A CIDADE E AS SERRAS
Eça de Queirós
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reservados, protegidos pela lei 9.610/98. José Maria de
Eça de Queiroz (Póvoa de Varzim, 25 de novembro de 1845 — Paris, 16 de agosto
de 1900) A CIDADE E AS SERRAS, Eça de Queirós. Pará de Minas, MG, Brasil: VirtualBooks
Editora, 2017. ISBN: 9781521789865 CDD-
869 Literatura portuguesa. Romance.
Capítulo I
O meu amigo Jacinto nasceu num palácio,
com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça
e de olival.
No Alentejo, pela Estremadura, através
das duas Beiras, densas sebes ondulando pôr e vale, muros altos de boa pedra,
ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já
entulhava o grão e plantava cepa em tempos de El-rei d.Dinis. A sua Quinta e
casa senhorial de Tormes, no Baixo douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o
Tinhela, pôr cinco fartas léguas, todo o torrão lhe pagava foro. E cerrados
pinheirais seus negrejavam desde Arga até ao mar de âncora. Mas o palácio onde
Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elísios,
nº.202.
Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo
Jacinto a quem chamavam em Lisboa o D.Galião, descendo uma tarde pela
travessa da Trabuqueta, rente dum muro de quintal que uma parreira toldava,
escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía
nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e
botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou o
enorme Jacinto – até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara para o
lixo. Depois, demorando nele os olhos pestanudos e pretos:
– Ó Jacinto Galião, que andas tu aqui, a
estas horas, a rebolar pelas pedras?
E Jacinto, aturdido e deslumbrado,
reconheceu o sr. Infante D. Miguel!
Desde essa tarde amou aquele bom
Infante como nunca amara, apesar de tão guloso, o seu ventre, e apesar de tão
devoto o seu Deus! Na sala nobre da sua casa (à Pampulha) pendurou sobre os
damascos o retrato do “seu Salvador”, enfeitado de palmitos como um retábulo e,
pôr baixo a bengala que as magnânimas mãos reais tinham erguido do lixo.
Enquanto o adorável, desejado Infante penou no desterro de Viena, o barrigudo
senhor corria, sacudido na sua sege amarela, do botequim do Zé Maria em Belém à
botica do Plácido nos Algibebes, a gemer as saudades do anjinho, a tramar o regresso do anjinho. No dia, entre todos
benedito, em que a Pérola apareceu à barra com o Messias,
engrinaldou a Pampulha, ergueu no Caneiro um monumento de papelão e lona onde
D. Miguel, tornado S. Miguel, branco, de auréola e asas de Arcanjo, furava de
cima do seu corcel de Alter o Dragão do Liberalismo, que se estorcia vomitando
a Carta. Durante a guerra com o “outro, com o pedreiro-livre” mandava
recoveiros a Santo Tirso, a S.Gens, levar ao Rei fiambres, caixas de doce,
garrafas do seu vinho de Tarrafal, e bolsas de retrós atochadas de peças que
ele ensaboava para lhes avivar o ouro. E quando soube que o sr. Miguel, com
dois velhos baús amarrados sobre um macho, tomara o caminho de Sines e do final
desterro – Jacinto Galião correu pela casa, fechou todas as
janelas como num luto, berrando furiosamente:
– Também cá não fico! Também cá não
fico!
Não, não queria ficar na terra perversa
de onde partia, esbulhado e escorraçado, aquele Rei de Portugal que levantava
na rua os Jacintos! Embarcou para França com a mulher, a Srª. D. Angelina Fafes
(da tão falada casa dos Fafes da Avelã); com o filho, o Cintinho, menino amarelinho,
molezinho, coberto de caroços e leicenços; com a aia e com o moleque. Nas
costas da Cantábria o paquete encontrou tão rijos mares que a Srª. D. Angelina,
esguedelhada, de joelhos na enxerga do beliche, prometeu ao Senhor dos Passos
de Alcântara uma coroa de espinhos, de ouro, com as gotas de sangue em rubis do
Pegu. Em Baiona, onde arribaram, Cintinho teve icterícia. Na estrada de
Orleães, numa noite agreste, o eixo da berlinda em que jornadeavam partiu, e o
nédio senhor, a delicada senhora da casa da Avelã, o menino, marcharam três
horas na chuva e na lama do exílio até uma aldeia, onde, depois de baterem como
mendigos a portas mudas, dormiam nos bancos duma taberna. No “Hotel dos Santos
Padres”, em Paris, sofreram os terrores dum fogo que rebentara na cavalariça,
sob o quarto de D.Galião,
e o digno fidalgo, rebolando pelas escadas em camisa, até ao pátio, enterrou o
pé nu numa lasca de vidro. Então ergueu amargamente ao Céu o punho cabeludo, e
rugiu:
– Irra! É demais!
Logo nessa semana, sem escolher, Jacinto Galião comprou a um príncipe polaco, que
depois da tomada de Varsóvia se metera frade cartuxo, aquele palacete dos
Campos Elísios, nº.202. E sob o pesado ouro dos seus estuques, entre as suas
ramalhudas sedas se enconchou, descansando de tantas agitações, numa vida de
pachorra e de boa mesa, com alguns companheiros de emigração (o desembargador
Nuno Velho, o conde de Rabacena, outros menores), até que morreu de indigestão,
duma lampreia de escabeche que mandara o seu procurador em Montemor. Os amigos
pensavam que a Srª. D. Angelina Fafes voltaria ao reino. Mas a boa senhora
temia a jornada, os mares, as caleças que racham. E não se queria separar do
seu Confessor, nem do seu Médico, que tão bem lhe compreendiam os escrúpulos e
a asma.
– Eu, pôr mim, aqui fico no 202
(declarara ela), ainda que me faz falta a boa água de Alcolena…
O Cintinho, esse, em crescendo, que
decida.
O Cintinho crescera. Era um moço mais
esguio e lívido que um círio, de longos cabelos corredios, narigudo,
silencioso, encafuado em roupas pretas, muito largas e bambas; de noite, sem
dormir, pôr causa da tosse e de sufocações, errava em camisa com uma lamparina
através do 202; e os criados na copa sempre lhe chamavam aSombra. Nessa
sua mudez e indecisão de sombra surdira, ao fim do luto do papá, o gosto muito
vivo de tornear madeiras ao torno; depois, mais tarde, com a medida flor dos
seus vinte anos, brotou nele outro sentimento, de desejo e de pasmo, pela filha
do desembargador Velho, uma menina redondinha como uma rola, educada num
convento de Paris, e tão habilidosa que esmaltava, dourava, consertava relógios
e fabricava chapéus de feltro. No Outono de 1851, quando já se desfolhavam os
castanheiros dos Campos Elísios, o Cintinho cuspilhou sangue. O médico
acarinhando o queixo e com uma ruga séria na testa imensa, aconselhou que o
menino abalasse para o golfo Juan ou para as tépidas areias de Arcachon.
Cintinho, porém, no seu aferro de
sombra, não se quis arredar da Teresinha Velho, de quem se tornara, através de
Paris, a muda, tardonha sombra. Como uma sombra, casou; deu mais algumas voltas
ao torno; cuspiu um resto de sangue; e passou, como uma sombra.
Três meses e três dias depois do seu
enterro o meu Jacinto nasceu.
Desde o berço, onde a avó espalhava
funcho e âmbar para afugentar a Sorte-Ruim,
Jacinto medrou com a segurança, a rijeza, a seiva rica dum pinheiro das dunas.
Não teve sarampo e não teve lombrigas.
As letras, a Tabuada, o Latim entraram pôr ele tão facilmente como o sol pôr
uma vidraça. Entre os camaradas, nos pátios dos colégios, erguendo a sua espada
de lata e lançando um brado de comando, foi logo o vencedor, o Rei que se
adula, e a quem se cede a fruta das merendas. Na idade em que se lê Balzac e
Musset nunca atravessou os tormentos da sensibilidade; – nem crepúsculos
quentes o retiveram na solidão duma janela, padecendo dum desejo sem forma e
sem nome. Todos os seus amigos (éramos três, contando o seu velho escudeiro
preto, o Grilo) lhe conservaram sempre amizades puras e certas – sem que jamais
a participação do seu luxo as avivasse ou fossem desanimadas pelas evidências
do seu egoísmo. Sem coração bastante forte para conceber um amor forte, e
contente com esta incapacidade que o libertava, do amor só experimentou o mel –
esse mel que o amor reserva aos que o recolhem, à maneira das abelhas, com
ligeireza, mobilidade e cantando. Rijo, rico, indiferente ao Estado e ao
Governo do Homens, nunca lhe conhecemos outra ambição além de compreender bem
as Idéias Gerais; e a sua inteligência, nos anos alegres de escolas e controvérsias,
circulava dentro das Filosofias mais densas como enguia lustrosa na água limpa
dum tanque. O seu valor, genuíno, de fino quilate, nunca foi desconhecido, nem
desaparecido; e toda a opinião, ou mera facécia que lançasse, logo encontrava
uma aragem de simpatia e concordância que a erguia, a mantinha embalada e
rebrilhando nas alturas. Era servido pelas coisas com docilidade e carinho; – e
não recordo que jamais lhe estalasse um botão da camisa, ou que um papel
maliciosamente se escondesse dos seus olhos, ou que ante a sua vivacidade e
pressa uma gaveta pérfida emperrasse. Quando um dia, rindo com descrido riso da
Fortuna e da sua roda, comprou a um sacristão espanhol um Décimo de Lotaria,
logo a Fortuna, ligeira e ridente sobre a sua roda, correu num fulgor, para lhe
trazer quatrocentas mil pesetas. E no céu as Nuvens, pejadas e lentas se
avistavam Jacinto sem guarda-chuva, retinham com reverência as suas águas até
que ele passasse… Ah! O âmbar e o funcho da Srª.D. Angelina tinham
escorraçado do seu destino, bem triunfalmente e para sempre, a Sorte-Ruim! A amorável avó (que
eu conheci obesa, com barba) costumava citar um soneto natalício do
desembargador Nunes Velho contendo um verso de boa lição:
Sabei, senhora que esta vida é um
rio….
Pois um rio de Verão, manso,
translúcido, harmoniosamente estendido sobre uma areia macia e alva, pôr entre
arvoredos fragrantes e ditosas aldeias, não ofereceria àquele que o descesse
num barco de cedro, bem toldado e bem almofadado, com frutas e Champanhe a refrescar
em gelo, um Anjo governando ao leme, outros Anjos puxando à sirga, mais
segurança e doçura do que a Vida oferecia ao meu amigo Jacinto.
Pôr isso nós lhe chamávamos “o Príncipe
da Grã-Ventura”!
Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos
encontramos e acamaradamos em Paris, nas Escolas do Bairro Latino – para onde
me mandara meu bom tio Afonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande, quando
aqueles malvados me riscaram da Universidade pôr eu ter esborrachado, numa
tarde de procissão, na Sofia, a cara sórdida do dr. Pais Pita. Ora nesse tempo
Jacinto concebera uma idéia… Este Príncipe concebera a idéia de que o “homem
só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. E pôr homem
civilizado o meu camarada entendia aquele que, robustecendo a sua força pensante
com todas as noções adquiridas desde Aristóteles, e multiplicando a potência
corporal dos seus órgãos com todos os mecanismos inventados desde Terâmenes,
criador da roda, se torna um magnífico Adão, quase onipotente, quase
onisciente, e apto portanto a recolher dentro duma sociedade, e nos limites do
Progresso (tal) como ele se comportava em 1875) todos os gozos e todos os
proveitos que resultam de Saber e Poder… Pelo menos assim Jacinto formulava
copiosamente a sua idéia, quando conversávamos de fins e destinos humanos,
sorvendo bocks poeirentos, sob o toldo das
cervejarias filosóficas, no Boulevard Saint-Michel.
Este conceito de Jacinto impressionara
os nossos camaradas de cenáculo, que tendo surgido para a vida intelectual, de
1866 a 1875, entre a batalha de Sadova e a batalha de Sedan e ouvindo
constantemente, desde então, aos técnicos e aos filósofos, que fora a
Espingarda-de-agulha que vencera em Sadova e fora o Mestre-de-escola quem
vencera em Sedan, estavam largamente preparados a acreditar que a felicidade
dos indivíduos, como a das nações, se realiza pelo ilimitado desenvolvimento da
Mecânica e da erudição. Um desses moços mesmo, o nosso inventivo Jorge
Carlande, reduzira a teoria de Jacinto, para lhe facilitar a circulação e lhe
condensar o brilho, a uma forma algébrica:
Suma ciência X Suma potência= Suma
felicidade
E durante dias, do Odeon à Sorbona, foi
louvada pela mocidade positiva a Equação
Metafísica de Jacinto.
Para Jacinto, porém, o seu conceito não
era meramente metafísico e lançado pelo gozo elegante de exercer a razão
especulativa: – mas constituía uma regra, toda de realidade e de utilidade,
determinando a conduta, modalizando a vida. E já a esse tempo, em concordância
com o seu preceito – ele se surtira da Pequena
Enciclopédia dos Conhecimentos Universais em
setenta e cinco volumes e instalara, sobre os telhados do 202, num mirante
envidraçado, um telescópio. Justamente com esse telescópio me tornou ele
palpável a sua idéia, numa noite de Agosto, de mole e dormente calor. Nos céus
remotos lampejavam relâmpagos lânguidos. Pela Avenida dos Campos Elísios, os
fiacres rolavam para as frescuras do Bosque, lentos, abertos, cansados,
transbordando de vestidos claros.
– Aqui tens tu, Zé Fernandes (começou
Jacinto, encostado à janela do mirante), a teoria que me governa, bem
comprovada. Com estes olhos que recebemos da Madre natureza, lestos e sãos, nós
podemos apenas distinguir além, através da Avenida, naquela loja, uma vidraça
alumiada. Mais nada! Se eu porém aos meus olhos juntar os dois vidros simples
dum binóculo de corridas, percebo, pôr trás da vidraça, presuntos, queijos,
boiões de geléia e caixas de ameixa seca. Concluo portanto que é uma mercearia.
Obtive uma noção: tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês só o luzir da
vidraça, uma vantagem positiva. Se agora, em vez destes vidros simples, eu
usasse os do meu telescópio, de composição mais científica, poderia avistar
além, no planeta Marte, os mares, as neves, os canais, o recorte dos golfos,
toda a geografia dum astro que circula a milhares de léguas dos Campos Elísios.
É outra noção, e tremenda! Tens aqui pois o olho primitivo, o da Natureza,
elevado pela Civilização à sua máxima potência de visão. E desde já, pelo lado
do olho portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque
descubro realidades do Universo que ele não suspeita e de que está privado.
Aplica esta prova a todos os órgãos e compreenderás o meu princípio. Enquanto à
inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável acumulação das noções,
só te peço que compares Renan e o Grilo… Claro é portanto que nos devemos
cercar da Civilização na máximas proporções para gozar nas máximas proporções a
vantagem de viver. Agora concordas, Zé Fernandes?
– Não me parecia irrecusavelmente certo
que Renan fosse mais feliz que o Grilo; nem eu percebia que vantagem espiritual
ou temporal se colha em distinguir através do espaço manchas num astro, ou
através da Avenida dos Campos Elísios presuntos numa vidraça. Mas concordei,
porque sou bom, e nunca desalojarei um espírito do conceito onde ele encontra
segurança, disciplina e motivo de energia. Desabotoei o colete, e lançando um
gesto para o lado do café e das luzes:
– Vamos então beber, nas máximas
proporções, brandy and soda,
com gelo?
Pôr uma conclusão bem natural, a idéia
de Civilização, para Jacinto, não se separava da imagem de Cidade, duma enorme
Cidade, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem este meu
supercivilizado amigo compreendia que longe de armazéns servidos pôr três mil
caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergéis e lezírias de trinta
províncias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de Fábricas fumegando
com ânsia, inventando com ânsia; e de Bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a
papelada dos séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, pôr baixo e pôr
cima, de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gases, de canos
de fezes; e da fila atroante dos ônibus, tramas, carroças, velocípedes,
calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões duma vaga humanidade,
fervilhando, a ofegar, através da Polícia, na busca dura do pão ou sob a ilusão
do gozo – o homem do século XIX pudesse saborear, plenamente, a delícia de
viver!
Quando Jacinto, no seu quarto do 202,
com as varandas abertas sobre os lilases, me desenrolava estas imagens, todo
ele crescia, iluminado. Que criação augusta, a da Cidade! Só pôr ela, Zé
Fernandes, só pôr ela, pode o homem soberbamente afirmar a sua alma!…
– Ó Jacinto, e a religião? Pois a
religião não prova a alma?
Ele encolhia os ombros. A religião! A
religião é o desenvolvimento suntuoso de um instinto rudimentar, comum a todos
os brutos, o terror. Um cão lambendo a mão do dono, de quem lhe vem o osso ou o
chicote, já constitui toscamente um devoto, o consciente devoto, prostrado em
rezas ante o Deus que distribui o Céu ou o Inferno!… Mas o telefone! O
fonógrafo!
– Aí tens tu, o fonógrafo, Zé
Fernandes, me faz verdadeiramente sentir a minha superioridade de se pensante e
me separa do bicho. Acredita, não há senão a Cidade, Zé Fernandes, não há senão
a Cidade!
E depois (acrescentava) só a Cidade lhe
dava a sensação, tão necessária à vida como o calor, da solidariedade humana. E
no 202, quando considerava em redor, nas densas massas do casario de Paris,
dois milhões de seres arquejando na obra da Civilização (para manter na
natureza o domínio dos Jacintos!), sentia um sossego, um conchego, só
comparáveis ao do peregrino, que, ao atravessar o deserto, se ergue no seu
dromedário, e avista a longa fila da caravana marchando, cheia de lumes e de
armas…
Eu murmurava, impressionado:
– Caramba!
Ao contrário no campo, entre a
inconsciência e a impassibilidade da Natureza, ele tremia com o terror da sua
fragilidade e da sua solidão. Estava aí como perdido num mundo que lhe não fosse
fraternal; nenhum silvado encolheria os espinhos para que ele passasse; se
gemesse com fome nenhuma árvore, pôr mais carregada, lhe estenderia o seu fruto
na ponta compassiva dum ramo. Depois, em meio da Natureza, ele assistia à
súbita e humilhante inutilização de todas as suas faculdades superiores. De que
servia, entre plantas e bichos – ser um Gênio ou ser um Santo? As searas não
compreendem as Geórgicas, e fora necessário o socorro ansioso de Deus, e a
inversão de todas as leis naturais, e um violento milagre para que o lobo de
Agubio não devorasse S. Francisco de Assis, que lhe sorria e lhe estendia os
braços e lhe chamava “meu irmão lobo!” Toda a intelectualidade, nos campos, se
esteriliza, e só resta a bestialidade. Nesses reinos crassos do Vegetal e do
animal duas únicas funções se mantêm vivas, a nutritiva e a procriadora.
Isolada, sem ocupação, entre focinhos e raízes que não cessam de sugar e de
pastar, sufocando no cálido bafo da universal fecundação, a sua pobre alma toda
se engelhava, se reduzia a uma migalha de alma, uma fagulhazinha espiritual a
tremeluzir, como morta, sobre um naco de matéria; e nessa matéria dois
instintos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e o de gerar. Ao cabo
duma semana rural, de todo o seu ser tão nobremente composto só restava um
estômago e pôr baixo um falo! A alma? Sumida sob a besta. E necessitava correr,
reentrar na Cidade, mergulhar nas ondas lustrais da Civilização, para largar
nelas a crosta vegetativa, e ressurgir reumanizado, de novo espiritual e
Jacíntico!
E estas requintadas metáforas do meu
amigo exprimiam sentimentos reais – que eu testemunhei, que muito me
divertiram, no único passeio que fizemos ao campo, à bem amável e bem sociável
floresta de Montmorency. Ó delícias de entremez, Jacinto entre a Natureza! Logo
que se afastava dos pavimentos de madeira, do macadame, qualquer chão que os
seus pés calcassem o enchia de desconfiança e terror. Toda a relva, pôr mais
crestada, lhe parecia ressumar uma umidade mortal. De sob cada torrão, da sombra
de cada pedra, receava o assalto de lacraus, de víboras, de formas rastejantes
e viscosas. No silêncio do bosque sentia um lúgubre despovoamento do Universo.
Não tolerava a familiaridade dos galhos que lhe roçassem a manga ou a face.
Saltar uma sebe era para ele um ato degradante que o retrogradava ao macaco
inicial. Todas as flores que não tivesse já encontrado em jardins, domesticadas
pôr longos séculos de servidão ornamental, o inquietavam como venenosas. E
considerava duma melancolia funambulesca certos modos e formas do Ser
inanimado, a pressa espeta e vã dos regatinhos, a careca dos rochedos, todas as
contorções do arvoredo e o seu resmungar solene e tonto.
Depois duma hora, naquele honesto
bosque de Montmorency, o meu pobre amigo abafava, apavorado, experimentando já
esse lento minguar e sumir de alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só
desanuviou quando penetramos no lajedo e no gás de Paris – e a nossa vitória
quase se despedaçou contra um ônibus retumbante, atulhado de cidadãos. Mandou descer
pelos Boulevards, para
dissipar, na sua grossa sociabilidade, aquela materialização em que sentia a
cabeça pesada e vaga como a dum boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao teatro
das Variedades para sacudir, com os estribilhos da Femme à Papa, o rumor importuno
que lhe ficara dos melros cantando nos choupos altos.
Este delicioso Jacinto fizera então
vinte e três anos, e era um soberbo moço em quem reaparecera a força dos velhos
Jacintos rurais. Só pelo nariz, afilado, como narinas quase transparentes, duma
mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes, pertencia às
delicadezas do século XIX. O cabelo ainda se conservava, ao modo das eras
rudes, crespo e quase lanígero; e o bigode, como o dum Celta, caía em fios
sedosos, que ele necessitava aparar e frisar. Todo o seu fato, as espessas
gravatas de cetim escuro que uma pérola prendia, as luvas de anta branca, o
verniz das botas, vinham de Londres em caixotes de cedro; e usava sempre ao
peito uma flor, não natural, mas composta destramente pela sua ramalheira com
pétala de flores dessemelhantes, cravo, azálea, orquídea ou tulipa, fundidas na
mesma haste entre uma leve folhagem de funcho.
Em 1880, em Fevereiro, numa cinzenta e
arrepiada manhã de chuva, recebi uma carta de meu bom tio Afonso Fernandes, em
que, depois de lamentações sobre os seus setenta anos, os seus males
hemorroidais, e a pesada gerência dos seus bens “que pedia homem mais novo, com
pernas mais rijas” – me ordenava que recolhesse à nossa casa de Guiães, no
Douro! Encostado ao mármore partido do fogão, onde na véspera a minha Nini
deixara um espartilho embrulhado no Jornal dos Debates, censurei severamente
meu tio que assim cortava em botão, antes de desabrochar, a flor do meu Saber
Jurídico. Depois num Pós-Escrito ele acrescentava: – “ O tempo aqui está lindo,
o que se pode chamar de rosas, e tua santa tia muito se recomenda, que anda lá
pela cozinha, porque vai hoje em trinta e seis anos que casamos, temos cá o
abade e o Quintais a jantar, e ela quis fazer uma sopa dourada”.
Deitando uma acha ao lume, pensei como
devia estar boa a sopa dourada da tia Vicência. Há quantos anos não a provava,
nem o leitão assado, nem o arroz de forno da nossa casa! Com o tempo assim tão
lindo, já as mimosas do nosso pátio vergariam sob os seus grandes cachos
amarelos. Um pedaço de céu azul, do azul de Guiães, que outro não há tão
lustroso e macio, entrou pelo quarto, alumiou, sobre a puída tristeza do
tapete, relvas, ribeirinhos, malmequeres e flores de trevo de que meus olhos
andavam aguados. E, pôr entre as bambinelas de sarja, passou um ar fino e forte
e cheiroso de serra e de pinheiral.
Assobiando o fado meigo tirei debaixo
da cama a minha velha mala, e meti solicitamente entre calças e peúgas um
Tratado de direito civil, para aprender enfim, nos vagares da aldeia, estendido
sob a faia, as leis que regem os homens. Depois, nessa tarde, anunciei a
Jacinto que partia para Guiães. O meu camarada recuou com um surdo gemido de
espanto e piedade:
– Para Guiães!…Ó Zé Fernandes, que
horror!
E toda essa semana me lembrou
solicitamente confortos de que eu me deveria prover para que pudesse conservar,
nos ermos silvestres, tão longe da Cidade, uma pouca de alma dentro dum pouco
de corpo. “Leva uma poltrona! Leva a Enciclopédia Geral! Leva caixas de
aspargos!…”
Mas para o meu Jacinto, desde que assim
me arrancavam da Cidade, eu era arbusto desarraigado que não reviverá. A mágoa
com que me acompanhou ao comboio conviria excelentemente ao meu funeral. E
quando fechou sobre mim a portinhola, gravemente, supremamente, como se cerra
uma grade de sepultura, eu quase solucei – com saudades minhas.
Cheguei a Guiães. Ainda restavam flores
nas mimosas do nosso pátio; comi com delícias a sopa dourada da tia Vicência;
de tamancos nos pés assisti à ceifa dos milhos. E assim de colheitas a lavras,
crestando ao sol das eiras, caçando a perdiz nos matos geados, rachando a
melancia fresca na poeira dos arraiais, arranchando a magustos, serandando à
candeia, atiçando fogueiras de S.João, enfeitando presépios de Natal, pôr ali
me passaram docemente sete anos, tão atarefados que nunca logrei abrir o
Tratado de Direito Civil, e tão singelos que apenas me recordo quando, em
vésperas de S. Nicolau, o abade caiu da égua à porta do Brás das Cortes. De
Jacinto só recebia raramente algumas linhas, escrevinhadas à pressa pôr entre
tumulto da Civilização. Depois, num Setembro muito quente, ao lidar da vindima,
meu bom tio Afonso Fernandes, morreu, tão quietamente, Deus seja louvado pôr
esta graça, como se cala um passarinho ao fim do seu bem cantado e bem voado
dia. Acabei pela aldeia a roupa de luto. A minha afilhada Joaninha casou na
matança do porco. Andaram obras no nosso telhado. Voltei a Paris.
Capítulo II
Era de novo fevereiro, e um fim de
tarde arrepiado e cinzento, quando eu desci os Campos Elísios em demanda do
202. Adiante de mim caminhava, levemente curvado, um homem que, desde as botas
rebrilhantes até às abas recurvas do chapéu de onde fugiam anéis dum cabelo
crespo, ressumava elegância e a familiaridade das coisas finas. Nas mãos,
cruzadas atrás das costas, calçadas de anta branca, sustentava uma bengala
grossa com castão de cristal. E só quando ele parou ao portão do 202 reconheci
o nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos.
– Ó Jacinto!
– Ó Zé Fernandes!
O abraço que nos enlaçou foi tão
alvoroçado que o meu chapéu rolou na lama. E ambos murmurávamos, comovidos,
entrando a grade:
– Há sete anos!…
E, todavia, nada mudara durante esses
sete anos no jardim do 202! Ainda entre as duas áleas bem areadas se
arredondava uma relva, mais lisa e varrida que a lã dum tapete. No meio o vaso
coríntico esperava Abril para resplandecer com tulipas e depois Junho para
transbordar de margaridas. E ao lado das escadas limiares, que uma vidraçaria
toldava, as duas magras Deusas de pedra, do tempo de D. Galião, sustentavam as antigas
lâmpadas de globos foscos, onde já silvava o gás.
Mas dentro, no peristilo, logo me
surpreendeu um elevador instalado pôr Jacinto – apesar do 202 ter somente dois
andares, e ligados pôr uma escadaria tão doce que nunca ofendera a asma da Srª.
D. Angelina! Espaçoso, tapetado, ele oferecia, para aquela jornada de sete
segundos, confortos numerosos, um divã, uma pele de urso, um roteiro das ruas
de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na antecâmera, onde
desembarcamos, encontrei a temperatura macia e tépida duma tarde de Maio, em
Guiães. Um criado, mais atento ao termômetro que um piloto à agulha, regulava
destramente a boca dourada do calorífero. E perfumadores entre palmeiras, como
num terraço santo de Benares, esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente
umedecendo aquele ar delicado e superfino.
Eu murmurei, nas profundidades do meu
assombrado ser:
– Eis a Civilização!
Jacinto empurrou uma porta, penetramos
numa nave cheia de majestade e sombra, onde reconheci a Biblioteca pôr tropeçar
numa pilha monstruosa de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na
parede: e uma coroa de lumes elétricos, refulgindo entre os lavores do teto,
alumiou as estantes monumentais, todas de ébano. Nelas repousavam mais de
trinta mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com
retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores num
concílio.
Não contive a minha admiração:
– Ó Jacinto! Que depósito!
Ele murmurou, num sorriso descorado:
– Há que ler, há que ler…
Reparei então que o meu amigo
emagrecera: e que o nariz se lhe afilara mais entre duas rugas muito fundas,
como as dum comediante cansado. Os anéis do seu cabelo lanígero rareavam sobre
a testa, que perdera a antiga serenidade de mármore bem polido. Não frisava
agora o bigode, murcho, caído em fios pensativos. Também notei que corcovava.
Ele erguera uma tapeçaria – entramos no
seu gabinete de trabalho, que me inquietou. Sobre a espessura dos tapetes
sombrios os nossos passos perderam logo o som, e como a realidade. O damasco
das paredes, os divãs, as madeiras, eram verdes, dum verde profundo de folha de
louro. Sedas verdes envolviam as luzes elétricas, dispersas em lâmpadas tão
baixas que lembravam estrelas caídas pôr cima das mesas, acabando de arrefecer
e morrer: só uma rebrilhava, nua e clara, no alto duma estante quadrada,
esguia, solitária como uma torre numa planície, e de que o lume parecia ser o
farol melancólico. Um biombo de laca verde, fresco de verde de relva,
resguardava a chaminé de mármore verde, verde de mar sombrio, onde esmoreciam
as brasas duma lenha aromática. E entre aqueles verdes reluzia, pôr sobre
peanhas e pedestais, toda uma Mecânica suntuosa, aparelhos, lâminas, rodas,
tubos, engrenagens, hastes, friezas, rigidezas de metais….
Mas Jacinto batia nas almofadas do
divã, onde se enterrara com um modo cansado que eu não lhe conhecia:
– Para aqui, Zé Fernandes, para aqui! É
necessário reatarmos estas nossas vidas, tão apartadas há sete anos!… em Guiães,
sete anos!
– E tu, que tens feito, Jacinto?
O meu amigo encolheu molemente os
ombros. Vivera – cumprira com serenidade todas as funções, as que pertencem à
matéria e as que pertencem ao espírito…
– E acumulaste civilização, Jacinto!
Santo Deus… Está tremendo, o 202!
Ele espalhou em torno um olhar onde já
não faiscava a antiga vivacidade:
– Sim, há confortos… Mas falta muito!
A humanidade ainda está mal apetrechada, Zé Fernandes… E a vida conserva
resistências.
Subitamente, a um canto, repicou a
campainha do telefone. E enquanto o meu amigo, curvado sobre a placa, murmurava
impaciente “Está lá? – Está lá?”, examinei curiosamente, sobre a sua
imensa mesa de trabalho, uma estranha e miúda legião de instrumentozinhos de
níquel, de aço, de cobre, de ferro, com gumes, com argolas, com tenazes, com
ganchos, com dentes, expressivos todos, de utilidades misteriosas. Tomei um que
tentei manejar – e logo uma ponta malévola me picou um dedo. Nesse instante
rompeu de outro canto um tiquetique açodado, quase ansioso. Jacinto acudiu, com
a face no telefone:
– Vê aí o telégrafo!… Ao pé do divã.
Uma tira de papel que deve estar a correr.
– E, com efeito, duma redoma de vidro
posta numa coluna, e contendo um aparelho esperto e diligente, escorria para o
tapete como uma tênia, a longa tira de papel com caracteres impressos, que eu,
homem das serras, apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, anunciava ao
meu amigo Jacinto que a fragata russa Azoff entrara em Marselha com avaria!
Já ele abandonara o telefone. Desejei
saber, inquieto, se o prejudicava diretamente aquela avaria da Azoff.
– Da Azoff?…
A avaria? A mim?… Não! É uma notícia.
Depois, consultando um relógio
monumental que, ao fundo da Biblioteca, marcava a hora de todas as capitais e o
curso de todos os Planetas:
– Eu preciso escrever uma carta, seis
linhas… Tu esperas, não, Zé Fernandes? Tens aí os jornais de Paris, da noite;
e os de Londres, desta manhã. As ilustrações além, naquela pasta de couro com
ferragens.
Mas eu preferi inventariar o gabinete,
que dava à minha profanidade serrana todos os gostos duma iniciação. Aos lados
da cadeira de Jacinto pendiam gordos tubos acústicos, pôr onde ele decerto
soprava as suas ordens através do 202. Dos pés da mesa cordões túmidos e moles,
coleando sobre o tapete, corriam para os recantos de sombra à maneira de cobras
assustadas. Sobre uma banquinha, e refletida no seu verniz como na água dum
poço, pousava uma Máquina de escrever; e adiante era uma imensa Máquina de
calcular, com fileiras de buracos de onde espreitavam, esperando, números
rígidos e de ferro. Depois parei em frente da estante que me preocupava, assim
solitária, à maneira duma torre numa planície, com o seu alto farol. Toda uma
das suas faces estava repleta de Dicionários; a outra de Manuais; a outra de
Atlas; a última de Guias, e entre eles, abrindo um fólio, encontrei o Guia das
ruas de Samarcanda. Que maciça torre de informação! Sobre prateleiras admirei
aparelhos que não compreendia: – um composto de lâminas de gelatina, onde
desmaiavam, meio chupadas, as linhas duma carta, talvez amorosa; outro, que
erguia sobre um pobre livro brochado, como para o decepar, um cutelo funesto;
outro avançando a boca duma tuba toda aberta para as vozes do invisível.
Cingidos aos umbrais, liados às cimalhas, luziam arames, que fugiam através do
teto, para o espaço. Todos mergulhavam em forças universais, todos transmitiam
forças universais. A Natureza convergia disciplinada ao serviço do meu amigo e
entrara na sua domesticidade!…
Jacinto atirou uma exclamação
impaciente:
– Ó, estas penas elétricas!… Que
seca!
Amarrotara com cólera a carta começada
– eu escapei, respirando, para a Biblioteca. Que majestoso armazém dos produtos
do Raciocínio e da Imaginação! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos
decerto essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro numa
lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a região dos economistas. Avancei
– e percorri, espantado, oito metros de Economia Política. Depois avistei os
Filósofos e os seus comentadores, que revestiam toda uma parede, desde as
escolas Pré-socráticas até às escolas Neopessimistas. Naquelas pranchas se
acastelavam mais de dois mil sistemas – e que todos se contradiziam. Pelas
encadernações logo se deduziam as doutrinas: Hobbes, embaixo, era pesado, de
couro negro; Platão, em cima, resplandecia, numa pelica pura e alva. Para
diante começavam as Histórias Universais. Mas aí uma imensa pilha de livros
brochados, cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante,
como fresca terra de aluvião tapando uma riba secular. Contornei essa colina,
mergulhei na seção das Ciências Naturais, peregrinando, num assombro crescente,
da Ortografia para a Paleontologia, e da Morfologia para a Cristalografia. Essa
estante rematava junto duma janela rasgada sobre os Campos Elísios. Apartei as
cortinas de veludo – e pôr trás descobri outra portentosa rima de volumes,
todos de História Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente
até aos últimos vidros, vedando, nas manhãs mais cândidas, o ar e a luz do
Senhor.
Mas depois rebrilhava, em marroquins
claros, a estante amável dos Poetas. Como um repouso para o espírito esfalfado
de todo aquele saber positivo, Jacinto aconchegara aí um recanto, com um divã e
uma mesa de ,limoeiro, mais lustrosa que um fino esmalte, coberta de charutos,
de cigarros do Oriente, de tabaqueiras do século XVIII. Sobre um cofre de
madeira lisa pousava ainda, esquecido, um prato de damascos secos do Japão.
Cedi à sedução das almofadas; trinquei um damasco, abri um volume; e senti
estranhamente, ao lado, um zumbido como de um inseto de asas harmoniosas. sorri
à idéia que fossem abelhas, compondo o seu mel naquele maciço de versos em
flor. Depois percebi que o sussurro remoto e dormente vinha do cofre de mogno,
de parecer tão discreto. Arredei uma Gazeta
de França; e descortinei um cordão que emergia de um orifício, escavado no
cofre, e rematava num funil de marfim. Com curiosidade, encostei o funil a esta
minha confiada orelha, afeita à singeleza dos rumores da serra. E logo uma Voz,
muito mansa, mas muito decidida, aproveitando a minha curiosidade para me
invadir e se apoderar do meu entendimento, sussurrou capciosamente:
– …”E assim, pela disposição dos
cubos diabólicos, eu chego a verificar os espaços hipermágicos!…”
Pulei com um berro.
– Ó Jacinto, aqui há um homem! Está
aqui um homem a falar dentro duma caixa!
O meu camarada, habituado aos
prodígios, não se alvoroçou:
– É o Conferençofone…Exatamente como
o Teatrofone; somente aplicado às escolas e às conferências. Muito cômodo!…
Que diz o homem, Zé Fernandes?
Eu considerava o cofre, ainda
esgazeado:
– Eu sei! Cubos diabólicos, espaços
mágicos, toda a sorte de horrores…
Senti dentro o sorriso superior de
Jacinto:
– Ah, é o coronel Dorcas… Lições de
Metafísica Positiva sobre a Quarta Dimensão… Conjecturas, uma maçada! Ouve
lá, tu hoje jantas comigo e com uns amigos, Zé Fernandes?
– Não, Jacinto… Estou ainda
enfardelado pelo alfaiate da serra!
E voltei ao gabinete mostrar ao meu
camarada o jaquetão de flanela grossa, a gravata de pintinhas escarlates, com
que ao Domingo, em Guiães, visitava o Senhor. Mas Jacinto afirmou que esta
simplicidade montesina interessaria os seus convidados, que eram dois
artistas… Quem? O autor do Coração
Triplo, um Psicólogo Feminista, de agudeza transcendente, Mestre muito
experimentado e muito consultado em Ciências Sentimentais; e Vorcan, um pintor
mítico, que interpretara etereamente, havia um ano, a simbolia rapsódica do
cerco de Tróia, numa vasta composição, Helena
Devastadora…
Eu coçava a barba:
– Não, Jacinto, não… Eu venho de
Guiães, das serras; preciso entrar em toda esta civilização, lentamente, com
cautela, senão rebento. Logo na mesma tarde a eletricidade, e o Conferençofone,
e os espaços hipermágicos e o feminista, e o etéreo, e a simbolia devastadora,
é excessivo! Volto amanhã.
Jacinto dobrava vagarosamente a sua
carta, onde metera sem rebuço (como convinha à nossa fraternidade) duas
violetas brancas tiradas do ramo que lhe floria o peito.
– Amanhã, Zé Fernandes, tu vens antes
de almoço, com as tuas malas dentro dum fiacre, para te instalares no 202, no
teu quarto. No Hotel são embaraços, privações. Aqui tens o telefone, o
teatrofone, livros…
Aceitei logo, com simplicidade. E
Jacinto, embocando um tubo acústico, murmurou:
– Grilo!
Da parede, recoberta de damasco, que
subitamente e sem rumor se fendeu, surdiu o seu velho escudeiro (aquele moleque
que viera com D.Galião),
que eu me alegrei de encontrar tão rijo, mais negro, reluzente e venerável na
sua tesa gravata, no seu colete branco de botões de ouro. Ele também estimou
ver de novo “ o siô Fernandes”. E, quando soube que eu
ocuparia o quarto do avô Jacinto, teve um claro sorriso de preto, em que
envolveu o seu senhor, no contentamento de o sentir enfim reprovido duma
família.
– Grilo, dizia Jacinto, esta carta a
Madame de Oriol… Escuta!Telefona para casa dos Trèves que os espiritistas só
estão livres no Domingo… Escuta! Eu tomo uma ducha de jantar, tépida, a 17.
Fricção com malva-rosa.
E caindo pesadamente para cima do divã,
com um bocejo arrastado e vago:
– Pois é verdade, meu Zé Fernandes,
aqui estamos, como há sete anos, neste velho Paris…
Mas eu não me arredava da mesa, no
desejo de completar a minha iniciação:
– Ó Jacinto, para que servem todos
estes instrumentozinhos? Houve já aí um desavergonhado que me picou. Parecem
perversos… São úteis?
Jacinto esboçou, com languidez, um
gesto que os sublimava. – Providenciais, meu filho, absolutamente
providenciais, pela simplificação que dão ao trabalho! Assim… e apontou. Este
arrancava as penas velhas, o outro numerava rapidamente as ´páginas dum
manuscrito; aqueloutro, além, raspava emendas… E ainda os havia para colar
estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar documentos…
– Mas com efeito, acrescentou, é uma
seca… Com as molas, com os bicos, às vezes magoam, ferem… Já me sucedeu
inutilizar cartas pôr as Ter sujado com dedadas de sangue. É uma maçada!
Então, como o meu amigo espreitara
novamente o relógio monumental, não lhe quis retardar a consolação da ducha e
da malva-rosa.
– Bem, Jacinto, já te revi, já me
contentei… Agora até amanhã, com as malas.
– Que diabo, Zé Fernandes, espera um
momento… Vamos pela sala de jantar. Talvez te tentes!
E, através da Biblioteca, penetramos na
sala de jantar – que me encantou pelo seu luxo sereno e fresco. Uma madeira
branca, lacada, mais lustrosa e macia que cetim, revestia as paredes,
encaixilhando medalhões de damasco cor de morango, de morango muito maduro e
esmagado; os aparadores, discretamente com a mesma laca nevada; e damascos
amorangados estofavam também as cadeiras, brancas, muito amplas, feitas para a
lentidão de gulas delicadas, de gulas intelectuais.
– Viva o meu Príncipe! Sim senhor…
eis aqui um comedouro muito compreensível e muito repousante, Jacinto!
– Então janta, homem!
Mas já eu me começava a inquietar,
reparando que a cada talher correspondiam seis garfos, e todos de feitios
astuciosos. E mais me impressionei quando Jacinto me desvendou que era um para
as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes,
outro para as frutas, outro para o queijo. Simultaneamente, com uma sobriedade
que louvaria Salomão, só dois copos, para dois vinhos: – um Bordéus rosado em
infusas de cristal, e Champanhe gelando dentro de baldes de prata. Todo um
aparador porém vergava sob o luxo redundante, quase assustador de águas – águas
oxigenadas, águas carbonatadas, águas fosfatadas, águas esterilizadas, águas de
sais, outras ainda, em garrafas bojudas, com tratados terapêuticos impressos em
rótulos.
– Santíssimo nome de Deus, Jacinto!
Então és ainda o mesmo tremendo bebedor de água, hem?… Un aquatico! Como dizia o nosso
poeta chileno, que andava a traduzir Klopstock.
Ele derramou, pôr sobre toda aquela
garrafaria encapuçada em metal, um olhar desconhecido:
– Não… É pôr causa das águas da
Cidade, contaminadas, atulhadas de micróbios… Mas ainda não encontrei uma boa
água que me convenha, que me satisfaça… Até sofro sede.
Desejei então conhecer o jantar do
Psicólogo e do Simbolista – traçado, ao lado dos talheres, em tinta vermelha,
sobre lâminas de marfim. Começava honradamente pôr ostras clássicas, de
Marennes. Depois aparecia uma sopa de alcachofras e ovas de carpa…
– É bom?
Jacinto encolheu desinteressadamente os
ombros:
– Sim… Eu não tenho nunca apetite, já
há tempo… Já há anos.
Do outro prato só compreendi que
continha frangos e túbaras. Depois saboreariam aqueles senhores um filete de
veado, macerado em Xerês, com geléia de noz. E pôr sobremesa simplesmente laranjas
geladas com éter.
– Em éter, Jacinto?
O meu amigo hesitou, esboçou com os
dedos a ondulação dum aroma que se evola.
É novo… Parece que o éter desenvolve,
faz aflorar a alma das frutas…
Curvei a cabeça ignara, murmurei nas
minhas profundidades:
– Eis a Civilização!
E descendo os Campos Elísios,
encolhendo no paletó, a cogitar neste prato simbólico, considerava a rudeza e
atolado atraso da minha Guiães, onde desde séculos a alma das laranjas
permanece ignorada e desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, pôr todos
aqueles pomares que ensombram e perfumam o vale, da Roqueirinha a Sandofim!
Agora porém, benedito deus, na convivência de um tão grande iniciado como
Jacinto, eu compreenderia todas as finuras e todos os poderes da civilização.
E (melhor ainda para a minha ternura!)
contemplaria a raridade dum homem que, concebendo uma idéia da Vida, a realiza
– e através dela e pôr ela recolhe a felicidade perfeita.
Bem se afirmara este Jacinto, na
verdade, como Príncipe da Grã-Ventura!
Capítulo III
No 202, todas as manhãs, às nove horas,
depois do meu chocolate e ainda em chinelas, penetrava no quarto de Jacinto.
Encontrava o meu amigo banhado, barbeado, friccionado, envolto num roupão
branco de pêlo de cabra do Tibete, diante da sua mesa de toilette, toda de cristal (pôr
causa dos micróbios) e atulhada com esses utensílios de tartaruga, marfim,
prata, aço e madrepérola que o homem do século XIX necessita para não desfear o
conjunto suntuário da Civilização e manter nela o seu Tipo. As escovas sobretudo
renovavam, cada dia, o meu regalo e o meu espanto – porque as havia largas como
a roda maciça dum carro sabino; estreitas e mais recurvas que o alfanje dum
mouro; côncavas, em forma de telha aldeã; pontiagudas, em feitio de folha de
hera; rijas que nem cerdas de javali; macias que nem penugem de rola! De todas,
fielmente, como amo que não desdenha nenhum servo, se utilizava o meu Jacinto.
E assim, em face ao espelho emoldurado de folhedos de prata, permanecia este
Príncipe passando pêlos sobre o seu pêlo durante catorze minutos.
No entanto o Grilo e outro escudeiro,
pôr trás dos biombos de Quioto, de sedas lavradas, manobravam, com perícia e
vigor, os aparelhos do lavatório – que era apenas um resumo das máquinas
monumentais da Sala de banho, a mais estremada maravilha do 202. Nestes
mármores simplificados existiam unicamente dois jatos graduados desde zero até
cem; as duas duchas, fina e grossa, para a cabeça; e ainda botões discretos,
que, roçados, desencadeavam esguichos, cascatas cantantes, ou um leve orvalho
estival. Desse recanto temeroso, onde delgados tubos mantinham em disciplina e
servidão tantas águas ferventes, tantas águas violentas, saía enfim o meu
Jacinto enxugando as mãos a uma toalha de felpo, a uma toalha de linho, a outra
de corda entrançada para restabelecer a circulação, a outra de seda frouxa para
repolir a pele. Depois deste rito derradeiro que lhe arrancava ora um suspiro,
ora um bocejo, Jacinto, estendido num divã, folheava uma agenda, onde se
arrolavam, inscritas pelo Grilo ou pôr ele, as ocupações do seu dia, tão
numerosas pôr vezes que cobriam duas laudas.
Todas elas se prendiam à sua
sociabilidade, à sua civilização muito complexa, ou a interesses que o meu
Príncipe, nesses sete anos, criara para viver em mais consciente comunhão com
todas as funções da Cidade (Jacinto com efeito era presidente do Clube da Espada e Alvo;
comanditário do jornal O
Boulevard; diretor da Companhia
dos Telefones de Constantinopla; sócio dos Bazares Unidos da Arte
Espiritualista; membro do Comitê
de Iniciação das Religiões Esotéricas, etc. ). Nenhuma destas ocupações
parecia porém aprazível ao meu amigo – porque, apesar da mansidão e harmonia
dos seus modos, freqüentemente arremessava para o tapete numa rebelião de homem
livre aquela agenda que o escravizava. E numa dessas manhãs (de vento e neve),
apanhando eu o livro opressivo, encadernado em pelica, de um carinhoso tom de
rosa murcha – descobri que o meu Jacinto devia depois do almoço fazer uma
visita na rua da Universidade, outra no Parque Monceau, outra entre os
arvoredos remotos da Muette; assistir pôr fidelidade a uma votação no clube;
acompanhar Madame de Oriol a uma exposição de leques; escolher um presente de
noivado para a sobrinha dos Trèves; comparecer no funeral do velho conde de
Malville; presidir um tribunal de honra numa questão de roubalheira, entre
cavalheiros, ao ecarté…
E ainda se acavalavam outras indicações, escrevinhadas pôr Jacinto a lápis: –
“Carroceiro – Five-o’clock dos Efrains – A pequena das Variedades – Levar a nota ao jornal…”
Considerei o meu Príncipe. Estirado no divã, de olhos miserrimamente cerrados,
bocejava, num bocejo imenso e mudo.
Mas os afazeres de Jacinto começavam
logo no 202, cedo, depois do banho. Desde as oito horas a campainha do telefone
repicava pôr ele, com impaciência, quase com cólera, como pôr um escravo
tardio. E mal enxugado, dentro do seu roupão de pêlo de cabra do Tibete ou de
grossos pijamas de pelúcia cor de ouro velho, constantemente saía ao corredor a
cochichar com sujeitos tão apressados, que conservavam na mão o guarda-chuva
pingando sobre o tapete. Um desses, sempre presente (e que pertencia decerto
aos Telefones de
Constantinopla), era temeroso – todo ele chupado, tisnado, com maus dentes,
sobraçando uma enorme pasta sebenta, e dardejando, de entre a alta gola duma
peliça puída, como da abertura dum covil, dois olhinhos torvose de rapina. Sem
cessar, inexoravelmente, um escudeiro aparecia, com bilhetes numa salva…
depois eram fornecedores de Indústria e de Arte; negociantes de cavalos, rubicundos
e de paletó branco; inventores com grossos rolos de papel; alfarrabistas
trazendo na algibeira uma edição “única”, quase inverossímil, de Ulrich Zell ou
do Lapidanus. Jacinto
circulava estonteado pelo 202, rabiscando a carteira, repicando o telefone,
desatando nervosamente pacotes, sacudindo ao passar algum emboscado que surdia
das sombras da antecâmara, estendia como um trabuco o seu memorial ou o seu
castigo!
Ao meio-dia, um tantã argentino e
melancólico ressoava, chamando ao almoço. Com o Fígaro ou as Novidadesabertas sobre o prato,
eu esperava sempre meia hora pelo meu Príncipe, que entrava numa rajada,
consultando o relógio, exalando com a face moída o seu queixume eterno:
– Que maçada! E depois uma noite
abominável, enrodilhada em sonhos… Tomei sulfonal, chamei o Grilo para me
esfregar com terebintina… Uma seca!
Espalhava pela mesa um olhar já farto.
Nenhum prato, pôr mais engenhoso, o seduzia; – e, como através do seu tumulto
matinal fumava incontáveis cigarrilhas que o ressequiam, começava pôr se
encharcar com um imenso copo de água oxigenada, ou carbonatada, ou gasosa,
misturada dum conhaque raro, muito caro, horrendamente adocicado, de moscatel
de Siracusa. Depois, à pressa, sem gosto, com a ponta incerta do garfo, picava
aqui e além uma lasca de fiambre, uma febra de lagosta; – e reclamava
impacientemente o café, um café de Moca, mandado cada mês pôr um feitor do
Dedjah, fervido à turca, muito espesso, que ele remexia com um pau de canela!
– E tu, Zé Fernandes, que vais tu
fazer?
– Eu?
Recostado na cadeira, com delícias, os
dedos metidos nas cavas do colete:
– Vou vadiar, regaladamente, como um
cão natural!
O meu solícito amigo, remexendo o café
com o pau da canela, rebuscava através da numerosa Civilização da cidade uma
ocupação que me encantasse. Mas apenas sugeria uma Exposição, ou uma
Conferência, ou monumentos, ou passeios, logo encolhia os ombros desconsolado:
– Pôr fim nem vale a pena, é uma seca!
Acendia outra das cigarrilhas russas,
onde rebrilhava o seu nome, impresso a ouro na mortalha. Torcendo, numa pressa
nervosa, os fios do bigode, ainda escutava, à porta da Biblioteca, o seu
procurador, o nédio e majestoso Laporte. E enfim, seguido dum criado, que
sobraçava um maço tremendo de jornais para lhe abastecer o cupé, o Príncipe-Ventura
mergulhava na Cidade.
Quando o dia social de Jacinto se
apresentava mais desafogado, e o céu de Março nos concedia caridosamente um
pouco de azul aguado, saíamos depois do almoço, a pé, através de Paris. Estes
lentos e errantes passeios eram outrora, na nossa idade de Estudantes, um gozo
muito querido de Jacinto – porque neles mais intensamente e mais minuciosamente
saboreava a Cidade. Agora porém, apesar da minha companhia, só lhe davam uma
impaciência e uma fadiga que desoladamente destoava do antigo, iluminado
êxtase. Com espanto (mesmo com dor, porque sou bom, e sempre me entristece o
desmoronar duma crença) descobri eu, na primeira tarde em que descemos aosBoulevards,
que o denso formigueiro humano sobre o asfalto, e a torrente sombria dos trens
sobre o macadame, afligiam meu amigo pela brutalidade da sua pressa, do seu
egoísmo, e do seu estridor. Encostado e como refugiado no meu braço, este
Jacinto novo começou a lamentar que as ruas, na nossa Civilização, não fossem
calçadas de guta-percha! E a guta-percha claramente representava, para meu
amigo, a substância discreta que amortece o choque e a rudeza das coisas! Oh
maravilha! Jacinto querendo borracha, a borracha isoladora, entre a sua
sensibilidade e as funções da Cidade! Depois nem me permitiu pasmar diante
daquelas dourejadas e espelhadas lojas que ele outrora considerava como os
!preciosos museus do século XIX”…
– Não vale a pena, Zé Fernandes. Há uma
imensa pobreza e secura de invenção! Sempre os mesmos florões Luís XV, sempre
as mesmas pelúcias… Não vale a pena!
Eu arregalava os olhos para este
transformado Jacinto. E sobretudo me impressionava o seu horror pela Multidão –
pôr certos efeitos da Multidão, só para ele sensíveis, e a que chamava os
“sulcos”.
– Tu não sentes, Zé Fernandes. Vens das
serras… Pois constituem o rijo inconveniente das Cidades, estes sulcos! É um
perfume muito agudo e petulante que uma mulher larga ao passar, e se instala no
olfato, e estraga para todo o dia o ar respirável. É um dito que se surpreende
num grupo, que revela um mundo de velhacaria, ou de pedantismo, ou de
estupidez, e que nos fica colado à alma, como um salpico, lembrando a
imensidade da lama a atravessar. Ou então, meu filho, é uma figura intolerável
pela pretensão, ou pelo mau gosto, ou pela impertinência, ou pela relice, ou
pela dureza, e de que se não pode sacudir mais a visão repulsiva… Um pavor,
estes sulcos, Zé Fernandes! De resto, que diabo, são as pequeninas misérias
duma Civilização deliciosa!
Tudo isto era especioso, talvez pueril
– mas para mim revelava, naquele chamejante devoto da Cidade, o arrefecimento
da devoção. Nessa mesma tarde, se bem recordo, sob uma luz macia e fina,
penetramos nos centros de Paris, nas ruas longas, nas milhas de casario, todo
caliça parda, eriçado de chaminés de lata negra, com as janelas sempre
fechadas, as cortininhas sempre corridas, abafando, escondendo a vida. Só
tijolo, só ferro, só argamassa, só estuque; linhas hirtas, ângulos ásperos;
tudo seco; tudo rígido. E dos chãos aos telhados, pôr toda a fachada, tapando
as varandas, comendo os muros, Tabuletas, Tabuletas…
– Ó, este Paris, Jacinto, este teu
Paris! Que enorme, que grosseiro bazar!
E, mais para sondar o meu Príncipe do
que pôr persuasão, insisti na felicidade e tristeza destes prédios, duros
armazéns, cujos andares são prateleiras onde se apinha humanidade! E uma
humanidade impiedosamente catalogada e arrumada! A mais vistosa e de luxo nas
prateleiras baixas, bem envernizadas. A reles e de trabalho nos altos, nos
desvios, sobre pranchas de pinho nu, entre o pó e a traça…
Jacinto murmurou, com a face arrepiada:
– É feio, é muito feio!
E acudiu logo, sacudindo no ar a luva
de anta:
– Mas que maravilhoso organismo, Zé
Fernandes! Que solidez! Que produção!
Onde Jacinto me parecia mais renegado
era na sua antiga e quase religiosa afeição pelo Bosque de Bolonha. Quando
moço, ele construíra sobre o bosque teorias complicadas e consideráveis. E
sustentava, com olhos rutilantes de fanático, que no Bosque a Cidade cada tarde
ia retemperar salutarmente a sua força, recebendo, pela presença de suas
Duquesas, das suas Cortesãs, dos seus Políticos, dos seus Financeiros, dos seus
Generais, dos seus Acadêmicos, dos seus Artistas, dos seus Clubistas, dos seus
Judeus, a certeza consoladora de que todo o seu pessoal se mantinha em número,
em vitalidade, em função, e que nenhum elemento da sua grandeza desaparecera ou
deperecera! “Ir aos bois” constituía então para o meu Príncipe um ato de
consciência. E voltava sempre confirmando com orgulho que a Cidade possuía
todos os seus astros, garantindo a eternidade da sua luz!
Agora, porém, era sem fervor,
arrastadamente, que ele me elevava ao Bosque, onde eu, aproveitando a clemência
de Abril, tentava enganar a minha saudade de arvoredos. Enquanto subíamos, ao
trote nobre das suas éguas lustrosas, a Avenida dos Campos Elísios e a do
Bosque, rejuvenescidas pelas relvas tenras e fresco verdejar dos rebentos,
Jacinto, soprando o fumo da cigarrilha pelas vidraças abertas do cupé,
permanecia o bom camarada, de veia amável, com quem era doce filosofar através
de Paris. Mas logo que passávamos as grades douradas do Bosque, e penetrávamos
na Avenida das Acácias, e enfiávamos na lenta fila dos trens de luxo de praça,
sob o silêncio decoroso, apenas cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas
vagarosas esmagando a areia – o meu Príncipe emudecia, molemente engelhado no
fundo das almofadas, de onde só despegava a face para escancarar bocejos de
fartura. Pelo antigo hábito de verificar a presença confortadora do “pessoal,
dos astros”, ainda, pôr vezes, apontava para algum cupé ou vitória rodando com
rodar rangente noutra arrastada fila – e murmurava um nome. E assim fui
conhecendo a encaracolada barba hebraica do banqueiro Efraim; e o longo nariz
patrício de Madame de Trèves abrigando um sorriso perene; e as bochechas
flácidas do poeta neoplatônico Dornan, sempre espapado no fundo de fiacres; e
os longos bandós pré-rafaelitas e negros de Madame Verghane; e o monóculo
defumado do diretor do Boulevard,
e o bigodinho vencedor do duque Marizac, reinando de cima do seu fáeton de guerra; e ainda outros sorrisos
imóveis, e barbichas à Renascença, e pálpebras amortecidas, e olhos farejantes,
e peles empoadas de arroz, que eram todas ilustres e da intimidade do meu
Príncipe. Mas, do topo da Avenida das Acácias, recomeçávamos a descer, em passo
sopeado, esmagando lentamente a areia; na fila vagarosa que subia, calhambeque
atrás de landau, vitória
atrás de fiacre, fatalmente revíamos o binóculo sombrio do homem doBoulevard,
e os bandós furiosamente negros de Madame Verghane, e o ventre espapado do
neoplatônico, e a barba talmúdica, e todas aquelas figuras, duma imobilidade de
cera, superconhecidas do meu camarada, recruzadas cada tarde através de
revividos anos, sempre com os mesmos sorrisos, sob o mesmo pó de arroz, na
mesma imobilidade de cera; então Jacinto não se continha, gritava ao cocheiro:
– Para casa, depressa!
E era pela Avenida do bosque, pelos
Campos Elísios, uma fuga ardente das éguas a quem a lentidão sopeada, num roer
de freios, entre outras éguas também delas superconhecidas, lançava numa
exasperação comparável à de Jacinto.
Para o sondar eu denegria o Bosque:
– Já não é tão divertido, perdeu o
brilho!…
Ele acudia, timidamente:
– Não, é agradável, não há nada mais
agradável; mas…
E acusava a friagem das tardes ou o
despotismo dos seus afazeres. Recolhíamos então ao 202, onde, com efeito, em
breve embrulhado no seu roupão branco, diante da mesa de cristal, entre a
legião das escovas, com toda a eletricidade refulgindo, o meu Príncipe se
começava a adornar para o serviço social da noite.
E foi justamente numa dessas noites (um
Sábado) que nós passamos, naquele quarto tão civilizado e protegido, pôr um
desses brutos e revoltos terrores como só os produz a ferocidade dos Elementos.
Já tarde, à pressa (jantávamos com Marizac no clube para o acompanhar depois ao
Lobengrin na Ópera) Jacinto arrochava o nó da gravata branca – quando no
lavatório, ou porque se rompesse o tubo, ou se dessoldasse a torneira, o jato
de água a ferver rebentou furiosamente, fumegando e silvando. Uma névoa densa
de vapor quente abafou as luzes – e, perdidos nela, sentíamos, pôr entre os
grilos do escudeiro e do Grilo, o jorro devastador batendo os muros,
esparrinhando uma chuva que escaldava. Sob os pés o tapete ensopado era uma
lama ardente. E como se todas as forças da natureza, submetidas ao serviço de
Jacinto, se agitassem, animadas pôr aquela rebelião da água – ouvimos roncos
surdos no interior das paredes, e pelos fios dos lumes elétricos sulcam faíscas
ameaçadoras! Eu fugira para o corredor, onde se alargava a névoa grossa. Pôr
todo o 202 ia um tumulto de desastre. Diante do portão, atraídas pela fumarada
que se escapava das janelas, estacionava polícia, uma multidão. E na escada
esbarrei com um repórter, de chapéu para a nuca, a carteira aberta, gritando
sofregamente “se havia mortos?”
Domada a água, clareada a bruma, vim
encontrar Jacinto no meio do quarto, em ceroulas, lívido:
– Ó Zé Fernandes, esta nossa
indústria!… Que impotência, que impotência! Pela Segunda vez, este desastre!
E agora, aparelhos perfeitos, um processo novo…
– E eu encharcado pôr esse processo
novo! E sem outra casaca!
Em redor, as nobres sedas bordadas, os
brocatéis Luís XIII, cobertos de manchas negras, fumegavam. O meu príncipe,
enfiado, enxugava uma fotografia de Madame de Oriol, de ombros decotados, que o
jorro bruto maculara de empolas. E eu, com rancor, pensava que na minha Guiães
a água aquecia em seguras panelas – e subia ao meu lavatório, pela mão forte da
Catarina, em seguras infusas! Não jantamos com o duque de Marizac, no Clube. E,
na Ópera, nem saboreei Lohengrin e a sua branca alma e o seu branco cisne e as
suas brancas armas – entalado, aperreado, cortado nos sovacos pela casaca que
Jacinto me emprestara e que rescendia estonteadoramente a flores de Nessari.
No Domingo, muito cedo, o Grilo, que na
véspera escaldara as mãos e as trazia embrulhadas em seda, penetrou no meu
quarto, descerrou as cortinas, e à beira do leito, com o seu radiante sorriso
de preto:
– Vem no Fígaro!
Desdobrou triunfalmente o jornal. Eram,
nos Ecos, doze linhas, onde as nossas águas rugiam e espadanavam, com tanta
magnificência e tanta publicidade, que também sorri, deleitado.
E toda a manhã, o telefone, siô Fernandes! Exclamava o Grilo,
rebrilhando em ébano. A quererem saber, a quererem saber… “Está lá? Está
escaldado?” Paris aflito, siô Fernandes!
O telefone, com efeito, repicava,
insaciável. E quando desci para o almoço, a toalha desaparecia sob uma camada
de telegramas, que o meu Príncipe fendia com a faca, enrugado, rosnando contra
a “maçada”. Só desanuviou, ao ler um desses papéis azuis, que atirou para cima
do meu prato, com o mesmo sorriso agradado com que de manhã sorríamos, o Grilo
e eu:
– É do Grão-Duque Casimiro… Ratão
amável! Coitado!
Saboreei, através dos ovos, o telegrama
de S. Alteza. “O quê! o meu Jacinto inundado! Muito chique, nos Campos Elísios!
Não volto ao 202 sem bóia de salvação! Compassivo abraço! Casimiro…” Murmurei
também com deferência: – “Amável! Coitado!” Depois, revolvendo lentamente o
montão de telegramas que se alastrava até ao meu copo::
– Ó Jacinto! Quem é esta Diana que
incessantemente te escreve, te telefona, te telegrafa, te…?
– Diana… Diana de Lorge. É uma cocotte. É uma grande cocotte!
– Tua?
– Minha, minha… Não! tenho um bocado.
E como eu lamentava que o meu Príncipe,
senhor tão rico e de tão fino orgulho, pôr economia duma gamela própria
chafurdasse com outros numa gamela pública – Jacinto levantou os ombros, com um
camarão espetado no garfo:
– Tu vens das serras… Uma cidade como
Paris, Zé Fernandes, precisa ter cortesãs de grande pompa e grande fausto. Ora
para montar em Paris, nesta tremenda carestia de Paris, uma cocotte com os seus vestidos, os seus
diamantes, os seus cavalos, os seus lacaios, os seus camarotes, as suas festas,
o seu palacete, a sua publicidade, a sua insolência, é necessário que se
agremiem umas poucas de fortunas, se forme um sindicato! Somos uns sete, no
Clube. Eu pago um bocado… Mas meramente pôr Civismo, para dotar a Cidade com
uma cocotte monumental. De resto não chafurdo.
Pobre Diana!… dos ombros para baixo nem sei se tem a pele cor de neve ou cor
de limão.
Arregalei um olho divertido:
– Dos ombros para baixo?… E para
cima?
– Ó! para cima tem pó de arroz!… Mas
é uma seca! Sempre bilhetes, sempre telefones, sempre telegramas. E três mil
francos pôr mês, além das flores… Uma maçada!
E as duas rugas do meu Príncipe, aos
lados do seu afilado nariz, curvado sobre a salada, eram como dois vales muito
tristes, ao entardecer.
Acabamos o almoço, quando um escudeiro,
muito discretamente, num murmúrio, anunciou Madame de Oriol, Jacinto pousou com
tranqüilidade o charuto; eu quase me engasguei, num sorvo alvoroçado de café.
Entre os reposteiros de damasco cor de morango ela apareceu, toda de negro, dum
negro liso e austero de Semana Santa, lançando com o regalo um lindo gesto para
nos sossegar. E imediatamente, numa volubilidade docemente chalrada:
– É um momento, nem se levantem!
Passei, ia para a Madalena, não me contive, quis ver os estragos… Uma
inundação em Paris, nos Campos Elísios! Não há senão este Jacinto. E vem no Fígaro! O que eu estava
assustada, quando telefonei! Imaginem! Água a ferver como no Vesúvio… Mas é
duma novidade! E os estofos perdidos, naturalmente, os tapetes… Estou
morrendo pôr admirar as ruínas!
Jacinto, que não me pareceu comovido,
nem agradecido com aquele interesse, retomara risonhamente o charuto:
– Está tudo seco, minha querida
senhora, tudo seco! A beleza foi ontem, quando a água fumegava e rugia! Ora que
pena não Ter ao menos caído uma parede!
Mas ela insistia. Nem todos os dias se
gozavam em Paris os destroços duma inundação. O Fígaro contara… E era uma aventura
deliciosa, uma casa escaldada nos Campos Elísios!
Toda a sua pessoa, desde as plumazinhas
que frisavam no chapéu até à ponta reluzente das botinas de verniz, se agitava,
vibrava, como um ramo tenro sob o boliço do pássaro a chalrar. Só o sorriso,
pôr trás do véu espesso, conservava um brilho imóvel. E já no ar se espalhara
um aroma, uma doçura, emanada de toda a sua mobilidade e de toda a sua graça.
Jacinto no entanto cedera, alegremente;
e pelo corredor Madame de Oriol ainda louvava o Fígaro amável, e confessava quanto tremera…
Eu voltei ao meu café, felicitando mentalmente o Príncipe da Grã-Ventura pôr
aquela perfeita flor de Civilização que lhe perfumava a vida. Pensei então na
apurada harmonia em que se movia essa flor. E corri vivamente à antecâmara,
verificar diante do espelho o meu penteado e o nó da minha gravata. Depois
recolhi à sala de jantar, e junto da janela, folheando languidamente a Revista do Século XIX. Tomei
uma atitude de elegância e de alta cultura Quase imediatamente eles
reapareceram; e Madame de Oriol, que, sempre sorrindo, se proclamava espoliada,
nada encontrara que recordasse as águas furiosas, roçou pela mesa, onde Jacinto
procurava, para lhe oferecer, tangerinas de Malta, ou castanhas geladas, ou um
biscoito molhado em vinho de Tokai.
Ela recusava com as mãos guardadas no
regalo. Não era alta, nem forte – mas cada prega do vestido, ou curva da capa,
caía e ondulava harmoniosamente como perfeições recobrindo perfeições. Sob o
véu cerrado, apenas percebi a brancura da face empoada, e a escuridão dos olhos
largos. E com aquelas sedas e veludos negros, e um pouco do cabelo louro, dum
louro quente, torcido fortemente sobre as peles negras que lhe orlavam o
pescoço , toda ela derramava uma sensação de macio e de fino. Eu teimosamente a
considerava como uma flor de Civilização: – e pensava no secular trabalho e na
cultura superior que necessitara o terreno onde ela tão delicadamente brotara,
já desabrochada, em pleno perfume, mais graciosa pôr ser flor de esforço e de
estufa, e trazendo nas suas pétalas um não sei quê de desbotado e de
antemurcho.
No entanto, com a sua volubilidade de
pássaro, chalrando para mim, chalrando para Jacinto, ela mostrava o seu lindo
espanto pôr aquele montão de telegramas sobre a toalha.
– Tudo esta manhã, pôr causa da
inundação!… Ah, Jacinto é hoje o homem, o único homem de Paris! Muitas mulheres
nesses telegramas?
Languidamente, com o charuto a fumegar,
o meu Príncipe empurrou para a sua amiga o telegrama do Grão-Duque. Então
Madame de Oriol teve um ah! muito grave e muito sentido. Releu
profundamente o papel de S.A . que os seus dedos acariciavam com uma reverência
gulosa. E sempre grave, sempre séria:
– É brilhante!
Ó! certamente! naquele desastre tudo se
passara com muito brilho, num tom muito Parisiense. E a deliciosa criatura não
se podia demorar, porque fizera marcar um lugar na igreja da Madalena para o
sermão!
Jacinto exclamou com inocência:
– Sermão?… É já a estação dos
sermões?
Madame de Oriol teve um movimento de
carinhoso escândalo e dor. O quê! pois nem na austera casa dos Trèves dera pela
entrada da Quaresma? De resto não se admirava – Jacinto era um turco! E,
imediatamente celebrou o pregador, um frade dominicano, o Père Granon! Ó! duma
eloqüência! No derradeiro sermão pregara sobre o amor, a fragilidade dos amores
mundanos! E tivera coisas duma inspiração, duma brutalidade! Depois que gesto,
um gesto terrível que esmagava, em que se lhe arregaçava toda a manga,
mostrando o braço nu, um braço soberbo, muito branco, muito forte!
O seu sorriso permanecia claro sob o
olhar que negrejara dentro do véu negro. E Jacinto, rindo:
– Um bom braço de diretor espiritual,
hem? Para vergar, espancar almas…
Ela acudiu:
– Não! infelizmente o Père Granon
confessa!
E de repente reconsiderou – aceitava um
biscoito, um cálice de Tokai. Era necessário um cordial para afrontar as
emoções do Père Granon! Ambos nos precipitáramos, um arrebatando a garrafa,
outro oferecendo o prato de bombons. Franziu o véu para os olhos, chupou à
pressa um bolo que ensopara no Tokai. E como Jacinto, reparando casualmente no
chapéu que ela trazia, se curvara com curiosidade, impressionado, Madame Oriol
apagou o sorriso, toda séria ante uma coisa séria:
– Elegante, não é verdade?… É uma
criação inteiramente nova de Madame Vial. Muito respeitoso, e muito sugestivo,
agora na Quaresma.
O seu olhar, que me envolvera, também
me convidava a admirar. Aproximei o meu focinho de homem das serras para
contemplar essa criação suprema do luxo de Quaresma. E era maravilhoso! Sobre o
veludo, na sombra das plumas frisadas, aninhada entre rendas, fixada pôr um
prego, pousava delicadamente, feita de azeviche, uma Coroa de Espinhos!
Ambos nos extasiamos. E Madame de
Oriol, num movimento e num sorriso que derramou mais aroma e mais claridade,
abalou para a Madalena.
O meu Príncipe arrastou pelo tapete
alguns passos pensativos e moles. E bruscamente, levantando os ombros com uma
determinação imensa, como se deslocasse um mundo:
– Ó Zé Fernandes, vamos passar este
Domingo nalguma coisa simples e natural…
– Em quê?
Jacinto circungirou os olhares muito
abertos, como se, através da Vida Universal, procurasse ansiosamente uma coisa
natural e simples. Depois, descansando sobre mim os mesmos largos olhos que
voltavam de muito longe, cansados e com pouca esperança:
– Vamos ao Jardim das Plantas, ver a
girafa!
Capítulo IV
Nessa fecunda semana, uma noite,
recolhíamos ambos da Ópera, quando Jacinto, bocejando, me anunciou uma festa no
202.
– Uma festa?…
– Pôr causa da Grão-duque, coitado, que
me vai mandar um peixe delicioso e muito raro que se pesca na Dalmácia. Eu
queria um almoço curto. – O Grão-duque reclamou uma ceia. É um bárbaro,
besuntado com literatura do século XVIII, que ainda acredita em ceias, em
Paris! Reúno no Domingo três ou quatro mulheres, e uns dez homens bem típicos,
para o divertir. Também aproveitas. Folheias Paris num resumo… Mas é uma
maçada amarga!
Sem interesse pela sua festa, Jacinto
não se afadigou em a compor com relevo ou brilho. Encomendou apenas uma
orquestra de Tziganes (os Tziganes, as suas jalecas escarlates, a melancolia
áspera da Czardas ainda nesses tempos remotos emocionavam Paris); e mandou, na
Biblioteca, ligar o Teatrofone com a Ópera, com a Comédia Francesa, com a
Alcazar e com os Bufos, prevendo todos os gostos desde o trágico até ao pícaro.
Depois no Domingo, ao entardecer, ambos visitamos a mesa da ceia que
resplandecia com as velhas baixelas de D.Galião. E a faustosa profusão
de orquídeas, em longas silvas pôr sobre a toalha bordada a seda, enroladas aos
fruteiros de Saxe, transbordando de cristais lavrados e filigranados de ouro,
espalhava uma tão fina sensação de luxo e gosto, que eu que eu murmurei: –
“Caramba, bendito seja o dinheiro!” Pela primeira vez, também, admirei a copa e
a sua instalação abundante e minuciosa – sobretudo os dois ascensores que
rolavam das profundidades da cozinha, um para os peixes e carmes aquecido pôr
tubos de água fervente, o outro para as saladas e gelados revestido de placas
frigoríficas. Ó, este 202!
Às nove horas, porém, descendo eu ao
gabinete de Jacinto para escrever a minha boa tia Vicência, enquanto ele ficara
no toucador com o manicuro que lhe polia as unhas, passamos nesse delicioso
palácio, florido e em gala, pôr bem corriqueiro susto! Todos os lumes
elétricos, subitamente, em todo o 202, se apagaram! Na minha imensa
desconfiança daquelas forças universais, pulei logo para a porta, tropeçando
nas trevas, ganindo um Aqui-d’el-rei!
que tresandava a Guiães, Jacinto em cima berrava, com o manicuro agarrado aos
pijamas. E de novo, como serva ralassa que recolhe arrastando as chinelas, a
luz ressurgiu com lentidão. Mas o meu Príncipe, que descera, enfiado, mandou
buscar um engenheiro à Companhia Central da eletricidade doméstica. Pôr
precaução outro criado correu à mercearia comprar pacotes de velas. E o Grilo
desenterrava já dos armários os candelabros abandonados, os pesados castiçais
arcaicos dos tempos incientíficos de D. Galião:
era uma reserva de veteranos fortes, para o caso pavoroso em que mais tarde, à
ceia, falhassem perfidamente as forças bisonhas da Civilização. O Eletricista,
que acudira esbaforido, afiançou porém que a Eletricidade se conservaria fiel,
sem outro amuo. Eu, cautelosamente, soneguei na algibeira dois cotos de
estearina.
A Eletricidade permaneceu fiel, sem
amuos. E quando desci do meu quarto, tarde (porque perdera o colete de baile e
só depois duma busca furiosa e praguejada o encontrei caído pôr trás da cama!),
todo o 202 refulgia e os Tziganes, na antecâmara, sacudindo as guedelhas,
atiravam as arcadas duma valsa tão arrastadora que, pelas paredes, os imensos
Personagens da tapeçarias, Príamo, Nestor, o engenhoso Ulisses, arfavam, buliam
com os pés venerandos!
Timidamente, sem rumor, puxando os
punhos, penetrei no gabinete de Jacinto. E fui logo acolhido pelo sorriso da
condessa de Trèves, que acompanhada pelo ilustre historiador Danjon (da
Academia Francesa), percorria maravilhada os Aparelhos, os Instrumentos, toda a
suntuosa Mecânica do meu supercivilizado Príncipe. Nunca ela me parecera mais
majestosa do que naquelas sedas cor de açafrão, com rendas cruzadas no peito à
Maria Antonieta, o cabelo crespo e ruivo levantado em rolo sobre a testa
dominadora, e o curvo nariz patrício, abrigando o sorriso sempre luzidio,
sempre corrente, como um arco abriga o correr e o luzir dum regato. Direita
como num sólio, a longa luneta de tartaruga acercada dos olhos miúdos e
turvamente azulados, ela escutava diante do Grafofone, depois diante do
Microfone, como melodias superiores, os comentários que o meu Jacinto ia
atabalhoando com uma amabilidade penosa. E ante cada roda, cada mola, eram
pasmos, louvores finamente torneados, em que atribuía a Jacinto, com astuta
candura, todas aquelas invenções do Saber! Os utensílios misteriosos que
atulhavam a mesa de ébano foram para ela uma iniciação que a enlevou. Ó, o
“numerador de páginas”! Ó, o “colador de estampilhas”!
A carícia demorada dos seus dedos secos
aquecia os metais. E suplicava os endereços dos fabricantes para se prover de
todas aquelas utilidades adoráveis! Como a vida, assim apetrechada, se tornava
escorregadia e fácil! Mas era necessário o talento, o gosto de Jacinto, para
escolher, para “criar!” E não só ao meu amigo (que o recebia com resignação)
ela ofertava o fino mel. Afagando com o cabo de luneta o Telégrafo, achou a
possibilidade de recordar a eloqüência do Historiador. Mesmo para mim (de quem
ignorava o nome) arranjou junto do Fotógrafo, e acerca de “vozes de amigos que
é doce colecionar” uma lisonjazinha redondinha e lustrosa, que eu chupei como
um rebuçado celeste. Boa casaleira que vai atirando o grão aos frangos
famintos, a cada passo, maternalmente, ela nutria uma vaidade. Sôfrego de outro
rebuçado, acompanhei a sua cauda sussurrante e cor de açafrão. Ela parara
diante da Máquina de contar, de que Jacinto Já lhe fornecera pacientemente uma
explicação sapiente. E de novo roçou os buracos de onde espreitam os números
negros, e com o seu enlevado sorriso murmurou: – “Prodigiosa, esta prensa
elétrica!…”
Jacinto acudiu:
– Não! Não! Esta é…
Mas ela sorria, seguia… Madame de
Trèves não compreendeu nenhum aparelho do meu Príncipe! Madame de Trèves não
atendera a nenhuma dissertação do meu Príncipe! Naquele gabinete de suntuosa
Mecânica ela somente se ocupara em exercer, com proveito e com perfeição, a
Arte de Agradar. Toda ela era uma sublime falsidade. Não escondi a Danjon a
admiração que me penetrava.
O facundo Acadêmico revirou os olhos
bugalhudos:
– Ó! e um gosto, uma inteligência, uma
sedução!… E depois como se janta bem em casa dela! Que café!… Mulher
superior, meu caro senhor, verdadeiramente superior!
Deslizei para a biblioteca. Logo à
entrada da erudita nave, junto da estante dos Padres da Igreja onde alguns
cavalheiros conversavam, parei a saudar o diretor do Boulevard e o Psicólogo-feminista, o autor do Coração Triple, com quem na
véspera me familiarizara ao almoço, no 202. O seu acolhimento foi paternal; e
como se necessitasse a minha presença, reteve na sua mão ilustre, rutilante de
anéis, com força e com gula, a minha grossa palma serrana. Todos aqueles
senhores, com efeito, celebravam o seu Romance, a Couraça, lançado nessa semana
entre gritinhos de gozo e um quente rumor de saias alvoroçadas. Um sobretudo,
com uma vasta cabeça arranjada à Van-Dick e que parecia postiça, proclamava,
alçado na ponta das botas, que nunca penetrara tão fundamente, na velha alma
humana, a ponta da Psicologia Experimental! Todos concordavam, se apertavam
contra o Psicólogo, o tratavam pôr “mestre”. Eu mesmo, que nem sequer entrevira
a capa amarela da Couraça,
mas para quem ele voltava os olhos pedinchões e famintos de mais mel, murmurei
com um leve assobio: – “uma delícia!”
E o psicólogo, reluzindo, com o lábio
úmido, entalado num alto colarinho onde se enroscava uma gravata à 1830,
confessava modestamente que dissecara todas aquelas almas da Couraça com “algum cuidado”, sobre documentos,
sobre pedaços de vida ainda quentes, ainda a sangrar… E foi então que
Marizac, o duque de Marizac, notou, com um sorriso mais afiado que um lampejo
de navalha, e sem tirar as mãos dos bolsos:
– No entanto, meu caro, nesse livro tão
profundamente estudado há um erro bem estranho, bem curioso!…
O Psicólogo, vivamente, atirara a
cabeça para trás:
– Um erro?
Ó, sim, um erro! E bem inesperado num
mestre tão experiente!…Era atribuir à esplêndida amorosa da Couraça, uma duquesa, e do
gosto mais puro – um colete de
cetim preto! Esse colete, assim preto, de cetim, aparecia na bela página de
análise e paixão em que ela se despia no quarto de Rui de Alize. E Marizac,
sempre com as mãos nos bolsos, mais grave, apelava para aqueles senhores. Pois
era verossímil, numa mulher como duquesa, estética, pré-rafaelítica, que se
vestia no Doucet, no Pasquim, nos costureiros intelectuais, um colete de cetim
preto?
O Psicólogo emudecera, colhido,
trespassado! Marizac era uma tão suprema autoridade sobre a roupa íntima das
duquesas, que à tarde, em quartos de rapazes, pôr impulsos idealistas e anseios
de alma dolorida – se põem em colete e saia branca!… De resto o diretor do Boulevard condenara logo sem piedade, com uma
experiência firme, aquele colete, só possível nalguma mercearia atrasada que
ainda procurasse efeitos de carne nédia sobre cetim negro. E eu, para que me
não julgassem alheio às coisas dos adultérios ducais e do luxo, acudi, metendo
os dedos pelo cabelo:
– Realmente, preto, só se estivesse de
luto pesado, pelo pai!
O pobre mestre da Couraça sucumbira. Era a sua glória de Doutor
em Elegâncias Femininas desmantelada – e Paris supondo que ele nunca vira uma
duquesa desatacar o colete na sua alcova de Psicólogo! Então, passando o lenço
sobre os lábios que a angústia ressequira, confessou o erro, e contritamente o
atribuiu a uma improvisação tumultuosa:
– Foi um tom falso, um tom
perfeitamente falso que me escapou!… Com efeito! É absurdo, um colete
preto!… Mesmo pôr harmonia com o estado da alma da duquesa devia ser lilás,
talvez cor de resedá muito desmaiada, com um frouxo de rendas antigas de
Malines… É prodigioso como me escapou . Pois tenho o meu caderno de
entrevistas bem anotadas, bem documentadas!…
Na sua amargura, terminou pôr suplicar
a Marizac que espalhasse pôr toda a parte, no Clube, nas salas, a sua
confissão. Fora um engano de artista, que trabalha na febre, vasculhando as
almas, perdido nas profundidades negras das almas! Não reparara no colete,
confundira os tons… Gritou, com os braços estendidos para o diretor doBoulevard:
– Estou pronto a fazer uma retificação,
numa interview, meu caro
mestre! Mande um dos seus redatores… Amanhã, às dez horas! Fazemos uma interview, fixamos a cor.
Evidentemente é lilás… Mande um de seus homens, meu caro mestre! É também uma
ocasião para eu confessar, bem alto, os serviços que o Boulevard em feito às ciências psicológicas e
feministas!
Assim ele suplicava, encostado à
estante, às lombadas dos Santos Padres. E eu abalei, vendo ao fundo da
Biblioteca Jacinto que se debatia e se recusava entre dois homens.
Eram os dois homens de Madame de Trèves
– o marido, conde de Trèves, descendente dos reis de Cândia, e o amante, o
terrível banqueiro judeu, David Efraim. E tão enfronhadamente assaltavam o meu
Príncipe que nem me reconheceram, ambos num aperto de mão mole e vago me
trataram pôr “caro conde”! Num relance, rebuscando charutos sobre a mesa de
limoeiro, compreendi que se tramava a Companhia
das Esmeraldas da Birmânia, medonha empresa em que cintilavam milhões, e
para que os dois confederados de bolsa e de alcova, desde o começo do ano,
pediam o nome, a infância, o dinheiro de Jacinto. Ele resistira, no enfado dos
negócios, desconfiado daquelas esmeraldas soterradas num vale da Ásia. E agora
o conde de Trèves, um homem esgrouviado, de face rechupada, eriçada de barba
rala, sob uma fronte rotunda e amarela como um melão, assegurava ao meu pobre
Príncipe que no Prospecto já preparado, demonstrando a grandeza do negócio,
perpassava um fulgor das Mil e
uma noites. Mas sobretudo aquela escavação de esmeraldas convidava todo o
espírito culto pela sua ação civilizadora. Era uma corrente de idéias
ocidentais, invadindo, educando a Birmânia. Ele aceitara a direção pôr
patriotismo…
– De resto é um negócio de jóias, de
arte, de progresso, que deve ser feito, num mundo superior entre amigos…
E do outro lado o terrível Efraim,
passando a mão curta e grossa sobre a sua bela barba, mais frisada e negra que
a dum Rei Assirio, afiançava o triunfo da empresa pelas grossas forças que nela
entravam, os Nagayers, os Bolsans, os Saccart…
Jacinto franzia o nariz, enervado:
– Mas, ao menos, estão feitos os
estudos? Já se provou que há esmeraldas?
Tanta ingenuidade exasperou Efraim:
– Esmeraldas! Está claro que há
esmeraldas!… Há sempre esmeraldas desde que haja acionistas!
E eu admirava a grandeza daquela máxima
– quando apareceu, esbaforido, desdobrando o lenço muito perfumado, um dos
familiares do 202, Todelle (Antonio de Todelle), moço já calvo, de infinitas
prendas, que conduzia Cotillons, imitava cantores de Café-Concerto, temperava
saladas raras, conhecia todos os enredos de Paris.
– Já veio?… Já cá está o Grão-Duque?
– Não, S. Alteza ainda não chegara. E
Madame de Todelle?
– Não pôde… No sofá… Esfolou uma
perna.
– Ó!
– Quase nada… Caiu do velocípede!
Jacinto, logo interessado:
– Ah! Madame de Todelle anda já de
velocípede?
– Aprende. Nem tem velocípede!…
Agora, na quaresma, é que se aplicou mais, no velocípede do padre Ernesto, do
cura de S. José! Mas ontem, no Bosque, zás, terra!… Perna esfolada. Aqui.
E na sua própria coxa, com a unha,
vivamente, desenhou o esfolão. Efraim, brutal e sério, murmurou: – “Diabo! é no
melhor sítio!” Mas Todelle nem o escutara, correndo para o diretor do Boulevard, que se avançava,
lento e barrigudo, com o seu monóculo negro semelhante a um pacho. Ambos se
colaram contra uma estante, num cochichar profundo.
Jacinto e eu entramos então no bilhar,
forrado de velhos couros de Córdova, onde se fumava. Ao canto dum divã, o
grande Dornan, o poeta neoplatônico e místico, o Mestre sutil de todos os
ritmos, espapado nas almofadas, com um dos pés sob a coxa gorda, como um Deus
índio, dos botões do colete desabotoados, a papeira caída sobre o largo decote
do colarinho, mamava majestosamente um imenso charuto. Ao pé dele, também
sentado, um velho que eu nunca encontrara no 202, esbelto, de cabelos brancos
em anéis passados pôr trás das orelhas, a face coberta de pó de arroz, um
bigodinho muito negro e arrebitado, findara certamente alguma história de bom e
grosso sal – porque diante do divã, de pé, Jovan, o supremo Crítico de Teatro,
ria com a calva escarlate de gozo, e um moço muito ruivo (descendente de
Coligny), de perfil de periquito, sacudia os braços curtos como asas, e gania:
“delicioso! divino!” Só o poeta idealista permanecera impassível, na sua
majestade obesa. Mas, quando nos acercamos, esse Mestre do ritmo perfeito,
depois de soprar uma farta fumarada e me saudar com um pesado mover das
pálpebras, começou numa voz de rico e sonoro metal:
– Há melhor, há infinitamente melhor…
Todos aqui conhecem Madame Noredal. Madame Noredal tem umas imensas nádegas…
Desgraçadamente para o meu regalo,
Todelle invadiu o bilhar, reclamando Jacinto com alarido. Eram as senhoras que
desejavam ouvir no fonógrafo uma ária da Patti! O meu amigo sacudiu logo os
ombros, numa surda irritação:
– Ária da Patti…Eu sei lá! Todos
esses rolos estão em confusão. Além disso o Fonógrafo trabalha mal. Nem
trabalha! Tenho três. Nenhuma trabalha!
– Bem! – exclamou alegremente Todelle.
– Canto eu a Pauvre fille…
É mais de ceia! Oh, la pauv’,
pauv’, pauv’…
Travou do meu braço, e arrastou a minha
timidez serrana para o salão cor-de-rosa murcha, onde, como Deusas num círculo
escolhido do Olimpo, resplandeciam Madame de Oriol, Madame Verghane, a princesa
de Carman, e uma outra loura, com grandes brilhantes nas grandes farripas, e de
ombros tão nus, e braços tão nus, e peitos tão nus, que o seu vestido branco
com bordados de ouro pálido parecia uma camisa a escorregar. Impressionado, ainda
retive Todelle, rugi baixinho: – “Quem é?” Mas já o festivo homem correra para
Madame de Oriol, com quem riam, numa familiaridade superior e fácil, Marizac (o
duque de Marizac) e um moço de barba cor de milho e mais leve que uma penugem,
que se balouçava gracilmente sobre os pés, como uma espiga ao vento. E eu,
encalhado contra o piano, esfregava lentamente as mãos amassando o meu
embaraço, quando Madame Verghane se ergueu do sofá onde conversava com um velho
(que tinha a Grã-Cruz de Santo André), e avançou, deslizou no tapete, pequena e
nédia, na sua copiosa cauda veludo verde-negro. Tão fina era a cinta, entre os
encontros fecundos e a vastidão do peito, todo nu e cor de nácar, que eu
receava que ela partisse pelo meio, no seu lento ondular. Os seus famosos
bandós negros, dum negro furioso, inteiramente lhe tapavam as orelhas; e, no
grande aro de ouro que os circundava, reluzia uma estrela de brilhantes, como
na fronte dos anjos de Boticelli. Conhecendo sem dúvida a minha autoridade no
202, ela despediu sobre mim ao passar, com raio benéfico, um sorriso que lhe
liquescia mais os olhos líquidos, e murmurou:
– O Gão-Duque vem, com certeza?
– Ó com certeza, minha senhora, para o
peixe!
– Para o peixe?…
Mas justamente, na antecâmara, rompeu,
em rufos e arcadas triunfais, a marcha de Rakoczy. Era ele! Na Biblioteca, o
nosso retumbante mordomo anunciava:
– S. Alteza o Grão-Duque Casimiro!
Madame de Verghane, com um curto
suspiro de emoção, alteou o peito, como para lhe expor melhor a magnificência
ebúrnea. E o homem do Boulevard,
o velho da Grã-Cruz, Efraim, quase me empurraram, investindo para a porta, na
imensa sofreguidão de Pessoa Real.
Precedido pôr Jacinto, o Grão-duque
surgiu. Era um possante homem, de barba em bico, já grisalha, um pouco calvo.
Durante um momento hesitou, com um balanço lento sobre os és pequeninos,
calçados de sapatos rasos, quase sumidos sob as pantalonas muito largas.
Depois, pesado e risonho, veio apertar a mão às senhoras que mergulhavam nos
veludos e sedas, em mesuras de Corte. E imediatamente, batendo com carinhosa
jovialidade no ombro de Jacinto:
– E o peixe?… Preparado pela receita
que mandei, hem?
Um murmúrio de Jacinto tranqüilizou S.
Alteza.
– Ainda bem, ainda bem! – exclamou ele,
no seu vozeirão de comando. Que eu não jantei, absolutamente não jantei! É que
se está jantando deploravelmente em casa do José. Mas pôr que se vai jantar
ainda ao José? Sempre que chego a Paris, pergunto: “Onde é que se janta agora?”
em casa do José!… Qual! não se janta! Hoje, pôr exemplo, galinholas… Uma
peste! Não tem, não tem a noção da galinhola!
Os seus olhos azulados, dum azul sujo,
rebrilhavam, alargados pela indignação:
– Paris está perdendo todas as suas
superioridades. Já se não janta, em Paris!
Então, em redor, aqueles senhores concordaram,
desolados. O conde de Trèves defendeu o Bignon, onde se conservavam nobres
tradições. E o diretor do Boulevard,
que se empurrava todo para S. alteza, atribuía a decadência da cozinha, em
França, à República, ao gosto democrático e torpe pelo barato.
– No Paillard, todavia… – começou o
Efraim.
– No Paillard! – gritou logo o
Grão-Duque. – Mas os Borgonhas são tão maus! Os Borgonhas são tão maus!…
Deixara pender os braços, os ombros,
descoroçoado. Depois, com o seu lento andar balançado como o dum velho piloto,
atirando um pouco para trás as lapelas da casaca, foi saudar Madame de Oriol,
que toda ela faiscou, no sorriso, nos olhos, nas jóias, em cada prega das suas
sedas cor de salmão. Mas apenas a clara e macia criatura, batendo o leque como
uma asa alegre, começara a chalrar, S.Alteza reparou no aparelho de Teatrofone,
pousado sobre uma mesa entre flores, e chamou Jacinto:
– Em comunicação com o Alcazar?… O
Teatrofone?
– Certamente, meu senhor.
Excelente! Muito chique! Ele ficara com
pena de não ouvir a Gilberte numa cançoneta nova, as Casquettes. Onze e meia! Era
justamente a essa hora que ela cantava, no último ato da Revista Elétrica… –
colou às orelhas os dois “receptores” do Teatrofone, e quedou embebido, com uma
ruga séria na testa dura. De repente num comando forte:
– É ela! Chuta! Venham ouvir!… É ela!
Venham todos! Princesa de Carman, para aqui! Todos! É ela! Chuta!…
Então, como Jacinto instalara
prodigamente dois Teatrofones, cada um provido de doze fios, as senhoras, todos
aqueles cavalheiros, se apressaram a acercar submissamente um “receptor” do
ouvido, e a permanecer imóveis para saborear Les
Casquettes. E no salão cor-de-rosa murcha, na nave da Biblioteca, onde se
espalhara um silêncio augusto, só eu fiquei desligado do Teatrofone, com as
mãos nas algibeiras e ocioso.
No relógio monumental, que marcava a
hora de todas as Capitais e o movimento de todos os Planetas, o ponteiro
rendilhado adormeceu. Sobre a mudez e a imobilidade pensativa daqueles dorsos,
daqueles decotes, a Eletricidade refulgia com uma tristeza de sol regelado. E
de cada orelha atenta, que a mão tapava, pendia um fio negro, como uma tripa.
Dornan, esboroado sobre a mesa, cerrara as pálpebras, numa meditação de monge
obeso. O historiador dos Duques de Anjou, com o “receptor” na ponta delicada
dos dedos, erguendo o nariz agudo e triste, gravemente cumpria um dever
palaciano. Madame de Oriol sorria, toda lânguida, como se o fio lhe murmurasse
doçuras. Para desentorpecer arrisquei um passo tímido. Mas caiu logo sobre mim
um chut severo do Grão-Duque! Recuei para
entre as cortinas da janela, a abrigar a minha ociosidade. O Psicólogo da Couraça, distante da mesa, com
o seu comprido fio esticado, mordia o beiço, num esforço de penetração. A
beatitude de S. Alteza, enterrado numa vasta poltrona, era perfeita. Ao lado o
colo de Madame Verghane arfava como uma onda de leite. E o meu pobre Jacinto,
numa aplicação conscienciosa, pendia sobre o Teatrofone tão tristemente como
sobre uma sepultura.
Então, ante aqueles seres de superior
civilização, sorvendo num silêncio devoto as obscenidades que a Gilberte lhes
gania, pôr debaixo do solo de Paris, através de fios mergulhados nos esgotos,
cingidos aos canos das fezes – pensei na minha aldeia adormecida. O crescente
de lua, que, seguido duma estrelinha, corria entre nuvens sobre os telhados e
as chaminés negras dos Campos Elísios, também andava lá fugindo, mais lustrosa
e mais doce, pôr cima dos pinheirais. As rãs coaxavam ao longe no Pego da dona.
A ermidinha de S. Joaquim branquejava no cabeço, nuazinha e cândida…
Uma das senhoras murmurou:
– Mas, não é a Gilberte!…
E um dos homens:
– Parece um cornetim…
– Agora são palmas…
– Não, é o Paulim!
O Grão-Duque lançou um chut feroz… No pátio da nossa casa
ladravam os cães. De Além do ribeiro respondiam os cães do João Saranda. Como
me encontrei descendo pôr uma quelha, sob as ramadas, com o meu varapau ao
ombro? E sentia, entre a seda das cortinas, num fino ar macio, o cheiro das
pinhas estalando nas lareiras, o calor dos currais através das sebes altas, e o
sussurro dormente das levadas…
Despertei a um brado que não saía nem
dos eidos, nem das sombras. Era o Grão-Duque que se erguera, encolhia
furiosamente os ombros:
– Não se ouve nada!… Só guinchos! E
um zumbido! Que maçada!… Pois é uma beleza, a cançoneta:
Oh les casquettes,
Oh les casquette-e-e-tes!…
Todos largaram os fios – proclamavam a
Gilberte deliciosa. E o mordomo benedito, abrindo largamente os dois batentes,
anunciou:
– Monseigneur
est servi!
Na mesa, que pelo esplendor das
orquídeas mereceu os louvores ruidosos de S. Alteza, fiquei entre o etéreo
poeta Dornan e aquele moço de penugem loura que balouçava como uma espiga ao
vento. Depois de desdobrar o guardanapo, de o acomodar regaladamente sobre os
joelhos, Dornan desenvencilhou da corrente do relógio uma enorme luneta para
percorrer o menu – que aprovou. E inclinando para mim a sua face de Apóstolo
obeso.
– Este Porto de 1834, aqui em casa de
Jacinto, deve ser autêntico… Hem?
Assegurei ao Mestre dos Ritmos que o
“Porto” envelhecera nas adegas clássicas do avô Galião. Ele afastou, numa
preparação metódica, os longos, densos fios do bigode que lhe cobriam a boca
grossa. Os escudeiros serviram um consommé frio com trufas. E o moço cor de
milho, que espalhara pela mesa o seu olhar azul e doce, murmurou, com uma
desconsolação risonha:
– Que pena!… Só falta aqui um general
e um bispo!
Com efeito! Todas as Classes Dominantes
comiam nesse momento as trufas do meu Jacinto… Mas defronte Madame de Oriol
lançara um riso mais cantado que um gorjeio. O Grão-Duque, numa silva de
orquídeas que orlava o seu talher, notara uma, sombriamente horrenda,
semelhante a um lacrau esverdinhado, de asas lustrosas, gordo e túmido de
veneno: e muito delicadamente ofertara a flor monstruosa a Madame de Oriol,
que, com trinado riso, solenemente, a colocou no seio. Colado àquela carne
macia, duma brancura de nata fina, o lacrau inchara, mais verde, com as asas
frementes. Todos os olhos se acendiam, se cravam no lindo peito, a que a flor disforme,
de cor venenosa, apimentava o sabor. Ela reluzia, triunfava. Para ajeitar
melhor a orquídea os seus dedos alargaram o decote, aclararam belezas, guiando
aquelas curiosidades flamejantes que a despiam. A face vincada de Jacinto
pendia para o prato vazio. E o alto lírico do Crepúsculo Místico, passando a
mão pelas barbas, rosnou com desdém:
– Bela mulher… Mas ancas secas, e
aposto que não tem nádegas!
No entanto o moço de loura penugem
voltara à sua estranha mágoa. Não possuirmos um general com a sua espada, e um
bispo com seu báculo!…
Ele atirou um gesto suave em que os
seus anéis faiscaram:
– Para uma bomba de dinamite… Temos
aqui um esplêndido ramalhete de flores de civilização, com um Grão-Duque no
meio. Imagine uma bomba de dinamite, atirada da porta!… Que belo fim de ceia,
num fim de século!
E como eu o considerava assombrado, ele
bebendo golos de Chateau-Yquem, declarou que hoje a única emoção,
verdadeiramente fina, seria aniquilar a Civilização. Nem a ciência, nem as
artes, nem o dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real às
nossas almas saciadas. Todo o prazer que se extraíra de criar estava esgotado. Só restava, agora, o
divino prazer de destruir!
Desenrolou ainda outras enormidades,
com um riso claro nos olhos claros. Mas eu não atendia o gentil pedante,
colhido pôr outro cuidado – reparando que em torno, subitamente, todo o serviço
estacara como no conto do Palácio Petrificado. E o parto agora devido era o
peixe famoso da Dalmácia, o peixe de S. Alteza, o peixe inspirador da festa!
Jacinto, nervoso, esmagava entre os dedos uma flor. E todos os escudeiros
sumidos!
Felizmente o Grão-Duque contava a
história duma caçada, nas coutadas de Sarvan, em que uma senhora, mulher de um
banqueiro, saltara bruscamente do cavalo, num descampado, sem árvores. Ele e
todos os caçadores param – e a galante senhora, lívida, com a amazona
arregaçada, corre para trás duma pedra… Mas nunca soubemos em que se ocupava
a banqueira, nesse descampado, agachada atrás da pedra – porque justamente o
mordomo apareceu, reluzente de suor, e balbuciou uma confidência a Jacinto, que
mordeu o beiço, trespassado. O Grão-duque emudecera. Todos se entreolhavam,
numa ansiedade alegre. Então o meu Príncipe, com paciência, com heroicidade,
forçando palidamente o sorriso:
– Meus amigos, há uma desgraça…
Dornan pulou na cadeira:
– Fogo?
– Não, não era fogo. Fora o elevador
dos pratos que inesperadamente, ao subir o peixe de S. Alteza, se desarranjara,
e não se movia encalhado!
O Grão duque arremessou o guardanapo.
Toda a sua polidez estalava como um esmalte mal posto:
– Essa é forte!… Pois um peixe que me
deu tanto trabalho! Para que estamos nós aqui então a cear? Que estupidez! E
pôr que o não trouxeram à mão, simplesmente? Encalhado… Quero ver! Onde é a copa?
E, furiosamente, investiu para a copa,
conduzido pelo mordomo que tropeçava, vergava os ombros, ante esta esmagadora
cólera de Príncipe. Jacinto seguiu, como uma sombra, levado na rajada de S.
Alteza. E eu não me contive, também me atirei para a copa, a contemplar o
desastre, enquanto Dornan, batendo na coxa, clamava que se ceasse sem peixe!
O Grão-Duque lá estava, debruçado sobre
o poço escuro do elevador, onde mergulhara uma vela que lhe avermelhava mais a
face esbraseada. Espreitei, pôr sobre o seu ombro real. Em baixo, na treva,
sobre uma larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na travessa, ainda
fumegando, entre rodelas de limão. Jacinto, branco como a gravata, torturava
desesperadamente a mola complicada do ascensor. Depois foi o Grão-Duque que,
com os pulsos cabeludos, atirou um empuxão tremendo aos cabos em que ele
rolava. Debalde! O aparelho enrijara numa inércia de bronze eterno.
Sedas roçagaram à entrada da copa. Era
Madame de Oriol, e atrás Madame Verghane, com os olhos a faiscar, na
curiosidade daquele lance em que o Príncipe soltara tanta paixão. Marizac,
nosso íntimo, surgiu também, risonho, propondo uma descida ao poço com escadas.
Depois foi o Psicólogo, que se abeirou, psicologou, atribuindo intenções
sagazes ao peixe que assim se recusava. E a cada um o Grão-Duque, escarlate,
mostrava com dedo trágico, no fundo da cova, o seu peixe! Todos afundavam a
face, murmuravam: ”lá está!” Todelle, na sua precipitação, quase se despenhou.
O periquito descendente de Coligny batia as asas, granindo: – “Que cheiro ele
deita, que delícia!” Na copa atulhada os decotes das senhoras roçavam a farda
dos lacaios. O velho caiado de pó de arroz meteu o pé num balde de gelo, com um
berro ferino. E o Historiador dos duques de Anjou movia pôr cima de todos o seu
nariz bicudo e triste.
De repente, Todelle teve uma idéia!
É muito simples… É pescar o peixe!
O Grão-Duque bateu na coxa uma palmada
triunfal. Está claro! Pescar o peixe! E no gozo daquela facécia, tão rara e tão
nova, toda a sua cólera se sumira, de novo se tornara o Príncipe amável, de
magnífica polidez, desejando que as senhoras se sentassem para assistir à pesca
miraculosa! Ele mesmo seria o pescador! Nem se necessitava, para a divertida
façanha, mais que uma bengala, uma guita e um gancho. Imediatamente Madame de
Oriol, excitada, ofereceu um dos seus ganchos. Apinhados em volta dela,
sentindo o seu perfume, o calor da sua pele, todos exaltamos a amorável
dedicação. E o Psicólogo proclamou que nunca se pescara com tão divino anzol!
Quando dois escudeiros estonteados
voltaram, trazendo uma bengala e um cordel, já o Grão-Duque, radiante, vergara
o gancho em anzol. Jacinto, com uma paciência lívida, erguia uma lâmpada sobre
a escuridão do poço fundo. E os senhores mais graves, o Historiador, o diretor
do Boulevard, o Conde de
Trèves, o homem de cabeça à Van-Dyck, sorriam, amontoados à porta, num
interesse reverente pela fantasia de S. Alteza. Madame de Trèves, essa
examinava serenamente, com a sua nobre luneta, a instalação da copa. Só Dornan
não se erguera da mesa, com os punhos cerrados sobre a toalha, o gordo pescoço
encovado, no tédio sombrio de fera a quem arrancaram a posta.
No entanto S. Alteza pescava com
fervor! Mas debalde! O gancho, pouco agudo, sem pressa, bamboleando na
extremidade da guita frouxa, não fisgava.
– Ó Jacinto, erga essa luz! – gritava
ele inchado e suado. – Mais!… Agora! Agora! É na guelra! Só na guelra é que o
gancho o pode prender. Agora… Qual! que diabo! Não vai!
Tirou a face do poço, resfolegando e
afrontado. Não era possível! Só carpinteiros, com alavancas!… E todos,
ansiosamente, bradamos que se abandonasse o peixe!
O Príncipe, risonho, sacudindo as mãos,
concordava que pôr fim “fora mais divertido pescá-lo do que comê-lo!” E o
elegante bando refluiu sofregamente para a mesa, ao som duma valsa de Strauss,
que os Tziganes arremessaram em arcadas de lânguido ardor. Só Madame de Trèves
se demorou ainda, retendo o meu pobre Jacinto, para lhe assegurar quanto
admirava o arranjo da sua copa… Ó perfeita! Que compreensão da vida, que fina
inteligência do conforto!
S. Alteza, encalmado pelo esforço,
esvaziou poderosamente dois copos de Chateau-Lagrange. Todos o aclamavam como
um pescador genial. E os escudeiros serviam o Barão
de Pauillac, cordeiro das lezírias marinhas, que, preparado com ritos quase
sagrados, toma este grande nome sonoro e entra no Nobiliário de França.
Eu comi com o apetite dum herói de
Homero. Sobre o meu copo e o de Dornan o Champanhe cintilou e jorrou
ininterrompidamente como fonte de Inverno. Quando se serviam ortolans gelados, que se derretiam na boca, o
divino poeta murmurou, para meu regalo, o seu soneto sublime a “Santa Clara”. E
como, do outro lado, o moço de penugem loura insistia pela destruição do velho
mundo, também concordei, e, sorvendo Champanhe coalhado em sorvete, maldissemos
o Século, a Civilização, todos os orgulhos da Ciência! Através das flores e das
luzes, no entanto, eu seguia as ondas arfantes do vasto peito de Madame
Verghane, que ria como uma bacante. E nem me apiedava de Jacinto que, com a
doçura de S. Jacinto sobre o cepo, esperava o fim do seu martírio e da sua
festa. Ela findou. Ainda me recordo, às três horas da noite, o Grão-Duque na
antecâmara, muito vermelho, mal firme nos pés pequeninos, sem acertar com as
mangas de peliça que Jacinto e eu lhe ajudamos a enfiar – convidando o meu
amigo, numa efusão carinhosa, a ir caçar às suas terras da Dalmácia…
– Devo ao meu Jacinto uma bela pesca,
quero que ele me deva uma bela caçada!
E enquanto o acompanhávamos, entre as
alas dos escudeiros, pela vasta escada onde o mordomo procedia erguendo um
candelabro de três lumes, S. Alteza repisava, pegajoso:
– Uma bela caçada… E também vai
Fernandes! Bom Fernandes, Zé Fernandes! Ceia superior, meu Jacinto! OBarão
de Pauillac, divino… Creio que o devemos nomear Duque… O Senhor duque
de Pauillac! Mais um bocado da perna do senhor Duque de Pauillac. Ah! Ah!…
Não venham fora! Não se constipem!
E do fundo do cupé, ao rodar, ainda
bradou:
– O peixe, Jacinto, desencalha o peixe!
Excelente, ao almoço, frio, com um molho verde!
Trepando cansadamente os degraus, numa
moleza de Champanhe e sono em que os olhos se me cerravam, murmurei para o meu
Príncipe:
– Foi divertido, Jacinto! Suntuosa
mulher, a Verghane! Grande pena, o elevador…
E Jacinto, num som cavo que era bocejo
e rugido:
– Uma maçada! E tudo falha!
Três dias depois desta festa no 202
recebeu o meu Príncipe inesperadamente, de Portugal, uma nova considerável.
Sobre a sua Quinta e solar de Tormes, pôr toda a serra, passara uma tormenta
devastadora de vento, corisco e água. Com as grossas chuvas, “ou pôr outras
causas que os peritos dirão” (como exclamava na sua carta angustiada o
procurador Silvério), um pedaço de monte, que se avançava em socalco sobre o
vale da Carriça, desabara, arrastando a velha igreja, uma igrejinha rústica do
século XVI, onde jaziam sepultados os avós de Jacinto desde os tempos de el-rei
D. Manuel. Os ossos veneráveis desses Jacintos jaziam agora soterrados sob um
montão informe de terra e pedra. O Silvério já começara com os moços da Quinta
a desatulhar os “preciosos restos”. Mas esperava ansiosamente as ordens de sua
Exª…
Jacinto empalidecera, impressionado.
Esse velho solo serrano, tão rijo e firme desde os Godos, que de repente ruía!
Esses jazigos de paz piedosa, precipitados com fragor, na borrasca e na treva,
para um negro fundo de vale! Essas ossadas, que todas conservavam um nome, uma
data, uma história, confundidas num lixo de ruína!
– Coisa estranha, coisa estranha!…
E toda a noite me interrogou acerca da
serra e de Tormes, que eu conhecia desde pequeno, porque o velho solar, com a
sua nobre alameda de faias seculares, se erguia a duas léguas da nossa casa, no
antigo caminho de Guiães à estação e ao rio. O caseiro de Tormes, o bom
Melchior, era cunhado do nosso feitor da Roqueirinha: – e muitas vezes, depois
da minha intimidade com Jacinto, eu entrara no robusto casarão de granito, e
avaliara o grão espalhado pelas salas sonoras, e provara o vinho novo das
adegas imensas…
– E a igreja, Zé Fernandes?… Entraste
na igreja?
– Nunca… Mas era pitoresca, com uma
torrezinha quadrada, toda negra, onde há muitos anos vivia uma família de
cegonhas… Terrível transtorno para as cegonhas!
– Coisa estranha! – murmurou ainda o
meu Príncipe, agourado.
E telegrafou ao Silvério que
desatulhasse o vale, recolhesse as ossadas, reedificasse a Igreja, e para esta
obra de piedade e reverência, gastasse o dinheiro, sem contar, como a água dum
rio largo.
Capítulo V
No entanto Jacinto, desesperado com
tantos desastres humilhadores – as torneiras que dessoldavam, os elevadores que
emperravam, o Vapor que se encolhia, a Eletricidade que se sumia, decidiu
valorosamente vencer as resistências finais da Matéria e da Força pôr novas e
mais poderosas acumulações de Mecanismos. E nessas semanas de Abril, enquanto
as rosas desabrochavam, a nossa agitada casa, entre aquelas quietas casas dos
Campos Elísios que preguiçavam ao sol, incessantemente tremeu, envolta num pó
de caliça e de empreitada, com o bruto picar de pedra, o retininte martelar de
ferro. Nos silenciosos corredores, onde me era doce fumar antes do almoço um
pensativo cigarro, circulavam agora, desde madrugada, ranchos de operários, de
blusas brancas, assobiando o Petit-Bleu,
e intimidando os meus passos, quando eu atravessava em fralda e chinelas para o
banho ou para ou para outros retiros. Apenas se varava com perícia algum
andaime obstruindo as portas – logo se esbarrava com uma pilha de tábuas, uma
seira de ferramentas ou um balde enorme de argamassa. E os pedaços de soalho
levantado mostravam tristemente, como num cadáver aberto, todos interiores do
202, a ossatura, os sensíveis nervos de arame, os negros intestinos de ferro
fundido.
Cada dia estacava diante do portão
alguma lenta carroça, de onde os criados, em mangas de camisa, descarregavam
caixotes de madeira, fardos de lona, que se despregavam e se descosiam numa
sala asfaltada, ao fundo do jardim, pôr trás da sebe de lilases. E eu descia,
reclamado pelo meu Príncipe, para admirar uma nova Máquina que nos tornaria a
vida mais fácil, estabelecendo dum modo mais seguro o nosso domínio sobre a
Substância. Durante os calores, que apertaram depois da Ascensão, ensaiamos
esperançadamente, para refrescar as águas minerais, a Soda-Water e os Medocs
ligeiros, três geleiras, que se amontoaram na copa sucessivamente
desprestigiadas. Com os morangos novos apareceu um instrumentozinho astuto,
para lhes arrancar os pés, delicadamente. Depois recebemos outro, prodigioso,
de prata e cristal, para remexer freneticamente as saladas; e, na primeira vez
que o experimentei, todo o vinagre esparrilhou sobre os olhos do meu Príncipe,
que fugiu aos uivos! Mas ele teimava… Nos atos mais elementares, para aliviar
ou apressar o esforço, se socorria Jacinto da dinâmica. E agora era pôr
intervenção duma máquina que abotoava as ceroulas.
E simultaneamente, ou em obediência à
sua Idéia, ou governado pelo despotismo do hábito, não cessava, ao lado de
Mecânica acumulada, de acumular Erudição. Ó, a invasão dos livros no 202!
Solitários, aos pares, em pacotes, dentro de caixas, franzinos, gordos e
repletos de autoridade, envoltos em plebéia capa amarela ou revestidos de
marroquim e ouro, perpetuamente, torrencialmente, invadiam pôr todas as largas
portas a Biblioteca, onde se estiravam sobre o tapete, se repimpavam nas
cadeiras macias, se entronizavam em cima das mesas robustas, e sobretudo
trepavam contra as janelas, em sôfregas pilhas, como se, sufocados pela sua
própria multidão, procurassem com ânsia espaço e ar! Na erudita nave, onde apenas
alguns livros mais altos restavam descobertos, sem tapume de livros,
perenemente se adensava um pensativo crepúsculo de Outono enquanto fora Junho
refulgia. A Biblioteca transborda através de todo o 202! Não se abria um
armário sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não
se franzia uma cortina, sem que detrás surgisse, hista, uma ruma de livros! E
imensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo urgentemente, de mãos
nas alças, encontrei, vedada pôr uma tremenda coleção de Estudos Sociais, a
porta do Water-Closet!
Mais amargamente porém me lembro da
noite histórica em que, no meu quarto, moído e mole dum passeio a Versalhes,
com as pálpebras poeirentas e meio adormecidas, tive de desalojar do meu leito,
praguejando, um pavoroso dicionário de Indústria em trinta e sete volumes!
Senti então a suprema fartura do livro. Ajeitando, com murros, os travesseiros,
maldisse a Imprensa, a Facúndia humana… e já me estirara, adormecia, quando
topei, quase parti a preciosa rótula do joelho, contra a lombada dum tomo que
velhacamente se aninhara entre a parede e os colchões. Com furor e um berro
empolguei, arremessei o tomo afrontoso – que entornou o jarro, inundou um
tapete rico de Daghestan. E nem sei se depois adormeci – porque os meus pés, a
que não sentia nem o pisar nem o rumor, como se um vento brando me levasse,
continuaram a tropeças em livros no corredor apagado, depois na areia do jardim
que o luar branquejava, depois na Avenida dos Campos Elísios, povoada e ruidosa
como numa festa cívica. E, ó portento! Todas as casas aos lados eram
construídas com livros. Nos ramos dos castanheiros ramalhavam folhas de livros.
E os homens, as finas damas, vestidos de papel impresso, com títulos nos
dorsos, mostravam em vez de rosto um livro aberto, a que a brisa lenta virava
docemente as folhas. Ao fundo, na Praça da Concórdia, avistei uma escarpada
montanha de livros, a que tentei trepar, arquejante, ora enterrando a perna em
flácidas camadas de versos, ora batendo contra a lombada, dura como calhau, de
tomos de Exegese e Crítica. A tão vastas alturas subi, para além da terra, para
além das nuvens, que me encontrei, maravilhado, entre os astros. Eles rolavam
serenamente, enormes e mudos, recobertos pôr espessas crostas de livros, de onde
surdia, aqui e além, pôr alguma fenda, entre dois volumes mal juntos, um
raiozinho de luz sufocada e ansiada. E assim ascendi ao Paraíso. Decerto era o
paraíso – porque com meus olhos de mortal argila avistei o Ancião da
Eternidade, aquele que não tem Manhã nem Tarde. Numa claridade que dele
irradiava mais clara que todas as claridades, entre fundas estantes de ouro
abarrotadas de códices, sentado em vetustíssimos fólios, com os flocos das
infinitas barbas espalhados pôr sobre resmas de folhetos, brochuras, gazetas e
catálogos – o Altíssimo lia. A fronte super-divina que concebera o Mundo
pousava sobre a mão superforte que o Mundo criara – e o Criador lia e sorria.
Ousei, arrepiado de sagrado horror, espreitar pôr cima do seu ombro coruscante.
O livro era brochado, de três francos… O Eterno lia Voltaire, numa edição
barata, e sorria.
Uma porta faiscou e rangeu, como se
alguém penetrasse no Paraíso. Pensei que um Santo novo chegara da Terra. Era
Jacinto, com o charuto em brasa, um molho de cravos na lapela, sobraçando três
livros amarelos que a Princesa de Carman lhe emprestara para ler!
Numa dessas ativas semanas, porém, a
minha atenção subitamente se despegou deste interessante Jacinto. Hóspede do
202, conservava no 202 a minha mala e a minha roupa; e, acostado à bandeira do
meu Príncipe, ainda ocasionalmente comia do seu caldeirão suntuoso. Mas a minha
alma, a minha empobrecida alma, e o meu corpo, o meu embrutecido corpo,
habitavam então na rua do Hélder, nº. 16, quarto andar, porta à esquerda.
Descia eu uma tarde, numa leda paz de
idéias e sensações, o Boulevard da Madalena, quando avistei, diante da
Estação dos ônibus, rondando no asfalto, num passo lento e felino, uma criatura
seca, muito morena, quase tisnada, com dois fundos olhos taciturnos e tristes,
e uma mata de cabelos amarelados, toda crespa e rebelde, sob o chapéu velho de
plumas negras. Parei, como colhido pôr um repuxão nas entranhas. A criatura
passou – no seu magro rondar de gata negra, sob um beiral de telhado, ao luar
de Janeiro. Dois poços fundos não luzem mais negra e taciturnamente do que
luziam os seus olhos taciturnos e negros. Não recordo (Deus louvado!) como
rocei o seu vestido de seda, lustroso e ensebado nas pregas; nem como lhe
rosnei uma súplica pôr entre os dentes que rangiam; nem como subimos ambos,
morosamente e mais silenciosos que condenados, para um gabinete do Café Durand,
safado e morno. Diante do espelho, a criatura, com a lentidão dum rito triste,
tirou o chapéu e a romeira salpicada de vidrilhos. A seda puída do corpete esgarçava
nos cotovelos agudos. E os seus cabelos eram imensos, duma dureza e espessura
de juba brava, em dois tons amarelos, uns mais dourados, outros mais crestados,
como a côdea de uma torta ao sair quente do forno.
Com um riso trêmulo, agarrei os seus dedos
compridos e frios.
– E o nomezinho, hem?
Ela séria, quase grave:
– Madame Colombe, 16, rua do Hélder,
quarto andar, porta à esquerda.
E eu (miserável Zé Fernandes!) também
me senti muito sério, trespassado pôr uma emoção grave, como se nos envolvesse,
naquela alcova de Café, a majestade dum Sacramento. À porta, empurrada
levemente, o criado avançou a face nédia. Ordenei uma lagosta, pato com
pimentões, e Borgonha. E foi somente ao findarmos o pato que me ergui,
amarfanhando convulsamente o guardanapo, e a tremer lhe beijei a boca, todo a
tremer, num beijo profundo e terrível, em que deixei a alma, entre saliva e
gosto de pimentão! Depois, numa tipóia aberta, sob um bafo mole de leste e de
trovoada, subimos a Avenida dos Campos Elísios. Em frente à grade do 202
murmurei, para a deslumbrar com o meu luxo: – “Moro ali, todo o ano!…” E como
ao mirar o Palacete, debruçada, ela roçara a mata fulva do pêlo crespo pela
minha barba – berrei desesperadamente ao cocheiro que galopasse, para a rua do
Hélder, nº.16, quarto andar, pôr à esquerda!
Amei aquela criatura. Amei aquela
criatura com Amor, com todos os Amores que estão no Amor, o Amor divino, o Amor
humano, o Amor bestial, como Santo Antonino amava a Virgem, como Romeu amava
Julieta, como um bode ama uma cabra. Era estúpida, era triste. Eu
deliciosamente apagava a minha alegria na cinza da sua tristeza; e com inefável
gosto afundava a minha razão na densidade da sua estupidez. Durante sete
furiosas semanas perdi a consciência da minha personalidade de Zé Fernandes –
Fernandes de Noronha e Sande, de Guiães! Ora se me afigurava ser um pedaço de
cera que se derretia, com horrenda delícia, num forno rubro e rugidor; ora me
parecia ser uma faminta fogueira onde flamejava, estalava e se consumia um
molho de galhos secos. Desses dias de sublime sordidez só conservo a impressão
duma alcova forrada de cretones sujos, duma bata de lã cor de lilás com
sotaches negros, de vagas garrafas de cerveja no mármore dum lavatório, e dum
corpo tisnado que rangia e tinha cabelos no peito. E também me resta a sensação
de incessantemente e com arroubado deleite me despojar, arremessar para um
regaço, que se cavava entre um ventre sumido e uns joelhos agudos, o meu
relógio, os meus berloques, os meus anéis, os meus botões de safira, e as cento
e noventa e sete libras de ouro que eu trouxera de Guiães numa cinta de
camurça. Do sólido, decoroso, bem fornecido Zé Fernandes, só restava uma
carcaça errando através dum sonho, com gâmbias moles e a barba a escorrer.
Depois, uma tarde, trepando com a
costumada gula a escada da rua do Hélder, encontrei a porta fechada – e
arrancado da ombreira aquele cartão de Madame
Colombe que eu lia sempre tão
devotamente e que era a sua tabuleta… Tudo no meu ser tremeu como se o chão
de Paris tremesse! Aquela era a porta do Mundo que ante mim se fechara! Para
além estavam as gentes, as cidades, a vida, Deus e Ela. E eu ficara sozinho,
naquele patamar do Não-ser, fora da porta que se fechara, único ser fora do
Mundo! Rolei pelos degraus, com o fragor e a incoerência duma pedra, até ao
cubículo da porteira e do seu homem que jogavam as cartas em ditosa pachorra,
como se tão pavoroso abalo não tivesse desmantelado o Universo!
– Madame Colombe?
A barbuda comadre recolheu lentamente a
vaza:
– Já não mora… Abalou esta manhã,
para outra terra com outra porca!
Para outra terra! Com outra porca!…
Vazio, negramente vazio de todo o pensar, de todo o sentir, de todo o querer –
botei aos tombos, como um tonel vazio, na corrente açodada do Boulevard, até que encalhei num
banco da Praça da Madalena, onde tapei com as mãos, a que não sentia a febre,
os olhos a que não sentia o pranto! Tarde, muito tarde, quando já se cerravam
com estrondo as cortinas de ferro das lojas, surdiu, de entre todas estas
confusas ruínas do meu ser, a eterna sobrevivente de todas as ruínas – a idéia
de jantar. Penetrei no Durand, com os passos entorpecidos dum ressuscitado. E,
numa recordação que me escaldava a alma, encomendei a lagosta, o pato, o
Borgonha! Mas ao alargar o colarinho, ensopado pelo ardor daquela tarde de
Julho, entre a poeira da Madalena, pensei com desconforto: – “Santíssimo Nome
de Deus! Que imensa sede me fez esta desgraça!…” De manso acenei ao moço: –
“Antes do Borgonha, uma garrafa de Champanhe, com muito gelo, e um grande
copo!…” Creio que aquele Champanhe se engarrafara no Céu onde corre
perenemente a fresca fonte da Consolação, e que na garrafa bendita que me coube
penetrara, antes de arrolhada, um jorro largo dessa fonte inefável. Jesus! que
transcendente regalo, o daquele nobre copo, embaciado, nevado, a espumar, a
picar, num brilho de ouro! E depois, garrafa de Borgonha! E depois, garrafa de
Conhaque! E depois Hortelã-Pimenta granitada em gelo! E depois um desejo
arquejante de espancar, com o meu rijo marmeleiro de Guiães, a porca que fugira
com outra porca! Dentro da tipóia fechada, que me transportou num galope ao
202, não sufoquei este santo impulso, e com os meus punhos serranos atirei
murros retumbantes contra as almofadas, onde via,
furiosamente via a mata imensa de pêlo amarelo, em que
a minha alma uma tarde se perdera, e três meses se debatera, e para sempre se
emporcalhara! Quando o fiacre estacou no 202 ainda eu espancava tão
desesperadamente a besta ingrata, que, aos berros do cocheiro, dois moços
acudiram e me sustiveram, recebendo pelos ombros, sobre as nucas servis, os
restos cansados da minha cólera.
Em cima, repeli a solicitude do Grilo
que tentava impor ao siô Zé Fernandes, a Zé Fernandes de
Guiães, a imensa indignidade dum chá de macela! E estirado no leito de D.Galião,
com as botas sobre o travesseiro, o chapéu alto sobre os olhos, ri, num
doloroso riso, deste Mundo burlesco e sórdido de Jacintos e de Colombes! E de
repente senti uma angústia horrenda. Era ela! Era a Madame Colombe, que
esfuziara da chama da vela, e saltara sobre o meu leito, e desabotoara o meu
colete, e arrombara as minhas costelas, e toda ela, com as saias sujas,
mergulhara dentro do meu peito e abocara o meu coração, e chupava a sorvos
lentos, como na rua do Hélder, o sangue do meu coração! Então, certo da Morte,
ganindo pela tia Vicência, pendi do leito para mergulhar na minha sepultura,
que, através da névoa final, eu distinguia sobre o tapete – redondinha,
vidrada, de porcelana e com asa. E, sobre a minha sepultura, que tão irreverentemente
se assemelhava ao meu vaso, vomitei o Borgonha, vomitei o pato, vomitei a
lagosta. Depois, num esforço ultra-humano, com um rugido, sentindo que, não
somente toda a entranha, mas a alma se esvaziava toda, vomitei Madame Colombe!
Recaí sobre o leito de Galião…Recarreguei
o chapéu sobre os olhos para não sentir os raios do Sol… Era um sol novo, um
sol espiritual, que se erguia sobre a minha vida. E adormeci, como uma
criancinha docemente embalada num berço de verga pelo Anjo da guarda.
De manhã, lavei a pele num banho
profundo, perfumado com todos os aromas do 202, desde folhas de limonete da
Índia até essência de jasmim de França; e lavei a alma com uma rica carta da
tia Vicência, em letra farta, contando da nossa casa, e da linda promessa das
vinhas, e da compota de ginja que nunca lhe saíra tão fina, e da alegre
fogueira do pátio em noite de S. João, e da menininha muito gorda e cabeluda
que viera do Céu para a minha afilhada Joaninha. Depois, à janela, bem limpo de
alma e de corpo, numa quinzena de sedinha branca, tomando chá de Naïpò,
respirando os rosais do jardim revividos pela chuva da madrugada, considerei,
em divertido pasmo, que, durante sete semanas, me emporcalhara, na rua do
Hélder, com um estardalho muito magro e muito tisnado! E concluí que padecera
duma longa sezão, sezão da carne, sezão da imaginação, apanhada num charco de
Paris – nesses charcos que se formam através da Cidade com as águas mortas, os
limos, os lixos, os tortulhos e os vermes duma Civilização que apodrece.
Então, curado, todo o meu espírito,
como uma agulha para o Norte, se virou logo para o meu complicado Príncipe,
que, nas derradeiras semanas da minha infecção sentimental, eu entrevira sempre
descaído pôr cima de sofás, ou vagueando através da biblioteca entre os seus
trinta mil volumes, com arrastados bocejos de inércia e de vacuidade. Eu, na
minha pressa indigna, só lhe lançava um distraído – “que é isso?” Ele, no seu
moroso desalento, só murmurava um seco – “é calor!”
E, nessa manhã da minha libertação, ao
penetrar antes de almoço no seu quarto, no sofá o encontrei enterrado, com o Fígaro aberto sobre a barriga, a Agenda caída
sobre o tapete, toda a face envolta em sombra, e os pés abandonados, numa
soberana tristeza, ao pedicuro que lhe polia as unhas. Decerto o meu olhar
realumiado e repurificado, a brancura das minhas flanelas reproduzindo a
quietação das minhas sensações, e a segura harmonia em que todo o meu ser
visivelmente se movia, impressionaram o meu Príncipe – a quem a melancolia
nunca embotava a agudeza. Ergueu molemente um braço mole:
– Então esse capricho?
Derramei sobre ele todo o fulgor dum
riso vitorioso:
– Morto! E, como o Sr. De Marlborought,
“morto e bem enterrado”. Jaz! Ou antes, rola! Com efeito deve andar agora
rolando pôr dentro do cano do esgoto!
Jacinto bocejou, murmurou:
– Este Zé Fernandes de Noronha e
Sande!…
E, no meu nome, no meu digno nome assim
embrulhado num bocejo com desprendida ironia, se resumiu todo o interesse
daquele Príncipe pela suja tormenta em que se debatera o meu coração! Mas não
me melindrou esse consumado egoísmo… Claramente percebia eu que o meu jacinto
atravessava uma densa névoa de tédio, tão densa, e ele tão afundado na sua mole
densidade, que as glórias ou os tormentos dum camarada não o comoviam, como muito
remotas, intangíveis, separadas da sua sensibilidade pôr imensas camadas de
algodão. Pobre Príncipe da Grã-Ventura, tombado para o sofá de inércia, com os
pés no regaço do pedicuro! Em que lodoso fastio caíra, depois de renovar tão
bravamente todo o recheio mecânico e erudito do 202, na sua luta contra a Força
e a Matéria! – e esse fastio não o escondeu mais do seu velho Zé Fernandes,
quando recomeçou entre nós a comunhão de vida e de alma a que eu tão torpemente
me arrancara, uma tarde, diante da Estação dos ônibus, no charco da Madalena!
Não eram certamente confissões
enunciadas. O elegante e reservado Jacinto não torcia os braços, gemendo – “Ó
vida maldita!” eram apenas expressões saciadas; um gesto de repelir com rancor
a importunidade das coisas; pôr vezes uma imobilidade determinada, de protesto,
no fundo dum divã, de onde se não desenterrava, como para um repouso que
desejasse eterno; depois os bocejos, os ocos bocejos com que sublinhava cada
passo, continuado pôr fraqueza ou pôr dever iniludível; e sobretudo aquele
murmurar que se tornara perene e natural – “Para que?” – “Não vale a pena!” –
“Que maçada!…”
Uma noite no meu quarto, descalçando as
botas, consultei o Grilo:
– Jacinto anda tão murcho, tão
corcunda… Que será, Grilo?
O venerando preto declarou com uma
certeza imensa:
– S. Exª. sofre de fartura.
Era fartura! O meu Príncipe sentia
abafadamente a fartura de Paris: – e na Cidade, na simbólica Cidade, fora de
cuja vida culta e forte (como ele outrora gritava, iluminado) o homem do século
XIX nunca poderia saborear plenamente a “delícia de viver”, ele não encontrava
agora forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse, lhe valesse o
esforço duma corrida curta numa tipóia fácil. Pobre Jacinto! Um jornal velho,
setenta vezes relido desde a Crônica até aos Anúncios, com a tinta delida, as
dobras roídas, não enfastiaria mais o Solitário, que só possuísse na sua
Solidão esse alimento intelectual, do que o Parisianismo enfastiava o meu doce
camarada! Se eu nesse Verão capciosamente o arrastava a um Café-Concerto, ou ao
festivo Pavilhão de Armenonville, o meu bom Jacinto, colado pesadamente à
cadeira, com um maravilhoso ramo de orquídeas na casaca, as finas mãos abatidas
sobre o castão da bengala, conservava toda a noite uma gravidade tão estafada,
que eu, compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em abalar, a
sua fuga de ave solta… Raramente (e então com veemente arranque como quem
salta um fosso) descia a um dos seus clubes, ao fundo dos Campos Elísios. Não
se ocupara mais das suas Sociedades e Companhias, nem dos Telefones de Constantinopla,
nem das Religiões Esotéricas,
nem do Bazar Espiritualista,
cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa de ébano, de onde o Grilo as
varria tristemente como o lixo duma vida finda. Também lentamente se despegava
de todas as suas convivências. As páginas da Agenda cor-de-rosa murcha andavam
desafogadas e brancas. E se ainda cedia a um passeio de Mail-coach, ou a um
convite para algum Castelo amigo dos arredores de Paris, era tão arrastadamente,
com um esforço tão saturado ao enfiar o paletó leve, que me lembrava sempre um
homem, depois de um gordo jantar de província, a estalar, que, pôr polidez ou
em obediência a um dogma, devesse ainda comer uma lampreia de ovos!
Jazer, jazer, em casa, na segurança das
portas bem cerradas e bem defendidas contra toda a intrusão do mundo, seria uma
doçura para o meu Príncipe se o seu próprio 202, com todo aquele tremendo
recheio de Civilização, não lhe desse uma sensação dolorosa de abafamento, de
atulhamento! Julho escaldava: e os brocados, as alcatifas, tantos móveis
roliços e fofos, todos os seus metais e todos os seus livros tão espessamente o
oprimiam, que escancarava sem cessar as janelas para prolongar o espaço, a
claridade, a frescura. Mas era então a poeira, suja e acre, rolada em bafos
mornos, que o enfurecia:
– Ó, este pó da Cidade!
– Mas, ó Jacinto, pôr que não vamos
para Fontainebleau, ou para Montmorency, ou…
– Para o campo? O quê! Para o campo?!
E na sua face enrugada, através deste
berro, lampejava sempre tanta indignação, que eu curvava os ombros, humilde, no
arrependimento de Ter afrontosamente ultrajado o Príncipe que tanto amava.
Desventurado Príncipe! Com o seu dourado cigarro de Yaka a fumegar, errava
então pelas salas, lenta e murchamente, como quem vaga em terra alheia sem
afeições e sem ocupações. Esses desafeiçoados e desocupados passos
monotonamente o traziam ao seu centro, ao gabinete verde, à Biblioteca de
ébano, onde acumulara Civilização nas máximas proporções, para gozar nas
máximas proporções a delícia de viver. Espalhava em torno um olhar farto.
Nenhuma curiosidade ou interesse lhe solicitavam as mãos, enterradas nas
algibeiras das pantalonas de seda, numa inércia de derrota. Anulado, bocejava
com descoroçoada moleza. E nada mais intrusivo e doloroso do que este supremo
homem do século XIX, no meio de todos os aparelhos reforçadores dos seus
órgãos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu serviço as forças
Universais, e dos seus trinta mil volumes repletos de saber dos séculos –
estacando, com as mãos derrotadas no fundo das algibeiras, e exprimindo, na
face e na indecisão mole dum bocejo, o embaraço de viver!
Capítulo VI
Todas as tardes, cultivando uma dessas
intimidades que entre tudo o que cansa jamais cansam, Jacinto, às quatro horas,
com regularidade devota, visitava Madame de Oriol: – porque essa flor de
Parisianismo permanecera em Paris, mesmo depois do Grand-Prix, a desbotar na
calma e no cisco da Cidade. Numa dessas tardes, porém, o telefone, ansiosamente
repicado, avisou Jacinto de que a sua doce amiga jantava em Enghien com os
Trèves. (Esses senhores gozavam o seu Verão à beira do lago, numa casa toda
branca e vestida de rosinhas brancas que pertencia a Efraim.)
Era um Domingo silencioso, enevoado e
macio, convidando às voluptuosidades da melancolia. E eu (no interesse da minha
alma) sugeri a Jacinto que subíssemos à Basílica do Sacré-Couer, em construção
nos altos de Montmartre.
– É uma seca, Zé Fernandes…
– Com mil demônios! Eu nunca vi a
Basílica…
– Bem, bem! Vamos à Basílica, homem
fatal de Noronha e Sande!
E pôr fim logo que começamos a
penetrar, para além de S. Vicente de Paulo, em bairros estreitos e íngremes,
duma quietação de província, com muros velhos fechando quintalejos rústicos,
mulheres despenteadas cosendo à soleira das portas, carriolas desatreladas
descansando diante das tascas, galinhas soltas picando o lixo, cueiros molhados
secando em canas – o meu fastidioso camarada sorriu àquela liberdade e
singeleza das coisas.
A vitória parou em frente à larga rua
de escadarias que trepa, cortando vielazinhas campestres, até à esplanada,
onde, envolta em andaimes, se ergue a Basílica imensa. Em cada patamar barracas
de arraial devoto, forradas de paninho vermelho, transbordavam de Imagens, Bentinhos,
Crucifixos, Corações de Jesus bordados a retrós, claros molhos de Rosários.
Pelos cantos, velhas agachadas resmungavam a Ave-Maria. Dois padres desciam,
tomando risonhamente uma pitada. Um sino lento tilintava na doçura da tarde. E
Jacinto murmurou, com agrado:
´-É curioso!
Mas a Basílica em cima não nos
interessou, abafada em tapumes e andaimes, toda branca e seca, de pedra muito
nova, ainda sem alma. E Jacinto, pôr impulso bem Jacíntico, caminhou
gulosamente para a borda do terraço, a contemplar Paris. Sob o céu cinzento, na
planície cinzenta, a Cidade jazia, toda cinzenta, como uma vasta e grossa
camada de caliça e telha. E na sua imobilidade e na sua mudez, algum rolo de
fumo, mais tênue e ralo que o fumear dum escombro mal apagado, era todo o vestígio
visível da sua vida magnífica.
Então chasqueei risonhamente o meu
Príncipe. Aí estava pois a Cidade, augusta criação da Humanidade. Ei-la aí,
belo Jacinto! Sobre a crosta cinzenta da Terra – uma camada de caliça, apenas
mais cinzenta! No entanto ainda momentos antes a deixáramos prodigiosamente
viva, cheia dum povo forte, com todos os seus poderosos órgãos funcionando,
abarrotada de riqueza, resplandecente de sapiência, na triunfal plenitude do
seu orgulho, como Rainha do Mundo coroada de Graça. E agora eu e o belo Jacinto
trepávamos a uma colina, espreitávamos, escutávamos – e de toda a estridente e
radiante Civilização da cidade não percebíamos nem um rumor nem um lampejo! E o
202, o soberbo 202, com os seus arames, os seus aparelhos, a pompa da sua Mecânica,
os seus trinta mil livros? Sumido, esvaído na confusão de telha e cinza! Para
este esvaecimento pois da obra humana, mal ela se contempla de cem metros de
altura, arqueja o obreiro humano em tão angustioso esforço? Hem, Jacinto?…
Onde estão os teus Armazéns servidos pôr três mil caixeiros? E os Bancos em que
retine o ouro universal? E as Bibliotecas atulhadas com o saber dos séculos?
Tudo se fundiu numa nódoa parda que suja a Terra. Aos olhos piscos de um Zé
Fernandes, logo que ele suba, fumando o seu cigarro, a uma arredada colina – a
sublime edificação dos Tempos não é mais que um silencioso monturo da espessura
e da cor do pó final. O que será então aos olhos de Deus!
E ante estes clamores, lançados com
afável malícia para espicaçar o meu Príncipe, ele murmurou, pensativo:
– Sim, é talvez tudo uma ilusão… E a
Cidade a maior ilusão!
Tão facilmente vitorioso redobrei de
facúndia. Certamente, meu Príncipe, uma Ilusão! E a mais amarga, porque o Homem
pensa Ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda
a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do
corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em
unto, de ossos moles como trapos, de nervos trêmulos como arames, com
cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem
viço, torto, corcunda – esse ser em que Deus, espantado, mal pode reconhecer o
seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na Cidade findou a sua liberdade moral; cada
manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma
dependência; pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular,
vergar, rastejar, aturar; e rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o
enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, praxes, ritos, serviços
mais disciplinares que os dum cárcere ou dum quartel… A sua tranqüilidade
(bem tão alto que Deus com ele recompensa os Santos ) onde está, meu Jacinto?
Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo
poder, ou pelo gozo, ou pela fugida rodela de ouro! Alegria como a haverá na
Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar – e que, nunca fartando o desejo,
incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos
mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! São
como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e
limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga
a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que
o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata
apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da
rivalidade ou do orgulho. E o Amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera
esses vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva se vende,
tarifada ao arrátel, como a de vaca! Contempla esse velho Deus do Himeneu, que
circula trazendo em vez do ondeante facho da Paixão a apertada carteira do
Dote! Espreita essa turba que foge dos largos caminhos assoalhados em que os
Faunos amam as Ninfas na boa lei natural, e busca tristemente os recantos
lôbregos de Sodoma ou de Lesbos!… Mas o que a cidade mais deteriora no homem é
a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra
para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de Idéias e Fórmulas que
constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira, nela envolto,
só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as expressões já
exprimidas: – ou então, para se destacar na pardacenta e chata Rotina e trepar
ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio,
uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão como um monstrengo
numa feira. Todos, intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho,
balando o mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam, em
fila, as pegadas pisadas; – e alguns são macacos, saltando no topo de mastros
vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta criação
tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o
céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade
vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames – o homem aparece
como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso,
sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo ou
impudente como um Histrião… E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela Cidade!
E ante estas encanecidas e veneráveis
invectivas, retumbadas pontualmente pôr todos os Moralistas bucólicos, desde
Hesíodo, através dos séculos – o meu Príncipe vergou a nuca dócil, como se elas
brotassem, inesperadas e frescas, duma Revelação superior, naqueles cimos de
Montmartre:
– Sim, com efeito, a Cidade… É talvez
uma ilusão perversa!
Insisti logo, com abundância, puxando
os punhos, saboreando o meu fácil filosofar. E se ao menos essa ilusão da Cidade
tornasse feliz a totalidade dos seres que a mantém… Mas não ! Só uma estreita
e reluzente casta goza na Cidade os gozos especiais que ela cria. O resto, a
escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimentos especiais que só nela
existem! Deste terraço, junto a esta rica Basílica consagrada ao Coração que
amou o Pobre e pôr ele sangrou, bem avistamos nós o lôbrego casario onde a
plebe se curva sob esse antigo opróbrio de que nem Religiões, nem Filosofias,
nem Morais, nem a sua própria força brutal a poderão jamais libertar! Aí jaz,
espalhada pela Cidade, como esterco vil que fecunda a cidade. Os séculos rolam;
e sempre imutáveis farrapos lhe cobrem o corpo, e sempre debaixo deles, através
do longo dia, os homens labutarão e as mulheres chorarão. E com este labor e
este pranto dos pobres, meu Príncipe, se edifica a abundância da Cidade! Ei-la
agora coberta de moradas em que eles se não abrigam; armazenada de estofos, com
que eles se não agasalham; abarrotada de alimentos, com que eles se não saciam!
Para eles só a neve, quando a neve cai, e entorpece e sepulta as criancinhas
aninhadas pelos bancos das praças ou sob os arcos das pontes de Paris… A neve
cai, muda e branca na treva; as criancinhas gelam nos seus trapos; e a polícia,
em torno, ronda atenta para que não seja perturbado o tépido sono daqueles que
amam a neve, para patinar nos lagos do Bosque de Bolonha com peliças de três
mil francos. Mas quê, meu Jacinto! a tua Civilização reclama insaciavelmente
regalos e pompas, que só obterá, nesta amarga desarmonia social, se o Capital
der Trabalho, pôr cada arquejante esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável,
é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada
miséria é a condição do esplendor sereno da Cidade. Se nas suas tigelas
fumegasse a justa ração de caldo – não poderia aparecer nas baixelas de prata a
luxuosa porção de foie-gras e túbaras que são o orgulho da
Civilização. Há andrajos em trapeiras – para que as belas Madamas de Oriol,
resplandecentes de sedas e rendas, subam em doce ondulação, a escadaria da
Ópera. Há mãos regeladas que se estendem e beiços sumidos que agradecem o dom
magnânimo dum sou – para que os Efrains tenham dez
milhões no Banco de França, se aqueçam à chama rica da lenha aromática, e
surtam de colares de safiras as suas concubinas, netas dos duques de Atenas. E
um povo chora de fome, e da fome dos seus pequeninos – para que os Jacintos, em
Janeiro, debiquem, bocejando, sobre pratos de Saxe, morangos gelados em
Champanhe e avivados dum fio de éter!
– E eu comi dos teus morangos, Jacinto!
Miseráveis, tu e eu!
Ele murmurou, desolado:
– É horrível, comemos desses
morangos… E talvez pôr uma ilusão!
Pensativamente deixou a borda do
terraço, como se a presença da Cidade, estendida na planície, fosse escandalosa.
E caminhamos devagar, sob a moleza cinzenta da tarde, filosofando –
considerando que para esta iniqüidade não havia cura humana, trazida pelo
esforço humano. Ah, os Efrains, os Trèves, os vorazes e sombrios tubarões do
mar humano, só abandonarão ou afrouxarão a exploração das Plebes, se uma
influência celeste, pôr milagre novo, mais alto que os milagres velhos, lhes
converter as almas! O burguês triunfa, muito forte, todo endurecido no pecado –
e contra ele são impotentes os prantos dos Humanitários, os raciocínios dos
Lógicos, as bombas dos Anarquistas. Para amolecer tão duro granito só uma
doçura divina. Eis pois esperança da terra novamente posta num Messias!… Um
decerto desceu outrora dos grandes Céus; e, para mostrar bem que mandado
trazia, penetrou mansamente no mundo pela porta dum curral. Mas a sua passagem
entre os homens foi tão curta! Um meigo sermão numa montanha, ao fim duma tarde
meiga; uma repreensão moderada aos Fariseus que então redigiam o Boulevard; algumas vergastadas
nos Efrains vendilhões; e logo, através da porta da morte, a fuga radiosa para
o Paraíso! Esse adorável filho de Deus teve demasiada pressa em recolher a casa
de seu Pai! E os homens a quem ele incumbira a continuação da sua obra,
envolvidos logo pelas influências dos Efrains, dos Trèves, da gente do Boulevard, bem depressa
esqueceram a lição da Montanha e do lago de Tiberíade – e eis que pôr seu turno
revestem a púrpura, e são Bispos, e são Papas, e se aliam à opressão, e reinam
com ela, e edificam a duração do seu Reino sobre a miséria dos sem-pão e dos
sem lar! Assim tem de ser recomeçada a obra da Redenção. Jesus, ou Guatama, ou
Cristna, ou outro desses filhos que Deus pôr vezes escolhe no seio duma Virgem,
nos quietos vergéis da Ásia, deverá novamente descer à terra de servidão. Virá
ele, o desejado? Porventura já algum grave rei do Oriente despertou, e olhou a
estrela, e tomou a mirra nas suas mãos reais, e montou pensativamente sobre o
seu dromedário? Já pôr esses arredores da dura Cidade, de noite, enquanto Caifás
e Madalena ceiam lagosta no Paillard, andou um Anjo, atento, num vôo lento,
escolhendo um curral? Já de longe, sem moço que os tanja, na gostosa pressa dum
divino encontro, vem trotando a vaca, trotando o burrinho?
– Tu sabes, Jacinto?
Não, Jacinto não sabia – e queria
acender o charuto. Forneci um fósforo ao meu Príncipe. Ainda rondamos no
terraço, espalhando pelo ar outras idéias sólidas que no ar se desfaziam.
Depois penetrávamos na Basílica – quando um Sacristão nédio, de barrete de
veludo, cerrou fortemente a porta, e um Padre passou, enterrando na algibeira,
com um cansado gesto final e como para sempre, o seu velho Breviário.
– Estou com uma sede, Jacinto… Foi
esta tremenda Filosofia!
Descemos a escadaria, armada em arraial
devoto. O meu pensativo camarada comprou uma imagem da Basílica. E saltávamos
para a vitória, quando alguém gritou rijamente, numa surpresa:
– Eh Jacinto!
O meu Príncipe abriu os braços, também
espantado:
– Eh Maurício!
E, num alvoroço, atravessou a rua, para
um café, onde, sob o toldo de riscadinho, um robusto homem, de barba em bico,
remexia o seu absinto, com o chapéu de palha descaído na nuca, a quinzena solta
sobre a camisa de seda, sem gravata, como se descansasse num banco, entre as
sombras do seu jardim.
E ambos, apertando as mãos, se
admiravam daquele encontro, num Domingo de Verão, sobre as alturas de
Montmartre.
– Ó! eu estou aqui no meu bairro! –
exclamava alegremente Maurício. Em família, em chinelos… Há três meses que
subi para estes cimos da Verdade… Mas tu na Santa Colina, homem profano da
planície e das ruas de Israel!
O meu Príncipe mostrou o seu Zé
Fernandes:
– Com este amigo, em peregrinação à
Basílica… O meu amigo Fernandes Lorena… Maurício de Mayolle, velho
camarada.
Mr. De Mayolle (que, pela face larga e
nariz nobremente grosso, lembrava Francisco de Valois, Rei de França) ergueu o
seu chapéu de palha. E empurrava uma cadeira, insistia que nos acomodássemos
para um absinto ou para um bock.
– Toma um bock, Zé Fernandes! – lembrou
Jacinto. – Tu estavas a ganir com sede!
Corri lentamente a língua sobre os
beiços mais secos que pergaminhos:
Estou a guardar esta sedezinha para
logo, para jantar, com um vinhozinho gelado!
Maurício saudou, com silenciosa
admiração, esta minha avisada malícia. E imediatamente, para o meu Príncipe:
– Há três anos que não te vejo,
Jacinto… Como tem sido possível, neste Paris que é uma aldeola e que tu
atravancas?
– A vida, Maurício, a espalhada vida…
Com efeito! Há três anos, desde a casa dos Lamotte-Orcel. Tu ainda visitas esse
santuário?
Maurício atirou um gesto desdenhoso e
largo, que sacudia um mundo:
– Ó! Há mais dum ano que me separei
dessa bicharia herética… Uma turba indisciplinada, meu Jacinto! Nenhuma
fixidez, um diletantismo estonteado, carência completa e cômica de toda a base
experimental… Quando tu ias aos Lamotte-Orcel, e à Parola do 37, e à Cerveja ideal, o que
reinava?…
Jacinto catou lentamente as suas
recordações pôr entre os pêlos do bigode:
– Eu sei!… Reinava Wagner e a
Mitologia Eddica, e o Raganarock, e as Normas… Muito Pré-Rafaelismo também, e
Montagna, e Fra-Angélico… Em moral, o Renanismo.
Maurício sacudia os ombros. Ó, tudo
isso pertencia a um passado arcaico, quase lacustre! Quando Madame de
Lamotte-Orcel remobiliara a sala com veludos Morris, grossas alcachofras sobre
tons de Açafrão, já o Renanismo passara, tão esquecido como o Cartesianismo…
– Tu ainda és do tempo do culto do Eu?
O meu Príncipe suspirou risonhamente:
– Ainda o cultivei.
– Pois bem! Logo depois foi o
Hartmanismo, o Inconsciente. Depois o Nietzismo, o Feudalismo espiritual…
Depois grassou o Tolstoísmo, um furor imenso de renunciamento neocenobítico.
Ainda me lembro dum jantar em que apareceu um mostrengo dum eslavo, de guedelha
sórdida, que atirava olhos medonhos para o decote da pobre condessa de Arche, e
que grunhia com o dedo espetado: – “Busquemos a luz, muito pôr baixo, no pó da
terra!” – e à sobremesa bebemos à delícia da humildade e do trabalho servil,
com aquele Champanhe Marceaux granitado que a Matilde dava nos grandes dias em
copos da forma do Sã-Graal! Depois veio Emersonismo… Mas a praga cruel foi o
Ibsenismo! Enfim, meu filho, uma Babel de Éticas e Estéticas. Paris parecia
demente. Já havia uns desgarrados que tendiam para o Luciferismo. E amiguinhas
nossas, coitadas, iam descambando para o Falismo, uma moxinifada
místico-brejeira, pregada pôr aquele pobre La Carte que depois se fez Monge
Branco, e que anda no Deserto… Um horror! E uma tarde, de repente, toda esta
massa se precipita com ânsia para o Ruskinismo!
Eu, agarrado à bengala, bem no chão,
sentia como um vendaval que redemoinhava, me torcia o crânio! E até Jacinto
balbuciou, esgazeado:
– O Ruskinismo?
– Sim, o velho Ruskin… John Ruskin!
O meu ditoso Príncipe compreendeu:
– Ah, Ruskin!… As sete lâmpadas da Arquitetura, A Coroa de Oliveira Brava… É
o culto da Beleza!
– Sim! O culto da Beleza – confirmou
Maurício. Mas a esse tempo eu, enjoado, já descera de todas nuvens vãs…
Pisava um chão mais seguro, mais fértil.
Deu um sorvo lento ao absinto, cerrando
as pálpebras. Jacinto esperava, com o seu fino nariz dilatado, como para
respirar a Flor de Novidade que ia desabrochar:
– E então? então?…
Mas o outro murmurou, dispersamente,
pôr entre reticências em que se velava:
– Vim para Montmartre… Tenho aqui um
amigo, um homem de gênio, que percorreu toda a Índia… Viveu com os Toddas,
esteve nos mosteiros de Grama-Khian e de Dashi-Lumbo, e estudou com
Gengen-Chutu no retiro santo de Urga… Gengen-Chuty foi a décima Sexta
encarnação de Guatama, e era portanto um Boddi-sattva… Trabalhamos,
procuramos… Não são visões. Mas fatos, experiências bem antigas, que vêm
talvez desde os tempos de Cristna…
Através destes nomes, que exalavam um
perfume triste de vetustos ritos, arredara a cadeira. E de pé, deixando cair
sobre a mesa, distraidamente, para pagar o absinto, moedas de prata e moedas de
cobre, murmurava com os olhos descansados em Jacinto, mas perdidos noutra
visão:
– Pôr fim tudo se reduz ao supremo
desenvolvimento da Vontade dentro da suprema pureza da Vida. É toda a ciência e
força dos grandes mestres Hindus… Mas a pureza absoluta da vida, eis a luta,
eis o obstáculo! Não basta mesmo o Deserto, nem o bosque do mais velho templo
no alto Tibete… Ainda assim, meu Jacinto, já obtivemos resultados bem
estranhos. Sabes as experiências de Tyndall, com as chamas sensitivas… O
pobre químico, para demonstrar as vibrações do som, tocou quase às portas da
verdade esotérica. Mas quê! homem de ciência, portanto homem de estupidez,
ficou aquém, entre as suas placas e suas retortas! Nós fomos além. Verificamos
as ondulações da Vontade!
Diante de nós, pela expansão da energia do meu companheiro, e em cadência com o
seu mandado, uma chama, a três metros, ondulou, rastejou, despediu línguas
ardentes, lambeu uma alta parede, rugiu furiosa e negra, resplandeceu direita e
silenciosa, e bruscamente abatida em cinza morreu!
E o estranho homem, com o chapéu para a
nuca, ficou imóvel, de braços abertos e os olhares esgazeados, como no renovado
assombro e no transe daquele prodígio. Depois, recaindo no seu modo fácil e
sereno, acendendo devagar um cigarro:
– Uma destas manhãs, Jacinto , apareço
no 202, para almoçar contigo, e levo o meu amigo. Ele só come arroz, um pouco
de salada, e fruta. E conversamos… Tu tinhas um exemplar do Sepber-Zerijab e outro do Targun d’Onkelus. Preciso
folhear esses livros.
Apertou a mão do meu Príncipe, saudou
este assombrado Zé Fernandes, e serenamente seguiu pela quieta rua, com o
chapéu de palha para a nuca, as mãos enterradas nas algibeiras, como um homem
natural entre coisas naturais.
– Ó Jacinto! Quem é este bruxo?
Conta!… Quem é ele, santíssimo nome de Deus?
Recostado na vitória, ajeitando o vinco
das calças, o meu Príncipe contou, concisamente. Era um nobre e leal rapaz,
muito rico, muito inteligente, da antiga casa soberana de Mayolle, descendente
dos Duques de Septimania… E murmurou, através do costumado bocejo:
– Ó desenvolvimento supremo da
vontade!… Teosofia, Budismo esotérico… Aspirações, decepções… Já
experimentei… Uma maçada!
Atravessamos, calados, o rumor de
Paris, sob a moleza abafada do crepúsculo de Verão, para jantar no Bosque, no
Pavilhão de Armenoville, onde os Tziganes, avistando Jacinto, tocaram o Hino da Carta com paixão, com langor, numa cadência
de czarda dolorosa e áspera.
E eu, desdobrando regaladamente o
guardanapo:
– Pois venha agora para a minha rica
sede esse vinhozinho gelado! E creio que estabeleci definitivamente no espírito
do Sr. D. Jacinto o salutar horror da Cidade!
O meu Príncipe percorria, catando o
bigode, a Lista dos Vinhos, enquanto o Copeiro esperava com pensativa
reverência:
– Mande gelar duas garrafas de
champanhe St. Marceaux… Mas antes, um Barsac velho, apenas refrescada… Água
de Evian… Não, de Bussang! Bem, de Evian e de Bussang! E, para começar, um bock.
Depois, bocejando, desabotoando
lentamente a sobrecasaca cinzenta:
– Pois estou com vontade de construir
uma casa nos cimos de Montmartre, com um miradouro no alto, todo de vidro e
ferro, para descansar de tarde e dominar a Cidade.
Capítulo VII
Julho findara com uma chuva refrescante
e consoladora: – e eu pensava em realizar finalmente a minha romagem às cidades
da Europa, sempre retardada, através da Primavera, pelas surpresas do Mundo e
da Carne. Mas, de repente, Jacinto começou a rogar e a reclamar que o seu Zé
Fernandes o acompanhasse, todas as tardes, a casa de Madame de Oriol! E eu
compreendi que o meu Príncipe (à maneira do divino Aquiles, que, sob a tenda, e
junto da branca, insípida e dócil Briseida, nunca dispensava Pátroclo) desejava
Ter, no retiro do Amor, a presença, o conforto e o socorro da amizade. Pobre
Jacinto! Logo pela manhã combinava pelo telefone com Madame de Oriol essa hora
de quietação e doçura. E assim encontrávamos sempre superfina Dama prevenida e solitária
naquela sala da rua de Lisbonne, onde Jacinto e eu mal cabíamos, sufocávamos na
confusão, entre os cestos de flores, e os outros rocalhados, e os monstros do
Japão, e a galante fragilidade dos Saxes, e as peles de feras estiradas aos pés
de sofás adormecedores, e os biombos de Aubusson formando alcovas favoráveis e
lânguidas… Aninhada numa cadeira de bambu lacada de branco, entre almofadas
aromatizadas de verbena da Índia, com um romance pousado no regaço, ela
esperava o seu amigo numa certa indolência passiva e mansa que me lembrava
sempre o Oriente e um Harém. Mas, pelas frescas sedinhas Pompadour, parecia
também uma marquesinha de Versalhes cansada do grande século; ou então, com
brocados sombrios e largos cintos cravejados, era como uma veneziana, preparada
para um Doge. A minha intrusão, na intimidade daquelas tardes, não a
contrariava – antes lhe trazia um vassalo novo, com dois olhos novos para a
contemplar. Eu era já o seu Cher Fernandez!
E apenas descerrava os lábios avivados
de vermelho, semelhantes a uma ferida fresca, e começava a chalrar – logo nos
envolvia o borborinho e a murmuração de Paris. Ela só sabia chalrar sobre a sua
pessoa que era o resumo da sua Classe, e sobre a sua existência que era o
resumo do seu Paris: – e a sua existência, desde casada, consistira em ornar
com suprema ciência o seu lindo corpo; entrar com perfeição numa sala e
irradiar; remexer os estofos e conferenciar pensativamente com o grande
costureiro; rolar pelo Bois pousada na sua vitória como uma imagem de cera;
decotar e branquear o colo; debicar uma perna de galinhola em mesas de luxo;
fender turbas ricas em bailes espessos; adormecer com a vaidade esfalfada;
percorrer de manhã, tomando chocolate, os “Ecos” e as “Festas” do Fígaro; e de vez em quando
murmurar para o marido – “Ah, és tu?…” Além disso, ao lusco-fusco, num sofá,
alguns curtos suspiros, entre os braços de alguém a quem era constante. Ao meu
Príncipe, nesse ano, pertencia o sofá. E todos estes deveres de Cidade e de
Casta os cumpria sorrindo. Tanto sorria, desde casada, que já duas pregas lhe
vincavam os cantos dos beiços, indelevelmente. Mas nem na alma, nem na pele,
mostrava outras máculas de fadiga. A sua Agenda de Visitas continha mil e
trezentos nomes, todos no Nobiliário. Através, porém, desta fulgurante
sociabilidade arranjara no cérebro (onde decerto penetrara o pó de arroz que
desde o colégio acamava na testa) algumas Idéias Gerais. Em Política era pelos
Príncipes; e todos os outros “horrores”, a República, o Socialismo, a
Democracia que se não lava, os sacudia risonhamente, com um bater de leque. Na
Semana Santa juntava às rendas do chapéu a Coroa amarga dos espinhos – pôr
serem esses, para gente bem-nascida, dias de penitência e de dor. E, diante de
todo o Livro ou de todo o Quadro, sentia a emoção e formulava finamente o
juízo, que no seu Mundo, e nessa Semana, fosse elegante formular e sentir.
Tinha trinta anos. Nunca se embaraçara nos tormentos duma paixão. Marcava, com
rígida regularidade, todas as suas despesas num Livro de Contas encadernado em
pelúcia verde-mar. A sua religião íntima (e mais genuína do que a outra, que a
levava todos os domingos à missa de S. Felipe du Roule) era a Ordem. No
Inverno, logo que na amável cidade começavam a morrer de frio, debaixo das
pontes, criancinhas sem abrigo – ela preparava com comovido cuidado os seus
vestidos de patinagem. E preparava também os de Caridade – porque era boa, e
concorria para Bazares, Concertos e Tômbolas, quando fossem patrocinados pelas
Duquesas do seu “rancho”. Depois, na Primavera, muito metodicamente,
regateando, vendia a uma adela os vestidos e as capas de Inverno. Paris
admirava nela uma suprema flor de Parisianismo.
Pois respirando esta macia e fina flor
passamos nós as tardes desse Julho enquanto as outras flores pendiam e
murchavam na calma e no pó. Mas, na intimidade do seu perfume, Jacinto não
parecia encontrar esse contentamento de alma, que entre tudo que cansa jamais
cansa. Era já com a paciente lentidão com que se sobem todos os Calvários, os
mais bem tapetados, que ele subia a escadaria de Madame de Oriol, tão suave e
orlada de tão frescas palmeiras. Quando a apetitosa criatura, com dedicação,
para o entreter, desdobrava a sua vivacidade como um pavão desdobra a cauda, o
meu pobre Príncipe puxava os pêlos do bigode murcho, na murcha postura de quem,
pôr uma manhã de Maio, enquanto os melros cantam nas sebes, assiste, numa
igreja negra, a um responso fúnebre pôr um Príncipe. E no beijo que ele
chuchurreava sobre a mão da sua doce amiga, para despedir, havia sempre alacridade
e alívio.
Mas ao outro dia, ao começar da tarde,
depois de errar através da Biblioteca e do Gabinete, puxando sem curiosidade a
tira do telégrafo, atirando algum recado mole pelo telefone, espalhando o olhar
desalentado sobre o saber imenso dos trinta mil livros, remexendo a colina dos
Jornais e Revistas, terminava pôr me chamar, já com a preguiça triste da
façanha a que se impelia:
– Vamos a casa de Madame de Oriol, Zé
Fernandes? Eu tinha marcadas para hoje seis ou sete coisas, mas não posso, é
uma seca! Vamos a casa de Madame de Oriol… Ao menos lá, às vezes, há um
bocado de frescura e paz.
E foi uma dessas tardes, em que o meu
Príncipe assim procurava desesperadamente um “bocado de frescura e paz”, que
encontramos, ao meio da escadaria suave, entre as palmeiras, o marido de Madame
de Oriol. Eu já o conhecia – porque Jacinto mo mostrara uma noite, no Grand
Café, ceando com dançarinas do Moulin
Rouge. Era um moço gordalhufo, indolente, de uma brancura crua de toucinho,
com uma calvície já séria e já lustrosa, constantemente acariciada pelos seus
gordos dedos carregados de anéis. Nessa tarde, porém, vinha vermelho, todo
emocionado, calçando as luvas com cólera. Estacou diante de Jacinto – e sem
mesmo lhe apertar a mão, atirando um gesto para o patamar:
– Visita lá acima? Vai achar a Joana em
péssima disposição… Tivemos uma cena, e tremenda.
Deu outro puxão desesperado à luva cor
de palha, já esgaçada:
– Estamos separados, cada um vive como
lhe apetece, é excelente! Mas em tudo há medida e forma… Ela tem o meu nome,
não posso consentir que em Paris, com conhecimento de todo o Paris, seja a
amante do trintanário. Amantes da nossa roda, vá! Um lacaio, não!… Se quer
dormir com os criados que emigre para o fundo da província, para a sua casa de
Corbelle. E lá até com os animais!… Foi o que lhe disse! Ficou como uma fera.
Sacudiu então a mão de Jacinto que “era
da sua roda” – rebolou pela escadaria florida e nobre. O meu Príncipe, imóvel
nos degraus, de face pendida, cofiava lentamente os fios pendidos do bigode.
Depois, olhando para mim, como um ser saturado de tédio e em quem nenhum tédio
novo pode caber:
– Já agora subamos, sim?
Parti então, com muita alegria, para a
minha apetecida romagem às Cidades da Europa.
Ia viajar!… Viajei. Trinta e quatro
vezes, à pressa, bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a mala.
Onze vezes passei o dia num vagão, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a
arquejar, a escorrer de suor, saltando em cada estação para sorver
desesperadamente limonadas mornas que me escangalhavam a entranha. Catorze
vezes subi derreadamente, atrás dum criado, a escadaria desconhecida dum
Hotel,; e espalhei o olhar incerto pôr um quarto desconhecido; e estranhei uma
cama desconhecida, de onde me erguia, estremunhado, para pedir em línguas
desconhecidas um café com leite que me sabia a fava, um banho de tina que me
cheirava a lodo. Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com cocheiros que
me espoliavam. Perdi uma chapeleira, quinze lenços, três ceroulas, e duas
botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito. Em mais de trinta
mesas-redondas esperei tristonhamente que me chegasse o boeuf-à-la-mode, já frio, com
molho coalhado – e que o copeiro me trouxesse a garrafa de Bordéus que eu
provava e repelia com desditosa carantonha. Percorri, na fresca penumbra dos
granitos e dos mármores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove Catedrais.
Trilhei molemente, com uma dor surda na nuca, em catorze museus, cento e
quarenta salas revestidas até aos tetos de Cristos, heróis, santos, ninfas,
princesas, batalhas, arquiteturas, verduras, nudezes, sombrias manchas de
betume, tristezas das formas imóveis!… E o dia mais doce foi quando em
Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei um velho inglês de penca
flamejante que habitara o Porto, conhecera o Ricardo, o José Duarte, o Visconde
do Bom Sucesso, e as Limas da Boa vista… Gastei seis mil francos. Tinha
viajado.
Enfim, numa bendita manhã de Outubro,
na primeira friagem e névoa de Outono, avistei com enternecido alvoroço as cortinas
de seda ainda fechadas no meu 202! Afaguei o ombro do Porteiro. No patamar,
onde encontrei o ar macio e tépido que deixara em Florença, apertei os ossos do
Grilo excelente:
– E Jacinto?
O digno negro murmurou, de entre os
altos, reluzentes colarinhos:
– S. Exª. circula… Pesadote, fartote.
Entrou tarde do baile da Duquesa de Loches. Era o contrato de casamento de
Mademoiselle de Loches… Ainda tomou antes de se deitar um chá gelado… E
disse a coçar a cabeça: “Eh! Que maçada! Eh! Que maçada!”
Depois do banho e do chocolate, às dez
horas, consolado e quentinho dentro do roupão de veludo, rompi pelo quarto do
meu Príncipe, de braços abertos e sedentos:
– Ó Jacinto!
– Ó viajante!…
Quando nos estreitamos, fartamente, eu
recuei para lhe contemplar a face – e nela a alma. Encolhido numa quinzena de
pano cor de malva orlada de peles de marta, com os pêlos do bigode murchos, as
suas duas rugas mais cavadas, uma moleza nos ombros largos, o meu amigo parecia
já vergado sob o peso e a opressão e o terror do seu dia. Eu sorri, para que
ele sorrisse:
– Valente Jacinto… Então como tens
vivido?
Ele respondeu, muito serenamente:
– Como um morto.
Forcei uma gargalhada leve, como se o
seu mal fosse leve:
– Forcei uma gargalhada leve, como se o
seu mal fosse leve:
– Aborrecidote, hem?
O meu Príncipe lançou, num gesto tão
vencido, um ó tão cansado – que eu compadecido de novo o abracei, o estreitei,
como para lhe comunicar uma parte desta alegria sólida e pura que recebi do meu
Deus!
Desde essa manhã, Jacinto começou a
mostrar claramente, escancaradamente, ao seu Zé Fernandes, o tédio de que a
existência o saturava. O seu cuidado realmente e o seu esforço consistiram
então em sondar e formular esse tédio – na esperança de o vencer logo que lhe
conhecesse bem a origem e a potência. E o meu pobre Jacinto reproduziu a
comédia pouco divertida dum Melancólico que perpetuamente raciocina a sua
Melancolia! Nesse raciocínio, ele partia sempre do fato irrecusável e maciço –
que a sua vida especial de Jacinto continha todos os interesses e todas as
facilidades, possíveis no século XIX, numa vida de homem que não é um Gênio,
nem um Santo. Com efeito! Apesar do apetite embotado pôr doze anos de
Champanhes e molhos ricos ele conservava a sua rijeza de pinheiro bravo; na luz
da sua inteligência não aparecera nem tremor nem morrão; a boa terra de
Portugal, e algumas Companhias maciças, pontualmente lhe forneciam a sua doce
centena de contos; sempre ativas e sempre fiéis o cercavam as simpatias duma
Cidade inconstante e chasqueadora; o 202 estourava de confortos; nenhuma
amargura de coração o atormentava; – e todavia era um Triste. Pôr que?… E
daqui saltava, com certeza fulgurante, à conclusão de que a sua tristeza, esse
cinzento burel em que a sua alma andava amortalhada, não provinha da sua
individualidade de Jacinto – mas da Vida, do lamentável, do desastroso fato de
Viver! E assim o saudável, intelectual, riquíssimo, bem acolhido Jacinto
tombara no Pessimismo.
E um Pessimismo irritado! Porque
(segundo afirmava) ele nascera para ser tão naturalmente otimista como um
pardal ou um gato. E, até aos doze anos, enquanto fora um bicho superiormente
amimado, com a sua pele sempre bem coberta, o seu prato sempre bem cheio, nunca
sentira fadiga, ou melancolia, ou contrariedade, ou pena – e as lágrimas eram
para ele tão incompreensíveis que lhe pareciam viciosas. Só quando crescera, e
da animalidade penetrara na humanidade, despontara nele esse fermento de
tristeza, muito tempo indesenvolvido no tumulto das primeiras curiosidades, e
que depois alastrara, o invadira todo, se lhe tornara consubstancial e como o
sangue das suas veias. Sofrer portanto era inseparável de Viver. Sofrimentos
diferentes nos destinos diferentes da Vida. Na turba dos humanos é a angustiada
luta pelo pão, pelo teto, pelo lume; numa casta, agitada pôr necessidades mais
altas, é a amargura das desilusões, o mal da imaginação insatisfeita, o orgulho
chocando contra o obstáculo; nele, que tinha os bens todos e desejos nenhuns,
era o tédio. Miséria do Corpo, tormento da Vontade, fastio da Inteligência –
eis a Vida! E agora aos trinta e três anos a sua ocupação era bocejar, correr
com os dedos desalentados a face pendida para nela palpar e apetecer a caveira.
Foi então que o meu Príncipe começou a
ler apaixonadamente, desde o Eclesiastes até Schopenhauer, todos os líricos e
todos os teóricos do Pessimismo. Nestas leituras encontrava a reconfortante
comprovação de que o seu mal não era mesquinhamente “Jacíntico” – mas
grandiosamente resultante duma Lei Universal. Já há quatro mil anos, na remota
Jerusalém, a Vida, mesmo nas delícias mais triunfais, se resumia em Ilusão. Já
o Rei incomparável, de sapiência divina, sumo Vencedor, sumo Edificador, se
enfastiava, bocejava, entre os despojos das suas conquistas, e os mármores
novos dos seus Templos, e as suas três mil concubinas, e as Rainhas que subiam
do fundo da Etiópia para que ele as fecundasse e no seu ventre depusesse um
Deus! Não há nada novo sob o Sol, e a eterna repetição dos males. Quanto mais
se sabe mais se pena. E o justo como o perverso, nascidos do pó, em pó se
tornam. Tudo tende ao pó efêmero, em Jerusalém e em Paris! E ele, obscuro no
202, padecia pôr ser homem e pôr viver – como no seu trono de ouro, entre os
seus quatro leões de ouro, o filho magnífico de David.
Não se separava então do Eclesiastes. E circulava pôr
Paris trazendo dentro do cupé Salomão, como irmão de dor, com quem repetia o
grito desolado que é a suma da verdade humana – Vanitas Vanitatum! Tudo é
Vaidade! Outras vezes, logo de manhã o encontrava estendido no sofá, num roupão
de seda, absorvendo Schopenhauer – enquanto o pedicuro, ajoelhado sobre o
tapete, lhe polia com respeito e perícia as unhas dos pés. Ao lado pousava a
chávena de Saxe, cheia desse café de Moca enviado pôr emires do Deserto, que
não o contentava nunca, nem pela força, nem pelo aroma. A espaços pousava o
livro no peito, resvalava um olhar compassivo para o pedicuro, como a procurar
que dor o torturaria – pois que a todo o viver corresponde um sofrer. Decerto o
remexer assim, perpetuamente, em pés alheios… E quando o pedicuro se erguia,
Jacinto abria para ele um sorriso de confraternidade – com um “adeus, meu
amigo” que era um “adeus, meu irmão!”
Esse foi o período esplêndido e
soberbamente divertido do seu tédio. Jacinto encontrara enfim na vida uma
ocupação grata – mal dizer da Vida! E para que pudesse maldizer em todas as
suas formas, as mais ricas, as mais intelectuais, as mais puras, sobrecarregou
a sua vida própria de novo luxo, de interesses novos de espírito, e até de
fervores humanitários, e até de curiosidades supernaturais.
O 202, nesse Inverno, refulgiu de
magnificência. Foi então que ele iniciou em Paris, repetindo Heliogábalo, os
Festins de Cor contados na HISTÓRIA AUGUSTA: e ofereceu às suas amigas esse
sublime jantar cor-de-rosa, em que tudo era róseo, as paredes, os móveis, as
luzes, as louças, os cristais, os gelados, os Champanhes, e até (pôr uma
invenção da Alta Cozinha) os peixes, e as carnes, e os legumes, que os
escudeiros serviam, empoados de pó rosado, com librés da cor de rosa, enquanto
do teto, dum velário de seda rosada, caíam pétalas frescas de rosas… A
Cidade, deslumbrada, clamou: – “Bravo, Jacinto!” E o meu Príncipe, ao rematar a
festa fulgurante, plantou diante de mim as mãos nas ilhargas e gritou
triunfalmente: – “Hem? Que maçada!…”
Depois foi o Humanitarismo: e fundou um
Hospício no campo, entre jardins, para velhinhos desamparados, outro para
crianças débeis à beira do Mediterrâneo. Depois com o major Dorchas, e Mayolle,
e o Hindu de Mayolle penetrou no Teosofismo: e montou tremendas experiências
para verificar a misteriosa exteriorização
da motilidade. Depois, desesperadamente, ligou o 202 com os fios
telegráficos do Times,
para que no seu gabinete, como num coração, palpitasse toda a Vida Social da
Europa.
E a cada um destes esforços da
elegância, do humanitarismo, da sociabilidade, e da inteligência indagadora,
voltara para mim, de braços alegres, com um grito vitorioso: – “Vês tu, Zé
Fernandes? Uma maçada!” – Arrebatava então o seu Eclesiastes, o seu Schopenhauer,
e, estendido no sofá, saboreava voluptuosamente a concordância da Doutrina e da
Experiência. Possuía uma Fé – o Pessimismo; era um apóstolo rico e esforçado; e
tudo tentava, com suntuosidade, para provar a verdade da sua Fé! Muito gozou
nesse ano o meu desgraçado Príncipe!
No começo do Inverno, porém, notei com
inquietação que Jacinto já não folheava o Eclesiastes,
desleixava Schopenhauer. Nem festas, nem Teosofismos, nem os seus Hospícios,
nem os fios do Times,
pareciam interessar agora o meu amigo, mesmo como demonstrações gloriosas da
sua Crença. E a sua abominável função de novo se limitou a bocejar, a passar os
dedos moles sobre a face pendida, palpando a caveira. Incessantemente aludia à
morte como a uma libertação. Uma tarde mesmo, no melancólico crepúsculo da
Biblioteca, antes de refulgirem as luzes, consideravelmente me aterrou, falando
num regelado de mortes rápidas, sem dor, pelo choque duma vasta pilha elétrica
ou pela violência compassiva do ácido cianídrico. Diabo! O Pessimismo, que aparecera
na Inteligência do meu Príncipe como um conceito elegante – atacara bruscamente
a Vontade!
Todo o seu movimento então foi o dum
boi inconsciente que marcha sob a canga e o aguilhão. Já não esperava da Vida
contentamento – nem mesmo se lastimava que ela lhe trouxesse tédio ou pena.
“Tudo é indiferente, Zé Fernandes!” E tão indiferentemente sairia à sua janela
para receber uma Coroa Imperial oferecida pôr um Povo – como se estenderia numa
poltrona rota para emudecer e jazer. Sendo tudo inútil, e não conduzindo senão
a maior desilusão, que podia importar a mais rutilante atividade ou a mais
desgostada inércia? O seu gesto constante, que me irritava, era encolher os
ombros. Perante duas idéias, dois caminhos, dois pratos, encolhia os ombros!
Que importava?… E no mínimo ato, raspar um fósforo ou desdobrar um Jornal,
punha uma morosidade tão desconsolada que todo ele parecia ligado, desde os
dedos até à alma, pelas voltas apertadas duma corda que se não via e que o
travava.
Muito desagradavelmente me recordo do
dia dos seus anos, a 10 de Janeiro. Cedo, de manhã, recebera, com uma carta de
Madame de Trèves, um açafate de camélias, azaléas, orquídeas e lírios-do-vale.
E foi este mimo que lhe recordou a data considerável. Soprou sobre as pétalas o
fumo do cigarro e murmurou com um riso de lento escárnio:
– Então há trinta e quatro anos eu ando
nesta maçada?
E como eu propunha que telefonássemos
aos amigos para beberem no 202 o Champanhe do “Natalício” – ele recusou, com o
nariz enojado.
– Ó! Não! Que horrível seca!… – E
bradou mesmo para o Grilo: – Eu hoje não estou em Paris para ninguém. Abalei
para o campo, abalei para Marselha… Morri!
E a sua ironia não cessou até ao almoço
perante os bilhetes, os telegramas, as cartas, que subiam, se arredondavam em
colina sobre a mesa de ébano, como um preito da Cidade. Outras flores que
vieram, em vistosos cestos, com vistosos laços, foram pôr ele comparadas às que
se depõem sobre uma tumba. E apenas se interessou um momento pelo presente de
Efraim, uma engenhosa mesa, que se abaixava até ao tapete ou se alteava até ao
teto – para quê, senhor Deus meu?
Depois do almoço, como chovia
sombriamente, não arredamos do 202, com os pés estendidos ao lume, em
preguiçoso silêncio. Eu terminara pôr adormecer beatificamente. Acordei aos
passos açodados do Grilo… Jacinto, enterrado na poltrona, com umas tesouras,
recortava um papel! E nunca eu me compadeci daquele amigo, que cansara a
mocidade a acumular todas as noções formuladas desde Aristóteles e a juntar os
inventos realizados desde Terâmenes, como nessa tarde de festa, em que ele,
cercado de Civilização nas máximas proporções, para gozar nas máximas
proporções a delícia de viver, se encontrava reduzido, junto ao seu lar, a
recortar papéis com uma tesoura!
O Grilo trazia um presente do
Grão-Duque – uma caixa de prata, forrada de cedro, e cheia dum chá precioso,
colhido, flor a flor, nas veigas de Kiang-Sou pôr mãos puras de virgens, e
conduzido através da Ásia, em caravanas, com a veneração duma relíquia. Então,
para despertar o nosso torpor, lembrei que tomássemos o divino chá – ocupação
bem harmônica com a tarde triste, a chuva grossa alagando os vidros, e a clara
chama bailando no fogão. Jacinto acendeu – e um escudeiro acercou logo a mesa
de Efraim para que nós lhe estreássemos os serviços destros. Mas o meu
Príncipe, depois de a altear, para o meu espanto, até aos cristais do lustre,
não conseguiu, apesar de uma suada e desesperada batalha com as molas, que a
mesa regressasse a uma altura humana e caseira. E o escudeiro de novo a levou,
levantada como um andaime, quimérica, unicamente aproveitável para o gigante
Adamastor. Depois veio a caixa do chá entre chaleiras, lâmpadas, coadores,
filtros, todo um fausto de alfaias de prata, que comunicavam a essa ocupação,
tão simples e doce em casa de minha tia, fazer chá, a majestade dum rito.
Prevenido pelo meu camarada da sublimidade daquele chá de Kiang-Sou, ergui a
chávena aos lábios com reverência. Era uma infusão descorada que sabia a malva
e a formiga. Jacinto provou, cuspiu, blasfemou. Não tomamos chá.
Ao cabo de outro pensativo silêncio,
murmurei, com os olhos perdidos no lume:
– E as obras de Tormes? A igreja… Já
haverá igreja nova?
Jacinto retomara o papel e a tesoura:
– Não sei… não tornei a receber carta
do Silvério… Nem imagino onde param os ossos… Que lúgubre história!
Depois chegou a hora das luzes e do
jantar. Eu encomendara pelo Grilo ao nosso magistral cozinheiro uma larga
travessa de arroz-doce, com as iniciais de Jacinto e a data ditosa em canela, à
moda amável da nossa meiga terra. E o meu Príncipe à mesa, percorrendo a lâmina
de marfim onde no 202 se escreviam os pratos a lápis vermelho, louvou com
fervor a idéia patriarcal:
– Arroz-doce! Está escrito com dois ss,
mas não tem dúvida… Excelente lembrança! Há que tempos não como arroz-doce!
Desde a morte da avó.
Mas quando o arroz-doce apareceu
triunfalmente, que vexame! Era um prato monumental, de grande arte! O arroz,
maciço, moldado em forma de pirâmide do Egito, emergia duma calda de cereja, e
desaparecia sob os frutos secos que o revestiam até ao cimo onde se equilibrava
uma coroa de Conde feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as
iniciais, a data, tão lindas e graves na canela ingênua, vinham traçadas nas
bordas da travessa com violetas pralinadas! Repelimos, num mudo horror, o prato
acanalhado. E Jacinto, erguendo o copo de Champanhe, murmurou como num funeral
pagão:
– Ad
Manes, aos nossos mortos!
Recolhemos à Biblioteca, a tomar o café
no conchego e alegria do lume. Fora, o vento bramava como num ermo serrano; e
as vidraças tremiam, alagadas, sob as bátegas da chuva irada. Que dolorosa
noite para os dez mil pobres que em Paris erram sem pão e sem lar! Na minha
aldeia, entre cerro e vale, talvez assim rugisse a tormenta. Mas aí cada pobre,
sob o abrigo da sua telha vã, com a sua panela atestada de couves, se agacha no
seu mantéu ao calor da lareira. E para os que não tenham lenha ou couve, lá
está o João das Quintãs, ou a tia Vicência, ou o abade, que conhecem todos os
pobres pelos seus nomes, e com eles contam, como sendo dos seus, quando o carro
vai ao mato e a fornada entra no forno. Ah Portugal pequenino, que ainda és
doce aos pequeninos!
Suspirei, Jacinto preguiçava. E
terminamos pôr remexer languidamente os jornais que o mordomo trouxera, num
monte facundo, sobre uma salva de prata – jornais de Paris, jornais de Londres,
Semanários, Magazines, Revistas, Ilustrações… Jacinto desdobrava,
arremessava: das Revistas espreitava o sumário, logo farto; às ilustrações
rasgava as folhas com o dedo indiferente, bocejando pôr cima das gravuras.
Depois, mais estirado para o lume:
– É uma seca… Não há que ler. E de
repente, revoltado contra este fastio opressor que o escravizava, saltou da
poltrona com um arranque de quem despedaça algemas, e ficou ereto, dardejando
em torno um olhar imperativo e duro, como se intimasse aquele seu 202, tão
abarrotado de Civilização, a que pôr um momento sequer fornecesse à sua alma um
interesse vivo, à sua vida um fugitivo gosto! Mas o 202 permaneceu insensível;
nem uma luz, para o animar, avivou o seu brilho mudo: só as vidraças tremeram
sob o embate mais rude de água e vento.
Então o meu Príncipe, sucumbido,
arrastou os passos até ao seu gabinete, começou a percorrer todos os aparelhos
completadores e facilitadores da Vida – o seu Telégrafo, o seu Telefone, o seu
Fonógrafo, o seu Radiômetro, o seu Grafofone, o seu Microfone, a sua Máquina de
Escrever, a sua Máquina de Contar, a sua Imprensa Elétrica, a outra Magnética,
todos os seus utensílios, todos os seus tubos, todos os seus fios… Assim um
Suplicante percorre altares de onde espera socorro. E toda a sua suntuosa
Mecânica se conservou rígida, reluzindo frigidamente, sem que uma roda girasse
nem uma lâmina vibrasse, para entreter o seu Senhor.
Só o relógio monumental, que marcava a
hora de todas as capitais e o curso de todos os planetas, se compadeceu,
batendo a meia-noite, anunciando ao meu amigo que mais um Dia partira levando o
seu peso – diminuindo esse sombrio peso da Vida, sob que ele gemia, vergado. O
Príncipe da Grã-Ventura, então, decidiu recolher para a cama – com um livro…
E durante um momento, estacou no meio da Biblioteca, considerando os seus
setenta mil volumes estabelecidos com pompa e majestade como doutores num
Concílio – depois as pilhas tumultuárias dos livros novos que esperavam pelos
cantos, sobre o tapete, o repouso e a consagração das estantes de ébano.
Torcendo molemente o bigode caminhou pôr fim para a região dos Historiadores:
espreitou séculos, farejou raças; pareceu atraído pelo esplendor do Império
Bizantino; penetrou na Revolução Francesa de onde se arredou desencantado; e
palpou com mão indeliberada toda a vasta Grécia desde a criação de Atenas até à
aniquilação de Corinto. Mas bruscamente virou para a fila dos Poetas, que
reluziam em marroquins claros, mostrando, sobre a lombada, em ouro, nos títulos
fortes ou lânguidos, o interior das suas almas. Não lhe apeteceu nenhuma dessas
mil almas – e recuou, desconsolado, até aos Biólogos… Tão maciça e cerrada
era a estante de Biologia, que o meu pobre Jacinto estarreceu, como ante uma
cidadela inacessível! Rolou a escada – e, fugindo, trepou, até às alturas da
Astronomia: destacou astros, recolocou mundos; todo um Sistema Solar desabou em
fragor. Aturdido, desceu, começou a procurar pôr sobre as rimas as obras novas,
ainda brochadas, nas suas roupas leves de combate. Apanhava, folheava,
arremessava; para desentulhar um volume, demolia uma torre de doutrinas;
saltava pôr cima dos Problemas, pisava as Religiões; e relanceando uma linha,
esgravatando além num índice, todos interrogava, de todos se desinteressava,
rolando quase de rastos, nas grossas vagas de tomos que rolavam, sem se poder
deter, na ânsia de encontrar um Livro! Parou então no meio da imensa nave, de
cócoras, sem coragem, contemplando aqueles muros todos forrados, aquele chão
todo alastrado, os seus setenta mil volumes – e, sem lhe provar a substância,
já absolutamente saciado, abarrotado, nauseado pela opressão da sua abundância.
Findou pôr voltar ao montão de jornais amarrotados, ergueu melancolicamente um
velho Diário de Notícias,
e com ele debaixo do braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer.
Capítulo VIII
Ao fim desse Inverno escuro e
pessimista, uma manhã que eu preguiçava na cama, sentindo através da vidraça
cheia de sol ainda pálido um bafo de Primavera ainda tímido – Jacinto assomou à
porta do meu quarto, revestido de flanelas leves, duma alvura de açucena. Parou
lentamente à beira dos colchões, e, com gravidade, como se anunciasse o seu
casamento ou a sua morte, deixou desabar sobre mim esta declaração formidável:
– Zé Fernandes, vou partir para Tormes.
O pulo com que me sentei abalou o rijo
leito de pau-preto do velho D.Galião:
– Para Tormes? Ó Jacinto, quem
assassinaste?…
Deleitado com a minha emoção, o Príncipe
da Grã-Ventura tirou da algibeira uma carta, e encetou estas linhas, já decerto
relidas, fundamente estudadas:
– “Ilmº e Exmº sr. – Tenho grande
satisfação em comunicar a V.Exª que toda esta semana devem ficar prontas as
obras da capela…”
– É do Silvério? – exclamei.
– É do Silvério. “… as obras da
capela nova. Os venerandos restos dos excelsos avós de V. Exª, senhores de todo
o meu respeito, podem pois ser em breve trasladados da igreja de S José, onde
têm estado depositados pôr bondade do nosso Abade, que muito se recomenda a
V.Exª… Submisso aguardo as prestantes ordens de V.Exª a respeito desta
majestosa e aflitiva cerimônia…”
Atirei os braços, compreendendo:
– Ah! bem! Queres ir assistir à
trasladação….
Jacinto sumiu a carta no bolso.
– Pois não te parece, Zé Fernandes? Não
é pôr causa dos outros avós, que são vagos, e que eu não conheci. É pôr causa
do avô Galião… Também
não o conheci. Mas este 202 está cheio dele; tu estás deitado na cama dele; eu
ainda uso o relógio dele. Não posso abandonar ao Silvério e aos caseiros o
cuidado de o instalarem no seu jazigo novo. Há aqui um escrúpulo de decência,
de elegância moral… Enfim, decidi. Apertei os punhos na cabeça, e gritei –vou
a Tormes! E vou!… E tu vens!
Eu enfiara as chinelas, apertava os
cordões do roupão:
– Mas tu sabes, meu bom Jacinto, que a
casa de Tormes está inabitável…
Ele cravou em mim os olhos aterrados.
– Medonha, hem?
– Medonha, medonha, não… É uma bela
casa, de bela pedra. Mas os caseiros, que lá vivem há trinta anos, dormem em
catres, comem o caldo à lareira, e usam as salas para secar o milho. Creio que
os únicos móveis de Tormes, se bem recordo, são um armário e uma espineta de
charão, coxa, já sem teclas.
O meu pobre Príncipe suspirou, com um
gesto rendido em que se abandonava ao Destino:
– Acabou!… alea jacta est! E como só partimos para Abril, há
tempo de pintar, de assoalhar, de envidraçar… Mando aqui de Paris tapetes e
camas… Um estofador de Lisboa vai depois forrar e disfarçar algum buraco…
Levamos livros, uma máquina para fabricar gelo… E é mesmo uma ocasião de pôr
enfim numa das minhas casas de Portugal alguma decência e ordem. Pois não
achas? E então essa! Uma casa que data de 1410… Ainda existia o Império
Bizantino!
Eu espalhava, com o pincel, sobre a
face, flocos lentos de sabão. O meu Príncipe acendeu muito pensativamente um
cigarro; e não se arredou do toucador, considerando o meu preparo com uma
atenção triste que me incomodava. Pôr fim, como se remoesse uma sentença minha,
para lhe reter bem a moral e o suco:
– Então, definitivamente, Zé Fernandes,
entendes que é um dever, um absoluto dever, ir eu a Tormes?
Afastei do espelho a cara ensaboada
para encarar divertido espanto o meu Príncipe:
– Ó Jacinto! foi ti, só em ti que
nasceu a idéia desse dever! E honra te seja, menino… Não cedas a ninguém essa
honra!
Ele atirou o cigarro – e, com as mãos
enterradas nas algibeiras das pantalonas, vagou pelo quarto, topando nas
cadeiras, embicando contra os postes torneados do velho leito de D.Galião,
num balanço vago, com barco já desamarrado do seu seguro ancoradouro, e sem
rumo no mar incerto. Depois encalhou sobre a mesa onde eu conservava
enfileirada, pôr gradações de sentimentos, desde o daguerreótipo do papá até a
fotografia do Corochoperdigueiro,
a galeria da minha Família.
E nunca o meu Príncipe (que eu
contemplava esticando os suspensórios) me pareceu tão corcovado, tão minguado,
como gasto pôr uma lima que desde muito andasse fundamente limando. Assim viera
findar, desfeita em Civilização, naquele super-requintado magricela sem músculo
e sem energia, a raça fortíssima dos Jacintos! Esses guedelhudos Jacintões, que
nas suas altas terras de Tormes, de volta de bater o mouro no Salado ou o
castelhano em Valverde, nem mesmo despiam as fuscas armaduras para lavar as
suas cãs e amarrar a vide ao olmo, edificando o Reino com a lança e com a
enxada, ambas tão rudes e rijas! E agora ali estava aquele último Jacinto, um
Jacintículo, com a macia pele embebida em aromas, a curta alma enrodilhada em
Filosofias, travado e suspirando baixinho na miúda indecisão de viver.
– Ó Zé Fernandes, quem é essa
lavadeirona tão rechonchuda?
Estendi o pescoço para a fotografia que
ele erguera de entre a minha galeria, no seu honroso caixilho de pelúcia
escarlate:
– Mais respeito, Sr. D. Jacinto… Um
pouco mais de respeito, cavalheiro!… É minha prima Joaninha, de Sandofim, da
Casa da Flor da Malva.
– Flor da Malva – murmurou o meu
Príncipe. – É a Casa do Condestável, de Nun’Álvares.
– Flor da Rosa, homem! A Casa do
Condestável era na Flor da Rosa, no Alentejo… Essa tua ignorância trapalhona
das coisas de Portugal!
O meu Príncipe deixou escorregar
molemente a fotografia da minha prima de entre os dedos moles – que levou à
face, no seu gesto horrendo de palpar através da face a caveira. Depois, de
repente, com um soberbo esforço, em que se endireitou e cresceu:
– Bem! Alea jacta est! Partamos pois
para as serras!…E agora nem reflexão, nem descanso!… Á obra! E a caminho!
Atirou a mão ao fecho dourado da porta
como se fosse o negro loquete que abre os Destinos – e no corredor gritou pelo
Grilo, com uma larga e açodada voz que eu nunca lhe conhecera, e me lembrou a
dum Chefe ordenando, na alvorada, que se levante o Acampamento, e que a Hoste
marche, com pendões e bagagens…
Logo nessa manhã (com uma atividade em
que eu reconheci a pressa enjoada de quem bebe óleo de rícino) escreveu ao
Silvério mandando caiar, assoalhar, envidraçar o casarão. E depois do almoço
apareceu na Biblioteca, chamado violentamente pelo telefone, para combinar a
remessa de mobílias e confortos, o diretor da Companhia
Universal de Transportes.
Era um homem que parecia o cartaz da
sua Companhia, apertado num jaquetão de xadrezinho escuro, com polainas de
jornada sobre botas brancas, uma multicor resumindo as suas condecorações
exóticas de Madagáscar, de Nicarágua, da Pérsia, outras ainda, que provavam a
universalidade dos seus serviços. Apenas Jacinto mencionou “Tormes, no
Douro…” – ele logo, através dum sorriso superior, estendeu o braço, detendo
outros esclarecimentos, na sua intimidade minuciosa com essas regiões.
– Tormes… Perfeitamente!
Perfeitamente!
Sobre o joelho, na carteira,
escrevinhou uma fugidia nota – enquanto eu considerava, assombrado, a vastidão
do seu saber Corográfico, assim familiar com os recantos duma serra de Portugal
e com todos os seus velhos solares. Já ele atirara a carteira para o bolso… E
“nós, seus caros senhores, não tínhamos senão a encaixotar as roupas, as
mobílias, as preciosidades! Ele mandaria as suas carroças buscar os caixotes, a
que poria, em grossa letra, com grossa tinta, o endereço…”
– Tormes, perfeitamente! Linha
Norte-Espanha-Medina-Salamanca… Perfeitamente! Tormes… Muito pitoresco! E
antigo, histórico! Perfeitamente, perfeitamente!
Desengonçou a cabeça numa vênia
profundíssima – e saiu da Biblioteca, com passos que devoravam léguas,
anunciavam a presteza dos seus Transportes.
– Vê tu – murmurou Jacinto muito sério.
– Que prontidão, que facilidade!… em Portugal era uma tragédia. Não há senão
Paris!
Começou então no 202 o colossal
encaixotamento de todos os confortos necessários ao meu Príncipe para um mês de
serra áspera – camas de pena, banheiras de níquel, lâmpadas Carcel, divãs
profundos, cortinas para vedar as gretas rudes, tapetes para amaciar os soalhos
broncos. Os sótãos, onde se arrecadavam os pesados trastes do avô Galião, foram esvaziados –
porque o casarão medieval de 1410 comportava os tremós românticos de 1830. De
todos os armazéns de Paris chegavam cada manhã fardos, caixas, temerosos
embrulhos que os embaladores desfaziam, atulhando os corredores de montes de
palha e de papel pardo, onde os nossos passos açodados se enrodilhavam. O
cozinheiro, esbaforido, organizava a remessa de fornalhas, geleiras, bocais de
trufas, latas de conservas, bojudas garrafas de águas minerais. Jacinto,
lembrando as trovoadas da serra, comprou um imenso pára-raios. Desde o
amanhecer, nos pátios, no jardim, se martelava, se pregava, com vasto fragor,
como na construção duma cidade. E o desfilar das bagagens, através do portão,
lembrava uma página de Heródoto contando a marcha dos Persas.
Das janelas, Jacinto, com o braço
estendido, saboreava aquela atividade e aquela disciplina:
– Vê tu, Zé Fernandes, que
facilidade!… Saímos do 202, chegamos à serra, encontramos o 202. Não há senão
Paris!
Recomeçara a amar a Cidade, o meu
Príncipe, enquanto preparava o seu êxodo. Depois de Ter, toda a manhã,
apressado os encaixotadores, descortinado confortos novos para o abandonado
solar, telefonado gordas listas de encomendas a cada loja de Paris – era com
delícia que se vestia, se perfumava, se floria, se enterrava na vitória ou
saltava para a almofada do fáeton,
e corria ao bosque, e saudava a barba talmúdica do Efraim, e os bandós
furiosamente negros de Vergame, e o Psicólogo de fiacre, e a condessa de Trèves
na sua nova caleche de oito molas fornecida pelas operações conjuntas da Bolsa
e da alcova. Depois arrebanhava amigos para jantares de surpresa no Voisin ou
no Bignon, onde desdobrava o guardanapo com a impaciência duma fome alegre,
vigiando fervorosamente que os Bordpeus estivessem bem aquecidos e os
Champanhes bem granitados. E no teatro das Nouveautés,
noPalais Royal, nos Buffos, ria batendo na coxa, com encanecidas
facécias de encanecidas farsas, antiquíssimos atores, com que já rira na sua
infância, antes da guerra, sob o segundo Napoleão.
De novo, em duas semanas, se
abarrotaram as páginas da sua Agenda. A magnificência do seu traje, como
imperador Frederico II de Suábia, deslumbrou, no baile mascarado da Princesa de
Cravon-Rogan (onde também fui, de “moço de forcado”). E na Associação para o Desenvolvimento
das Religiões Esotéricas discursou
e batalhou bravamente pela construção dum Templo Budista de Montmartre!
Com espanto meu recomeçou também a
conversar, como nos tempos de Escola, da “famosa Civilização nas suas máximas
proporções”. Mandou encaixotar o seu velho telescópio para o usar em Tormes.
Receei mesmo que no seu espírito germinasse a idéia de criar, no cimo da serra,
uma Cidade com todos os seus órgãos. Pelo mesmo não consentia o meu Jacinto que
essas semanas da silvestre Tormes interrompessem a ilimitada acumulação das
noções – porque uma manhã rompeu pelo meu quarto, desolado, gritando que entre
tantos confortos e formas de Civilização esquecêramos os livros! Assim era – e
que vexame para a nossa Intelectualidade! Mas que livros escolher entre os
facundos milhares sob que vergava o 202? O meu Príncipe decidiu logo dedicar os
seus serranos ao estudo da História Natural – e nós mesmos, imediatamente,
deitamos para o fundo dum vasto caixote novo, como lastro, os vinte e cinco
tomos de Plínio. Despejamos depois para dentro, às braçadas, Geologia,
Mineralogia, Botânica… Espalhamos pôr cima uma camada aérea de Astronomia. E,
para fixar bem no caixote estas ciências oscilantes, entalamos em redor cunhas
de Metafísica.
Mas quando a derradeira caixa, pregada
e cintada de ferro, saiu do portão do 202 na derradeira carroça daCompanhia
dos Transportes, toda esta animação de Jacinto se abateu como a
efervescência num copo de Champanhe. Era em meados já tépidos de Março. E de
novo os seus desagradáveis bocejos atroaram o 202 e todos os sofás rangeram sob
o peso do corpo que lhe atirava para cima, mortalmente vencido pela fartura e
pelo tédio, num desejo de repouso eterno, bem envolto de solidão e silêncio.
Desesperei. O quê! Aturaria eu ainda aquele Príncipe palpando amargamente a
caveira, e, quando o crepúsculo entristecia a Biblioteca, aludindo, num tom
rouco, à doçura das mortes rápidas pela violência misericordiosa do ácido cianídrico?
Ah não, caramba! E uma tarde em que o encontrei estirado sobre um divã, de
braços em cruz, como se fosse a sua estátua de mármore sobre o seu jazigo de
granito, positivamente o abanei com furor, berrando:
– Acorda, homem! Vamos para Tormes! O casarão
deve estar pronto, a reluzir, a abarrotar de coisas! Os ossos de teus avós
pedem repouso em cova sua!… A caminho, a enterrar esses mortos, e a vivermos
nós, os vivos!… Irra! São cinco de Abril!… é o bom tempo da serra!
O meu Príncipe ressurgiu lentamente da
inércia de pedra:
– O Silvério não me escreveu, nunca me
escreveu… Mas, com efeito, deve estar tudo preparado… Já lá certamente
criados, o cozinheiro de Lisboa… eu só levo o Grilo, e o Anatole que
enverniza bem o calçado, e tem jeito como pedicuro… Hoje é Domingo.
Atirou os pés para o tapete, com
heroísmo:
– Bem, partimos no Sábado!… Avisa tu
o Silvério!
Começou então o laborioso e pensativo
estudo dos Horários – e o dedo magro de Jacinto, pôr sobre o mapa, avançando e
recuando entre Paris e Tormes. Para escolher o “salão” que devíamos habitar
durante a temida jornada, duas vezes percorremos o depósito da Estação de
Orleãs atolados em lama, atrás do chefe do Tráfico que entontecia. O meu
Príncipe recusava este salão pôr causa da cor tristonha dos estofos; depois
recusava aquele pôr causa da mesquinhez aflitiva do Water-Closet. Uma das suas
inquietações era o banho, nas manhãs que passaríamos rolando. Sugeri uma
banheira de borracha. Jacinto, indeciso, suspirava… Mas nada o aterrou como o
trasbordo em Medina del Campo, de noite, nas trevas da Velha Castela. Debalde a
Companhia do Norte da Espanha e de Salamanca, pôr cartas, pôr telegramas,
sossegaram o meu camarada, afirmando que, quando ele chegasse no comboio de
Irun dentro do seu salão, já outro salão ligado ao comboio de Portugal
esperaria, bem aquecido, bem alumiado, com uma ceia que lhe ofertava um dos
Diretores, D. Esteban Castilho, ruidoso e rubicundo conviva do 202! Jacinto
corria os dedos ansioso pela face: – “E os sacos, as peles, os livros, quem os
transportaria do salão de Irun para o salão de Salamanca?” Eu berrava,
desesperado, que os carregadores de Medina eram os mais rápidos, os mais
destros de toda a Europa! Ele murmurava: – “Pois sim, mas em Espanha, de
noite!…” A noite, longe da Cidade, sem telefone, sem luz elétrica, sem postos
de polícia, parecia ao meu Príncipe povoada de surpresas e assaltos. Só acalmou
depois de verificar no Observatório Astronômico, sob a garantia do sábio
professor Bertrand, que a noite da nossa jornada era de Lua-cheia!
Enfim, na Sexta-feira, findou a
tremenda organização daquela viagem histórica! O Sábado predestinado amanheceu
com generoso sol, de afagadora doçura. E eu acabava de guardar na mala,
embrulhadas em papel pardo, as fotografias das criaturinhas suaves que, nesses
vinte e sete meses de Paris, me tinham chamado “mon petit chou! mont
rat cheri!” quando Jacinto rompeu pelo quarto, com um soberbo ramo de
orquídeas na sobrecasaca, pálido e todo nervoso.
– Vamos ao bosque, pôr despedida?
Fomos – à grande despedida! E que
encanto! Até nas almofadas e molas da vitória senti logo uma elasticidade mais
embaladora. Depois, pela Avenida do Bosque, quase me pesava não ficar
sempiternamente rolando, ao trote rimado das éguas perfeitas, no rebrilho rico
de metais e vernizes, sobre aquele macadame mais alisado que mármore, entre tão
bem regadas flores e relvas de tão tentadora frescura, cruzando uma Humanidade
fina, de elegância bem acabada, que almoçara o seu chocolate em porcelanas de
Sèvres ou de Minton, saíra de entre sedas e tapetes de três mil francos, e
respirava a beleza de Abril com vagar, requinte e pensamentos ligeiros! O
Bosque resplandecia numa harmonia de verde, azul e ouro. Nenhuma cova ou terra
solta desalisava as polidas áleas que a Arte traçou e enroscou na espessura –
nenhum esgalho desgrenhado desmanchava as ondulações macias da folhagem que o
Estado escova e lava. O piar da aves apenas se elevava para espalhar uma graça
leve de vida alada – e mais natural parecia, entre o arvoredo sociável, o
ranger das selas novas, onde pousavam, com balanço esbelto, as amazonas
espartilhadas pelo grande Redfern. Em frente ao Pavilhão de Armenonville
cruzamos Madame de Trèves, que nos envolveu a ambos na carícia do seu sorriso,
mais avivado àquela hora pelo vermelhão ainda úmido. Logo atrás a barba
talmúdica de Efraim negrejou, fresca também da brilhantina da manhã, no alto
dum fáetontilintante.
Outros amigos de Jacinto circulavam nas Acácias – e as mãos que lhe acenavam,
lentas e afáveis, calçavam luvas frescas cor de palha, cor de pérola, cor de
lilás. Todelle relampejou rente de nós sobre uma grande bicicleta. Dorman,
alastrado numa cadeira de ferro, sob um espinheiro em flor, mamava o seu imenso
charuto, como perdido na busca de rimas sensuais e nédias. Adiante foi o
Psicólogo, que nos não avistou, conversando com um requebro melancólico para
dentro dum cupé que rescendia a alcova, e a que um cocheiro obeso imprimia
dignidade e decência. E rolávamos ainda, quando o Duque de Marizac, a cavalo, ergueu
a bengala, estacou a nossa vitória para perguntar a Jacinto se aparecia à noite
nos “quadros vivos” dos Verghanes. O meu Príncipe rosnou um – “não, parto para
o sul…” – que mal lhe passou de entre os bigodes murchos… e Marizac
lamentou – porque era uma festa estupenda. Quadros vivos da História Sagrada e
da História romana!… Madame Verghane, de Madalena, de braços nus, peitos nus,
pernas nuas, limpando com os cabelos os pés do Cristo! – O Cristo, um latagão
soberbo, parente dos Trèves, empregado no Ministério da guerra, gemendo,
derreado, sob uma cruz de papelão! Havia também Lucrécia na cama, e Tarquínio
ao lado, de punhal, a puxar os lençóis! E depois ceia, em mesas soltas, todos
nos seus trajes históricos. Ele já estava aparceirado com Madame de Malbe, que
era Agripina! Quadro portentoso esse – Agripina morta, quando Nero a vem
contemplar e lhe estuda as formas, admirando umas, desdenhando outras como
imperfeitas. Mas, pôr polidez, ficara combinado que Nero admiraria sem reserva
todas as formas de Madame de Malbe… Enfim colossal, e estupendamente
instrutivo!
Acenamos um longo adeus àquele alegre
Marizac. E recolhemos sem que Jacinto emergisse do silêncio enrugado em que se
abismara, com os braços rigidamente cruzados, como remoendo pensamentos
decisivos e forte. Depois, em frente ao Arco do Triunfo, moveu a cabeça,
murmurou:
– É muito grave deixar a Europa!
Enfim, partimos! Sob a doçura do
crepúsculo que se enublara, deixamos o 202. O Grilo e o Anatole seguiam num
fiacre atulhado de livros, de estojos, de paletós, de impermeáveis, de
travesseiras, de águas minerais, de sacos de couro, de rolos de mantas; e mais
atrás um ônibus rangia sob a carga de vinte e três rolos de mantas; e mais
atrás um ônibus rangia sob a carga de vinte e três malas. Na Estação, Jacinto
ainda comprou todos os Jornais, todas as Ilustrações, Horários, mais livros, e
um saca-rolhas de forma complicada e hostil. Guiados pelo Chefe do Tráfico,
pelo Secretário da Companhia, ocupamos copiosamente o nosso salão. Eu pus o meu
boné de seda, calcei as minhas chinelas. Um silvo varou a noite. Paris
lampejou, fulgiu num derradeiro clarão de janelas… Para o sorver, Jacinto
ainda se arremessou à portinhola. Mas rolávamos já na treva da Província. O meu
Príncipe então recaiu nas almofadas:
– Que aventura, Zé Fernandes!
Até Chartres, em silêncio. Folheamos as
Ilustrações. Em Orleães, o guarda veio arranjar respeitosamente as nossas
camas. Derreado com aqueles catorze meses de Civilização, adormeci – e só
acordei em Bordéus quando Grilo, zeloso, nos trouxe o nosso chocolate. Fora,
uma chuva miudinha pingava molemente dum espesso céu de algodão sujo. Jacinto
não se deitara, desconfiado da aspereza e da umidade dos lençóis. E, metido num
roupão de flanela branco, com a face arrepiada e estremunhada, ensopando um
bolo no chocolate, rosnava sombriamente:
– Este horror!… E agora com chuva!
Em Biarriz.
Depois Jacinto, que espreitava pela
janela embaciada, reconheceu o lento caminhar pernalto, o nariz bicudo e
triste, do Historiador Danjon. Era ele, o facundo homem, vestido de xadrezinho,
ao lado duma dama roliça que levava pela trela uma cadelinha felpuda. Jacinto
baixou a vidraça violentamente, berrou pelo Historiador, na ânsia de comunicar
ainda, através dele, com a Cidade, com o 202!… Mas o comboio mergulhara na
chuva e névoa.
Sobre a ponte do Bidassoa, antevendo o
termo da vida fácil, os abrolhos da Incivilização, Jacinto suspirou com
desalento:
– Agora adeus, começa a Espanha!…
Indignado, eu, que já saboreava o
generoso ar da terra bendita, saltei para diante do meu Príncipe, e num
saracoteio de tremendo salero, castanholando os dedos, entoei uma “petenera”
condigna:
A la puerta de mi casa
Ay Soledad, Soleda…á…á…á.
Ele estendeu os braços, suplicante:
– Zé Fernandes, tem piedade do enfermo
e do triste!
– Irun!
Irun!…
Nessa Irun almoçamos com suculência –
porque sobre nós velava, como deus onipresente, a Companhia do Norte. Depois
“el jefe d’Aduana, el jefe d’Estación”, preciosamente nos instalaram noutro
salão, novo, com cetins cor de azeitona, mas tão pequeno que uma rica porção
dos nossos confortos em mantas, livros, sacos e impermeáveis, passou para o
compartimento do Sleeping onde se repoltreavam o Grilo e o
Anatole, ambos de bonés escoceses, e fumando gordos charutos – Buen viage! Gracias! Servidores! – e entramos silvando nos Pireneus.
Sob a influência da chuva embaciadora,
daquelas serras sempre iguais, que se densenrolavam, arrepiadas, diluídas na
névoa, resvalei a uma sonolência doce; – e, quando descerrava as pálpebras,
encontrava Jacinto a um canto, esquecido do livro fechado nos joelhos, sobre
que cruzara os magros dedos, considerando vales e montes com a melancolia de
quem penetra nas terras do seu desterro! Um momento veio em que, arremessando o
livro, enterrando mais o chapéu mole, se ergueu com tanta decisão, que receei
detivesse o comboio para saltar à estrada, correr através das Vascongadas e da
Navarra, para trás, para o 202! Sacudi o meu torpor, exclamei: – “ó menino!…”
Não! O pobre amigo ia apenas continuar o seu tédio para outro canto, enterrado
noutra almofada, com outro livro fechado. E à maneira que a escuridão da tarde
crescia, e com ela a borrasca de vento e água, uma inquietação mais aterrada se
apoderava do meu Príncipe, assim desgarrado da Civilização, arrastado para a
Natureza que já o cercava de brutalidade agreste. Não cessou então de me
interrogar sobre Tormes:
– As noites são horríveis, hem, Zé
Fernandes? Tudo negro, enorme solidão… E o médico?… Há médico?
Subitamente o comboio estacou. Mais
grossa e ruidosa a chuva fustigou as vidraças. Era um descampado, todo em
treva, onde rolava e lufava um grande vento solto. A máquina apitava, com
angústia. Uma lanterna lampejou, correndo. Jacinto batia o pé: – É medonho! É
medonho!…” Entreabri a portinhola. Da claridade incerta das vidraças surdiam
cabeças esticadas, assustadas. – “Que hay? Que hay?” – A uma rajada, que
me alagou, recuei:– e esperamos durante lentos, calados minutos, esfregando
desesperadamente os vidros embaciados para sondar a escuridão. De repente o
comboio recomeçou a rolar, muito sereno.
Em breve apareceram as luzinhas mortas
duma estação abarracada. Um condutor, com o casacão de oleado todo a escorrer,
trepou ao salão: – e pôr ele soubemos, enquanto carimbava apressadamente os
bilhetes, que o trem, muito atrasado, talvez não alcançasse em Medina o comboio
de Salamanca!
– Mas então?…
O casaco de oleado escorregara pela
portinhola, fundido na noite, deixando um cheiro de umidade e azeite. E nós
encetamos um novo tormento… Se o trem de Salamanca tivesse abalado? O salão,
tomado até Medina, desengatava em Medina: – e eis os nossos preciosos corpos,
com as nossas preciosas almas, despejados em Medina, para cima da lama, entre
vinte e três malas, numa rude confusão espanhola, sob a tormenta de ventania e
de água!
– Ó Zé Fernandes, uma noite em Medina!
Ao meu Príncipe aparecia como
desventura suprema essa noite em Medina, numa fonda sórdida, fedendo a alho, com gordas
filas de percevejos através dos lençóis de estopa encardida!… Não cessei então
de fitar, num desassossego, os ponteiros do relógio: – enquanto Jacinto, pela
vidraça escancarada, todo fustigado da chuva clamorosa, furava a negrura, na
esperança de avistar as luzes de Medina e um comboio paciente fumegando…
Depois recaía no divã, limpava os bigodes e os olhos, maldizia a Espanha. O
trem arquejava, rompendo o vasto da planura desolada. E a cada apito era um
alvoroço. Medina?… Não! algum sumido apeadeiro, onde o trem se atardava,
esfalfado, resfolgando, enquanto dormentes figuras encarapuçadas, embrulhadas
em mantas, rondavam sob o telheiro do barracão, que as lanternas baças tornavam
mais soturno. Jacinto esmurrava o joelho: – “Mas pôr que pára este infame
comboio? Não há tráfico, não há gente! Ó esta Espanha!…” A sineta badalava,
moribunda. De novo fendíamos a noite e a borrasca.
Resignadamente comecei a percorrer um Jornal do Comércio, antigo,
trazido de Paris. Jacinto esmagava o espesso tapete do salão com passadas
rancorosas, rosnando como uma fera. E ainda assim escoou, às gotas, uma hora
cheia de eternidade. – Um silvo, outro silvo!… Luzes mais fortes, longe,
palpitaram na neblina. As rodas trilharam, com rijos solavancos, os encontros
de carris. Enfim, Medina!… Um muro sujo de barracão alvejou – e bruscamente,
à portinhola aberta com violência, aparece um cavalheiro barbudo, de capa à
espanhola, gritando pelo sr. D. Jacinto!… Depressa! Depressa! Que parte o
comboio de Salamanca.
– “Que no hay um momento,
caballeros! Que no hay un momento!”
Agarro estonteadamente o meu paletó, o Jornal do Comércio. Saltamos
com ânsia: – e, pela plataforma, pôr sobre os trilhos, através de charcos,
tropeçando em fardos, empurrados pelo vento, pelo homem da capa à espanhola,
enfiamos outra portinhola, que se fechou com um estalo tremendo… Ambos
arquejávamos. Era um salão forrado dum pano verde que comia a luz escassa. E eu
estendia o braço, para receber dos carregadores açodados as nossas malas, os
nossos livros, as nossas mantas – quando, em silêncio, sem um apito, o trem
despegou e rolou. Ambos nos atiramos às vidraças, em brados furiosos:
– Pare! – As nossas malas, as nossas
mantas!… Pára aqui!… Ó Grilo! Ó Grilo!
Uma imensa rajada levou os nossos
brados. Era de novo o descampado tenebroso, sob a chuva despenhada. Jacinto
ergueu os punhos num furor que o engasgava:
– Ó! Que serviço! Ó que canalhas!… Só
em Espanha!… E agora? As malas perdidas!… Nem uma camisa, nem uma escova!
Calmei o meu desgraçado amigo:
– Escuta! Eu entrevi dois carregadores
arrebanhando as nossas coisas… Decerto o Grilo fiscalizou. Mas na pressa,
naturalmente, atirou com tudo para o se compartimento… Foi um erro não trazer
o Grilo conosco, no salão… Até podíamos jogar a manilha!
De resto a solicitude da Companhia,
Deusa onipresente, velava sobre o nosso conforto – pois que à porta do
lavatório branqueava o cesto da nossa ceia, mostrando na tampa um bilhete de D.
Esteban com estas doces palavras a lápis – á
D. Jacinto y su egregio amigo, que les dê gusto! Farejei um aroma de perdiz. E alguma
tranqüilidade nos penetrou no coração, sentindo também as nossas malas sob a
tutela da Deusa onipresente.
– Tens fome, Jacinto?
– Não. Tenho horror, furor, rancor!…
e tenho sono.
Com efeito! depois de tão
desencontradas emoções só apetecíamos as camas que esperavam, macias e abertas.
Quando caí sobre a travesseira, sem gravata, em ceroulas, já o meu Príncipe,
que não se despira, apenas embrulhara os pés no meu paletó, nosso único agasalho,
ressonava com majestade.
Depois, muito tarde e muito longe,
percebi junto do meu catre, na cidadezinha da manhã, coada pelas cortinas
verdes, uma fardeta, um boné, que murmuravam baixinho com imensa doçura:
– V. Exas não têm nada a declarar?…
Não há malinhas de mão?…
Era a minha terra! Murmurei baixinho
com imensa ternura:
– Não temos aqui nada… pergunte
V.Ex.ª pelo Grilo… Aí atrás, num compartimento… Ele tem as chaves, tem
tudo… É o Grilo.
A fardeta desapareceu, sem rumor, como
sombra benéfica. E eu readormeci com o pensamento em Guiães, onde a tia
Vicência, atarefada, de lenço branco cruzado no peito, decerto já preparava o
leitão.
Acordei envolto num largo e doce
silêncio. Era uma Estação muito sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas
trepando pelas paredes – e outras rosas em moutas, num jardim, onde um
tanquezinho abafado de limos dormia sob mimosas em flor que recendiam. Um moço
pálido, de paletó cor de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava
pensativamente o comboio. Agachada rente à grade da horta, uma velha, diante da
sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado secavam
abóboras. Pôr cima rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que meus olhos
andavam aguados.
Sacudi violentamente Jacinto:
– Acorda, homem, que estás na tua
terra!
Ele desembrulhou os pés do meu paletó, cofiou
o bigode, e veio sem pressa, à vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.
– Então é Portugal, hem?… Cheira bem.
– Está claro que cheira bem, animal!
A sineta tilintou languidamente. E o
comboio deslizou, com descanso, como se passasse para seu regalo sobre as duas
fitas de aço, assobiando e gozando a beleza da terra e do céu.
O meu Príncipe alargava os braços,
desolado:
– E nem uma camisa, nem uma escova, nem
uma gota de água-de-colônia!… entro em Portugal, imundo!
– Na Régua há uma demora, temos tempo
de chamar o Grilo, reaver os nossos confortos… Olha para o rio!
Rolávamos na vertente duma serra, sobre
penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo,
numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a
capelinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a água turva e
tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco
carregado de pipas. Para além, outros socalcos, dum verde pálido de resedá, com
oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se
embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância do azul. Jacinto
acariciava os pêlos corredios do bigode:
– O Douro, hem?… É interessante, tem
grandeza. Mas agora é que eu estou com uma fome, Zé Fernandes!
– Também eu! Destapamos o cesto de D.
Esteban de onde surdiu um bodo grandioso, de presunto, anho, perdizes, outras
viandas frias que o ouro de duas nobres garrafas de Amontilado, além de duas
garrafas de Rioja, aqueciam com um calor de sol Andaluz. Durante o presunto,
Jacinto lamentou contritamente o seu erro. Ter deixado Tormes, um solar
histórico, assim abandonado e vazio! Que delícia, pôr aquela manhã tão lustrosa
e tépida, subir à serra, encontrar a sua casa bem apetrechada, bem
civilizada… Para o animar, lembrei que com as obras do Silvério, tantos
caixotes de Civilização remetidos entendia um palácio perfeito, um 202 no
deserto!… E, assim discorrendo, atacamos as perdizes. Eu desarrolhava uma
garrafa de Amontilado – quando o comboio, muito sorrateiramente, penetrou numa
estação. Era a Régua. E o meu Príncipe pousou logo a faca para chamar o Grilo,
reclamar as malas que traziam o asseio dos nossos corpos.
– Espera, Jacinto! Temos muito tempo. O
comboio pára aqui uma hora… Come com tranqüilidade. Não escangalhemos este
almocinho com arrumações de maletas… O Grilo não tarda a aparecer.
E corri mesmo a cortina, porque de fora
um padre muito alto, com uma ponta de cigarro colada ao beiço, parara a
espreitar indiscretamente o nosso festim. Mas quando acabamos as perdizes, e
Jacinto confiadamente desembrulhava um queijo manchego, sem que Grilo ou
Anatole comparecessem, eu, inquieto, corri à portinhola para apressar esses
servos tardios… E nesse instante o comboio, largando, deslizou com o mesmo
silêncio sorrateiro. Para o meu Príncipe foi um desgosto:
– Aí ficamos outra vez sem um pente,
sem uma escova… E eu que queria mudar de camisa! Pôr culpa tua, Zé Fernandes!
– É espantoso!… Demora sempre uma
eternidade. Hoje chega e abala! Paciência, Jacinto. Em duas horas estamos na
Estação de Tormes… Também não valia a pena mudar de camisa para subir à
serra. Em casa tomamos um banho, antes de jantar… Já deve estar instalada a
banheira.
Ambos nos consolamos com copinhos duma
divina aguardente Chinchon. Depois, estendidos nos sofás, saboreando os dois
charutos que nos restavam, com as vidraças abertas ao ar adorável, conversamos
de Tormes. Na estação certamente estaria o Silvério, com os cavalos…
– Que tempo leva a subir?
Uma hora. Depois de lavados sobrava
tempo para um demorado passeio pelas serras com o caseiro, o excelente
Melchior, para que o Senhor de Tormes, solenemente, tomasse posse do seu
Senhorio. E à noite o primeiro bródio da serra, com os pitéus vernáculos do velho
Portugal!
Jacinto sorria, seduzido:
– Vamos a ver que cozinheiro me
arranjou esse Silvério. Eu recomendei que fosse um soberbo cozinheiro
português, clássico. Mas que soubesse trufar um peru, afogar um bife em molho
de moela, estas coisas simples da cozinha de França!… O pior é não te
demorares, seguires logo para Guiães…
– Ah! menino, anos da tia Vicência no
Sábado… Dia sagrado! Mas volto. Em duas semanas estou em Tormes, para
fazermos uma larga Bucólica. E, está claro, para assistir à trasladação.
Jacinto estendera o braço:
– Que casarão é aquele, além no
outeiro, com a torre?
Eu não sabia. Algum solar de fidalgote
do Douro… Tormes era nesse feitio atarracado e maciço. Casa de séculos e para
séculos – mas sem torre.
– E logo se vê, da estação, Tormes?…
– Não! Muito no alto, numa prega da
serra, entre arvoredo.
No meu Príncipe já evidentemente
nascera uma curiosidade ela sua rude casa ancestral. Mirava o relógio,
impaciente. Ainda trinta minutos! Depois, sorvendo o ar e a luz, murmurava, no
primeiro encanto de iniciado:
– Que doçura, que paz…
– Três horas e meia, estamos a chegar,
Jacinto!
Guardei o meu velho Jornal do Comércio dentro do bolso do paletó, que deitei
sobre o braço; – e ambos em pé, às janelas, esperamos com alvoroço a pequenina Estação
de Tormes, termo ditoso das nossas provações. Ela apareceu enfim, clara e
simples, à beira do rio, entre rochas, com os seus vistosos girassóis enchendo
um jardinzinho breve, as duas altas figueiras assombreando o pátio, e pôr trás
a serra coberta de velho e denso arvoredo… Logo na plataforma avistei com
gosto a imensa barriga, as bochechas menineiras do chefe da Estação, o louro
Pimenta, meu condiscípulo em Retórica, no Liceu de Braga. Os cavalos decerto
esperavam, à sombra, sob as figueiras.
Mal o trem parou para mim com amizade:
– Viva o amigo Zé Fernandes!
– Ó belo Pimentão!…
Apresentei o senhor de Tormes. E
imediatamente:
– Ouve lá, Pimentinha… Não está aí o
Silvério?
– Não… O Silvério há quase dois meses
que partiu para Castelo de Vide, ver a mãe que apanhou uma cornada dum boi!
Atirei a Jacinto um olhar inquieto:
Ora essa! E o Melchior, o caseiro?…
Pois não estão aí os cavalos para subirmos à Quinta?
O digno chefe ergueu com surpresa as
sobrancelhas cor de milho:
– Não!… Nem Melchior, nem cavalos…
O Melchior… Há que tempos eu não vejo o Melchior!
O carregador badalou lentamente a
sineta para o comboio rolar. Então, não avistando em torno, na lisa e
despovoada Estação, nem criados nem malas, o meu Príncipe e eu lançamos o mesmo
grito de angústia:
– E o grilo? as bagagens?…
Corremos pela beira do comboio,
berrando com desespero:
– Grilo!… Ó Grilo!… Anatole!… Ó
Grilo!
Na esperança que ele e o Anatole
viessem mortalmente adormecidos, trepávamos aos estribos, atirando a cabeça para
dentro dos compartimentos, espavorindo a gente quieta com o mesmo berro que
retumbava: – “Grilo, estás aí, Grilo?” – Já duma terceira classe, onde uma
viola repenicava, um jocoso gania, troçando: – “Não há pôr aí um grilo? Andam
pôr aí uns senhores a pedir um grilo!” – E nem Anatole, nem Grilo!
A sineta tilintou.
– Ó Pimentinha, espera, homem, não
deixes largar o comboio!… As nossas bagagens, homem!
E, aflito, empurrei o enorme chefe para
o furgão de carga, a pesquisar, descortinar as nossas vinte e três malas!
Apenas encontramos barris, cestos de vime, latas de azeite, um baú amarrado com
cordas… Jacinto mordia os beiços, lívido. E o Pimentinha, esgazeado:
– Ó filhos, eu não posso atrasar o
comboio!…
A sineta repicou… E com um belo fumo
claro o comboio desapareceu pôr detrás das fragas altas. Tudo em torno pareceu
mais calado e deserto. Ali ficávamos pois baldeados, perdidos na serra, sem
Grilo, sem procurador, sem caseiro, sem cavalos, sem malas! Eu conservava o
paletó alvadio, de onde surdia o Jornal
do Comércio. Jacinto, uma bengala. Eram todos os nossos bens!
O Pimentão arregalava para nós os
olhinhos papudos e compadecidos. Contei então àquele amigo o atarantado
trasfego em Medina sob a borrasca, o Grilo desgarrado, encalhado com as vinte e
três malas, ou rolando talvez para Madri sem nos deixar um lenço…
– Eu não tenho um lenço!… Tenho este Jornal do Comércio. É toda a
minha roupa branca.
Grande arrelia, caramba! – murmurava o
Pimenta, impressionado. – E agora?
– Agora – exclamei – é trepar para a
Quinta, à pata… A não ser que se arranjassem aí uns burros.
Então o carregador lembrou que perto,
no casal da Giesta, ainda pertencente a Tormes, o caseiro, seu compadre, tinha
uma boa égua e um jumento… E o prestante homem enfiou numa carreira para a
Giesta – enquanto o meu Príncipe e eu caíamos para cima dum banco, arquejantes
e sucumbidos, como náufragos. O vasto Pimentinha, com as mãos nas algibeiras,
não cessava de nos contemplar, de murmurar: – “É de arrelia”. –O rio defronte
descia, preguiçoso e como adormentado sob a calma já pesada de Maio, abraçando,
sem um sussurro, uma larga ilhota de pedra que rebrilhava. Para além a serra
crescia em corcovas doces, com uma funda prega onde se aninhava, bem junta e
esquecida do mundo, uma vilazinha clara. O espaço imenso repousava num imenso
silêncio. Naquelas solidões de monte e penedia os pardais, revoando no telhado,
pareciam aves consideráveis. E a massa rotunda e rubicunda do Pimentinha
dominava, atulhava a região.
– Está tudo arranjado, meu senhor! Vêm
aí os bichos!… Só o que não calhou foi um selinzinho para a jumenta!
Era o carregador, digno homem, que
voltava da Giesta, sacudindo na mão duas esporas desirmanadas e ferrugentas. E
não tardaram a aparecer no córrego, para nos levarem a Tormes, uma égua ruça,
um jumento com albarda, um rapaz e um podengo. Apertamos a mão suada e amiga do
Pimentinha. Eu cedi a égua ao senhor de Tormes. E começamos a trepar o caminho,
que não se alisara nem se desbravara desde os tempos em que o trilhavam, com
rudes sapatões ferrados, cortando de rio a monte, os Jacintos de século XIV!
Logo depois de atravessarmos uma trêmula ponte de pau, sobre um riacho quebrado
pôr pedregulhos, o meu Príncipe, com o olho de dono subitamente aguçado, notou
a robustez e a fartura das oliveiras… – E em breve os nossos males esqueceram
ante a incomparável beleza daquela serra bendita!
Com que brilho e inspiração copiosa a
compusera o divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou, e tão
ricamente as dotou, neste seu Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça.
Para os vales, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados
e redondos, dum verde tão moço, que eram como um musgo macio onde apetecia cair
e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramarias
estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a
fragrância. Através dos muros seculares, que sustêm as terras liados pelas
heras, rompiam grossas raízes coleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o
torrão, de cada fenda, brotavam flores silvestres. Brancas rochas, pelas
encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol;
outras, vestidas de líquen e de silvados floridos, avançavam como proas de
galeras enfeitadas; e, de entre as que se apinhavam nos cimos, algum casebere
que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros,
sobre as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas.
Pôr toda a parte a água sussurrante, a água fecundante… espertos regatinhos
fugiam, rindo com os seixos, de entre as patas da égua e do burro; grossos
ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e
luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e
muita fonte, posta à beira de veredas, jorrava pôr uma bica, beneficamente, à
espera dos homens e dos gados… Todo um cabeço pôr vezes era uma seara, onde
um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como seu senhor e seu guarda.
Em socalcos verdejavam laranjais rescendentes. Caminhos de lajes soltas
circundavam fartos prados com carneiros e vacas retouçando: – ou mais
estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, numa
penumbra de repouso e frescura. Trepávamos então alguma ruazinha de aldeia, dez
ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar
pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, pôr
cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro
entrava na alma, e na alma espelhava alegria e força. Um esparso tilintar de
chocalhos de guizos morria pelas quebradas…
Jacinto adiante, na sua égua ruça,
murmurava:
– Que beleza!
E eu atrás, no burro de Sancho,
murmurava:
– Que beleza!
Frescos ramos roçavam os nossos ombros
com familiaridade e carinho. Pôr trás das sebes, carregadas de amoras, as
macieiras estendidas ofereciam as suas maçãs verdes, porque as não tinham
maduras. Todos os vidros duma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram
hospitaleiramente quando nós passamos. Muito tempo um melro nos seguiu, de
azinheiro a olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão melro! Ramos
de macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre contigo fiquemos, serra
tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bendita entre as serras!
Assim, vagarosamente e maravilhados,
chegamos àquela avenida de faias, que sempre me encantara pela sua fidalga
gravidade. Atirando uma vergastada ao burro e à égua, o nosso rapaz, com o seu
podengo sobre os calcanhares, gritou: – “Aqui é que estamos, meus amos!” E ao
fundo das faias, com efeito, aparecia o portão da Quinta de Tormes, com o seu
brasão de armas, de secular granito, que o musgo retocava e mais envelhecia.
Dentro já os cães ladravam com furor. E quando Jacinto, na sua suada égua, e eu
atrás, no burro de furor. E quando Jacinto, na sua suada égua, e eu atrás, no
burro de Sancho, transpusemos o limiar solarengo, desceu para nós, do alto do
alpendre, pela escadaria de pedra gasta, um homem nédio, rapado como um padre,
sem colete, sem jaleca, acalmando os cães que se encarniçavam contra o meu
Príncipe. Era o Melchior, o caseiro…
Apenas me reconheceu, toda a boca se
lhe escancarou num riso hospitaleiro, a que faltavam dentes. Mas apenas eu lhe
revelei, naquele cavalheiro de bigodes louros que descia da égua esfregando os
quadris, o senhor de Tormes – o bom Melchior recuou, colhido de espanto e
terror como diante duma avantesma.
– Ora essa!… Santíssimo nome de Deus!
Pois então…
E, entre o rosnar dos cães, num
bracejar desolado, balbuciou uma história que pôr seu turno apavorava Jacinto,
como se o negro muro do casarão pendesse para desabar. O Melchior não esperava
S. Exª!… (Ele dizia sua
incelência)… O sr. Silvério estava para Castelo de Vide desde Março, com
a mãe, que apanhara uma cornada na virilha. E decerto houvera engano, cartas
perdidas… Porque o sr. Silvério só contava com S. Exª em Setembro, para a
vindima! Na casa as obras seguiam devagarinho, devagarinho… O telhado, no
sul, ainda continuava sem telhas, muitas vidraças esperavam, ainda sem vidros;
e, para ficar, Virgem Santa, nem uma cama arranjada!…
Jacinto cruzou os braços numa cólera
tumultuosa que sufocava. Pôr fim, com um berro:
– Mas os caixotes? Os caixotes,
mandados de Paris, em Fevereiro, há quatro meses?…
O desgraçado Melchior arregalava os
olhos miúdos, que se embaciavam de lágrimas. Os caixotes?! Nada chegara, nada
aparecera!… E na sua perturbação mirava pelas arcadas do pátio, palpava na
algibeira das pantalonas. Os caixotes?… Não, não tinha os caixotes!
– E agora, Zé Fernandes?
Encolhi os ombros:
– Agora, meu filho, só vires comigo
para Guiães… Mas são duas horas a cavalo. E não temos cavalos! O melhor é ver
o casarão, comer a boa galinha que o nosso amigo Melchior nos assa no espeto,
dormir numa enxerga, e amanhã cedo, antes do calor, trotar para cima, para a
tia Vicência.
Jacinto replicou, com uma decisão
furiosa:
– Amanhã troto, mas para baixo, para a
estação!… E depois, para Lisboa!
E subiu a gasta escadaria do seu solar
com amargura e rancor. Em cima uma larga varanda acompanhava a fachada do
casarão, sob um alpendre de negras vigas, toda ornada, pôr entre os pilares de
granito, com caixas de pau onde floriam cravos. Colhi um cravo amarelo – e
penetrei atrás de Jacinto nas salas nobres, que ele contemplava com um murmúrio
de horror. Eram enormes, duma sonoridade de casa capitular, com os grossos
muros e enegrecidos pelo tempo e o abandono, e relegadas, desoladamente nuas,
conservando apenas aos cantos algum monte de canastras ou alguma enxada entre
paus. Nos tetos remotos, de carvalho apainelado, luziam através dos rasgões
manchas de céu. As janelas, sem vidraças, conservavam essas maciças portadas,
com fechos para as trancas, que, quando se cerram, espalham a treva. Sob os
nossos passos, aqui e além, uma tábua podre rangia e cedia.
– Inabitável! – rugiu Jacinto
surdamente. – Um horror! Uma infâmia!…
Mas depois, noutras salas, o soalho
alternava com remendos de tábuas novas. Os mesmos remendos claros mosqueavam os
velhíssimos tetos de rico carvalho sombrio. As paredes repeliam pela alvura
crua da cal fresca. E o sol mal atravessava as vidraças – embaciadas e
gordurentas da massa e das mãos dos vidraceiros.
Penetramos enfim na última, a mais
vasta, rasgada pôr seis janelas, mobiliada com um armário e com uma enxerga
parda e curta estirada a um canto; e junto dela paramos, e sobre ela depusemos
tristemente o que nos restava de vinte e três malas – o meu paletó alvadio, a
bengala de Jacinto, e o Jornal
do Comércio que nos era
comum. Através das janelas escancaradas, sem vidraças, o grande ar da serra
entrava e circulava como num eirado, com um cheiro fresco de horta regada. Mas
o que avistávamos, da beira da enxerga, era um pinheiral cobrindo um cabeço e
descendo pelo pendor suave, à Maneira duma hoste em marcha, com pinheiros na
frente, destacados, direitos, emplumados de negro; mais longe as serras de além
rio, duma fina e macia cor de violeta; depois a brancura do céu, todo liso, sem
uma nuvem, duma majestade divina. E lá debaixo, dos vales, subia, desgarrada e
melancólica, uma voz de pegureiro cantando.
Jacinto caminhou lentamente para o
poial duma janela, onde caiu esbarrondado pelo desastre, sem resistência ante
aquele brusco desaparecimento de toda a Civilização! Eu palpava a enxerga, dura
e regelada como um granito de Inverno. E pensando nos luxuosos colchões de
penas e molas, tão prodigamente encaixotados no 202, desafoguei também a minha
indignação:
– Mas os caixotes, caramba?… Como se
perdem assim trinta e tantos caixotes enormes?…
Jacinto sacudiu amargamente os ombros:
– Encalhados, pôr aí, algures, num
barracão!… Em Medina, talvez, nessa horrenda Medina. Indiferença das
Companhias, inércia do Silvério… enfim a Península, a barbárie!
Vim ajoelhar sobre o outro poial,
alongando os olhos consolados pôr céu e monte:
– É uma beleza!
O meu Príncipe, depois de um silêncio
grave, murmurou, com a face encostada à mão:
– É uma lindeza… E que paz!
Sob a janela vicejava fartamente uma
horta, com repolho, feijoal, talhões de alface, gordas folhas de abóbora
rastejando. Uma eira, velha e mal alisada, dominava o vale, de onde já subia
tenuemente a névoa de algum fundo ribeiro. Toda a esquina do casarão desse lado
se encravava em laranjal. E duma fontinha rústica, meio afogada em rosas
tremedeiras, corria um longo e rutilante fio de água.
– Estou com apetite desesperado daquela
água! – declarou Jacinto, muito sério.
– Também eu… Desçamos ao quintal,
hem? E passamos pela cozinha, a saber do frango.
Voltamos à varanda. O meu Príncipe,
mais conciliado com o destino inclemente, colheu um cravo amarelo. E pôr outra
porta baixa, de rigíssimas ombreiras, mergulhamos numa sala, alastrada de
caliça, sem teto, coberta apenas de grossas vigas, donde se ergueu uma revoada
de pardais.
– Olha para este horror! – murmurava
Jacinto arrepiado.
E descemos pôr uma lôbrega escada de
castelo, tenteando depois um corredor tenebroso de lajes ásperas, atravancado
pôr profundas arcas, capazes de guardar todo o grão duma província. Ao fundo a cozinha,
imensa, era uma massa de formas negras, madeira negra, pedra negra, densas
negruras de felugem secular. E neste negrume refulgia a um canto, sobre o chão
de terra negra, a fogueira vermelha, lambendo tachos e panelas de ferro,
despedindo uma fumarada que fugia pela grade aberta no muro, depois pôr entre a
folhagem dos limoeiros. Na enorme lareira, onde se aqueciam e assavam as suas
grossas peças de porco e de boi os Jacintos medievais, agora desaproveitada
pela frugalidade dos caseiros, negrejava um poeirento montão de cestas e
ferramentas; e a claridade toda entrava pôr uma porta de castanho, escancarada
sobre um quintalejo rústico em que se misturavam couves lombardas e junquilhos
formosos. Em roda do lume um bando alvoroçado de mulheres depenava frangos,
remexia as caçarolas, picava a cebola, com um fervor afogueado e palreiro.
Todas emudeceram quando aparecemos – e de entre elas o pobre Melchior,
estonteado, com sangue a espirrar na nédia face de abade, correu para nós,
jurando “que o jantarinho de suas Incelências não demorava um credo”…
– E a respeito de camas, ó amigo
Melchior?
O digno homem ciciou uma desculpa
encolhida “sobre enxergazinhas no chão…”
– É o que basta! – acudi eu, para o
consolar. – Pôr uma noite com lençóis frescos…
– Ah, lá pelos lençoizinhos respondo
eu!… Mas um desgosto assim, meu senhor! A gente apanhada sem um colchãozinho
de lã, sem um lombozinho de vaca… Que eu já pensei, até lembrei à minha
comadre, V. Incas podiam ir dormir aos Ninhos a casa do Silvério. Tinham lá
camas de ferro, lavatórios… Ele sempre é uma leguazita e meu caminho…
Jacinto, bondoso, acudiu:
– Não, tudo se arranja, Melchior. Pôr
uma noite!… Até gosto mais de dormir em Tormes, na minha casa da serra!
Saímos ao terreiro, retalho de horta fechado
pôr grossas rochas encabeladas de verdura, entestando com os socalcos da serra
onde lourejava o centeio. O meu Príncipe bebeu da água nevada e luzidia da
fonte, regaladamente, com os beiços na bica; apeteceu a alface rechonchuda e
crespa; e atirou pulos aos ramos altos duma copada cerejeira, toda carregada de
cereja. Depois, costeando o velho lagar, a que um bando de pombas branqueava o
telhado, deslizamos até ao carreiro, cortado no costado do monte. E andando,
pensativamente, o meu Príncipe pasmava para os milheirais, para vetustos
carvalhos plantados pôr vetustos Jacintos, para os casebres espalhados sobre os
cabeços à orla negra dos pinheirais.
De novo penetramos na avenida de faias
e transpusemos o portão senhorial entre o latir dos cães, mais mansos,
farejando um dono. Jacinto reconheceu “certa nobreza” na frontaria do seu lar.
Mas sobretudo lhe agradava a longa alameda, assim direita e larga, como traçada
para nela se desenrolar uma cavalgada de Senhores com plumas e pajens. Depois,
de cima da varanda, reparando na telha nova da capela, louvou o Silvério, “esse
ralasso”, pôr cuidar ao menos da morada do Bom-Deus.
– E esta varanda também é agradável –
murmurou ele mergulhando a face no aroma dos cravos. – Precisa grandes
poltronas, grandes divãs de verga…
Dentro, na “nossa sala”, ambos nos
sentamos nos poiais da janela, contemplando o doce sossego crepuscular que
lentamente se estabelecia sobre vale e monte. No alto tremeluzia uma
estrelinha, a Vênus diamantina, lânguida anunciadora da noite e dos seus
contentamentos. Jacinto nunca considerara demoradamente aquela estrela, de
amorosa refulgência, que perpetua no nosso Céu católico a memória de Deusa
incomparável: – nem assistira jamais, com a alma atenta, ao majestoso adormecer
da Natureza. E este enegrecimento dos montes que se embuçam em sombra; os
arvoredos emudecendo; cansados de sussurrar; o rebrilho dos casais mansamente
apagado; o cobertor de névoa, sob que se acama e agasalha a frialdade dos
vales; um toque sonolento de sino que rola pelas quebradas; o segregado
cochichar das águas e das relvas escuras – eram para ele como iniciações.
Daquela janela, aberta sobre as serras, entrevia uma outra vida, que não anda
somente cheia do Homem e do tumulto da sua obra. E senti o meu amigo suspirar
como quem enfim descansa.
Deste enlevo nos arrancou o Melchior
com o doce aviso do “jantarinho de suas incelências”. Era noutra sala, mais
nua, mais abandonada: – e aí logo à porta o meu supercivilizado Príncipe
estacou, estarrecido pelo desconforto, e escassez e rudeza das coisas. Na mesa,
encostada ao muro denegrido, sulcado pelo fumo das candeias, sobre uma toalha
de estopa, duas velas de sebo em castiçais de lata alumiavam grossos pratos de
louça amarela, ladeados pôr colheres de estanho e pôr garfos de ferro. Os
copos, dum vidro espesso, conservavam a sombra roxa do vinho que neles passara
em fartos anos de fartas vindimas. A malga de barro, atestada de azeitonas
pretas, contentaria Diógenes. Espetado na côdea dum imenso pão reluzia um
imenso facalhão. E na cadeira senhorial reservada ao meu Príncipe, derradeira
alfaia dos velhos Jacintos, de hirto espaldar de couro, com madeira roída de
caruncho, a clina fugia em melenas pelos rasgões do assento puído.
Uma formidável moça, de enormes peitos
que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada
do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o
Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas Incelências
lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar… Jacinto ocupou a
sede ancestral – e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro
excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a
fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de
galinha e recendia. Provou – e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns
olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia,
mais considerada. E sorriu, com espanto: – “Está bom!”
Estava precioso: tinha fígado e tinha
moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele
caldo.
– Também lá volto! – exclamava Jacinto
com uma convicção imensa. – É que estou com uma fome… Santo Deus! Há anos que
não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira.
E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de
peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e
pousou sobre a mesa uma travessa a trasbordar de arroz com favas. Que
desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!… Tentou todavia uma
garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara,
luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão
de frade que se regala. Depois um brado:
– Ótimo!… Ah, destas favas, sim! Ó
que fava! Que delícia!
E pôr esta santa gula louvava a serra,
a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o
Melchior que presidia ao bródio…
– Deste arroz com fava nem em Paris,
Melchior amigo!
O homem ótimo sorria, inteiramente
desanuviado:
– Pois é cá a comidinha dos moços da
Quinta! E cada pratada, que até suas Incelências se riam… Mas agora, aqui, o
Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!
O bom caseiro sinceramente cria que,
perdido nesses remotos Parises, o Senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes,
padecia fome e minguava… e o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma
velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada
travessa, em louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e
da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra
digno dos lábios de Platão, terminou pôr bradar: – “É divino!” Mas nada o
entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde –
um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma,
que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele
orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na
face, citou Virgílio:
– Quo
te carmina dicam, Rethica? Quem
dignamente te cantará, vinho amável destas serras? Quem dignamente te cantará,
vinho amável destas serras?
Eu, que não gosto que me avantajem em
saber clássico, espanejei logo também o meu Virgílio, louvando as doçuras da
vida rural:
– Hanc
olim veteres vitam coluere Sabini… Assim
viveram os velhos Sabinos. Assim Rômulo e Remo… Assim cresceu a valente
Etrúria. Assim Roma se tornou a maravilha do mundo!
E imóvel, com a mão agarrada à infusa,
o Melchior arregalava para nós os olhos em infinito assombro e religiosa
reverência.
Ah! Jantamos deliciosamente, sob os
auspícios do Melchior – que ainda depois, próvido e tutelar, nos forneceu o
tabaco. E, como ante nós se alongava uma noite de monte, voltamos para as
janelas desvidraçadas, na sala imensa, a contemplar o suntuoso céu de Verão.
Filosofamos então com a pachorra e facúndia.
Na Cidade (como notou Jacinto) nunca se
olham, nem lembram os astros – pôr causa dos candeeiros de gás ou dos globos de
eletricidade que os ofuscam. Pôr isso (como eu notei) nunca se entra nessa
comunhão com o Universo que é a única glória e única consolação da vida. Mas na
serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem
os cuidados que, como pedaços de chumbo, puxam a alma para o pó rasteiro – um
Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais duma janela,
olham para os astros e os astros olham para eles. Uns, certamente, com olhos de
sublime imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros curiosamente,
ansiosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama, como se tentassem, de
tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe compreender os nossos…
– Ó Jacinto, que estrela é esta, aqui,
tão viva, sobre o beiral do telhado?
– Não sei… e aquela, Zé Fernandes,
além, pôr cima do pinheiral?
– Não sei.
Não sabíamos. Eu pôr causa da espessa
crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha Mãe espiritual.
Ele, porque na sua Biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre
Astronomia, e o Saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe
nem se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio
e aquele outro Aldebara? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto,
outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos a obra da mesma Vontade.
E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos diversos dum
Ser único, e as nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta Unidade.
Moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim…
Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro –
tudo é o mesmo Corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo Deus. E nenhum
frêmito de vida, pôr menor, passa numa fibra desse sublime Corpo, que se não
repercuta em todas, até às mais humildes, até às que parecem inertes e
invitais. Quando um Sol que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas
profundidades, esse esguio galho de limoeiro, em baixo na horta, sente um
secreto arrepio de morte: – e, quando eu bato uma patada no soalho de Tormes,
além o monstruoso Saturno estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro
Universo! Jacinto abateu tijamente a mão no rebordo da janela. Eu gritei:
– Acredita!… O Sol tremeu.
E depois (como eu notei) devíamos
considerar que, sobre cada um desses grãos de pó luminoso, existia uma criação,
que incessantemente nasce, perece, renasce. Neste instante, outros Jacintos,
outros Zés Fernandes, sentados às janelas de outras Tormes contemplam o céu
noturno, e nele um pequenininho ponto de luz, que é a nossa possante Terra pôr
nós tanto sublimada. Não terão todos esta nossa forma, bem frágil, bem
desconfortável, e (a não ser no Apolo do Vaticano, na Vênus de Milo e talvez na
Princesa de Carman) singularmente feia e burlesca. Mas, horrendos ou de
inefável beleza; colossais e duma carne mais dura que o granito, ou leves como
gases e ondulando na luz, todos eles são seres pensantes e têm consciência da
Vida – porque decerto cada Mundo possui o seu Descartes, ou já o nosso
Descartes os percorreu a todos com o seu Método, a sua escura capa, a sua
agudeza elegante, formulando a única certeza talvez certa, o grande Penso, logo existo. Portanto
todos nós, Habitantes dos Mundos, às janelas dos nossos casarões, além nos
Saturnos, ou aqui na nossa Terrícula, constantemente perfazemos um ato
sacrossanto que nos penetra e nos funde – que é sentirmos no Pensamento o
núcleo comum das nossas modalidades, e portanto realizarmos um momento, dentro
da Consciência, a Unidade do Universo!
– Hem, Jacinto?
O meu amigo rosnou:
– Talvez… Estou a cair com sono.
– Também eu. “Remontamos muito, Ex.mo
Sr.!” como dizia o Pestaninha em Coimbra. Mas nada mais belo, e mais vão, que
uma cavaqueira, no alto das serras, a olhar para as estrelas!… tu sempre vais
amanhã?
– Com certeza, Zé Fernandes! Com a
certeza de Descartes. “Penso, logo
fujo!” Como queres tu, neste pardieiro, sem uma cama, sem uma poltrona, sem
um livro?… Nem só de arroz com fava vive o Homem! Mas demoro em Lisboa, para
conversar com o Sesimbra, o meu Administrador. E também à espera que estas
obras acabem, os caixotes surjam, e eu possa voltar decentemente, com roupa
lavada, para a trasladação…
– É verdade, os ossos…
– Mas resta ainda o Grilo… Que
animal! Pôr onde andará esse perdido?
Então, passeando lentamente na sala
enorme, onde a vela de sebo já derretida no castiçal de lata era como um lume
de cigarro num descampado, meditamos na sorte do Grilo. O estimado negro ou
fora despejado nas lamas de Medina, com as vinte e sete malas, aos gritos – ou,
regaladamente adormecido, rolara com o Anatole no comboio para Madri. Mas ambos
os casos apareciam ao meu Príncipe como irremediavelmente destruidores do seu
conforto…
– Não, escuta, Jacinto… Se o Grilo
encalhou em Medina, dormiu na Fonda, catou os percevejos, e esta madrugada
correu para Tormes. Quando amanhã desceres à Estação, às quatro horas,
encontras o teu precioso homem, com as tuas preciosas malas, metido nesse
comboio que te leva ao Porto e à Capital…
Jacinto sacudiu os braços como quem se
debate nas malhas duma rede:
– E se seguiu para Madri?
– Então, pôr esta semana, cá aparece em
Tormes, onde encontra ordem para regressar a Lisboa e reentrar no teu
séquito… Resta o interessante caso das minhas bagagens. Se amanhã encontrares
na estação o Grilo, separa a minha mala negra, e o saco de lona, e a chaleira.
O Grilo conhece. E pede ao Pimenta, ao gordalhufo, que me avise para Guiães. Se
o Grilo aportar Tormes, esfogueteado de Madri, com toda essa malaria, deixa as
minhas coisas aqui, ao Melchior… Eu amanhã falo ao Melchior.
Jacinto sacudiu furiosamente o
colarinho:
– Mas como posso eu partir para Lisboa,
amanhã, com esta camisa de dois dias, que já me faz uma comichão horrenda? E
sem um lenço… Nem ao menos uma escova de dentes!
Fértil em idéias, estendi as mãos, num
belo gesto tutelar:
– Tudo se arranja, meu Jacinto, tudo se
arranja! Eu, largando daqui cedo, pelas seis horas, chego a Guiães às dez,
ainda sem calor. E, mesmo antes do almoço e da cavaqueira com tia Vicência,
imediatamente te mando pôr um moço um saco de roupa branca. As minhas camisas e
as minhas ceroulas talvez te estejam largas. Mas um mendigo como tu não tem
direito a elegâncias e a roupas bem cortadas. O moço, num bom trote, entra aqui
às duas horas; tens tempo de mudar antes de desceres para a Estação… Posso
meter na mala uma escova de dentes.
– Ó Zé Fernandes! Então mete também uma
esponja… E um frasco de água-de-colônia!
– Água de alfazema, excelente, feita
pela tia Vicência…
O meu Príncipe suspirou, impressionado
com a sua miséria esquálida, e esta dádiva de roupas:
– Bem, então vamos dormir, que estou
esfalfado de emoções e de astros…
Justamente Melchior entreabria a pesada
porta, com timidez, a avisar que “estavam preparadinhas as camas de suas
Incelências”. E seguindo o bom caseiro, que erguia uma candeia, que avistamos
nós, o meu Príncipe e eu, ainda há pouco irmanados com os astros? Em duas
saletas, que uma abertura em arco, lôbrego arco de pedra, separava – duas
enxergas sobre o soalho. Junto à cabeceira da mais larga, que pertencia ao
senhor de Tormes, um castiçal de latão sobre um alqueire; aos pés, como
lavatório, um alguidar vidrado em cima duma tripeça. Para mim, serrano daquelas
serras, nem alguidar nem alqueire.
Lentamente, com o pé, o meu
supercivilizado amigo apalpou a enxerga. E decerto lhe sentiu uma dureza
intransigente, porque ficou pendido sobre ela, a correr desoladamente os dedos
pela face desmaiada.
– E o pior não é ainda a enxerga –
murmurou enfim com um suspiro. – É que não tenho camisa de dormir, nem
chinelas!… E não me posso deitar de camisa engomada.
Pôr inspiração minha recorremos ao
Melchior. De novo esse benemérito providenciou, trazendo a Jacinto, para ele
desafogar os pés, uns tamancos – e para embrulhar o corpo uma camisa da
comadre, enorme, de estopa, áspera como uma estamenha de penitente, com folhos
mais crespos e duros do que lavores de madeira. Para consolar o meu Príncipe
lembrei que Platão quando compunha o Banquete,
Vasco da Gama quando dobrava o Cabo, não dormiam em melhores catres! As
enxergas rijas fazem as almas fortes, ó Jacinto!… E é só vestido de estamenha
que se penetra no Paraíso.
– Tens tu – volveu o meu amigo
secamente – alguma coisa que eu leia? Não posso adormecer sem um livro..
Eu? Um livro? Possuía apenas o velho
número do Jornal do Comércio,
que escapara à dispersão dos nossos bens. Rasguei a copiosa folha pelo meio,
partilhei com Jacinto fraternalmente. Ele tomou a sua metade, que era a dos
anúncios… E quem não viu então Jacinto, senhor de Tormes, acaçapado à borda
da enxerga, rente da vela de sebo que se derretia no alqueire, com os pés
encafuados nos socos, perdido dentro das ásperas pregas e dos rijos folhos da
camisa serrana, percorrendo num pedaço velho de Gazeta, pensativamente, as
partidas dos Paquetes – não pode saber o que é uma intensa e verídica imagem do
Desalento.
Recolhido à minha alcova espartana,
desabotoava o colete, num delicioso cansaço, quando o meu Príncipe ainda me
reclamou:
– Zé Fernandes…
– Diz.
– Manda também no saco um abotoador de
botas.
Estirado comodamente na rija enxerga
murmurei, como sempre murmuro ao penetrar no Sono, que é um primo da Morte:
”Deus seja louvado!” Depois tomei a metade do Jornal
do Comércio que me pertencia.
– Zé Fernandes…
– Que é?
– Também podias meter no saco pós dos
dentes… E uma lima das unhas… E um romance!
Já a meia Gazeta me escapava das mãos
dormentes. Mas da sua alcova, depois de soprar a vela, Jacinto murmurou entre
um bocejo:
– Zé Fernandes…
– Hem?
– Escreve para Lisboa, para o Hotel
Bragança… Os lençóis ao menos são frescos, cheiram bem, a sadio!
Capítulo IX
Cedo, de madrugada, sem rumor, para não
despertar o meu Jacinto, que, com as mãos cruzadas sobre o peito, dormia
beatificamente na sua enxerga de granito – parti para Guiães.
Ao cabo duma semana, recolhendo uma
manhã para o almoço, encontrei no corredor as minhas malas tão desejadas, que
um moço do casal da Giesta trouxera num carro com “recados do sr. Pimentinha”.
O meu pensamento pulou para o meu Príncipe. E lancei pelo telégrafo, para
Lisboa, para o Hotel Bragança, este brado alegre: – “Estás lá? Sei recuperaste
Grilo e Civilização! Hurra, Abraço!” – Só depois de sete dias, ocupados numa
delicada apanha de aspargos com que outrora civilizara a horta da tia Vicência,
notei o silêncio de Jacinto. Num bilhete postal renovei, desenvolvi o grito
amigo: – “E tornam desatento e mudo? Eu, todo aspargos! Responde, quando
chegas? Tempo delicioso! 23º à sombra. E os ossos?” – Veio depois a devota
romaria da Senhora da Roqueirinha. Durante a Lua-nova andei num corte de mato,
na minha terra das Corcas. A tia Vicência vomitou, com uma indigestão de
morcelas. E o silêncio do meu Príncipe era ingrato e ferrenho.
Enfim, uma tarde, voltando da Flor da
Malva, de casa da minha prima Joaninha, parei em Sandofim, na venda do Manoel
Rico, para beber de certo vinho branco que a minha alma conhece – e sempre pede
.
Defronte, à porta do ferrador, o
Severo, sobrinho do Melchior de Tormes e o mais fino alveitar da serra, picava
tabaco, escarranchado num banco. Mandei encher outro quartinho: ele acariciou o
pescoço da minha égua que já salvara dum esfriamento; e como eu indagasse do
nosso Melchior, o Severo contou que na véspera jantara com ele em Tormes, e se
abeirara também do fidalgo…
– Ora essa! Então o sr, D.Jacinto está
em Tormes?
O meu espanto divertiu o Severo:
– Então V. Exª… Pois em Tormes é que
ele está, há mais de cinco semanas, sem arredar! E parece que fica para a
vindima, e vai lá uma grandeza!
Santíssimo nome de Deus! Ao outro dia,
Domingo, depois da missa e sem me assustar com a calma que carregava, trotei
alvoroçadamente para Tormes. Ao latir dos rafeiros, quando transpus o portal
solarengo, a comadre do Melchior acudiu dos lados do curral, com um alguidar de
lavagem encostado à cintura. – Então o sr. D. Jacinto?… O sr. D. Jacinto
andava lá para baixo, com o Silvério e com o Melchior, nos campos de
Freixomil…
– E o sr. Grilo, o preto?
– Há bocadinho também o enxerguei no
pomar, com o francês, a apanhar limões doces…
Todas as janelas do solar rebrilhavam,
com vidraças novas, bem polidas. A um canto do pátio notei baldes de cal e
tigelas de tintas. Uma escada de pedreiro descansara durante o dia Santo
arrimada contra o telhado. E, rente ao muro da capela, dois gatos dormiam sobre
montões de palha desempacotada de caixotes consideráveis.
– Bem – pensei eu. – eis a Civilização!
Recolhi a égua, galguei a escada. Na
varanda, sobre uma pilha de ripas, reluzia num raio de Sol uma banheira de
zinco. Dentro encontrei todos os soalhos remendados, esfregados a carqueja. As
paredes, muito caiadas, e nuas, refrigeravam como as dum convento. Um quarto, a
que me levaram três portas escancaradas com franqueza serrana, era certamente o
de Jacinto: a roupa pendia de cabides de pau; o leito de ferro, com coberta de
fustão, encolhia timidamente a sua rigidez virginal a um canto, entre o muro e
a banquinha onde de um castiçal de latão resplandecia sobre um volume do S.
Quixote; no lavatório pintado de amarelo, imitando bambu, apenas cabia o jarro,
a bacia, um naco gordo de sabão; e uma prateleirinha bastava ao esmerado alinho
da escova, da tesoura, do pente, do espelhinho de feira, e do frasquinho de
água de alfazema que eu mandara de Guiães. As três janelas, sem cortinas,
contemplavam a beleza da serra, respirando um delicado e macio ar, que se
perfumava nas resinas dos pinheirais, depois nas roseiras da horta. Em frente,
no corredor, outro quarto repetia a mesma simplicidade. Certamente a
previdência do meu Príncipe o destinara ao seu Zé Fernandes. Pendurei logo
dentro, no cabide, o meu guarda-pó de lustrina.
Mas na sala imensa, onde tanto
filosofáramos considerando as estrelas, Jacinto arranjara um centro de repouso
e de estudo – e desenrolara essa “grandeza” que impressionava o Severo. As
cadeiras de verga da Madeira, amplas e de braços, ofereciam o conforto de almofadinhas
de chita. Sobre a mesa enorme de pau branco, carpinteirada em Tormes, admirei
um candeeiro de metal de três bicos, um tinteiro de frade armado de penas de
pato, um vaso de capela transbordando de cravos. Entre duas janelas uma cômoda
antiga, embutida, com ferragens lavradas, recebera sobre o seu mármore rosado o
devoto peso dum Presépio, onde Reis Magos, pastores de surrões vistosos,
cordeiros de esguedelhada lã, se apressavam através de alcantis para o menino,
que na sua lapinha lhes abria os braços, coroado pôr uma enorme Coroa Real. Uma
estante de madeira enchia outro pedaço de parede, entre dois retratos negros
com caixilhos negros; sobre uma das suas prateleiras repousavam duas
espingardas; nas outras esperavam, espalhados, como os primeiros Doutores nas
bancadas dum concílio, alguns nobres livros, um Plutarco, um Virgílio, a
Odisséia, o Manual de Epíteto, as Crônicas de Froissart. Depois, em fila
decorosa, cadeiras de palhinha, muito envernizadas. E a um canto um molho de
varapaus.
Tudo resplandecia de asseio e ordem. As
portadas das janelas, cerradas, abrigavam do Sol que batia aquele lado de
Tormes, escaldando os peitoris de pedra. Do soalho, borrifado de água, subia,
na suavizada penumbra, uma frescura. Os cravos rescendiam. Nem dos campos, nem
da casa, se elevava um rumor. Tormes dormia no esplendor da manhã santa. E,
penetrado pôr aquela consoladora quietação de convento rural, terminei pôr me
estender numa cadeira de verga junto da mesa, abrir languidamente um tomo de
Virgílio, e murmurar, apropriando o doce verso que encontrara:
Fortunate Jacinthe! Hic, inter arva
nota
Et fontes sacros, frigus captabis
opacum…
Afortunado Jacinto, na verdade! Agora,
entre campos que são teus e águas que te são sagradas, colhes enfim a sombra e
a paz!
Li ainda outros versos. E, na fadiga
das duas horas de égua e calor desde Guiães, irreverentemente adormecia sobre o
divino Bucolista – quando me despertou um berro amigo! Era o meu Príncipe. E
muito decididamente, depois de me soltar do seu rijo abraço, o comparei a uma
planta estiolada, emurchecida na escuridão, entre tapetes e sedas, que, levada
para o vento e o sol, profusamente regada, reverdece, desabrocha e honra a
Natureza! Jacinto já não corcovava. Sobre a sua arrefecida palidez de
supercivilizado, o ar montesino, ou vida mais verdadeira, espalhara um rubor
trigueiro e quente de sangue renovado que o virilizava soberbamente. Dos olhos,
que na Cidade andavam sempre tão crepusculares e desviados do Mundo, saltava
agora um brilho de meio-dia, resoluto e largo, contente em se embeber na beleza
das coisas. Até o bigode se lhe encrespara. E já não deslizava a mão
desencantada sobre a face – mas batia com ela triunfalmente na coxa. Que sei?
Era Jacinto novíssimo.
E quase me assustava, pôr eu Ter de
aprender e penetrar, neste novo Príncipe, os modos e as idéias novas.
– Caramba, Jacinto, mas então…?
Ele encolheu jovialmente os ombros
realargados. E só me soube contar, trilhando soberanamente com os sapatos
brancos e cobertos de pó o soalho remendado, que, ao acordar em Tormes, depois
de se lavar numa dorna, e de enfiar a minha roupa branca, se sentira de repente
como desanuviado,
desenvencilhado! Almoçara uma pratada de ovos com chouriço, sublime.
Passeara pôr toda aquela magnificência da serra com pensamentos ligeiros de
liberdade e de paz. Mandara ao Porto comprar uma cama, uns cabides… E ali
estava…
– Para todo o verão?
– Não! Mas um mês… Dois meses!
Enquanto houver chouriços, e a água da fonte, bebida pela telha ou numa folha
de couve, me souber tão divinamente!
Caí sobre a cadeira de verga, e
contemplei, arregalado, quase esgazeado, o meu Príncipe! Ele enrolava numa
mortalha tabaco picado, tabaco grosso, guardado numa malga vidrada. E
exclamava:
– Ando aí pelas terras desde o romper
de alva! Pesquei já hoje quatro trutas magníficas… Lá embaixo, no Naves, um
riachote que se atira pelo vale de Seranda… temos logo ao jantar essas
trutas!
Mas eu, ávido pela história daquela
ressurreição:
– Então, não estiveste em Lisboa?… Eu
telegrafei…
– Qual telégrafo! Qual Lisboa! Estive
lá em cima, ao pé da fonte da Lira, à sombra duma grande árvore, sub tegmine não sei quê, a ler esse adorável
Virgílio… e também a arranjar o meu palácio! Que te parece, Zé Fernandes? Em
três semanas, tudo soalhado, envidraçado, caiado, encadeirado!… Trabalhou a
freguesia inteira! Até eu pintei, com uma imensa brocha. Viste o comedouro?
– Não.
– Então vem admirar a beleza na
simplicidade, bárbaro!
Era a mesma onde nós tanto exaltáramos
o arroz com favas – mas muito esfregada, muito caiada, com um rodapé besuntado
de azul estridente, onde logo adivinhei a obra do meu Príncipe. Uma toalha de
linho de Guimarães cobria a mesa, com as franjas roçando o soalho. No fundo dos
pratos de louça forte reluzia um galo amarelo. Era o mesmo galo e a mesma louça
em que na nossa casa, em Guiães, se servem os feijões aos cavadores…
Mas no pátio os cães latiram. E Jacinto
correu à varanda, com uma ligeireza curiosa que me deleitou. Ah, bem
definitivamente se esfrangalhara aquela rede de malha que se não percebia e que
outrora o travava! – Nesse momento apareceu o Grilo, de quinzena de linho,
segurando em cada mão uma garrafa de vinho branco. Todo se alegrou “em ver na
Quinta o siô Fernandes”. Mas a sua veneranda face
já não resplandecia, como em Paris, com um tão sereno e ditoso brilho de ébano.
Até me pareceu que corcovava… Quando o interroguei sobre aquela mudança,
estendeu duvidosamente o beiço grosso.
– O menino gosta, eu então também
gosto… Que o ar aqui é muito bom, siô Fernandes, o ar é muito bom!
Depois, mais baixo envolvendo num gesto
desolado a louça de Barcelos, as faces de cabo de osso, as prateleiras de pinho
como num refeitório de Franciscanos:
– Mas muita magreza, siô Fernandes, muita magreza!
Jacinto voltara com um maço de jornais
cintados:
– Era o carteiro. Já vês que não amuei
inteiramente com a Civilização. Eis a imprensa!… Mas nada de Fígaro, ou da horrenda Dois-Mundos! Jornais de
Agricultura! Para aprender como se produzem as risonhas messes, e sob que signo
se casa a vinha ao olmo, e que cuidados necessita a abelha provida…. Quid faciat laetas segetes…
De resto para esta nobre educação, já me bastavam as Geórgicas, que tu ignoras!
Eu ri:
– Alto lá! Nos quoque gens sumus et nostrum
Virgilium sabemus!
Mas o meu novíssimo amigo, debruçado da
janela, batia as palmas – como Catão para chamar os servos, na Roma simples. E
gritava:
– Ana Vaqueira! Um copo de água, bem
lavado, da fonte velha! Pulei, imensamente divertido:
– Ó Jacinto! E as águas carbonatadas? E
as fosfatadas? E as esterilizadas? E as sódicas?…
O meu Príncipe atirou os ombros com um
desdém soberbo. E aclamou a aparição de um grande copo, todo embaciado pela
frescura nevada da água refulgente, que uma bela moça trazia num prato. Eu
admirei sobretudo a moça… Que olhos, dum negro tão líquido e sério! No andar,
no quebrar da cinta, que harmonia e que graça de Ninfa latina!
E apenas pela porta desaparecera a
esplêndida aparição:
– Ó Jacinto, eu daqui a um instante
também quero água! E se compete a esta rapariga trazer as coisas, eu, de cinco
em cinco minutos, quero uma coisa!… Que olhos, que corpo… Caramba, menino!
Eis a poesia, toda viva, da serra…
O meu Príncipe sorria, com sinceridade:
– Não! não nos iludamos, Zé Fernandes,
nem façamos Arcádia. É uma bela moça, mas uma bruta… Não há ali mais poesia,
nem mais sensibilidade, nem mesmo mais beleza do que numa linda vaca turina.
Merece o seu nome de Ana Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, concebe bem. Para
isso a fez a Natureza, assim sã e rija; e ela cumpre. O marido todavia não
parece contente, porque a desanca. Também é um belo bruto… Não, meu filho, a
serra é maravilhosa e muito grato lhe estou… Mas temos aqui a fêmea em toda a
sua animalidade e o macho em todo o seu egoísmo… são porém verdadeiros,
genuinamente verdadeiros! E esta verdade, Zé Fernandes, é para mim um repouso.
Lentamente, gozando a frescura, o
silêncio, a liberdade do vasto casarão, retrocedemos à sala que Jacinto já
denominara a Livraria. E, de repente, ao avistar num canto uma caixa com a
tampa meio despregada, quase me engasguei, na furiosa curiosidade que me
assaltou:
– E os caixotes? Ó Jacinto?… Toda
aquela imensa caixotaria que nós mandamos, abarrotada de Civilização? Soubeste?
Apareceram?
O meu Príncipe parou, bateu alegremente
na coxa:
– Sublime! Tu ainda te lembras daquele
homenzinho, de saco a tiracolo, que nós admiramos tanto pela sua sagacidade, o
seu saber geográfico?… Lembras? Apenas falei em Tormes, gritou que conhecia,
rabiscou uma nota… Nem era necessário mais! “Ó! Tormes, perfeitamente, muito
antigo, muito curioso!” Pois mandou tudo para Alba de Tormes, em Espanha! Está
tudo em Espanha!
Cocei o queixo, desconsolado:
– Ora, ora… Um homem tão esperto, tão
expedito, que fazia tanta honra ao progresso! Tudo para Espanha!… E mandaste
vir?
– Não! Talvez mais tarde… Agora, Zé
Fernandes, estou saboreando esta delícia de me erguer pela manhã, e de Ter só
uma escova para alisar o cabelo.
Considerei, cheio de recordações, o meu
amigo:
– Tinhas umas nove.
– Nove? Tinha vinte! Talvez trinta! E
era uma atrapalhação, não me bastavam!… Nunca em Paris andei bem penteado.
Assim com os meus setenta mil volumes: eram tantos que nunca li nenhum. Assim
com as minhas ocupações; tanto me sobrecarregavam, que nunca fui útil!
– Nove? Tinha vinte! Talvez trinta! E
era uma atrapalhação, não me bastavam!… Nunca em Paris andei bem penteado.
Assim com os meus setenta mil volumes: eram tantos que nunca li nenhum. Assim
com as minhas ocupações; tanto me sobrecarregavam, que nunca fui útil!
De tarde, depois da calma, fomos
vaguear pelos caminhos coleantes daquela Quinta rica, que, através de duas
léguas, ondula pôr vale e monte. Não me encontrara mais com Jacinto em meio da
Natureza, desde o remoto dia de entremez em que ele tanto sofrera no sociável e
policiado bosque de Montmorency. Ah, mas agora, com que segurança e idílico amor
se movia através dessa Natureza, de onde andara tantos anos desviado pôr teoria
e pôr hábito! Já não receava a humildade mortal das relvas; nem repelia como
impertinente o roçar das ramagens; nem o silêncio dos altos o inquietava como
um despovoamento do Universo. Era com delícias, com um consolado sentimento de
estabilidade recuperada, que enterrava os grossos sapatos nas terras moles,
como no seu elemento natural e paterno; sem razão, deixava os trilhos fáceis,
para se embrenhar através de arbustos emaranhados, e receber na face a carícia
das folhas tenras; sobre os outeiros, parava, imóvel, retendo os meus gestos e
quase o meu hálito, para se embeber de silêncio e de paz; e duas vezes o
surpreendi atento e sorrindo à beira dum regatinho palreiro, como se lhe
escutasse a confidência…
Depois filosofava, sem descontinuar,
com o entusiasmo dum convertido, ávido de converter:
– Como a inteligência aqui se liberta,
hem? E como tudo é animado duma vida forte e profunda!… dizes tu agora, Zé
Fernandes, que não há aqui pensamento…
– Eu?! Eu não digo nada, Jacinto…
– Pois é uma maneira de refletir muito
estreira e muito grosseira…
– Ora essa! Mas eu…
– Não, não percebes. A vida não se
limita a pensar, meu caro doutor…
– Que não sou!
– A vida é essencialmente Vontade e
Movimento: e naquele pedaço de terra, plantado de milho, vai todo um mundo de
impulsos, de forças que se revelam, e que atingem a sua expressão suprema, que
é a Forma. Não, essa tua filosofia está ainda extremamente grosseira…
– Irra! Mas eu não…
– E depois, menino, que inesgotável,
que miraculosa diversidade de formas… E todas belas!
Agarrava o meu pobre braço, exigia que
eu reparasse com reverência. Na Natureza nunca eu descobriria um contorno feio
ou repetido! Nunca duas folhas de hera, que, na verdura ou recorte, se
assemelhassem! Na Cidade, pelo contrário, cada casa repete servilmente a outra
casa; todas as faces reproduzem a mesma indiferença ou a mesma inquietação; as
idéias têm todas o mesmo valor, o mesmo cunho, a mesma forma, como as libras; e
até o que há mais pessoal e íntimo, a Ilusão, é em todos idêntica, e todos a
respiram, e todos se perdem nela como no mesmo nevoeiro… a mesmice – eis o horror das Cidades!
– Mas aqui! Olha para aquele
castanheiro. Há três semanas que cada manhã o vejo, e sempre me parece outro…
A sombra, o sol, o vento, as nuvens, a chuva incessantemente lhe compõem uma
expressão diversa e nova, sempre interessante. Nunca a sua freqüentação me
poderia fartar…
Eu murmurei:
– É pena que não converse!
O meu Príncipe recuou, com olhares
chamejantes, de Apóstolo:
– Como que não converse? Mas é
justamente um conversador sublime! Está claro, não tem ditos, nem parola
teorias, ore rotundo. Mas
nunca eu passo junto dele que não me sugira um pensamento ou me não desvende
uma verdade… Ainda hoje quando eu voltava de pescar as trutas… Parei: e
logo ele me fez sentir como toda a sua vida de vegetal é isenta de trabalho, da
ansiedade, do esforço que a vida humana impõe; não tem de se preocupar com o
sustento, nem com o vestido, nem com o abrigo; filho querido de Deus, Deus o
nutre, sem que ele se mova ou se inquiete… E é esta segurança que lhe dá
tanta graça e tanta majestade. Pois não achas?
Eu sorria, concordava. Tudo isto era
decerto rebuscado e especioso.Mas que importavam as requintadas metáforas, e
essa metafísica mal madura, colhida à pressa nos ramos dum castanheiro? Sob
toda aquela ideologia transparecia uma excelente realidade – a reconciliação do
meu Príncipe com a Vida. Segura estava a sua Ressurreição depois de tantos anos
de cova, de cova mole em que jazera, enfaixado como uma múmia nas faixas do
Pessimismo!
E o que esse Príncipe, nesta tarde, me
esfalfou! Farejava com uma curiosidade insaciável, todos os recantos da serra!
Galgava os cabeços correndo, como na esperança de descobrir lá do alto os
esplendores nunca contemplados dum Mundo inédito. E o seu tormento era não
conhecer os nomes das árvores, da mais rasteira planta brotando das fendas dum
socalco… Constantemente me folheava como a um Dicionário Botânico.
– Fiz toda a sorte de cursos, passei
pelos professores mais ilustres da Europa, tenho trinta mil volumes, e não sei
se aquele senhor além é um amieiro ou um sobreiro.
– É um azinheiro, Jacinto.
Já a tarde caía quando recolhemos muito
lentamente. E toda essa adorável paz do Céu, realmente celestial, e dos campos
onde cada folhinha conservava uma quietação contemplativa, na luz docemente
desmaiada, pousando sobre as coisas com um liso e leve afago, penetrava tão
profundamente Jacinto, que eu o senti, no silêncio em que caíramos, suspirar de
puro alívio.
Depois, muito gravemente:
– Tu dizes que na natureza não há
pensamento…
– Outra vez! Olha que maçada! Eu…
– Mas é pôr estar nela suprimido o
pensamento que lhe está poupado o sofrimento! Nós desgraçados, não podemos
suprimir o pensamento, mas certamente o podemos disciplinar e impedir que ele
se estonteie e se esfalfe, como na fornalha das cidades, ideando gozos que
nunca se realizam, aspirando a certezas que nunca se atingem!… E é o que aconselham
estas colinas e estas árvores à nossa alma, que vela e se agita: – que vive na
paz dum sonho vago e nada apeteça, nada tema, contra nada se insurja, e deixe o
Mundo rolar, não esperando dele senão um rumor de harmonia, que a embale e lhe
favoreça o dormir dentro da mão de Deus. Hem, não te parece, Zé Fernandes?
– Talvez. Mas é necessário então viver
num mosteiro, com o temperamento de S Bruno, ou Ter cento e quarenta contos de
renda e o desplante de certos Jacintos… E também me parece que andamos
léguas. Estou derreado. E que fome!
– Tanto melhor, para as trutas, e para
o cabrito assado que nos espera…
Bravo! Quem te cozinha?
– Uma afilhada do Melchior. Mulher
sublime! Hás de ver a canja! Hás de ver a cabidela! Ela é horrenda, quase anã,
com os olhos tortos, um verde e outro preto. Mas que paladar! Que gênio!
Com efeito! Horácio dedicara uma ode
àquele cabrito assado num espeto de cerejeira. E com as trutas, e o vinho do
Melchior, e a cabidela, em que a sublime anã de olhos tortos pusera inspirações
que não são da terra, e aquela doçura da noite de Junho, que pelas janelas
abertas nos envolveu no seu veludo negro, tão mole e tão consolado fiquei, que,
na sala onde nos esperava o café, caí numa cadeira de verga, na mais larga, e
de melhores almofadas, e atirei um berro de pura delícia.
Depois, com uma recordação, limpando o
café do pêlo dos bigodes:
– Ó Jacinto, e quando nós andávamos pôr
Paris com o Pessimismo às costas, a gemer que tudo era ilusão e dor?
O meu Príncipe, que o cabrito tornara
ainda mais alegre, trilhava a grandes passadas o soalho, enrolando o cigarro:
– Ó! Que engenhosa besta, esse
Schopenhauer! E a maior besta eu, que o sorvia, e que me desolava com
sinceridade! E todavia – continuava ele, remexendo a chávena – o Pessimismo é
uma teoria bem consoladora para os que sofrem, porque desindividualiza o
sofrimento, alarga-o até o tornar uma lei universal, a lei própria da Vida;
portanto lhe tira o caráter pungente duma injustiça especial, cometida contra o
sofredor pôr um Destino inimigo e faccioso! Realmente o nosso mal sobretudo nos
amarga, quando contemplamos ou imaginamos o bem do nosso vizinho: – porque nos
sentimos escolhidos e destacados para a infelicidade, podendo, como ele, Ter
nascido para a Fortuna. Quem se queixaria de ser coxo – se toda a humanidade
coxeasse? E quais não seriam os urros, e a furiosa revolta do homem envolto na
neve e friagem e borrasca dum Inverno especial, organizado nos Céus para o
envolver a ele unicamente – enquanto em redor, toda a Humanidade se movesse na
luminosa benignidade duma Primavera?
– Com efeito – murmurei eu – esse
sujeito teria imensa razão para urrar…
– E depois – clamava ainda o meu amigo
– o Pessimismo é excelente para os Inertes, porque lhes atenua o desgracioso
delito da Inércia. Se toda a meta é um monte de Dor, onde a alma vai esbarrar,
para que marchar para a meta, através dos embaraços do mundo? E de resto todos
os Líricos e Teóricos do Pessimismo, desde Salomão até o maligno Schopenhauer,
lançam o seu cântico ou a sua doutrina para disfarçar a humilhação das suas
misérias, subordinando-as todas a uma vasta lei de Vida, uma lei Cósmica, e
ornando assim com a auréola de uma origem quase divina as suas miúdas
desgraçazinhas de temperamento ou Sorte. O bom Schopenhauer formula todo o seu
schopenhauerismo, quando é um filósofo sem editor, e um professor sem
discípulos; e sofre horrendamente de terrores e manias; e esconde o seu
dinheiro debaixo do sobrado; e redige as suas contas em grego nos perpétuos
lamentos da desconfiança; e vive nas adegas com o medo de incêndios; e viaja
com um copo de lata na algibeira para não beber em vidro que beiços de leproso
tivessem contaminado!… Então Schopenhauer é sombriamente Schopenhauerista.
Mas apenas penetra na celebridade, e os seus miseráveis nervos se acalmam, e o
cerca uma paz amável, não há então, em todo Francoforte, burguês mais otimista,
de face mais jucunda, e o gozando mais regradamente os bens da inteligência e
da Vida!… e outro, o Israelita, o muito pedantesco rei de Jerusalém! Quando
descobre esse sublime Retórico que o mundo é Ilusão e Vaidade? Aos setenta e
cinco anos, quando o Poder lhe escapa das mãos trêmulas, e o seu serralho de
trezentas concubinas se lhe torna ridiculamente supérfluo. Então rompem os
pomposos queixumes! Tudo é verdade e aflição de espírito! nada existe estável
sob o Sol! Com efeito, meu bom Salomão, tudo passa – principalmente o poder de
usar trezentas concubinas! Mas que se restitua a esse velho sultão asiático,
besuntado de Literatura, a sua virilidade – e onde se sumirá o lamento do Eclesiastes? Então voltará em
Segunda e triunfal edição, o êxtase do Livro
dos Cantares!…
Assim discursava o meu amigo no noturno
silêncio de Tormes. Creio que ainda estabeleceu sobre o Pessimismo outras
coisas joviais, profundas ou elegantes – mas eu adormecera, beatificamente
envolto em Otimismo e doçura.
Em breve, porém, me fez pular,
escancarar a pálpebras moles, uma rija, larga, sadia e genuína risada. Era
Jacinto, estirado numa cadeira, que lia o D.Quixote… Ó! bem-aventurado
Príncipe! Conservara ele o agudo poder de arrancar teorias a uma espiga de
milho ainda verde, e pôr uma clemência de Deus, que fizera reflorir o tronco
seco, recuperara o Dom divino de rir, com as facécias de Sancho!
Aproveitando a minha companhia, as duas
semanas de bucólica ociosidade que eu lhe concedera, o meu Jacinto preparou
então a cerimônia tão falada, tão meditada, a trasladação dos ossos dos velhos
Jacintos – dos “respeitáveis ossos” como murmurava, cumprimentando, o bom
Silvério, o procurador, nessa manhã de Sexta-feira, em que almoçava conosco,
metido num espantoso jaquetão de veludinho amarelo debruado de seda azul! A
cerimônia, de resto, reclamava muita singeleza pôr serem tão incertos, quase
impessoais, aqueles restos, que nós estabeleceríamos na Capelinha do vale da
Carriça, na Capelinha toda nova, toda nua e toda fria, ainda sem alma e sem
calor de Deus.
– Porque enfim V. Exª compreende –
explicava o Silvério passando o guardanapo pôr sobre a larga face suada e pôr
sobre as imensas barbas negras, como as dum turco – , naquela mixórdia… Ó!
peço desculpa a V. Exª! Naquela confusão, quando tudo desabou, não pudemos mais
conhecer a quem pertenciam os ossos. Nem sequer, falando verdade, nós sabíamos
bem que dignos avós de V.Exª jaziam na capela velha, assim tão antigos, com com
os letreiros apagados, senhores de todo o nosso respeito, certamente, mas, se
V.Exª me permite, senhores já muito desfeitos… Depois veio o desastre, a
mixórdia. E aqui está o que decidi, depois de pensar. Mandei arranjar tantos
caixões de chumbo, quantas as caveiras que se apanharam lá embaixo na Carriça,
entre o lixo e o pedregulho. Havia sete caveiras e meia. Quero dizer, sete
caveiras e uma caveirinha pequenina. Metemos cada caveira em seu caixão.
Depois: Que quer V.Exª? Não havia outro meio! E aqui o sr. Fernandes dirá se
não acha que procedemos com habilidade. A cada caveira juntamos uma certa
porção de ossos, uma porção razoável… Não havia outro meio… Nem todos os
ossos se acharam. Canelas, pôr exemplo, faltavam! E é bem possível que as
costelas dum daqueles senhores ficassem com a cabeça de outro… Mas quem podia
saber? Só Deus. Enfim fizemos o que a prudência mandava… Depois, no dia de
Juízo, cada um destes fidalgos apresentará os ossos que lhe pertencerem.
Lançava estas coisas macabras e
tremendas, penetrado de respeito, quase com majestade, espetando, ora em mim,
ora no meu Príncipe, os olhinhos agudos e reluzentes como vidrilhos.
Eu aprovei o pitoresco homem:
– Perfeitamente! Andou perfeitamente,
amigo Silvério. São tão vagos, tão anônimos, todos esses avós! Só faz pena,
grande pena, que se tresmalhassem os restos do avô Galião.
– Não estava cá! – acudiu Jacinto. –
Vim a Tormes expressamente pôr causa do avô Galião,
e pôr fim o seu jazigo nunca foi aqui, na Capelinha da Carriça… Felizmente!
O Silvério sacudiu gravemente a calva
trigueira:
– Nunca tivemos o Exmo Sr. Galião. Há cem anos, Sr.
Fernandes, há cem anos que se não depositava na capela velha corpo de
cavalheiro cá da casa.
– Onde estarão então?…
O meu Príncipe encolheu os ombros. Pôr
esse Reino… Na igrejinha, no cemitério de alguma das freguesias numerosas,
onde ele possuía terras. Casa tão espalhada!
– Bem! – concluí. – Então, como se
trata de ossadas vagas, sem nome, sem data, convém uma cerimoniazinha muito
simples, muito sóbria.
– Quietinha, quietinha! – murmurou o
Silvério, dando um forte sorvo assobiado ao café.
E foi quietinha, duma rústica e doce
singeleza a cerimônia daqueles altos senhores. Cedo, pôr uma manhã, levemente
enevoada, os oito caixões pequeninos, cobertos dum veludo vermelho mais de
festa que de funeral, com molhos de rosas espalhados contendo cada um o seu
montezinho de ossos incertos, saíram aos ombros dos coveiros de Tormes e dos
moços da quinta, da Igreja de S. José, cujo sino leve tangia, na enevoada
doçura da manhã – quando fina e levemente! – como pia um passarinho triste,
Adiantem um airoso moço de sobrepeliz erguia com zelo a velha cruz prateada;
abrigando o pescoço sob um imenso lenço de rapé, de quadrados azuis, o velho e
corcovado sacristão segurava pensativamente a caldeirinha de água benta; e o
bom abade de S. José, com os dedos entre o breviário fechado, movia os lábios,
numa lenta, murmurosa reza, que ia pelo doce ar, espalhando mais doçura. Logo
atrás do último cofre, o mais pequenino, o da caveirinha pequena, Jacinto
caminhava; e eu, a estalar dentro dum fato preto de Jacinto, tirado à pressa
duma das malas de Paris quando, de manhã, já tarde para mandar a Guiães, me
lembrei que toda a minha roupa era de cores festivais e pastoris.
Depois marchava o Silvério,
soleníssimo, com um imenso peitilho, onde as barbas imensas se alastravam
negríssimas. De casaca, com o grosso beiço descaído, descaído todo ele pôr
aquela melancolia de enterro que se juntava à melancolia da serra, o Grilo
enfiava no braço a sua coroa, enorme, de rosas e de heras. Pôr fim seguia o
Melchior, entre um rancho de mulheres, que, sumidas na sombra dos lenços
pretos, desfiando longos rosários, rosnavam surdas ave-marias, através de
espaçados suspiros, tão doridos como se inconsoladamente lhes doesse a perda
daqueles Jacintos. Assim, pelas várzeas entrecorridas de regueiros, lenta nos
recostos dos matos, escorregando mais rápida, pelos córregos pedregosos, seguia
a procissão, sempre com a cruz adiante, alta e prateada, rebrilhando pôr vezes
num breve raiozinho de Sol que, vagarosamente, surdia da névoa desfeita. Ramos
baixos de lódão ou de salgueiro passavam uma derradeira carícia sobre o veludo
dos caixões.
Um regato pôr vezes nos acompanhava, com
discreto fulgir entre as relvas, sussurrando e como rezando também,
alegremente; e nos quintalinhos umbrosos, à nossa passagem, os galos, de cima
das pilhas de mato, faziam soar o seu clarim festivo. Depois, adiante da fonte
da Lira, como o caminho se alongava, e desejássemos poupar o nosso velho abade,
cortamos através duma seara, já alta, quase madura, toda entremeada de
papoulas. O Sol radiou: sob a brisa larga, que levara a névoa, toda a messe
ondulou numa lenta vaga dourada, em que se balouçavam os esquifes; e, como
enorme papoula, a mais vermelha, rutilava o guarda-sol de paninho logo aberto
pelo sacristão para abrigar o abade.
Jacinto tocou no meu cotovelo:
– Que lindos vamos! Ora vê tu a
Natureza… Num simples enterrar de ossos, quanta graça e quanta beleza!
Na Capelinha, nova, dominando o vale da
Carriça, solitária e muito nua, no meio dum adro, ainda mal alisado, sem uma
verdura de relva, uma frescura de arbusto, dois moços seguravam à porta molhos
de tochas, que o Silvério distribuiu, a passos graves, com cortesias,
soleníssimo. Dentro as curtas chamas mal luziam, mal derramavam a sua
amarelidão triste, esbatidas na reluzente brancura dos muros estucados, na
jovial claridade que caía das altas vidraças bem polidas. Em torno dos
esquifes, pousados sobre bancos, que pesados veludilhos recobriam, o abade
murmurava um suave latim, enquanto ao fundo as mulheres, sumidas na sombra dos
seus negros lenços, gemiamaméns agudos,
abafavam um respeitoso soluço. Depois, tomando levemente o hissope, ainda o bom
abade aspergiu, para uma derradeira purificação, os incertos ossos dos incertos
Jacintos. E todos desfilamos pôr diante do meu Príncipe, timidamente encostado
à ombreira, com o Silvério ao lado esmagando contra o peitilho as barbas
imensas, a face descaída, cerradas as pálpebras como contendo lágrimas.
No adro, o meu Príncipe acendeu
regaladamente um cigarro pedido ao Melchior:
– E então, Zé Fernandes, que te pareceu
a cerimoniazinha?
– Muito campestre, muito suave, muito
risonha… Uma delícia.
Mas o Abade, que se desvestira na
Sacristia, apareceu, já com o seu grande casaco de lustrina, o seu velho chapéu
desabado, trazidos pelo moço da Residência, num saco de chita. Jacinto,
imediatamente lhe agradeceu tantos cuidados, a afável hospitalidade que oferecera
aos ossos, durante a construção da Capelinha nova. E o suave velho, todo
branquinho, de faces ainda menineiras e coradas, com um claro sorriso de dentes
sadios, louvava Jacinto, que assim viera de tão longe, em tão longa jornada,
para cumprir aquele dever de bom neto.
– São avós muito remotos, e agora tão
confusos! – murmurava Jacinto, sorrindo,
– Pois mais mérito ainda o de V.Exª.
Respeitar um avô moto, bem é corrente… Mas respeitar os ossos dum quinto avô,
dum sétimo avô!
– Sobretudo, sr. Abade, quando deles
nada se sabe, e naturalmente nada fizeram.
O velho sacudiu risonhamente o dedo
gordo:
– Ora quem sabe, quem sabe! Talvez
fossem excelentes! E pôr fim, quem muito se demora no mundo, como eu, termina
pôr se convencer que no mundo não há coisa ou ser inútil. Ainda ontem eu lia
num jornal do Porto, que pôr fim, segundo se descobriu, são as minhocas que
estrumam e lavram a terra, antes de chegar o lavrador e os bois com o arado.
Não há nada inútil… Eu tinha lá na residência uma porção de cardos a um canto
da horta, que me afligiam. Pois refleti e terminei pôr me regalar com eles em
xarope. Os avós de V.Exª pôr cá andaram, pôr cá trabalharam, pôr cá padeceram.
Quer dizer: pôr cá serviram. E, em todo o caso, que lhes rezemos um Padre-Nosso
pôr alma, não lhes pode fazer senão bem, a eles e a nós.
E assim, docemente filosofando, paramos
num souto de carvalheiras, nos esperava a velhíssima égua do Abade, porque o
santo homem agora depois do reumatismo do último Inverno, já não afrontava
rijamente como antes os trilhos duros da serra. Para ele montar, filialmente
Jacinto segurou o estribo. E enquanto a égua se empurrava pelo córrego acima,
quase tapada sob o imenso guarda-sol vermelho em que se abrigava o velho, nós
recolhemos a casa metendo pela serra da Lombinha, através dos milhos, e
depressa, porque eu estalava, aperreado, dentro da roupa preta do meu Príncipe.
– Estão pois acomodados estes senhores,
Zé Fernandes! Só resta rezar pôr eles o Padre Nosso, que recomenda o Abade.
Somente, eu não sei, já não me lembro do Padre-Nosso.
– Não te aflijas, Jacinto, peço à tia
Vicência que reze pôr mim e pôr ti. É sempre a tia Vicência que reza os meus
Padre-Nossos.
Durante essas semanas que preguicei em
Tormes, eu assisti, com enternecido interesse, a uma considerável evolução de
Jacinto nas suas relações com a Natureza. Daquele período sentimental de
contemplação, em que colhia teorias nos ramos de qualquer cerejeira, e
edificava sistemas sobre o espumar das levadas, o meu Príncipe lentamente
passava para o desejo da Ação… E duma ação direta e material, em que a sua
mão, enfim restituída a uma função superior, revolvesse o torrão.
Depois de tanto comentar, o meu Príncipe,
evidentemente, aspirava a criar.
Uma tardinha, ao anoitecer, sentados no
pomar, no rebordo do tanque, enquanto o Manuel hortelão apanhava laranjas no
alto duma escada arrimada a uma laranjeira, Jacinto observou, mais para si do
que para mim:
– É curioso… Nunca plantei uma
árvore!
– Pois é um dos três grandes atos, sem
os quais, segundo diz não sei que Filósofo, nunca se foi um verdadeiro homem…
Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar,
para ser um homem. É possível que talvez nunca prestasses um serviço a uma
árvore, como se presta a um semelhante!
– Sim… Em Paris, quando era pequeno,
regava os lilases. E no Verão é um belo serviço! Mas nunca semeei.
E como o Manuel descia da escada, o meu
Príncipe, que nunca acreditara inteiramente – pobre homem! – no meu saber
agrícola, imediatamente reclamou o parecer daquela autoridade:
– Ó Manuel, ouça lá o que se poderia
agora semear?
Com o cesto das laranjas enfiado no
braço, o Manuel exclamou, através dum lento riso, entre respeitoso e divertido:
– Semear, patrão? Agora é antes
colher… Olhe que já se anda a limpar a eirazinha para a debulha, meu patrão.
– Pois sim… Mas sem ser milho nem
cevada… então ali no pomar, rente do muro velho, não se podia plantar uma
fila de pessegueiros?
O riso do Manuel crescia.
– Isso sim, meu senhor! Isso é lá para
os Santos ou para o Natal. Agora só a couvinha na horta, a beldroega, os
espinafres, algum feijãozinho em terra muito fresca…
O meu Príncipe sacudiu, com brando
gesto, estes legumes rasteiros.
– Bem, boa noite, Manuel. Essas
laranjas são da tal laranjeira que diz o Melchior, muito doces, muito finas?
Então leve para os seus pequenos. Leve muitas para os pequenos.
Não! o empenho era criar a árvore
contemplada na serra em sua verdadeira majestade, na beneficência da sua
sombra, na frescura embaladora do seu rumorejar, na graça e santidade dos
ninhos que a povoam, começara talvez, lentamente, o seu amor novo da Terra. E
agora sonhava uma Tormes toda coberta de árvores, cujos frutos e verduras, e
sombras, e rumorejos suaves, e abrigados ninhos, fossem a obra e o cuidado das
suas mãos paternais.
No silêncio grave do crepúsculo, que
descia, murmurou ainda:
– Ó Zé Fernandes quais são as árvores
que crescem mais depressa?
– Eh, meu Jacinto… A árvore que
cresce mais depressa é o eucalipto, o feiíssimo e ridículo eucalipto. Em seis
anos tens aí tormes coberta de eucaliptos…
– Tudo tão lento, Zé Fernandes…
Porque o seu sonho, que eu compreendia,
seria plantar caroços que subissem em fortes troncos, se alargassem em verdes
ramarias, antes de ele voltar ao 202, no começo do Inverno…
– Um carvalho!… Trinta anos, antes
que seja belo! Desanimo! É bom para deus, que pode esperar… Patiens quia oeternus. Trinta
anos! Daqui a trinta anos, árvores só para me cobrirem a sepultura!
– Já é um ganho. E depois para teus
filhos, Jacinto…
– Filhos! Onde os tenho eu?
– É o mesmo processo dos castanheiros.
Semeia. Não faltam pôr aí terras agradáveis… Em nove meses tens uma planta
feita. E quanto mais tenrinhas, e mais pequeninas, mais essas plantas encantam.
Ele murmurou, cruzando as mãos sobre os
joelhos:
– Tudo leva tanto tempo!…
E à borda do tanque nos quedamos,
calados, na fresca doçura do anoitecer, entre o cheiro avivado das madressilvas
do muro, olhando o crescente da Lua, que surdia dos telhados de Tormes.
E decerto esta pressa de se tornar a
Natureza não mais um sonhador, mas um criador, arremessou vivamente o seu
interesse para os gados! Repetidamente, nos nossos passeios através da Quinta,
ele lhe notava a solidão.
– Faltam aqui animais, Zé Fernandes!
Imaginava eu que ele apetecia em Tormes
o ornato elegante de veados e pavões. Mas um Domingo, costeando o largo campo
da Ribeirinha, sempre escasso de águas, agora mais ressequido pôr Verão de
tanta secura, o meu Príncipe parou a considerar os três carneiros do caseiro,
que retouçavam com penúria uma relvagem pobre.
E, de repente, como magoado:
– Justamente! Aqui está o espaço para
um belo prado, um imenso prado, muito verde, muito farto, com rebanhos de
carneiros brancos gordíssimos como bolas de algodão pousadas na relva!… Era
lindo, hem? É fácil, não é verdade, Zé Fernandes?
– Sim… Trazes a água para o prado.
Águas não faltam na serra.
E o meu Príncipe, encadeando logo nesta
inspirada idéia outra, mais rica e vasta, lembrou quanta beleza daria a Tormes
encher esses prados, esses verdes ferregiais, de manadas de vacas, formosas
vacas inglesas, bem nédias e bem luzidias. Hem? Uma beleza. Para abrigar esses
gados ricos, construiria currais perfeitos, duma arquitetura leve e útil, toda
em ferro e vidro, fundamente varridos pelo ar, largamente lavados pela água…
Hem? Que formosura! Depois, com todas essas vacas, e o leite jorrando, nada
mais fácil e mais divertido, e até mais moral, que a instalação duma queijeira,
à fresca moda holandesa, toda branca e reluzente, de azulejos e de mármore,
para fabricar os Camemberts, os Bries… os Coulommiers… Para a casa, que
conforto! E para toda a serra, que atividade!
– Pois não te parece, Zé Fernandes?
– Com certeza. Tu tens, em abundância,
os quatro elementos: o ar, a água, a terra, e o dinheiro. Com estes quatro
elementos, facilmente se faz uma grande lavoura. Quanto mais uma queijeira!
– Pois não é verdade? E até como
negócio! Está claro, para mim o lucro é o deleite moral do trabalho, o emprego
fecundo do dia… Mas uma queijaria, assim perfeita, rende. Rende
prodigiosamente. E educa o paladar, incita a instalações iguais, implanta
talvez no pais uma indústria nova e rica! Ora, com essa instalação perfeita,
quanto me poderá custar cada queijo?
Fechei um olho, calculando:
– Eu te digo… Cada queijo, um desses
queijinhos redondos, como o Camembert ou o Rabaçal, pode vir a custar-te, a ti
Jacinto queijeiro, entre duzentos e cinqüenta e trezentos mil-réis.
O meu Príncipe recuou, com os olhos
alegres espantados para mim.
– Como trezentos mil-réis?
– Ponhamos duzentos… Tem certeza! Com
todos esses prados, e os encantamentos de água, e a configuração de serra
alterada, e as vacas inglesas, e os edifícios de porcelana e vidro, e as
máquinas, a extravagância, e a patuscada bucólica, cada queijo te custa, a ti
produtor, duzentos mil-réis. Mas com certeza o vendes no Porto pôr um tostão.
Põe cinqüenta réis para a caixa, rótulos, transporte, comissão, etc. Tens
apenas, em cada queijo, uma perda de cento e noventa e nove mil oitocentos e
cinqüenta réis!
O meu Príncipe não desanimou.
– Perfeitamente! Faço um desses
espantosos queijos pôr semana, ao Sábado, para o comermos nós ambos ao Domingo!
E tanta energia lhe comunicava o seu
novo Otimismo, tão ansiosamente aspirava a criar, que logo, arrastando o Silvério
e o Melchior pôr cabeços e barrancos, largou a percorrer a Quinta toda, para
determinar onde cresciam, ao seu mando inspirado, os verdes prados, e se
ergueriam, rebrilhantes no sol de Tormes, os currais elegantes. Com a
esplêndida segurança dos seus cento e nove contos de renda, não surgia
dificuldade, risonhamente murmurada pelo Melchior, ou exclamada, com respeitoso
pasmo, pelo Silvério, que ele não afastasse brandamente, com jeito leve, como
um galho de roseira brava atravessado numa vereda.
Aquelas rochas, além, empecendo? Que se
arrancassem! Um vale importuno dividia dois campos? Que se atulhasse! O
Silvério suspirava, enxugando sobre a escura calva um suor quase de angústia.
Pobre Silvério! Rijamente sacudido na doce pachorra da sua administração, calculando
despesas que se afiguravam sobre-humanas à sua parcimônia serrana, forçado a
arquejar, sem descanso, sob soalheiras de Junho, o desgraçado retomara na Serra
o jeito que Jacinto deixara em Paris – e era ele que corria pelas longas barbas
tenebrosas os dedos desalentados… Enfim uma tarde desabafou comigo, a um
canto da varanda, enquanto Jacinto, na livraria, escrevia a um seu amigo de
Holanda, o conde Rylant, Mordomo-Mor da Corte, pedindo desenhos, e planos, e
orçamentos duma queijeira perfeita.
– Pois, Sr.Fernandes, se toda esta
grandeza vai pôr diante, sempre lhe digo que o Sr. D. Jacinto enterra aqui na
serra dezenas de contos,,, Dezenas de contos!
E como eu aludia à fortuna do meu
Príncipe, a quem todas essas obras tão vastas, que alterariam o antiquíssimo
rosto da serra, não custavam mais que a outros o conserto dum socalco – o bom
Silvério atirou os longos braços para as coxas, ainda mais desolado:
– Pois pôr isso mesmo, Sr. Fernandes!
Se o Sr. D. Jacinto não tivesse a dinheirama, recuava. Assim, é zás, para
diante; e eu não o censuro pela idéia. Lograsse eu a renda de S. Exª, que me
atirava também a uma lavoura de capricho. Mas não aqui, Sr. Fernandes, nestas
serranias, entre alcantis. Pois um senhor que possui aquela linda propriedade
de Montemor, nos campos de Mondego, onde até podia plantar jardins de desbancar
os do Palácio de Cristal do Porto! E a Veleira? Isso é um condado! E uma terra
chã, boa terra, toda junta, ali em volta da casa, com uma torre. Um regalo, Sr.
Fernandes. Mas sobretudo Montemor! Lá é que eram prados e manadas de vacas
inglesas, e queijeira e horta rica, de fartar, e aí trinta perus na capoeira…
– Então que quer, Silvério? O Jacinto
gosta da serra. E depois este é o solar da família, e aqui começaram no século
XIV os Jacintos…
O pobre Silvério, no seu desespero,
esquecia o respeito devido à secular nobreza da casa.
– Ora! até ficam mal ao Sr. Fernandes
essas idéias, neste século da liberdade… Pois estamos lá em tempos de se
falar em fidalguias, agora que pôr toda a parte tudo em República? Leia o Século, Sr. Fernandes! leia o Século, e verá! E depois eu
sempre quero ver o Sr.D. Jacinto, aqui no Inverno, com o nevoeiro a subir do
rio logo pela manhã, e a friagem a traspassar os ossos, e ventanias que atiram
carvalheiras de raízes ao ar, e chuvas e chuvas que se desfaz a serra!… Olhe,
até mesmo pôr amor da saúde o Sr. D. Jacinto, que é fraquinho e acostumado à
cidade, necessita sair da serra. Em Montemor, em Montemor é que Sua Exª estava
bem. e o Sr. Fernandes, tão amigo dele e assim com tanta influência, devia
teimar, e berrar, até que o levasse para Montemor.
Mas, infelizmente para quietação do
Silvério, Jacinto lançara raízes, e rijas, e amorosas raízes na sua rude serra.
Era realmente como se o tivessem plantado de estaca naquele antiquíssimo chão,
de onde brotara a sua raça, e o antiquíssimo húmus refluísse e o penetrasse
todo, e o andasse transformando num Jacinto rural, quase vegetal, tão do chão,
e preso ao chão, como as árvores que ele tanto amava.
E depois o que o prendia à serra era o
Ter nela encontrado o que na Cidade, apesar da sua sociabilidade, não
encontrara nunca – dias tão cheios, tão deliciosamente ocupados, dum tão
saboroso interesse, que sempre penetrava neles, como numa festa ou numa glória.
Logo de manhã, às seis horas, eu, no
meu quarto, mexendo ainda regaladamente o meu corpo nos colchões de fresco
folhelho, sentia os seus rijos sapatões pelo corredor, e o seu cantarolar,
desafinado, mas ditoso como o dum metro. Em poucos instantes escancarava com
fragor a minha porta, já de chapéu desabado, já de bengalão de cerejeira,
disposto com reservado fervor para os trilhos conhecidos da serra. E era sempre
a mesma nova, quase orgulhosa:
– Dormi hoje deliciosamente, Zé
Fernandes. Tão bem, com uma tal serenidade, que começo a acreditar que sou um
justo! Um dia lindo! Quando abri a janela, às cinco horas, quase gritei de puro
gosto!
Na sua pressa, nem me deixava demorar
na frescura da banheira; e quando eu repetia a risca mal começada do cabelo,
aquele antigo homem das trinta e nove escovas protestava contra esse desbarato
efeminado dum tempo devido aos fortes gozos da terra.
Mas quando, depois de acariciar os
rafeiros no pátio, desembocávamos da alameda de plátanos, e adiante de nós se
dividiam matutinamente, mais brancos entre o verde matutino, os caminhos
coleantes da Quinta, toda a sua pressa findava, e penetrava na Natureza, com a
reverente lentidão de quem penetra num Templo. E repetidamente sustentava ser
“contrário à Estética, à Filosofia e à Religião, andar depressa através dos
campos”. De resto, com aquela sutil sensibilidade bucólica que nele se
desenvolvera, e incessantemente se afirmava, qualquer breve beleza, do ar ou da
terra, lhe bastava para um longo encanto. Ditosamente poderia ele entreter toda
uma manhã, caminhar pôr entre um pinheiral, de tronco a tronco, calado,
embebido no silêncio, na frescura, no resinoso aroma, empurrando com o pé as
agulhas e as pinhas secas. Qualquer água corrente o retinha, enternecido
naquela serviçal atividade, que se apressa, cantando, para o torrão que tem
sede, e nele se some, e se perde. E recordo ainda quando me reteve meio
Domingo, depois da Missa, no cabeço, junto a um velho curral desmantelado, sob
uma grande árvore – só porque em torno havia quietação, doce aragem, um fino
piar de ave na ramaria, um murmúrio de regato entre as canas verdes, e pôr
sobre a sebe, ao lado, um perfume, muito fino e muito fresco, de flores
escondidas.
Depois, quando eu, velho familiar das
serras, me não abandonava aos mesmos êxtases que a ele lhe enchiam a alma ainda
noviça – o meu Príncipe rugia, com a indignação dum poeta que descobre um
merceeiro bocejando sobre Shakespeare ou Musset. Eu ria.
– Meu filho, olha que eu não passo dum
pequeno proprietário. Para mim não se trata de saber se a terra é linda, mas se a terra é boa. Olha o que diz a Bíblia!
“Trabalharás a Quinta com o suor do teu rosto!” E não diz “contemplarás a
Quinta com o enlevo da tua imaginação!”
– Pudera! – exclamava o meu Príncipe. –
Um velho livro escrito pôr Judeus, pôr ásperos semitas, sempre com o turvo olho
posto no lucro! Repara, homem, para aquele bocadinho de vale, e consegue não
pensar, pôr um momento, nos trinta mil-réis que ele rende! Verás que pela sua
beleza e graça ele te dá mais contentamento à alma que os trinta mil-réis ao
corpo. E na vida só a alma importa.
Recolhendo ao casarão, já o
encontrávamos com as janelas meio cerradas, os soalhos borrifados para aquelas
quentes réstias de Sol de Junho, que depois do almoço docemente nos retinham na
livraria, preguiçando.
Mas realmente a alegre atividade do meu
Príncipe não cessava, nem amolecia, sob o peso da sesta. A essa hora, enquanto
pelo arvoredo mudo os mais agitados pardais dormiam, e o Sol mesmo parecia
repousar, imóvel na rutilância da sua luz, Jacinto com o espírito acordado –
ávido de sempre gozar, agora que reconquistara essa faculdade – tomava com
delícia o seu livro.
Porque o dono de trinta mil volumes era agora, na sua casa de Tormes, depois de
ressuscitado, o homem que só tem um livro. Essa mesma Natureza, que o desligara
das ligaduras amortalhadoras do tédio, e lhe gritara o seu belo Ambula, caminha! – também
certamente lhe gritara et lege,
e lê. E libertado enfim do invólucro sufocante da sua Biblioteca imensa, o meu
ditoso amigo compreendia enfim a incomparável delícia de ler um livro. Quando eu correra
a Tormes (depois das revelações do severo na venda do Torto), ele findava o D.Quixote, e ainda eu lhe
escutara as derradeiras risadas com as coisas deliciosas, e decerto profundas,
que o gordo Sancho lhe murmurava, escarranchado no seu burro. Mas agora o meu
Príncipe mergulhara na Odisséia – e todo ele vivia no espanto e no
deslumbramento de assim Ter encontrado no meio do caminho da sua vida o velho
errante, o velho Homero!
– Ó Zé Fernandes, como sucedeu que eu
chegasse a esta idade sem Ter lido Homero?…
– Outras leituras, mais urgentes… o Fígaro, George Ohnet…
– Tu leste a Ilíada?
– Menino, sinceramente me gabo de nunca
ter lido a Ilíada.
Os olhos do meu Príncipe fuzilavam.
– Tu sabes o que fez Alcibíades, uma
tarde, no Pórtico, a um sofista, um desavergonhado dum sofista, que se gabava
de não ter lido a Ilíada?
– Não.
– Ergueu a mão e atirou-lhe uma
bofetada tremida.
– Para lá, Alcibíades! Olha que eu li a Odisséia!
Ó! mas decerto eu a lera, corridamente,
com a alma desatenta! E insistia em me iniciar, ele, e me conduzir, através do
Livro sem igual. Eu ria. E rindo, pesado do almoço, terminava pôr consentir, e
me estirava no canapé de verga. Ele, diante da mesa, direito na cadeira, abria
o livro gravemente, pontificalmente, como um missal, e começava numa lenta ode
sentida. Aquele grande mar da Odisséia – resplandecente e sonoro, sempre
azul, sob o vôo branco das gaivotas, rolando, e mansamente quebrando sobre a
areia fina ou contra as rochas de mármore das Ilhas divinas – exalava logo uma
frescura salina, bem-vinda e consoladora naquela calma de Junho, em que a serra
entorpecia. Depois as estupendas manhas do sutil Ulisses e os seus perigos
sobre-humanos, tantas lamúrias sublimes e um anseio tão espalhado da Pátria
perdida, e toda aquela intriga, em que embrulhava os heróis, lograva as Deusas,
iludia o Fado, tinham um delicioso sabor ali, nos campos de Tormes, onde nunca
se necessitava de sutileza ou de engenho, e a vida se desenrolava com a
segurança imutável com que cada manhã sempre o Sol igual nascia, e sempre
centeios e milhos, regados pôr águas iguais, seguramente medravam, espigavam,
amadureciam… Embalado pela recitação grave e monótona do meu Príncipe, eu
cerrava as pálpebras docemente. Em breve um vasto tumulto, pôr Terra e Céu, me
alvoroçava… E eram os rugidos de Polifemo, ou a grita dos companheiros de
Ulisses roubando as vacas de Apolo. Com os olhos logo esbugalhados para
Jacinto, eu murmurava: Sublime! E sempre nesse momento o engenhoso Ulisses, de
carapuço vermelho e o longo remo ao ombro, surpreendia com a sua facúndia a
clemência dos Príncipes, ou reclamava presentes devidos ao Hóspede, ou
surripiava astutamente algum favor aos deuses. E Tormes dormia, no esplendor de
Junho. Novamente, eu cerrava as pálpebras consoladas, sob a carícia inefável do
largo dizer homérico… E meio adormecido, encantado, incessantemente avistava,
longe, na divina Hélade, entre o mar muito azul e o céu muito azul, a branca
vela, hesitante, procurando Ítaca…
Depois da sesta o meu Príncipe de novo
se soltava para os campos. E a essa hora, sempre mais ativa, voltava com ardor
aos “seus planos”, a essas culturas de luxo e elegantes oficinas que cobririam
a serra de magnificências rurais. Agora andava todo no esplêndido apetite duma
horta que ele concebera, imensa horta ajardinada, em que todos os legumes,
clássicos ou exóticos, cresceriam, soberbamente, em vistosos talhões, fechados
pôr sebes de rosas, de cravos, de alfazemas, de dálias. A água das regas
desceria pôr lindos córregos de louça esmaltada. Nas ruas, a sombra cairia de
densas latadas de moscatel, pousando em esteios revestidos de azulejo. E o meu
Príncipe desenhara o plano desta espantosa horta, a lápis vermelho, num papel
imenso, que o Melchior e o Silvério, consultados, longamente contemplaram – um
coçando risonhamente a nuca, o outro com os braços duramente cruzados, e o
sobrolho trágico.
Mas este plano, o da queijaria, o da
capoeira, e outro, suntuoso, dum pombal tão povoado que todo o céu de Tormes às
tardes se tornaria branco e todo fremente de asas – não saíam das nossas
gostosas palestras, ou dos papéis em que Jacinto os debuxava, e que se
amontoavam sobre a mesa, platônicos, imóveis, entre o tinteiro de latão e o
vaso com flores.
Nem enxadada fendera terra, nem
alavanca deslocara pedra, nem serra serrara madeira, para encetar estas
maravilhas. Contra a resistência reboluda e escorregadia do Melchior, contra a
respeitosa inércia do Silvério se quedavam, encalhados, os planos do meu Príncipe,
como galeras vistosas em rochas ou em lodo.
Não convinha bulir em nada (clamava o
Silvério) antes das colheitas e da vindima! E depois (acrescentava o Melchior
com um sorriso de grande promessa) “para boas obras mês de Janeiro” porque lá
ensina o ditado:
Em Janeiro – mete obreiro
Mês meante – que não ante
E, de resto, o gozo de conceber as suas
obras e de indicar, estendendo a bengala pôr cima de vale e monte, os sítios
privilegiados que elas aformoseariam, bastava pôr ora ao meu Príncipe, ainda
mais imaginativo que operante. E, enquanto meditava estas transformações da
terra, muito progressivamente e com um amável esforço, se ia familiarizando com
os homens simples que a trabalhavam. Na sua chegada a Tormes, o meu Príncipe
sofria duma estranha timidez diante dos caseiros, dos jornaleiros, e até de
qualquer rapazinho que passasse, tangendo uma vaca para o pasto. Nunca ele
então se demoraria a conversar com os moços, quando à borda dum caminho ou num
campo em monda eles se endireitavam de chapéu na mão, num respeito de velha
vassalagem. Decerto o empecia a preguiça, e talvez ainda o pudico recato de
transpor toda a imensa distância que se alargava desde a sua complicada
supercivilização até a rude simplicidade daquelas almas naturais: – mas
sobretudo o retinha o medo de mostrar a sua ignorância da lavoura e da terra,
ou de parecer talvez desdenhoso de ocupações e de interesses, que para os
outros eram supremos e quase religiosos. Remia então esta reserva com uma
profusão de sorrisos, de doces acenos, tirando também o chapéu em cortesias
profundas, com uma tal ênfase de polidez que eu pôr vezes receava que ele
murmurasse aos jornaleiros. “Tenha V. Exª muito boas-tardes… Criado de V.
Exª!”
Mas agora, depois daquelas semanas de
serra, e de já saber (com um saber ainda frágil) a época das sementeiras e das
ceifas, e que as árvores de fruta se semeiam no Inverno, já se aprazia em parar
junto dos trabalhadores, contemplar descansadamente o trabalho, dizer coisas
afáveis e vagas.
– Então, isso vai andando?… Ora ainda
bem!… este bocado de terrão aqui é rico… O talude ali adiante está
precisando conserto…
E cada um destes tão simples dizeres
lhe era doce, como se pôr meio deles penetrasse mais fundamente na intimidade
da terra, e consolidasse a sua encarnação em “homem do campo”, deixando de ser
uma mera sombra circulando entre realidades. Já pôr isso não cruzava no caminho
o mocinho atrás das vacas, que não o detivesse, o não interrogasse: “Para onde
vais tu? De quem é o gado? Como te chamas?” E, contente consigo, sempre gabava
gratamente o desembaraço do rapaz, ou a esperteza dos seus olhos. Outra
satisfação do meu Príncipe era conhecer os nomes de todos os campos, as
nascentes de água, e as delimitações da sua Quinta.
– Vês acolá, para além do ribeiro, o
pinheiral. Já não é meu, é dos Albuquerques.
E com perene alegria de Jacinto as
noites da serra, no vasto casarão, eram fáceis e curtas. O meu Príncipe era
então uma alma que se simplificava: – e qualquer pequenino gozo lhe bastava,
desde que nele entrasse paz ou doçura. Com verdadeira delícia ficava, depois do
café, estendido numa cadeira, sentindo através das janelas abertas a noturna
tranqüilidade da serra, sob a mudez estrelada do céu.
As histórias, muito simples e muito
caseiras, que eu lhe contava, de Guiães, do abade, da tia Vicência, dos nossos
parentes da Flor da Malva, tão sinceramente o interessavam que eu encetara,
para seu regalo, a crônica completa de Guiães, com todos os namoricos, e as
façanhas de forças, e as desavenças pôr causa de servidões ou de águas. Também
pôr vezes nos enfronhávamos com aferro numa partida de gamão, sobre um belo
tabuleiro de pau-preto, com pedras de velho marfim, que nos emprestara o
Silvério. Mas nada decerto o encantava tanto como atravessar as casas, pé ante
pé, até uma saleta que dava para o pomar, e aí ficar encostado à janela, sem
luz, num enlevado sossego, a escutar longamente, languidamente, os rouxinóis
que cantavam no laranjal.
Capítulo X
Numa dessa manhãs – justamente na
véspera do meu regresso a Guiães – o tempo, que andara pela serra tão alegre,
num inalterado riso de luz rutilante, todo vestido de azul e ouro, fazendo
poeira pelos caminhos, e alegrando toda a natureza, desde os pássaros até os
regatos, subitamente, com uma daquelas mudanças que tornam o seu temperamento
tão semelhante ao do homem, apareceu triste, carrancudo, todo embrulhado no seu
manto cinzento, com uma tristeza tão pesada e contagiosa que a serra
entristeceu. E não houve mais pássaro que cantasse, e os arroios fugiram para
debaixo das ervas, com um lento murmúrio de choro.
Quando Jacinto entrou no meu quarto,
não resisti à malícia de o aterrar:
– Sudoeste! Gralhas a grasnar pôr todos
esses soutos… Temos muita água, Sr.D.Jacinto! Talvez duas semanas de água! E
agora é que se vai saber quem é aqui o fino amador da Natureza, com esta chuva
pegada, com vendaval, com a serra toda a escorrer!
O meu Príncipe caminhou para a janela
com as mãos nas algibeiras:
– Com efeito! Está carregado. Já mandei
abrir uma das malas de Paris e tirar um casacão impermeável… Não importa!
Fica o arvoredo mais verde. E é bom que eu conheça Tormes nos seus hábitos de
Inverno.
Mas como o Melchior lhe afiançara que a
“chuvinha só viria para a tarde”, Jacinto decidiu ir antes de almoço à
Corujeira, onde o Silvério o esperava para decidirem da sorte de uns
castanheiros, muito velhos, muito pitorescos, inteiramente interessantes, mas
já roídos, e ameaçando desabar. E, confiando nas previsões do Melchior,
partimos sem que Jacinto se vestisse à prova de água. Não andáramos porém meio
caminho, quando, depois dum arrepio nas árvores, um negrume carregou e,
bruscamente, desabou sobre nós uma grossa chuva oblíqua, vergastada pelo vento,
que nos deixou estonteados, agarrando os chapéus, enrodilhados na borrasca.
Chamados pôr uma grande voz, que se esganiçava no vento, avistamos num campo
mais alto, à beira dum alpendre, o Silvério, debaixo dum guarda-chuva vermelho,
que acenava, nos indicava o trilho mais curto para aquele abrigo. E para lá
rompemos, com a chuva a escorrer na cara, patinhando na lama, contorcidos,
cambaleantes, atordoados no vendaval, que num instante alargara os campos,
inchara os ribeiros, esboroava a terra dos socalcos, lançara num desespero todo
o arvoredo, tornara a serra negra, bravamente agreste, hostil, inabitável.
Quando enfim, debaixo do vasto
guarda-chuva com que Silvério nos esperava à beira do campo, corremos para o
alpendre, nos refugiamos naquele abrigo inesperado, a escorrer, a arquejar, o
meu Príncipe, enxugando a face, enxugando o pescoço, murmurou, desfalecido:
– Apre! que ferocidade!
Parecia espantado daquela brusca,
violenta cólera duma serra tão amável e acolhedora, que em dois meses,
inalteradamente, só lhe oferecera doçura e sombra, e suaves céus, e quietas
ramagens, e murmúrios discretos de ribeirinhos mansos.
– Santo Deus! Vêm muitas vezes assim,
estas borrascas?
Imediatamente o Silvério aterrou o meu
Príncipe:
– Isto agora são brincadeiras de Verão,
meu senhor! Mas há de V. Exª. ver no Inverno, se V.Exª se agüentar pôr cá!
Então é cada temporal, que até parece que os montes estremecem!
E contou como fora também apanhado,
quando ia para a Corujeira. Felizmente, logo de manhã, quando sentiu o ar
carrancudo e as folhinhas dos choupos a tremer, se acautelara com o chapéu de
chuva e calçara as suas grandes botas.
– Ainda estive para me abrigar em casa
do Esgueira, que é um caseiro de cá. Aquela casa, ali abaixo, onde está a
figueira… Mas a mulher tem estado doente, já há dias… e como pode ser obra
que se pegue, bexigas ou coisa que o valha, pensei comigo: Nada, o seguro
morreu de velho! Meti para o alpendre… E o senhor D. Jacinto é voltar para
casa, e mudar-se, que temos um dia e uma noite de água.
Mas, justamente, a chuva começara a
cair perpendicular, dum céu ainda negro, onde o vento se calara; e para além do
rio e dos montes havia uma claridade, como entre cortinas de pano cinzento que
se descerram.
Jacinto repousava. Eu não cessara de me
sacudir, de bater os pés encharcados, que me arrefeciam. E o bom Silvério,
passando a mão pensativa sobre o negrume das suas barbas, refletia, emendava os
seus prognósticos:
– Pois, não senhor… Ainda estia!
Nunca pensei. É que tornejou o vento.
O alpendre que nos cobria assentava
sobre duas paredes em ângulo, de pedra solta, restos de algum casebre desmantelado,
e sobre um esteio fazendo cunhal. Nesse momento só abrigava madeira, um cuculo
de cestos vazios, e um carro de bois, onde o meu Príncipe se sentara, enrolando
um cigarro, confortador. A chuva desabava, copiosa, em longos fios reluzentes.
E todos três nos calávamos, naquela contemplação inerte e sem pensamento, em
que uma chuva grossa e serena sempre imobiliza e retém olhos e almas.
– Ó Sr. Silvério – murmurou lentamente
o meu Príncipe – , que é que o senhor esteve aí a dizer de bexigas?
O procurador voltou a face
surpreendido:
– Eu, Exmo Sr?… Ah sim! A mulher do
Esgueira! É que pode ser, pode ser… Não imagine V. Exª que faltam pôr cá
doenças. O ar é bom. Não digo que não! Arzinho são, aguazinha leve, mas às
vezes, se V.Exª me dá licença, vai pôr aí muita maleita..
– Mas não há médico, não há botica?
O Silvério teve o riso superior de quem
habita regiões civilizadas e bem providas…
– Então não havia de haver? Pois há um
boticário, em Guiães, lá quase ao pé da casa aqui do nosso amigo. E homem
entendido… o Firmino, hem, Sr. Fernandes? Homem capaz. Médico é o Dr.
Avelino, daqui a légua e meia, nas Bolsas. Mas já V. Exª vê, esta gentinha é
pobre!… Tomaram eles para pão, quanto mais para remédios!
E de novo se estabeleceu um silêncio,
sob o alpendre, onde penetrava a friagem crescente da serra encharcada. Para
além do rio, a prometedora claridade não se alargara entre as duas espessas
cortinas pardacentas. No campo, em declive diante de nós, ia um longo correr de
ribeiros barrentos. Eu terminara pôr me sentar na ponta dum madeiro, enervado,
já com a fome aguçada pela manhã agreste. E Jacinto, na borda do carro, com os
pés no ar, cofiava os bigodes úmidos, palpava a face, onde, com espanto meu,
reaparecera a sombra, a sombra triste dos dias passados, a sombra do 202!
E, então, surdiu pôr trás da parede do
alpendre um rapazito, muito rotinho, muito magrinho, com uma careta miúda, toda
amarela sob a porcaria, e onde dois grandes olhos pretos se arregalavam para
nós, com vago pasmo e vago medo. Silvério imediatamente o conheceu.
– Como vai a tua mãe? Escusas de te
chegar para cá, deixa-te estar aí. Eu ouço bem. Como vai a tua mãe?
Não percebi o que os pobres beicitos
descorados murmuraram. Mas Jacinto, interessado:
– Que diz ele? Deixe vir o rapaz! Quem
é a tua mãe?
Foi o Silvério que informou
respeitosamente:
– É a tal mulher que está doente, a
mulher do Esgueira, ali do casal da figueira. E ainda tem outro abaixo deste…
Filharada não lhe falta.
– Mas este pequeno também parece
doente! – exclamou Jacinto. – Coitado, tão amarelo!… Tu também estás doente?
O rapazito emudecera, chupando o dedo,
com os tristes olhos pasmados. E o Silvério sorria, com bondade:
– Nada! este é sãozinho… Coitado, é
assim amarelado e enfezadito porque… Que quer V.Exª? Mal comido! muita
miséria….
Quando há o bocadito de pão é para todo
o rancho. Fomezinha, fomezinha!
Jacinto pulou bruscamente da borda do
carro.
– Fome? Então ele tem fome? Há aqui
gente com fome?
Os seus olhos rebrilhavam, num espanto
comovido, em que pediam, ora a mim, ora ao Silvério, a confirmação desta
miséria insuspeitada. E fui eu que esclareci o meu Príncipe:
– Homem! Está claro que há fome! Tu
imaginavas talvez que o Paraíso se tinha perpetuado aqui nas serras, sem
trabalho e sem miséria… Em toda a parte há pobres, até na Austrália, nas
minas de ouro. Onde há trabalho há proletariado, seja em Paris, seja no
Douro…
O meu Príncipe teve um gesto de aflita
impaciência:
– Eu não quero saber o que há no Douro.
O que eu pergunto é se aqui, em Tormes, na minha propriedade, dentro destes
campos que são meus, há gente que trabalhe para mim, e que tenha fome… Se há
criancinhas, como esta, esfomeadas? É o que eu quero saber.
O Silvério sorria, respeitosamente,
ante aquela cândida ignorância das realidades da serra:
– Pois está bem de ver, meu senhor, que
há para aí caseiros que são muito pobres. Quase todos… É uma miséria, que se
não fosse algum socorro que se lhes dá, nem eu sei!… Este Esgueira, com o
rancho de filhos que tem, é uma desgraça… Havia V. Exª de ver as casitas em
que eles vivem… São chiqueiros. A do Esgueira, acolá…
– Vamos vê-la! – atulhou Jacinto com
uma decisão exaltada.
E saiu logo do alpendre, sem atender à
chuva, que ainda caia, mais leve e mais rala. Mas então Silvério alargou os
braços diante dele, com ansiedade, como para o salvar dum precipício.
– Não! V. Exª lá na casa do Esgueira é
que não entra! Não se sabe o que a mulher tem, e cautela e caldo de galinha…
Jacinto não se alterou na sua polidez
paciente:
– Obrigado pelo seu cuidado,
Silvério… Abra o seu chapéu de chuva, e avante!
Então o Procurador vergou os ombros, e,
como sua Exª mandava, abriu com estrondo o imenso pára-águas, abrigou
respeitosamente Jacinto, através do campo encharcado. Eu segui, pensando na esmola
suntuosa que o bom Deus mandava àquele pobre casal pôr um remoto senhor das
Cidades! Atrás vinha o pequenito perdido num imenso pasmo.
Como todos os casebres da serra, o
Esgueira era de grossa pedra solta, sem reboco, com um vago telhado, de telha musgosa
e negra, um postigo no alto, e a rude porta que servia para o ar, para a luz,
para o fumo, e para a gente. E em redor, a Natureza e o Trabalho tinham,
através de anos, acumulado ali trepadeiras e flores silvestres, e cantinhos de
horta, e sebes cheirosas, e velhos bancos roídos de musgo, e panelas com terra
onde crescia salsa, e regueiros cantantes, e videiras enforcadas nos olmos, e
sombras e charcos espelhados, que tornavam deliciosa, para uma Écloga, aquela
morada da Fonte, da doença e da Tristeza.
Cautelosamente, com a ponteira do
guarda-chuva, Silvério empurrou a porta, chamando:
– Eh! tia Maria… Olá, rapariga!
E na fenda entreaberta apareceu uma
moça, muito alta, escura e suja, com uns tristes olhos pisados, que se
espantaram para nós, serenamente.
– Então como vai tua mãe? Abre lá a
porta, que estão aqui estes senhores…
Ela abriu, lentamente, e ia murmurando
numa voz dolente e arrastada mas sem queixume, que um vago, resignado sorriso
acompanhava:
– Ora, coitada! como há de ir?
Malzinha… malzinha.
E dentro, num gemido que subia como do
chão, de entre abafos, amodorrado e lento, a mãe repetiu a desconsolada queixa:
– Ai! para aqui estou, e malzinha,
malzinha!…
O Silvério, sem passar da porta, com o
guarda-chuva em riste, meio aberto, como um escudo contra a infecção, lançou
uma consolação vaga:
– Não há de ser nada, tia Maria!…
Isso foi friagem! Não foi senão friagem!
E, sobre o ombro de Jacinto, encolhido:
– Já V. Exª vê… Muita miséria! Até
lhe chove lá dentro.
E, no pedaço de chão que viam, chão de
terra batida, uma mancha úmida reluzia, da chuva pingada de uma telha rota. A
parede, coberta de fuligem, das longas fumaraças da lareira, era tão negra como
o chão. E aquela penumbra suja parecia atulhada, numa desordem escura, de
trapos, de cacos, de restos de coisas, onde só mostravam forma compreensível
uma arca de pau negro, e pôr cima, pendurado dum prego, entre uma serra e uma
candeia, um grosso saiote escarlate.
Então Jacinto, muito embaraçado,
murmurou abstraidamente:
– Está bem, está bem…
E largou pelo campo para o lado do
alpendre como se fugisse, enquanto Silvério decerto revelava à rapariga, a
presença augusta do “fidalgo”, porque a sentimos, da porta, levantar a voz
dolorida:
– Ai! Nosso Senhor lhe dê muita boa
sorte! Nosso Senhor o acompanhe!
Quando o Silvério, com as grandes
passadas das suas grandes botas, nos colheu, no meio do campo, Jacinto parara,
olhava para mim, com os dedos trêmulos a torturar o bigode, e murmurava:
– É horrível, Zé Fernandes, é horrível!
Ao lado, o vozeirão do Silvério
trovejou:
– Que queres tu outra vez, rapaz? Vai
para a tua mãe, criatura!
Era o pequeno rotinho, esfaimadinho,
que se prendia a nós, num imenso pasmo das nossas pessoas, e com a confusa
esperança, talvez, que delas, como de Deuses encontrados num caminho, lhe
viesse afago ou proveito. E Jacinto, para quem ele mais especialmente
arregalava os olhos tristes, e que aquela miséria, e a sua muda humildade,
embaraçavam, acanhavam horrivelmente, só soube sorrir, murmurar o seu vago:
“Está bem, está bem…” Fui eu que dei ao pequenito um tostão, para o fartar, o
despegar dos nossos passos. Mas como ele, com o seu tostão bem agarrado, nos
seguia ainda, como no sulco da nossa magnificência, o Silvério teve de o
espantar, como a um pássaro, batendo as mãos, e de lhe gritar:
– Já para casa! E leve esse dinheiro à
mãe. Roda, roda!…
– E nós vamos almoçar – lembrei eu
olhando o relógio. – O dia ainda vai estar lindo.
Sobre o rio, com efeito, reluzia um
pedaço de azul lavado e lustroso, e a grossa camada de nuvens já se ia
enrolando sob a lenta varredela do vento, que as levava, despejadas e rotas,
para um canto escuso do céu.
Então recolhemos lentamente para casa,
pôr uma vereda íngreme, que ensinara o Silvério, e onde um leve enxurro vinha
ainda, saltando e chalrando. De cada ramo tocado, rechovia uma chuva leve. Toda
a verdura, que bebera largamente, reluzia consolada.
Bruscamente, ao sairmos da vereda para
um caminho mais largo, entre um socalco e um renque de vinha, Jacinto parou,
tirando lentamente a cigarreira:
– Pois, Silvério, eu não quero mais
estas horríveis misérias na Quinta.
O Procurador deu um jeito aos ombros,
com um vago eh! eh! de obediência e dúvida.
– Antes de tudo – continuava Jacinto –
mande já hoje chamar esse Dr. Avelino para aquela pobre mulher… E os remédios
que os vão buscar logo a Guiães. E recomendação ao médico para voltar amanhã, e
em cada dia; até que ela melhore… Escute! E quero, Silvério, que lhe leve
dinheiro, para os caldos, para a dieta, uns dez ou quinze mil-réis… Bastará?
O Procurador não conteve um riso
respeitoso. Quinze mil-réis! Uns tostões bastavam…. Nem era bom acostumar
assim, a tanta franqueza, aquela gente. Depois todos queriam, todos
pechinchavam…
– Mas é que todos hão de Ter – disse
Jacinto simplesmente.
– V. Exª manda! – murmurou o Silvério.
Encolhera os ombros, parado no caminho,
no espanto daquelas extravagâncias. Eu tive de o apressar, impaciente:
– Vamos conversando e andando! É
meio-dia! Estou com uma fome de lobo!
Caminhamos, com o Silvério no meio,
pensativo, a fronte enrugada sob a vasta aba do chapéu, a barba imensa
espalhada pelo peito, e a barraca exorbitante do guarda-chuva vermelho enrolada
debaixo do braço. E Jacinto, puxando nervosamente o bigode, arriscava outras
idéias benfazejas, cautelosamente, no seu indomável medo do Silvério:
– E as casas também… Aquela casa é um
covil!… Gostava de abrigar melhor aquela pobre gente… E naturalmente, as
dos outros caseiros são pocilgas iguais… era necessário uma reforma!
Construir casas novas a todos os rendeiros da Quinta…
– A todos?… – O Silvério gaguejava –
emudeceu.
E Jacinto balbuciava aterrado:
– A todos… Enfim, quero dizer…
Quantos serão eles?
Silvério atirou um gesto enorme:
– São vinte e coisas… vinte e três!
Se bem lembro. Upa! Upa! Vinte e sete…
Então Jacinto emudeceu também, como
reconhecendo a vastidão do número. Mas desejou saber pôr quanto ficaria cada
casa!… Ó! uma casa simples, mas limpa, confortável, como a que tinha a irmã
do Melchior, ao pé do lagar. Silvério estacou de novo. Uma casa como a da
Ermelinda? Queria Sua Exª saber? E alijou a cifra, muito de alto, como uma
pedra imensa, para esmagar Jacinto:
– Duzentos mil-réis, Exmo Senhor! E é
para mais que não para menos!
Eu ria da trágica ameaça do excelente
homem. E Jacinto, muito docemente, para conciliar o Silvério:
– Bem, meu amigo… eram uns seis
contos de réis! Digamos dez, porque eu queria dar a todos alguma mobília e
alguma roupa.
Então o Silvério teve um brado de
terror:
– Mas então, Exmo Senhor, é uma
revolução!
E como nós, irresistivelmente, ríamos
dos seus olhos esgazeados de horror, dos seus imensos braços abertos para trás,
como se visse o mundo desabar – o bom Silvério encavacou:
– Ah! V. Exª riem? Casas para todos,
mobílias, pratas bragal, dez contos de réis! Então também eu rio! Ah! ah! ah!
Ora viva a bela chalaça!… Está boa a risota!
E subitamente, numa profunda mesura,
como declinando toda a responsabilidade naquele disparate magnífico:
– Enfim, V. Exª é quem manda!
– Está mandado, Silvério. E também
quero saber as rendas que paga essa gente, os contratos que existem, para os
melhorar. Há muito que melhorar. Venha você almoçar conosco. E conversamos,
Tão saturado de espanto estava o
Silvério, que nem recebeu mais espanto com essa “melhoria de rendas”. Agradeceu
o convite, penhorado. Mas pedia licença a S. Exª para passar primeiramente pelo
lagar, para ver os carpinteiros que andavam a consertar a trave do rio. Era um
instante, e estava em seguida às ordens de S. Exª.
Meteu a corta-mato, saltando um
cancelo. E nós seguimos, com passos que eram ligeiros, pela hora do almoço que
se retardara, pelo azul alegre que reaparecia, e pôr toda aquela justiça feita
à pobreza da serra.
– Não perdeste hoje o teu dia, Jacinto
– disse eu, batendo, com uma ternura que não disfarcei, no ombro do meu amigo.
– Que miséria, Zé Fernandes! eu nem
sonhava… Haver pôr aí, à vista da minha casa, outras casas, onde crianças têm
fome! É horrível….
Estávamos entrando na alameda. Um raio
de sol, saindo de entre duas grossas, algodoadas nuvens, passou sobre uma
esquina do casarão, ao fundo, uma viva tira de ouro. O clarim dos galos soava
claro e alto. E um doce vento, que se erguera, punha nas folhas lavadas e
luzidias um frêmito alegre e doce.
– Sabes o que eu estava pensando,
Jacinto?… Que te aconteceu aquela lenda de Santo Ambrósio… Não, não era
Santo Ambrósio… Nem me lembro o santo… Nem era ainda santo… apenas um
cavaleiro pecador, que se enamorara duma mulher, pusera toda a sua alma nessa
mulher, só pôr a avistar a distância na rua. Depois, uma tarde que a seguia,
enlevado, ela entrou num portal de igreja, e aí, de repente, ergueu o véu,
entreabriu o vestido, e mostrou ao pobre cavaleiro o seio roído pôr uma chaga!
Tu também andavas namorado da serra, sem a conhecer, só pela sua beleza de
Verão. E a serra, hoje, zás! De repente, descobre a sua grande úlcera… É
talvez a tua preparação para S. Jacinto.
Ele parou, pensativo, com os dedos nas
cavas do colete:
– É verdade! Vi a chaga! Mas enfim,
esta, louvado seja Deus,é das que eu posso curar!
Não desiludi o meu Príncipe. E ambos
subimos alegremente a escadaria do casarão.
Capítulo XI
No dia que seguiu estas largas
caridades recolhi a Guiães. E, desde então, tantas vezes trotei pôr aquelas
três léguas entre a nossa e a velha alameda dos Jacintos, que a minha égua,
quando a desviava dessa estrada familiar, conduzindo-a a uma cavalariça
familiar (onde ela privava com o garrano do Melchior), relinchava de pura
saudade. Até a tia Vicência se mostrava vagamente ciumenta daquela Tormes, para
onde eu sempre corria, daquele Príncipe de quem incessantemente celebrava o
rejuvenescimento, a caridade, os pitéus, e as quimeras agrícolas. Já um dia com
um grão de sal e ironia – o único que cabia num coração todo cheio de inocência
– , ela me dissera, movendo com mais vivacidade as agulhas da sua meia:
– Olha que te podes gabar! Até me tens
feito curiosidade de conhecer esse Jacinto… Traz cá essa maravilha, menino!
Eu rira:
– Sossegue, tia Vicência, que a trarei
agora, para o dia dos meus anos, a jantar… Damos uma festa, haverá um
bailarico no pátio, e vem aí toda essa senhorama dos arredores. Talvez até se
arranje uma noiva para o Jacinto.
Eu, com efeito, já convidara meu
Príncipe para este “natalício”. E de resto, convinha que o senhor de Tormes
conhecesse todos aqueles senhores das boas casas da serra… Sobretudo, como eu
lhe dizia rindo, convinha que ele conhecesse algumas mulheres, algumas daquelas
fortes raparigas dos solares serranos, porque Tormes tinha uma solidão muito
monástica; e o homem, sem um pouco do eterno Feminino, facilmente se endurece e
ganha uma casca áspera como a das árvores, na solidão.
– E esta Tormes, Jacinto, esta tua
reconciliação com a Natureza, e o renunciamento às mentiras da Civilização é
uma linda história… Mas, caramba, faltam mulheres!
Ele concordava, rindo, languidamente
estendido na cadeira de vime:
– Com efeito, há aqui falta de mulher,
com M grande. Mas essas senhoras aí das casas dos arredores… Não sei, mas
estou pensando que se devem parecer com legumes. Sãs, nutritivas, excelentes
para a panela – mas, enfim, legumes. As mulheres que os poetas comparam às
flores são sempre as mulheres das cortes, das Capitais, às quais,
invariavelmente, desde Hesíodo e Horácio, se rendem os poetas… e
evidentemente não há perfume, nem graça, nem elegância, nem requinte, numa
cenoura ou numa couve… Não devem ser interessantes as senhoras da minha
serra.
– Eu te digo… A tua vizinha mais
chegada, a filha do d. Teotônio, com efeito, salvo o respeito que se deve à
casa ilustre dos Barbedos, é um mostrengo! A irmã dos Albergarias, da Quinta da
Loja, também não tentaria nem mesmo o precisado santo Antão. Sobretudo se se
despisse, porque é um espinafre infernal! Essa realmente é legume, e não dos
nutritivos.
– Tu o disseste: espinafre!
– Temos também a D. Beatriz Veloso…
Essa é bonita… Mas, menino, que horrivelmente bem falante! Fala como as
heroínas do Camilo. Tu nunca leste o Camilo… e depois, um tom de voz que te
não sei descrever, o tom com que se fala em D. Maria… Enfim, um horror! E
perguntas pavorosas. “V. Exª, Sr. Doutor, não se delicia com Lamartine?” Já me
disse esta, a indecente!
– E tu?
– Eu! Arregalei os olhos… “Ó
Lamartine!” Mas, coitada, é uma excelente rapariga! Agora, pôr outro lado,
temos as Rojões, as filhas do João Rojão, duas flores, muito frescas, muito
alegres, com um cheiro e um brilho a sadio, e muito simples… A tia Vicência
morre pôr elas. Depois há a mulher do Dr. Alípio, que é uma beleza. Ó! uma
criatura esplêndida! Mas, enfim, é a mulher do Dr. Alípio, e tu renunciaste aos
deveres da Civilização… Além disso, mulher muito séria, toda absorvida nos
seus dois pequenos, que parecem dois anjinhos de Murillo… E quem mais? Já
agora, quero completar a lista do pessoal feminino. Temos a Melo Rebelo, de
Sandofim, muito engraçada, com cabelo lindo… Borda na perfeição, faz doces
como uma freira do antigo regime… Havia também uma Júlia Lobo, muito linda,
mas morreu… Agora não me lembro de mais. Mas falta a flor da Serra, que é a
minha prima Joaninha, da Flor da Malva! Essa é uma perfeição de rapariga.
– E tu, primo Zé, como tens tu
resistido?
– Somos como irmãos, criados de
pequeninos, mais acostumados e familiares que tu e eu… A familiaridade esbate
os sexos. A mãe dela era a única irmã da tia Vicência, e morreu muito nova. A
Joaninha, quase desde o berço que se criou em nossa casa, em Guiães. O pai é
bom homem, o tio Adrião. Erudito, antiquário, colecionador… Coleciona toda a
sorte de coisas esquisitas, campainhas, esporas, sinetes, fivelas… Tem uma
coleção curiosa. Ele há muito que deseja vir a Tormes, para te visitar… Mas,
coitado, sofre da bexiga, não pode montar a cavalo. E a estrada da flor da
Malva aqui é impossível para carruagens…
O meu Príncipe espreguiçara longamente
os braços:
– Não, está claro! eu é que hei de
visitar teu tio, e a tia Vicência… desejo conhecer os meus vizinhos. Mas mais
tarde, quando sossegar. Agora ando todo ocupado com o meu povo.
E com efeito! Jacinto era agora como um
Rei fundador dum Reino, e grande edificador. Pôr todo o seu domínio de Tormes
andavam obras, para o renovamento das casas dos rendeiros, umas que se
consertavam, outras mais velhas, que se derrubavam para se reconstruírem com
uma largueza cômoda. Pelos caminhos constantemente chiavam carros, carregados
de pedra, ou de madeiras cortadas nos pinheirais.
Na taberna do Pedro, à entrada da
freguesia, ia um desusado movimento, de pedreiros e carpinteiros contratados
para as obras; e o Pedro, com as mangas arregaçadas, pôr trás do balcão, não
cessava de encher os decilitros com uma vasta infusa.
Jacinto, que tinha agora dois cavalos,
todas as manhãs cedo percorria as obras, com amor. Eu, inquieto, sentia outra
vez latejar e irromper no meu Príncipe o seu velho, maníaco furor de acumular
Civilização! O plano primitivo das obras era incessantemente alargado,
aperfeiçoado. Nas janelas, que deviam ter apenas portadas, segundo o secular
costume da serra, decidira pôr vidraças, apesar do mestre-de-obras lhe dizer
honradamente que depois de habitadas um mês não haveria casa com um só vidro.
Para substituir as traves clássicas queria estucar os tetos; e eu via bem
claramente que ele se continha, se retesava dentro do bom senso, para não dotar
cada casa com campainhas elétricas. nem sequer me espantei, quando ele uma
manhã me declarou que a porcaria da gente do campo provinha deles não terem
onde comodamente se lavar, pelo que andava pensando em dotar cada casa com uma
banheira. Descíamos nesse momento, com os cavalos à rédea, pôr uma azinhaga
precipitada e escabrosa, um vento leve ramalhava nas árvores, um regato saltava
ruidosamente entre as pedras. Eu não me espantei – mas realmente me pareceu que
as pedras, o arroio, as ramagens e o vento, se riam alegremente do meu
Príncipe. E além destes confortos a que o João, mestre-de-obras, com os olhos
loucamente arregalados chamava “as grandezas”, Jacinto meditava o bem das
almas. Já encomendara ao seu arquiteto, naquele campo da Carriça, junto à
capelinha que abrigava “os ossos”. Pouco a pouco, aí criaria também uma
biblioteca, com livros de estampas, para entreter, aos domingos, os homens a
quem já não era possível ensinar a ler. Eu vergava os ombros, pensando: – “Aí
vem a terrível acumulação das Nações! Eis o livro invadindo a Serra!” Mas outras
idéias de Jacinto eram tocantes – e eu mesmo me entusiasmei, e excitei o
entusiasmo da tia Vicência com o seu plano duma Creche, onde ele esperava ter
manhãs muito divertidas vendo as criancinhas a gatinhar, a correr tropegamente
atrás duma bola. De resto, o nosso boticário de Guiães estava já apalavrado
para estabelecer uma pequena farmácia em Tormes, sob a direção do seu
praticante, um afilhado da tia Vicência, que tinha publicado um artigo sobre as
festas populares do Douro no Almanaque
de Lembranças. E já fora oferecido o partido médico de Tormes, com ordenado
de 600$000 réis.
– Não te falta senão um Teatro! – dizia
eu, rindo.
– Um teatro, não. Mas tenho a idéia
duma sala, com projeções de lanterna mágica, para ensinar a esta pobre gente as
cidades desse mundo, e as coisas de África, e um bocado de História.
E também me ensoberbeci com esta
inovação! – e quando a contei ao tio Adrião, o digno antiquário bateu, apesar
do seu reumatismo, uma palmada tremenda na coxa. “Sim, senhor! Bela idéia!
Assim se podia ensinar àquela gente iletrada, vivamente, pôr imagens, a
História Romana, até a História de Portugal!…” E voltado para a prima
Joaninha, o tio Adrião declarou um “homem de coração!”
E realmente pela Serra crescia a
popularidade do meu Príncipe. Naquele, “guarde-o Deus, meu senhor!” com que as
mulheres ao passar o saudavam, se voltavam para o ver ainda, havia uma
seriedade de oração, o bem sincero desejo de que Deus o guardasse sempre. As
crianças a quem ele distribuía tostões farejavam de longe a sua passagem – e
era em torno dele um escuro formigueiro de caritas trigueiras e sujas, com
grandes olhos arregalados, que se ainda tinham pasmo, já não tinham medo. Como
o cavalo de Jacinto uma tarde se chapara, ao desembocar da alameda, numas
grossas pedras que aí deformavam a estrada, logo ao outro dia um bando de
homens, sem que Jacinto o ordenasse, veio pôr dedicação ensaibrar e alisar
aquele pedaço perigoso de caminho, aterrados com o risco que correra o bom
senhor. Já pela serra se espalhava esse nome de “bom senhor”. Os mais idosos da
freguesia não o encontravam sem exclamarem, uns com gravidade, outros com
grandes risos desdentados:
– Este
é o nosso benfeitor! Pôr
vezes, alguma velha corria do fundo do eido, ou vinha à porta do casebre, ao
avistá-lo no caminho, para gritar, com grandes gestos dos braços magros: “Ai
que Deus o cubra de bênçãos! Que Deus o cubra de bênçãos!”
Aos domingos, o padre José Maria (bom
amigo meu e grande caçador) vinha de Sandofim, na sua égua ruça, a Tormes, para
celebrar a missa na Capelinha. Jacinto assistia ao ofício na sua tribuna, como
os Jacintos de outras eras, para que aqueles simples o não supusessem estranho
a Deus. Quase sempre então ele recebia presentes, que as filhas dos caseiros,
ou os pequenos, vinham muito corados, trazer-lhe à varanda, e eram vasos de
manjericão, ou um grosso ramalhete de cravos, e pôr vezes um gordo pato. Havia
então uma distribuição de cavacas e merengues de Guiães, às raparigas e às
crianças – e, no pátio, para os homens circulavam as infusas de vinho branco. O
Silvério já sustentava com espanto, e redobrado respeito, que o Sr. D. Jacinto
em breve disporia de mais votos nas eleições que o Dr. Alípio. E eu próprio me
impressionei, quando o Melchior me contou que o João Torrado, um velho singular
daqueles sítios, de grandes barbas brancas, ervanário, vagamente alveitar, um
pouco adivinho, morador misterioso duma cova no alto da serra, a todos afirmava
que aquele senhor era El-Rei D. Sebastião, que voltara!
Capítulo XII
Assim chegou Setembro, e com ele o meu
natalício, que era a 3 e num Domingo. Toda essa semana a passara eu em Guiães,
nos preparos da vindima – e de manhã cedo, nesse Domingo ilustre, me fui
debruçar da varanda do quarto do saudoso tio Afonso, vigiando a estrada, pôr
onde devia aparecer meu Príncipe, que enfim visitava a casa do seu Zé
Fernandes. A tia Vicência, desde a madrugada, andava atarefada pela cozinha e
pela copa, porque, desejando mostrar ao meu Príncipe “o pessoal” da serra,
convidar para jantar algumas famílias amigas, dos arredores, as que tinham
carruagens ou carroções, e podiam, pelas estradas mal seguras, recolher tarde,
depois dum bailarico campestre, no pátio, já enfeitado para esse efeito de
lanternas chinesas. Mas logo às dez horas me desesperei, ao receber, pôr um
moço da Flor da Malva, uma carta da prima Joaninha, em que dizia “a pena de não
poder vir porque o Papá estava desde a véspera com um leicenço, e ela não o
queria abandonar”. Corri indignado à cozinha, onde a tia Vicência presidia a um
violento bater de gemas de ovos dentro duma imensa terrina.
– A Joaninha não vem ! Sempre assim!
Diz que o pai tem um incenso… Aquele tio Adrião escolhe sempre os grandes
dias para Ter leicenços, ou para Ter a pontada…
A boa face redondinha e corada da tia
Vicência enterneceu-se.
– Coitado! Será em sítio que não se
pudesse sentar na carruagem! Coitado! Olha, se lhe escreveres, diz-lhe que
ponha um emplastrozinho de folhas de alecrim. Era com que teu tio se dava bem.
Eu gritei simplesmente para o moço, que
dava de beber ao burro no pátio:
– Diz à Srª D. Joaninha que sentimos
muito… Que talvez eu lá apareça amanhã.
E voltei à janela, impaciente, porque o
relógio do corredor, muito atrasado, já cantara a meia hora depois das dez e o
Príncipe tardava para o almoço. Mas , mal eu me chegara à varanda, apareceu
justamente na volta da estrada Jacinto, de grande chapéu de palha, no seu
cavalo, seguido do Grilo que, também de chapéu de palha, e abrigado sob um
imenso guarda-sol verde, se escarranchava no albardão da velha égua de
Melchior. Atrás, um moço com uma maleta à cabeça. E eu, na alegria de avistar
enfim meu Príncipe trotando para a minha casa de aldeia, no dia dos meus trinta
e seis anos, pensava noutro natalício, no dele, em Paris, no 202, quando, entre
todos os esplendores da Civilização, nós bebemos tristemente ad manes, aos nossos mortos!
– Salve! – gritei da varanda. – Salve, domine Jacinthi!
E entoei, para o acolher, um alegre
“tarantantan”, o hino da carta!
– Isto pôr aqui também é lindo! –
gritou ele de baixo. – E o teu palácio tem um soberbo ar… Pôr onde é a porta?
Mas eu já me precipitava para o pátio –
onde Jacinto, apeando, contou alegremente os tormentos do Grilo, que nunca
montara a cavalo, e não cessara de berrar ante os perigos daquela ventura.
E o digno preto, ofegante, lustroso de
suor, e lívido sob o esplendor da sua negrura, exclamava, apontando com a mão
trêmula para a pobre égua, que solta, de cabeça pensativa, parecia de pedra,
sobre as patas mais imóveis que marcos:
– Pois se o siô Fernandes visse! Uma fera, que nunca
veio quieta. Sempre para a esquerda, sempre para a direita, pé aqui, pé além!
Só para me sacudir! Só para me sacudir!
E não resistiu. Com a ponta do
guarda-sol atirou uma pontoada vingativa contra a égua sobre o albardão.
Subindo a escadaria ligeira, penetrando
no alegre corredor, com a sua janela ao fundo engrinaldada de rosinhas, Jacinto
louvava grandemente a nossa casa, que o repousava das rijas muralhas, das
grossas portas feudais de Tormes. E no seu quarto agradeceu os cuidados maternais
da tia Vicência, que enchera de flores os dois vasos da china sobre a cômoda, e
adornara a cama com uma das nossas colchas da Índia mais ricas, cor de canário
com grandes aves de ouro. Eu sorria, enternecido. Então estreitamos os ossos
num grande abraço, pelo natalício… “Trinta e oito, hem Zé Fernandes?” –
“Trinta e quatro, animal!” E o meu Príncipe abrindo a mala, sóbria maleta de
filósofo, ofereceu os “nobres presentes, que são devidos”, como diz sempre o
astuto Ulisses naOdisséia. Era um alfinete de gravata, com uma safira,
uma cigarreira de aro fosco, adornada de um florido ramo de macieira em
delicado esmalte, e uma faca para livros de velho lavor chinês. Eu protestava
contra a prodigalidade.
– É tudo das malas de Paris…
Mandei-as abrir ontem à noite.
E tomei a liberdade de trazer esta
lembrança à tua tia Vicência. Não vale nada… É só pôr Ter pertencido à
princesa de Lamballe. Era uma caldeirinha de água benta, em prata lavrada, dum
gosto florido e quase galante.
– A tia Vicência não sabe quem é a
princesa de Lamballe, mas ficará encantada! E é uma garantia, porque ela
suspeita da tua religião, como homem de Paris, da terra das impiedades… E
agora, lavar, escovar, e ao almoço!
A tia Vicência pareceu toda
surpreendida, e logo encantada com o meu camarada, que ela supusera realmente
um Príncipe, arrogante, escarpado e difícil. Quando ele lhe ofereceu a
caldeirinha, com um delicado pedido “para se lembrar dele nas suas orações”,
duas largas rosas, mais róseas e frescas que as rosas que enchiam a mesa,
cobriam as faces redondas da boa senhora, que nunca recebera tão piedoso
presente, com tão linda palavra. Mas o que sobretudo a cativou foi o tremendo
apetite de Jacinto, a entusiasmada convicção com que ele, acumulando no prato
montes de cabidela, depois altas serras de arroz de forno, depois bifes de
numerosa cebolada, exaltava a nossa cozinha, jurava nunca Ter provado nada tão
sublime. Ela resplandecia:
– Até faz gosto, até faz gosto!… Ora
mais uma destas batatinhas recheadas…
– Com certeza, minha senhora! Até duas!
As minhas rações, em mesas destas, tão perfeitas, são sempre as de Gargântua.
– Não cites Rabelais, que a tia
Vicência não conhece os autores profanos! – exclamava eu, também radiante. – E
prova esse vinho branco cá da nossa lavra, e louva Deus que amadurece tal uva.
E o almoço foi muito alegre, muito
íntimo, muito conversado, sobre as obras de Jacinto em Tormes, e a sua Creche,
que enlevava a tia Vicência, e as esperanças da vindima, e a minha prima
Joaninha, que tinha o papá doente, e o péssimo estado dos caminhos. Mas o
enternecimento maior foi quando, ao servir o café, o criado pôs ao lado de
Jacinto um pires com um pau de canela, o seu estranho e costumado pau de
canela.
Não o esquecera a tia Vicência! Ali
tinha o seu pauzinho de canela! – Queria que ele, em Guiães, continuasse os
seus hábitos como em Tormes… E aquele pau de canela foi o símbolo de adoção
do meu Príncipe como novo sobrinho da tia Vicência.
Ela em breve recolheu à cozinha, aos
preparativos do banquete. Nós fumamos um preguiçoso charuto no jardim, ao pé do
repuxo, sob a recolhida sombra do cedro. Depois, inexoravelmente, como
proprietário, mostrei ao meu Príncipe a propriedade toda, com desapiedada
minuciosidade, sem lhe perdoar uma leira, um regueiro, uma árvore, um pé de
vinha. Só quando a sua face começou a opar e a empalidecer, de cansaço, e que
do entendimento totalmente atordoado só lhe escorria um vago – “muito bonito!
Bela terra!” é que voltei os passos para casa, tornejando ainda numa volta
larga para lhe mostrar o lagar, uma plantação de espargos, e o sítio onde
existira a ruína dum velho castro romano. Ao penetrarmos de novo, pelo jardim,
na fresca sala, ainda o empurrei, como uma rês, para a livraria do meu bom tio
Afonso, para lhe mostrar as preciosidades, uma magnífica crônica de D. João I
pôr Fernão Lopes, a primeira edição do Imperador Clarimundo, uma Henriada, com
a assinatura de Voltaire, forais de El-Rei D. Manuel, e outras maravilhas. Ele
respirava fechando o derradeiro pergaminho, quando eu o arrastei à adega, para
que admirasse a famosa pipa, que tinha, em relevo, na madeira do tampo, as
complicadas armas dos Sandes. Eram quatro horas. O meu Príncipe tinha o ar
esgazeado e lívido. Cravando nele os olhos inexoráveis, olhos em que eu mesmo
sentia reluzir a ferocidade, declarei “que iríamos agora ver a tulha”. Mas
então, com as mãos nos rins, ele murmurou, humildemente, num murmúrio de
criança:
– Não se me dava de me sentar um
poucochinho!
Tive então piedade, abri as garras,
deixei que ele se arrastasse, atrás de mim, para o seu quarto, onde
freneticamente descalçou as botas, se atirou para um fresco canapé forrado de
ganga, murmurando num abatimento profundo: – “Bela propriedade!”
Consenti generosamente que ele
adormecesse – e eu mesmo desci a verificar se a Gertrudes dispusera bem as
escovas, as toalhas de renda, no quarto onde os convidados, em breve, ao
chegar, lavariam as mãos, escovariam a poeira da estrada. E justamente, uma
caleche rodava no pátio, a velha caleche do D. Teotônio, com a parelha ruça.
Espreitando da janela descobri, com prazer, que chegava só, de gravata branca,
sob o guarda-pó, sem a horrendíssima filha. Corri alegremente ao quarto da tia
Vicência, que, ajudada pela Catarina, abrochava à pressa as suas pulseiras
ricas de topázios.
– Tia Vicência! chegou o D. Teotônio!
Felizmente vem sem a filha…Não se demore, os outros não tardam. O Manuel que
esteja bem penteado, de gravata bem tesa!… Vamos a ver como corre a festa!
Capítulo XIII
Ai de mim! a festa do meu aniversário
não se passou com brilho, nem com alegria!
Quando o meu Príncipe entrou na sala,
com uma elegância (onde eu senti as malas de Paris, abertas na véspera) – uma
rosa branca no jaquetão preto, colete branco lavrado e traspassado, copiosa
gravata de seda branca, tufando, e presa pôr uma pérola negra – já todos os
convidados estavam na sala – , o D.Teotônio, o Ricardo Veloso, o Dr. Alípio, o
gordo Melo Rebelo, de Sandofim, os dois manos Albergarias, da Quinta da Loja –
todos de pé, num pelotão cerrado. Em torno do sofá onde a tia Vicência se
instalara, um magotezinho de cadeiras reunira as senhoras – a Beatriz Veloso,
de cassa branca sobre seda, que a tornava mais aérea e magra, com a sua trunfa
imensa de cabelo riçado; as duas Rojões (com a tia Adelaide Rojão) vermelhinhas
como camoesas, ambas de branco; e a mulher do Dr. Alípio, de preto, esplêndida
como uma Vênus Rústica… E foi na sala, como se realmente entrasse um
Príncipe, desses países do Norte onde os Príncipes são magníficos, muito
distantes dos homens, e aterram as gentes. Um silêncio, como se o teto de
carvalho descesse, nos esmagava: e todos os olhos se enristaram contra o meu
desgraçado Jacinto, como numa caçada hindu, quando orla da floresta surge o
Tigre Real. Debalde – nas confusas, apressadas apresentações, com que eu o
levava através da sala – , os seus apertos de mão, os sorrisos, o vago
murmúrio, “da sua honra, do seus apertos de mão, os sorrisos, o vago murmúrio,
“da sua honra, do seu prazer”, foram repassados de simpatia, de simplicidade.
Todos os cavalheiros permaneciam reservados, observando o Príncipe, que subira
à serra; e as senhoras mais se aconchegavam à sombra da tia Vicência, como
ovelhas à volta do pastor, quando na altura assoma o lobo. Eu, já inquieto,
lancei o D.Teotônio, o mais ornamental daqueles cavalheiros.
– O Sr. Teotônio foi muito amável em
vir, Jacinto. Raras vezes sai da sua linda casa da Abrujeira.
O digno D.Teotônio sorriu, cofiando os
espessos bigodes brancos, de velho brigadeiro:
– V.Exª chegou diretamente de Viena?
– Não! – Jacinto viera diretamente de
Paris, com o amigo Zé Fernandes. D Teotônio insistiu:
– Mas certamente visita muitas vezes
Viena…
Jacinto sorriu surpreendido:
– Viena, pôr que?… Não. Há mais de
quinze anos que não vou a Viena.
O fidalgo murmurou um lento ah! e ficou calado, de pálpebras baixas,
como revolvendo análises profundas, com as mãos cruzadas sob as abas da longa
sobrecasaca azul.
Eu então, vigilante, lancei o Dr.
Alípio:
– O nosso Doutor, meu caro Jacinto, é o
mais poderoso influente de todo o distrito.
O Doutor curvou a cabeça bem feita, com
um belo cabelo preto, admiravelmente alisado e lustroso. Mas a tia Vicência,
que se erguera do sofá., chamava o meu Príncipe, porque o Manuel anunciara o
jantar, mudamente, mostrando apenas, à porta da sala, a sua corpulenta pessoa –
–inteiriçado e vermelho.
À mesa, onde os pudins, as travessas de
doce de ovos, os antigos vinhos da Madeira e do Porto, nas suas pesadas
garrafas de cristal lapidado, fundiam com felicidade os seus tons ricos e
quentes, Jacinto ficou entre a tia Vicência e uma das Rojões, a Luisinha, sua
afilhada, que, pôr costume velho, quando jantava em Guiães, sempre se colocava
à sombra da sua boa madrinha. E a sopa, que era de galinha com macarrão, foi
comida num tão largo e pesado silêncio que eu, na ânsia de o quebrar, exclamei,
ao acaso, sem pensar que me achava em Guiães depois de tanto tempo e em minha
própria casa:
– Deliciosa, esta sopa!
Jacinto ecoou:
– Divina!!
Mas como todos os convidados certamente
estranharam este meu brado, e a excessiva admiração de Jacinto, o silêncio,
carregado de cerimônia, mais se carregou de embaraço. Felizmente a tia
Vicência, com aquele seu bom sorriso, observou que Jacinto parecia gostar da
comida portuguesa… e eu, sempre no intuito de animar a conversa, nem deixei
que o meu Príncipe confirmasse o seu amor da cozinha vernácula, e gritei:
– Como gostar! Mas é que delira!…
Pudera! Tanto tempo em Paris, privado dos pitéus lusitanos…
E como, ditosamente, me lembrara o
prato de arroz-doce preparado na ocasião do natalício de Jacinto, pelo
cozinheiro do 202, contei a história, profusamente, exagerando, afirmando que
esse arroz continha foie-gras,
e que sobre a sua ornamentada pirâmide flutuava a bandeira tricolor, pôr cima
do busto do conde de Chambord! Mas o arroz-doce de Paris, assim estragado tão
longe da Serra, não interessara ninguém. Puxou apenas alguns sorrisos de polida
condescendência, quando eu, alternadamente, me voltava para um cavalheiro, para
uma senhora, insistindo, exclamando: – Extraordinário, hem?
D. Teotônio observou, misteriosamente,
que o “cozinheiro sabia para quem cozinhava”. E a bela mulher do Dr. Alípio
ousou murmurar, corando:
– Havia de ser bonito prato, e talvez
não fosse mau!
Eu, sempre na ânsia de espiritualizar o
banquete, de produzir conversação, ataquei com desabrida alegria a Srª D.
Luísa, pôr ela assim defender a profanação do nosso grande acepipe nacional!
Mas, pobre de mim! tão excessiva e ruidosamente interpelei a formosa senhora,
que ela se enconchou, emudeceu, toda corada, e mais formosa assim. E outro
silêncio se abatia sobre a mesa, como uma névoa, quando a tia Vicência,
providencial, se desculpou para com Jacinto de não ter peixe! Mas quê! ali na
Serra era impossível, ainda a peso de ouro, ter peixe, a não ser a pescada salgada,
ou o bacalhau. O excelente Rojão, com aquele seu modo, tão suave que cada
sílaba para correr mais docemente parecia lubrificada com óleos santos, lembrou
que o Sr.D. Jacinto possuía uma larga faixa do rio douro com privilégio para a
pesca do sável. Jacinto não sabia, nem imaginava que houvesse sáveis… O Dr.
Alípio não se admirava porque essas pescas tinham sido vendidas ao Cunha
brasileiro, há vinte anos, na mocidade do Sr. D. Jacinto. E hoje, segundo D.
Teotônio, não valiam dois mil-réis. Se já não há sáveis!… E a propósito das
antigas pescas do Douro se iam formando, em torno da mesa, entre os homens mais
vizinhos, lentas cavaqueirinhas rurais, que as senhoras aproveitavam para
cochilar, no desabafo daquele silêncio cerimonioso, que viera pesando cada vez
mais desde a sopa até aos frangos guisados. Receoso de que essa orla de
murmúrios lentos, sem brilho e sem alegria, se estabelecesse de novo, me
abalancei (para animar) a interpelar Jacinto, recordando a famosa aventura do
peixe da Dalmácia encalhado no ascensor.
– Isso foi uma das melhores histórias
que nos sucederam em Paris! O Jacinto, pôr causa dum peixe muito raro, lhe
mandara o que… O Grão-Duque Casimiro, o irmão do Imperador…
Todos os olhos se desviaram para o meu
Jacinto, que se servia de ervilhas: – e o Melo Rebelo quase se engasgou, num
sorvo precipitado ao copo, para contemplar no meu amigo algum reflexo do
Grão-Duque. E eu contei, com profusão, o peixe encalhado, o Grão-Duque
pescando, o anzol feito com um gancho da Princesa de Carman, o duque de
Marizac, caindo quase no poço do elevador… Mas não se produziu um único riso,
e a atenção mesmo era dada com esforço, pôr cortesia. Debalde eu arremessava
aqueles nomes magníficos de príncipes e princesas, misturados a coisas
picarescas… Nenhum dos meus convidados compreendia o maquinismo do elevador,
um prato encalhado num poço negro… Perante o gancho da Princesa, as
Albergarias baixaram os olhos. E a minha deliciosa história morreu numa
reticência, ainda mais regelada pela exclamação inocente da tia Vicência:
– Ó! filho, que coisas!
Mas, como Jacinto se enfronhara de
repente numa larga conversa com a Luisinha Rojão, que ria, toda luminosa e
palradora – todos, como libertados do peso cerimonioso da sua presença augusta,
se lançaram nas conversinhas discretas, a que o champanhe, agora, depois do
assado, dava mais viveza. Eram os soturnos murmúrios, em torno da mesa, que
definitivamente se perpetuavam. Foi então que desisti de animar o jantar.
Mergulhei com a bela mulher do Dr. Alípio na grande questão social desse tempo
em Guiães, o casamento da D. Amélia Noronha com o feitor! E eu defendia a D.
Amélia, os direitos do amor, quando se alargou um silêncio – e era Jacinto, que
se debruçava, de copo na mão.
– Velho amigo Zé Fernandes, à tua!
Muitos e bons, e sempre em companhia de tua tia e minha senhora, a quem peço
para saudar.
Todos os copos, onde a espuma morria
sobre um fundo de champanhe, se ergueram num largo rumor de amizade, e boa
vizinhança. Eu acenei ao Manuel, vivamente, para encher os copos; e logo,
também de pé, atirando para trás a sobrecasaca:
– Meus senhores, peço uma grande saúde
para o meu velho amigo Jacinto, que pela primeira vez honra esta casa
fraternal… Que digo eu? que pela primeira vez honra com a sua presença a sua
querida pátria! E que pôr cá fique, pelas serras, muitos anos, todos bons. À
tua, meu velho!
Outro rumor correu pela mesa, mas
cerimonioso e sereno. A nossa oratória, positivamente, não incendiara as
imaginações!
A tia Vicência fez tilintar o seu copo,
quase vazio, com o de Jacinto, que tocou no copo da sua vizinha, a Luisinha
Rojão, toda resplandecente, e mais vermelha que uma peônia. Depois foi o
encadeamento de saúdes, com os copos quase vazios, entre todos os convidados,
sem esquecer o tio Adrião, e o Abade, ambos ausentes, ambos com furúnculos. E a
tia Vicência espalhava aquele olhar, que prepara o erguer, o arrastar de
cadeiras – quando d. Teotônio, erguendo o seu copo de vinho do Porto, com a
outra mão apoiada à mesa, meio erguido, chamou Jacinto, e numa voz respeitosa,
quase cava:
– Esta é toda particular, e entre
nós… Brindo o ausente!
Esvaziou o copo, como em religião,
pontificando. Jacinto bebeu assombrado, sem compreender. As cadeiras arrastavam
– eu dei o braço à tia Albergada.
E só compreendi, na sala, quando o Dr.
Alípio, com a sua chávena de café e o charuto fumegante, me disse, num daqueles
seus olhares finos, que lhe valiam a alcunha de Dr. Agudo: – “Espero que ao
menos, cá pôr Guiães, não se erga de novo a forca!…” E o mesmo fino olhar me
indicava o D. Teotônio, que arrastara Jacinto para entre as cortinas duma
janela, e discorria, com um ar de fé e de mistério. Era o miguelismo, pôr Deus!
O bom D. Teotônio considerava Jacinto como um hereditário, ferrenho miguelista
– e, na sua inesperada vinda ao seu solar de Tormes, entrevia uma missão
política, o começo duma propaganda enérgica, e o primeiro passo para uma
tentativa de Restauração. E na reserva daqueles cavalheiros, ante o meu
Príncipe, eu senti então a suspeita liberal, o receio duma influência rica,
nova, nas Eleições próximas, e a nascente, e a nascente irritação contra as
velhas idéias, representadas naquele moço, tão rico, de civilização tão
superior. Quase entornei o café, na alegre surpresa daquela sandice. E retive o
Melo Rebelo, que repunha a chávena vazia na bandeja, fitei, com um pouco de
riso, o Dr.Agudo.
– Então, francamente, os amigos
imaginam que o Jacinto veio para Tormes trabalhar no miguelismo?
Muito sério, Melo Rebelo chegou o seu
grosso bigode à minha orelha:
– Até corre, como certo, que o Príncipe
d. Miguel está com ele em Tormes!
E como eu os considerava esgazeado, o
Dr. Alípio – tão agudo! – confirmou:
– É o que corre… disfarçado em
criado!
Em criado? Ó! Santo Deus! Era o
Batista! Justamente, Ricardo Veloso veio, puxando do seu cigarrinho, para o
acender no meu charuto. E o bom Rebelo logo invocou o seu testemunho. – Pois
não corria, que o filho de D. Miguel estava em Tormes, escondido?…
– Disfarçado em lacaio – confirmou logo
o digno Rebelo.
Acendeu o cigarro, soprou o fumo, e
erguendo muito as sobrancelhas meditativas:
– Se assim é, lá me parece desplante…
Que eu não desgostava de o ver. Dizem que é bonito moço, bem apessoado. Mas
enfim, meu tio João Vaz Rebelo foi partido às postas, a machado, nas prisões de
Almeida… E se recomeçam essas questões, mau, mau! Ora o seu amigo…
Emudeceu. Jacinto, que se libertara do
velho d. Teotônio, e ainda conservava um resto de riso, de assombro divertido,
vinha para mim, desabafar.
– Extraordinário! Vejo que aqui, na
serra, ainda se conservam, sem uma ruga, as velhas e boas idéias…
Imediatamente, sem se conter, Melo
Rebelo acudiu:
– É conforme o que V. Exª chama boas
idéias.
E eu agora, furioso com aquela disparada
invenção, que cercava de hostilidade o meu pobre Jacinto, estragava aquela
amável noite de anos, intervim, vivamente:
– Tu jogas o voltarete, Jacinto? Não
jogas… então vamos arranjar duas mesas… O D. Teotônio há de querer cartas.
E arrastei Jacinto para as senhoras,
que de novo se aninhavam à sombra da tia Vicência, estabelecida no seu canto do
sofá. Todos se calavam, parecia encolherem-se ante a aparição do meu Príncipe,
como pombas avistando o abutre. E deixei o temido homem afirmando à mulher do Dr.
Alípio (um pouco desgarrada do banho das aves tímidas) que lhe dera grande
prazer aquela ocasião de conhecer as suas vizinhas de Tormes… ela abrira
nervosamente o leque, sorria, e nunca decerto Jacinto admirara na Cidade uma
boca mais vermelha, dentinhos mais rutilantes. Mas depois de organizar a mesa
do voltarete, tive de abancar, eu, para substituir o Manuel Albergaria, que era
dispéptico, se declarara “afrontado”, e desejava respirar um momento na
varanda. Todos aqueles cavalheiros, de resto, se queixavam de calor. Mandei
abrir as janelas que davam sobre as mimosas do pátio. O Veloso, ao baralhar,
parava, bufando, como oprimido:
– Está abafado… Ainda temos trovoada!
E o Dr. Alípio, inquieto, porque tinha
uma hora de estrada até casa, e uma das éguas da caleche era escabreada, correu
à janela, espreitar o céu, que enegrecera, morno e pesado.
– Com efeito, vai cair água.
As hastes das mimosas ramalhavam,
arrepiadas; e o ar que agitava as cortinas era intermitente, estonteado.
Decerto na sala, entre as senhoras, surgira a mesma inquietação, porque a tia
Albergaria apareceu, avisando o mano Jorge.
Era prudente pensar em partir, a noite
ameaçava… E o Dr. Alípio, puxando o relógio, propôs que levantada aquela
remissa, se preparasse a marcha. Justamente o albergaria recolhia da varanda
desafrontado, aliviado com um cálice de genebra: e retomou as suas cartas,
anunciando também que vinha aí uma trovoada valente.
Voltando à sala, encontrei Jacinto
muito alegre entre as senhoras, que se familiarizaram, escutando, cheias de
riso e gosto, a história da sua chegada a Tormes, sem malas, sem criados, tão
desprovido que dormira com a camisa da caseira! Mas a minha pobre noite de anos
findava, desorganizada. A tia Albergaria rondava de janela em janela, assustada
com a volta à Roqueirinha, espreitando a treva abafada. Calçando lentamente as
luvas, a bela mulher do Dr. Alípio perguntava se ainda havia a remissa. E a tia
Vicência apressara o chá, que o Manuel, seguido pela Gertrudes, com a bandeja
de bolos, já começava a servir às senhoras. Jacinto, de pé, oferecendo
chávenas, gracejava:
– Então tanta pressa, tanto medo, pôr
causa duma trovoadinha?
Elas replicavam, familiarizadas, numa
crescente simpatia pelo meu Príncipe:
– Ora o senhor fala bem, porque fica
debaixo de telhas…
– Sempre o queríamos ver… se fosse
agora para Tormes, com esta noite cerrada!
O volante findara nas duas mesas: e
aqueles cavalheiros, das janelas, gritavam ordens para o pátio negro, onde as
carruagens esperavam atreladas:
– Desce a cabeça da vitória, ó Diogo!
– Acende o lampião, Pedro! Sempre ajuda
a luz das lanternas.
A criada Quitéria chagava à porta com
os braços carregados de xales, de mantilhas de renda. Como uma das Albergarias
ia no assento de diante, na vitória, eu corri a buscar o meu casaco de
borracha, para ela se abrigar, se a chuva viesse. E só o D. Teotônio, que tinha
até casa apenas meia légua de estrada boa, se não apressava, filiado outra vez
no meu Príncipe, que levava para os cantos mais solitários, em conversas
profundas, que o seu dedo solene, espetado, sublinhava gravemente. Mas a tia
Albergaria gritou que já chovia – e então foi uma pressa das senhoras, que
beijocavam vivamente a tia Vicência, enquanto os homens, na antecâmara,
enfiavam açodadamente os paletós.
Jacinto e eu descemos ao pátio para
acompanhar aquela debandada – e uma a uma, a traquitana do Dr. Alípio, a
vitória das Albergarias a velha e imensa caleche dos Velosos, rolaram sob a
noite, entre os nossos desejos de boa jornada. Pôr fim D. Teotônio calçou as luvas
pretas e entrou para sua caleche, dizendo a Jacinto:
– Pois, primo e amigo, Deus permita
que, do nosso encontro, e do mais que se passar, algum bem resulte a esta
terra!
Subindo a escada, o meu Príncipe
desabafou:
– Este Teotônio é extraordinário! Sabes
o que descobri pôr fim?… Que me toma pôr um miguelista, e imagina que eu vim
para Tormes preparar a restauração de D. Miguel?!
– E tu?
– Eu fiquei tão espantado, que nem o
desiludi!
– Pois sabe mais, meu pobre amigo.
Todos pensam o mesmo, estão desconfiados, e receiam ver de novo erguidas as
forcas em Guiães! E corre que tu tens o Príncipe D. Miguel escondido em Tormes,
disfarçado em criado. E sabes quem ele é? o Batista!
– Isso é sublime! – murmurou Jacinto,
com uns grandes olhos abertos.
Na sala, a tia Vicência esperava-nos
desconsolada, entre todas as luzes, que ardiam ainda no silêncio e paz do serão
debandado:
– Ora uma coisa assim! Nem quererem
ficar para tomar um copinho de geléia, um cálice de vinho do Porto!
– Esteve tudo muito desanimado, tia Vicência!
– exclamei desafogando o meu tédio. – Todo esse mulherio emudeceu; os amigos
com um ar desconfiado…
Jacinto protestou, muito divertido,
muito sincero:
– Não! pelo contrário. Gostei menso.
Excelente gente! E tão simples… todas estas raparigas me pareceram ótimas. E
tão frescas tão alegres! Vou ter aqui bons amigos, quando verificarem que não
sou miguelista.
Então contamos à tia Vicência a
prodigiosa história de D. Miguel escondido em Tormes… Ela ria! Que coisa! E
mau seria…
– Mas o Sr. Jacinto, não é?
– Eu, minha senhora, sou socialista…
Acudi explicando à tia Vicência que
socialista era ser pelos pobres. A doce senhora considerava esse partido o
melhor, o verdadeiro:
– O meu Afonso, que Deus haja, era
liberal… Meu pai também, e até amigo do Duque da Terceira…
Mas um rude trovão rolou, atroou a
noite negra: – e uma bátega de água cantou nos vidros, e nas pedras da varanda.
– Santa Bárbara! – gritou a tia
Vicência. – Ai aquela pobre gente!… Até estou com cuidado… As Rojões, que vão
na vitória!
E correu para o quarto, na sua pressa
de acender as duas velas costumadas no oratório, ainda antes de ir guardar as
pratas, e rezar o terço com a Gertrudes.
Capítulo XIV
Ao outro dia, depois do almoço, eu e
Jacinto montamos a cavalo para um grande passeio até a Flor da Malva, a saber
de meu tio Adrião, e do seu furúnculo. E sentia uma curiosidade interessada, e
até inquieta, de testemunhar a impressão que daria ao meu Príncipe aquela nossa
prima Joaninha, que era o orgulho da nossa casa. Já nessa manhã, andando todos
no jardim a escolher uma bela rosa-chá para a botoeira do meu Príncipe, a tia
Vicência celebrara com tanto fervor a beleza, a graça, a caridade, e a doçura
da sua sobrinha toda-amada, que eu protestei:
– Ó! tia Vicência, olhe que esses
elogios todos competem apenas à virgem Maria! A tia Vicência está a cair em
pecado de idolatria! O Jacinto depois vai encontrar uma criatura apenas humana,
e tem um desapontamento tremendo!
E agora, trotando pela fácil estrada de
Sandofim, lembrava-me aquela manhã, no 202, em que Jacinto encontrara o retrato
dela no meu quarto, e lhe chamara uma lavradeirona.
Com efeito, era grande e forte a Joaninha. Mas a fotografia datada do seu tempo
de viço rústico, quando ela era apenas uma bela, forte e sã planta da serra.
Agora entrava nos vinte e cinco, e já pensava, e sentia – e a alma que nela se
formara, afinara, amaciara, e espiritualizava o seu esplendor rubicundo.
A manhã, com o céu todo purificado pela
trovoada da véspera, e as terras reverdecidas e lavadas pelos chuviscos
ligeiros, oferecia uma doçura luminosa, fina, fresca que tornava doce, como diz
o velho Eurípedes ou o velho Sófocles, mover o corpo, e deixar a alma
preguiçar, sem pressa nem cuidados. A estrada não tinha sombra, mas o sol batia
muito de leve, e roçava-nos com uma carícia quase alada. O vale parecia a
Jacinto, que nunca ali passara, uma pintura da Escola Francesa do século XVIII,
tão graciosamente nele ondulavam as terras verdes, e com tanta paz e frescura
corria o risonho Serpão, e tão afáveis e prometedores de fartura e
contentamento alvejavam os casais nas verduras tenras! Os nossos cavalos
caminhavam num passo pensativo, gozando também a paz da manhã adorável. E não
sei, nunca soube, que plantazinhas silvestres e escondidas espalhavam um
delicado aroma, que tantas vezes sentira, naquele caminho, ao começar o Outono.
– Que delicioso dia! – murmurou
Jacinto. – Este caminho para a Flor da Malva é o caminho do Céu… Ó Zé
Fernandes, de que é este cheirinho tão doce, tão bom?
Eu sorri, com certo pensamento:
– Não sei… É talvez já o cheiro do
Céu!
Depois, parando o cavalo, apontei com o
chicote para o vale:
– Olha, acolá, onde está aquela fila de
olmos, e há o riacho, já são terras do tio Adrião. Tem ali um pomar, que dá os
pêssegos mais deliciosos de Portugal… Hei de pedir à prima Joaninha que te
mande um cesto deles. E o doce que ela faz com esses pêssegos, menino, é alguma
coisa de celeste. Também lhe hei de pedir que te mande o doce.
Ele ria:
– Será explorar demais a prima
Joaninha.
E eu (pôr quê?) recordei e atirei ao
meu Príncipe estes dois versos duma balada cavalheiresca, composta em Coimbra
pelo meu pobre amigo Procópio:
-Manda-lhe um servo querido,
Bem hajas dona formosa!
E que lhe entregue um anel
E com um anel uma rosa.
Jacinto riu alegremente:
– Zé Fernandes, seria excessivo, só pôr
causa de meia dúzia de pêssegos, e dum boião de doce.
Assim ríamos, quando apareceu, à volta
da estrada, o longo muro da Quinta dos Velosos, e depois a capelinha de S. José
de Sandofim. E imediatamente piquei para o largo, para a taberna do Torto, pôr
causa daquele vinhinho branco, que sempre, quando pôr ali a levo, a minha alma
me pede. O meu Príncipe reprovou, indignado:
– Ó! Zé Fernandes, pois tu, a esta
hora, depois de almoço, vais beber vinho branco?
– É um costumezinho antigo… Aqui à
taberninha do Torto…Um decilitrozinho… A almazinha assim, mo pede.
E paramos; eu gritei pelo Manuel, que
apareceu, rebolando a sua grossa pança, sobre as pernas tortas, com a infusa
verde, e um copo.
– Dois copos, Torto amigo. Que aqui
este cavalheiro também aprecia.
Depois dum pálido protesto, o meu
Príncipe também quis, mirou o límpido e dourado vinho ao sol, provou, e
esvaziou o copo, com delícia, e um estalinho de alto apreço.
– Delicioso vinho!… Hei de querer
deste vinho em Tormes…É perfeito.
– Hem? Fresquinho, leve, aromático,
alegrador, todo alma!…Encha lá outra vez os copos, amigo Torto. Este
cavalheiro aqui é o Sr. D. Jacinto, o fidalgo de Tormes.
Então, de trás da ombreira da taberna,
uma grande voz bradou, cavamente, solenemente:
– Bendito seja o Pai dos Pobres!
E um estranho velho, de longos cabelos
brancos, barbas brancas, que lhe comiam a face cor de tijolo, assomou no vão da
porta, apoiado a um bordão, com uma caixa de lata a tiracolo, e cravou em
Jacinto dois olhinhos dum negro, que faiscavam. Era o tio João Torrado, o
profeta da Serra… Logo lhe estendi a mão, que ele apertou, sem despegar de
Jacinto os olhos, que se dilatavam mais negros. Mandei vir outro copo,
apresentei Jacinto, que corara, embaraçado.
– Pois aqui o tem, o senhor Jacinto,
que corara, embaraçado.
– Pois aqui o tem, o senhor de Tormes,
que fez pôr aí todo esse bem à pobreza.
O velho atirou para ele bruscamente o
braço, que saía cabeludo e quase negro duma manga muito curta.
– A mão!
E quando Jacinto lha deu, depois de
arrancar vivamente a luva, João Torrado longamente lha reteve com um sacudir
lento e pensativo, murmurando:
– Mão real, mão de dar, mão que vem de
cima, mão já rara!
Depois tomou o copo, que lhe oferecia o
Torto, bebeu com imensa lentidão, limpou as barbas, deu um jeito à correia que
lhe prendia a caixa de lata, e batendo com a ponta do cajado no chão:
– Pois louvado seja nosso Senhor Jesus
Cristo, que pôr aqui me trouxe, que não perdi o meu dia, e vi um homem!
Eu então debrucei-me para ele, mais em
confidência:
– Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é
certo você dizer pôr aí, pelos sítios, que El-Rei D. Sebastião voltara?
O pitoresco velho apoiou as duas mãos
sobre o cajado, o queixo de espalhada barba sobre as mãos, e murmurava, sem nos
olhar, como seguindo a percussão dos seus pensamentos:
– Talvez voltasse, talvez não
voltasse… Não se sabe quem vai, nem quem vem. A gente vê os corpos, mas não
vê as almas que estão dentro. Há corpos de agora com almas de outrora. Corpo é
vestido, alma é pessoa…Na feira da Roqueirinha quem sabe com quantos reis
antigos se topa, quando se anda aos encontrões entre os vaqueiros… Em ruim
corpo se esconde bom senhor!
E como ele findara num murmúrio, eu,
atirando um olhar a Jacinto, para gozarmos aqueles estranhos, pitorescos modos
de vidente, insisti:
– Mas, ó tio João, você realmente, em
sua consciência, pensa que El-Rei D. Sebastião não morreu na batalha?
O velho ergueu para mim a face, que
enrugara numa desconfiança:
– Essas coisas são muito antigas. E não
calham bem aqui à porta do Torto. O vinho era bom, e V. Srª tem pressa, meu
menino! A flor da Flor da Malva lá tem o paizinho doente… Mas o mal já vai
pela serra abaixo com a inchação às costas. Dá gosto ver quem dá gosto aos
tristes. Pôr cima de Tormes há uma estrela clara. E é trotar, trotar, que o dia
está lindo!
Com a magra mão lançou um gesto para
que seguíssemos. E já passávamos o cruzeiro, quando o seu brado ardente de novo
reboou, com solenidade cava:
– Bendito seja o Pai dos Pobres!
Direito, no meio da estrada, erguia o
cajado como dirigindo as aclamações dum povo. E Jacinto pasmava de que ainda
houvesse no reino um Sebastianista.
– Todos o somos ainda em Portugal,
Jacinto! Na serra ou na cidade cada um espera o seu D. Sebastião. Até a lotaria
da Misericórdia é uma forma de Sebastianismo. Eu todas as manhãs, mesmo sem ser
de nevoeiro, espreito, a ver se chega o meu.. Ou antes a minha, porque eu
espero uma D. Sebastiana… E tu, felizardo?
– Eu? Uma D. Sebastiana? Estou muito
velho, Zé Fernandes… Sou o último Jacinto; Jacinto ponto final… Que casa é
aquela com os dois torreões?
– A Flor da Malva.
Jacinto tirou o relógio:
– São três horas. Gastamos hora e
meia… Mas foi um belo passeio, e instrutivo. É lindo este sítio.
Sobre um outeirinho, afastada da
estrada pôr arvoredo, que um muro cerrava, e dominando, a Flor da Malva voltava
para o Oriente e para o Sol a sua longa fachada com os dois torreões quadrados,
onde as janelas, de varanda, eram emolduradas em azulejos. O grande portão de
ferro, ladeado pôr dois bancos de pedra, ficava ao fundo do terreirinho, onde
um imenso castanheiro derramava verdura e sombra. Sentado sobre as fortes
raízes descarnadas da grande árvore, um pequeno esperava segurando um burro pela
arreata,
– Está pôr aí o Manuel da Porta?
– Ainda agora subiu pela alameda.
– Bem: empurra lá o portão.
E subimos, pôr uma curta avenida de
velhas árvores, até outro terreiro, com um alpendre, uma casa de moços, toda
coberta de heras, e uma casota de cão, de onde saltou, com um rumor de corrente
arrastada, um molosso, o Tritão, que eu logo sosseguei fazendo-lhe reconhecer o
seu velho amigo Zé Fernandes. E o Manuel da Porta correu da fonte, onde enchia
um grande balde, para nos segurar os cavalos.
– Como está o tio Adrião?
Surdo, o excelente Manuel sorriu,
deleitado:
– E então vossa excelência, bem? A Srª
D. Joaninha ainda agora andava no laranjal com o pequeno da Josefa.
Seguimos pôr ruazinhas bem areadas,
orladas de alfazema e buxo alto, enquanto eu contava ao meu Príncipe que aquele
pequenito da Josefa era um afilhadinho da prima Joana, e agora o seu encanto e
o seu cuidado todo.
– Esta minha santa prima, apesar de
solteira, tem aí pela freguesia uma verdadeira filharada. E não é só dar-lhes
roupas e presentes, e ajudar as mães. Mas até os lava, e os penteia, e lhes
trata as tosses. Nunca a encontro sem alguma criancita ao colo… Agora anda na
paixão deste Josezinho.
Mas quando chegamos ao laranjal, à
beira da larga rua da Quinta que levava ao tanque, debalde procurei, e me
embrenhei, e até gritei: – Eh, prima Joaninha!…
– Talvez esteja lá para baixo, para o
tanque…
Descemos a rua, entre árvores, que a
cobriam com as densas ramas encruzadas. Uma fresca, límpida água de regra
corria e luzia num caneiro de pedra. Entre os troncos, as roseiras bravas ainda
tinham uma frescura de Verão. E o pequeno campo, que se avistava para além,
rebrilhava com doçura, todo amarelo e branco, dos malmequeres e botões de ouro.
O tanque, redondo, fora esvaziado para
se lavar, e agora de novo o repuxo o ia enchendo duma água muito clara, ainda
baixa, onde os peixes vermelhos se agitavam na alegria de recuperarem o seu
pequeno oceano. Sobre um dos bancos de pedra que circundavam o tanque, pousava
um cesto cheio de dálias cortadas. E um moço, que sobre uma escada podava as
camélias, vira a Srª D. Joana seguir para o lado da parreira. Marchamos para a
parreira, ainda toda carregada de uva preta. Duas mulheres, longe, ensaboavam
num lavadouro, na sombra de grandes nogueiras. Gritei: – Eh lá? Vocês viram pôr
aí a Srª D. Joana? Uma das moças esganiçou a voz, que se perdeu no vasto ar
luminoso e doce.
– Bem vamos a casa! Não podemos farejar
assim, toda a tarde.
– É uma bela Quinta – murmurava o meu
Príncipe, encantado.
– Magnífica! E bem tratada… O tio
Adrião teve um feitor excelente… Não é o teu Melchior. Observa, aprende,
lavrador! Olha aquele cebolinho!
Passamos pela horta, uma horta
ajardinada, como sonhara o meu Príncipe, com os seus talhões debruados de
alfazema, e madressilva enroscada nos pilares de pedra, que faziam ruazinhas
frescas toldadas de parra densa. E demos volta à capela, onde crescia aos dois
lados da porta uma roseira-chá, com uma rosa única, muito aberta, e uma moita
de baunilha, onde Jacinto apanhou um raminho para cheirar. Depois entramos no
terraço em frente da casa, com a sua balaustrada de pedra, toda enrodilhada de
jasmineiros amarelos. A porta envidraçada estava aberta e subimos pela
escadaria de pedra, no imenso silêncio em que toda a Flor da Malva repousava,
até a antecâmara, de altos tetos apainelados, com longos bancos de pau, onde
desmaiavam na sua velha pintura as complicadas armas dos Cerqueiras. Empurrei a
porta duma outra sala, que tinha as janelas da varanda abertas, cada uma com a
gaiola dum canário.
– É curioso! – exclamou Jacinto. –
Parece o meu Presépio… E as minhas cadeiras.
E com efeito. Sobre uma cômoda antiga,
com bronzes antigos, pousava um presépio, semelhante ao da livraria de Jacinto.
E as cadeiras de couro lavrado tinham, como as que ele descobrira no sótão,
umas armas sob um chapéu de Cardeal.
– Ó senhores! – exclamei. – Não haverá
um criado?
Bati as mãos, fortemente. E o mesmo
doce silêncio permaneceu, muito largo, todo luminoso e arejado pelo macio ar da
Quinta, apenas cortado pelo saltitar dos canários nos poleiros das gaiolas.
– É o palácio da Bela adormecida no
bosque! – murmurou Jacinto, quase indignado. – Dá um berro!
– Não, caramba! Vou lá dentro!
Mas, à porta, que de repente se abriu,
apareceu minha prima Joaninha, corada do passeio e do vivo ar, com um vestido
claro um pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente, numa larga
claridade, o esplendor branco da sua pele, e o louro ondeado dos seus cabelos –
lindamente risonha, na surpresa que alargava os seus largos, luminosos olhos
negros, e trazendo ao colo uma criancinha, gorda e cor-de-rosa, apenas coberta
com uma camisinha, de grandes laços azuis.
E foi assim que Jacinto, nessa tarde de
Setembro, na Flor da Malva, viu aquela com quem casou em Maio, na capelinha de
azulejos, quando o grande pé de roseira se cobrira todo de rosas.
Capítulo XV
E agora, entre roseiras que rebentam, e
vinhas que se vindimam, já cinco anos passaram sobre Tormes e a Serra. O meu
Príncipe já não é o último Jacinto, Jacinto ponto final – porque naquele solar
que decaíra, correm agora, com soberba vida, uma gorda e vermelha Teresinha,
minha afilhada, e um Jacintinho, senhor muito da minha amizade. E, pai de
família, principiara a fazer-se monótono, pela perfeição da beleza moral,
aquele homem tão pitoresco pela inquietação filosófica, e pelos variados
tormentos da fantasia insaciada. Quando ele agora, bom sabedor das coisas da
lavoura, percorria comigo a Quinta, em sólidas palestras agrícolas, prudentes e
sem quimeras – eu quase lamentava esse outro Jacinto que colhia uma teoria em
cada ramo de árvore, e riscando o ar com a bengala, planejava queijeiras de
cristal e porcelana, para fabricar queijinhos que custariam duzentos mil-réis
cada um!
Também a paternidade lhe despertara a
responsabilidade. Jacinto possuía agora um caderno de contas, ainda pequeno,
rabiscando a lápis, com falhas, e papeluchos soltos entremeados, mas onde as
suas despesas, as suas rendas se alinhavam, como duas hostes disciplinadas.
Visitara já as suas propriedades de
Montemor, da Beira; e consertava, mobiliava as velhas casas dessas propriedades
para que os seus filhos, mais tarde, crescidos, encontrassem “ninhos feitos”.
Mas onde eu reconheci que definitivamente um perfeito e ditoso equilíbrio se
estabelecera na alma do meu Príncipe, foi quando ele, já saído daquele primeiro
e ardente fanatismo da Simplicidade – entreabriu a porta de Tormes à
Civilização. Dois meses antes de nascer a Teresinha, uma tarde, entrou pela
avenida de plátanos uma chiante e longa fila de carros, requisitados pôr toda a
freguesia, e acuculados de caixotes. Eram os famosos caixotes, pôr tanto tempo
encalhados em Alba de Tormes, e que chegavam, para despejar a Cidade sobre a
Serra. Eu pensei: – Mau! o meu pobre Jacinto teve uma recaída! Mas os confortos
mais complicados, que continha aquela caixotaria temerosa, foram, com surpresa
minha, desviados para os sótãos imensos, para o pó da inutilidade; e o velho
solar apenas se regalou com alguns tapetes sobre os seus soalhos, cortinas
pelas janelas desabrigadas, e fundas poltronas, fundos sofás, para que os
repousos, pôr que ele suspirara, fossem mais lentos e suaves. Atribuí esta
moderação a minha prima Joaninha, que amava Tormes na sua nudez rude. Ela jurou
que assim o ordenara o seu Jacinto. Mas, decorridas semanas, tremi. Aparecera,
vindo de Lisboa, um contramestre, com operários, e mais caixotes, para instalar
um telefone!
– Um telefone, em Tormes, Jacinto?
O meu Príncipe explicou, com humildade:
– Para casa de meu sogro!… bem vês.
Era razoável e carinhoso. O telefone
porém, sutilmente, mudamente, estendeu outro longo fio, para Valverde. E
Jacinto, alargando os braços, quase suplicante:
– Para casa do médico. Compreendes…
Era prudente. Mas, certa manhã, em
Guiães, acordei aos berros da tia Vicência! Um homem chegara, misterioso, com
outros homens, trazendo arame, para instalar na nossa casa o novo invento.
Sosseguei a tia Vicência, jurando que essa máquina nem fazia barulho, nem
trazia doenças, nem atraía as trovoadas. Mas corri a Tormes. Jacinto sorriu, encolhendo
os ombros:
– Que queres? Em Guiães está o
boticário, está o carniceiro… E, depois, estás tu!
Era fraternal. Todavia pensei: Estamos
perdidos! Dentro dum mês temos a pobre Joana a apertar o vestido pôr meio duma
máquina! Pois não! o Progresso, que, à intimação de Jacinto, subira a Tormes a
estabelecer aquela sua maravilha, pensando talvez que conquistara mais um reino
para desfear, desceu, silenciosamente, desiludido, e não avistamos mais sobre a
serra a sua hirta sombra cor de ferro e de fuligem. Então compreendi que,
verdadeiramente, na alma de Jacinto se estabelecera o equilíbrio da vida, e com
ele a Grã-Ventura, de que tanto tempo ele fora o Príncipe sem Principado. E uma
tarde, no pomar, encontrando o nosso velho Grilo, agora reconciliado com a
serra, desde que a serra lhe dera meninos para trazer às cavaleiras, observei
ao digno preto, que lia o seu Fígaro,
armado de imensos óculos redondos:
– Pois, Grilo, agora realmente bem
podemos dizer que o Sr. D. Jacinto está firme.
O Grilo arredou os óculos para a testa,
e levantando para o ar os cinco dedos em curva como pétalas duma tulipa:
– Sua Exª brotou!
Profundo sempre o digno preto! Sim!
Aquele ressequido galho da Cidade, plantado na serra, pregara, chupara o humo
do torrão herdado, criara seiva, afundara raízes, engrossara de tronco, atirara
ramos, rebentara em flores, forte, sereno, ditoso, benéfico, nobre, dando
frutos, derramando sombra. E abrigados pela grande árvore, e pôr ela nutridos,
cem casais em redor a bendiziam.
Capítulo XVI
Muitas vezes Jacinto, durante esses
anos, falara com prazer num regresso de dois, três meses, ao 202, para mostrar
Paris à prima Joaninha. E eu seria o companheiro fiel, para arquivar os
espantos da minha serrana ante a Cidade! Depois conveio em esperar que o Jacintinho
completasse dois anos, para poder jornadear sem desconforto, e apontando já com
o seu dedo para as coisas da civilização. Mas quando ele, em Outubro, fez esses
dois anos desejados, a prima Joaninha sentiu uma preguiça imensa, quase
aterrada, do comboio, do estridor da Cidade, do 202, e dos seus esplendores.
“Estamos aqui tão bem! está um tempo tão lindo!” murmurava, deitando os braços,
sempre deslumbrada, ao rijo pescoço do seu Jacinto. Ele desistia logo de Paris,
encantado. “Vamos para Abril, quando os castanheiros dos Campos Elísios
estiverem em flor!” Mas em Abril vieram aqueles cansaços que imobilizavam a
prima Joaninha no divã, ditosa, risonha, com umas pintas na pele, e o roupão
mais solto. Pôr todo um longo ano estava desfeita a alegre aventura. Eu andava
então sofrendo de desocupação. As chuvas de Março prometiam uma farta colheita.
Uma certa Ana Vaqueira, corada e bem feita, viúva, que sortia as necessidades
do meu coração, partira com o irmão par ao Brasil, onde ele dirigia uma venda.
Desde o Inverno, sentia também no corpo como um começo de ferrugem, que o
emperrava, e certamente, algures, na minha alma, nascera uma pontinha de bolor.
Depois a minha égua morreu… Parti eu para paris.
Logo em Hendaia, apenas pisei a doce
terra de frança, o meu pensamento, como pombo a um velho pombal, voou ao 202 –
talvez pôr eu ver um enorme cartaz em que uma mulher nua, com flores bacânticas
nas tranças, se estorcia, segurando numa das mãos uma garrafa, espumante, e
brandindo na outra, para o anunciar ao Mundo, um novo modelo de saca-rolhas. E
oh surpresa! Eis que, logo adiante, na estação quieta e clara de
Saint-Jean-de-Luz, um moço esbelto, de perfeita elegância, entra vivamente no
meu compartimento, e, depois de me encarar, grita:
– Eh, Fernandes!
Marizac! O duque de Marizac! Era já o
202… Com que reconhecimento lhe sacudi a mão fina, pôr ele me Ter
reconhecido! E atirando para o canto do vagão um paletó, um maço de jornais,
que o escudeiro lhe passara, o bom Marizac exclamava na mesma surpresa alegre:
– E Jacinto?
Contei Tormes, a serra, o seu primeiro
amor pela Natureza, o seu outro grande amor pôr minha prima, e os dois filhos,
que ele trazia escarranchados no pescoço.
– Ah que canalha! – exclamou Marizac
com os olhos espetados em mim. – É capaz de ser feliz!
– Espantosamente, loucamente… Qual!
Não há advérbios…
– Indecentemente – murmurou Marizac
muito sério. – Que canalha!
Eu então desejei saber do nosso rancho
familiar do 202. Ele encolheu os ombros, acendendo a cigarrilha:
– Todo esse mundo circula…
– Madame de Oriol?
– Continua.
– Os Trèves? o Efraim?
– Continuam, todos três.
Lançou um gesto lânguido.
– Durante cinco anos, em Paris, tudo
continua… As mulheres com um pouco mais de pó-de-arroz, e a pele um pouco
mais mole, e melada. Os homens com um tanto mais de dispepsia. E tudo segue.
Tivemos os Anarquistas. A princesa de Carman abalou com um acrobata do Circo de
Inverno… e – e voilá!
– Dornan?
– Continua… Não o encontrei mais
desde o 202… Mas vejo às vezes o nome dele, no Boulevard, com versos
preciosos, obscenidades muito apuradas, muito sutis.
– E o Psicólogo?… Ora, como se
chamava ele?…
– Continua também. Sempre com as
feminices a três francos e cinqüenta… Duquesas em camisa, almas nuas…
coisas que se vendem bem!
Mas quando eu, encantado, ia indagar de
Todelle, do Grão-Duque, o comboio entrou na estação de Biarritz: – e
rapidamente, apanhando o paletó e os jornais, depois de me apertar a mão, o
delicioso Marizac saltou pela portinhola, que o seu criado abrira, gritando:
– Até Paris!… Sempre rue Cambori.
Então, no compartimento solitário,
bocejei, com uma estranha sensação de monotonia, de saciedade, como cercado já
de gentes muito vistas, murmurando histórias muito sabidas, e coisas muito
ditas, através dos sorrisos estafados. Dos dois lados do comboio era a longa
planície monótona, sem variedade, muito miudamente cultivada, muito miudamente
retalhada, dum verde de resedá, verde-cinzento e apagado, onde nenhum lampejo,
nem tom alegre de flor, nem acidente do solo, desmanchavam a mediocridade
discreta e ordeira. Pálidos choupos, em renques pautados e finos, bordavam
canaizinhos muito direitos e claros. Os casais, todos da mesma cor pardacenta,
mal se elevavam do solo, mal se destacavam da verdura desbotada, como
encolhidos na sua mediocridade e cautela. E o céu, pôr cima, liso, sem uma
nuvem, com um sol descorado, parecia um vasto espelho muito lavado a grande
água, até que de todo se lhe safasse o esmalte e o brilho. Adormeci numa doce
insipidez.
Com que linda manhã de Maio entrei em
Paris! Tão fresca e fina, e já macia, que, apesar de cansado, mergulhei com
repugnância no profundo, sombrio leito do Grand-Hotel, todo fechado de espessos
veludos, grossos cordões, pesadas borlas, como um palanque de gala. Nessa
profunda cova de penas sonhei que em Tormes se construíra uma torre Eiffel, e
que em volta dela as senhoras da Serra, as mais respeitáveis, a própria tia
Albergaria, dançavam, nuas, agitando no ar saca-rolhas imensos. Com as comoções
deste pesadelo, e depois o banho, e o desemalar da mala, já se acercavam as
duas horas quando enfim emergi do grande portão, pisei, ao cabo de cinco anos,
o Boulevard. E
imediatamente me pareceu que todos esses cinco anos eu ali permanecera à porta
do Grand-Hotel, tão estafadamente conhecido me era aquele estridente rolar da
cidade, e as magras árvores, e as grossas tabuletas, e os imensos chapéus
emplumados sobre tranças pintadas de amarelo, e as empertigadas sobrecasacas
com grossas rosetas da legião de honra, e os garotos, em voz rouca e baixa,
oferecendo baralhos de cartas obscenas, caixas de fósforos obscenas… Santo
Deus! Pensei, há que anos eu estou em Paris! Comprei, então, num quiosque, um
jornal, a Voz de Paris, para que ele me contasse, durante o almoço, as novas da
Cidade. A mesa do quiosque desaparecia, durante o almoço, as novas da Cidade. A
mesa do quiosque desaparecia, alastrada de jornais ilustrados: – e em todos se
repetia a mesma mulher, sempre nua, ou meio despida, ora mostrando as costelas
magras, de gata faminta, ora voltando para o Leitor duas tremendas nádegas…
Eu outra vez murmurei: – Santo Deus! No café da Paz, o criado lívido, e com um
resto de pó-de-arroz sobre a sua lividez, aconselhou ao meu apetite, pôr ser
tão tarde, um linguado frito e uma costeleta.
– E que vinho, Sr.Conde?
– Chablis, Sr. Duque!
Ele sorriu à minha deliciosa coluna,
através duma prosa muito retorcida, toda em brilhos de jóia barata, entrevi uma
Princesa nua, e um Capitão de Dragões, que soluçava. Saltei a outras colunas,
onde se contavam feitos de cocottes de nomes sonoros. Na outra página
escritores eloqüentes celebravam vinhos digestivos e tônicos. Depois eram os
crimes do costume. – Não há nada de novo! Pus de parte a Voz de Paris – e então
foi, entre mim e o linguado, uma luta pavorosa. O miserável, que se frigira
rancorosamente contra mim, não consentia que eu descolasse da sua espinha uma
febra escassa. Todo ele se ressequira numa sola impenetrável e tostada, onde a
faca vergava, impotente e trêmula. Gritei pelo moço lívido, o qual, com faca mais
rija, fincando no soalho os sapatos de fivela, arrancou enfim àquele malvado
duas tirinhas, finas e curtas como palitos, que engoli juntas, e me esfomearam.
Duma garfada findei a costela. E paguei quinze francos com um bom luís de ouro.
No troco, que o moço me deu, com a polidez requintada duma civilização muito
difundida, havia dois francos falsos. E pôr aquela doce tarde de Maio saí para
tomar no terraço um café cor de chapéu-coco, que sabia a fava.
Com o charuto aceso contemplei o Boulevard, àquela hora em toda
a pressa e estritor da sua grossa sociabilidade. A densa torrente dos ônibus,
calhambeques, carroças, parelhas de luxo, rolava vivamente, como toda uma
escura humanidade formigando entre patas e rodas, numa pressa inquieta. Aquele
movimento continuado e rude bem depressa entonteceu este espírito, pôr cinco
anos afeito à quietação das serras imutáveis. Tentava então, puerilmente,
repousar nalguma forma imóvel, ônibus parado, fiacre que estacara num brusco
escorregar da pileca; mas logo algum dorso apressado se encafuava pela
portinhola da tipóia, ou um cacho de figuras escuras trepava sofregamente para
o ônibus: – e, recomeçava o rolar retumbante . Imóveis, decerto, estavam os
altos prédios hirtos, ribas de pedra e cal, que continham, disciplinavam,
aquela torrente ofegante. Mas da rua aos telhados, em cada varanda, pôr toda a
fachada, eram tabuletas encimando tabuletas, que outras tabuletas apertavam: –
e mais me cansava o perceber a tenaz incessância do trabalho latente, a
devorante canseira do lucro, arquejante pôr trás das frontarias decorosas e
mudas. Então, enquanto fumava o meu charuto, estranhamente se apossaram de mim
os sentimentos que Jacinto outrora experimentara no meio da Natureza, e que
tanto me divertiam. Ali, à porta do café, entre a indiferença e a pressa da
Cidade, também eu senti, como no Campo, a vaga tristeza da minha fragilidade e
da minha solidão Bem certamente estava ali como perdido num mundo, que não era
fraternal. Quem me conhecia? Quem se interessaria pôr Zé Fernandes? Se eu
sentisse fome, e o confessasse, ninguém me daria metade do seu pão. Pôr mais
aflitamente que a minha face revelasse uma angústia, ninguém na sua pressa
pararia para me consolar. De que me serviriam também as excelências da alma,
que só na alma florescem? Se eu fosse um santo, aquela turba não se importaria
com a minha santidade; e se eu abrisse os braços e gritasse, ali no Boulevard – “ oh homens, mais ferozes que o lobo
ante o Pobrezinho de Assis, ririam e passariam indiferentes. Dois impulsos
únicos, correspondendo a duas funções únicas, parecia estarem vivos naquela
multidão – o lucro e o gozo. Isolada entre eles, e ao contágio ambiente da sua
influência, em breve a minha alma se contrairia, se tornaria num duro calhau de
Egoísmo. Do ser que eu trouxera da Serra só restaria em pouco tempo esse
calhau, e nele, vivos, os dois apetites da cidade – encher a bolsa, saciar a
carne! E pouco a pouco as mesmas exagerações de Jacinto perante a Natureza me
invadiam perante a cidade. Aquele Boulevard reçumava para mim um bafo mortal,
extraído dos seus milhões de micróbios. De cada porta me parecia sair um ardil
para me roubar. Em cada face avistada à portinhola dum fiacre, suspeitava um
bandido em manobra. Todas as mulheres me pareciam caiadas como sepulcros, tendo
só podridão pôr dentro. E considerava duma melancolia funambulesca as formas de
toda aquela Multidão, a sua pressa áspera e vã, a afetação das atitudes, as
imensas plumas das chapeletas, as expressões postiças e falsas, a pompa dos
peitos alteados, o dorso redondo dos velhos olhando as imagens obscenas da
vitrinas. Ah! tudo isto era pueril, quase cômico da minha parte, mas é o que eu
sentia no Boulevard,
pensando na necessidade de mergulhar na Serra, para que ao seu puro ar se me
despegasse a crosta da Cidade, e eu ressurgisse humano, e Zé Fernandico!
Então, para dissipar aquele pesadume de
solidão, paguei o café e parti, lentamente, a visitar o 202. Ao passar na
Madalena, diante da estação dos ônibus, pensei: – Que será feito de Madame
Colombe? E, oh miséria! Pelo meu miserável ser subiu uma curta e quente
baforada de desejo bruto pôr aquela besta suja e magra! Era o charco onde eu me
envenenara, e que me envolvia nas emanações sutis do seu veneno. Depois, ao
dobrar da rue Royale para a praça da Concórdia, topei
com um robusto e possante homem, que estacou, ergueu o braço, ergueu o
vozeirão, num modo de comando:
– Eh, Fernandes!
O Grão-Duque! O belo Grão-Duque, de
jaquetão alvadio e chapéu tirolês cor de mel! Apertei com gratidão reverente a
mão do Príncipe, que me reconhecera.
– E Jacinto? Em Paris?…
Contei Tormes, a serra, o
rejuvenescimento do nosso amigo entre a Natureza, a minha doce prima, e os
bravos pequenos, que ele trazia às cavaleiras. O Grão-Duque encolheu os ombros,
desolado:
– Ó lá, lá, lá!… Peuh! Casado, na
aldeia, com filharada… Homem perdido! Ora não há!… E um rapaz útil! Que nos
divertia, e tinha gosto! Aquele Jantar cor-de-rosa foi uma festa linda… Não
se fez, não se tornou a fazer nada tão brilhante em Paris… E Madame de Oriol…
Ainda há dias a vi no Palácio de Gelo… Potável, mulher ainda muito potável…
Não é todavia o meu gênero… adocicada, leitosa, pomadada, neve à la vanile… Ora esse
Jacinto!…
– E vossa Alteza, em Paris, com demora?
O formidável homem baixou a face,
franzida e confidencial:
– Nenhuma. Paris não se agüenta…
está, estragado, positivamente estragado…Nem se come! Agora é o Ernest, da
Praça Gailon, o Ernest, que era maître-d’hotel do Maire… Já lá comeu? Um horror.
Tudo é o Ernest, agora! Onde se come? No Ernest. Qual! Ainda esta manhã lá
almocei… Um horror! Uma salada Chambord… palhada! Não tem a noção da
salada! Paris foi! Teatros, uma estopada. Mulheres, hui! Lambidas todas. Não há
nada! Ainda assim, num dos teatritos de Montmartre, na Roulotte, está uma
revista, que se vê: Para cá as
mulheres! – engraçada, bem
despida… A Celestine tem uma cantiga, meio sentimental, meio porca, o Amor no Water-Closet, que
diverte, tem topete… Onde está, Fernandes?
– No Grand-Hotel, meu senhor.
– Que barraca!… E o seu Rei sempre
bom?
Curvei a cabeça:
– Sua Majestade, bem.
– Estimo! Pois, Fernandes, tive
prazer… Esse Jacinto é que me desola! Vá ver a Revista… Boas pernas, a
Celestine… E tem graça o tal Amor
no Water-Closet.
Um rijíssimo aperto de mão – e S.
Alteza subiu pesadamente para a vitória, ainda com um aceno amável, que me
penhorou… Excelente homem, este Grão-Duque! Mais reconciliado com Paris,
atravessei para os Campos Elísios. Em toda a sua nobre e formosa largueza, toda
verde, com os castanheiros em flor, corriam, subindo, descendo, velocípedes.
Parei a contemplar aquela fealdade nova, estes inumeráveis espinhaços
arqueados, e gâmbias magras, agitando-se desesperadamente sobre duas rodas.
Velhos gordos, de cachaço escarlate, pedalavam, gordamente. Galfarros, esguios,
de tíbias descarnadas, fugiam numa linha esfuziada. E as mulheres, muito
pintadas, de bolero curto, calções bufantes, giravam, mais rapidamente ainda,
no prazer equívoco da carreira, escarranchadas em hastes de ferro. E a cada instante
outras medonhas máquinas passavam, vitórias e faetontes a vapor, com uma
complicação de tubos e caldeiras, torneiras e chaminés, rolando numa trepidação
estridente e pesada, espalhando um grosso fedor de petróleo. Segui para o 202,
pensando no que diria um grego do tempo de Fídias, se visse esta nova beleza e
graça do caminhar humano!…
No 202, o porteiro, o velho Vian,
quando me reconheceu, mostrou uma alegria enternecedora. Não se fartou de saber
do casamento de Jacinto, e daqueles queridos meninos. E era para ele uma
felicidade que eu aparecesse, justamente quando tudo se andara limpando para a
entrada da Primavera. Quando penetrei na amada casa senti vivamente a minha
solidão. Não restava em toda ela nem um dos costumados aspectos que fizessem reviver
a velha camaradagem com o meu Príncipe. Logo na antecâmara grandes lonas
cobriam as tapeçarias heróicas, e igual lona escondia os estofos das cadeiras e
dos muros, e as largas estantes de ébano da Biblioteca, onde os trinta mil
volumes, nobremente enfileirados como doutores num Concílio, pareciam separados
do mundo pôr aquele pano que sobre eles descera depois de finda a comédia da
sua força e da sua autoridade. No gabinete de Jacinto, de sobre a mesa de
escrita, desaparecera aquela confusão de instrumentozinhos, de que eu perdera
já a memória; e só a Mecânica suntuosa, pôr sobre peanhas e pedestais,
recentemente espanejada, reluzia, com as suas engrenagens, tubos, rodas,
rigidezes de metais, numa frieza inerte, na inatividade definitiva das coisas
desusadas, como já dispostas num Museu, para exemplificar a instrumentação
caduca dum mundo passado. Tentei mover o telefone, que se não moveu; a mola da
eletricidade não acendeu nenhum lume: todas as forças universais tinham
abandonado o serviço do 202, como servos despedidos. E então, passeando através
das salas, realmente me pareceu que percorria um museu de antigüidades; e que
mais tarde outros homens, com uma compreensão mais pura e exata da vida e da
Felicidade, percorreriam, como eu, longas salas, atulhadas com os instrumentos
da supercivilização, e, como eu, encolheriam desdenhosamente os ombros ante a
grande Ilusão que findara, agora para sempre inútil, arrumada como um lixo
histórico, guardado debaixo da lona.
Quando saí do 202 tomei um fiacre, subi
ao Bosque de Bolonha. E apenas rolara momentos pela Avenida das Acácias, no
silêncio decoroso, unicamente cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas
vagarosas esmagando a areia, comecei a reconhecer as velhas figuras, sempre com
o mesmo sorriso, o mesmo pó-de-arroz, as mesmas pálpebras amortecidas, os
mesmos olhos farejantes, a mesma imobilidade de cera! O romancista da Couraça passou numa vitória, fixou em mim o
monóculo defumado, mas permaneceu indiferente. Os bandós negros de Madame
Verghane, tapando-lhe as orelhas, pareciam ainda mais furiosamente negros entre
a harmonia de todo o branco que a vestia, chapéu, plumas, flores, rendas e
corpete, onde o seu peito imenso se empolava como uma onda. No passeio, sob as
Acácias, espapado em duas cadeiras, o diretor do Boulevard mamava o resto de seu charuto. E num landau, Madame de Trèves
continuava o seu sorriso de há cinco anos, com duas pregazinhas mais moles aos
cantos dos lábios secos.
Abalei para o Grand-Hotel, bocejando –
como outrora Jacinto. E findei o meu dia de Paris, no Teatro das Variedades,
estonteado com uma comédia muito fina, muito aclamada, toda faiscante do mais
vivo parisianismo, em que todo o enredo se enrodilhava à volta duma Cama, onde
alternadamente se espojavam mulheres em camisa, sujeitos gordos em ceroulas, um
coronel com papas de linhaça nas nádegas, cozinheiras de meias de seda
bordadas, e ainda mais gente, ruidosa e saltitante, a esfuziar de cio e de
pilhéria. Tomei um chá melancólico no Julien, no meio de um áspero e lúgubre
namoro de prostitutas, fariscando a presa. Em duas delas, de pele oleosa e
cobreada, olhos oblíquos, cabelos duros e negros como crinas, senti o Oriente,
a sua provocação felina… Interroguei o criado, um medonho ser, duma obesidade
balofa e lívida, de eunuco. O monstro explicou numa voz roufenha e surda:
– Mulheres de Madagáscar… Foram
importadas quando a França ocupou a ilha!
Arrastei então pôr Paris dias de imenso
tédio. Ao longo do Boulevard revi nas vitrinas todo o luxo, que já
me enfartara havia cinco anos, sem uma graça nova, uma curta frescura de
invenção. Nas livrarias, sem descobrir um livro, folheava centenas de volumes
amarelos, onde, de cada página que ao acaso abria, se exalava um cheiro morno
de alcova, e de pós-de-arroz, entre linhas trabalhadas com efeminado arrebique,
como rendas de camisas. Ao jantar, em qualquer restaurante, encontrava, ornando
e disfarçando as carnes ou as aves, o mesmo molho, de cores e sabores de
pomada, que já de manhã, noutro restaurante, espelhado e dourejado, me enjoara
no peixe e nos legumes. Paguei pôr grossos preços garrafas do nosso
adstringente e rústico vinho de Torres, enobrecido com o título de Château
isto, Château aquilo, e pó postiço no gargalo. À noite, nos teatros, encontrava
a Cama, a costumada cama, como centro e único fim da vida, atraindo, mais
fortemente que o monturo atrai os moscardos, todo um enxame de gentes
estonteadas, frementes de erotismo, zumbindo chacotas senis. Esta sordidez da Planície
me levou a procurar melhor aragem de espírito nas alturas da Colina, em
Montmartre; e aí, no meio duma multidão elegante de Senhoras, de Duquesas, de
Generais, de todo o alto pessoal da Cidade, eu recebia, do alto do palco,
grossos jorros de obscenidades, que faziam estremecer de gozo as orelhas
cabeludas de gordos banqueiros, e arfar com delícia os corpetes de Worms e de
Doucet, sobre os peitos postiços das nobres damas. E recolhia enjoado com tanto
relento de alcova, vagamente dispéptico com os molhos de pomada do jantar, e
sobretudo descontente comigo, pôr me não divertir, não compreender a Cidade, e
errar através dela e da sua Civilização Superior, com a reserva ridícula dum
Censor, dum Catão austero. Ó senhores! – pensava – pois eu não me divertirei
nesta deliciosa cidade? Entrará comigo o bolor da velhice?
Passei as pontes, que separam em Paris
o Temporal do Espiritual, mergulhei no meu doce bairro Latino, evoquei, diante
de certos cafés, a memória da minha Nini; e, como outrora, preguiçosamente,
subi as escadas da Sorbona. Num anfiteatro, onde sentira um grosso sussurro, um
homem magro, com uma testa muito branca e larga, como talhada para alojar
pensamentos altos e puros, ensinava, falando das instituições da Cidade Antiga.
Mas, mal eu entrara, o seu dizer elegante e límpido foi sufocado pôr gritos,
urros, patadas, um tumulto rancoroso de troça bestial, que saía da mocidade
apinhada nos bancos, a mocidade das Escolas, Primavera sagrada, em que eu fora
flor murcha. O Professor parou, espalhando em redor um olhar frio, e remexendo
as suas notas. Quando o grosso grunhido se moderou em sussurro desconfiado, ele
recomeçou com alta serenidade. Todas as suas idéias eram frias e substanciais,
expressas numa língua pura e forte, mas, imediatamente, rompe uma furiosa
rajada de apitos, uivos, relinchos, cacarejos de galo, pôr entre magras mãos,
que se estendiam levantadas para estrangular as idéias. Ao meu lado um velho,
encolhido na alta gola dum macfarlane de xadrezes, contemplava o tumulto com
melancolia, pingando endefluxado. Perguntei ao velho:
– Que querem eles? É embirração com o
professor… é política?
O velho abanou a cabeça, espirrando:
– Não… É sempre assim, agora, em
todos os cursos… Não querem idéias… Creio que queriam cançonetas. É o amor
da porcaria e da troça.
Então, indignado, berrei:
– Silêncio, brutos!
E eis que um abortozinho de rapaz,
amarelado e sebento, de longas melenas, umas enormes lunetas rebrilhantes, se
arrebita, me fita, e me berra:
– Sale
Maure!
Ergui o meu grosso punho serrano – e o
desgraçado, numa confusão de melenas, com sangue pôr toda a face, aluiu, como
um montão de trapos moles, ganindo desesperadamente, enquanto o furacão de
uivos e cacarejos, guinchos e silvos, envolvia o Professor, que cruzara os
braços, esperando, com uma serenidade simples.
Desde esse momento decidi abandonar a
fastidiosa Cidade; e o único dia alegre e divertido que nela passei foi o
derradeiro, comprando para os meus queridinhos de Tormes brinquedos
consideráveis, tremendamente complicados pela Civilização – vapores de aço e
cobre, providos de caldeiras para viajar em tanques; leões de pele verídica
rugindo pavorosamente, bonecas vestidas pela Laferrière, com fonógrafo no
ventre…
Finalmente abalei uma tarde, depois de
lançar da minha janela, sobre o Boulevard,
as minhas despedidas à Cidade:
– Pois adeuzinho, até nunca mais! Na
lama do teu vício e na poeira da tua vaidade, outra vez, não me pilhas! O que
tens de bom, que é o teu gênio, elegante e claro, lá o receberei na Serra pelo
correio. Adeuzinho!
Na tarde do seguinte Domingo, debruçado
da janela do comboio, que vagarosamente deslizava pela borda do rio lento, num
silêncio todo feito de azul e sol, avistei, na plataforma da quieta estação da
minha aldeia, os Senhores de Tormes, com a minha afilhada Teresa, muito
vermelha, arregalando os seus soberbos olhos, e o bravo Jacintinho, que
empunhava uma bandeira branca. O alvoroço ditoso com que abracei e beijei
aquela tribo bem-amada conviria perfeitamente a quem voltasse vivo duma guerra
distante, na Tartária. Na alegria de recuperar a Serra, até beijoquei o chefe
Pimentinha, que a estalar de obesidade se açodava gritando ao carregador todo o
cuidado com as minhas malas.
Jacinto, magnífico, de grande chapéu
serrano e jaqueta, de novo me abraçou:
– E esse Paris?
– Medonho!
Abri depois os braços para o bravo
Jacintinho.
– Então para que é essa bandeira, meu
cavaleiro?
– É a bandeira do Castelo! – declarou
ele com uma bela seriedade nos seus grandes olhos.
A mãe ria. Desde essa manhã, logo que
soubera da chegada do Ti-Zé, apareceu de bandeira, feita pelo Grilo, e não a
largara mais; com ela almoçara, com ela descera de Tormes!
Bravo! E, prima Joaninha, olhe que está
magnífica! Eu, também, venho daquelas peles meladas de Paris… Mas acho-a
triunfal! E o tio Adrião, e a tia Vicência?
– Tudo ótimo! – gritou Jacinto. – A
serra, Deus louvado, prospera. E agora, para cima! Tu hoje ficas em Tormes.
Para contar da Civilização.
No largo pôr trás da estação, debaixo
dos eucaliptos, que revi com gosto, esperavam os três cavalos, e dois belos
burros brancos, um com cadeirinha para a Teresa, outro com um cesto de verga,
para meter dentro o heróico Jacintinho, um e outro servidos à estribeira, pôr
um criado. Eu ajudara a prima Joaninha a montar, quando o carregador apareceu
com um maço de jornais e papéis, que eu esquecera na carruagem. Era uma
papelada, de que me sortira na Estação de Orleães toda recheada de mulheres
nuas, de historietas sujas, de parisianismo, de erotismo. Jacinto, que as
reconhecera, gritou rindo:
– Deita isso fora!
E eu atirei, para um montão de lixo, ao
canto do pátio, aquele pútrido rebotalho da Civilização. E montei. Mas ao
dobrar para o caminho empinado da Serra, ainda me voltei, para gritar adeus ao
Pimenta, de quem me esquecera. O digno chefe, debruçado sobre o monturo,
apanhava, sacudia, recolhia com amor aquelas belas estampas, que chegavam de
Paris, contavam as delícias de Paris, derramavam através do mundo a sedução de
Paris.
Em fila começamos a subir para a Serra.
A tarde adoçava o seu esplendor de Estio. Uma aragem trazia, como ofertados,
perfumes das flores silvestres. As ramagens moviam, com um aceno de doce
acolhimento, as suas folhas vivas e reluzentes. Toda a passarinhada cantava,
num alvoroço de alegria e de louvor. As águas correntes, saltantes, luzidias,
despediam um brilho mais vivo, numa pressa mais animada. Vidraças distantes de
casas amáveis flamejavam com um fulgor de ouro. A Serra toda se ofertava, na
sua beleza eterna e verdadeira. E, sempre adiante da nossa fila, pôr entre a
verdura, flutuava no ar a bandeira branca, que o Jacintinho não largava, de
dentro do seu cesto, com a haste bem segura na mão. Era a bandeira do Castelo, afirmara
ele.
E na verdade me parecia que, pôr
aqueles caminhos, através da natureza campestre e mansa – o meu Príncipe,
atrigueirado nas soalheiras e nos ventos da Serra, a minha prima Joaninha, tão
doce e risonha mãe, os dois primeiros representantes da sua abençoada tribo, e
eu – tão longe de amarguradas ilusões e de falsas delícias, trilhando um solo
eterno, e de eterna solidez, com a alma contente, e Deus contente de nós,
serenamente e seguramente subíamos – para o Castelo do Grã-Ventura!
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