquela moça? Fitei-a muito, e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e
desviei a vista. Tornei a olhá-la. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a
pele, ainda na véspera tão fina, rosada e pura, aparecia-me agora amarela,
estigmada pelo mesmo flagelo, que devastara o rosto da espanhola. Os olhos, que
eram travessos, fizeram-se murchos; tinha o lábio triste e a atitude cansada.
Olhei-a bem; peguei-lhe na mão, e chamei-a brandamente a mim. Não me enganava;
eram as bexigas. Creio que fiz um gesto de repulsa.
Virgília afastou-se, e
foi sentar-se no sofá. Eu fiquei algum tempo a olhar para os meus próprios pés.
Devia sair ou ficar? Rejeitei o primeiro alvitre, que era simplesmente absurdo,
e encaminhei-me para Virgília, que lá estava sentada e calada. Céus! Era outra
vez a fresca, a juvenil, a florida Virgília. Em vão procurei no rosto dela
algum vestígio da doença; nenhum havia; era a pele fina e branca do costume.
— Nunca me viu?
perguntou Virgília, vendo que a encarava com insistência.
— Tão bonita, nunca.
Sentei-me, enquanto
Virgília, calada, fazia estalar as unhas. Seguiram-se alguns segundos de pausa.
Falei-lhe de coisas estranhas ao incidente; ela porém não me respondia nada,
nem olhava para mim. Menos o estalido, era a estátua do Silêncio. Uma só vez me
deitou os olhos, mas muito de cima, soerguendo a pontinha esquerda do lábio,
contraindo as sobrancelhas, ao ponto de as unir; todo esse conjunto de coisas
dava-lhe ao rosto uma expressão média, entre cômica e trágica.
Havia alguma afetação
naquele desdém; era um arrebique do gesto. Lá dentro, ela padecia, e não pouco,
— ou fosse mágoa pura, ou só despeito; e porque a dor que se dissimula dói
mais, é muito provável que Virgília padecesse em dobro do que realmente devia
padecer. Creio que isto é metafísica.
CAPÍTULO XLII / QUE
ESCAPOU A ARISTÓTELES
Outra coisa que também
me parece metafísica é isto: — Dá-se movimento a uma bola, por exemplo; rola
esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso, e eis a segunda boa a rolar
como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se chama… Marcela, — é
uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; a terceira, Virgília. Temos que
Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas, — o
qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgília,
que não tinha nada com a primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão
de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma coisa que
poderemos chamar — solidariedade do aborrecimento humano. Como é que este
capítulo escapou a Aristóteles?
CAPÍTULO XLIII / MARQUESA,
PORQUE EU SEREI MARQUÊS
Positivamente, era um
diabrete Virgília, um diabrete angélico, se querem, mas era-o, e então…
Então apareceu o Lobo
Neves, um homem que não era mais esbelto que eu, nem mais elegante, nem mais
lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a
candidatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano.
Não precedeu nenhum despeito; não houve a menor violência de família. Dutra
veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura de Lobo
Neves era apoiada por grandes influências. Cedi; tal foi o começo da minha
derrota. Uma semana depois, Virgília perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando
seria ele ministro.
— Pela minha vontade,
já; pelas dos outros, daqui a um ano.
Virgília replicou:
— Promete que algum dia
me fará baronesa?
— Marquesa, porque eu
serei marquês.
Desde então fiquei
perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão
com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez
cinco beijos; mas dez que fossem não queria dizer coisa nenhuma. O lábio do
homem não é como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que
batia; é justamente o contrário.
CAPÍTULO XLIV / UM
CUBAS!
Meu pai ficou atônito
com o desenlace, e quer-me parecer que não morreu de outra coisa. Eram tantos
os castelos que engenhara, tantos e tantíssimos os sonhos, que não podia vê-los
assim esboroados, sem padecer um forte abalo no organismo. A princípio não quis
crê-lo. Um Cubas! um galho da árvore ilustre dos Cubas! E dizia isto com tal
convicção, que eu, já então informado da nossa tanoaria, esqueci um instante a
volúvel dama, para só contemplar aquele fenômeno, não raro, mas curioso: uma
imaginação graduada em consciência.
— Um Cubas! repetia-me
ele na seguinte manhã, ao almoço.
Não foi alegre o
almoço; eu próprio estava a cair de sono. Tinha velado uma parte da noite. De
amor? Era impossível; não se ama duas vezes a mesma mulher, e eu, que tinha de
amar aquela, tempos depois, não lhe estava agora preso por nenhum outro
vínculo, além de uma fantasia passageira, alguma obediência e muita fatuidade.
E isto basta a explicar a vigília; era despeito, um despeitozinho agudo como
ponta de alfinete, o qual se desfez, com charutos, murros, leituras truncadas,
até romper a aurora, a mais tranqüila das auroras.
Mas eu era moço, tinha
o remédio em mim mesmo. Meu pai é que não pôde suportar facilmente a pancada.
Pensando bem, pode ser que não morresse precisamente do desastre; mas que o
desastre lhe complicou as últimas dores, é positivo. Morreu daí a quatro meses,
— acabrunhado, triste, com uma preocupação intensa e contínua, à semelhança de
remorso, um desencanto mortal, que lhe substituiu os reumatismos e tosses. Teve
ainda meia hora de alegria; foi quando um dos ministros o visitou. Vi-lhe, —
lembra-me bem, — vi-lhe o grato sorriso de outro tempo, e nos olhos uma
concentração de 1uz, que era, por assim dizer, o último lampejo da alma
expirante. Mas a tristeza tornou logo, a tristeza de morrer sem me ver posto em
algum lugar alto, como aliás me cabia.
— Um Cubas!
Morreu alguns dias
depois da visita do ministro, uma manhã de maio, entre os dois filhos, Sabina e
eu, e mais o tio Ildefonso e meu cunhado. Morreu sem lhe poder valer a ciência
dos médicos, nem o nosso amor, nem os cuidados, que foram muitos, nem coisa
nenhuma; tinha de morrer, morreu.
— Um Cubas!
CAPÍTULO XLV / NOTAS
Soluços, lágrimas, casa
armada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que
tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que
entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns
tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões d’água
benta, o fechar do caixão, a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da essa,
e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e
novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e
traspassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a
um… Isto que parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado
para um capítulo triste e vulgar que não escrevo.
CAPÍTULO XLVI / A
HERANÇA
Veja-nos agora o
leitor, oito dias depois da morte de meu pai, — minha irmã sentada num sofá, —
pouco adiante, Cotrim, de pé, encostado a um consolo, com os braços cruzados e
a morder o bigode, — eu a passear de um lado para outro, com os olhos no chão.
Luto pesado. Profundo silêncio.
— Mas afinal, disse
Cotrim; esta casa pouco mais pode valer de trinta contos; demos que valha
trinta e cinco…
— Vale cinquenta,
ponderei; Sabina sabe que custou cinquenta e oito…
— Podia custar até
sessenta, tornou Cotrim; mas não se segue que os valesse, e menos ainda que os
valha hoje. Você sabe que as casas, aqui há anos, baixaram muito. Olhe, se esta
vale os cinquenta contos, quantos não vale a que você deseja para si, a do
Campo?
— Não fale nisso! Uma
casa velha.
— Velha! exclamou
Sabina, levantando as mãos ao teto.
— Parece-lhe nova,
aposto?
— Ora, mano, deixe-se
dessas coisas, disse Sabina, erguendo-se do sofá; podemos arranjar tudo em boa
amizade, e com lisura. Por exemplo, Cotrim não aceita os pretos, quer só o
boleeiro de papai e o Paulo…
— O boleeiro não, acudi
eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro.
— Bem; fico com o Paulo
e o Prudêncio.
— O Prudêncio está
livre.
— Livre?
— Há dois anos.
— Livre? Como seu pai
arranjava estas coisas cá por casa, sem dar parte a ninguém! Está direito.
Quanto à prata… creio que não libertou a prata?
Tínhamos falado na
prata, a velha prataria do tempo de D. José I, a porção mais grave da herança,
já pelo lavor, já pela vetustez, já pela origem da propriedade; dizia meu pai
que o Conde da Cunha, quando vice-rei do Brasil, a dera de presente a meu
bisavô Luís Cubas.
— Quanto à prata,
continuou Cotrim, eu não faria questão nenhuma, se não fosse o desejo que sua
irmã tem de ficar com ela; e acho-lhe razão. Sabina é casada, e precisa de uma
copa digna, apresentável. Você é solteiro, não recebe, não…
— Mas posso casar.
— Para quê? interrompeu
Sabina.
Era tão sublime esta
pergunta, que por alguns instantes me fez esquecer os interesses. Sorri; peguei
na mão de Sabina, bati-lhe levemente na palma, tudo isso com tão boa sombra,
que o Cotrim interpretou o gesto como de aquiescência, e agradeceu-me.
— Que é lá? redargui;
não cedi coisa nenhuma, nem cedo.
— Nem cede?
Abanei a cabeça.
— Deixa, Cotrim, disse
minha irmã ao marido; vê se ele quer ficar também com a nossa roupa do corpo; é
só o que falta.
— Não falta mais nada.
Quer a sege, quer o boleeiro, quer a prata, quer tudo. Olhe, é muito mais
sumário citar-nos a juízo e provar com testemunhas que Sabina não é sua irmã,
que eu não sou seu cunhado e que Deus não é Deus. Faça isto, e não perde nada,
nem uma colherinha. Ora, meu amigo, outro ofício!
Estava tão agastado, e
eu não menos, que entendi oferecer um meio de conciliação; dividir a prata.
Riu-se e perguntou-me a quem caberia o bule e a quem o açucareiro; e depois
desta pergunta, declarou que teríamos tempo de liquidar a pretensão, quando
menos em juízo. Entretanto, Sabina fora até à janela que dava para a chácara, —
e depois de um instante, voltou, e propôs ceder o Paulo e outro preto, com a
condição de ficar com a prata; eu ia dizer que não me convinha, mas Cotrim
adiantou-se e disse a mesma coisa.
— Isso nunca! não faço
esmolas! disse ele.
Jantamos tristes. Meu
tio cônego apareceu à sobremesa, e ainda presenciou uma pequena altercação.
— Meus filhos, disse
ele, lembrem-se que meu irmão deixou um pão bem grande para ser repartido por
todos.
Mas Cotrim:
— Creio, creio. A
questão, porém, não é de pão, é de manteiga. Pão seco é que eu não engulo.
Fizeram-se finalmente
as partilhas, mas nós estávamos brigados. E digo-lhes que, ainda assim,
custou-me muito a brigar com Sabina. Éramos tão amigos! Jogos pueris, fúrias de
criança, risos e tristezas da idade adulta, dividimos muita vez esse pão da
alegria e da miséria, irmãmente, como bons irmãos que éramos. Mas estávamos
brigados. Tal qual a beleza de Marcela, que se esvaiu com as bexigas.
CAPÍTULO XLVII / O
RECLUSO
Marcela, Sabina,
Virgília… aí estou eu a fundir todos os contrastes, como se esses nomes e
pessoas não fossem mais do que modos de ser da minha afeição interior. Pena de
maus costumes, ata uma gravata ao estilo, veste-lhe um colete menos sórdido; e
depois sim, depois vem comigo, entra nessa casa, estira-te nessa rede que me
embalou a melhor parte dos anos que decorreram desde o inventário de meu pai até
1842. Vem; se te cheirar a algum aroma de toucador, não cuides que o mandei
derramar para meu regalo; é um vestígio da N. ou da Z. ou da U. — que todas
essas letras maiúsculas embalaram aí a sua elegante abjeção. Mas, se além do
aroma, quiseres outra coisa, fica-te com o desejo, porque eu não guardei
retratos, nem cartas, nem memórias, a mesma comoção esvaiu-se, e só me ficaram
as letras iniciais.
Vivi meio recluso, indo
de longe em longe a algum baile, ou teatro, ou palestra, mas a maior parte do
tempo passei-a comigo mesmo. Vivia; deixava-me ir ao curso e recurso dos
sucessos e dos dias, ora buliçoso, ora apático, entre a ambição e o desânimo.
Escrevia política e fazia literatura. Mandava artigos e versos para as folhas
públicas, e cheguei a alcançar certa reputação de polemista e de poeta. Quando
me lembrava do Lobo Neves, que era já deputado, e de Virgília, futura marquesa,
perguntava a mim mesmo por que não seria melhor deputado e melhor marquês do
que o Lobo Neves, — eu, que valia mais, muito mais do que ele, — e dizia isto a
olhar para a ponta do nariz…
CAPÍTULO XLVIII / UM
PRIMO DE VIRGÍLIA
— Sabe quem chegou
ontem de São Paulo? perguntou-me uma noite Luís Dutra.
Luís Dutra era um primo
de Virgília, que também privava com as musas. Os versos dele agradavam e valiam
mais do que os meus; mas ele tinha necessidade da sanção de alguns, que lhe
confirmasse o aplauso dos outros. Como fosse acanhado, não interrogava a
ninguém; mas deleitava-se com ouvir alguma palavra de apreço; então criava novas
forças e arremetia juvenilmente ao trabalho.
Pobre Luís Dutra!
Apenas publicava alguma coisa, corria à minha casa, e entrava a girar em volta
de mim, à espreita de um juízo, de uma palavra, de um gesto, que lhe aprovasse
a recente produção, e eu falava-lhe de mil coisas diferentes, — do último baile
do Catete, da discussão das câmaras, de berlindas e cavalos, — de tudo, menos
dos seus versos ou prosas. Ele respondia-me, a princípio com animação, depois
mais frouxo, torcia a rédea da conversa para o seu assunto dele, abria um
livro, perguntava-me se tinha algum trabalho novo, e eu dizia-lhe que sim ou
que não, mas torcia a rédea para o outro lado, e lá ia ele atrás de mim, até
que empacava de todo e saía triste. Minha intenção era fazê-lo duvidar de si
mesmo, desanimá-lo, eliminá-lo. E tudo isto a olhar para a ponta do nariz…
CAPÍTULO XLIX / A
PONTA DO NARIZ
Nariz, consciência sem
remorsos, tu me valeste muito na vida… Já meditaste alguma vez no destino do
nariz, amado leitor? A explicação do Doutor Pangloss é que o nariz foi criado
para uso dos óculos, — e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu
definitiva; mas veio um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos
obscuros de filosofia, atinei com a única, verdadeira e definitiva explicação.
Com efeito, bastou-me
atentar no costume do faquir. Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a
olhar para a ponta do nariz, com o fim único de ver a luz celeste. Quando ele
finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das coisas externas,
embeleza-se no invisível, aprende o impalpável, desvincula-se da terra,
dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o
fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao
faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o
seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo
efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio
das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o
gênero humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras
tribos.
Ouço daqui uma objeção
do leitor: — Como pode ser assim, diz ele se nunca jamais ninguém não viu
estarem os homens a contemplar o seu próprio nariz?
Leitor obtuso, isso
prova que nunca entraste no cérebro de um chapeleiro. Um chapeleiro passa por
uma loja de chapéus; é a loja de um rival, que a abriu há dois anos; tinha
então duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis a oito. Nas vidraças
ostentam-se os chapéus do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o
chapeleiro compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas
portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que de igual preço.
Mortifica-se naturalmente; mas vai andando, concentrado, com os olhos para
baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu
próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro
chapeleiro… Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.
A conclusão, portanto,
é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que
a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio.
CAPÍTULO L / VIRGÍLIA
CASADA
— Quem chegou de São
Paulo foi minha prima Virgília, casada com o Lobo Neves, continuou Luís Dutra.
— Ah!
— E só hoje é que eu
soube uma coisa, seu maganão…
— Que foi?
— Que você quis casar
com ela.
— Ideias de meu pai.
Quem lhe disse isso?
— Ela mesma. Falei-lhe
muito em você, e ela então contou-me tudo.
No dia seguinte,
estando na Rua do Ouvidor, à porta da tipografia do Plancher, vi assomar, a
distância, uma mulher esplêndida. Era ela; só a reconheci a poucos passos, tão
outra estava, a tal ponto a natureza e a arte lhe haviam dado o último apuro.
Cortejamo-nos; ela seguiu; entrou com o marido na carruagem, que os esperava um
pouco acima; fiquei atônito.
Oito dias depois,
encontrei-a num baile; creio que chegamos a trocar duas ou três palavras. Mas
noutro baile, dado daí a um mês, em casa de uma senhora, que ornara os salões
do primeiro reinado, e não desornava então os do segundo, a aproximação foi
maior e mais longa, porque conversamos e valsamos. A valsa é uma deliciosa
coisa. Valsamos; não nego que, ao conchegar ao meu corpo aquele corpo flexível
e magnífico, tive uma singular sensação, uma sensação de homem roubado.
— Está muito calor,
disse ela, logo que acabamos. Vamos ao terraço?
— Não; pode
constipar-se. Vamos a outra sala.
Na outra sala estava
Lobo Neves, que me fez muitos cumprimentos, acerca dos meus escritos políticos,
acrescentando que nada dizia dos literários por não entender deles; mas os
políticos eram excelentes, bem pensados e bem escritos. Respondi-lhe com iguais
esmeros de cortesia, e separamo-nos contentes um do outro.
Cerca de três semanas
depois recebi um convite dele para uma reunião íntima. Fui; Virgília recebeu-me
com esta graciosa palavra: — O senhor hoje há de valsar comigo. — Em verdade,
eu tinha fama e era valsista emérito; não admira que ela me preferisse.
Valsamos uma vez, e mais outra vez. Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa
que nos perdeu. Creio que essa noite apertei-lhe a mão com muita força, e ela
deixou-a ficar, como esquecida, e eu a abraçá-la, e todos com os olhos em nós,
e nos outros que também se abraçavam e giravam… Um delírio.
CAPÍTULO LI / É
MINHA!
— É minha! disse eu
comigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e confesso que durante o resto da
noite, foi-se-me a ideia entranhando no espírito, não à força de martelo, mas
de verruma, que é mais insinuativa.
— É minha! dizia eu ao
chegar à porta de casa.
Mas aí, como se o
destino ou o acaso, ou o que quer que fosse, se lembrasse de dar algum pasto
aos meus arroubos possessórios, luziu-me no chão uma coisa redonda e amarela.
Abaixei-me; era uma moeda de ouro, uma meia dobra.
— É minha! repeti eu a
rir-me, e meti-a no bolso.
Nessa noite não pensei
mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o caso, senti uns repelões da
consciência, e uma voz que me perguntava por que diabo seria minha uma moeda
que eu não herdara nem ganhara, mas somente achara na rua. Evidentemente não
era minha; era de outro, daquele que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse
pobre, algum operário que não teria com que dar de comer à mulher e aos filhos;
mas se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda, e o
melhor meio, o único meio, era fazê-lo por intermédio de um anúncio ou da
polícia. Enviei uma carta ao chefe de polícia, remetendo-lhe o achado, e
rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvê-lo às mãos do
verdadeiro dono.
Mandei a carta e
almocei tranquilo, posso até dizer que jubiloso. Minha consciência valsara
tanto na véspera, que chegou a ficar sufocada, sem respiração; mas a
restituição da meia dobra foi uma janela que se abriu para o outro lado da
moral; entrou uma onda de ar puro, e a pobre dama respirou à larga. Ventilai as
consciências! não vos digo mais nada. Todavia, despido de quaisquer outras
circunstâncias, o meu ato era bonito, porque exprimia um justo escrúpulo, um
sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a minha dama interior, com um
modo austero e meigo a um tempo; é o que ela me dizia, reclinada ao peitoril da
janela aberta.
— Fizeste bem, Cubas;
andaste perfeitamente. Este ar não é só puro, é balsâmico, é uma transpiração
dos eternos jardins. Queres ver o que fizeste, Cubas?
E a boa dama sacou um
espelho e abriu-mo diante dos olhos. Vi, claramente vista, a meia dobra da
véspera, redonda, brilhante, multiplicando-se por si mesma, — ser dez — depois
trinta — depois quinhentas, — exprimindo assim o benefício que me daria na vida
e na morte o simples ato da restituição. E eu espraiava todo o meu ser na
contemplação daquele ato, revia-me nele, achava-me bom, talvez grande. Uma
simples moeda, hem? Vejam o que é ter valsado um poucochinho mais.
Assim eu, Brás Cubas,
descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e estabeleci que o
modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa
arejar continuamente a consciência. Talvez não entendas o que aí fica; talvez
queiras uma coisa mais concreta, um embrulho, por exemplo, um embrulho
misterioso. Pois toma lá o embrulho misterioso.
CAPÍTULO LII / O
EMBRULHO MISTERIOSO
Foi o caso que, alguns
dias depois, indo eu a Botafogo, tropecei num embrulho, que estava na praia. Não
digo bem; houve menos tropeção que pontapé. Vendo um embrulho, pão grande, mas
limpo e corretamente feito, atado com um barbante rijo, uma coisa que parecia
alguma coisa, lembrou-me bater-lhe com o pé, assim por experiência, e bati, e o
embrulho resistiu. Relanceei os olhos em volta de mim; a praia estava deserta;
ao longe uns meninos brincavam, — um pescador curava as redes ainda mais longe,
— ninguém que pudesse ver a minha ação; inclinei-me, apanhei o embrulho e
segui.
Segui, mas não sem
receio. Podia ser uma pulha de rapazes. Tive ideia de devolver o achado à
praia, mas apalpei-o e rejeitei a ideia. Um pouco adiante, desandei o caminho e
guiei para casa.
— Vejamos, disse eu ao
entrar no gabinete.
E hesitei um instante,
creio que por vergonha; assaltou-me outra vez o receio da pulha. É certo que
não havia ali nenhuma testemunha externa; mas eu tinha dentro de mim mesmo um
garoto, que havia de assobiar, guinchar, grunhir, patear, apupar, cacarejar,
fazer o diabo, se me visse abrir o embrulho e achar dentro uma dúzia de lenços
velhos ou duas dúzias de goiabas podres. Era tarde; a curiosidade estava
aguçada, como deve estar a do leitor; desfiz o embrulho, e vi… achei…
contei… recontei nada menos de cinco contos de réis. Nada menos. Talvez uns
dez mil-réis mais. Cinco contos em boas notas e moedas, tudo asseadinho e
arranjadinho, um achado raro. Embrulhei-as de novo. Ao jantar pareceu-me que um
dos moleques falara a outro com os olhos. Ter-me-iam espreitado? Interroguei-os
discretamente, e concluí que não. Sobre o jantar fui outra vez ao gabinete,
examinei o dinheiro, e ri-me dos meus cuidados maternais a respeito de cinco
contos, — eu, que era abastado.
Para não pensar mais
naquilo fui de noite à casa do Lobo Neves, que instara muito comigo não
deixasse de frequentar as recepções da mulher. Lá encontrei o chefe de polícia;
fui-lhe apresentado; ele lembrou-se logo da carta e da meia dobra que eu lhe
remetera alguns dias antes. Aventou o caso; Virgília pareceu saborear o meu procedimento,
e cada um dos presentes acertou de contar uma anedota análoga, que eu ouvi com
impaciência de mulher histérica.
De noite, no dia
seguinte, em toda aquela semana pensei o menos que pude nos cinco contos, e até
confesso que os deixei muito quietinhos na gaveta da secretária. Gostava de
falar de todas as coisas, menos de dinheiro, e principalmente de dinheiro
achado; todavia não era crime achar dinheiro, era uma felicidade, um bom acaso,
era talvez um lance da Providência. Não podia ser outra coisa. Não se perdem
cinco contos, como se perde um lenço de tabaco. Cinco contos levam-se com
trinta mil sentidos, apalpam-se a miúdo, não se lhes tiram os olhos de cima,
nem as mãos, nem o pensamento, e para se perderem assim tolamente, numa praia,
é necessário que… Crime é que não podia ser o achado; nem crime, nem desonra,
nem nada que embaciasse o caráter de um homem. Era um achado, um acerto feliz,
como a sorte grande, como as apostas de cavalo, como os ganhos de um jogo
honesto e até direi que a minha felicidade era merecida, porque eu não me
sentia mau, nem indigno dos benefícios da Providência.
— Estes cinco contos,
dizia eu comigo, três semanas depois, hei de empregá-los em alguma ação boa,
talvez um dote a alguma menina pobre, ou outra coisa assim… hei de ver…
Nesse mesmo dia
levei-os ao Banco do Brasil. Lá me receberam com muitas e delicadas alusões ao
caso da meia dobra, cuja notícia andava já espalhada entre as pessoas do meu
conhecimento; respondi enfadado que a coisa não valia a pena de tamanho
estrondo; louvaram-me então a modéstia, — e porque eu me encolerizasse,
replicaram-me que era simplesmente grande.
CAPÍTULO LIII / . . . .
.
Virgília é que já se
não lembrava da meia dobra; toda ela estava concentrada em mim, nos meus olhos,
na minha vida, no meu pensamento; — era o que dizia, e era verdade.
Há umas plantas que
nascem e crescem depressa; outras são tardias e pecas. O nosso amor era
daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta seiva, que, dentro em pouco, era a mais
vasta, folhuda e exuberante criatura dos bosques. Não lhes poderei dizer, ao
certo, os dias que durou esse crescimento. Lembra-me, sim, que, em certa noite,
abotoou-se a flor, ou o beijo, se assim lhe quiserem chamar, um beijo que ela
me deu, trêmula, — coitadinha, — trêmula de medo, porque era ao portão da
chácara. Uniu-nos esse beijo único, — breve como a ocasião, ardente como o
amor, prólogo de uma vida de delícias, de terrores, de remorsos, de prazeres
que rematavam em dor, de aflições que desabrochavam em alegria, — uma
hipocrisia paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio, — vida
de agitações, de cóleras, de desesperos e de ciúmes, que uma hora pagava à
farta e de sobra; mas outra hora vinha e engolia aquela, como tudo mais, para
deixar à tona as agitações e o resto, e o resto do resto, que é o fastio e a
saciedade: tal foi o livro daquele prólogo.
CAPÍTULO LIV / A
PÊNDULA
Saí dali a saborear o
beijo. Não pude dormir; estirei-me na cama, é certo, mas foi o mesmo que nada.
Ouvi as horas todas da noite. Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da
pêndula fazia-me muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia
dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um
velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e o da morte, a tirar as
moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las assim:
— Outra de menos…
— Outra de menos…
— Outra de menos…
— Outra de menos…
O mais singular é que,
se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater
nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos. Invenções há, que
se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo
e perpétuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de ter
um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que morre.
Naquela noite não
padeci essa triste sensação de enfado, mas outra, e deleitosa. As fantasias
tumultuavam-me cá dentro, vinham umas sobre outras, à semelhança de devotas que
se abalroam para ver o anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes
perdidos, mas os minutos ganhados. De certo tempo em diante não ouvi coisa
nenhuma, porque o meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janela fora
e bateu as asas na direção da casa de Virgília. Aí achou no peitoril de uma
janela o pensamento de Virgília, saudaram-se e ficaram de palestra. Nós a
rolarmos na cama, talvez com frio, necessitados de repouso, e os dois vadios
ali postos, a repetirem o velho diálogo de Adão e Eva.
CAPÍTULO LV / O
VELHO DIÁLOGO DE ADÃO E EVA
BRÁS
CUBAS…………………………..?
VIRGÍLIA………………………….
BRÁS
CUBAS……………………………………………………………………………………
………………………………………………..
VIRGÍLIA……………………………………!
BRÁS
CUBAS……………………………
VIRGÍLIA………………………………………………………………………………………….?
BRÁS
CUBAS……………………………
VIRGÍLIA………………………………………..
BRÁS
CUBAS………………………………………………………………………………….
………………………..
……….!…………………………!………………………!
VIRGÍLIA…………………………………………….?
BRÁS
CUBAS……………………………………….!
VIRGÍLIA……………………………………………!
CAPÍTULO LVI / O
MOMENTO OPORTUNO
Mas, com a breca! quem
me explicará a razão desta diferença? Um dia vimo-nos, tratamos o casamento,
desfizemo-lo e separamo-nos, a frio, sem dor, porque não houvera paixão
nenhuma; mordeu-me apenas algum despeito e nada mais. Correm anos, torno a
vê-la, damos três ou quatro giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro com
delírio. A beleza de Virgília chegara, é certo, a um alto grau de apuro, mas
nós éramos substancialmente os mesmos, e eu, à minha parte, não me tornara mais
bonito nem mais elegante. Quem me explicará a razão dessa diferença?
A razão não podia ser
outra senão o momento oportuno. Não era oportuno o primeiro momento, porque, se
nenhum de nós estava verde para o amor, ambos o estávamos para o nosso
amor: distinção fundamental. Não há amor possível sem a oportunidade dos
sujeitos. Esta explicação achei-a eu mesmo, dois anos depois do beijo, um dia
em que Virgília se me queixava de um pintalegrete que lá ia e tenazmente a
galanteava.
— Que importuno! dizia
ela fazendo uma careta de raiva.
Estremeci, fitei-a, vi
que a indignação era sincera; então ocorreu-me que talvez eu tivesse provocado
alguma vez aquela mesma careta, e compreendi logo toda a grandeza da minha
evolução. Tinha vindo de importuno a oportuno.
CAPÍTULO LVII / DESTINO
Sim, senhor, amávamos.
Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é que nos amávamos
deveras. Achávamo-nos jungidos um ao outro, como as duas almas que o poeta
encontrou no Purgatório:
Di
pari, come buoi, che vanno a giogo;
e digo mal,
comparando-nos a bois, porque nós éramos outra espécie de animal menos tardo,
mais velhaco e lascivo. Eis-nos a caminhar sem saber até onde, nem por que
estradas escusas; problema que me assustou, durante algumas semanas, mas cuja
solução entreguei ao destino. Pobre Destino! Onde andarás agora, grande
procurador dos negócios humanos? Talvez estejas a criar pele nova, outra cara,
outras maneiras, outro nome, e não é impossível que… Já me não lembra onde
estava… Ah! nas estradas escusas. Disse eu comigo que já agora seria o que
Deus quisesse. Era a nossa sorte amar-nos; se assim não fora, como
explicaríamos a valsa e o resto? Virgília pensava a mesma coisa. Um dia, depois
de me confessar que tinha momentos de remorsos, como eu lhe dissesse que, se
tinha remorsos, é porque me não tinha amor, Virgília cingiu-me com os seus
magníficos braços, murmurando:
— Amo-te, é a vontade
do Céu.
E esta palavra não
vinha à toa; Virgília era um pouco religiosa. Não ouvia missa aos domingos, é
verdade, e creio até que só ia às igrejas em dia de festa, e quando havia lugar
vago em alguma tribuna. Mas rezava todas as noites, com fervor, ou, pelo menos,
com sono. Tinha medo às trovoadas; nessas ocasiões, tapava os ouvidos, e
resmoneava todas as orações do catecismo. Na alcova dela havia um oratoriozinho
de jacarandá, obra de talha, de três palmos de altura, com três imagens dentro;
mas não falava dele às amigas; ao contrário, tachava de beatas as que eram só
religiosas. Algum tempo desconfiei que havia nela certo vexame de crer, e que a
sua religião era uma espécie de camisa de flanela, preservativa e clandestina;
mas evidentemente era engano meu.
CAPÍTULO LVIII / CONFIDÊNCIA
Lobo Neves, a
princípio, metia-me grandes sustos. Pura ilusão! Como adorasse a mulher, não se
vexava de mo dizer muitas vezes; achava que Virgília era a perfeição mesma, um
conjunto de qualidades sólidas e finas, amorável, elegante, austera, um modelo.
E a confiança não parava aí. De fresta que era, chegou a porta escancarada. Um
dia confessou-me que trazia uma triste carcoma na existência; faltava-lhe a
glória pública. Animei-o; disse-lhe muitas coisas bonitas, que ele ouviu com
aquela unção religiosa de um desejo que não quer acabar de morrer; então
compreendi que a ambição dele andava cansada de bater as asas, sem poder abrir
o vôo. Dias depois disse-me todos os seus tédios e desfalecimentos, as
amarguras engolidas, as raivas sopitadas; contou-me que a vida política era um
tecido de invejas, despeitos, intrigas, perfídias, interesses, vaidades.
Evidentemente havia aí uma crise de melancolia; tratei de combatê-la.
— Sei o que lhe digo,
replicou-me com tristeza. Não pode imaginar o que tenho passado. Entrei na
política por gosto, por família, por ambição, e um pouco por vaidade. Já vê que
reuni em mim só todos os motivos que levam o homem à vida pública; faltou-me só
o interesse de outra natureza. Vira o teatro pelo lado da plateia; e, palavra,
que era bonito! Soberbo cenário, vida, movimento e graça na representação.
Escriturei-me; deram-me um papel que… Mas para que o estou a fatigar com
isto? Deixe-me ficar com as minhas amofinações. Creia que tenho passado horas e
dias… Não há constância de sentimentos, não há gratidão, não há nada…
nada…. nada…
Calou-se, profundamente
abatido, com os olhos no ar, parecendo não ouvir coisa nenhuma, a não ser o eco
de seus próprios pensamentos. Após alguns instantes, ergueu-se e estendeu-me a
mão: — O senhor há de rir-se de mim, disse ele; mas desculpe aquele desabafo;
tinha um negócio, que me mordia o espírito. E ria, de um jeito sombrio e
triste; depois pediu-me que não referisse a ninguém o que se passara entre nós;
ponderei-lhe que a rigor não se passara nada. Entraram dois deputados e um
chefe político da paróquia. Lobo Neves recebeu-os com alegria, a princípio um
tanto postiça, mas logo depois natural. No fim de meia hora, ninguém diria que
ele não era o mais afortunado dos homens; conversava, chasqueava, e ria, e riam
todos.
CAPÍTULO LIX / UM
ENCONTRO
Deve ser um vinho enérgico
a política, dizia eu comigo, ao sair da casa de Lobo Neves; e fui andando, fui
andando, até que na Rua dos Barbonos vi uma sege, e dentro um dos ministros,
meu antigo companheiro de colégio. Cortejamo-nos afetuosamente, a sege seguiu,
e eu fui andando… andando… andando…
— Por que não serei eu
ministro?
Esta ideia, rútila e
grande, — trajada ao bizarro, como diria o Padre Bernardes, — esta ideia
começou uma vertigem de cabriolas e eu deixei-me estar com os olhos nela, a
achar-lhe graça. Não pensei mais na tristeza de Lobo Neves; sentia a atração do
abismo. Recordei aquele companheiro de colégio, as correrias nos morros, as
alegrias e travessuras, e comparei o menino com o homem, e perguntei a mim
mesmo por que não seria eu como ele. Entrava então no Passeio Público, e tudo
me parecia dizer a mesma coisa. — Por que não serás ministro, Cubas? — Cubas,
por que não serás ministro de Estado? Ao ouvi-lo, uma deliciosa sensação me
refrescava todo o organismo. Entrei, fui sentar-me num banco, a remoer aquela
ideia. E Virgília que havia de gostar! Alguns minutos depois vejo encaminhar-se
para mim uma cara, que não me pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse donde
fosse.
Imaginem um homem de
trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e pálido. As roupas, salvo o feitio,
pareciam ter escapado ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era contemporâneo do
de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes,
— ou, literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a um amarelo
sem brilho; o pêlo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos botões restavam
três. As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras, enquanto as
bainhas eram roídas pelo tacão de um botim sem misericórdia nem graxa. Ao
pescoço flutuavam as pontas de uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas,
apertando um colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete, um colete
de seda escura, roto a espaços, e desabotoado.
— Aposto que me não
conhece, Sr. Dr. Cubas? disse ele.
— Não me lembra…
— Sou o Borba, o
Quincas Borba.
Recuei espantado…
Quem me dera agora o verbo solene de um Bossuet ou de Vieira, para contar
tamanha desolação! Era o Quincas Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu
companheiro de colégio, tão inteligente e abastado. Quincas Borba! Não;
impossível; não pode ser. Não podia acabar de crer que essa figura esquálida,
essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruína
fosse o Quincas Borba. Mas era. Os olhos tinham um resto da expressão de outro
tempo, e o sorriso não perdera certo ar escarninho, que lhe era peculiar.
Entretanto, ele suportava com firmeza o meu espanto. No fim de algum tempo
arredei os olhos; se a figura repelia, a comparação acabrunhava.
— Não é preciso
contar-lhe nada, disse ele enfim; o senhor adivinha tudo. Uma vida de misérias,
de atribulações e de lutas. Lembra-se das nossas festas, em que eu figurava de
rei? Que trambolhão! Acabo mendigo…
E alçando a mão direita
e os ombros, com um ar de indiferença, parecia resignado aos golpes da fortuna,
e não sei até se contente. Talvez contente. Com certeza, impassível. Não havia
nele a resignação cristã, nem a conformidade filosófica. Parece que a miséria
lhe calejara a alma, a ponto de lhe tirar a sensação de lama. Arrastava os
andrajos, como outrora a púrpura: com certa graça indolente.
— Procure-me, disse eu,
poderei arranjar-lhe alguma coisa.
Um sorriso magnífico
lhe abriu os lábios. — Não é o primeiro que me promete alguma coisa, replicou,
e não sei se será o último que não me fará nada. E para quê? Eu nada peço, a
não ser dinheiro; dinheiro sim, porque é necessário comer, e as casas de pasto
não fiam. Nem as quitandeiras. Uma coisa de nada, uns dois vinténs de angu, nem
isso fiam as malditas quitandeiras… Um inferno, meu… ia dizer meu amigo…
Um inferno! o diabo! todos os diabos! Olhe, ainda hoje não almocei.
— Não?
— Não; saí muito cedo
de casa. Sabe onde moro? No terceiro degrau das escadas de São Francisco, à
esquerda de quem sobe; não precisa bater na porta. Casa fresca, extremamente
fresca. Pois saí cedo, e ainda não comi…
Tirei a carteira,
escolhi uma nota de cinco mil-réis, — a menos limpa, — e dei-lha. Ele recebeu-me
com os olhos cintilantes de cobiça. Levantou a nota ao ar, e agitou-a
entusiasmado.
— In hoc signo
vinces! bradou.
E depois beijou-a, com
muitos ademanes de ternura, e tão ruidosa expansão, que me produziu um
sentimento misto de nojo e lástima. Ele, que era arguto, entendeu-me; ficou
sério, grotescamente sério, e pediu-me desculpa da alegria, dizendo que era
alegria de pobre que não via, desde muitos anos, uma nota de cinco mil-réis.
— Pois está em suas
mãos ver outras muitas, disse eu.
— Sim? acudiu ele,
dando um bote para mim.
— Trabalhando, concluí
eu.
Fez um gesto de desdém;
calou-se alguns instantes; depois disse-me positivamente que não queria
trabalhar. Eu estava enjoado dessa abjeção tão cômica e tão triste, e
preparei-me para sair.
— Não vá sem eu lhe
ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele, escarranchando-se diante de
mim.
CAPÍTULO LX / O
ABRAÇO
Cuidei que o pobre
diabo estivesse doido, e ia afastar-me, quando ele me pegou no pulso, e olhou
alguns instantes para o brilhante que eu trazia no dedo. Senti-lhe na mão uns
estremeções de cobiça, uns pruridos de posse.
— Magnífico! disse ele.
Depois começou a andar
à roda de mim e a examinar-me muito.
— O senhor trata-se,
disse ele. Joias, roupa fina, elegante e.. Compare esses sapatos aos meus; que
diferença! Pudera não! Digo-lhe que se trata. E moças? Como vão elas? Está
casado?
— Não…
— Nem eu.
— Moro na rua…
— Não quero saber onde
mora, atalhou Quincas Borba. Se alguma vez nos virmos, dê-me outra nota de
cinco mil-réis; mas permita-me que não a vá buscar à sua casa. É uma espécie de
orgulho… Agora, adeus; vejo que está impaciente.
— Adeus!
— E obrigado. Deixa-me
agradecer-lhe de mais perto?
E dizendo isto
abraçou-me com tal ímpeto, que não pude evitá-lo. Separamo-nos finalmente, eu a
passo largo, com a camisa amarrotada do abraço, enfadado e triste. Já não
dominava em mim a parte simpática da sensação, mas a outra. Quisera ver-lhe a
miséria digna. Contudo, não pude deixar de comparar outra vez o homem de agora
com o de outrora, entristecer-me e encarar o abismo que separa as esperanças de
um tempo da realidade de outro tempo…
— Ora adeus! Vamos
jantar, disse comigo.
Meto a mão no colete e
não acho o relógio. Última desilusão! O Borba furtara-me no abraço.
CAPÍTULO LXI / UM
PROJETO
Jantei triste. Não era
a falta do relógio que me pungia, era a imagem do autor do furto, e as
reminiscências de criança, e outra vez a comparação, e a conclusão… Desde a
sopa, começou a abrir em mim a flor amarela e mórbida do capítulo XXV, e então
jantei depressa, para correr à casa de Virgília. Virgília era o presente; eu
queria refugiar-me nele, para escapar às opressões do passado, porque o
encontro do Quincas Borba, tornara-me aos olhos o passado, não qual fora
deveras, mas um passado roto, abjeto, mendigo e gatuno.
Saí de casa, mas era
cedo; iria achá-los à mesa. Outra vez pensei no Quincas Borba, e tive então um
desejo de tornar ao Passeio Público, a ver se o achava; a ideia de o regenerar
surgiu-me como uma forte necessidade. Fui; mas já não o achei. Indaguei do
guarda; disse-me que efetivamente “esse sujeito” ia por ali às vezes.
— A que horas?
— Não tem hora certa.
Não era impossível
encontrá-lo noutra ocasião; prometi a mim mesmo lá voltar. A necessidade de o
regenerar, de o trazer ao trabalho e ao respeito de sua pessoa enchia-me o
coração; eu começava a sentir um bem-estar, uma elevação, uma admiração de mim
próprio… Nisto caía a noite; fui ter com Virgília.
CAPÍTULO LXII / O
TRAVESSEIRO
Fui ter com Virgília;
depressa esqueci o Quincas Borba. Virgília era o travesseiro do meu espírito,
um travesseiro mole, tépido, aromático, enfronhado em cambraia e bruxelas. Era
ali que ele costumava repousar de todas as sensações más, simplesmente
enfadonhas, ou até dolorosas. E, bem pesadas as coisas, não era outra a razão
da existência de Virgília; não podia ser. Cinco minutos bastaram para olvidar
inteiramente o Quincas Borba; cinco minutos de uma contemplação mútua, com as
mãos presas umas nas outras; cinco minutos e um beijo. E lá se foi a lembrança
do Quincas Borba… Escrófula da vida, andrajo do passado, que me importa que
existas, que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dois palmos de um
travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir?
CAPÍTULO LXIII / FUJAMOS!
Ai! Nem sempre dormir.
Três semanas depois, indo à casa de Virgília, — eram quatro horas da tarde, —
achei-a triste e abatida. Não me quis dizer o que era; mas, como eu instasse
muito:
— Creio que o Damião desconfia
alguma coisa. Noto agora umas esquisitices nele… Não sei. Trata-me bem, não
há dúvida; mas o olhar parece que não é o mesmo. Durmo mal; ainda esta noite
acordei, aterrada; estava sonhando que ele me ia matar. Talvez seja ilusão, mas
eu penso que ele desconfia…
Tranquilizei-a como
pude; disse que podiam ser cuidados políticos. Virgília concordou que seriam,
mas ficou ainda muito excitada e nervosa. Estávamos na sala de visitas, que
dava justamente para a chácara, onde trocáramos o beijo inicial. Uma janela
aberta deixava entrar o vento, que sacudia frouxamente as cortinas, e eu fiquei
a olhar para as cortinas, sem as ver. Empunhara o binóculo da imaginação;
lobrigava, ao longe, uma casa nossa, uma vida nossa, um mundo nosso, em que não
havia Lobo Neves, nem casamento, nem moral, nem nenhum outro liame, que nos
tolhesse a expansão da vontade. Esta ideia embriagou-me; eliminados assim o
mundo, a moral e o marido, bastava penetrar naquela habitação dos anjos.
— Virgília, disse eu,
proponho-te uma coisa.
— Que é?
— Amas-me?
— Oh! suspirou ela,
cingindo-me os braços ao pescoço.
Virgília amava-me com
fúria; aquela resposta era a verdade patente. Com os braços ao meu pescoço,
calada, respirando muito, deixou-se ficar a olhar para mim, com os seus grandes
e belos olhos, que davam uma sensação singular de luz úmida; eu deixei-me estar
a vê-los, a namorar-lhe a boca, fresca como a madrugada, e insaciável como a
morte. A beleza de Virgília tinha agora um tom grandioso, que não possuíra
antes de casar. Era dessas figuras talhadas em pentélico, de um lavor nobre,
rasgado e puro, tranquilamente bela, como as estátuas, mas não apática nem
fria. Ao contrário, tinha o aspecto das naturezas cálidas, e podia-se dizer
que, na realidade, resumia todo o amor. Resumia-o sobretudo naquela ocasião, em
que exprimia mudamente tudo quanto pode dizer a pupila humana. Mas o tempo
urgia; deslacei-lhe as mãos, peguei-lhe nos pulsos, e, fito nela, perguntei se
tinha coragem.
— De quê?
— De fugir. Iremos para
onde nos for mais cômodo, uma casa grande ou pequena, à tua vontade, na roça ou
na cidade, ou na Europa, onde te parecer, onde ninguém nos aborreça, e não haja
perigos para ti, onde vivamos um para o outro… Sim? fujamos. Tarde ou cedo,
ele pode descobrir alguma coisa, e estarás perdida…ouves? perdida… morta…
e ele também, porque eu o matarei, juro-te.
Interrompi-me; Virgília
empalidecera muito, deixou cair os braços e sentou-se no canapé. Esteve assim
alguns instantes, sem me dizer palavra, não sei se vacilante na escolha, se
aterrada com a ideia da descoberta e da morte. Fui-me a ela, insisti na
proposta, disse-lhe todas as vantagens de uma vida a sós, sem zelos, nem
terrores, nem aflições. Virgília ouvia-me calada; depois disse:
— Não escaparíamos
talvez; ele iria ter comigo e matava-me do mesmo modo.
Mostrei-lhe que não. O
mundo era assaz vasto, e eu tinha os meios de viver onde quer que houvesse ar
puro e muito sol; ele não chegaria até lá; só as grandes paixões são capazes de
grandes ações, e ele não a amava tanto que pudesse ir buscá-la, se ela
estivesse longe. Virgília fez um gesto de espanto e quase indignação; murmurou
que o marido gostava muito dela.
— Pode ser, respondi
eu; pode ser que sim…
Fui até a janela, e comecei
a rufar com os dedos no peitoril. Virgília chamou-me; deixei-me estar, a remoer
os meus zelos, a desejar estrangular o marido, se o tivesse ali à mão…
Justamente, nesse instante, apareceu na chácara o Lobo Neves. Não tremas assim,
leitora pálida; descansa, que não hei de rubricar esta lauda com um pingo de
sangue. Logo que apareceu na chácara, fiz-lhe um gesto amigo, acompanhado de
uma palavra graciosa; Virgília retirou-se apressadamente da sala, onde ele
entrou daí a três minutos.
— Está cá há muito
tempo? disse-me ele.
— Não.
Entrara sério, pesado,
derramando os olhos de um modo distraído, costume seu, que trocou logo por uma
verdadeira expansão de jovialidade, quando viu chegar o filho, o Nhonhô, o
futuro bacharel do capítulo VI; tomou-o nos braços, levantou-o ao ar, beijou-o
muitas vezes. Eu, que tinha ódio ao menino, afastei-me de ambos. Virgília
tornou à sala.
— Ah! respirou Lobo
Neves, sentando-se preguiçosamente no sofá.
— Cansado? perguntei
eu.
— Muito; aturei duas
maçadas de primeira ordem, uma na câmara e outra na rua. E ainda temos
terceira, acrescentou, olhando para a mulher.
— Que é? perguntou
Virgília.
— Um… Adivinha!
Virgília sentara-se ao
lado dele, pegou-lhe numa das mãos, compôs-lhe a gravata, e tornou a perguntar
o que era.
— Nada menos que um
camarote.
— Para a Candiani?
— Para a Candiani.
Virgília bateu palmas,
levantou-se, deu um beijo no filho, com um ar de alegria pueril, que destoava
muito da figura; depois perguntou se o camarote era de boca ou do centro,
consultou o marido, em voz baixa, acerca da toilette que faria, da ópera
que se cantava, e de não sei que outras coisas.
— Você janta conosco,
doutor, disse-me Lobo Neves.
— Veio para isso mesmo,
confirmou a mulher; diz que você possui o melhor vinho do Rio de Janeiro.
— Nem por isso bebe
muito.
Ao jantar, desmenti-o;
bebi mais do que costumava; ainda assim, menos do que era preciso para perder a
razão. Já estava excitado, fiquei um pouco mais. Era a primeira grande cólera
que eu sentia contra Virgília. Não olhei uma só vez para ela durante o jantar;
falei de política, da imprensa, do ministério, creio que falaria de teologia,
se a soubesse, ou se me lembrasse. Lobo Neves acompanhava-me com muita placidez
e dignidade, e até com certa benevolência superior; e tudo aquilo me irritava
também, e me tornava mais amargo e longo o jantar. Despedi-me apenas nos
levantamos da mesa.
— Até logo, não?
perguntou Lobo Neves.
— Pode ser.
E saí.
CAPÍTULO LXIV / A
TRANSAÇÃO
Vaguei pelas ruas e
recolhi-me às nove horas. Não podendo dormir, atirei-me a ler e escrever. Às
onze horas estava arrependido de não ter ido ao teatro, consultei o relógio,
quis vestir-me, e sair. Julguei, porém, que chegaria tarde; demais, era dar
prova de fraqueza. Evidentemente, Virgília começava a aborrecer-se de mim,
pensava eu. E esta ideia fez-me sucessivamente desesperado e frio, disposto a
esquecê-la e a matá-la. Via-a dali mesmo, reclinada no camarote, com os seus
magníficos braços nus, — os braços que eram meus, só meus, — fascinando os
olhos de todos, com o vestido soberbo que havia de ter, o colo de leite, os
cabelos postos em bandos, à maneira do tempo, e os brilhantes, menos luzidios
que os olhos dela… Via-a assim, e doía-me que a vissem outros. Depois,
começava a despi-la, a pôr de lado as jóias e sedas, a despenteá-la com as
minhas mãos sôfregas e lascivas, a torná-la, — não sei se mais bela, se mais
natural, — a torná-la minha, somente minha, unicamente minha.
No dia seguinte, não me
pude ter; fui cedo à casa de Virgília; achei-a com os olhos vermelhos de
chorar.
— Que houve? perguntei.
— Você não me ama, foi
a sua resposta; nunca me teve a menor soma de amor. Tratou-me ontem como se me
tivesse ódio. Se eu ao menos soubesse o que é que fiz! Mas não sei. Não me dirá
o que foi?
— Que foi o quê? Creio
que não houve nada.
— Nada? Tratou-me como
não se trata um cachorro…
A esta palavra,
peguei-lhe nas mãos, beijei-as, e duas lágrimas rebentaram-lhe dos olhos.
— Acabou, acabou, disse
eu.
Não tive ânimo de
arguir, e, aliás, argui-la de quê? Não era culpa dela se o marido a amava.
Disse-lhe que não me fizera coisa nenhuma, que eu tinha necessariamente ciúmes
do outro, que nem sempre o podia suportar de cara alegre; acrescentei que
talvez houvesse nele muita dissimulação, e que o melhor meio de fechar a porta
aos sustos e às dissensões era aceitar a minha ideia da véspera.
— Pensei nisso, acudiu
Virgília; uma casinha só nossa, solitária, metida num jardim, em alguma rua
escondida, não é? Acho a ideia boa; mas para que fugir?
Disse isto com o tom
ingênuo e preguiçoso de quem não cuida em mal, e o sorriso que lhe derreava os
cantos da boca trazia a mesma expressão de candidez. Então, afastando-me,
respondi:
— Você é que nunca me
teve amor.
— Eu?
— Sim, é uma egoísta!
prefere ver-me padecer todos os dias… é uma egoísta sem nome!
Virgília desatou a
chorar, e para não atrair gente, metia o lenço na boca, recalcava os soluços;
explosão que me desconcertou. Se alguém a ouvisse, perdia-se tudo. Inclinei-me
para ela, travei-lhe dos pulsos, sussurrei-lhe os nomes mais doces da nossa
intimidade; mostrei-lhe o perigo; o terror apaziguou-a.
— Não posso, disse ela
daí a alguns instantes; não deixo meu filho; se o levar, estou certa de que ele
me irá buscar ao fim do mundo. Não posso; mate-me você, se o quiser, ou deixe-me
morrer… Ah! meu Deus! meu Deus!
— Sossegue; olhe que
podem ouvi-la.
— Que ouçam! Não me
importa.
Estava ainda excitada;
pedi-lhe que esquecesse tudo, que me perdoasse, que eu era um doido, mas que a
minha insânia provinha dela e com ela acabaria. Virgília enxugou os olhos e
estendeu-me a mão. Sorrimos ambos; minutos depois, tornávamos ao assunto da
casinha solitária, em alguma rua escusa…
CAPÍTULO LXV / OLHEIROS
E ESCUTAS
Interrompeu-nos o rumor
de um carro na chácara. Veio um escravo dizer que era a baronesa X. Virgília
consultou-me com os olhos.
— Se a senhora está
assim com dor de cabeça, disse eu, parece que o melhor é não receber.
— Já se apeou?
perguntou Virgília ao escravo.
— Já se apeou; diz que
precisa muito de falar com sinhá!
— Que entre!
A baronesa entrou daí a
pouco. Não sei se contava comigo na sala; mas era impossível mostrar maior
alvoroço.
— Bons olhos o vejam!
exclamou. Onde se mete o senhor que não aparece em parte nenhuma? Pois olhe,
ontem admirou-me não o ver no teatro. A Candiani esteve deliciosa. Que mulher!
Gosta da Candiani? É natural. Os senhores são todos os mesmos. O barão dizia
ontem, no camarote, que uma só italiana vale por cinco brasileiras. Que
desaforo! e desaforo de velho, que é pior. Mas por que é que o senhor não foi
ontem ao teatro?
— Uma enxaqueca.
— Qual! Algum namoro;
não acha, Virgília? Pois, meu amigo, apresse-se, porque o senhor deve estar com
quarenta anos… ou perto disso. .. Não tem quarenta anos?
— Não lhe posso dizer
com certeza, respondi eu; mas se me dá licença, vou consultar a certidão de
batismo.
— Vá, vá… E
estendendo-me a mão: — Até quando? Sábado ficamos em casa; o barão está com
umas saudades suas…
Chegando à rua,
arrependi-me de ter saído. A baronesa era uma das pessoas que mais desconfiavam
de nós. Cinquenta e cinco anos, que pareciam quarenta, macia, risonha,
vestígios de beleza, porte elegante e maneiras finas. Não falava muito nem
sempre; possuía a grande arte de escutar os outros, espiando-os; reclinava-se
então na cadeira, desembainhava um olhar afiado e comprido, e deixava-se estar.
Os outros, não sabendo o que era, falavam, olhavam, gesticulavam, ao tempo que
ela olhava só, ora fixa, ora móbil, levando a astúcia ao ponto de olhar às
vezes para dentro de si, porque deixava cair as pálpebras; mas, como as
pestanas eram rótulas, o olhar continuava o seu ofício, remexendo a alma e a
vida dos outros.
A segunda pessoa era um
parente de Virgília, o Viegas, um cangalho de setenta invernos, chupado e
amarelado, que padecia de um reumatismo teimoso, de uma asma não menos teimosa
e de uma lesão de coração: era um hospital concentrado. Os olhos, porém luziam
de muita vida e saúde. Virgília, nas primeiras semanas, lhe tinha medo nenhum;
dizia-me que, quando o Viegas parecia espreitar, com o olhar fixo, estava
simplesmente contando dinheiro. Com efeito, era um grande avaro.
Havia ainda o primo de
Virgília, o Luís Dutra, que eu agora desarmava à força de lhe falar nos versos
e prosas, e de o apresentar aos conhecidos. Quando estes, ligando o nome à
pessoa, se mostravam contentes da apresentação, não há dúvida que Luís Dutra
exultava de felicidade; mas eu curava-me da felicidade com a esperança de que
ele nos não denunciasse nunca. Havia, enfim, umas duas ou três senhoras, vários
gamenhos, e os fâmulos, que naturalmente se desforravam assim da condição
servil, e tudo isso constituía uma verdadeira floresta de olheiros e escutas,
por entre os quais tínhamos de resvalar com a tática e maciez das cobras.
CAPÍTULO LXVI / AS
PERNAS
Ora, enquanto eu
pensava naquela gente, iam-me pernas levando, ruas abaixo, de modo que
insensivelmente me achei à porta do Hotel Pharoux. De costume jantava aí; mas,
não tendo deliberadamente andado, nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às
pernas, que a fizeram. Abençoadas pernas! E há quem vos trate com desdém ou
indiferença. Eu mesmo, até então, tinha-vos em má conta, zangava-me quando vos
fatigáveis, quando não podíeis ir além de certo ponto, e me deixáveis com o
desejo a avoaçar, à semelhança de galinha atada pelos pés.
Aquele caso, porém, foi
um raio de luz. Sim, pernas amigas, vós deixastes à minha cabeça o trabalho de
pensar em Virgília, e dissestes uma à outra: — Ele precisa comer, são horas de
jantar, vamos levá-lo ao Pharoux; dividamos a consciência dele, uma parte fique
lá com a dama, tomemos nós a outra, para que ele vá direito, não abalroe as
gentes e as carroças, tire o chapéu aos conhecidos, e finalmente chegue são e
salvo ao hotel. E cumpristes à risca o vosso propósito, amáveis pernas, o que
me obriga a imortalizar-vos nesta página.
CAPÍTULO LXVII / A
CASINHA
Jantei e fui a casa. Lá
achei uma caixa de charutos, que me mandara o Lobo Neves, embrulhada em papel
de seda, e ornada de fitinhas cor-de-rosa. Entendi, abri-a, e tirei este
bilhete:
Meu B…
Desconfiam de nós; tudo
está perdido; esqueça-me para sempre. Não nos veremos mais. Adeus; esqueça-se
da infeliz
V…a”.
Foi um golpe esta
carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri à casa de Virgília. Era
tempo; estava arrependida. Ao vão de uma janela, contou-me o que se passara com
a baronesa. A baronesa disse-lhe francamente que se falara muito, no teatro, na
noite anterior, a propósito da minha ausência do camarote do Lobo Neves; tinham
comentado as minhas relações na casa; em suma, éramos objeto da suspeita
pública. Concluiu dizendo que não sabia que fazer.
— O melhor é fugirmos,
insinuei.
— Nunca, respondeu ela
abanando a cabeça.
Vi que era impossível
separar duas coisas que no espírito dela estavam inteiramente ligadas: o nosso
amor e a consideração pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios
para conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe deixava uma. Talvez senti
alguma coisa semelhante a despeito; mas as comoções daqueles dois dias eram já
muitas, e o despeito morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha.
Com efeito, achei-a,
dias depois, expressamente feita, em um recanto da Gamboa. Um brinco! Nova,
caiada de fresco, com quatro janelas na frente e duas de cada lado, — todas com
venezianas cor de tijolo, — trepadeira nos cantos, jardim na frente; mistério e
solidão. Um brinco!
Convencionamos que iria
morar ali uma mulher, conhecida de Virgília, em cuja casa fora costureira e
agregada. Virgília exercia sobre ela verdadeira fascinação. Não se lhe diria
tudo; ela aceitaria facilmente o resto.
Para mim era aquilo uma
situação nova do nosso amor, uma aparência de posse exclusiva, de domínio
absoluto, alguma coisa que me faria adormecer a consciência e resguardar o
decoro. Já estava cansado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do
canapé, de todas essas coisas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa
duplicidade. Agora podia evitar os jantares frequentes, o chá de todas as
noites, enfim a presença do filho deles, meu cúmplice e meu inimigo. A casa
resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria à porta; — dali para dentro era o
infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem
leis, sem instituições, sem baronesas, sem olheiros, sem escutas, — um só
mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição, — a unidade
moral de todas as coisas pela exclusão das que me eram contrárias.
CAPÍTULO LXVIII / O
VERGALHO
Tais eram as reflexões
que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a
casa. Interrompeu um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O
outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — “Não,
perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a
cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
— Toma, diabo! dizia
ele; toma mais perdão, bêbado!
— Meu senhor! gemia o
outro.
— Cala a boca, besta!
replicava o vergalho.
Parei, olhei… Justos
céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio,
— o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e
pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
— É, sim, nhonhô.
— Fez-te alguma coisa?
— É um vadio e um
bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá
embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
— Está bom, perdoa-lhe,
disse eu.
— Pois não, nhonhô.
Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!
Saí do grupo, que me
olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma
infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria
matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres;
é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só
exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um
miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se
desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em criança,
montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e
sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das
pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição,
agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto
juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!
CAPÍTULO LXIX / UM
GRÃO DE SANDICE
Este caso faz-me
lembrar um doido que conheci. Chamava-se Romualdo e dizia ser Tamerlão. Era a
sua grande e única mania, e tinha uma curiosa maneira de a explicar.
— Eu sou o ilustre
Tamerlão, dizia ele. Outrora fui Romualdo, mas adoeci, e tomei tanto tártaro,
tanto tártaro, tanto tártaro, que fiquei Tártaro, e até rei dos Tártaros. O
tártaro tem a virtude de fazer Tártaros.
Pobre Romualdo! A gente
ria da resposta, mas é provável que o leitor não se ria, e com razão; eu não
lhe acho graça nenhuma. Ouvida, tinha algum chiste; mas assim contada, no papel,
e a propósito de um vergalho recebido e transferido, força é confessar que é
muito melhor voltar à casinha da Gamboa; deixemos os Romualdos e Prudêncios.
CAPÍTULO LXX / D.
PLÁCIDA
Voltemos à casinha. Não
serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor; envelheceu, enegreceu,
apodreceu, e o proprietário deitou-a abaixo para substituí-la por outra, três
vezes maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era estreito
para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas.
Vê agora a neutralidade
deste globo, que nos leva, através dos espaços, como uma lancha de náufragos,
que vai dar à costa: dorme hoje um casal de virtudes no mesmo espaço de chão
que sofreu um casal de pecados. Amanhã pode lá dormir um eclesiástico, depois
um assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos abençoarão esse
canto de Terra, que lhes deu algumas ilusões.
Virgília fez daquilo um
brinco; designou as alfaias mais idôneas, e dispô-las com a intuição estética
da mulher elegante; eu levei para lá alguns livros, e tudo ficou sob a guarda
de D. Plácida, suposta, e, a certos respeitos, verdadeira dona da casa.
Custou-lhe muito a
aceitar a casa; farejara a intenção e doía-lhe o ofício; mas afinal cedeu.
Creio que chorava, a princípio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, é certo que
não levantou os olhos para mim durante os primeiros dois meses; falava-me com
eles baixos, séria, carrancuda, às vezes triste. Eu queria angariá-la, e não me
dava por ofendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a
benevolência, depois a confiança. Quando obtive a confiança, imaginei uma
história patética dos meus amores com Virgília, um caso anterior ao casamento,
a resistência do pai, a dureza do marido, e não sei que outros toques de novela.
D. Plácida não rejeitou uma só página da novela; aceitou-as todas. Era uma
necessidade da consciência. Ao cabo de seis meses, quem nos visse a todos três
juntos diria que D. Plácida era minha sogra.
Não fui ingrato;
fiz-lhe um pecúlio de cinco contos, — os cinco contos achados em Botafogo, —
como um pão para a velhice. D. Plácida agradeceu-me com lágrimas nos olhos, e
nunca mais deixou de rezar por mim, todas as noites, diante de uma imagem da
Virgem, que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.
CAPÍTULO LXXI / O
SENÃO DO LIVRO
Começo a arrepender-me
deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente,
expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um
pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa
contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste
livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu
amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o
meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param,
resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…
E caem! — Folhas misérrimas
do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu
tivesse olhos, dar-vos-ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da
morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar…
Heis de cair.
CAPÍTULO LXXII / O
BIBLIÔMANO
Talvez suprima o
capítulo anterior; entre outros motivos, há aí, nas últimas linhas, uma frase
muito parecida com despropósito, e eu não quero dar pasto à crítica do futuro.
Olhai: daqui a setenta
anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho, que não ama nenhuma outra coisa além
dos livros, inclina-se sobre a página anterior, a ver se lhe descobre o
despropósito; lê, relê, treslê, desengonça as palavras, saca uma sílaba, depois
outra, mais outra e as restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos
os lados, contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada; não
acha o despropósito.
É um bibliômano. Não
conhece o autor; este nome de Brás Cubas não vem nos seus dicionários
biográficos. Achou o volume, por acaso, no pardieiro de um alfarrabista.
Comprou-o por duzentos réis. Indagou, pesquisou, esgaravatou, e veio a
descobrir que era um exemplar único… Único! Vós, que não só amais os livros,
senão que padeceis a mania deles, vós sabeis muito bem o valor desta palavra, e
adivinhais, portanto, as delícias de meu bibliômano. Ele rejeitaria a coroa das
Índias, o papado, todos os museus da Itália e da Holanda, se os houvesse de
trocar por esse único exemplar; e não porque seja o das minhas Memórias;
faria a mesma coisa com o Almanaque de Laemmert, uma vez que fosse
único.
O pior é o
despropósito. Lá continua o homem inclinado sobre a página, com uma lente no
olho direito, todo entregue à nobre e áspera função de decifrar o despropósito.
Já prometeu a si mesmo escrever uma breve memória, na qual relate o achado do
livro e a descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquela frase
obscura. Ao cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro,
mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao sol. Um exemplar único! Nesse
momento passa-lhe por baixo da janela um César ou um Cromwell, a caminho do
poder. Ele dá de ombros, fecha a janela, estira-se na rede e folheia o livro
devagar, com amor, aos goles… Um exemplar único!
CAPÍTULO LXXIII / O
“LUNCHEON”
O despropósito fez-me
perder outro capítulo. Que melhor não era dizer as coisas lisamente, sem todos
estes solavancos! Já comparei o meu estilo ao andar dos ébrios. Se a ideia vos
parece indecorosa, direi que ele é o que eram as minhas refeições com Virgília,
na casinha da Gamboa, onde às vezes fazíamos a nossa patuscada, o nosso luncheon.
Vinho, fruta, compotas. Comíamos, é verdade, mas era um comer virgulado de
palavrinhas doces, de olhares ternos, de criancices, uma infinidade desses
apartes do coração, aliás o verdadeiro, o ininterrupto discurso do amor. Às
vezes vinha o arrufo temperar o nímio adocicado da situação. Ela deixava-me,
refugiava-se num canto do canapé, ou ia para o interior ouvir as denguices de Dona
Plácida. Cinco ou dez minutos depois, reatávamos a palestra, como eu reato a
narração, para desatá-la outra vez. Note-se que, longe de termos horror ao
método, era nosso costume convidá-lo, na pessoa de D. Plácida, a sentar-se
conosco à mesa; mas D. Plácida não aceitava nunca.
— Você parece que não
gosta mais de mim, disse-lhe um dia Virgília.
— Virgem Nossa Senhora!
exclamou a boa dama alçando as mãos para o teto. Não gosto de Iaiá! Mas então
de quem é que eu gostaria neste mundo?
E, pegando-lhe nas
mãos, olhou-a fixamente, fixamente, fixamente, até molharem-se-lhe os olhos, de
tão fixo que era. Virgília acariciou-a muito; eu deixei-lhe uma pratinha na
algibeira do vestido.
CAPÍTULO LXXIV / HISTÓRIA
DE D. PLÁCIDA
Não te arrependas de
ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidência de D. Plácida, e
conseguintemente este capítulo. Dias depois, como eu a achasse só em casa,
travamos palestra, e ela contou-me em breves termos a sua história. Era filha
natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora. Perdeu
o pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei que outros trabalhos
de doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou dezesseis casou com um
alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viúva e
moça, ficaram a seu cargo a filha, com dois anos, e a mãe, cansada de
trabalhar. Tinha de sustentar a três pessoas. Fazia doces, que era o seu
ofício, mas cosia também, de dia e de noite, com afinco, para três ou quatro
lojas, e ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mês. Com isto
iam-se passando os anos, não a beleza, porque não a tivera nunca.
Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a que resistia.
— Se eu pudesse
encontrar outro marido, disse-me ela, creia que me teria casado; mas ninguém
queria casar comigo.
Um dos pretendentes
conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém, mais delicado que os outros, D.
Plácida despediu-o do mesmo modo, e, depois de o despedir, chorou muito. Continuou
a coser para fora e a escumar os tachos. A mãe tinha a rabugem do temperamento,
dos anos e da necessidade; mortificava a filha para que tomasse um dos maridos
de empréstimo e de ocasião que lha pediam. E bradava:
— Queres ser melhor do
que eu? Não sei donde te vêm essas fidúcias de pessoa rica. Minha camarada, a
vida não se arranja à toa; não se come vento. Ora esta! Moços tão bons como o
Policarpo da venda, coitado… Esperas algum fidalgo, não é?
D. Plácida jurou-me que
não esperava fidalgo nenhum. Era gênio. Queria ser casada. Sabia muito bem que
a mãe o não fora, e conhecia algumas que tinham só o seu moço delas; mas era
gênio e queria ser casada. Não queria também que a filha fosse outra coisa.
Trabalhava muito, queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao candeeiro, para
comer e não cair. Emagreceu, adoeceu, perdeu a mãe, enterrou-a por subscrição,
e continuou a trabalhar. A filha estava com quatorze anos; mas era muito
fraquinha, e não fazia nada, a não ser namorar os capadócios que lhe rondavam a
rótula. D. Plácida vivia com imensos cuidados, levando-a consigo, quando tinha
de ir entregar costuras. A gente das lojas arregalava e piscava os olhos,
convencida de que ela a levava para colher marido ou outra coisa. Alguns diziam
graçolas, faziam cumprimentos; a mãe chegou a receber propostas de dinheiro…
Interrompeu-se um
instante, e continuou logo:
— Minha filha fugiu-me;
foi com um sujeito, nem quero saber… Deixou-me só, mas tão triste, tão
triste, que pensei morrer. Não tinha ninguém mais no mundo e estava quase velha
e doente. Foi por esse tempo que conheci a família de Iaiá; boa gente, que me
deu que fazer, e até chegou a me dar casa. Estive lá muitos meses, um ano, mais
de um ano, agregada, costurando. Saí quando Iaiá casou. Depois vivi como Deus
foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas mãos… E mostrou-me as mãos
grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha. — Não se cria isto à
toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se cria… Felizmente, Iaiá me
protegeu, e o senhor doutor também… Eu tinha um medo de acabar na rua,
pedindo esmola…
Ao soltar a última
frase, D. Plácida teve um calafrio. Depois, como se tornasse a si, pareceu
atentar na inconveniência daquela confissão ao amante de uma mulher casada, e
começou a rir, a desdizer-se, a chamar-se tola, “cheia de fidúcias”, como lhe
dizia a mãe; enfim, cansada do meu silêncio, retirou-se da sala. Eu fiquei a
olhar para a ponta do botim.
CAPÍTULO LXXV / COMIGO
Podendo acontecer que
algum dos meus leitores tenha pulado o capítulo anterior, observo que é preciso
lê-lo para entender o que eu disse comigo, logo depois que D. Plácida saiu da
sala. O que eu disse foi isto:
— Assim, pois, o
sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua
colaboradora na vida de D. Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas
inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os
altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa
conjunção de luxúrias vadias brotou D. Plácida. É de crer que D. Plácida não
falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus
dias: — Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã
naturalmente lhe responderiam. — Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos,
os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na
faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez,
triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no
tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para
isso que te chamamos, num momento de simpatia.
CAPÍTULO LXXVI / O
ESTRUME
Súbito deu-me a
consciência um repelão, acusou-me de ter feito capitular a probidade de D.
Plácida, obrigando-a a um papel torpe, depois de uma longa vida de trabalho e
privações. Medianeira não era melhor que concubina, e eu tinha-a baixado a esse
ofício, à custa de obséquios e dinheiros. Foi o que me disse a consciência;
fiquei uns dez minutos sem saber que lhe replicasse. Ela acrescentou que eu me
aproveitara da fascinação exercida por Virgília sobre a ex-costureira, da
gratidão desta, enfim da necessidade. Notou a resistência de D. Plácida, as
lágrimas dos primeiros dias, as caras feias, os silêncios, os olhos baixos, e a
minha arte em suportar tudo isso, até vencê-la. E repuxou-me outra vez de um
modo irritado e nervoso.
Concordei que assim
era, mas aleguei que a velhice de D. Plácida estava agora ao abrigo da
mendicidade: era uma compensação. Se não fossem os meus amores, provavelmente
D. Plácida acabaria como tantas outras criaturas humanas; donde se poderia
deduzir que o vício é muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a
virtude seja uma flor cheirosa e sã. A consciência concordou, e eu fui abrir a
porta a Virgília.
CAPÍTULO LXXVII / ENTREVISTA
Virgília entrou risonha
e sossegada. Os tempos tinham levado os sustos e vexames. Que doce que era
vê-la chegar, nos primeiros dias, envergonhada e trêmula! Ia de sege, velado o
rosto, envolvida numa espécie de mantéu, que lhe disfarçava as ondulações do
talhe. Da primeira vez deixou-se cair no canapé, ofegante, escarlate, com os
olhos no chão; e, palavra! em nenhuma outra ocasião a achei tão bela, talvez
porque nunca me senti mais lisonjeado.
Agora, porém, como eu
dizia, tinham acabado os sustos e vexames; as entrevistas entravam no período
cronométrico. A intensidade do amor era a mesma; a diferença é que a chama
perdera o tresloucado dos primeiros dias para constituir-se um simples feixe de
raios, tranquilo e constante, como nos casamentos.
— Estou muito zangada
com você, disse ela sentando-se.
— Por quê?
— Por que não foi lá
ontem, como me tinha dito. O Damião perguntou muitas vezes se você não iria, ao
menos, tomar chá. Por que é que não foi?
Com efeito, eu havia
faltado à palavra que dera, e a culpa era toda de Virgília. Questão de ciúmes.
Essa mulher esplêndida sabia que o era, e gostava de o ouvir dizer, fosse em
voz alta ou baixa. Na antevéspera, em casa da baronesa, valsara duas vezes com
o mesmo peralta, depois de lhe escutar as cortesanices, ao canto de uma janela.
Estava tão alegre! tão derramada! tão cheia de si! Quando descobriu, entre as
minhas sobrancelhas, a ruga interrogativa e ameaçadora, não teve nenhum
sobressalto, nem ficou subitamente séria; mas deitou ao mar o peralta e as
cortesanices. Veio depois a mim, tomou-me o braço, e levou-me a outra sala,
menos povoada, onde se me queixou de cansaço, e disse muitas outras coisas, com
o ar pueril que costumava ter, em certas ocasiões, e eu ouvi-a quase sem
responder nada.
Agora mesmo, custava-me
responder alguma coisa, mas enfim contei-lhe o motivo da minha ausência… Não,
eternas estrelas, nunca vi olhos mais pasmados. A boca semiaberta, as
sobrancelhas arqueadas, uma estupefação visível, tangível, que se não podia
negar, tal foi a primeira réplica de Virgília; abanou a cabeça com um sorriso
de piedade e ternura, que inteiramente me confundiu.
— Ora, você!
E foi tirar o chapéu,
lépida, jovial como a menina que torna do colégio; depois veio a mim, que
estava sentado, deu-me pancadinha na testa, com um só dedo, a repetir: — Isto,
isto; — e eu não tive remédio senão rir também, e tudo acabou em galhofa. Era claro
que me enganara.
CAPÍTULO LXXVIII / A
PRESIDÊNCIA
Certo dia, meses
depois, entrou Lobo Neves em casa, dizendo que iria talvez ocupar uma
presidência de província. Olhei para Virgília, que empalideceu; ele, que a viu
empalidecer, perguntou-lhe:
— A modo que não
gostaste, Virgília?
Virgília abanou a
cabeça.
— Não me agrada muito,
foi a sua resposta.
Não se disse mais nada;
mas de noite Lobo Neves insistiu no projeto um pouco mais resolutamente do que
de tarde; dois dias depois declarou à mulher que a presidência era coisa
definitiva. Virgília não pôde dissimular a repugnância que isto lhe causava. O
marido respondia a tudo com as necessidades políticas.
— Não posso recusar o
que me pedem; é até conveniência nossa, do nosso futuro, dos teus brasões, meu
amor, porque eu prometi que serias marquesa, e nem baronesa estás. Dirás que
sou ambicioso? Sou-o deveras, mas é preciso que me não ponhas um peso nas asas
da ambição.
Virgília ficou
desorientada. No dia seguinte achei-a triste, na casa da Gamboa, à minha
espera; tinha dito tudo a D. Plácida, que buscava consolá-la como podia. Não
fiquei menos abatido.
— Você há de ir
conosco, disse-me Virgília.
— Está doida? Seria uma
insensatez.
— Mas então…?
— Então, é preciso
desfazer o projeto.
— É impossível.
— Já aceitou?
— Parece que sim.
Levantei-me, atirei o
chapéu a uma cadeira, e entrei a passear de um lado para outro, sem saber o que
faria. Cogitei largamente, e não achei nada. Enfim, cheguei-me a Virgília, que
estava sentada, e travei-lhe da mão; D. Plácida foi à janela.
— Nesta pequenina mão
está toda a minha existência, disse eu; você é responsável por ela; faça o que
lhe parecer.
Virgília teve um gesto
aflitivo; eu fui encostar-me ao consolo fronteiro. Decorreram alguns instantes
de silêncio; ouvíamos somente o latir de um cão, e não sei se o rumor da água,
que morria na praia. Vendo que não falava, olhei para ela. Virgília tinha os
olhos no chão, parados, sem luz, as mãos deixadas sobre os joelhos, com os
dedos cruzados, na atitude da suprema desesperança. Noutra ocasião, por
diferente motivo, é certo que eu me lançaria aos pés dela, e a ampararia com a
minha razão e a minha ternura; agora, porém, era preciso compeli-la ao esforço
de si mesma, ao sacrifício, à responsabilidade da nossa vida comum, e
conseguintemente desampará-la, deixá-la, e sair; foi o que fiz.
— Repito, a minha
felicidade está nas tuas mãos, disse eu.
Virgília quis
agarrar-me, mas eu já estava fora da porta. Cheguei a ouvir um prorromper de
lágrimas, e digo-lhes que estive a ponto de voltar, para as enxugar com um
beijo; mas subjuguei-me e saí.
CAPÍTULO LXXIX / COMPROMISSO
Não acabaria se
houvesse de contar pelo miúdo o que padeci nas primeiras horas. Vacilava entre
um querer e um não querer, entre a piedade que me empuxava à casa de Virgília e
outro sentimento, — egoísmo, supúnhamos, — que me dizia: — Fica; deixa-a a sós
com o problema, deixa-a que ela o resolverá no sentido do amor. Creio que essas
duas forças tinham igual intensidade, investiam e resistiam ao mesmo tempo, com
ardor, com tenacidade, e nenhuma cedia definitivamente. Às vezes sentia um
dentezinho de remorso; parecia-me que abusava da fraqueza de uma mulher amante
e culpada, sem nada sacrificar nem arriscar de mim próprio; e, quando ia a
capitular, vinha outra vez o amor, e me repetia o conselho egoísta, e eu ficava
irresoluto e inquieto, desejoso de a ver, e receoso de que a vista me levasse a
compartir a responsabilidade da solução.
Por fim interveio um
compromisso entre o egoísmo e a piedade; eu iria vê-la em casa, e só em casa,
em presença do marido, para lhe não dizer nada, à véspera do efeito da minha
intimação. Deste modo poderia conciliar as duas forças. Agora, que isto
escrevo, quer-me parecer que o compromisso era uma burla, que essa piedade era
ainda uma forma de egoísmo, e que a resolução de ir consolar Virgília não
passava de uma sugestão de meu próprio padecimento.
CAPÍTULO LXXX / DE
SECRETÁRIO
Na noite seguinte fui
efetivamente à casa do Lobo Neves; estavam ambos, Virgília muito triste, ele
muito jovial. Juro que ela sentiu certo alívio, quando os nossos olhos se
encontraram, cheios de curiosidade e ternura. Lobo Neves contou-me os planos
que levava para a presidência, as dificuldades locais, as esperanças, as
resoluções; estava tão contente! tão esperançado! Virgília, ao pé da mesa,
fingia ler um livro, mas por cima da página olhava-me de quando em quando,
interrogativa e ansiosa.
— O pior, disse-me de
repente o Lobo Neves, é que ainda não achei secretário.
— Não?
— Não, e tenho uma
ideia.
— Ah!
— Uma ideia… Quer
você dar um passeio ao Norte?
Não sei o que lhe
disse.
— Você é rico,
continuou ele, não precisa de um magro ordenado; mas se quisesse obsequiar-me,
ia de secretário comigo.
Meu espírito deu um
salto para trás, como se descobrisse uma serpente diante de si. Encarei o Lobo
Neves, fixamente, imperiosamente a ver se lhe apanhava algum pensamento
oculto… Nem sombra disso; o olhar vinha direito e franco, a placidez do rosto
era natural, não violenta, uma placidez salpicada de alegria. Respirei, e não
tive ânimo de olhar para Virgília; senti por cima da página o olhar dela, que
me pedia também a mesma coisa, e disse que sim, que iria. Na verdade, um
presidente, uma presidenta, um secretário, era resolver as coisas de um modo
administrativo.
CAPÍTULO LXXXI / A
RECONCILIAÇÃO
Contudo, ao sair de lá,
tive umas sombras de dúvida; cogitei se não ia expor insanamente a reputação de
Virgília, se não haveria outro meio razoável de combinar o Estado e a Gamboa.
Não achei nada. No dia seguinte, ao levantar-me da cama, trazia o espírito
feito e resoluto a aceitar a nomeação. Ao meio-dia, veio o criado dizer-me que
estava na sala uma senhora, coberta com um véu. Corro; era minha irmã Sabina.
— Isto não pode
continuar assim, disse ela; é preciso que, de uma vez por todas, façamos as
pazes. Nossa família está acabando; não havemos de ficar como dois inimigos.
— Mas se eu não te peço
outra coisa, mana! bradei estendendo-lhe os braços.
Sentei-a ao pé de mim,
falei-lhe do marido, da filha, dos negócios, de tudo. Tudo ia bem; a filha
estava linda como os amores. O marido viria mostrar-ma, se eu consentisse.
— Ora essa! irei eu
mesmo vê-la.
— Sim?
— Palavra.
— Tanto melhor!
respirou Sabina. É tempo de acabar com isto.
Achei-a mais gorda, e
talvez mais moça. Parecia ter vinte anos, e contava mais de trinta. Graciosa,
afável, nenhum acanhamento, nenhum ressentimento. Olhávamos um para o outro,
com as mãos seguras, falando de tudo e de nada, como dois namorados. Era minha
infância que ressurgia, fresca, travessa e loura; os anos iam caindo como as
fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que eu brincava em pequeno, e
deixavam-me ver a nossa casa, a nossa família, as nossas festas. Suportei a
recordação com algum esforço; mas um barbeiro da vizinhança lembrou-se de
zangarrear na clássica rabeca, e essa voz — porque até então a recordação era
muda — essa voz do passado, fanhosa e saudosa, a tal ponto me comoveu, que…
Os olhos dela estavam
secos. Sabina não herdara a flor amarela e mórbida. Que importa? Era minha
irmã, meu sangue, um pedaço de minha mãe, e eu disse-lhe com ternura, com
sinceridade… Súbito, ouço bater à porta da sala; vou abrir; era um anjinho de
cinco anos.
— Entra, Sara, disse
Sabina.
Era minha sobrinha.
Apanhei-a do chão, beijei-a muitas vezes; a pequena, espantada, empurrava-me o
ombro com a mãozinha, quebrando o corpo para descer… Nisto, aparece-me à
porta um chapéu, e logo um homem, o Cotrim, nada menos que o Cotrim. Eu estava
tão comovido, que deixei a filha e lancei-me aos braços do pai. Talvez essa
efusão o desconcertou um pouco; é certo que me pareceu acanhado. Simples
prólogo. Daí a pouco falávamos como bons amigos velhos. Nenhuma alusão ao
passado, muitos planos de futuro, promessa de jantarmos em casa um do outro.
Não deixei de dizer que essa troca de jantares podia ser que tivesse uma curta
interrupção, porque eu andava com ideias de uma viagem ao Norte. Sabina olhou
para o Cotrim, o Cotrim para Sabina; ambos concordaram que essas ideias não
tinham senso comum. Que diacho podia eu achar no Norte? Pois não era na corte,
em plena corte, que devia continuar a luzir, a meter num chinelo os rapazes do
tempo? Que, na verdade, nenhum havia que se me comparasse; ele, Cotrim,
acompanhava-me de longe, e, não obstante uma briga ridícula, teve sempre
interesse, orgulho, vaidade nos meus triunfos. Ouvia o que se dizia a meu
respeito, nas ruas e nas salas; era um concerto de louvores e admirações. E
deixa-se isso para ir passar alguns meses na província, sem necessidade, sem
motivo sério? A menos que não fosse política…
— Justamente política,
disse eu.
— Nem assim, replicou
ele daí a um instante. — E depois de outro silêncio: — Seja como for, venha
jantar hoje conosco.
— Certamente que vou;
mas, amanhã ou depois, hão de vir jantar comigo.
— Não sei, não sei,
objetou Sabina; casa de homem solteiro… Você precisa casar, mano. Também eu
quero uma sobrinha, ouviu?
Cotrim reprimiu-a com
um gesto, que não entendi bem. Não importa; a reconciliação de uma família vale
bem um gesto enigmático.
CAPÍTULO LXXXII / QUESTÃO
DE BOTÂNICA
Digam o que quiserem
dizer os hipocondríacos: a vida é uma coisa doce. Foi o que eu pensei comigo,
ao ver Sabina, o marido e a filha descerem de tropel as escadas, dizendo muitas
palavras afetuosas para cima, onde eu ficava — no patamar, — a dizer-lhes outras
tantas para baixo. Continuei a pensar que, na verdade, era feliz. Amava-me uma
mulher, tinha a confiança do marido, ia por secretário de ambos,
reconciliava-me com os meus. Que podia desejar mais, em vinte e quatro horas?
Nesse mesmo dia,
tratando de aparelhar os ânimos, comecei a espalhar que talvez fosse para o
Norte como secretário de província, a fim de realizar certos desígnios
políticos, que me eram pessoais. Disse-o na Rua do Ouvidor, repeti-o no dia
seguinte, no Pharoux e no teatro. Alguns, ligando a minha nomeação à do Lobo
Neves, que já andava em boatos, sorriam maliciosamente, outros batiam-me no
ombro. No teatro disse-me uma senhora que era levar muito longe o amor da
escultura. Referia-se às belas formas de Virgília.
Mas a alusão mais rasgada
que me fizeram foi em casa de Sabina, três dias depois. Fê-la um certo Garcez,
velho cirurgião, pequenino, trivial e grulha, que podia chegar aos setenta, aos
oitenta, aos noventa anos, sem adquirir jamais aquela compostura austera, que é
a gentileza do ancião. A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e
derradeira surpresa da natureza humana.
— Já sei, desta vez vai
ler Cícero, disse-me ele, ao saber da viagem.
— Cícero! exclamou
Sabina.
— Pois então? Seu mano
é um grande latinista. Traduz Virgílio de relance. Olhe que é Virgílio, e não
Virgília… não confunda…
E ria, de um riso
grosso, rasteiro e frívolo. Sabina olhou para mim, receosa de alguma réplica;
mas sorriu, quando me viu sorrir, e voltou o rosto para disfarçá-lo. As outras
pessoas olhavam-me com um ar de curiosidade, indulgência e simpatia; era
transparente que não acabavam de ouvir nenhuma novidade. O caso dos meus amores
andava mais público do que eu podia supor. Entretanto sorri, um sorriso curto,
fugitivo e guloso, — palreiro como as pegas de Sintra. Virgília era um belo
erro, e é tão fácil confessar um belo erro! Costumava ficar carrancudo, a
princípio, quando ouvia alguma alusão aos nossos amores; mas, palavra de honra!
sentia cá dentro uma impressão suave e lisonjeira. Uma vez, porém, aconteceu-me
sorrir, e continuei a fazê-lo das outras vezes. Não sei se há aí alguém que
explique o fenômeno. Eu explico-o assim: a princípio, o contentamento, sendo
interior, era por assim dizer o mesmo sorriso, mas abotoado; andando o tempo,
desabotoou-se em flor, e apareceu aos olhos do próximo. Simples questão de
botânica.
CAPÍTULO LXXXIII / 13
Cotrim tirou-me daquele
gozo, levando-me à janela. — Você quer que lhe diga uma coisa? perguntou ele; —
não faça essa viagem; é insensata, é perigosa.
— Por quê?
— Você bem sabe por
que, tornou ele: é, sobretudo, perigosa, muito perigosa. Aqui na corte, um caso
desses perde-se na multidão da gente e dos interesses; mas na província muda de
figura; e tratando-se de personagens políticos, é realmente insensatez. As
gazetas de oposição, logo que farejarem o negócio, passam a imprimi-lo com
todas as letras, e aí virão as chufas, os remoques, as alcunhas…
— Mas não entendo…
— Entende, entende. Em
verdade, seria bem pouco amigo nosso, se me negasse o que toda a gente sabe. Eu
sei disso há longos meses. Repito, não faça semelhante viagem; suporte a
ausência, que é melhor, e evite algum grande escândalo e maior desgosto…
Disse isto, e foi para
dentro. Eu deixei-me estar com os olhos no lampião da esquina, — um antigo
lampião de azeite, — triste, obscuro e recurvado, como um ponto de
interrogação. Que me cumpria fazer? Era o caso de Hamlet: ou dobrar-me à
fortuna, ou lutar com ela e subjugá-la. Por outros termos: embarcar ou não
embarcar. Esta era a questão. O lampião não me dizia nada. As palavras do
Cotrim ressoavam-me aos ouvidos da memória, de um modo muito diverso do das
palavras do Garcez. Talvez Cotrim tivesse razão; mas podia eu separar-me de
Virgília?
Sabina veio ter comigo,
e perguntou-me em que estava pensando. Respondi que em coisa nenhuma, que tinha
sono e ia para casa. Sabina esteve um instante calada. — O que você precisa,
sei eu; é uma noiva. Deixe, que eu ainda arranjo uma noiva para você. Saí de lá
opresso, desorientado. Tudo pronto para embarcar, — espírito e coração, — e eis
aí me surge esse porteiro das conveniências, que me pede o cartão de ingresso.
Dei ao diabo as conveniências, e com elas a constituição, o corpo legislativo,
o ministério, tudo.
No dia seguinte, abro
uma folha política e leio a notícia de que, por decretos de 13, tínhamos sido
nomeados presidente e secretário da província de *** o Lobo Neves e eu. Escrevi
imediatamente a Virgília, e segui duas horas depois para a Gamboa. Coitada de
D. Plácida! Estava cada vez mais aflita; perguntou-me se esqueceríamos a nossa
velha, se a ausência era grande e se a província ficava longe. Consolei-a; mas
eu próprio precisava de consolações; a objeção de Cotrim afligia-me. Virgília
chegou daí a pouco, lépida como uma andorinha; mas, ao ver-me triste, ficou
muito séria.
— Que aconteceu?
— Vacilo, disse eu; não
sei se devo aceitar…
Virgília deixou-se
cair, no canapé, a rir. — Por quê? disse ela.
— Não é conveniente, dá
muito na vista…
— Mas nós não já vamos.
— Como assim?
Contou-me que o marido
ia recusar a nomeação, e por motivo que só lhe disse, a ela, pedindo-lhe o
maior segredo; não podia confessá-lo a ninguém mais. — É pueril, observou ele,
é ridículo; mas em suma, é um motivo poderoso para mim. Referiu-lhe que o
decreto trazia a data de 13, e que esse número significava para ele uma
recordação fúnebre. O pai morreu num dia 13, treze dias depois de um jantar em
que havia treze pessoas. A casa em que morrera a mãe tinha o n.º 13. Et
coetera. Era um algarismo fatídico. Não podia alegar semelhante coisa ao
ministro; dir-lhe-ia que tinha razões particulares para não aceitar. Eu fiquei
como há de estar o leitor, — um pouco assombrado com esse sacrifício a um
número; mas, sendo ele ambicioso, o sacrifício devia ser sincero…
CAPÍTULO LXXXIV / O
CONFLITO
Número fatídico,
lembras-te que te abençoei muitas vezes? Assim também as virgens ruivas de
Tebas deviam abençoar a égua, de ruiva crina, que as substituiu no sacrifício
de Pelópidas, — uma donosa égua, que lá morreu, coberta de flores, sem que
ninguém lhe desse nunca uma palavra de saudade. Pois dou-te eu, égua piedosa,
não só pela morte havida, como porque, entre as donzelas escapas, não é
impossível que figurasse uma avó dos Cubas… Número fatídico, tu foste a nossa
salvação. Não me confessou o marido a causa da recusa; disse-me também que eram
negócios particulares, e o rosto sério, convencido, com que eu o escutei, fez
honra à dissimulação humana. Ele é que mal podia encobrir a tristeza profunda
que o minava; falava pouco, absorvia-se, metia-se em casa, a ler. Outras vezes
recebia, e então conversava e ria muito, com estrépito e afetação. Oprimiam-no
duas coisas, — a ambição, que um escrúpulo desasara, e logo depois a dúvida, e
talvez o arrependimento, — mas um arrependimento, que viria outra vez, se
repetisse a hipótese, porque o fundo supersticioso existia. Duvidava da
superstição, sem chegar a rejeitá-la. Essa persistência de um sentimento, que
repugna ao mesmo indivíduo, era um fenômeno digno de alguma atenção. Mas eu
preferia a pura ingenuidade de D. Plácida, quando confessava não poder ver um
sapato voltado para o ar.
— Que tem isso?
perguntava-lhe eu.
— Faz mal, era a sua
resposta.
Isto somente, esta
única resposta, que valia para ela o livro dos sete selos. Faz mal.
Disseram-lhe isso em criança, sem outra explicação, e ela contentava-se com a
certeza do mal. Já não acontecia mesma coisa quando se falava de apontar uma
estrela com o dedo; aí sabia perfeitamente que era caso de criar uma verruga.
Ou verruga ou outra
coisa, que valia isso, para quem não perde uma presidência de província?
Tolera-se uma superstição gratuita ou barata; é insuportável a que leva uma
parte da vida. Este era o caso do Lobo Neves com o acréscimo da dúvida e do
terror de haver sido ridículo. E mais este outro acréscimo, que o ministro não
acreditou nos motivos particulares; atribuiu a recusa do Lobo Neves a manejos
políticos, ilusão complicada de algumas aparências; tratou-o mal, comunicou a
desconfiança aos colegas; sobrevieram incidentes; enfim, com o tempo, o
presidente resignatário foi para a oposição.
CAPÍTULO LXXXV / O
CIMO DA MONTANHA
Quem escapa a um perigo
ama a vida com outra intensidade. Entrei a amar Virgília com muito mais ardor,
depois que estive a pique de a perder, e a mesma coisa lhe aconteceu a ela.
Assim, a presidência não fez mais do que avivar a afeição primitiva; foi a
droga com que tornamos mais saboroso o nosso amor, e mais prezado também. Nos primeiros
dias, depois daquele incidente, folgávamos de imaginar a dor da separação, se
houvesse separação, a tristeza de um e de outro, à proporção que o mar, como
uma toalha elástica, se fosse dilatando entre nós; e, semelhantes às crianças,
que se achegam ao regaço das mães, para fugir a uma simples careta, fugíamos do
suposto perigo, apertando-nos com abraços.
— Minha boa Virgília!
— Meu amor!
— Tu és minha, não?
— Tua, tua…
E assim reatamos o fio
da aventura como a sultana Scheherazade o dos seus contos. Esse foi, cuido eu,
o ponto máximo do nosso amor, o cimo da montanha, donde por algum tempo
divisamos os vale de leste e de oeste, e por cima de nós o céu tranquilo e
azul. Repousado esse tempo, começamos a descer a encosta, com as mãos presas ou
soltas, mas a descer, a descer…
CAPÍTULO LXXXVI / O
MISTÉRIO
Serra abaixo, como eu a
visse um pouco diferente, não sei se abatida ou outra coisa, perguntei-lhe o
que tinha; calou-se, fez um gesto de enfado, de mal-estar, de fadiga; ateimei,
ela disse-me que… Um fluido sutil percorreu todo o meu corpo: sensação forte,
rápida, singular, que eu não chegarei jamais a fixar no papel. Travei-lhe das
mãos, puxei-a levemente a mim, e beijei-a na testa, com uma delicadeza de
zéfiro e uma gravidade de Abraão. Ela estremeceu, colheu-me a cabeça entre as
palmas, fitou-me os olhos, depois afagou-me com um gesto maternal… Eis aí um
mistério; deixemos ao leitor o tempo de decifrar este mistério.
CAPÍTULO LXXXVII / GEOLOGIA
Sucedeu por esse tempo
um desastre; a morte do Viegas. O Viegas passou aí de relance, com os seus
setenta anos, abafados de asma, desconjuntados de reumatismo, e uma lesão de
coração por quebra. Foi um dos finos espreitadores da nossa aventura. Virgília
nutria grandes esperanças em que esse velho parente, avaro como um sepulcro,
lhe amparasse o futuro do filho, com algum legado; e, se o marido tinha iguais
pensamentos, encobria-os ou estrangulava-os. Tudo se deve dizer: havia no Lobo
Neves certa dignidade fundamental, uma camada de rocha, que resistia ao
comércio dos homens. As outras, as camadas de cima, terra solta e areia, levou-lhes
a vida, que é um enxurro perpétuo. Se o leitor ainda se lembra do capítulo
XXIII, observará que é agora a segunda vez que eu comparo a vida a um enxurro;
mas também há de reparar que desta vez acrescento-lhe um adjetivo — perpétuo. E
Deus sabe a força de um adjetivo, principalmente em países novos e cálidos.
O que é novo neste
livro é a geologia moral do Lobo Neves, e provavelmente a do cavalheiro, que me
está lendo. Sim, essas camadas de caráter, que a vida altera, conserva ou
dissolve, conforme a resistência delas, essas camadas mereceriam um capítulo,
que eu não escrevo, por não alongar a narração. Digo apenas que o homem mais
probo que conheci em minha vida foi um certo Jacó Medeiros ou Jacó Valadares,
não me recorda bem o nome. Talvez fosse Jacó Rodrigues; em suma, Jacó. Era a
probidade em pessoa; podia ser rico, violentando um pequenino escrúpulo, e não
quis; deixou ir pelas mãos fora nada menos de uns quatrocentos contos; tinha a
probidade tão exemplar, que chegava a ser miúda e cansativa. Um dia, como nos
achássemos, a sós, em casa dele, em boa palestra, vieram dizer que o procurava
o Dr. B., um sujeito enfadonho. Jacó mandou dizer que não estava em casa.
— Não pega, bradou uma
voz do corredor; cá estou de dentro.
E, com efeito, era o
Dr. B., que apareceu logo à porta da sala. Jacó foi recebê-lo, afirmando que
cuidava ser outra pessoa, e não ele, e acrescentando que tinha muito prazer com
a visita, o que nos rendeu hora e meia de enfado mortal, e isto mesmo, porque
Jacó tirou o relógio; o Dr. B. perguntou-lhe então se ia sair.
— Com minha mulher,
disse Jacó.
Retirou-se o Dr. B. e
respiramos. Uma vez respirados, disse eu ao Jacó que ele acabava de mentir
quatro vezes, em menos de duas horas: a primeira, negando-se, a segunda,
alegrando-se com a presença do importuno; a terceira, dizendo que ia sair; a
quarta, acrescentando que com a mulher. Jacó refletiu um instante, depois
confessou a justeza da minha observação, mas desculpou-se dizendo que a
veracidade absoluta era incompatível com um estado social adiantado, e que a
paz das cidades só se podia obter à custa de embaçadelas recíprocas… Ah!
lembra-me agora: chamava-se Jacó Tavares.
CAPÍTULO LXXXVIII / O
ENFERMO
Não é preciso dizer que
refutei tão perniciosa doutrina, com os mais elementares argumentos; mas ele
estava tão vexado do meu reparo, que resistiu até o fim, mostrando certo calor
fictício, talvez para atordoar a consciência.
O caso de Virgília
tinha alguma gravidade mais. Ela era menos escrupulosa que o marido:
manifestava claramente as esperanças que trazia no legado, cumulava o parente
de todas as cortesias, atenções e afagos que poderiam render, pelo menos, um
codicilo. Propriamente, adulava-o; mas eu observei que a adulação das mulheres
não é a mesma coisa que a dos homens. Esta orça pela servilidade; a outra
confunde-se com a afeição. As formas graciosamente curvas, a palavra doce, a
mesma fraqueza física dão à ação lisonjeira da mulher, uma cor local, um
aspecto legítimo. Não importa a idade do adulado; a mulher há de ter sempre
para ele uns ares de mãe ou de irmã, — ou ainda de enfermeira, outro ofício
feminil, em que o mais hábil dos homens carecerá sempre de um quid, um
fluido, alguma coisa.
Era o que eu pensava
comigo, quando Virgília se desfazia toda em afagos ao velho parente. Ela ia
recebê-lo à porta, falando e rindo, tirava-lhe o chapéu e a bengala, dava-lhe o
braço e levava-o a uma cadeira, ou à cadeira, porque havia lá em casa a
“cadeira do Viegas”, obra especial, conchegada, feita para gente enferma ou
anciã. Ia fechar a janela próxima, se havia alguma brisa, ou abri-la, se estava
calor, mas com cuidado, combinando de modo que lhe não desse um golpe de ar.
— Então? Hoje está mais
fortezinho…
— Qual! Passei mal a
noite: o diabo da asma não me deixa.
E bufava o homem,
repousando a pouco e pouco do cansaço da entrada e da subida, não do caminho,
porque ia sempre de sege. Ao lado, um pouco mais para a frente, sentava-se
Virgília, numa banquinha, com as mãos nos joelhos do enfermo. Entretanto, o
nhonhô chegava à sala, sem os pulos do costume, mas discreto, meigo, sério.
Viegas gostava muito dele.
— Vem cá, nhonhô,
dizia-lhe; e a custo introduzia a mão na ampla algibeira, tirava uma caixinha
de pastilhas, metia uma na boca e dava outra ao pequeno. Pastilhas
antiasmáticas. O pequeno dizia que eram muito boas.
Repetia-se isto, com
variantes. Como o Viegas gostasse de jogar damas, Virgília cumpria-lhe o
desejo, aturando-o por largo tempo, a mover as pedras com a mão frouxa e tarda.
Outras vezes, desciam a passear na chácara, dando-lhe ela o braço, que ele nem
sempre aceitava, por dizer-se rijo e capaz de andar uma légua. Iam, sentavam-se
tornavam a ir, a falar de coisas várias, ora de um negócio de família, ora de
uma bisbilhotice de sala, ora enfim de uma casa que ele meditava construir,
para residência própria, casa de feitio moderno, porque a dele era das antigas,
contemporânea de el-rei D. João VI, à maneira de algumas que ainda hoje (creio
eu) se podem ver no bairro de São Cristóvão, com as suas grossas colunas na frente.
Parecia-lhe que o casarão em que morava podia ser substituído, e já tinha
encomendado o risco a um pedreiro de fama. Ah! então sim, então é que Virgília
chegaria a ver o que era um velho de gosto.
Falava, como se pode
supor, lentamente e a custo, intervalado de uma arfagem incômoda para ele e
para os outros. De quando em quando, vinha um acesso de tosse; curvo, gemendo,
levava o lenço à boca, e investigava-o; passado o acesso, tornava ao plano da
casa, que devia ter tais e tais quartos, um terraço, cachoeira, um primor.
CAPÍTULO LXXXIX / IN
EXTREMIS
— Amanhã vou passar o
dia em casa do Viegas, disse-me ela uma vez. Coitado! não tem ninguém…
Viegas caíra na cama,
definitivamente; a filha, casada, adoecera justamente agora, e não podia fazer-lhe
companhia. Virgília ia lá de quando em quando. Eu aproveitei a circunstância
para passar todo aquele dia ao pé dela. Eram duas horas da tarde quando
cheguei. Viegas tossia com tal força que me fazia arder o peito; no intervalo
dos acessos debatia o preço de uma casa, com um sujeito magro. O sujeito
oferecia trinta contos. Viegas exigia quarenta. O comprador instava como quem
receia perder o trem da estrada de ferro, mas Viegas não cedia; recusou
primeiramente os trinta contos, depois mais dois, depois mais três, enfim teve
um forte acesso, que lhe tolheu a fala durante quinze minutos. O comprador
acarinhou-o muito, arranjou-lhe os travesseiros, ofereceu-lhe trinta e seis
contos.
— Nunca! gemeu o
enfermo.
Mandou buscar um maço
de papéis à escrivaninha; não tendo forças para tirar a fita de borracha que
prendia os papéis, pediu-me que os deslaçasse: fi-lo. Eram as contas das
despesas com a construção da casa: contas de pedreiro, de carpinteiro, de
pintor; contas do papel da sala de visitas, da sala de jantar, das alcovas, dos
gabinetes; contas das ferragens; custo do terreno. Ele abria-as, uma por uma,
com a mão trêmula, e pedia-me que as lesse, e eu lia-as.
— Veja; mil e duzentos,
papel de mil e duzentos a peça. Dobradiças francesas… Veja, é de graça,
concluiu ele depois de lida a última conta.
— Pois bem… mas…
— Quarenta contos; não
lhe dou por menos. Só os juros… faça a conta dos juros…
Vinham tossidas estas
palavras, às golfadas, às sílabas, como se fossem migalhas de um pulmão
desfeito. Nas órbitas fundas rolavam os olhos lampejantes, que me faziam
lembrar a lamparina da madrugada. Sob o lençol desenhava-se a estrutura óssea
do corpo, pontudo em dois lugares, nos joelhos e nos pés; a pele amarelada,
bamba, rugosa, revestia apenas a caveira de um rosto sem expressão; uma
carapuça de algodão branco cobria-lhe o crânio rapado pelo tempo.
— Então? disse o
sujeito magro.
Fiz-lhe sinal para que
não insistisse, e ele calou-se por alguns instantes. O doente ficou a olhar
para o teto, calado, a arfar muito: Virgília empalideceu, levantou-se, foi até
à janela. Suspeitara a morte e tinha medo. Eu procurei falar de outras coisas.
O sujeito magro contou uma anedota, e tornou a tratar da casa, alteando a
proposta.
— Trinta e oito contos,
disse ele.
— Ahn?… gemeu o
enfermo.
O sujeito magro
aproximou-se da cama, pegou-lhe na mão, e sentiu-a fria. Eu acheguei-me ao
doente, perguntei-lhe se sentia alguma coisa, se queria tomar um cálice de
vinho.
— Não… não… quar…
quaren… quar… quar…
Teve um acesso de
tosse, e foi o último; daí a pouco expirava ele, com grande consternação do
sujeito magro, que me confessou depois a disposição em que estava de oferecer
os quarenta contos; mas era tarde.
CAPÍTULO XC / O
VELHO COLÓQUIO DE ADÃO E CAIM
Nada. Nenhuma lembrança
testamentária, uma pastilha que fosse, com que do todo em todo não parecesse
ingrato ou esquecido. Nada. Virgília travou raivosa esse malogro, e disse-me
com certa cautela, não pela coisa em si, senão porque entendia com o filho, de
quem sabia que eu não gostava muito, nem pouco. Insinuei-lhe que não devia
pensar mais em semelhante negócio. O melhor de tudo era esquecer o defunto, um
lorpa, um cainho sem nome, e tratar de coisas alegres; o nosso filho, por
exemplo…
Lá me escapou a
decifração do mistério, esse doce mistério de algumas semanas antes, quando
Virgília me pareceu um pouco diferente do que era. Um filho! Um ser tirado do
meu ser! Esta era a minha preocupação exclusiva daquele tempo. Olhos do mundo,
zelos do marido, morte do Viegas, nada me interessava por então, nem conflitos
políticos, nem revoluções, nem terremotos, nem nada. Eu só pensava naquele
embrião anônimo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia: é teu
filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa voluptuosidade
indefinível, e não sei que assomos de orgulho. Sentia-me homem.
O melhor é que
conversávamos os dois, o embrião e eu, falávamos de coisas presentes e futuras.
O maroto amava-me, era um pelintra gracioso, dava-me pancadinhas na cara com as
mãozinhas gordas, ou então traçava a beca de bacharel, porque ele havia de ser
bacharel e fazia um discurso na Câmara dos Deputados. E o pai a ouvi-lo de uma
tribuna, com os olhos rasos de lágrimas. De bacharel passava outra vez à
escola, pequenino, lousa e livros debaixo do braço, ou então caía no berço para
tornar a erguer-se homem. Em vão buscava fixar no espírito uma idade, uma
atitude: esse embrião tinha a meus olhos todos os tamanhos e gestos: ele mamava,
ele escrevia, ele valsava, ele era o interminável nos limites de um quarto de
hora, — baby e deputado, colegial e pintalegrete. Às vezes, ao pé de
Virgília, esquecia-me dela e de tudo; Virgília sacudia-me, reprochava-me o
silêncio; dizia que eu já lhe não queria nada. A verdade é que estava em
diálogo com o embrião; era o velho colóquio de Adão e Caim, uma conversa sem
palavras entre a vida e a vida, o mistério e o mistério.
CAPÍTULO XCI / UMA
CARTA EXTRAORDINÁRIA
Por esse tempo recebi
uma carta extraordinária, acompanhada de um objeto não menos extraordinário.
Eis o que a carta dizia:
“Meu caro Brás Cubas,
Há tempos, no Passeio
Público, tomei-lhe de empréstimo um relógio. Tenho a satisfação de restituir-lhe
com esta carta. A diferença é que não é o mesmo, porém outro, não digo
superior, mas igual ao primeiro. Que voulez-vous,
monseigneur? — como dizia Fígaro, — c’est la misère. Muitas coisas se deram
depois do nosso encontro; irei contá-las pelo miúdo, se me não fechar a porta.
Saiba que já não trago aquelas botas caducas, nem envergo uma famosa
sobrecasaca cujas abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu degrau da
escada de São Francisco; finalmente, almoço.
Dito isto, peço licença
para ir um dia destes expor-lhe um trabalho, fruto de longo estudo, um novo
sistema de filosofia, que não só explica e descreve a origem e a consumação das
coisas, como faz dar um grande passo adiante de Zenon e Sêneca, cujo estoicismo
era um verdadeiro brinco de crianças ao pé da minha receita moral. É singularmente
espantoso esse meu sistema; retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura
a felicidade, e enche de imensa glória o nosso país. Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas,
princípio das coisas. Minha primeira ideia revelava uma grande enfatuação: era
chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta. E
com certeza exprimia menos. Verá, meu caro Brás Cubas, verá que é deveras um
monumento; e se alguma coisa há que possa fazer-me esquecer as amarguras da
vida, é o gosto de haver enfim apanhado a verdade e a felicidade. Ei-las na
minha mão essas duas esquivas; após tantos séculos de lutas, pesquisas,
descobertas, sistemas e quedas, ei-las nas mãos do homem. Até breve, meu caro
Brás Cubas. Saudades do
Velho amigo
JOAQUIM BORBA DOS
SANTOS.”
Li esta carta sem
entendê-la. Vinha com ela uma boceta contendo um bonito relógio com as minhas
iniciais gravadas, e esta frase: Lembrança do velho Quincas. Voltei à
carta, reli-a com pausa, com atenção. A restituição do relógio excluía toda a
ideia de burla; a lucidez, a serenidade, a convicção, — um pouco jactanciosa, é
certo, — pareciam excluir a suspeita de insensatez. Naturalmente o Quincas
Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas, e a abastança devolvera-lhe
a primitiva dignidade. Não digo tanto; há coisas que se não podem reaver
integralmente; mas enfim a regeneração não era impossível. Guardei a carta e o
relógio, e esperei a filosofia.
CAPÍTULO XCII / UM
HOMEM EXTRAORDINÁRIO
Já agora acabo com as
coisas extraordinárias. Vinha de guardar a carta e o relógio, quando me
procurou um homem magro e meão, com um bilhete do Cotrim, convidando-me para
jantar. O portador era casado com uma irmã do Cotrim, chegara poucos dias antes
do Norte, chamava-se Damasceno, e fizera a revolução de 1831. Foi ele mesmo que
me disse isto, no espaço de cinco minutos. Saíra do Rio de Janeiro, por
desacordo com o Regente, que era um asno, pouco menos asno do que os ministros
que serviram com ele. De resto, a revolução estava outra vez às portas. Neste
ponto, conquanto trouxesse as ideias políticas um pouco baralhadas, consegui
organizar e formular o governo de suas preferências: era um despotismo
temperado, — não por cantigas, como dizem alhures, — mas por penachos da guarda
nacional. Só não pude alcançar se ele queria o despotismo de um, de três, de
trinta ou de trezentos. Opinava por várias coisas, entre outras, o
desenvolvimento do tráfico dos africanos e a expulsão dos ingleses. Gostava
muito de teatro; logo que chegou foi ao Teatro de São Pedro, onde viu um drama
soberbo, a Maria Joana, e uma comédia muito interessante, Kettly,
ou a volta à Suíça. Também gostara muito da Deperini, na Safo, ou
na Ana Bolena, não se lembrava bem. Mas a Candiani! sim, senhor, era
papa-fina. Agora queria ouvir o Ernani, que a filha dele cantava em
casa, ao piano: Ernani, Ernani, involami… — E dizia isto levantando-se
e cantarolando a meia voz. — No Norte essas coisas chegavam como um eco. A
filha morria por ouvir todas as óperas. Tinha uma voz muito mimosa a filha. E
gosto, muito gosto. Ah! ele estava ansioso por voltar ao Rio de Janeiro. Já
havia corrido a cidade toda, com umas saudades… Palavra! em alguns lugares
teve vontade de chorar. Mas não embarcaria mais. Enjoara muito a bordo, como
todos os outros passageiros, exceto um inglês… Que os levasse o diabo os
ingleses! Isto não ficava direito sem irem todos eles barra fora. Que é que a
Inglaterra podia fazer-nos? Se ele encontrasse algumas pessoas de boa vontade,
era obra de uma noite a expulsão de tais godemes… Graças a Deus, tinha
patriotismo, — e batia no peito, — o que não admirava porque era de família;
descendia de um antigo capitão-mor muito patriota. Sim, não era nenhum
pé-rapado. Viesse a ocasião, e ele havia de mostrar de que pau era a canoa…
Mas fazia-se tarde, ia dizer que eu não faltaria ao jantar, e lá me esperava
para maior palestra. — Levei-o até à porta da sala; ele parou dizendo que
simpatizava muito comigo. Quando casara, estava eu na Europa. Conheceu meu pai,
um homem às direitas, com quem dançara num célebre baile da Praia Grande…
Coisas! coisas! Falaria depois, fazia-se tarde, tinha de ir levar a resposta ao
Cotrim. Saiu; fechei-lhe a porta…
CAPÍTULO XCIII / O
JANTAR
Que suplício que foi o
jantar! Felizmente, Sabina fez-me sentar ao pé da filha do Damasceno, uma D.
Eulália, ou mais familiarmente Nhã-loló, moça graciosa, um tanto acanhada a
princípio, mas só a princípio. Faltava-lhe elegância, mas compensava-a com os
olhos, que eram soberbos e só tinham o defeito de se não arrancarem de mim,
exceto quando desciam ao prato; mas Nhã-loló comia tão pouco, que quase não
olhava para o prato. De noite cantou; a voz era como dizia o pai, “muito
mimosa”. Não obstante, esquivei-me. Sabina veio até à porta, e perguntou-me que
tal achara a filha do Damasceno.
— Assim, assim.
— Muito simpática, não
é? acudiu ela; falta-lhe um pouco mais de corte. Mas que coração! é uma pérola.
Bem boa noiva para você.
— Não gosto de pérolas.
— Casmurro! Para quando
é que você se guarda? para quando estiver a cair de maduro, já sei. Pois, meu
rico, quer você queira quer não, há de casar com Nhã-loló.
E dizia isto a bater-me
na face com os dedos, meiga como uma pomba, e ao mesmo tempo intimativa e
resoluta. Santo Deus! seria esse o motivo da reconciliação? Fiquei um pouco
desconsolado com a ideia, mas uma voz misteriosa chamava-me à casa do Lobo
Neves; disse adeus a Sabina e às suas ameaças.
CAPÍTULO XCIV / A
CAUSA SECRETA
— Como está a minha
querida mamãe? A esta palavra, Virgília amuou-se, como sempre. Estava ao canto
de uma janela, sozinha, a olhar para a lua, e recebeu-me alegremente; mas
quando lhe falei no nosso filho amuou-se. Não gostava de semelhante alusão,
aborreciam-lhe as minhas antecipadas carícias paternais. Eu, para quem ela era
já uma pessoa sagrada, uma âmbula divina, deixava-a estar quieta. Supus a
princípio que o embrião, esse perfil do incógnito, projetando-se na nossa
aventura, lhe restituíra a consciência do mal. Enganava-me. Nunca Virgília me
parecera mais expansiva, mais sem reservas, menos preocupada dos outros e do
marido. Não eram remorsos. Imaginei também que a concepção seria um puro
invento, um modo de prender-me a ela, recurso sem longa eficácia, que talvez
começava de oprimi-la. Não era absurda esta hipótese; a minha doce Virgília
mentia às vezes, com tanta graça!
Naquela noite descobri
a causa verdadeira. Era medo do parto e vexame da gravidez. Padecera muito
quando lhe nasceu o primeiro filho; e essa hora, feita de minutos de vida e
minutos de morte, dava-lhe já imaginariamente os calafrios do patíbulo. Quanto
ao vexame, complicava-se ainda da forçada privação de certos hábitos da vida
elegante. Com certeza, era isso mesmo; dei-lhe a entender, repreendendo-a, um
pouco em nome dos meus direitos de pai. Virgília fitou-me; em seguida desviou
os olhos e sorriu de um jeito incrédulo.
CAPÍTULO XCV /
FLORES DE ANTANHO
Onde estão elas, as
flores de antanho? Uma tarde, após algumas semanas de gestação, esboroou-se
todo o edifício das minhas quimeras paternais. Foi-se o embrião, naquele ponto
em que se não distingue Laplace de uma tartaruga. Tive a notícia por boca do
Lobo Neves, que me deixou na sala e acompanhou o médico à alcova da frustrada
mãe. Eu encostei-me à janela, a olhar para a chácara, onde verdejavam as
laranjeiras sem flores. Onde iam elas as flores de antanho?
CAPÍTULO XCVI / A
CARTA ANÔNIMA
Senti tocar-me no ombro;
era Lobo Neves. Encaramo-nos alguns instantes, mudos, inconsoláveis. Indaguei
de Virgília, depois ficamos a conversar uma meia hora. No fim desse tempo,
vieram trazer-lhe uma carta; ele leu-a, empalideceu muito, e fechou-a com a mão
trêmula. Creio que lhe vi fazer um gesto, como se quisesse atirar-se sobre mim;
mas não me lembra bem. O que me lembra claramente é que durante os dias
seguintes recebeu-me frio e taciturno. Enfim, Virgília contou-me tudo, daí a
dias na Gamboa.
O marido mostrou-lhe a
carta, logo que ela se restabeleceu. Era anônima e denunciava-nos. Não dizia
tudo; não falava, por exemplo, das nossas entrevistas externas; limitava-se a
precavê-lo contra a minha intimidade, e acrescentava que a suspeita era
pública. Virgília leu a carta e disse com indignação que era uma calúnia
infame.
— Calúnia? perguntou
Lobo Neves.
— Infame.
O marido respirou; mas,
tornando à carta, parece que cada palavra dela lhe fazia com o dedo um sinal
negativo, cada letra bradava contra a indignação da mulher. Esse homem, aliás
intrépido, era agora a mais frágil das criaturas. Talvez a imaginação lhe
mostrou, ao longe, o famoso olho da opinião, a fitá-lo sarcasticamente, com um
ar de pulha; talvez uma boca invisível lhe repetiu ao ouvido as chufas que ele
escutara ou dissera outrora. Instou com a mulher que lhe confessasse tudo,
porque tudo lhe perdoaria. Virgília compreendeu que estava salva; mostrou-se
irritada com a insistência, jurou que da minha parte só ouvira palavras de
gracejo e cortesia. A carta havia de ser de algum namorado sem-ventura. E citou
alguns, — um que a galanteara francamente, durante três semanas, outro que lhe
escrevera uma carta, e ainda outros e outros. Citava-os pelo nome, com
circunstâncias, estudando os olhos do marido, e concluiu dizendo que, para não
dar margem à calúnia, tratar-me-ia de maneira que eu não voltaria lá.
Ouvi tudo isto um pouco
turbado, não pelo acréscimo de dissimulação que era preciso empregar de ora em
diante, até afastar-me inteiramente da casa do Lobo Neves, mas pela
tranquilidade moral de Virgília, pela falta de comoção, de susto, de saudades,
e até de remorsos. Virgília notou a minha preocupação, levantou-me a cabeça,
porque eu olhava então para o soalho, e disse-me com certa amargura:
— Você não merece os
sacrifícios que lhe faço.
Não lhe disse nada; era
ocioso ponderar-lhe que um pouco de desespero e terror daria à nossa situação o
sabor cáustico dos primeiros dias; mas se lho dissesse, não é impossível que
ela chegasse lenta e artificiosamente até esse pouco de desespero e terror. Não
lhe disse nada. Ela batia nervosamente com a ponta do pé no chão; aproximei-me
e beijei-a na testa. Virgília recuou, como se fosse um beijo de defunto.
CAPÍTULO XCVII / ENTRE
A BOCA E A TESTA
Sinto que o leitor
estremeceu, — ou devia estremecer. Naturalmente a última palavra sugeriu-lhe
três ou quatro reflexões. Veja bem o quadro: numa casinha da Gamboa, duas
pessoas que se amam há muito tempo, uma inclinada para a outra, a dar-lhe um
beijo na testa, e a outra a recuar, como se sentisse o contato de uma boca de
cadáver. Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa, antes do beijo e
depois do beijo, há aí largo espaço para muita coisa, — a contração de um
ressentimento, — a ruga da desconfiança, — ou enfim o nariz pálido e sonolento
da saciedade…
CAPÍTULO XCVIII / SUPRIMIDO
Separamo-nos
alegremente. Jantei reconciliado com a situação. A carta anônima restituía à
nossa aventura o sal do mistério e a pimenta do perigo; e afinal foi bem bom
que Virgília não perdesse naquela crise a posse de si mesma. De noite fui ao
teatro de São Pedro; representava-se uma grande peça, em que a Estela arrancava
lágrimas. Entro; corro os olhos pelos camarotes; vejo em um deles Damasceno e a
família. Trajava a filha com outra elegância e certo apuro, coisa difícil de
explicar, porque o pai ganhava apenas o necessário para endividar-se; e daí,
talvez fosse por isso mesmo.
No intervalo fui
visitá-los. Damasceno recebeu-me com muitas palavras, a mulher com muitos
sorrisos. Quanto a Nhã-loló, não tirou mais os olhos de mim. Parecia-me agora
mais bonita que no dia do jantar. Achei-lhe certa suavidade etérea casada ao
polido das formas terrenas: — expressão vaga, e condigna de um capítulo em que
tudo há de ser vago. Realmente, não sei como lhes diga que não me senti mal, ao
pé da moça, trajando garridamente um vestido fino, um vestido que me dava
cócegas de Tartufo. Ao contemplá-lo, cobrindo casta e redondamente o joelho,
foi que eu fiz uma descoberta sutil, a saber, que a natureza previu a vestidura
humana, condição necessária ao desenvolvimento da nossa espécie. A nudez
habitual, dada a multiplicação das obras e dos cuidados do indivíduo, tenderia
a embotar os sentidos e a retardar os sexos, ao passo que o vestuário, negaceando
a natureza, aguça e atrai as vontades, ativa-as, reprodu-las, e
conseguintemente faz andar a civilização. Abençoado uso que nos deu Otelo
e os paquetes transatlânticos!
Estou com vontade de
suprimir este capítulo. O declive é perigoso. Mas enfim eu escrevo as minhas
memórias e não as tuas, leitor pacato. Ao pé da graciosa donzela, parecia-me
tomado de uma sensação dupla e indefinível. Ela exprimia inteiramente a
dualidade de Pascal, l’ange et la bête, com a diferença que o jansenista
não admitia a simultaneidade das duas naturezas, ao passo que elas aí estavam
bem juntinhas, — l’ange, que dizia algumas coisas do Céu, — e la bête,
que… Não; decididamente suprimo este capítulo.
CAPÍTULO XCIX / NA
PLATÉIA
Na plateia achei Lobo
Neves, de conversa com alguns amigos, falamos por alto, a frio, constrangidos
um e outro. Mas no intervalo seguinte, prestes a levantar o pano,
encontramo-nos num dos corredores, em que não havia ninguém. Ele veio a mim,
com muita afabilidade e riso, puxou-me a um dos óculos do teatro, e falamos
muito, principalmente ele, que parecia o mais tranqüilo dos homens. Cheguei a
perguntar-lhe pela mulher; respondeu que estava boa, mas torceu logo a
conversação para assuntos gerais, expansivo, quase risonho. Adivinhe quem
quiser a causa da diferença; eu fujo ao Damasceno que me espreita ali da porta
do camarote.
Não ouvi nada do
seguinte ato, nem as palavras dos atores, nem as palmas do público. Reclinado
na cadeira, apanhava de memória os retalhos da conversação do Lobo Neves, refazia
as maneiras dele, e concluía que era muito melhor a nova situação. Bastava-nos
a Gamboa. A frequência da outra casa aguçaria as invejas. Rigorosamente
podíamos dispensar-nos de falar todos os dias; era até melhor, metia a saudade
de permeio nos amores. Ao demais, eu galgara os quarenta anos, e não era nada,
nem simples eleitor de paróquia. Urgia fazer alguma coisa, ainda por amor de
Virgília, que havia de ufanar-se quando visse luzir o meu nome… Creio que
nessa ocasião houve grandes aplausos, mas não juro; eu pensava em outra coisa.
Multidão, cujo amor
cobicei até à morte, era assim que eu me vingava às vezes de ti; deixava
burburinhar em volta do meu corpo a gente humana, sem a ouvir, como o Prometeu
de Ésquilo fazia aos seus verdugos. Ah! tu cuidavas encadear-me ao rochedo da
tua frivolidade, da tua indiferença, ou da tua agitação? Frágeis cadeias, amiga
minha; eu rompia-as de um gesto de Gulliver. Vulgar coisa é ir considerar no
ermo. O voluptuoso, o esquisito, é insular-se o homem no meio de um mar de
gestos e palavras, de nervos e paixões, decretar-se alheado, inacessível,
ausente. O mais que podem dizer, quando ele torna a si, — isto é, quando torna
aos outros, — é que baixa do mundo da lua; mas o mundo da lua, esse desvão
luminoso e recatado do cérebro, que outra coisa é senão a afirmação desdenhosa
da nossa liberdade espiritual? Vive Deus! eis um bom fecho de capítulo.
CAPÍTULO C / O CASO
PROVÁVEL
Se esse mundo não fosse
uma região de espíritos desatentos, era escusado lembrar ao leitor que eu só
afirmo certas leis, quando as possuo deveras; em relação a outras restrinjo-me
à admissão da probabilidade. Um exemplo da segunda classe constitui o presente
capítulo, cuja leitura recomendo a todas as pessoas que amam o estudo dos
fenômenos sociais. Segundo parece, e não é improvável, existe entre os fatos da
vida pública e os da vida particular uma certa ação recíproca, regular, e
talvez periódica, — ou para usar de uma imagem, há alguma coisa semelhante às
marés da Praia do Flamengo e de outras igualmente marulhosas. Com efeito,
quando a onda investe a praia, alaga-a muitos palmos a dentro; mas essa mesma
água torna ao mar, com variável força, e vai engrossar a onda que há de vir, e
que terá de tornar como a primeira. Esta é a imagem; vejamos a aplicação.
Deixei dito noutra
página que o Lobo Neves, nomeado presidente de província, recusou a nomeação
por motivo da data do decreto que era 13; ato grave, cuja consequência foi
separar do ministério o marido de Virgília. Assim, o fato particular da ojeriza
de um número produziu o fenômeno da dissidência política. Resta ver como,
tempos depois, um ato político determinou na vida particular uma cessação de
movimento. Não convindo ao método deste livro descrever imediatamente esse
outro fenômeno, limito-me a dizer por ora que o Lobo Neves, quatro meses depois
de nosso encontro no teatro, reconciliou-se com o ministério; fato que o leitor
não deve perder de vista, se quiser penetrar a sutileza do meu pensamento.
CAPÍTULO CI / A
REVOLUÇAO DÁLMATA
Foi Virgília quem me
deu notícia da viravolta política do marido, certa manhã de outubro, entre onze
e meio-dia; falou-me de reuniões, de conversas, de um discurso…
— De maneira, que desta
vez fica você baronesa, interrompi eu.
Ela derreou os cantos
da boca, e moveu a cabeça a um e outro lado; mas esse gesto de indiferença era
desmentido por alguma coisa menos definível, menos clara, uma expressão de
gosto e de esperança. Não sei por que, imaginei que a carta imperial da
nomeação podia atraí-la à virtude, não digo pela virtude em si mesma, mas por
gratidão ao marido. Que ela amava cordialmente a nobreza. Um dos maiores
desgostos de nossa vida foi o aparecimento de certo pelintra de legação, — da
legação da Dalmácia, suponhamos, — o Conde B. V., que a namorou durante três
meses. Esse homem, vero fidalgo de raça, transtornara um pouco a cabeça de
Virgília, que, além do mais, possuía a vocação diplomática. Não chego a
alcançar o que seria de mim, se não rebentasse na Dalmácia uma revolução, que
derrocou o governo e purificou as embaixadas. Foi sangrenta a revolução,
dolorosa, formidável; os jornais, a cada navio que chegava da Europa,
transcreviam os horrores, mediam o sangue, contavam as cabeças; toda a gente
fremia de indignação e piedade… Eu não; eu abençoava interiormente essa
tragédia, que me tirara uma pedrinha do sapato. E depois a Dalmácia era tão
longe!
CAPÍTULO CII / DE
REPOUSO
Mas este mesmo homem,
que se alegrou com a partida do outro, praticou daí a tempos… Não, não hei de
contá-lo nesta página; fique esse capítulo para repouso do meu vexame. Uma ação
grosseira, baixa, sem explicação possível… Repito, não contarei o caso nesta
página.
CAPÍTULO CIII / DISTRAÇÃO
— Não, senhor doutor,
isto não se faz. Perdoe-me, isto não se faz.
Tinha razão D. Plácida.
Nenhum cavalheiro chega uma hora mais tarde ao lugar em que o espera a sua
dama. Entrei esbaforido; Virgília tinha ido embora. D. Plácida contou-me que
ela esperara muito, que se irritara, que chorara, que jurara votar-me ao
desprezo, e outras mais coisas que a nossa caseira dizia com lágrimas na voz,
pedindo-me que não desamparasse Iaiá, que era ser muito injusto com uma moça
que me sacrificara tudo. Expliquei-lhe então que um equívoco… E não era;
cuido que foi simples distração. Um dito, uma conversa, uma anedota, qualquer
coisa; simples distração.
Coitada de D. Plácida!
Estava aflita deveras. Andava de um lado para outro, abanando a cabeça,
suspirando com estrépito, espiando pela rótula. Coitada de D. Plácida! Com que
arte conchegava as roupas, bafejava as faces, acalentava as manhas do nosso
amor! que imaginação fértil em tornar as horas mais aprazíveis e breves!
Flores, doces, — os bons doces de outros dias, — e muito riso, muito afago,
riso e afago que cresciam com o tempo, como se ela quisesse fixar a nossa
aventura, ou restituir-lhe a primeira flor. Nada esquecia a nossa confidente e
caseira; nada, nem a mentira, porque a um e outro referia suspiros e saudades
que não presenciara; nada, nem a calúnia, porque uma vez chegou a atribuir-me
uma paixão nova. — Você sabe que não posso gostar de outra mulher, foi a minha
resposta, quando Virgília me falou em semelhante coisa. E esta só palavra, sem
nenhum protesto ou admoestação, dissipou o aleive de D. Plácida, que ficou
triste.
— Está bem, disse-lhe
eu, depois de um quarto de hora; Virgília há de reconhecer que não tive culpa
nenhuma… Quer você levar-lhe uma carta agora mesmo?
— Ela há de estar bem
triste, coitadinha! Olhe, eu não desejo a morte de ninguém; mas, se o senhor
doutor algum dia chegar a casar com Iaiá, então sim, é que há de ver o anjo que
ela é!
Lembra-me que desviei o
rosto e baixei os olhos ao chão. Recomendo este gesto às pessoas que não tiverem
uma palavra pronta para responder, ou ainda às que recearem encarar a pupila de
outros olhos. Em tais casos, alguns preferem recitar uma oitava dos Lusíadas,
outros adotam o recurso de assobiar a Norma; eu atenho-me ao gesto
indicado; é mais simples, exige menos esforço.
Três dias depois,
estava tudo explicado. Suponho que Virgília ficou um pouco admirada, quando lhe
pedi desculpas das lágrimas que derramara naquela triste ocasião. Nem me lembra
se interiormente as atribuí a D. Plácida. Com efeito, podia acontecer que D.
Plácida chorasse, ao vê-la desapontada, e, por um fenômeno da visão, as
lágrimas que tinha nos próprios olhos lhe parecessem cair dos olhos de
Virgília. Fosse como fosse, tudo estava explicado, mas não perdoado, e menos
ainda esquecido. Virgília dizia-me uma porção de coisas duras, ameaçava-me com
a separação, enfim louvava o marido. Esse sim, era um homem digno, muito
superior a mim, delicado, um primor de cortesia e afeição; é o que ela dizia,
enquanto eu, sentado, com os braços fincados nos joelhos, olhava para o chão,
onde uma mosca arrastava uma formiga que lhe mordia o pé. Pobre mosca! pobre
formiga!
— Mas você não diz
nada, nada? perguntou Virgília, parando diante de mim.
— Que hei de dizer? Já
expliquei tudo; você teima em zangar-se; que hei de dizer? Sabe que me parece?
Parece-me que você está enfastiada, que se aborrece, que quer acabar…
— Justamente!
Foi dali pôr o chapéu,
com a mão trêmula, raivosa… — Adeus, D. Plácida, bradou ela para dentro.
Depois foi até à porta, correu o fecho, ia sair; agarrei-a pela cintura. — Está
bom, está bom, disse-lhe. Virgília ainda forcejou por sair. Eu retive-a,
pedi-lhe que ficasse, que esquecesse; ela afastou-se da porta e foi cair no
canapé. Sentei-me ao pé dela, disse-lhe muitas coisas meigas, outras humildes,
outras graciosas. Não afirmo se os nossos lábios chegaram à distância de um fio
de cambraia ou ainda menos; é matéria controversa. Lembra-me, sim, que na
agitação caiu um brinco de Virgília, que eu inclinei-me a apanhá-lo, e que a
mosca de há pouco trepou ao brinco, levando sempre a formiga no pé. Então eu,
com a delicadeza nativa de um homem do nosso século, pus na palma da mão aquele
casal de mortificados; calculei toda a distância que ia da minha mão ao planeta
Saturno, e perguntei a mim mesmo que interesse podia haver num episódio tão
mofino. Se concluis daí que eu era um bárbaro, enganas-te, porque eu pedi um
grampo a Virgília, a fim de separar os dois insetos; mas a mosca farejou a
minha intenção, abriu as asas e foi-se embora. Pobre mosca! pobre formiga! E
Deus viu que isto era bom, como se diz na Escritura.
CAPÍTULO CIV / ERA
ELE!
Restituí o grampo a
Virgília, que o repregou nos cabelos, e preparou-se para sair. Era tarde;
tinham dado três horas. Tudo estava esquecido e perdoado. D. Plácida, que
espreitava a ocasião idônea para a saída, fecha subitamente a janela e exclama:
— Virgem Nossa Senhora!
aí vem o marido de Iaiá!
O momento de terror foi
curto, mas completo. Virgília fez-se da cor das rendas do vestido, correu até a
porta da alcova; D. Plácida, que fechara a rótula, queria fechar também a porta
de dentro; eu dispus-me a esperar o Lobo Neves. Esse curto instante passou.
Virgília tornou a si, empurrou-me para a alcova, disse a D. Plácida que voltasse
à janela; a confidente obedeceu.
Era ele. D. Plácida
abriu-lhe a porta com muitas exclamações de pasmo: — O senhor por aqui!
honrando a casa de sua velha! Entre, faça favor. Adivinhe quem está cá… Não
tem que adivinhar, não veio por outra coisa… Apareça, Iaiá.
Virgília, que estava a
um canto, atirou-se ao marido. Eu espreitava-os pelo buraco da fechadura. O
Lobo Neves entrou lentamente, pálido, frio, quieto, sem explosão, sem
arrebatamento, e circulou um olhar em volta da sala.
— Que é isto? exclamou
Virgília. Você por aqui?
— Ia passando, vi D.
Plácida à janela, e vim cumprimentá-la.
— Muito obrigada,
acudiu esta. E digam que as velhas não valem alguma coisa… Olhai, gentes!
Iaiá parece estar com ciúmes. E acariciando-a muito: — Este anjinho é que nunca
se esqueceu da velha Plácida. Coitadinha! é mesmo a cara da mãe… Sente-se,
senhor doutor…
— Não me demoro.
— Você vai para casa?
disse Virgília. Vamos juntos.
— Vou.
— Dê cá o meu chapéu,
D. Plácida.
— Está aqui.
D. Plácida foi buscar
um espelho, abriu-o diante dela. Virgília punha o chapéu, atava as fitas,
arranjava os cabelos, falando ao marido, que não respondia nada. A nossa boa
velha tagarelava demais; era um modo de disfarçar as tremuras do corpo. Virgília,
dominado o primeiro instante, tornara à posse de si mesma.
— Pronta! disse ela.
Adeus, D. Plácida; não se esqueça de aparecer, ouviu? A outra prometeu que sim,
e abriu-lhes a porta.
CAPÍTULO CV / EQUIVALÊNCIA
DAS JANELAS
D. Plácida fechou a
porta e caiu numa cadeira. Eu deixei imediatamente a alcova, e dei dois passos
para sair à rua, com o fim de arrancar Virgília ao marido; foi o que disse, e
em bem que o disse, porque D. Plácida deteve-me por um braço. Tempo houve em
que cheguei a supor que não dissera aquilo senão para que ela me detivesse; mas
a simples reflexão basta para mostrar que, depois dos dez minutos da alcova, o
gesto mais genuíno e cordial não podia ser senão esse. E isto por aquela famosa
lei da equivalência das janelas, que eu tive a satisfação de descobrir e
formular, no capítulo LI. Era preciso arejar a consciência. A alcova foi uma
janela fechada; eu abri outra com o gesto de sair, e respirei.
CAPÍTULO CVI / JOGO
PERIGOSO
Respirei e sentei-me.
D. Plácida atroava a sala com exclamações e lástimas. Eu ouvia, sem lhe dizer
coisa nenhuma; refletia comigo se não era melhor ter fechado Virgília na alcova
e ficado na sala; mas adverti logo que seria pior; confirmaria a suspeita,
chegaria o fogo à pólvora, e uma cena de sangue… Foi muito melhor assim. Mas
depois? que ia acontecer em casa de Virgília? matá-la-ia o marido?
espancá-la-ia? encerrá-la-ia? expulsá-la-ia? Estas interrogações percorriam
lentamente o meu cérebro, como os pontinhos e vírgulas escuras percorrem o
campo visual dos olhos enfermos ou cansados. Iam e vinham, com o seu aspecto
seco e trágico, e eu não podia agarrar um deles e dizer: és tu, tu e não outro.
De repente vejo um
vulto negro; era D. Plácida, que fora dentro, enfiara a mantinha, e vinha
oferecer-se-me para ir à casa do Lobo Neves. Ponderei que era arriscado, porque
ele desconfiaria da visita tão próxima.
— Sossegue, interrompeu
ela; eu saberei arranjar as coisas. Se ele estiver em casa não entro.
Saiu; eu fiquei a
ruminar o sucesso e as consequências possíveis. Ao cabo, parecia-me jogar um
jogo perigoso, e perguntava a mim mesmo se não era tempo de levantar e
espairecer. Sentia-me tomado de uma saudade do casamento, de um desejo de
canalizar a vida. Por que não? Meu coração tinha ainda que explorar; não me
sentia incapaz de um amor casto, severo e puro. Em verdade, as aventuras são a
parte torrencial e vertiginosa da vida, isto é, a exceção; eu estava enfarado
delas; não sei até se me pungia algum remorso. Mal pensei naquilo, deixei-me ir
atrás da imaginação; vi-me logo casado, ao pé de uma mulher adorável, diante de
um baby, que dormia no regaço da ama, todos nós no fundo de uma chácara
sombria e verde, a espiarmos através da chácara uma nesga do céu azul,
extremamente azul…
CAPÍTULO CVII / BILHETE
Não houve nada, mas ele
suspeita alguma coisa; está muito sério e não fala; agora saiu. Sorriu uma vez
somente, para Nhonhô, depois de o fitar muito tempo, carrancudo. Não me tratou
mal nem bem. Não sei o que vai acontecer; Deus queira que isto passe. Muita
cautela, por ora, muita cautela.
CAPÍTULO CVIII / QUE
SE NÃO ENTENDE
Eis aí o drama, eis aí
a ponta da orelha trágica de Shakespeare. Esse retalhinho de papel, garatujado
em partes, machucado das mãos, era um documento de análise, que eu não farei
neste capítulo, nem no outro, nem talvez em todo o resto do livro. Poderia eu
tirar ao leitor o gosto de notar por si mesmo a frieza, a perspicácia e o ânimo
dessas poucas linhas traçadas à pressa; e por trás delas a tempestade de outro
cérebro, a raiva dissimulada, o desespero que se constrange e medita, porque
tem de resolver-se na lama ou no sangue, ou nas lágrimas?
Quanto a mim, se vos
disser que li o bilhete três ou quatro vezes, naquele dia, acreditai-o, que é
verdade; se vos disser mais que o reli no dia seguinte, antes e depois do
almoço, podeis crê-lo, é a realidade pura. Mas se vos disser a comoção que
tive, duvidai um pouco da asserção, e não a aceiteis sem provas. Nem então, nem
ainda agora cheguei a discernir o que experimentei. Era medo, e não era medo;
era dó e não era dó; era vaidade e não era vaidade; enfim, era amor sem amor,
isto é, sem delírio; e tudo isso dava uma combinação assaz complexa e vaga, uma
coisa que não podereis entender, como eu não entendi. Suponhamos que não disse
nada.
CAPÍTULO CIX / O
FILÓSOFO
Sabido que reli a
carta, antes e depois do almoço, sabido fica que almocei, e só resta dizer que
essa refeição foi das mais parcas da minha vida: um ovo, uma fatia de pão, uma
xícara de chá. Não me esqueceu esta circunstância mínima; no meio de tanta
coisa importante obliterada escapou esse almoço. A razão principal poderia ser
justamente o meu desastre; mas não foi; a principal razão foi a reflexão que me
fez o Quincas Borba, cuja visita recebi naquele dia. Disse-me ele que a
frugalidade não era necessária para entender o Humanitismo, e menos ainda
praticá-lo; que esta filosofia acomodava-se facilmente com os prazeres da vida,
inclusive a mesa, o espetáculo e os amores; e que, ao contrário, a frugalidade
podia indicar certa tendência para o ascetismo, o que era a expressão acabada
de tolice humana.
— Veja São João,
continuou ele; mantinha-se de gafanhotos, no deserto, em vez de engordar
tranquilamente na cidade, e fazer emagrecer o farisaísmo na sinagoga.
Deus me livre de contar
a história do Quincas Borba, que aliás ouvi toda naquela triste ocasião, uma
história longa, complicada, mas interessante. E se não conto a história,
dispenso-me outrossim de descrever-lhe a figura, aliás muito diversa da que me
apareceu no Passeio Público. Calo-me; digo somente que se a principal
característica do homem não são as feições, mas os vestuários, ele não era o
Quincas Borba; era um desembargador sem beca, um general sem farda, um negociante
sem deficit. Notei-lhe a perfeição da sobrecasaca, a alvura da camisa, o
asseio das botas. A mesma voz, roufenha outrora, parecia restituída à primitiva
sonoridade. Quanto à gesticulação, sem que houvesse perdido a viveza de outro
tempo, não tinha já a desordem, sujeitava-se a um certo método. Mas eu não
quero descrevê-lo. Se falasse, por exemplo, no botão de ouro que trazia ao
peito, e na qualidade do couro das botas, iniciaria uma descrição, que omito
por brevidade. Contentem-se de saber que as botas eram de verniz. Saibam mais
que ele herdara alguns pares de contos de réis de um velho tio de Barbacena.
Meu espírito,
(permitam-me aqui uma comparação de criança!) meu espírito era naquela ocasião
uma espécie de peteca. A narração do Quincas Borba dava-lhe uma palmada, ele
subia; quando ia a cair, o bilhete de Virgília dava-lhe outra palmada, e ele
era de novo arremessado aos ares, descia, e o episódio do Passeio Público
recebia-o com outra palmada, igualmente rija e eficaz. Cuido que não nasci para
situações complexas. Esse puxar e empuxar de coisas opostas desequilibrava-me;
tinha vontade de embrulhar o Quincas Borba e Lobo Neves e o bilhete de Virgília
na mesma filosofia, e mandá-los de presente a Aristóteles. Contudo, era
instrutiva a narração do nosso filósofo; admirava-lhe sobretudo o talento de
observação com que descrevia a gestação e o crescimento do vício, as lutas
interiores, as capitulações vagarosas, o uso da lama.
— Olhe, observou ele; a
primeira noite que passei, na escada de São Francisco, dormi-a inteira, como se
fosse a mais fina pluma. Por quê? Porque fui gradualmente da cama de esteira ao
catre de pau do quarto próprio ao corpo da guarda do corpo da guarda à rua…
Quis expor-me
finalmente a filosofia; pedi-lhe que não. — Estou muito preocupado hoje e não
poderia atendê-lo; venha depois; estou sempre em casa. Quincas Borba sorriu de
um modo malicioso; talvez soubesse da minha aventura, mas não acrescentou nada.
Só me disse estas últimas palavras à porta:
— Venha para o
Humanitismo; ele é o grande regaço dos espíritos, o mar eterno em que mergulhei
para arrancar de lá a verdade. Os gregos faziam-na sair de um poço. Que
concepção mesquinha! Um poço! Mas é por isso mesmo que nunca atinaram com ela.
Gregos, subgregos, antigregos, toda a longa série dos homens tem-se debruçado
sobre o poço, para ver sair a verdade, que não está lá. Gastaram cordas e
caçambas; alguns mais afoitos desceram ao fundo e trouxeram um sapo. Eu fui
diretamente ao mar. Venha para o Humanitismo.
CAPÍTULO CX / 31
Uma semana depois, Lobo
Neves foi nomeado presidente de província. Agarrei-me à esperança da recusa, se
o decreto viesse outra vez datado de 13; trouxe, porém, a data de 31, e esta
simples transposição de algarismos eliminou deles a substância diabólica. Que
profundas que são as molas da vida!
CAPÍTULO CXI / O
MURO
Não sendo meu costume
dissimular ou esconder nada, contarei nesta página o caso do muro. Eles estavam
prestes a embarcar. Entrando em casa de D. Plácida, vi um papelinho dobrado
sobre a mesa; era um bilhete de Virgília; dizia que me esperava à noite, na
chácara, sem falta. E concluía: “O muro é baixo do lado do beco”.
Fiz um gesto de
desagrado. A carta pareceu-me descomunalmente audaciosa, mal pensada e até
ridícula. Não era só convidar o escândalo, era convidá-lo de parceria com a
risota. Imaginei-me a saltar o muro, embora baixo e do lado do beco; e, quando
ia a galgá-lo, via-me agarrado por um pedestre de polícia, que me levava ao corpo
da guarda. O muro é baixo! E que tinha que fosse baixo? Naturalmente Virgília
não soube o que fez; era possível que já estivesse arrependida. Olhei para o
papel, um pedaço de papel amarrotado, mas inflexível. Tive comichões de o
rasgar, em trinta mil pedaços, e atirá-los ao vento, como o último despojo da
minha aventura; mas recuei a tempo; o amor-próprio, o vexame da fuga, a ideia
do medo… Não havia remédio senão ir.
— Diga-lhe que vou.
— Aonde? perguntou D.
Plácida.
— Onde ela disse que me
espera.
— Não me disse nada.
— Neste papel.
D. Plácida arregalou os
olhos: — Mas esse papel, achei-o hoje de manhã, nesta sua gaveta, e pensei
que…
Tive uma sensação
esquisita. Reli o papel, mirei-o, remirei-o; era, em verdade, um antigo bilhete
de Virgília, recebido no começo dos nossos amores, uma certa entrevista na
chácara, que me levou efetivamente a saltar o muro, um muro baixo e discreto.
Guardei o papel e… Tive uma sensação esquisita.
CAPÍTULO CXII / A
OPINIÃO
Mas estava escrito que
esse dia devia ser o dos lances dúbios. Poucas horas depois, encontrei Lobo
Neves, na Rua do Ouvidor, falamos da presidência e da política. Ele aproveitou
o primeiro conhecido que nos passou à ilharga, e deixou-me, depois de muitos
cumprimentos. Lembra-me que estava retraído, mas de um retraimento que
forcejava por dissimular. Pareceu-me então (e peço perdão à crítica, se este
meu juízo for temerário!), pareceu-me que ele tinha medo — não medo de mim, nem
de si, nem do código, nem da consciência; tinha medo da opinião. Supus que esse
tribunal anônimo e invisível, em que cada membro acusa e julga, era o limite
posto à vontade do Lobo Neves. Talvez já não amasse a mulher; e, assim, pode
ser que o coração fosse estranho à indulgência dos seus últimos atos. Cuido (e
de novo insto pela boa vontade da crítica!) cuido que ele estaria pronto a
separar-se da mulher, como o leitor se terá separado de muitas relações
pessoais; mas a opinião, essa opinião que lhe arrastaria a vida por todas as
ruas, que abriria minucioso inquérito acerca do caso, que coligiria uma a uma
todas as circunstâncias, antecedências, induções, provas, que as relataria na
palestra das chácaras desocupadas, essa terrível opinião, tão curiosa das
alcovas, obstou à dispersão da família. Ao mesmo tempo tornou impossível o
desforço, que seria a divulgação. Ele não podia mostrar-se ressentido comigo,
sem igualmente buscar a separação conjugal; teve então de simular a mesma
ignorância de outrora, e, por dedução, iguais sentimentos.
Que lhe custasse creio;
naqueles dias, principalmente, vi-o de modo que devia custar-lhe muito. Mas o
tempo (e é outro ponto em que eu espero a indulgência dos homens pensadores!),
o tempo caleja a sensibilidade, e oblitera a memória das coisas; era de supor
que os anos lhe despontassem os espinhos, que a distância dos fatos apagasse os
respectivos contornos, que uma sombra de dúvida retrospectiva cobrisse a nudez
da realidade; enfim, que a opinião se ocupasse um pouco com outras aventuras. O
filho, crescendo, buscaria satisfazer as ambições do pai; seria o herdeiro de
todos os seus afetos. Isso, e a atividade externa, e o prestígio público, e a
velhice depois, a doença, o declínio, a morte, um responso, uma notícia
biográfica, e estava fechado o livro da vida, sem nenhuma página de sangue.
CAPÍTULO CXIII / A
SOLDA
A conclusão, se há
alguma no capítulo anterior, é que a opinião é uma boa solda das instituições
domésticas. Não é impossível que eu desenvolva este pensamento, antes de acabar
o livro; mas também não é impossível que o deixe como está. De um ou de outro
modo, é uma boa solda a opinião, e tanto na ordem doméstica, como na política.
Alguns metafísicos biliosos têm chegado ao extremo de a darem como simples
produto da gente chocha ou medíocre; mas é evidente que, ainda quando um
conceito tão extremado não trouxesse em si mesmo a resposta, bastava considerar
os efeitos salutares da opinião, para concluir que ela é a obra superfina da
flor dos homens, a saber, do maior número.
CAPÍTULO CXIV / FIM
DE UM DIÁLOGO
— Sim, é amanhã. Você
vai a bordo?
— Está doida? É
impossível.
— Então, adeus!
— Adeus!
— Não se esqueça de D.
Plácida. Vá vê-la algumas vezes. Coitada! Foi ontem despedir-se de nós; chorou
muito, disse que eu não a veria mais… É uma boa criatura, não é?
— Certamente.
— Se tivermos de
escrever, ela receberá as cartas. Agora até daqui a…
— Talvez dois anos?
— Qual! ele diz que é
só até fazer as eleições.
— Sim? então até breve.
Olhe que estão olhando para nós.
— Quem?
— Ali no sofá.
Separemo-nos.
— Custa-me muito.
— Mas é preciso; adeus,
Virgília!
— Até breve. Adeus!
CAPÍTULO CXV / O
ALMOÇO
Não a vi partir; mas à
hora marcada senti alguma coisa que não era dor nem prazer, uma coisa mista,
alívio e saudade, tudo misturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor com
esta confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia
padecer um grande desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria
romanesco; mas não seria biográfico. A realidade pura é que eu almocei, como
nos demais dias, acudindo ao coração com as lembranças da minha aventura, e ao
estômago com os acepipes de M. Prudhon…
…Velhos do meu tempo,
acaso vos lembrais desse mestre cozinheiro do Hotel Pharoux, um sujeito que,
segundo dizia o dono da casa, havia servido nos famosos Véry e Véfour, de
Paris, e mais nos palácios do Conde Molé e do Duque de la Rochefoucauld? Era
insigne. Entrou no Rio de Janeiro com a polca… A polca, M. Prudhon, o Tivoli,
o baile dos estrangeiros, o Cassino, eis algumas das melhores recordações
daquele tempo; mas sobretudo os acepipes do mestre eram deliciosos.
Eram, e naquela manhã
parece que o diabo do homem adivinhara a nossa catástrofe. Jamais o engenho e a
arte lhe foram tão propícios. Que requinte de temperos! que tenrura de carnes!
que rebuscado de formas! Comia-se com a boca, com os olhos, com o nariz. Não
guardei a conta desse dia; sei que foi cara. Ai dor! era-me preciso enterrar
magnificamente os meus amores. Eles lá iam, mar em fora, no espaço e no tempo,
e eu ficava-me ali numa ponta de mesa, com os meus quarenta e tantos anos, tão
vadios e tão vazios; ficava-me para os não ver nunca mais, porque ela poderia
tornar e tornou, mas o eflúvio da manhã quem é que o pediu ao crepúsculo da
tarde?
CAPÍTULO CXVI / FILOSOFIA
DAS FOLHAS VELHAS
Fiquei tão triste com o
fim do último capítulo que estava capaz de não escrever este, descansar um
pouco, purgar o espírito da melancolia que o empacha, e continuar depois. Mas
não, não quero perder tempo.
A partida de Virgília
deu-me uma amostra da viuvez. Nos primeiros dias meti-me em casa, a fisgar
moscas, como Domiciano, se não mente o Suetônio, mas a fisgá-las de um modo
particular: com os olhos. Fisgava-as uma a uma, no fundo de uma sala grande,
estirado na rede, com um livro aberto entre as mãos. Era tudo: saudades,
ambições, um pouco de tédio, e muito devaneio solto. Meu tio cônego morreu
nesse intervalo; item, dois primos. Não me dei por abalado: levei-os ao
cemitério, como quem leva dinheiro a um banco. Que digo? como quem leva cartas
ao correio: selei as cartas, meti-as na caixinha, e deixei ao carteiro o cuidado
de as entregar em mão própria. Foi também por esse tempo que nasceu minha
sobrinha Venância, filha do Cotrim. Morriam uns, nasciam outros: eu continuava
às moscas.
Outras vezes
agitava-me. Ia às gavetas, entornava as cartas antigas, dos amigos, dos
parentes, das namoradas, (até as de Marcela), e abria-as todas, lia-as uma a
uma, e recompunha o pretérito… Leitor ignaro, se não guardas as cartas da
juventude, não conhecerás um dia a filosofia das folhas velhas, não gostarás o
prazer de ver-te, ao longe, na penumbra, com um chapéu de três bicos, botas de
sete léguas e longas barbas assírias, a bailar ao som de uma gaita
anacreôntica. Guarda as tuas cartas da juventude!
Ou, se te não apraz o
chapéu de três bicos, empregarei a locução de um velho marujo, familiar da casa
de Cotrim; direi que, se guardares as cartas da juventude, acharás ocasião de
“cantar uma saudade.” Parece que os nossos marujos dão este nome às cantigas de
terra, entoadas no alto mar. Como expressão poética, é o que se pode exigir
mais triste.
CAPÍTULO CXVII / O
HUMANITISMO
Duas forças, porém,
além de uma terceira, compeliam-me a tornar à vida agitada do costume: Sabina e
Quincas Borba. Minha irmã encaminhou a candidatura conjugal de Nhã-loló de um
modo verdadeiramente impetuoso. Quando dei por mim estava com a moça quase nos
braços. Quanto ao Quincas Borba, expôs-me enfim o Humanitismo, sistema de
filosofia destinado a arruinar todos os demais sistemas.
— Humanitas, dizia ele,
o princípio das coisas, não é outro senão o mesmo homem repartido por todos os
homens. Conta três fases Humanitas: a estática, anterior a toda a
criação; a expansiva, começo das coisas; a dispersiva,
aparecimento do homem; e contará mais uma, a contrativa, absorção do
homem e das coisas. A expansão, iniciando o universo, sugeriu a
Humanitas o desejo de o gozar, e daí a dispersão, que não é mais do que
a multiplicação personificada da substância original.
Como me não aparecesse
assaz clara esta exposição, Quincas Borba desenvolveu-a de um modo profundo,
fazendo notar as grandes linhas do sistema. Explicou-me que, por um lado, o
Humanitismo ligava-se ao Bramanismo, a saber, na distribuição dos homens pelas
diferentes partes do corpo de Humanitas; mas aquilo que na religião indiana
tinha apenas uma estreita significação teológica e política, era no Humanitismo
a grande lei do valor pessoal. Assim, descender do peito ou dos rins de
Humanitas, isto é, ser um forte, não era o mesmo que descender dos
cabelos ou da ponta do nariz. Daí a necessidade de cultivar e temperar o
músculo. Hércules não foi senão um símbolo antecipado do Humanitismo. Neste
ponto Quincas Borba ponderou que o paganismo poderia ter chegado à verdade, se
se não houvesse amesquinhado com a parte galante dos seus mitos. Nada disso
acontecerá com o Humanitismo. Nesta igreja nova não há aventuras fáceis, nem
quedas, nem tristezas, nem alegrias pueris. O amor, por exemplo, é um
sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida é o maior benefício do
universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte (o que é um
delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmissão da vida, longe de
ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto,
verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.
— Imagina, por exemplo,
que eu não tinha nascido, continuou o Quincas Borba; é positivo que não teria
agora o prazer de conversar contigo, comer esta batata, ir ao teatro, e para
tudo dizer numa só palavra: viver. Nota que eu não faço do homem um simples
veículo de Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo veículo, cocheiro e passageiro;
ele é o próprio Humanitas reduzido; daí a necessidade de adorar-se a si
próprio. Queres uma prova da superioridade do meu sistema? Contempla a inveja.
Não há moralista grego ou turco, cristão ou muçulmano, que não troveje contra o
sentimento da inveja. O acordo é universal, desde os campos da Iduméia até o
alto da Tijuca. Ora bem; abre mão dos velhos preconceitos, esquece as retóricas
rafadas, e estuda a inveja, esse sentimento tão sutil e tão nobre. Sendo cada
homem uma redução de Humanitas, é claro que nenhum homem é fundamentalmente
oposto a outro homem, quaisquer que sejam as aparências contrárias. Assim, por
exemplo, o algoz que executa o condenado pode excitar o vão clamor dos poetas;
mas substancialmente é Humanitas que corrige em Humanitas uma infração da lei
de Humanitas. O mesmo direi do indivíduo que estripa a outro; é uma
manifestação da força de Humanitas. Nada obsta (e há exemplos) que ele seja
igualmente estripado. Se entendeste bem, facilmente compreenderás que a inveja
não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande função do gênero
humano, todos os sentimentos belicosos são os mais adequados à sua felicidade.
Daí vem que a inveja é uma virtude.
Para que negá-lo? eu
estava estupefato. A clareza da exposição, a lógica dos princípios, o rigor das
consequências, tudo isso parecia superiormente grande, e foi-me preciso
suspender a conversa por alguns minutos, enquanto digeria a filosofia nova.
Quincas Borba mal podia encobrir a satisfação do triunfo. Tinha uma asa de
frango no prato, e trincava-a com filosófica serenidade. Eu fiz-lhe ainda
algumas objeções, mas tão frouxas, que ele não gastou muito tempo em
destruí-las.
— Para entender bem o
meu sistema, concluiu ele, importa não esquecer nunca o princípio universal,
repartido e resumido em cada homem. Olha: a guerra, que parece uma calamidade,
é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos de
Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a fome é uma
prova a que Humanitas submete a própria víscera. Mas eu não quero outro
documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de
milho, que foi plantado por um africano, suponhamos, importado de Angola.
Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio
construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens, levado por velas,
que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do
aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado
de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao
meu apetite.
Entre o queijo e o
café, demonstrou-me Quincas Borba que o seu sistema era a destruição da dor. A
dor, segundo o Humanitismo, é uma pura ilusão. Quando a criança é ameaçada por
um pau, antes mesmo de ter sido espancada, fecha os olhos e treme; essa predisposição,
é que constitui a base da ilusão humana, herdada e transmitida. Não basta
certamente a adoção do sistema para acabar logo com a dor, mas é indispensável;
o resto é a natural evolução das coisas. Uma vez que o homem se compenetre bem
de que ele é o próprio Humanitas, não tem mais do que remontar o pensamento à
substância original para obstar qualquer sensação dolorosa. A evolução, porém,
é tão profunda, que mal se lhe podem assinar alguns milhares de anos.
Quincas Borba leu-me
daí a dias a sua grande obra. Eram quatro volumes manuscritos, de cem páginas
cada um, com letra miúda e citações latinas. O último volume compunha-se de um
tratado político, fundado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha do
sistema, posto que concebida com um formidável rigor de lógica. Reorganizada a
sociedade pelo método dele, nem por isso ficavam eliminadas a guerra, a
insurreição, o simples murro, a facada anônima, a miséria, a fome, as doenças;
mas sendo esses supostos flagelos verdadeiros equívocos do entendimento, porque
não passariam de movimentos externos da substância interior, destinados a não
influir sobre o homem, senão como simples quebra da monotonia universal, claro
estava que a sua existência não impediria a felicidade humana. Mas ainda quando
tais flagelos (o que era radicalmente falso) correspondessem no futuro à
concepção acanhada de antigos tempos, nem por isso ficava destruído o sistema,
e por dois motivos: 1.° porque sendo Humanitas a substância criadora e
absoluta, cada indivíduo deveria achar a maior delícia do mundo em
sacrificar-se ao princípio de que descende; 2.° porque, ainda assim, não
diminuiria o poder espiritual do homem sobre a Terra, inventada unicamente para
seu recreio dele, como as estrelas, as brisas, as tâmaras e o ruibarbo.
Pangloss, dizia-me ele ao fechar o livro, não era tão tolo como o pintou
Voltaire.
CAPÍTULO CXVIII / A
TERCEIRA FORÇA
A terceira força que me
chamava ao bulício era o gosto de luzir, e, sobretudo, a incapacidade de viver
só. A multidão atraía-me, o aplauso namorava-me. Se a ideia do emplasto me tem
aparecido nesse tempo, quem sabe? não teria morrido logo e estaria célebre. Mas
o emplasto não veio. Veio o desejo de agitar-me em alguma coisa, com alguma
coisa e por alguma coisa.
CAPÍTULO CXIX / PARÊNTESES
Quero deixar aqui,
entre parêntesis, meia dúzia de máximas das muitas que escrevi por esse tempo.
São bocejos de enfado; podem servir de epígrafe a discursos sem assunto:
* * *
Suporta-se com
paciência a cólica do próximo.
* * *
Matamos o tempo; o
tempo nos enterra.
* * *
Um cocheiro filósofo
costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de
carruagem.
* * *
Crê em ti; mas nem
sempre duvides dos outros.
* * *
Não se compreende que
um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é
de um joalheiro.
* * *
Não te irrites se te
pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar.
CAPÍTULO CXX / “COMPELLE
INTRARE”
— Não, senhor, agora
quer você queira, quer não, há de casar, disse-me Sabina. Que belo futuro! Um
solteirão sem filhos.
Sem filhos! A ideia de
ter filhos deu-me um sobressalto; percorreu-me outra vez o fluido misterioso.
Sim, cumpria ser pai. A vida celibata podia ter certas vantagens próprias, mas
seriam tênues, e compradas a troco da solidão. Sem filhos! Não; impossível.
Dispus-me a aceitar tudo, ainda a aliança do Damasceno. Sem filhos! Como já
então depositasse grande confiança em Quincas Borba, fui ter com ele e
expus-lhe os movimentos internos da minha paternidade. O filósofo ouviu-me com
alvoroço; declarou-me que Humanitas se agitava em meu seio; animou-me ao
casamento, ponderou que eram mais alguns convivas que batiam à porta, etc. Compelle
intrare, como dizia Jesus. E não me deixou sem provar que o apólogo
evangélico não era mais do que um prenúncio do Humanitismo, erradamente
interpretado pelos padres.
CAPÍTULO CXXI / MORRO
ABAIXO
No fim de três meses,
ia tudo à maravilha. O fluido, Sabina, os olhos da moça, os desejos do pai,
eram outros tantos impulsos que me levavam ao matrimônio. A lembrança de
Virgília aparecia de quando em quando, à porta, e com ela um diabo negro que me
metia à cara um espelho, no qual eu via ao longe Virgília desfeita em lágrimas;
mas outro diabo vinha, cor-de-rosa, com outro espelho, em que se refletia a
figura de Nhã-loló, terna, luminosa, angélica.
Não falo dos anos. Não
os sentia; acrescentarei até que os deitara fora, certo domingo, em que fui à
missa na capela do Livramento. Como o Damasceno morava nos Cajueiros, eu
acompanhava-os muitas vezes à missa. O morro estava ainda nu de habitações,
salvo o velho palacete do alto, onde era a capela. Pois um domingo, ao descer
com Nhã-loló pelo braço, não sei que fenômeno se deu que fui deixando aqui dois
anos, ali quatro, logo adiante cinco, de maneira que, quando cheguei abaixo,
estava com vinte anos apenas, tão lépidos como tinham sido.
Agora, se querem saber
em que circunstância se deu o fenômeno, basta-lhes ler este capítulo até o fim.
Vínhamos da missa, ela, o pai e eu. No meio do morro achamos um grupo de
homens. Damasceno, que vinha ao pé de nós, percebeu o que era e adiantou-se
alvoroçado; nós fomos atrás dele. E vimos isto: homens de todas as idades,
tamanhos e cores, uns em mangas de camisa, outros de jaqueta, outros metidos em
sobrecasacas esfrangalhadas; atitudes diversas, uns de cócoras, outros com as
mãos apoiadas nos joelhos, estes sentados em pedras, aqueles encostados ao
muro, e todos com os olhos fixos no centro, e as almas debruçadas das pupilas.
— Que é? perguntou-me
Nhã-loló.
Fiz-lhe sinal que se
calasse; abri sutilmente caminho, e todos me foram cedendo espaço, sem que
positivamente ninguém me visse. O centro tinha-lhes atado os olhos. Era uma
briga de galos. Vi os dois contendores, dois galos de esporão agudo, olho de
fogo e bico afiado. Ambos agitavam as cristas em sangue; o peito de um e de
outro estava desplumado e rubro; invadia-os o cansaço. Mas lutavam ainda assim,
olhos fitos nos olhos, bico abaixo, bico acima, golpe deste, golpe daquele,
vibrantes e raivosos. Damasceno não sabia mais nada; o espetáculo eliminou para
ele todo o universo. Em vão lhe disse que era tempo de descer; ele não
respondia, não ouvia, concentrara-se no duelo. A briga de galos era uma de suas
paixões.
Foi nessa ocasião que
Nhã-loló me puxou brandamente pelo braço, dizendo que nos fôssemos embora.
Aceitei o conselho e vim com ela por ali abaixo. Já disse que o morro era então
desabitado; disse-lhes também que vínhamos da missa, e não lhes tendo dito que
chovia, era claro que fazia bom tempo, um sol delicioso. E forte. Tão forte que
eu abri logo o guarda-sol, segurei-o pelo centro do cabo, e inclinei-o por modo
que ajuntei uma página à filosofia do Quincas Borba: Humanitas osculou
Humanitas… Foi assim que os anos me vieram caindo pelo morro abaixo.
Ao sopé detivemo-nos
alguns minutos, à espera de Damasceno; ele veio daí a pouco rodeado dos
apostadores, a comentar com eles a briga. Um destes, tesoureiro das apostas,
distribuía um velho maço de notas de dez tostões, que os vencedores recebiam
duplamente alegres. Quanto aos galos vinham sobraçados pelo respectivo dono. Um
deles trazia a crista tão comida e ensangüentada, que vi logo nele o vencido;
mas era engano, — o vencido era o outro, que não trazia crista nenhuma. Ambos
tinham o bico aberto, respirando a custo, esfalfados. Os apostadores, ao
contrário, vinham alegres, sem embargo das fortes comoções da luta; biografavam
os contendores, relembravam as proezas de ambos. Eu fui andando, vexado;
Nhã-loló vexadíssima.
CAPÍTULO CXXII / UMA
INTENÇÃO MUITO FINA
O que vexava a Nhã-loló
era o pai. A facilidade com que ele se metera com os apostadores punha em
relevo antigos costumes e afinidades sociais, e Nhã-loló chegara a temer que
tal sogro me parecesse indigno. Era notável a diferença que ela fazia de si
mesma; estudava-se e estudava-me. A vida elegante e polida atraía-a,
principalmente porque lhe parecia o meio mais seguro de ajustar as nossas
pessoas. Nhã-loló observava, imitava, adivinhava; ao mesmo tempo dava-se ao
esforço de mascarar a inferioridade da família. Naquele dia, porém, a
manifestação do pai foi tamanha que a entristeceu grandemente. Eu busquei então
diverti-la do assunto, dizendo-lhe muitas chanças e motes de bom-tom; vãos
esforços, que não a alegravam mais. Era tão profundo o abatimento, tão
expressivo o desânimo, que cheguei a atribuir a Nhã-loló a intenção positiva de
separar, no meu espírito, a sua causa da causa do pai. Este sentimento pareceu-me
de grande elevação; era uma afinidade mais entre nós.
— Não há remédio, disse
eu comigo, vou arrancar esta flor a este pântano.
CAPÍTULO CXXIII / O
VERDADEIRO COTRIM
Não obstante os meus
quarenta e tantos anos, como eu amasse a harmonia da família, entendi não
tratar o casamento sem primeiro falar ao Cotrim. Ele ouviu-me e respondeu-me
seriamente que não tinha opinião em negócio de parentes seus. Podiam supor-lhe
algum interesse, se acaso louvasse as raras prendas de Nhã-loló; por isso calava-se.
Mais: estava certo de que a sobrinha nutria por mim verdadeira paixão, mas se
ela o consultasse, o seu conselho seria negativo. Não era levado por nenhum
ódio; apreciava as minhas boas qualidades, — não se fartava de as elogiar, como
era de justiça; e pelo que respeita a Nhã-loló, não chegaria jamais a negar que
era noiva excelente; mas daí a aconselhar o casamento ia um abismo.
— Lavo inteiramente as
mãos, concluiu ele.
— Mas você achava outro
dia que eu devia casar quanto antes…
— Isso é outro negócio.
Acho que é indispensável casar, principalmente tendo ambições políticas. Saiba
que na política o celibato é uma remora. Agora, quanto à noiva, não posso ter
voto, não quero, não devo, não é de minha honra. Parece-me que Sabina foi além,
fazendo-lhe certas confidências, segundo me disse; mas em todo caso ela não é
tia carnal de Nhã-loló, como eu. Olhe… mas não… não digo…
— Diga.
— Não; não digo nada.
Talvez pareça excessivo
o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um caráter ferozmente
honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram ao
inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Arguiam-no de avareza, e
cuide que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude e as
virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o deficit.
Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de
bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência
escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que
ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente
contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais
duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à
índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de
que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na
dor que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável,
acho eu, e não única. Era tesoureiro de uma confraria, e irmão de várias
irmandades, e até irmão remido de uma destas, o que não se coaduna muito com a
reputação da avareza; verdade é que o benefício não caíra no chão: a irmandade
(de que ele fora juiz) mandara-lhe tirar o retrato a óleo. Não era perfeito,
decerto; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a notícia de um
ou outro benefício que praticava, — sestro repreensível ou não louvável,
concordo; mas ele desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas,
quando públicas; razão a que se não pode negar algum peso. Creio mesmo (e nisto
faço o seu maior elogio) que ele não praticava, de quando em quando, esses
benefícios senão com o fim de espertar a filantropia dos outros; e se tal era o
intuito, força é confessar que a publicidade tornava-se uma condição sine
qua non. Em suma, poderia dever algumas atenções, mas não devia um real a
ninguém.
CAPÍTULO CXXIV / VÁ
DE INTERMÉDIO
Que há entre a vida e a
morte? Uma curta ponte. Não obstante, se eu não compusesse este capítulo,
padeceria o leitor um forte abalo, assaz danoso ao efeito do livro. Saltar de
um retrato a um epitáfio, pode ser real e comum; o leitor, entretanto, não se
refugia no livro, senão para escapar à vida. Não digo que este pensamento seja
meu; digo que há nele uma dose de verdade, e que, ao menos, a forma é
pinturesca. E repito: não é meu.
CAPÍTULO CXXV / EPITÁFIO
________________________
AQUI JAZ
D. EULÁLIA DAMASCENA DE
BRITO
MORTA
AOS DEZENOVE ANOS DE
IDADE
ORAI POR ELA!
________________________
CAPÍTULO CXXVI / DESCONSOLAÇÃO
O epitáfio diz tudo.
Vale mais do que se lhes narrasse a moléstia de Nhã-loló, a morte, o desespero
da família, o enterro. Ficam sabendo que morreu; acrescentarei que foi por
ocasião da primeira entrada da febre amarela. Não digo mais nada, a não ser que
a acompanhei até o último jazigo, e me despedi triste, mas sem lágrimas.
Concluí que talvez não a amasse deveras.
Vejam agora a que
excessos pode levar uma inadvertência; doeu-me um pouco a cegueira da epidemia
que, matando à direita e à esquerda, levou também uma jovem dama, que tinha de
ser minha mulher; não cheguei a entender a necessidade da epidemia, menos ainda
daquela morte. Creio até que esta me pareceu ainda mais absurda que todas as
outras mortes. Quincas Borba, porém, explicou-me que epidemias eram úteis à
espécie, embora desastrosas para uma certa porção de indivíduos; fez-me notar
que, por mais horrendo que fosse o espetáculo, havia uma vantagem de muito
peso: a sobrevivência do maior número. Chegou a perguntar-me se, no meio do
luto geral, não sentia eu algum secreto encanto em ter escapado às garras da
peste; mas esta pergunta era tão insensata, que ficou sem resposta.
Se não contei a morte,
não conto igualmente a missa do sétimo dia. A tristeza do Damasceno era
profunda; esse pobre homem parecia uma ruína. Quinze dias depois estive com
ele; continuava inconsolável, e dizia que a dor grande com que Deus o castigara
fora ainda aumentada com a que lhe infligiram os homens. Não me disse mais
nada. Três semanas depois tornou ao assunto, e então confessou-me que, no meio
do desastre irreparável, quisera ter a consolação da presença dos amigos. Doze
pessoas apenas, e três quartas partes amigos do Cotrim, acompanharam à cova o
cadáver de sua querida filha. E ele fizera expedir oitenta convites.
Ponderei-lhe que as perdas eram tão gerais que bem se podia desculpar essa
desatenção aparente. Damasceno abanava a cabeça de um modo incrédulo e triste.
— Qual! gemia ele,
desampararam-me.
Cotrim, que estava
presente:
— Vieram os que deveras
se interessam por você e por nós. Os oitenta viriam por formalidade, falariam
da inércia do governo, das panacéias dos boticários, do preço das casas, ou uns
dos outros…
Damasceno ouviu calado,
abanou outra vez a cabeça, e suspirou:
— Mas viessem!
CAPÍTULO CXXVII / FORMALIDADE
Grande coisa é haver
recebido do céu uma partícula da sabedoria, o dom de achar as relações das
coisas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir! Eu tive essa
distinção psíquica; eu a agradeço ainda agora do fundo do meu sepulcro.
De fato, o homem vulgar
que ouvisse a última palavra do Damasceno não se lembraria dela, quando, tempos
depois, houvesse de olhar para uma gravura representando seis damas turcas.
Pois eu lembrei-me. Eram seis damas de Constantinopla, — modernas, — em trajos
de rua, cara tapada, não com um espesso pano que as cobrisse deveras, mas com
um véu tenuíssimo, que simulava descobrir somente os olhos, e na realidade
descobria a cara inteira. E eu achei graça a essa esperteza da faceirice
muçulmana, que assim esconde o rosto, — e cumpre o uso, — mas não o esconde, —
e divulga a beleza. Aparentemente, nada há entre as damas turcas e o Damasceno;
mas se tu és um espírito profundo e penetrante (e duvido muito que me negues
isso), compreenderás que, tanto num como noutro caso, surge aí a orelha de uma
rígida e meiga companheira do homem social…
Amável Formalidade, tu
és, sim, o bordão da vida, o bálsamo dos corações, a medianeira entre os
homens, o vínculo da Terra e do Céu; tu enxugas as lágrimas de um pai, tu
captas a indulgência de um Profeta. Se a dor adormece, e a consciência se
acomoda, a quem, senão a ti, devem esse imenso benefício? A estima que passa de
chapéu na cabeça não diz nada à alma; mas a indiferença que corteja deixa-lhe
uma deleitosa impressão. A razão é que, ao contrário de uma velha fórmula
absurda, não é a letra que mata; a letra dá vida; o espírito é que é objeto de
controvérsia, de dúvida, de interpretação e conseguintemente de luta e de
morte. Vive tu, amável Formalidade, para sossego do Damasceno e glória de
Muamede.
CAPÍTULO CXXVIII / NA
CÂMARA
E notai bem que eu vi a
gravura turca, dois anos depois das palavras de Damasceno, e vi-a na Câmara dos
Deputados, em meio de grande burburinho, enquanto um deputado discutia um
parecer da comissão do orçamento, sendo eu também deputado. Para quem há lido este
livro é escusado encarecer a minha satisfação, e para os outros é igualmente
inútil. Era deputado, e vi a gravura turca, recostado na minha cadeira, entre
um colega, que contava uma anedota, e outro, que tirava a lápis, nas costas de
uma sobrecarta, o perfil de orador. O orador era o Lobo Neves. A onda da vida
trouxe-nos à mesma praia, como duas botelhas de náufragos, ele contendo o seu
ressentimento, eu devendo conter o meu remorso; e emprego esta forma
suspensiva, dubitativa ou condicional, para o fim de dizer que efetivamente não
continha nada, a não ser a ambição de ser ministro.
CAPÍTULO CXXIX / SEM
REMORSOS
Não tinha remorsos. Se
possuísse os aparelhos próprios, incluía neste livro uma página de química,
porque havia de decompor o remorso até os mais simples elementos, com o fim de
saber de um modo positivo e concludente por que razão Aquiles passeia à roda de
Tróia o cadáver do adversário, e lady Macbeth passeia à volta da sala a
sua mancha de sangue. Mas eu não tenho aparelhos químicos, como não tinha
remorsos; tinha vontade de ser ministro de Estado. Contudo, se hei de acabar
este capítulo, direi que não quisera ser Aquiles nem lady Macbeth; e
que, a ser alguma coisa, antes Aquiles, antes passear ovante o cadáver do que a
mancha; ouvem-se no fim as súplicas de Príamo, e ganha-se uma bonita reputação
militar e literária. Eu não ouvia as súplicas de Príamo, mas o discurso do Lobo
Neves, e não tinha remorsos.
CAPÍTULO CXXX / PARA
INTERCALAR NO CAP. CXXIX
A primeira vez que pude
falar a Virgília, depois da presidência, foi num baile em 1855. Trazia um
soberbo vestido de gorgorão azul, e ostentava às luzes o mesmo par de ombros de
outro tempo. Não era a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda
estava formosa, de uma formosura outoniça, realçada pela noite. Lembra-me que
falamos muito, sem aludir a coisa nenhuma do passado. Subentendia-se tudo. Um
dito remoto, vago, ou então um olhar, e mais nada. Pouco depois retirou-se; eu
fui vê-la descer as escadas, e não sei por que fenômeno de ventriloquismo
cerebral (perdoem-me os filólogos essa frase bárbara) murmurei comigo esta
palavra profundamente retrospectiva:
“Magnífica!”
Convém intercalar este
capítulo entre a primeira oração e a segunda do capítulo CXXIX.
CAPÍTULO CXXXI / DE
UMA CALÚNIA
Como eu acabava de
dizer aquilo, pelo processo ventríloquo-cerebral, — o que era simples opinião e
não remorso, — senti que alguém me punha a mão no ombro. Voltei-me; era um
antigo companheiro, oficial de marinha, jovial, um pouco despejado de maneiras.
Ele sorriu maliciosamente, e disse-me:
— “Seu” maganão!
Recordações do passado, hein?
— Viva o passado!
— Você naturalmente foi
reintegrado no emprego.
— Salta, pelintra!
disse eu, ameaçando-o com o dedo.
Confesso que este
diálogo era uma indiscrição, — principalmente a última réplica. E com tanto
maior prazer o confesso, quanto que as mulheres é que têm fama de indiscretas,
e não quero acabar o livro sem retificar essa noção do espírito humano. Em
pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo, de um
modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e
jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A razão desta
diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo CI e outras) entrega-se
por amor, ou seja o amor-paixão de Stendhal, ou o puramente físico de algumas
damas romanas, por exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que
outras raças civilizadas; mas o homem, — falo do homem de uma sociedade culta e
elegante, — o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso (e
refiro-me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem,
parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com arte maior,
tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo-se causa da infração
e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro
sentimento menos ríspido e menos secreto, — essa boa fatuidade, que é a
transpiração luminosa do mérito.
Mas seja ou não
verdadeira a minha explicação, basta-me deixar escrito nesta página, para uso
dos séculos, que a indiscrição das mulheres é uma burla inventada pelos homens;
em amor, pelo menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por
desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos olhares; e
é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha de Navarra, empregou
algures esta metáfora para dizer que toda a aventura amorosa vinha descobrir-se
por força, mais tarde ou mais cedo: “Não há cachorrinho tão adestrado, que lhe
não ouçamos o latir”.
CAPÍTULO CXXXII / QUE
NÃO É SÉRIO
Citando o dito da
rainha de Navarra, ocorre-me que entre o nosso povo, quando uma pessoa vê outra
pessoa arrufada, costuma perguntar-lhe: “Gentes, quem matou seus cachorrinhos?”
como se dissesse: — “quem lhe levou os amores, as aventuras secretas, etc.” Mas
este capítulo não é sério.
CAPÍTULO CXXXIII / O
PRINCÍPIO DE HELVETIUS
Estávamos no ponto em
que o oficial de marinha me arrancou a confissão dos amores de Virgília, e aqui
emendo eu o princípio de Helvetius, — ou, por outra, explico-o. O meu interesse
era calar; confirmar a suspeita de uma coisa antiga fora provocar algum ódio
sopitado, dar origem a um escândalo, quando menos adquirir a reputação de
indiscreto. Era esse o interesse; e entendendo-se o princípio de Helvetius de
um modo superficial, isso é o que devia ter feito. Mas eu já dei o motivo da
indiscrição masculina: antes daquele interesse de segurança, havia
outro, o do desvanecimento, que é mais íntimo, mais imediato: o primeiro
era reflexivo, supunha um silogismo anterior; o segundo era espontâneo,
instintivo, vinha das entranhas do sujeito; finalmente, o primeiro tinha o
efeito remoto, o segundo próximo. Conclusão: o princípio de Helvetius é
verdadeiro no meu caso; — a diferença é que não era o interesse aparente, mas o
recôndito.
CAPÍTULO CXXXIV / CINQÜENTA
ANOS
Não lhes disse ainda, —
mas digo-o agora, — que quando Virgília descia a escada, e o oficial de marinha
me tocava no ombro, tinha eu cinqüenta anos. Era portanto a minha vida que
descia pela escada abaixo, — ou a melhor parte, ao menos, uma parte cheia de
prazeres, de agitações, de sustos, — capeada de dissimulação e duplicidade, —
mas enfim a melhor, se devemos falar a linguagem usual. Se, porém, empregarmos
outra mais sublime, a melhor parte foi a restante, como eu terei a honra de
lhes dizer nas poucas páginas deste livro.
Cinquenta anos! Não era
preciso confessá-lo. Já se vai sentindo que o meu estilo não é tão lesto como
nos primeiros dias. Naquela ocasião, cessado o diálogo com o oficial de
marinha, que enfiou a capa e saiu, confesso que fiquei um pouco triste. Voltei
à sala, lembrou-me dançar uma polca, embriagar-me das luzes, das flores, dos
cristais, dos olhos bonitos, e do burburinho surdo e ligeiro das conversas
particulares. E não me arrependo; remocei. Mas, meia hora depois, quando me
retirei do baile, às quatro da manhã, o que é que fui achar no fundo do carro?
Os meus cinquenta anos. Lá estavam eles os teimosos, não tolhidos de frio, nem
reumáticos, — mas cochilando a sua fadiga, um pouco cobiçosos de cama e de
repouso. Então, — e vejam até que ponto pode ir a imaginação de um homem, com
sono, — então pareceu-me ouvir de um morcego escarapitado no tejadilho: Sr.
Brás Cubas, a rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas luzes, nas
sedas, — enfim, nos outros.
CAPÍTULO CXXXV / “OBLIVION”
E agora sinto que, se
alguma dama tem seguido estas páginas, fecha o livro e não lê as restantes.
Para ela extinguiu-se o interesse da minha vida, que era o amor. Cinquenta
anos! Não é ainda a invalidez, mas já não é a frescura. Venham mais dez, e eu
entenderei o que um inglês dizia, entenderei que “coisa é não achar já quem se
lembre de meus pais, e de que modo me há de encarar o próprio ESQUECIMENTO”.
Vai em versaletes esse
nome. OBLIVION! Justo é que se deem todas as honras a um personagem tão
desprezado e tão digno, conviva da última hora, mas certo. Sabe-o a dama que
luziu na aurora do atual reinado, e mais dolorosamente a que ostentou suas
graças em flor sob o ministério Paraná, porque esta acha-se mais perto do
triunfo, e sente já que outras lhe tomaram o carro. Então, se é digna de si
mesma, não teima em espertar a lembrança morta ou expirante; não busca no olhar
de hoje a mesma saudação do olhar de ontem, quando eram outros os que encetavam
a marcha da vida, de alma alegre e pé veloz. Tempora mutantur.
Compreende que este turbilhão é assim mesmo, leva as folhas do mato e os
farrapos do caminho, sem exceção nem piedade; e se tiver um pouco de filosofia,
não inveja, mas lastima as que lhe tomaram o carro, porque também elas hão de
ser apeadas pelo estribeiro OBLIVION. Espetáculo, cujo fim é divertir o planeta
Saturno, que anda muito aborrecido.
CAPÍTULO CXXXVI / INUTlLIDADE
Mas, ou muito me
engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.
CAPÍTULO CXXXVII / A
BARRETINA
E daí, não; ele resume
as reflexões que fiz no dia seguinte ao Quincas Borba, acrescentando que me
sentia acabrunhado, e mil outras coisas tristes. Mas esse filósofo, com o
elevado tino de que dispunha, bradou-me que eu ia escorregando na ladeira fatal
da melancolia.
— Meu caro Brás Cubas,
não te deixes vencer desses vapores. Que diacho! é preciso ser homem! ser
forte! lutar! vencer! brilhar! influir! dominar! Cinquenta anos é a idade da
ciência e do governo. Ânimo, Brás Cubas; não me sejas palerma. Que tens tu com
essa sucessão de ruína a ruína ou de flor a flor? Trata de saborear a vida; e
fica sabendo que a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do
rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não
parar nunca; acomoda-te com a lei, e trata de aproveitá-la.
Vê-se nas menores
coisas o que vale a autoridade de um grande filósofo. As palavras do Quincas
Borba tiveram o condão de sacudir o torpor moral e mental em que andava. Vamos
lá; façamo-nos governo, é tempo. Eu não havia intervindo até então nos grandes
debates. Cortejava a pasta por meio de rapapés, chás, comissões e votos; e a
pasta não vinha. Urgia apoderar-me da tribuna.
Comecei devagar. Três
dias depois, discutindo-se o orçamento da justiça, aproveitei o ensejo para
perguntar modestamente ao ministro se não julgava útil diminuir a barretina da
guarda nacional. Não tinha vasto alcance o objeto da pergunta; mas ainda assim
demonstrei que não era indigno das cogitações de um homem de Estado; e citei
Filopémen, que ordenou a substituição dos broquéis de suas tropas, que eram
pequenos, por outros maiores, e bem assim as lanças, que eram demasiado leves;
fato que a história não achou que desmentisse a gravidade de suas páginas. O
tamanho das nossas barretinas estava pedindo um corte profundo, não só por
serem deselegantes, mas também por serem anti-higiênicas. Nas paradas, ao sol,
o excesso de calor produzido por elas podia ser fatal. Sendo certo que um dos
preceitos de Hipócrates era trazer a cabeça fresca, parecia cruel obrigar um
cidadão, por simples consideração de uniforme, a arriscar a saúde e a vida, e
consequentemente o futuro da família. A Câmara e o governo deviam lembrar-se
que a guarda nacional era o anteparo da liberdade e da independência, e que o
cidadão, chamado a um serviço gratuito, frequente e penoso, tinha direito a que
se lhe diminuísse o ônus, decretando um uniforme leve e maneiro. Acrescia que a
barretina, por seu peso, abatia a cabeça dos cidadãos, e a pátria precisava de
cidadãos cuja fronte pudesse levantar-se altiva e serena diante do poder; e
concluí com esta ideia: O chorão, que inclina os seus galhos para a terra, é
árvore de cemitério; a palmeira, ereta e firme, é árvore do deserto, das praças
e dos jardins.
Vária foi a impressão
deste discurso. Quanto à forma, ao rapto eloquente, à parte literária e
filosófica, a opinião foi só uma; disseram-me todos que era completo, e que de
uma barretina ninguém ainda conseguira tirar tantas ideias. Mas a parte
política foi considerada por muitos deplorável; alguns achavam o meu discurso
um desastre parlamentar; enfim, vieram dizer-me que outros me davam já em
oposição, entrando nesse número os oposicionistas da Câmara, que chegaram a
insinuar a conveniência de uma moção de desconfiança. Repeli energicamente tal
interpretação, que não era só errônea, mas caluniosa, à vista da notoriedade
com que eu sustentava o gabinete; acrescentei que a necessidade de diminuir a
barretina não era tamanha que não pudesse esperar alguns anos; e que, em todo
caso, eu transigiria na extensão do corte, contentando-me com três quartos de
polegada ou menos; enfim, dado mesmo que a minha ideia não fosse adotada,
bastava-me tê-la iniciado no parlamento.
Quincas Borba, porém,
não fez restrição alguma. Não sou homem político, disse-me ele ao jantar; não
sei se andaste bem ou mal; sei que fizeste um excelente discurso. E então notou
as partes mais salientes, as belas imagens, os argumentos fortes, com esse
comedimento de louvor que tão bem fica a um grande filósofo; depois, tomou o
assunto à sua conta, e impugnou a barretina com tal força, com tamanha lucidez,
que acabou convencendo-me efetivamente do seu perigo.
CAPÍTULO CXXXVIII / A
UM CRÍTICO
Meu caro crítico,
Algumas páginas atrás,
dizendo eu que tinha cinquenta anos, acrescentei: “Já se vai sentindo que o meu
estilo não é tão lesto como nos primeiros dias”. Talvez aches esta frase
incompreensível, sabendo-se o meu atual estado; mas eu chamo a tua atenção para
a sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer não é que esteja agora mais
velho do que quando comecei o livro. A morte não envelhece. Quero dizer, sim,
que em cada fase da narração da minha vida experimento a sensação
correspondente. Valha-me Deus! é preciso explicar tudo.
CAPÍTULO CXXXIX / DE
COMO NÃO FUI MINISTRO D’ESTADO
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CAPÍTULO CXL / QUE
EXPLICA O ANTERIOR
Há coisas que melhor se
dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior. Podem entendê-lo os
ambiciosos malogrados. Se a paixão do poder é a mais forte de todas, como
alguns inculcam, imaginem o desespero, a dor, o abatimento do dia em que perdi
a cadeira da Câmara dos Deputados. Iam-se-me as esperanças todas; terminava a
carreira política. E notem que o Quincas Borba, por induções filosóficas que
fez, achou que a minha ambição não era a paixão verdadeira do poder, mas um
capricho, um desejo de folgar. Na opinião dele, este sentimento, não sendo mais
profundo que o outro, amofina muito mais, porque orça pelo amor que as mulheres
têm às rendas e toucados. Um Cromwell ou um Bonaparte, acrescentava ele, por
isso mesmo que os queima a paixão do poder, lá chegam à fina força ou pela
escada da direita, ou pela da esquerda. Não era assim o meu sentimento; este,
não tendo em si a mesma força, não tem a mesma certeza do resultado; e daí a
maior aflição, o maior desencanto, a maior tristeza. O meu sentimento, segundo
o Humanitismo…
— Vai para o diabo com
o teu Humanitismo, interrompi-o; estou farto de filosofias que me não levam a
coisa nenhuma.
A dureza da
interrupção, tratando-se de tamanho filósofo, equivalia a um desacato; mas ele
próprio desculpou a irritação com que lhe falei. Trouxeram-nos café; era uma
hora da tarde, estávamos na minha sala de estudo, uma bela sala, que dava para
o fundo da chácara, bons livros, objetos d’arte, um Voltaire entre eles, um
Voltaire de bronze, que nessa ocasião parecia acentuar o risinho de sarcasmo,
com que me olhava, o ladrão; cadeiras excelentes; fora, o sol, um grande sol,
que o Quincas Borba, não sei se por chalaça ou poesia, chamou um dos ministros
da natureza; corria um vento fresco, o céu estava azul. De cada janela, — eram
três — pendia uma gaiola com pássaros, que chilreavam as suas óperas rústicas. Tudo
tinha a aparência de uma conspiração das coisas contra o homem: e, conquanto eu
estivesse na minha sala, olhando para a minha chácara, sentado na
minha cadeira, ouvindo os meus pássaros, ao pé dos meus
livros, alumiado pelo meu sol, não chegava a curar-me das saudades
daquela outra cadeira, que não era minha.
CAPÍTULO CXLI / OS
CÃES
— Mas, enfim,, que
pretendes fazer agora? perguntou-me Quincas Borba, indo pôr a xícara vazia no
parapeito de uma das janelas.
— Não sei; vou meter-me
na Tijuca; fugir aos homens. Estou envergonhado, aborrecido. Tantos sonhos, meu
caro Borba, tantos sonhos, e não sou nada.
— Nada! interrompeu-me
Quincas Borba com um gesto de indignação.
Para distrair-me,
convidou-me a sair; saímos para os lados do Engenho Velho. Íamos a pé,
filosofando as coisas. Nunca me há de esquecer o benefício desse passeio. A
palavra daquele grande homem era o cordial da sabedoria. Disse-me ele que eu
não podia fugir ao combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir um
jornal. Chegou a usar uma expressão menos elevada, mostrando assim que a língua
filosófica podia, uma ou outra vez, retemperar-se no calão do povo. Funda um
jornal, disse-me ele, e “desmancha toda esta igrejinha”.
— Magnífica ideia! Vou
fundar um jornal, vou escachá-los, vou…
— Lutar. Podes
escachá-los ou não; o essencial é que lutes. Vida é luta. Vida sem luta é um
mar morto no centro do organismo universal.
Daí a pouco demos com
uma briga de cães; fato que aos olhos de um homem vulgar não teria valor.
Quincas Borba fez-me parar e observar os cães. Eram dois. Notou que ao pé deles
estava um osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção para a
circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples osso nu. Os cães mordiam-se,
rosnavam, com o furor nos olhos… Quincas Borba meteu a bengala debaixo do
braço, e parecia em êxtase.
— Que belo que isto é!
dizia ele de quando em quando.
Quis arrancá-lo dali,
mas não pude; ele estava arraigado ao chão, e só continuou a andar, quando a
briga cessou inteiramente, e um dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua
fome a outra parte. Notei que ficara sinceramente alegre, posto contivesse a
alegria, segundo convinha a um grande filósofo. Fez-me observar a beleza do
espetáculo, relembrou o objeto da luta, concluiu que os cães tinham fome; mas a
privação do alimento era nada para os efeitos gerais da filosofia. Nem deixou
de recordar que em algumas partes do globo o espetáculo mais é grandioso: as
criaturas humanas é que disputam aos cães os ossos e outros manjares menos
apetecíveis; luta que se complica muito, porque entra em ação a inteligência do
homem, com todo o acúmulo de sagacidade que lhe deram os séculos, etc.
CAPÍTULO CXLII / O
PEDIDO SECRETO
Quanta coisa num
minuete! como dizia o outro. Quanta coisa numa briga de cães! Mas eu não era um
discípulo servil ou medroso, que deixasse de fazer uma ou outra objeção
adequada. Andando, disse-lhe que tinha uma dúvida; não estava bem certo da
vantagem de disputar a comida aos cães. Ele respondeu-me com excepcional
brandura:
— Disputá-la aos outros
homens é mais lógico, porque a condição dos contendores é a mesma, e leva o
osso o que for mais forte. Mas por que não será um espetáculo grandioso
disputá-lo aos cães? Voluntariamente, comem-se gafanhotos, como o Precursor, ou
coisa pior, como Ezequiel; logo, o ruim é comível; resta saber se é mais digno
do homem disputá-lo, por virtude de uma necessidade natural, ou preferi-lo,
para obedecer a uma exaltação religiosa, isto é, modificável, ao passo que a
fome é eterna, como a vida e como a morte.
Estávamos à porta de
casa; deram-me uma carta, dizendo que vinha de uma senhora. Entramos, e o
Quincas Borba, com a discrição própria de um filósofo, foi ler a lombada dos
livros de uma estante, enquanto eu lia a carta, que era de Virgília:
“Meu bom amigo,
D. Plácida está muito
mal. Peço-lhe o favor de fazer alguma coisa por ela; mora no Beco das
Escadinhas; veja se alcança metê-la na Misericórdia.
Sua amiga sincera,
Não era a letra fina e
correta de Virgília, mas grossa e desigual; o V da assinatura não passava de um
rabisco sem intenção alfabética; de maneira que, se a carta aparecesse, era
muito difícil atribuir-lhe a autoria. Virei e revirei o papel. Pobre D.
Plácida! Mas eu tinha-lhe deixado os cinco contos da praia de Botafogo, e não
podia compreender que…
— Vais compreender,
disse Quincas Borba, tirando um livro da estante.
— O quê? perguntei
espantado.
— Vais compreender que
eu só te disse a verdade. Pascal é um dos meus avôs espirituais; e, conquanto a
minha filosofia valha mais que a dele, não posso negar que era um grande homem.
Ora, que diz ele nesta página? — E, chapéu na cabeça, bengala sobraçada, apontava
o lugar com o dedo. — Que diz ele? Diz que o homem tem “uma grande vantagem
sobre o resto do universo: sabe que morre, ao passo que o universo ignora-o
absolutamente”. Vês? Logo, o homem que disputa o osso a um cão tem sobre este a
grande vantagem de saber que tem fome; e é isto que torna grandiosa a luta,
como eu dizia. “Sabe que morre” é uma expressão profunda; creio todavia que é
mais profunda a minha expressão: sabe que tem fome. Porquanto o fato da morte
limita, por assim dizer, o entendimento humano; a consciência da extinção dura
um breve instante e acaba para nunca mais, ao passo que a fome tem a vantagem
de voltar, de prolongar o estado consciente. Parece-me (se não vai nisso alguma
imodéstia) que a fórmula de Pascal é inferior à minha, sem todavia deixar de
ser um grande pensamento, e Pascal um grande homem.
CAPÍTULO CXLIII / NÃO
VOU
Enquanto ele restituía
o livro à estante, relia eu o bilhete. Ao jantar, vendo que eu falava pouco,
mastigava sem acabar de engolir, fitava o canto da sala, a ponta da mesa, um
prato, uma cadeira, uma mosca invisível, disse-me ele: — Tens alguma coisa;
aposto que foi aquela carta? — Foi. Realmente, sentia-me aborrecido, incomodado
com o pedido de Virgília. Tinha dado a D. Plácida cinco contos de réis; duvido
muito que ninguém fosse mais generoso do que eu, nem tanto. Cinco contos! E que
fizera deles? Naturalmente botou-os fora, comeu-os em grandes festas, e agora
toca para a Misericórdia, e eu que a leve! Morre-se em qualquer parte. Acresce
que eu não sabia ou não me lembrava do tal Beco das Escadinhas; mas, pelo nome,
parecia-me algum recanto estreito e escuro da cidade. Tinha de lá ir, chamar a
atenção dos vizinhos, bater à porta, etc. Que maçada! Não vou.
CAPÍTULO CXLIV / UTILIDADE
RELATIVA
Mas a noite, que é boa
conselheira, ponderou que a cortesia mandava obedecer aos desejos da minha
antiga dama.
— Letras vencidas, urge
pagá-las, disse eu ao levantar-me.
Depois do almoço fui à
casa de D. Plácida; achei um molho de ossos, envolto em molambos, estendido
sobre um catre velho e nauseabundo; dei-lhe algum dinheiro. No dia seguinte
fi-la transportar para a Misericórdia, onde ela morreu uma semana depois.
Minto: amanheceu morta; saiu da vida às escondidas, tal qual entrara. Outra vez
perguntei, a mim mesmo, como no capítulo LXXV, se era para isto que o sacristão
da Sé e a doceira trouxeram Dona Plácida à luz, num momento de simpatia
específica. Mas adverti logo que, se não fosse D. Plácida, talvez os meus
amores com Virgília tivessem sido interrompidos, ou imediatamente quebrados, em
plena efervescência; tal foi, portanto, a utilidade da vida de D. Plácida.
Utilidade relativa, convenho; mas que diacho há absoluto nesse mundo?
CAPÍTULO CXLV / SIMPLES
REPETIÇÃO
Quanto aos cinco
contos, não vale a pena dizer que um canteiro da vizinhança fingiu-se enamorado
de D. Plácida, logrou espertar-lhe os sentidos, ou a vaidade, e casou com ela;
no fim de alguns meses inventou um negócio, vendeu as apólices e fugiu com o
dinheiro. Não vale a pena. É o caso dos cães do Quincas Borba. Simples
repetição de um capítulo.
CAPÍTULO CXLVI / O
PROGRAMA
Urgia fundar o jornal.
Redigi o programa, que era uma aplicação política do Humanitismo; somente, como
o Quincas Borba não houvesse ainda publicado o livro (que aperfeiçoava de ano
em ano), assentamos de lhe não fazer nenhuma referência. Quincas Borba exigiu
apenas uma declaração, autógrafa e reservada, de que alguns princípios novos
aplicados à política eram tirados do livro dele, ainda inédito.
Era a fina flor dos
programas; prometia curar a sociedade, destruir os abusos, defender os sãos
princípios de liberdade e conservação; fazia um apelo ao comércio e à lavoura;
citava Guizot e Ledru-Rollin, e acabava com esta ameaça, que o Quincas Borba
achou mesquinha e local: “A nova doutrina que professamos há de inevitavelmente
derrubar o atual ministério”. Confesso que, nas circunstâncias políticas da
ocasião, o programa pareceu-me uma obra-prima. A ameaça do fim, que o Quincas
Borba achou mesquinha, demonstrei-lhe que era saturada do mais puro
Humanitismo, e ele mesmo o confessou depois. Porquanto, o Humanitismo não
excluía nada; as guerras de Napoleão e uma contenda de cabras eram, segundo a
nossa doutrina, a mesma sublimidade, com a diferença que os soldados de
Napoleão sabiam que morriam, coisa que aparentemente não acontece às cabras.
Ora, eu não fazia mais do que aplicar às circunstâncias a nossa fórmula
filosófica: Humanitas queria substituir Humanitas para consolação de Humanitas.
— Tu és o meu discípulo
amado, o meu califa, bradou Quincas Borba, com uma nota de ternura, que até
então lhe não ouvira. Posso dizer como o grande Muamede: nem que venham agora
contra mim o sol e a lua, não recuarei das minhas ideias. Crê, meu caro Brás
Cubas, que esta é a verdade eterna, anterior aos mundos, posterior aos séculos.
CAPÍTULO CXLVII / O
DESATINO
Mandei logo para a
imprensa uma notícia discreta, dizendo que provavelmente começaria a publicação
de um jornal oposicionista, daí a algumas semanas, redigido pelo Dr. Brás
Cubas. Quincas Borba, a quem li a notícia, pegou da pena, e acrescentou ao meu
nome, com uma fraternidade verdadeiramente humanística, esta frase: “um dos
mais gloriosos membros da passada Câmara”.
No dia seguinte
entra-me em casa o Cotrim. Vinha um pouco transtornado, mas dissimulava,
afetando sossego e até alegria. Vira a notícia do jornal, e achou que devia,
como amigo e parente, dissuadir-me de semelhante ideia. Era um erro, um erro
fatal. Mostrou que eu ia colocar-me numa situação difícil, e de certa maneira
trancar as portas do parlamento. O ministério, não só lhe parecia excelente, o
que aliás podia não ser a minha opinião, mas com certeza viveria muito; e que
podia eu ganhar com indispô-lo contra mim? Sabia que alguns dos ministros me
eram afeiçoados; não era impossível uma vaga, e… Interrompi-o nesse ponto,
para lhe dizer que meditara muito o passo que ia dar, e não podia recuar uma
linha. Cheguei a propor-lhe a leitura do programa, mas ele recusou
energicamente, dizendo que não queria ter a mínima parte no meu desatino.
— É um verdadeiro
desatino, repetiu ele; pense ainda alguns dias, e verá que é um desatino.
A mesma coisa disse
Sabina, à noite, no teatro. Deixou a filha no camorote, com o Cotrim, e
trouxe-me ao corredor.
— Mano Brás, que é que
você vai fazer? perguntou-me aflita. Que ideia é essa de provocar o governo,
sem necessidade, quando podia…
Expliquei-lhe que não
me convinha mendigar uma cadeira no parlamento; que a minha ideia era derrubar
o ministério, por não me parecer adequado à situação — e a certa fórmula
filosófica; afiancei que empregaria sempre uma linguagem cortês, embora
enérgica. A violência não era especiaria do meu paladar. Sabina bateu com o
leque na ponta dos dedos, abanou a cabeça, e tornou ao assunto com um ar de
súplica e ameaça, alternadamente; eu disse-lhe que não, que não, e que não.
Desenganada, lançou-me em rosto preferi os conselhos de pessoas estranhas e
invejosas aos dela e do marido. — Pois siga o que lhe parecer, concluiu; nós
cumprimos a nossa obrigação. — Deu-me as costas e voltou ao camarote.
CAPÍTULO CXLVIII / O
PROBLEMA INSOLÚVEL
Publiquei o jornal.
Vinte e quatro horas depois, aparecia em outros uma declaração do Cotrim,
dizendo, em substância, que “posto não militasse em nenhum dos partidos em que
se dividia a pátria, achava conveniente deixar bem claro que não tinha
influência nem parte direta ou indireta na folha de seu cunhado, o Dr. Brás
Cubas, cujas ideias e procedimento político inteiramente reprovava. O atual
ministério (como aliás qualquer outro composto de iguais capacidades)
parecia-lhe destinado a promover a felicidade pública”.
Não podia acabar de
crer nos meus olhos. Esfreguei-os uma e duas vezes, e reli a declaração
inoportuna, insólita e enigmática. Se ele nada tinha com os partidos, que lhe
importava um incidente tão vulgar como a publicação de uma folha? Nem todos os
cidadãos que acham bom ou mau um ministério fazem declarações tais pela imprensa,
nem são obrigados a fazê-las. Realmente, era um mistério a intrusão do Cotrim
neste negócio, não menos que a sua agressão pessoal. Nossas relações até então
tinham sido lhanas e benévolas; não me lembrava nenhum dissentimento, nenhuma
sombra, nada, depois da reconciliação. Ao contrário, as recordações eram de
verdadeiros obséquios; assim, por exemplo, sendo eu deputado, pude obter-lhe
uns fornecimentos para o arsenal de marinha, fornecimentos que ele continuava a
fazer com a maior pontualidade, e dos quais me dizia algumas semanas antes, que
no fim de mais três anos, podiam dar-lhe uns duzentos contos. Pois a lembrança
de tamanho obséquio não teve força para obstar que ele viesse a público
enxovalhar o cunhado? Devia ser muito poderoso e motivo da declaração, que o
fazia cometer ao mesmo tempo um destempero e uma ingratidão; confesso que era
um problema insolúvel…
CAPÍTULO CXLIX / TEORIA
DO BENEFÍCIO
… Tão insolúvel que o
Quincas Borba não pôde dar com ele, apesar de estudá-lo longamente e com boa
vontade. — Ora adeus! concluiu; nem todos os problemas valem cinco minutos de
atenção.
Quanto à censura de
ingratidão, Quincas Borba rejeitou-a inteiramente, não como improvável, mas
como absurda, por não obedecer às conclusões de uma boa filosofia humanística.
— Não me podes negar um
fato, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior que o do
beneficiado. Que é o benefício? é um ato que faz cessar certa privação do
beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a
privação, torna o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe
que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o incômodo,
desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o organismo torna à
indiferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o ato. Não havendo
nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma
planta aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é certo, conserva
sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este fato, aliás um dos mais
sublimes que a filosofia pode achar em seu caminho, explica-se pela memória da
privação, ou, usando de outra fórmula, pela privação continuada na memória, que
repercute a dor passada e aconselha a precaução do remédio oportuno. Não digo
que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes, persistir a
memória do obséquio, acompanhada de certa afeição mais ou menos intensa; mas
são verdadeiras aberrações, sem nenhum valor aos olhos de um filósofo.
— Mas, repliquei eu, se
nenhuma razão há para que perdure a memória do obséquio no obsequiado, menos há
de haver em relação ao obsequiador. Quisera que me explicasses este ponto.
— Não se explica o que
é de sua natureza evidente, retorquiu o Quincas Borba; mas eu direi alguma
coisa mais. A persistência do benefício na memória de quem o exerce explica-se
pela natureza mesma do benefício e seus efeitos. Primeiramente há o sentimento
de uma boa ação, e dedutivamente a consciência de que somos capazes de boas
ações; em segundo lugar, recebe-se uma convicção de superioridade sobre outra
criatura, superioridade no estado e nos meios; e esta é uma das coisas mais
legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões, ao organismo humano.
Erasmo, que no seu Elogio da Sandice escreveu algumas coisas boas,
chamou a atenção para a complacência com que dois burros se coçam um ao outro.
Estou longe de rejeitar essa observação de Erasmo; mas direi o que ele não
disse, a saber que se um dos burros coçar melhor o outro, esse há de ter nos
olhos algum indício especial de satisfação. Por que é que uma mulher bonita
olha muitas vezes para o espelho, senão porque se acha bonita, e porque isso
lhe dá certa superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos bonitas
ou absolutamente feias? A consciência é a mesma coisa; remira-se a miúdo,
quando se acha bela. Nem o remorso é outra coisa mais do que o trejeito de uma
consciência que se vê hedionda. Não esqueças que, sendo tudo uma simples
irradiação de Humanitas, o benefício e seus efeitos são fenômenos perfeitamente
admiráveis.
CAPÍTULO CL / ROTAÇÃO
E TRANSLAÇÃO
Há em cada empresa,
afeição ou idade um ciclo inteiro da vida humana. O primeiro número do meu
jornal encheu-me a alma de uma vasta aurora, coroou-me de verduras,
restituiu-me a lepidez da mocidade. Seis meses depois batia a hora da velhice,
e daí a duas semanas a da morte, que foi clandestina, como a de D. Plácida. No
dia em que o jornal amanheceu morto, respirei como um homem que vem de longo caminho.
De modo que, se eu disser que a vida humana nutre de si mesma outras vidas,
mais ou menos efêmeras, como o corpo alimenta os seus parasitas, creio não
dizer uma coisa inteiramente absurda. Mas, para não arriscar essa figura menos
nítida e adequada, prefiro uma imagem astronômica: o homem executa à roda do
grande mistério um movimento duplo de rotação e translação; tem os seus dias,
desiguais como os de Júpiter, e deles compõe o seu ano mais ou menos longo.
No momento em que eu
terminava o meu movimento de rotação, concluía Lobo Neves o seu movimento de
translação. Morria com o pé na escada ministerial. Correu ao menos durante
algumas semanas, que ele ia ser ministro; e pois que o boato me encheu de muita
irritação e inveja, não é impossível que a notícia da morte me deixasse alguma tranquilidade,
alívio, e um ou dois minutos de prazer. Prazer é muito, mas é verdade; juro aos
séculos que é a pura verdade.
Fui ao enterro. Na sala
mortuária achei Virgília, ao pé do féretro, a soluçar. Quando levantou a
cabeça, vi que chorava deveras. Ao sair o enterro, abraçou-se ao caixão,
aflita; vieram tirá-la e levá-la para dentro. Digo-vos que as lágrimas eram
verdadeiras. Eu fui ao cemitério; e, para dizer tudo, não tinha muita vontade
de falar; levava uma pedra na garganta ou na consciência. No cemitério,
principalmente quando deixei cair a pá de cal sobre o caixão, no fundo da cova,
o baque surdo da cal deu-me um estremecimento passageiro, é certo, mas
desagradável; e depois a tarde tinha o peso e a cor do chumbo; o cemitério, as
roupas pretas…
CAPÍTULO CLI / FILOSOFIA
DOS EPITÁFIOS
Saí, afastando-me dos
grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás, gosto dos epitáfios; eles são,
entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz
o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem,
talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum;
parece-lhes que a podridão anônima os alcança a eles mesmos.
CAPÍTULO CLII / A
MOEDA DE VESPASIANO
Tinham ido todos; só o
meu carro esperava pelo dono. Acendi um charuto; afastei-me do cemitério. Não
podia sacudir dos olhos a cerimônia do enterro, nem dos ouvidos os soluços de
Virgília. Os soluços, principalmente, tinham o som vago e misterioso de um
problema. Virgília traíra o marido, com sinceridade, e agora chorava-o com
sinceridade. Eis uma combinação difícil que não pude fazer em todo o trajeto;
em casa, porém, apeando-me do carro, suspeitei que a combinação era possível, e
até fácil. Meiga Natura! A taxa da dor é como a moeda de Vespasiano; não cheira
à origem, e tanto se colhe do mal como do bem. A moral repreenderá, porventura,
a minha cúmplice; é o que te não importa, implacável amiga, uma vez que lhe
recebeste pontualmente as lágrimas. Meiga, três vezes Meiga Natura!
CAPÍTULO CLIII / O
ALIENISTA
Começo a ficar patético
e prefiro dormir. Dormi, sonhei que era nababo, e acordei com a ideia de ser
nababo. Eu gostava, às vezes, de imaginar esses contrastes de região, estado e
credo. Alguns dias antes tinha pensado na hipótese de uma revolução social,
religiosa e política, que transferisse o arcebispo de Cantuária a simples
coletor de Petrópolis, e fiz longos cálculos para saber se o coletor eliminaria
o arcebispo, ou se o arcebispo rejeitaria o coletor, ou que porção de arcebispo
pode jazer num coletor, ou que soma de coletor pode combinar com um arcebispo,
etc. Questões insolúveis, aparentemente, mas na realidade perfeitamente
solúveis, desde que se atenda que pode haver num arcebispo dois arcebispos, — o
da bula e o outro. Está dito, vou ser nababo.
Era um simples gracejo;
disse-o, todavia, ao Quincas Borba, que olhou para mim com certa cautela e
pena, levando a sua bondade a comunicar-me que eu estava doido. Ri-me a princípio;
mas a nobre convicção do filósofo incutiu-me certo medo. A única objeção contra
a palavra do Quincas Borba é que não me sentia doido, mas não tendo geralmente
os doidos outro conceito de si mesmos, tal objeção ficava sem valor. E vede se
há algum fundamento na crença popular de que os filósofos são homens alheios às
coisas mínimas. No dia seguinte, mandou-me o Quincas Borba um alienista.
Conhecia-o, fiquei aterrado. Ele, porém, houve-se com a maior delicadeza e
habilidade, despedindo-se tão alegremente que me animou a perguntar-lhe se
deveras me não achava doido.
— Não, disse ele
sorrindo; raros homens terão tanto juízo como o senhor.
— Então o Quincas Borba
enganou-se?
— Redondamente. E
depois: — Ao contrário, se é amigo dele… peço-lhe que o distraia… que…
— Justos céus!
Parece-lhe?… Um homem de tamanho espírito, um filósofo!
— Não importa, a
loucura entra em todas as casas.
Imaginem a minha
aflição. O alienista, vendo o efeito de suas palavras, reconheceu que eu era
amigo do Quincas Borba, e tratou de diminuir a gravidade da advertência.
Observou que podia não ser nada, e acrescentou até que um grãozinho de sandice,
longe de fazer mal, dava certo pico à vida. Como eu rejeitasse com horror esta
opinião, o alienista sorriu e disse-me uma coisa tão extraordinária, tão
extraordinária, que não merece menos de um capítulo.
CAPÍTULO CLIV / OS
NAVIOS DO PIREU
— Há de lembrar-se,
disse-me o alienista, daquele famoso maníaco ateniense, que supunha que todos
os navios entrados no Pireu eram de sua propriedade. Não passava de um
pobretão, que talvez não tivesse, para dormir, a cuba de Diógenes; mas a posse
imaginária dos navios valia por todas as dracmas da Hélade. Ora bem, há em
todos nós um maníaco de Atenas; e quem jurar que não possuiu alguma vez,
mentalmente, dois ou três patachos, pelo menos, pode crer que jura falso.
— Também o senhor?
perguntei-lhe.
— Também eu.
— Também eu?
— Também o senhor; e o
seu criado, não menos, se é seu criado esse homem que ali está sacudindo os
tapetes à janela.
De fato, era um dos
meus criados que batia os tapetes, enquanto nós falávamos no jardim, ao lado. O
alienista notou então que ele escancarara as janelas todas deste longo tempo,
que alçara as cortinas, que devassara o mais possível a sala, ricamente
alfaiada, para que a vissem de fora, e concluiu: — Este seu criado tem a mania
do ateniense: crê que os navios são dele; uma hora de ilusão que lhe dá a maior
felicidade da Terra.
CAPÍTULO CLV / REFLEXÃO
CORDIAL
— Se o alienista tem
razão, disse eu comigo, não haverá muito que lastimar o Quincas Borba; é uma
questão de mais ou de menos. Contudo, é justo cuidar dele, e evitar que lhe
entrem no cérebro maníacos de outras paragens.
CAPÍTULO CLVI / ORGULHO
DA SERVILIDADE
Quincas Borba divergiu
do alienista em relação ao meu criado. — Pode-se, por imagem, disse ele,
atribuir ao teu criado a mania do ateniense; mas imagens não são ideias nem
observações tomadas à natureza. O que o teu criado tem é um sentimento nobre e
perfeitamente regido pelas leis do Humanitismo: é o orgulho da servilidade. A
intenção dele é mostrar que não é criado de qualquer. — Depois chamou a
minha atenção para os cocheiros de casa grande, mais empertigados que o amo,
para os criados de hotel, cuja solicitude obedece às variações sociais da
freguesia, etc. E concluiu que era tudo a expressão daquele sentimento delicado
e nobre, — prova cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, é
sublime.
CAPÍTULO CLVII / FASE
BRILHANTE
— Sublime és tu, bradei
eu, lançando-lhe os braços ao pescoço.
Com efeito, era
impossível crer que um homem tão profundo chegasse à demência; foi o que lhe
disse após o meu abraço, denunciando-lhe a suspeita do alienista. Não posso
descrever a impressão que lhe fez a denúncia; lembra-me que ele estremeceu e
ficou muito pálido.
Foi por esse tempo que
eu me reconciliei outra vez com o Cotrim, sem chegar a saber a causa do
dissentimento. Reconciliação oportuna, porque a solidão pesava-me, e a vida era
para mim a pior das fadigas, que é a fadiga sem trabalho. Pouco depois fui
convidado por ele a filiar-me numa Ordem Terceira; o que eu não fiz sem
consultar o Quincas Borba:
— Vai, se queres,
disse-me este, mas temporariamente. Eu trato de anexar à minha filosofia uma
parte dogmática e litúrgica. O Humanitismo há de ser também uma religião, a do
futuro, a única verdadeira. O cristianismo é bom para as mulheres e os
mendigos, e as outras religiões não valem mais do que essa: orçam todas pela
mesma vulgaridade ou fraqueza. O paraíso cristão é um digno êmulo do paraíso
muçulmano; e quanto ao nirvana de Buda não passa de uma concepção de
paralíticos. Verás o que é a religião humanística. A absorção final, a fase contrativa,
é a reconstituição da substância, não o seu aniquilamento, etc. Vai aonde te
chamam; não esqueças, porém, que és o meu califa.
E vede agora a minha
modéstia; filiei-me na Ordem Terceira de ***, exerci ali alguns cargos, foi
essa a fase mais brilhante da minha vida. Não obstante, calo-me, não digo nada,
não conto os meus serviços, o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as
recompensas que recebi, nada, não digo absolutamente nada.
Talvez a economia
social pudesse ganhar alguma coisa, se eu mostrasse como todo e qualquer prêmio
estranho vale pouco ao lado do prêmio subjetivo e imediato; mas seria romper o
silêncio que jurei guardar neste ponto. Demais, os fenômenos da consciência são
de difícil análise; por outro lado, se contasse um, teria de contar todos os
que a ele se prendessem, e acabava fazendo um capítulo de psicologia. Afirmo
somente que foi a fase mais brilhante da minha vida. Os quadros eram tristes;
tinham a monotonia da desgraça, que é tão aborrecida como a do gozo, e talvez
pior. Mas a alegria que se dá à alma dos doentes e dos pobres, é recompensa de
algum valor; e não me digam que é negativa, por só recebê-la o obsequiado. Não;
eu recebia-a de um modo reflexo, e ainda assim grande, tão grande que me dava
excelente ideia de mim mesmo.
CAPÍTULO CLVIII / DOIS
ENCONTROS
No fim de alguns anos,
três ou quatro, estava enfarado do ofício, e deixei-o, não sem um donativo
importante, que me deu direito ao retrato na sacristia. Não acabarei, porém, o
capítulo sem dizer que vi morrer no hospital da Ordem, adivinhem quem?… a
linda Marcela; e vi-a morrer no mesmo dia em que, visitando um cortiço, para
distribuir esmolas, achei… Agora é que não são capazes de adivinhar… achei
a flor da moita, Eugênia, a filha de D. Eusébia e do Vilaça, tão coxa como a
deixara, e ainda mais triste.
Esta, ao reconhecer-me,
ficou pálida, e baixou os olhos; mas foi obra de um instante. Ergueu logo a
cabeça, e fitou-me com muita dignidade. Compreendi que não receberia esmolas da
minha algibeira, e estendi-lhe a mão, como faria à esposa de um capitalista.
Cortejou-me e fechou-se no cubículo. Nunca mais a vi; não soube nada da vida
dela, nem se a mãe era morta, nem que desastre a trouxera a tamanha miséria.
Sei que continuava coxa e triste. Foi com esta impressão profunda que cheguei
ao hospital, onde Marcela entrara na véspera, e onde a vi expirar meia hora
depois, feia, magra, decrépita…
CAPÍTULO CLIX / SEMIDEMÊNCIA
Compreendi que estava
velho, e precisava de uma força; mas o Quincas Borba partira seis meses antes
para Minas Gerais, e levou consigo a melhor das filosofias. Voltou quatro meses
depois, e entrou-me em casa, certa manhã, quase no estado em que eu o vira no
Passeio Público. A diferença é que o olhar era outro. Vinha demente. Contou-me
que, para o fim de aperfeiçoar o Humanitismo, queimara o manuscrito todo e ia
recomeçá-lo. A parte dogmática ficava completa, embora não escrita; era a
verdadeira religião do futuro.
— Juras por Humanitas?
perguntou-me.
— Sabes que sim.
A voz mal podia sair-me
do peito; e aliás não tinha descoberto toda a cruel verdade. Quincas Borba não
só estava louco, mas sabia que estava louco, e esse resto de consciência, como
uma frouxa lamparina no meio das trevas, complicava muito o horror da situação.
Sabia-o, e não se irritava contra o mal; ao contrário, dizia-me que era ainda
uma prova de Humanitas, que assim brincava consigo mesmo. Recitava-me longos
capítulos do livro, e antífonas, e litanias espirituais; chegou até a
reproduzir uma dança sacra que inventara para as cerimônias do Humanitismo. A
graça lúgubre com que ele levantava e sacudia as pernas era singularmente
fantástica. Outras vezes amuava-se a um canto, com os olhos fitos no ar, uns
olhos em que, de longe em longe, fulgurava um raio persistente da razão, triste
como uma lágrima…
Morreu pouco tempo
depois, em minha casa, jurando e repetindo sempre que a dor era uma ilusão, e
que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire.
CAPÍTULO CLX / DAS
NEGATIVAS
Entre a morte do Quincas
Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O
principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu
comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o
primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a
genuína e direta inspiração do Céu. O caso determinou o contrário; e aí vos
ficais eternamente hipocondríacos.
Este último capítulo é
todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro,
não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas,
coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não
padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas
coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e
conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a
este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira
negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a
nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
***
SOBRE O LIVRO:
MEMÓRIAS
PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS é um romance escrito por Machado de Assis, desenvolvido
em princípio como folhetim, de março a dezembro de 1880, na Revista Brasileira,
para, no ano seguinte, ser publicado como livro, pela então Tipografia
Nacional.
O livro
marca um tom cáustico e novo estilo na obra de Machado de Assis, bem como
audácia e inovação temática no cenário literário nacional, que o fez receber, à
época, resenhas estranhadas. Confessando adotar a “forma livre” de
Laurence Sterne em seu Tristram Shandy (1759-67), ou de Xavier de Maistre, o
autor, com Memórias Póstumas, rompe com a narração linear e objetivista de
autores proeminentes da época como Flaubert e Zola para retratar o Rio de
Janeiro e sua época em geral com pessimismo, ironia e indiferença — um dos
fatores que fizeram com que fosse amplamente considerada a obra que iniciou o
Realismo no Brasil.
Memórias Póstumas de Brás Cubas retrata a escravidão, as classes sociais, o cientificismo e
o positivismo da época, chegando a criar, inclusive, uma nova filosofia, mais
bem desenvolvida posteriormente em Quincas Borba (1891) — o Humanitismo, sátira
à lei do mais forte. Críticos escrevem que, com esse romance, Machado de Assis
precedeu elementos do Modernismo e do realismo mágico de escritores como Jorge
Luis Borges e Julio Cortázar, e, de fato, alguns autores chamam-na
“primeira narrativa fantástica do Brasil”. O livro influenciou
escritores como John Barth, Donald Barthelme e Ciro dos Anjos e é notado como
uma das obras mais revolucionárias e inovadoras da literatura brasileira. Mesmo
depois de mais de um século de sua publicação original, ainda tem recebido
inúmeros estudos e interpretações, adaptações para diversas mídias e traduções
para outras línguas.
Memórias Póstumas de Brás Cubas marca um momento no cenário literário nacional em que
Machado de Assis rompe com duas tendências literárias dominantes de seu tempo:
a dos realistas que seguiam a teoria de Flaubert, do “romance que narra a
si próprio” e que apaga o narrador atrás da objetividade da narrativa; e a
dos naturalistas que, na esteira de Zola, pregavam o “inventário maciço da
realidade”, observada nos menores detalhes. Ao invés disso, Machado de
Assis constrói um livro em que cultiva o incompleto, o fragmentário, intervindo
na narrativa para conversar diretamente com o leitor e comentar o próprio
romance e suas personagens e fatos.
Tornou-se
comum atribuir à leitura do livro um caráter de diversão e prazer por detrás de
sua perspectiva desencantada. Entre seus traços, destacam-se os do
universalismo, psicologismo, de arquétipos e o uso de um estilo
“enxuto” por primar “pelo equilíbrio, pela disciplina clássica,
pela correção gramatical e pela concisão, pela economia vocabular”. Assim,
Machado seria sóbrio e parcimonioso, ao contrário de Castro Alves, José de
Alencar e Rui Barbosa que abusariam imoderamente do adjetivo e do advérbio. De
fato, Francisco Achcar escreve que o livro é sem vocabulário difícil e que
“alguma dificuldade que pode ter um leitor de hoje se deve ao fato de que
certas palavras caíram em desuso”. A linguagem de Memórias Póstumas de
Brás Cubas, contudo, não é simétrica e mecânica, mas possui um ritmo.
O livro
é permeado por intertextualidade e ironias. O segundo recurso logo nota-se na
“Dedicatória” de Brás Cubas ao verme que primeiro roeu as frias
carnes do meu cadáver. A ironia é vista como uma forma de “revolta pela
vida” usada por Machado para fazer rir, quando como por exemplo Brás Cubas
escreve: a sabedoria humana não vale um par de botas curtas […] Tu, minha
Eugênia, é que não as descalçaste nunca à personagem que era coxa de nascença,
num célebre exemplo de humor negro. O primeiro recurso, por sua vez, refere-se
às referências machadianas aos estilos de outros grandes autores do Ocidente:
“Na maioria dos casos, essas referências são implícitas, só podem ser
percebidas por leitores familiarizados com as grandes obras da
literatura.” Brás Cubas, por exemplo, refere-se no início do livro à
Xavier de Maistre e depois a obras como a Suma Teológica. Por conta disso os
críticos notam que o estilo machadiano é “culto” por “fazer uso
da cultura e sua compreensão aprofundada exige cultura da parte do
leitor.”
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