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A NORMALISTA

Adolfo Caminha

 

© Copyright 2017, VirtualBooks Editora e
Livraria Ltda. 1ª edição em 1893. Capa: 
foto Jerzy Gorecki
Todos os
direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98. Adolfo Ferreira dos Santos Caminha (Aracati, 29 de maio de 1867 —
Rio de Janeiro, 1 de janeiro de 1897) A
NORMALISTA, Adolfo Caminha. Pará de Minas, MG, Brasil: VirtualBooks Editora,  2017.  ISBN: 9781521903667  CDD- B869 Literatura
brasileira. Romance.

 

 

João Manoel
da Mata Gadelha, conhecido em Fortaleza por João da Mata, habitava, há anos, no
Trilho, uma casinhola de porta e janela, cor d’açafrão, com a frente encardida
pela fuligem das locomotivas que diariamente cruzavam defronte, e donde se
avistava a Estação da linha férrea de Baturité. Era amanuense, amigado, e
gostava de jogar o víspora em família aos domingos.

Nessa noite
estavam reunidas as pessoas do costume. Ao centro da sala, em torno d’uma mesa
coberta com um pano xadrez, à luz parca de um candieiro de louça esfumado, em
forma d’abat-jour, corriam os olhos sobre as velhas coleções desbotadas,
enquanto uma voz fina de mulher flauteava arrastando as sílabas numa cadência
morosa:  – Vin…te e quatro! Sessen…ta nove!… Cinquenta..ta e
seis!…

Havia um
silêncio morno e concentrado em que se destacava o rolar abafado das pedras no
saquinho de baeta verde.

A sala era
estreita, sem teto, chão de tijolo, com duas portas para o interior da casa,
paredes escorridas pedindo uma caiação geral. À direita, defronte da janela,
dormia um velho piano de aspecto pobre, encimado por um espelho não menos
gasto. O resto da mobília compunha-se de algumas cadeiras, um sofá entre as
duas portas do fundo, a mesa do centro, e uma espécie de console, colocada à
esquerda, onde pousavam dois jarros com flores artificiais.

De onde em
onde zunia o falsete do amanuense:

 Quadra!… Ou caçoava:  – Os
anos de Cristo! … Os óculos do Padre Eterno!

Risadinhas
explodiam a espaços, gostosas, indiscretas  – uma pilhéria ricocheteava
nos quatros ângulos da mesa.

 – É boa! É boa! fazia João da Mata erguendo a
cabeça, mostrando a dentuça.

Depois
voltava o silêncio, e a voz fina de mulher continuava a cantar os números
solenemente.

 – Víspora! saltou de repente um rapazola
d’óculos, bigodinho fino, flor na botoeira do fraque de casimira clara.

Toda gente
o conhecia  – era o Zuza, quintanista de direito, filho do coronel Souza
Nunes.

 – Podem conferir, disse erguendo-se,
risonho  – segunda linha.

E estendeu
o braço, passando o cartão para o amanuense.

 – Não desmarquem, não desmarquem, recomendou
este espalmando a mão. Pode ter sido engano. Errare humanun est…

Houve um
ligeiro sussurro de vozes e de caroços rolando sobre a mesa com um surdo ruído
de contas desfiada. Todos desfizeram as marcações.

Numa das
extremidades sentava-se João da Mata, de paletó de fazenda parda sobre a camisa
de meia, costas para a rua.

À direita
mexia-se uma senhora gorducha, de seus trinta anos, metida num casaco frouxo de
rendas, cabelos penteado em cocó, estampa insinuante, bons dentes; era a mulher
do amanuense, que passava por sua legítima esposa não obstante as insinuações
malévolas da alcovitice vilã que entrevira escândalos na vida privada de D.
Terezinha. Contudo, era tida em conta de excelente dona de casa, honesta,
dizendo-se relacionada com as principais famílias de Fortaleza.

Ninguém
ousava mesmo dirigir-lhe um gracejo de mau gosto, uma pilhéria calculada.
Inventava-se  – calúnias de populacho  – que se correspondia
ocultamente com o presidente da província. Ela, porém, gabava, batendo no peito
com orgulho, que tinha uma vida limpa, graças a Deus,; que isso de patifarias
não lhe entrava em casa, não, mas era o mesmo. Estava ali o Janjão que não a
deixava mentir.

Ao pé de D.
Terezinha aprumava-se Maria do Carmo, afilhada de João, uma rapariga muito
nova, com um belo arzinho de noviça, moreno-clara, olhos cor de azeitona,
carnes rijas, e cuja atenção volvia-se insistentemente para o Zuza.

As outras
pessoas eram também da intimidade: o Loureiro, guarda-livros da firma Carvalho
& Cia., o Dr. Mendes, juiz municipal, mais a senhora, a Lídia Campelo,
filha da viúva Campelo, e o estudante. Às vezes ia mais gente e o víspora
prolongava-se até meia noite.

João da
Mata era um sujeito esgrouviado, esguio e alto, carão magro de tísico, com uma
cor hepática denunciando vícios de sangue, pouco cabelo, óculos escuros através
dos quais boliam dois olhos miúdos e vesgos. Usava pêra e bigode ralo caindo
sobre os beiços tesos como fios de arame; a testa ampla confundia-se com a meia
calva reluzente. Falava depressa, com um sotaque abemolado, gesticulando
bruscamente e, quando ria, punha em evidência a medonha dentuça postiça.
Noutros tempo, fora mestre-escola no sertão da província, donde mudara-se para
a capital por conveniências particulares. Era então simplesmente o professor
Gadelha, o terror dos estudantes de gramática. O sertão foi-lhe aborrecendo;
estava cansado de ensinar a meninos, era preciso pela vida noutro meio mais
vasto onde as suas qualidades, boas ou más, fossem aquilatadas com justiça. Estava
se perdendo, se inutilizando, fossilizando-se, por assim dizer, entre um
vigário seboso e pernóstico e um delegado de polícia ignorante:  –
“Não era uma águia, Um Abílio Borges, um Macedo… mas reconhecia que
também não era burro. Até podia fazer figura em Fortaleza”.

E abalou
com tanta felicidade que não tardou ser nomeado comissário de socorros ao tempo
da grande seca de 77, dois anos depois de sua chegada à capital. Desde logo
tornou-se conhecido, suas façanhas corriam impressas nos pasquins domingueiros.
D’uma feita escapou milagrosamente de ser preso por crime de defloramento numa
menor, criada do Dr. Morais da Silva; d’outra feita apanhou de rebenque na cara
por haver caluniado um capitão d’infantaria propalando uma infâmia. Toda a
gente o conhecia muitíssimo bem, por sinal tinha uma cicatriz oblonga e funda
na têmpora esquerda, e não largava o mau veso de roer o canto das unhas.

Depois da
seca entregou-se de corpo e alma à política, à intriguinha partidária, à
rabulice, à cabala eleitoral, à chicana. Toda vez que se anunciava um pleito,
punha em jogo as mil e uma sutilezas que só o seu espírito sagaz podia
conceber. Ninguém como ele sabia copiar uma chapa em letra
firme e aprumada. Aquilo a pena cantava no papel que nem o lápis d’um
taquígrafo. E que letra, que esplêndido talhe! Ninguém como ele sabia tirar
proveito d’uma vitória alcançada pelo partido. Discutia, falava alto,
berrava… impunha-se!

 – Extraordinário homem! diziam os chefes
políticos; destes é que nós precisamos, destes é que precisa o partido.

Mas João
sabia vender caro o seu peixe. Fazia política por uma espécie de ambição
egoísta, visando sempre tirar resultados positivos de suas artimanhas, embora
com prejuízo de alguém.

Dinheiro é
o que ele queria, não lhe fossem falar em política sem interesse pessoal.

” –
Histórias, homem, histórias! Isso de patriotismo é uma patranha, um rótulo
falso! O que se quer é dinheiro, o santo dinheirinho, a mamata. Qual pátria,
qual nada! Patacoadas!” Ele, João, trabalhava, lá isso era inegável: dava
o seu voto, cabalava, servia de testa de ferro, mas… tivessem paciência 
– era mão p’ra lá, mão p’ra cá. Porque  – argumentava  – a política é
uma especulação torpe como qualquer outra, como a de comprara e vender couros
de bode na praia, a mesmíssima cousa; pois não é? P’ra tudo é preciso jeito,
muito jeitinho…

Agora,
porém, andava meio retraído, dava o seu voto, calado, e  – passe muito
bem!  – A política só lhe trouxera enganos e inimigos. Não estava mais
para servir de degrau a figurão algum. Que se fomentassem! É boa! Trabalhara
que nem besta de carga para no fim das contas ganhar o quê? Um pingue lugar de
amanuense? Um miserável emprego que se anda oferecendo por aí a qualquer
vagabundo? Decididamente não o pilhavam mais para a canga… Estava experimentado,
meus senhores, experimentadíssimo.

E agora,
com efeito, ninguém o via mais nas redações, entre os jornalistas da terra, a
esbravejar contra os adversários, nem nos cafés, quanto mais em dia de eleição,
sentado, como dantes, na sua cadeira de mesário, carrancudo, circunspecto, a
contar votos, a lavrar atas. Estava outro homem, completamente outro: amigo de
casa, vivendo p’ra si, com poucas amizades, metódico, econômico, às voltas com
sua atrabílis crônica, sem ambições, sem dívidas.

A sua
grande paixão, o seu fraco, era a Maria do Carmo, a menina dos seus olhos, a
afilhadinha; queria um bem extraordinário à rapariga e tratava-a com um carinho
languido de amante apaixonado no supremo grau do amor incondicional. Criara-a
desde pequena, era como se fosse pai, tinha direitos sobre ela; podia mesmo
beijá-la  – sem malícia, já se deixa ver  – nas faces, na testa, nos
braços e até, porque não? na boca.

Às vezes,
quando Maria voltava da Escola Normal, ele mandava-a sentar na rede, a seu
lado. A pequena guardava os livros, e lá ia, sem fazer beiço, deitar-se com o
padrinho, amarfanhando o rico vestidinho de cretone passado a ferro pela manhã.
Obedecia-lhe cegamente, nunca lhe dissera uma palavra áspera; ao
contrário  – eram carinhos, cafunés no alto da cabeça. cócegas, histórias
d’almas d’outro mundo e gracinhas p’ra ele rir… Tinha sempre um sorriso
fresco e luminoso para “o seu padrinho”. E João da Mata sentia um bem
estar incomparável, uma delícia, um gosto inefável ante aquele esplendido tipo
de cearense morena, olhos cor de azeitona onde boiava uma névoa de ingenuidade,
cabelos compridos descendo até a altura dos quadris, desmanchando-se em ondas
de seda finíssima… Quantas vezes, quantas? punha-se por traz dos grandes
óculos escuros a olhá-la como um pateta, sem que ela sequer percebesse a
fixidez de seu olhar cheio de desejo!

Maria
estava-se pondo moça, entrava nos seus quinze anos, e o padrinho a adorá-la
cada vez mais!

João
começou a inquietar-se com as frequentes visitas do Zuza. Por fim notara certas
tendências do estudante para a pequena, certo quebrar d’olhos, uma como
insistência atrevida em dizer as coisas por metáforas… Isso o incomodava,
punha-lhe pruridos na calva, enraivecia-o. Quanto ao Loureiro não havia risco,
o guarda-livros estava para se casar com a Campelinho, era um rapaz sério. Mas
o senhor Zuza?… Ali andava namoro, apoustava. Tinha idéia de ter lido
na Província uns versos dedicados a M.C. e
assinados por Z***. Naquela noite, sobretudo, pareceu-lhe ver
o mariola passar uma carta, um papel à Maria. Boas! Era preciso por um termo ao
descaramento, sob pena de ele, João, desmoralizar-se no conceito da gente
séria. Lá por ser filho do Sr. Coronel Souza Nunes não fosse pensar que faria o
que bem entendesse. Alto lá! Tudo menos patifaria dentro de sua casa.

E enquanto
ia enchendo os cartões automaticamente, sem olhar para os números, pensava em
Maria do Carmo, mordendo com desespero as guias do bigodaço.

Quando o
Zuza, todo gabola e amaneirado, vermelho do calor da luz, gritou  – víspora numa
voz triunfante e clara, João este quase atirando-lhe com o cartão. Vieram-lhe
desejos imoderados de estourar, de dar escândalo, trêmulo, nervoso, a semicalva
reluzente de suor.

 – Sim senhor, disse secamente devolvendo o
cartão. Vamos à última…

E o jogo
continuou. Fez-se novo silêncio. Agora era o Zuza, o futuro bacharel, que cantava pausadamente,
tirando as pedras com as pontas dos dedos e colocando-as devagar, cauteloso.

 Davam
nove horas na Sé quando todos se ergueram. A Campelinho suplicou mais uma
partida, o Loureiro também foi de opinião que se jogasse ainda uma vez, todos
enfim, desejavam continuar, mas João da Mata opôs-se tenazmente: que era tarde,
tinha muito que escrever.

 – Uma só, meu padrinho, rogou Maria do Carmo
tomando-lhe as duas mãos e fitando-o com os seus magníficos olhos cor de
azeitona.

O amanuense
estremeceu. Agora era a própria afilhada, a Sra. D. Maria do Carmo que lhe
pedia com um sorriso extraordinário que jogassem! E na sua imaginação
acentuava-se a suspeita do namoro com o estudante.

Curvou-se e
proferiu um palavrão ao ouvido da rapariga. Estava desesperado, não se
continha.

 – Não senhora, por hoje basta de víspora!

 – !

Todos
admiraram a súbita mudança na sua fisionomia a princípio tão alegre.

A mulher do
Dr. Mendes, muito afetada, acotovelou o marido e despediu-se “até a
primeira vista”.

Zuza foi o
último a retirar-se, fitando em Maria um olhar embebido de ternura.

A noite
estava muito escura e calma. As estrelas tinham um brilho particular, altas,
minúsculas como cabeças d’alfinete em papel de seda escuro. Ouvia-se
distintamente, como por um tubo acústico, a toada dos soldados rezando à Virgem
da Conceição
 no quartel de linha e o marulhar da praia distante. A rua
do Trilho, deserta, com sua iluminação incompleta, naqueles confins a cidade,
parecia um túnel subterrâneo. Fazia medo transitar ali a deshoras.

Assim que
se foram os habitués do víspora, João da Mata desabafou. 
– Uma patifaria! O Sr. Zuza pretendia sem dúvida abusar da sua confiança,
plantar a desordem no seio da família, mas estava muito enganado. Ali era casa
de gente pobre e honesta. Estava muito enganadinho, seu pelintra!

 – Mas eu sei quem é a culpada, acrescentou
furioso; a culpada é a Sra. D. Maria do Carmo, por que se atreve a olhar para
ele!

Aquilo não
podia continuar, o Sr. Zuza não lhe punha mais os pés em casa sob o pretexto
algum. Não se portava sério? Pois então  – fora p’ra rua!

Estavam
fazendo de sua casa um alcouce! A Sra. D. Lídia vinha namorar o outro às suas
barbas; já uma vez caíra-lhe porta dentro uma imundície de carta anônima
denunciando certos abusos.

E colérico,
soprando o bigode, sacudindo os braços, esmurrando a mesa, berrava, com os
olhos na alcova onde sumira-se D. Terezinha.

Maria
desaparecera pelo corredor e chorava debruçada sobre a mesa do jantar, onde
ardia uma vela de carnaúba.

 – Que sujeito! gania o amanuense. Pensa ele
que não tem mais do que enfronhar-se num fato de casimira clara, com uma flor
no peito, com modos de safardana, e zás! plantar-se na pequena, mas está muito
enganado! Aqui estou eu (e batia com força no peito ossudo) para impedir
escândalos em minha casa!

Debalde D.
Terezinha aconselhava, aflita, que não desses escândalo, que fosse
dormir.  – “As paredes têm ouvidos, dizia ela dentro da alcova. O
moço era filho de gente graúda, e ele, Janjão, um simples empregado público.
Tivesse modos. Se houvesse má intenção por parte do Zuza, ela, Teté, seria a
primeira a não consentir que ele pisasse o chão de sua casa. Mas, não senhor, a
gente deve pensar antes de fazer as cousas. P’ra que todo aquele espalhafato,
porque semelhante barulho”.

João da
Mata, porém, estava fora de si, tinha a cabeça a arder como uma brasa. Seu
temperamento excessivamente irritável expandia-se com desespero ao mesmo tempo
que seu coração de homem gasto sentia pela primeira vez um quer que era, uma
agonia, uma sufocação ante a possibilidade de um namoro entre o estudante e a
afilhada. Não era precisamente receio de que o Zuza pudesse iludir a rapariga
desonrando e atirando-a p’ra aí ao desprezo; era como revolta do instinto, uma
espécie de egoísmo animal que o torturava, acendendo-lhe todas as cóleras,
dominando-o, como se Maria fosse propriedade sua, exclusivamente sua por
direito inalienável. Via-a caída pelo acadêmico, toda voltada para ele, amando-o
talvez, preferindo-o a todos os outros homens, entregando-se-lhe. E o que seria
dele, João, depois? Nem mais uma beijoca na boquinha rubra e pequenina, nem
mais um abraço ao voltar da escola, cansadinha, o rosto afogueado pelo calor;
nem mais uns cafunés, nem um sorriso daqueles que ela sempre tinha para o
padrinho… Isto é que o desesperava!

Desde a
saída de Maria do colégio das Irmãs de Caridade tinha se operado uma mudança
admirável nos hábitos de João da Mata. Ela já era para ele como uma filha; estava
quase moça, incomparavelmente mais bonita e fornida de carnes. Já não era, que
esperança! aquela Maria do Carmo da Imaculada Conceição, toda
santidade, magrinha, com uma cor esbranquiçada e mórbida de cera velha, o olhar
macilento, a falar sempre no Padre Reitor e na Superiora e na Irmã Filomena e
noutras pieguices. Uma tontinha a Maria naquele tempo. Quando ia passar o
domingo em casa, uma vez no mês, metia-se para os fundos do quintal ou pelas
camarinhas, muito calada, muito sonsa, a ler a Imitação; não
chegava à janela, não aparecia às visitas, doida por voltar ao colégio. Aquilo
punha o padrinho de mau humor. Uma coisa assim fazia até vergonha a ele que
detestava tudo que cheirasse a sacristia. Porque João da Mata dizia-se pensador
livre; não acreditava em santos, e maldizia os padres. Jesus, na sua opinião,
era uma espécie de mito, uma como legenda mística sem utilidade prática. Isso
de colégios internos à guisa de conventos não se acomodava com o seu
temperamento. Também fora professor, olé! e sabia muito bem o que isso
era  – “um coito de patifarias”. Queria a educação como nos
colégios da Europa, segundo vira em certo pedagogista, onde as meninas
desenvolvem-se física e moralmente como a rapaziada de calças, com uma rapidez
admirável, tornando-se por fim excelentes mães de família, perfeitas donas de
casa, sem a intervenção inquisitorial da Irmã de Caridade. Não compreendia
(tacanhez de espírito embora) como pudesse instruir-se na prática da
indispensável da vida social uma criatura educada a toques de sineta, no
silêncio e na sensaboria de uma casa conventual entre paredes sombrias, com
quadros alegóricos das almas do purgatório e das penas
do inferno
; com o mais lamentável desprezo de todas as prescrições
higiênicas, se ar nem luz, rezando noite e dia  – “ora pró nobis,
ora pró nobis
“. Era da opinião do José Pereira da Província: “Irmãs
de Caridade foram feitas para os hospitais”. O diabo é que no Ceará não
havia colégios sérios. A instrução pública estava reduzida a meia dúzia de
conventilhos: uma calamidade pior que a seca. O menino ou menina saía da escola
sabendo menos que dantes e mais instruído em hábitos vergonhosos. As melhores
famílias sacudiam as filhas Imaculada Conceição como único
recurso para não vê-las completamente ignorantes e pervertidas. Afinal, para
não contrariar o Mendonça, que queria a filha para santa, metera Maria do Carmo
no “convento”.

D.
Terezinha participava das mesmas idéias de Janjão. Uma menina inteligente como
Maria devia educar-se no Rio de Janeiro ou num colégio particular, mas um
colégio onde ela pudesse aprender o “traquejo social”. Pode ser que
as Irmãs sejam umas mulheres virtuosíssimas e castas, ma filha sua não punha os
pés em colégio de freiras…

João da
Mata detestava a padraria. Dava-se apenas com um padre, o cônego Feitosa,
porque, dizia ele, era um sacerdote sem hipocrisia, um padre como ele entendia
que deviam ser todos os padres, asseado, inimigo da batina, com afilhadas em
casa… E porque não? Os padres são fisicamente (e sublinhava a palavra),
anatomicamente, fisiologicamente, homens como os outros; têm coração, órgãos
sexuais, nervos como os outros homens. Portanto, assiste-lhes o mesmíssimo
direito de procriação, direito natural e até consagrado pela Escritura. O
contrário é contrafazer a natureza humana que, afinal, não obedece a preceitos
de castidade. D’aí, concluía João, d’aí o desregramento das classes religiosas
condenadas a eterno celibato. O próprio Cristo dissera numa parábola cheia de
senso e experiência : “Crescei e multiplicai-vos”.

“Por
amor de Deus” não lhe falassem em padres. A educação moderna, a educação
livre, sem intervenção da batina  – eis o que ele queria e apregoava alto
e bom som.

Havia meses
que Maria do Carmo cursava a Escola Normal. Sua vida agora traduzia-se em ler
romances que pedia emprestados a Lídia, toda preocupada com bailes, passeios,
modas e tutti quanti… Ia à Escola todos os dias vestidinha com
simplicidade, muito limpa, mangas curtas evidenciando o meio braço moreno e
roliço, em cabelo, o guarda-sol de seda na mão, por ali afora  – toc, toc,
toc  – até a praça do Patrocínio, como uma grande senhora independente.

Agora, sim,
pensava o amanuense, Maria estava uma mocetona digna de figurar em qualquer
salão aristocrático.

A fama da
normalista encheu depressa toda a capital. Não se compreendia como uma
simples retirante saída há pouco das Irmãs de Caridade fosse
tão bem feita de corpo, tão desenvolta e insinuante. As outras normalistas
tinham-lhe inveja e faziam pirraças. Nas reuniões do Club Iracema era
ela a preferida dos rapazes, todos a procuravam.

João da
Mata inflava. Certo não a entregaria por preço algum a qualquer rapazola como o
filho do coronel Souza Nunes.

Entretanto
o Zuza era um rapaz da moda. Montava a cavalo, fazia versos, assinava a Gazeta
Jurídica,
 frequentava o palácio do presidente…

João
conhecera-o uma noite no baile do Dr. Castro. Havia meses que se achava em
Fortaleza estudando o quinto ano de direito e gozando a sua fama de rapaz rico.
Às seis horas da tarde já lá estava no Trilho, em casa do amanuense,
queixando-se da monotonia da vida cearense e gabando, com ares de fidalgo, a
capital de Pernambuco. Ali, sim, a gente pode viver, pode gozar. Muito
progresso, muito divertimento: corridas de cavalos, uma sociedade papa-fina
muitíssimo bem educada, magníficos arrabaldes, certo bom gosto nas toilettes, nos
costumes, certas comodidades que ainda não havia no Ceará.

 – Ao que parece o Sr. Zuza não gosta do
Ceará… disse-lhe um dia D. Terezinha.

 – Absolutamente não, minha senhora. Sou meio
exigente em matéria de civilização; isto me parece ainda uma terra de bugres…

 – De bugres!?

 – … Sim, uma terra em que só se fala nas
secas e no preço da carne verde, V. Excia. compreende, não pode corresponder às
expectativas d’um rapaz de certa ordem, por assim dizer educado na Veneza
Americana…

 – Deste modo o Sr. Zuza ofende os seus
conterrâneos, os seus parentes.

 – Absolutamente não.

O que dizia
é que o Recife está em um plano superior a Fortaleza. Apenas estabelecia um
paralelo.

João da
Mata achava-o pedante, desequilibrado, tolo.  – “Não, o Sr. Zuza não
lhe punha mais os pés em casa por forma alguma!” bradava naquela noite.

Maria
continuava a chorar lá dentro, na sala de jantar, inconsolável, triste, com um
grande desgosto nalma. De repente ouviu a voz do padrinho que a chamava.
Ergueu-se com um movimento brusco e rápido, o lenço nos olhos, soluçando
devagar.

João quis
saber onde estava “a carta que o Zuza lhe havia entregue”. Botasse
p’r’ali, já!

Trêmula,
abafando a cólera que lhe oprimia a respiração, Maria não podia falar.

 – Vamos, vamos!

 – Não tenho carta alguma, disse num acento
doloroso.

João da
Mata sentiu atar-se-lhe o fogo da concupiscência. Teve ímpetos de tomar entre
as mãos a cabeça da afilhada e beijá-la, beijá-la sofregamente, com a fúria de
um selvagem, no pescoço, na boca, nos olhos… ímpetos de beijá-la toda
inteira, como um doido. Maria dominava-o, fazia-lhe perder a tramontana.

 – Então aquele bandido não lhe entregou uma
carta por debaixo da mesa, no víspora? Entregou, sim senhora, dê-m’a!

 – Não senhor, não me entregou coisa alguma,
tornou a normalista, sem levantar a cabeça, fungando.

Estavam em
frente um do outro, ao pé da mesa. As portas da sala já tinham-se fechado; ele
com o paletó aberto mostrando a camisa-de-meia cor de carne, o olhar fixo em
Maria; ela com o seu vestidinho claro de chita, cabelos penteados numa trança,
acaçapada, submissa ante a cólera rude do padrinho.

 – Pois bem, concluiu este moderando a voz.
Tome sentido: vocemecê não me aparece mais àquele cabrocha, está ouvindo?

E depois
d’uma pausa, com ternura:

 – Vá dormir, ande…

Soprou o
gás e foi deitar-se com a mulher, na alcova.

 – Pois não achas, Teté, dizia ele em camisa de
dormir, aconchegado a D. Terezinha na larga cama de jacarandá; não achas que é
um desaforo aquele patife vir à nossa casa para namorar?

 – Não, que tolice. O Zuza até é um rapaz
sério… Vem, coitado, porque nos estima…

 – É boa! fez João. Então vem porque nos
estima, hein? Esta cá me fica, Sra. D. Teté, esta cá me fica!

 – Homem, trate de suas hemorróidas que é
melhor…

 – Ora, sabe que mais? Você é outra!

E deram-se
as costas fazendo ranger a cama.

Com pouco
ambos roncavam no discreto silêncio da alcova.

Sobre a
cômoda, ao pé do oratório, ardia uma lamparina de azeite.

 

2

 

Foi numa
tarde infinitamente calma de dezembro de 1877 que o capitão Bernardino de
Mendonça chegou a Fortaleza pela estrada nova de Mecejana, depois de
penosíssima viagem.

A seca
dizimava populações inteiras nos sertão. Famílias sucumbiam de fome e de peste,
castigado por um sol de brasa. Centenas de foragidos, arrastando os esqueletos
seminus, cruzavam-se dia e noite no areial incandescente dos caminhos  –
abantesmas das desgraça gemendo preces ao Deus dos cristão, numa voz rouquenha,
quase soluçada. Era um horror de misérias e aflições.

Bernardino
de Mendonça foi dos últimos que abalaram do interior da província para o
litoral na pista dos socorros públicos. Totalmente desiludido, quase arruinado,
vendo todos os dias passarem pela sua porta, em Campo Alegre, magotes de
emigrantes andrajosos que batiam do sertão num êxodo pungente, acossados pela
necessidade, resolvera também ir-se com a família para Fortaleza, embora mais
tarde fosse obrigado a procurar outros climas.

Era homem
sadio, vigoroso, excessivamente trabalhador e dedicado. Contava a esse tempo
quarenta anos, nada mais nada menos, e dizia com soberba, gabando o peito rijo,
não se trocar por muito rapazola pimpão que aí vive nas cidades grandes caindo
de tédio e preguiça, cheio de vícios secretos. Corria-lhe nas veias largas e
azuis de matuto inteligente puro e abundante sangue português. Nunca sofrera a
mais leve dor de cabeça. Conhecia a sífilis por ouvir falar. Casara muito moço,
imberbe ainda, aos dezesseis anos, com uma prima colateral, D. Eulália de
Mendonça Furtado, de uma família de Furtados da Telha. Até então só tivera três
filho, um dos quais, o mais velho, chamado Lourenço, fora recrutado para o
exército por peralta incorrigível. Outro, o Casimiro, mais rude e também mais
obediente, vivia com os pais, era mesmo o vaqueiro de Mendonça, que descobrira
nele especial vocação para esse inglório trabalho de andar atrás das
boiadas  – ecô! ecô!  – metido em couros, chapinhando açudes e
lagoas, galopando à brida solta nas várzeas, ao ar fresco das manhãs do norte,
identificado por assim dizer, com o mugir nostálgico e penoso do gado. Desde
menino, o pai acostumara-o à vida alegre do campo, e agora aí vinha também,
Deus o sabe, triste e apreensivo, caminho da capital cearense, no seu pedrês
choutão, escanchado entre dois grandes alforjes de farinha e carne salgada.

Por último
nascera Maria do Carmo, o último filho do Mendonça, a caçula. Em
1877 completara seis anos, e para felicidade dos pais, era uma criança
verdadeiramente encantadora, com seu arzinho ingênuo e meio de sertaneja. A
cor, os olhos, os dentes, o cabelo  – tudo nela era um encanto: olhos
puxados para negros, dentes miudinhos e de um brancura de algodão em rama,
cabelos negros e luzidios como a asa da graúna  – moreno-clara. Crescia sem
outra educação a não ser a que lhe davam os pais, de modo que, naquela idade,
mal soletrava a Doutrina Cristã.

Mendonça
abalara de Campo Alegre quando de todo lhe tinham fugido as esperanças
d’inverno seguro, depois de ter visto estrebuchar a última rês no solo duro e
estéril.

Todas as
tardes, invariavelmente, da janela que dizia para o poente, ou em pé na
varanda, consultava o tempo, os horizontes cor de cinza, o céu d’um azul
diáfano de safira, procurando bispar na inclemência da atmosfera imóvel a sombra
fresca de uma nuvem, um indício qualquer de chuva.

Surpreendia,
às vezes, crivando a transparência do ar, revoadas d’aves de arribação.
Recolhia-se animado. Mas os dias passavam quentes e seco.

Outras
vezes, à noitinha, clarões rápidos e lívidos abriam-se no poente como reflexos
de luz elétrica; ouvia-se rolar a trovoada muito ao longe. Mendonça punha-se a
escutar calado, sentia um como arrepio bom, e lá tornava a iludir-se
alimentando, toda uma noite, a doce esperança de ver pela manhã o solo úmido e
a rama brotando verde e pujante da “fornalha”. Mas qual! As manhãs
sucediam-se cada vez mais tépidas, sem pingo d’água, uma aragem leve, de
cemitério, arrepiando a folhagem do arvoredo. Um céu muito alto, varrido,
monótono, indecifrável como um dogma.

E pouco a
pouco aquele estado de coisas foi atuando forte no espírito do sertanejo, como
as vibrações d’um clarim que dá sinal de marcha; pouco a pouco foi se
convencendo que aquilo era uma situação impossível em que ele não devia
absolutamente permanecer.

Os açudes
estorricavam mostrando os leitos gretados pelo sol, duros como pedra, juritis
encadeadas iam espapaçar ofegantes no chão, defronte da casa; cascavéis
chocalhavam no alpendre, ocultas, invisíveis, e todas as coisas tinham um
aspecto desolado e lúgubre que se comunicava às criaturas.

Passava
gente todo santo dia, a pé, de trouxa ao ombro, arrastando-se pesadamente.

Uma vez,
ele próprio, Mendonça, vira de perto a agonia lenta de uma mulher asfixiada
pela elefantíasis  – pernas inchadas, ventre inchado, rosto inchado 
– horrível.

Decididamente
era tempo de arrumar também “os seus cacos” e  – adeus, Campo
Alegre, adeus, carnaubais rumorejantes; adeus, igrejinha branca! Ir-se-ia fazer
pela vida em qualquer parte, em Fortaleza, onde felizmente contava amigos políticos,
correligionários dedicados que certamente lhe não recusariam uma acha de lenha,
uma pouca d’água fresca, um punhado de farinha… Demais era homem, graças a
Deus, forte como um novilho, tinha sangue nas veias  – trabalharia!

Ao mesmo
tempo lembrava-se da “sua velha”, da Eulália, que andava adoentada,
com umas pontadas no coração, muito fraca e cuja natureza talvez não resistisse
às fadigas d’uma viagem longa; pensava em Maria do Carmo, sua filha querida, a
menina dos seus olhos, tão nova ainda, e punha-se a meditar nos horrores da
seca, nas febres de mau caráter, na quase absoluta falta d’água, com um
desalento a aniquilar-lhe as forças, a dobrar-lhe a altivez de forte. Depois
tornava ao mesmo fio de ideias: não, aquele inferno do sertão, com um raio de
tempo medonho, seria talvez pior, seria a sua desgraça. De si para si media,
calculava meticulosamente toda a gravidade da situação a que chegara. Não havia
outro recurso, outro jeito senão marchar para a capital, para onde quer que
fosse, como tantos outros infelizes empolgados pela miséria. Iria, que remédio?
bater à porta de um amigo, de um correligionário, de um cristão. Lembrou-se
então do “compadre João da Mata”, padrinho de Maria.

Muito bom:
iria ao compadre.

Arribaram
de manhã, muito cedo, ao romper d’alva. Os cavalos, magros e ruins, romperam
num trote miúdo . Ao passarem defronte da igrejinha do povoado, um pobre nicho
todo fechado, com suas janelinhas por pintar, solitário como uma coisa inútil,
D. Eulália ciciou uma oração, e os outros, Mendonça e Casimiro, descobriram-se
com respeito.

Entraram
por uma estrada de areia que se prolongava indefinidamente, torcendo e
retorcendo-se em ziguezagues, ocultando-se aqui para brilhar lá adiante por
cima da floresta imóvel, como uma enorme serpente amarela dormindo ao sol…

As pisadas
dos animais abafavam-se na areia, e apequena caravana sumia-se na distância…

Ao cabo de
doze longos dias em que paravam para repousar à sombra d’alguma árvore que
ainda verdejava ou nalguma palhoça abandonada, avistaram o campanário branco e
alegre do Coração de Jesus, direito e esguio, como o minarete de um templo
muçulmano, destacando na meia sombra crepuscular, esbatido pela irradiação do
sol que tombava glorioso ao fundo da tarde pardacenta.

Morria no
ar calmo o dobre melancólico de um sino…

Flutuava um
cheiro vago de cousas podres. Para as bandas do Pajeú ardiam restos de
fogueiras a extinguir-se.

Uma tarde
infinitamente clama, essa…

Havia oito
anos que isto fora, mas nos seus momentos de desânimo, Maria do Carmo punha-se
a relembrar toda essa tragédia de sua infância. Olhava para o passado com a
alma cheia de saudade, recordando, tim-tim por tim-tim, como se estivesse lendo
num livro, ninharias, minudências de sua vida naqueles tempos em que ela, pobre
e matutinha, via tudo cor de rosa através do prisma límpido e imaculado de sua
meninice. Transportava-se, num vôo da imaginação, a Campo Alegre, e via-se,
como por um óculo de ver ao longe, ao lado da mamãe, costurando quieta ou
soletrando a Cartilha, ou na novena do Senhor do Bonfim, muito
limpa, com o seu vestidinho de chita que lhe dera o Sr. vigário. Lembrava-se do
papai, quando voltava do roçado,. de camisa e ceroula, chapéu de palha de
carnaúba, tostado, trigueiro do sol, contando histórias de onças e maracajás…

Recapitulava
mentalmente, com uma precisão cronológica, toda a sua vida e ficava horas e
horas em cisma, a pensar como se tivesse perdido o juízo… Nas Irmãs de
Caridade é que lhe sobrava tempo para isso. Vinham-lhe à mente os episódios da
viagem: uma grande cobra cascavel que o papai matara ao pé d’uma árvore, à
faca; as dificuldades que encontraram no caminho; um ceguinho que cantava na
estrada sem ter o que comer…

Nunca mais
lhe saíra da cabeça um retirante que ela vira estendido no meio do caminho,
sobre o areal quente , ao meio dia em ponto, morto, e completamente nu, com os
olhos já comidos pelos urubus, os intestinos fora, devorado pelas varejeiras…
Que feio aquilo!

Não era má,
de resto, a sua vida agora, em casa dos padrinhos, não era, mas se fosse
possível tornar a ser criança, renascer e viver outra vez em Campo Alegre…

No dia
seguinte ao da chegada à capital, D. Eulália morrera d’uma síncope cardíaca.
Maria lembrava-se muito bem: a mamãe fora para o cemitério na padiola da Santa
Casa de Misericórdia, toda de preto… Parecia vê-la ainda, com os olhos
fundos, entreabertos, mãos cruzadas sobre o peito, dentro do esquife…

Tempos
depois vira-a em sonho, numa nuvem de incenso, cercada d’anjos com um manto
azul recamado de estrelas, subindo para o céu… Por sinal acordou
sobressaltada, chamando pela madrinha, encolhendo-se na rede, fria de medo.

Dias depois
Mendonça embarcara para o norte. Ainda acabrunhado pelo desgosto que lhe
trouxera a morte quase repentina da mulher, manifestou a João da Mata desejos
d’ir tentar fortuna onde quer que fosse. Não podia continuar no Ceará, viúvo e
ocioso, de braças cruzados, sem dinheiro, olhando para o tempo, decididamente
não podia continuar. Mas havia uma dificuldade  – a Maria. Se o compadre
quisesse tomar a menina, encarregar-se de sua educação, mediante uma mesada, um
pequeno auxílio…

O amanuense
aceitou. Que fosse imediatamente para o norte. A vida no Ceará não valia
coisíssima alguma. O Pará, sim, aquilo é que é terra de fartura e de dinheiro.
Um homem trabalhador e honesto, como o compadre, com uma pouca experiência,
podia enricar da noite para o dia. Os seringais, conhecia os seringais? eram
uma mina da Califórnia. Tantos fossem quantos voltavam recheados, de mão no
bolso e cabeça erguida. E o Ceará? Fome e miséria somente. Num mês morriam três
mil pessoas, eram mortos a dar com o pé, morria gente até defronte do palácio
do governo, uma lástima!

E
acrescentou que o Ceará era boa terra para os políticos e ricaços, que o pobre
em Fortaleza, ainda que pesasse quilogramas d’honradez, era sempre o pobre,
maltratado, espezinhado, ridicularizado, perseguido, enquanto que o indivíduo
mais ou menos endinheirado podia contar amplamente, largamente (e abria os
braços) com a simpatia geral;: tinha ingresso em todos os salões, em toda a
parte, até no “santuário da família”, fosse ele, embora, um patife,
um grandíssimo canalha. Usava chapéu alto e gravata branca? Tinha um título de
bacharel? Não fizesse cerimônia, podia entrar onde quisesse.  – “Uma
terra de famintos, seu compadre! Fome, miséria e patifaria era o que se
via”. – Com a Maria do Carmo não tivesse cuidado; ele, João da Mata, havia
de tratá-la como filha, não lhe faltaria nada; teria para ela todas as
carícias, todos os afagos de um pai. Mendonça podia mesmo demorar o tempo que
quisesse no Pará, anos séculos… a menina ficava em casa de gente séria,
pobre, é verdade, mas honrada.

Daí a dias,
um domingo de muito sol e muito vento, realizou-se o embarque do capitão
Mendonça e Casimiro.

Os conselhos
de João calaram muito forte no ânimo forte e resoluto do sertanejo, cuja
confiança no compadre era ilimitada. Sabia-o conhecido em quase todo o Ceará,
estimado mesmo por pessoas de bem, admirava-lhe muito o “coração
generoso” e democrata, por tal forma que João se lhe afigurou o único
homem capaz de concorrer para a felicidade de sua filha  – reflexões
nascida da boa-fé e da inexperiência da vida social, que enchiam de íntima e
doce consolação a alma ingênua e simples do sertanejo.

Mendonça
conhecia Fortaleza superficialmente; suas viagens à capital tinham sido
raríssimas; viera vezes contadas a negócios. Sabia os homens propensos aos mal,
por mais duma vez ele próprio fora vítima da ingratidão e indivíduos que se
diziam seus amigos e a quem fizera grandes benefícios; porém, a vida ruidosa e
dissoluta das capitais, esse tumultuar quotidiano de virtudes fingidas e vícios
inconfessáveis, esse tropel de paixões desencontradas, isso que constitui, por
assim dizer, a maior felicidade do gênero humano, esse acervo de mentiras
galantes e torpezas dissimuladas, esse cortiço de vespas que se denomina 
– sociedade, desconhecia-o ele e nem sequer imaginava. Lá, no seu tranquilo
recanto de Campo Alegre, onde só de longe em longe chegava o eco da vida
elegante, ouvira falar em mulheres que traiam maridos, filhos que assassinavam
os pais, incestos de irmãos, homens que negociavam com a própria honra… e
tudo isso parecia-lhe simples “invenção das gazetas”, romances de
sensação que ele ruminava devagar e esquecia depressa.

 – “É uma grande alma aquele
Mendonça!” admiravam os amigos.

E era-o.

Resolvera
como que recomeçar a vida, esquecer o passado, recuperar o tempo perdido,
trabalhando como um mouro, entregando-se ao labor com todas suas forças, dia e
noite, sem descanso, nas florestas do Pará.

E lá se
fora barra fora, mais o Casimiro, na proa d’um vapor brasileiro, honrado e
obscuro, no meio de dezenas de emigrantes que, como ele, iam fazer pela vida
até… sabiam lá!…

Antes de
embarcar teve cuidados maternais para a filha. Comprou peças de chita, rendas,
fitas, bugigangas, fantasias, tudo escolhido, tudo bom, e uma maleta americana.
Chamou-a à parte, beijou-a na testa e disse-lhe com os olhos cheios d’água e a
voz trêmula “que o papai havia de voltar se Deus quisesse, que ela fosse
boa e obediente aos padrinhos, que estudasse, estudasse muito, porque era feio
uma mulher ignorante, e, finalmente, que não esquecesse rezar por alma da
mamãe…”

Maria
lembrava-se de tudo.

Depois ela
ficara sozinha em companhia dos padrinhos.

Nesse tempo
moravam na rua de Baixo. Tinha-se mudado tudo: morrera-lhe a mãe, morrera-lhe o
pai d’uma febre, no alto Purus. O Casimiro, ninguém dava notícia d’ele, nunca
mais voltara…O Lourenço, esse, ela não conhecia  – andava no sul feito
soldado. Estava só, por assim dizer, numa casa alheia. E, contudo, podia dizer
que não tinha tristezas, uma ou outra vez é que se punha a pensar no passado,

Depois que
saíra da Imaculada Conceição a vida não lhe era de todo má.
Ora estava no piano, ensaiando trechos de música em voga, ora saía a passear
com a Lídia Campelo, de quem era muito amiga, amiga de escola, ora lia
romances… Ultimamente a Lídia dera-lhe a ler O Primo Basílio,
recomendando muito cuidado: “que era um livro obsceno”, lesse
escondido e havia de gostar muito.  – “Imagina um sujeito bilontra,
uma espécie de José Pereira, sabes? o José Pereira da Província, sempre
muito bem vestido, pastinhas, monóculo…”

 – Não contes, atalhou Maria, tomando o
livro  – quero eu mesmo ler… Gostaste?

 – Mas muito! Que linguagem, que observação,
que rigor de crítica!… Tem um defeito  – é escabroso demais.

 – Onde foste tu descobrir esta maravilha,
criatura?

 – É da mamãe. Vi-o na estante, peguei, li-o.

Maria
folheou ao acaso aquela obra prima, disposta a devorá-la. E, com efeito, leu-a
de fio a pavio, página por página, linha por linha, palavra por palavra,
devagar, demoradamente.

Uma noite,
o padrinho quase a surpreendeu no quarto, deitada, com o romance aberto, à luz
d’uma vela. Porque ela só lia o Primo Basílio à noite, no seu
misterioso quartinho no meio da casa pegado à sala de jantar.

Que regalo
todas aquelas cenas da vida burguesa! Toda aquela complicada história do Paraíso!…
A primeira entrevista de Basílio com Luiza causou-lhe uma sensação estranha,
uma extraordinária superexcitação nervosa; sentiu um como formigueiro nas
pernas, titlações em certas partes do corpo, prurido no bico dos seios púberes;
o coração batia-lhe apressado, uma nuvem atravessou-lhe os olhos… Terminou a
leitura cansada, como se tivesse acabado de um gozo infinito… E veio-lhe à
mente o Zuza; se pudesse ter uma entrevista com o Zuza e fazer de Luiza…

Até aquela
data só lera romances de José de Alencar, por uma espécie de bairrismo mal
entendido, e a Consciência de Heitor Mallot publicado em
folhetins na Província. A leitura do Primo Basílio despertou-lhe
um interesse extraordinário.

 – “Aquilo é que é um romance. A gente
parece que está vendo as cousas, que está sentindo…”

Não
compreendera bem certas passagens, pensou em consultar a Lídia; sim a
Campelinho devia saber a história da champagne passada num
beijo para a boca de Luiza.  – Que porcaria! E assim também a tal
“sensação nova!” que Basílio ensinara à amante… não podia ser cousa
muito asseada…

Terminada a
leitura do último capítulo, Maria sentiu que não fossem dois volumes, três
mesmo, muitos volumes… Gostara imensamente!

No dia
seguinte, antes de ir à Escola Normal, Maria teve uma entrevista secreta com a
amiga no quintal da viúva Campelo, que morava defronte do amanuense.

A
Campelinho tinha acabado de banhar-se e estava arranjando umas flores para a
Nossa Senhora do Oratório. Da saleta de jantar via-se o quintalzinho, cercado
d’estacas, estreito e comprido, com ateiras e um renque de manjericões ao
fundo, perto da cacimba. Uma pitombeira colossal arrastava os galhos sobre o
telhado. O chão úmido da chuva que caíra à noite, porejava uma frescura
comunicativa e boa.

Lídia
estava à fresca, de cabelos soltos sobre a toalha felpuda aberta nos ombros,
quando Maria apareceu.

 – Boa vida, hein? saudou esta. E logo
triunfante:  – Acabei o Primo Basílio!

 – Que tal?

 – Magnífico, sublime! Olha, vem cá…

E dando o
braço à outra, dirigiu-se para o “banheiro”, uma espécie de arapuca
de palha seca de coqueiro, acaçapada, medonha, sem a mínima comodidade e para
onde se entrava por uma portinhola de tábua mal segura.

 – Uma vez ali, sentadas ambas num caixote que
fora de sabão, única mobília do “banheiro!, Maria sacou fora o Primo
Basílio,
 cuidadosamente embrulhado numa folha da Província. Queria
que a Lídia explicasse uma passagem muito difusa, quase impenetrável à sua
inteligência.

 – É isto, menina, que eu não pude compreender
bem. E, abrindo o livro leu: “… e ele (Basílio) quis-lhe ensinar então a
verdadeira maneira de beber champagne. Talvez ela não
soubesse!… Como é? perguntou Luiza tomando o copo.  – Não é com o copo!
Horror! Ninguém que se preza bebe champagne por um copo. O
copo é bom para o Colares… Tomou um gole de champagne e num
beijo passou-o para a boca dela. Luiz riu…”, etc., etc.

 – Como explicas tu isso?

 – Tola! fez a Campelinho. Uma coisa tão
simples… Toma-se um gole de champagne ou de outro qualquer
líquido, junta-se boca à boca, assim… E juntou a ação às palavras.

 – … e pronto! bebe-se pela boca um do outro.
Tão simples…

 – E que prazer há nisso?

 – Sei lá, menina! tornou a outra com um gesto
de nojo, cuspindo. Pode lá haver gosto.

Depois, as
duas curvadas sobre o livro, unidas, coxa a coxa, braço a braço, passaram à
“sensação nova”.

Lídia apressou-se
a dizer que as “mulheres do mundo” é que sabem essas coisas… Quanto
a ela não conhecia outra sensação além dos beijos na boca, às escondidas, fora
os abracinhos fortes e demorados peito a peito, isto mesmo, com pessoas do
coração… Contou então que o seu primeiro namorado, um estudante do Liceu, um
fedelho, tentara certa vez… Concluiu baixinho ao ouvido de Maria, com receio
de que alguém as estivesse observando.

 – E consentistes?

 – Qual! Dei-lhe com um  – não  – na
cara, e o tolo nunca mais me fez festas.

Leram ainda
alguns trechos do romance, rindo, cochichando, acotovelando-se e depressa a
conversação tomou rumo diverso recaindo sobre o Zuza e o Loureiro.

 – A propósito, perguntou Maria, curiosa,
pretendes mesmo casar com o guarda-livros?

 – Porque não? fez a outra erguendo-se. Muito
breve tenho homem! Decididamente este não me escapa, tenho-o seguro… Vai
todas as noites à nossa casa, como vês, está caidinho. A mamãe já não repara,
deixa-se ficar com o d’ela…

 – Com o d’ela? inquiriu Maria com surpresa,
muito admirada

Apanhada em
flagrante indiscrição, Lídia confessou, muito em segredo, que uma noite
encontrara D. Amanda na alcova com o Batista da Feira Nova, um negociante…

 – !!!

Maria
tomava sentido, recalcando a curiosidade que lhe espiaçava o espírito. Calou-se
para não ser indiscreta, e, depois de uma pausa em que folheava maquinalmente o
romance:

 – Dize uma coisa, Lídia: tu amas deveras o
Loureiro?

 – Que pergunta, criatura! Certamente que sim.
Ele então tem uma paixa doida por mim! Bebe-me com o olhar e
me come de beijos. É na boca, no pescoço, na orelha, nos olhos, na nuca…
Nunca vi gostar tanto de beijos! E é preciso que se note, conhecemo-nos há três
meses! E o teu Zuza?

O namoro de
Maria com o filho do coronel Souza Nunes estava em começo. A falar a verdade,
ela gostava de Zuza e casaria se ele quisesse, mas até aquela data ainda não se
tinham comunicado. Conheciam-se  – nada mais.

Nessas
confabulações íntimas com a amiga, Maria, que começava a compreender a vida tal
como ela é na sociedade, fingia-se ingênua, tolinha, expediente que usava
sempre que desejava saber a opinião de Lídia sobre isto ou sobre aquilo.

A princípio
evitava conversar em amores, corando a qualquer palavra mais livre ou a
qualquer fato menos sérios que lhe contavam as colegas de estudo. Agora, porém,
ouvia tudo com interesse, procurando inteirar-se dos acontecimentos, sem
acanhamento, sem receio. Pouco a pouco foi perdendo antigos retraimentos que
trouxera da Imaculada Conceição. A convivência com as outras
normalistas transformara-lhe os hábitos e as idéias. A Lídia principalmente era
a sua confidente mais chegada. Quase sempre estavam juntas em casa, na Escola,
nos passeios, em toda parte onde se encontravam, de braços dados, aos
cochichos. Havia entre elas um comércio contínuo de carinhos, de afagos e de
segredos. Gabavam-se mutuamente, tinham quase os mesmos hábitos, vestiam-se
pelos mesmos moldes, como duas irmãs.

Lídia
Campelo tinha então vinte anos. era uma rapariga alta, fausse-maigree e
bem feita de corpo.

A razão por
que ainda não se casara ninguém ignorava, toda a gente sabia  – é que a
filha da viúva Campelo, por via do atavismo, puxava à mãe. Não havia na cidade
rapazola mais ou menos elegante, caixeiro de loja de modas que não se gabasse
de a ter beijado. Tinha fama de grande namoradeira, exímia em negócios de amor.
O próprio João da Mata não gostava muito daquela amizade com Maria. Mais de uma
vez dissera a D. Terezinha as suas desconfianças, os seus escrúpulos, os seus
receios com relação a essa intimidade da afilhada com a Lídia:  –
“Não consentisse a rapariga ir à casa da outra. Antes prevenir que
curar”.

Havia mesmo
quem ousasse afirmar que a Campelinho “já não era moça

Da viúva
diziam-se horrores: “aquilo era casa aberta…” Tantos fossem,
quantos ela recebia com um risinho se vergonha, arregaçando os beiços. A filha
seguia o mesmo caminho.

O certo,
porém, é que o procedimento de D. Amanda não escandalizava a sociedade. Vivia
na sua modesta casinha do Trilho, muito concentrada, sem amigas, num respeitoso
isolamento, saindo à rua poucas vezes na companhia da filha, não frequentando
os bailes nem o Passeio Público, e muito menos as igrejas: vivia a seu modo,
comodamente, do minguado montepio de seu defunto marido.

 – “Uma mulher honesta!” protestava o
Loureiro. Infâmias era o que diziam da pobre senhora, infâmias que caiam por
terra, ante o indefectível procedimento de Da. Amanda!

E
acrescentava, convicto:

 – Tal mãe, tal filha!

 

3

 

O velho
mostrador da sala de jantar deu meia noite, uma hora, e Maria do Carmo ainda
estava acordada, a pensar no Zuza, arquitetando frases para responder ao futuro
bacharel em ciências jurídicas. Porque o estudante, como sugeriu o amanuense,
achara meio de comunicar-se com a rapariga, atirando-lhe uma cartinha por baixo
da mesa, quando jogavam o víspora.

Era a
primeira vez que Zuza lhe escrevia numa letra caligráfica, de mulher, miudinha,
igual e redonda. Ao apanhar o envelope, com um movimento disfarçado, Maria
sentiu o sangue afluir todo para o rosto, como se todo o mundo a tivesse
surpreendido em flagrante às barbas do padrinho. Ela mesmo, depois, admirou sua
coragem, ela que nunca desrespeitara o amanuense, temendo-o como a seu pai. Não
pôde reprimir um susto, ficou fria, com os olhos baixos, sem prestar atenção ao
jogo. Pareceu-lhe ver através dos óculos escuros do padrinho um lampejo de
cólera concentrada. Tremia com o papel na mão, sem saber o que fizesse. Mas o
víspora continuava animado e ela pode cautelosamente guardar o objeto querido,
pretextando sede e levantado-se para beber água no interior da casa. Guardou-o
nem guardado, no fundo de uma caixinha de fitas, sem ler, e voltou
imediatamente ao seu lugar com um alívio, muito lépida.

Quando o
amanuense entro a esbravejar contra o Zuza, esmurrando a mesa, batendo portas,
colérico, medonho, Maria ficou lívida! Tá, tá, tá, tá, ia tudo águas abaixo, o
seu crime ia ser descoberto, não havia fugir. Estava irremediavelmente perdida!
Enfiou pelo corredor com as mãos na cabeça, aflita. Decididamente o padrinho ia
expulsá-la de casa… seu primeiro ímpeto foi voltar, atirar-se aos pés de João
da Mata e pedir-lhe, suplicar-lhe por amor de Deus, por quem era, que a
perdoasse, que fora uma fraqueza, uma criancice… Isto, porém, seria complicar
a situação, confessar-se culpada, entregar-se à cólera do amanuense. E ao
sentar-se à mesa de jantar foi acometida por uma convulsão de choro mudo, com a
cabeça entre as mãos, cotovelos fincados na mesa, olhos fixos na luz moribunda
da velinha de carnaúba.

O padrinho
berrou, jurou acabar com a “bandalheira”, disse horrores do Zuza, e,
afinal, que felicidade para a rapariga! foi se deitar com a mulher. Maria
suspirou forte como se lhe tivessem tirado um grande peso do coração; e agora,
só no seu quarto, lia e relia a carta do acadêmico, muito à fresca, sentindo um
bem estar na sua rede de varandas, branca e sarapintada de encarnado.

Fazia
calor.

Maria
costumava dormir com a vela acesa, numa palmatória de flandres. Noutro quarto,
defronte, ressonava a cozinheira, uma retirante velha, chamada Mariana, e, no
corredor, o Sultão abanava as orelhas sacudindo as pulgas. De
quando em quando havia um barulho d’asas na sala de jantar: era a sabiá
debatendo-se na gaiola, assombrada.

Agora, sim,
Maria estava só, completamente só, podia ler à vontade, uma, duas, três…
quantas vezes quisesse, a carta do Zuza. Nada como a noite para os namorados!
Era só quando ela gozava a sua liberdade, à noite, no seu quarto, em camisa,
fazendo o que bem entendesse…

“Minha
senhora”, dizia o futuro bacharel muito respeitoso. “Tomo a liberdade
de me dirigir a V. Excia. confiado na sua infinita bondade, nessa bondade que
se revela em seus esplêndidos olhos de madona e na brandura meiga de sua voz
cujo timbre faz-me lembrar toda a melodia d’uma harpa eólia tangida por mãos de
serafins… Tomo esta liberdade para dizer-lhe simplesmente que a amo! e que
este amor só podia ser inspirado pela incomparável luz do seu olhas e pela
música sentimental de sua voz… Amo-a deveras… Só me resta esperar que V.
Excia. aceite este amor como tributo sincero de um coração avassalado por sua
beleza encantadora, e então serei o mais feliz dos homens.

 

De V.
Excia. adm. e escravo

José de
Souza Nunes

 

Isto numa
letrinha microscópica, indecifrável quase.

Maria
esteve meditando muito tempo sobre a resposta que devia dar ao estudante, com
os olhos na parede onde esbatia a sombra da rede ao comprido. Para não
responder ficava-lhe mal, era uma falta de consideração. Devia responder fosse
o que fosse. E, nessa dúvida, lia e relia a carta numa inquietação que lhe
tirava o sono. Realmente! começava cedo a sua carreira amorosa e começava com
um aspirante a bacharel! Seria verdade aquilo ou o rapaz queria divertir-se à
sua custa? O Zuza parecia-lhe um bom moço, muito bem educado, incapaz de seduzir
uma rapariga honesta, de costumes irrepreensíveis, refratária a pagodeiras. Às
vezes, porém, tinha cara de pedante com os seus óculos d’ouro, com a sua flor
na botoeira, dizendo que dê, dê-me você isto, faça você aquilo, ora
sebo
!

Maria
implicava com certos modos do rapaz.

É verdade
que tinha fortuna, era filho d’um homem de bem, d’um coronel… Mas….

E lá vinha
mas e a dúvida não se desfazia.

Imaginava-se
ao lado do Zuza, numa casinha muito bem mobiliada, com cortinas de cretone na
sala de jantar e um viveiro de pássaros,  – ele, de chambre e gorro,
sentado na escrivaninha a fazer versos, feliz, despreocupado; ela com um robe-de-chambre todo
branco, fitinha na frente d’alto a baixo, cabelo solto, a ler o último romance
à moda, recostada na espreguiçadeira, sem filhos… Que vida!

Ao mesmo
tempo lembrava-se de que o Zuza podia lhe sair um marido muito besta e
casmurro, cuidando somente da papelada de autos e requerimentos, um advogado
com escritório e tabuleta à porta para fazer…

nada! Ela,
por outro lado, a cuidar dos filhos, muito besuntada, da sala para a cozinha
numa azáfama de burguesinha reles. Boas!

E não
assentava idéias, a mente que nem um rodopio, fantasiando situações
disparatadas, coisas impossíveis.

Leu outra
vez a carta, analisando-a palavra por palavra, repetindo as frases a meia voz.
Aquela linguagem alambicada e dengosa, quis-lhe parecer tosca demais para ter
saído do punho d’um estudante de direito.  – Que idiota! pensava; comparar
seus olhos com olhos de madona e sua voz com uma harpa eólia!  – E, num
arrebatamento, levantou-se e guardou a carta na caixinha de fitas. ” –
Qual olhos de madona!”” – Qual harpa eólia, qual nada seu
besta!”

Daí a pouco
também ressonava com a respiração leve como uma carícia.

O dia
seguinte era domingo. Todos em casa do amanuense acordaram muito bem dispostos.
Havia missa cantada na Sé. Espocavam foguetes e replicavam sinos. Meninos
apregoavam numa voz cantada a Matraca a 40 réis!  – um
jornaleco imundo que falava da vida alheia e que por duas vezes trouxera sujidades
contra João da Mata. Maria do Carmo quis ver o que dizia a Matraca,
apesar do padrinho ter proibido expressamente a entrada do pasquim em sua casa.
Ali só lhe entrava a Província, dissera ele; isso mesmo porque o
José Pereira não exigia pagamento de assinatura. O mais era uma súcia de papéis
nojentos que só serviam para …  – Maria deu um pulo até a casa da viúva
Campelo e aí pode comprar a Matraca. O padrinho estava no
banho.  – O Namoro do Trilho de Ferro! gritavam os vendedores.
Maria teve um palpite. Certo aquilo era com ela. Que felicidade o
padrinho estar no banho! Pagou ao menino pedindo-lhe pelo amor de Deus que não
gritasse mais o Namoro do Trilho de Ferro. Abriu o jornal ansiosa.
Que horror! Havia com efeito uma piada sobre ela e o Zuza. Mais que depressa
correu a mostrar a Lídia.

 – Estás vendo, menina? Lê isto aqui. E apontou
com o dedo.

Eram uns
versos de pé de viola que contavam o recente namoro do Zuza:

 

A normalista do Trilho

ex-irmã de caridade

está caída pelo filho

d’um titular da cidade

O rapazola é galante

e usa flor na botoeira

D. Juan feito estudante

a namorar uma freira

Eis porque, caros leitores,

eu digo como o Bahia:

 – Falem baixo, minhas flores

Senão… a chubata chia!…

 

Lídia achou
graça na versalhada. Ela também já saíra na Matraca.

 – Um desaforo, não achas? perguntou a
normalista indignada.

 – Que se há de fazer, minha filha? Ninguém
está livre destas coisas no Ceará moleque. Não se pode conversar
com um rapaz, porque não faltam alcoviteiros. Olha, eu aposto em como isto que
aqui está saiu da cachola do Guedes.

 – Que Guedes?

 – Ó mulher, o Guedes, um do Correio… Dizem
até que está feito redator principal da Matraca.

 – E que mal fiz eu a este Guedes que nem
sequer me conhece?

 – Eu te digo. O Guedes andou a querer me
namorar. Chegou a escrever-me uma carta muito errada e piegas, pedindo uma
entrevista… Que fiz eu? Ri-me muito das asneiras do bicho, trocei-o a valer e
mandei-o pastar bem… Ora o Guedes sabe que nós somos muito
amigas e talvez queira vingar-se indiretamente. Aí está o que é menina. Manda-o
plantar couves e rasga essa baboseira, que isto não vale nada.

 – Não val’ nada, mas toda a gente lê e
acredita, é o que é.

 – Sabem lá qual é a “normalista do
Trilho!”

A propósito
Maria contou a ocorrência da véspera, a carta do Zuza, a cólera do padrinho,
muito vexada.

Estavam à
janela, em pé, frente a frente, D. Amanda andava para os fundos da casa a
mourejar. No fim da rua, do lado da Estrada de Ferro, uma locomotiva fazia
manobras, chiando, a deitar vapor fora. Chegou até a frente da casa da viúva,
soltou um guincho rápido e voltou estralejando sobre os trilhos.

… E os
sinos a repicarem na Sé e girândolas de foguetes estourando no ar. Chegavam
espaçados sons de música que o vento trazia.

 – Não sei si deva responder, disse Maria dando
a carta à amiga. Ele com certeza vem hoje para o víspora…

 – De forma que tens um compromisso a
satisfazer…

 – Compromisso?

 – Sim, porque quem cala consente. Aceitaste a
carta, agora é responder. Diz-lhe que o amas também e que desde já o consideras
teu noivo. Nisso de amor quanto mais depressa melhor. Eu pelo menos o entendo
assim. Queres que eu faço a minuta?

 – Eu, escrever para um homem?

 – Tola! Que crime há nisso? Eles não escrevem
para nós? Olha, tolinha, não sejas criança. O homem foi feito para a mulher e a
mulher para o homem.

 – Mas…

 – Não tem mas nem meio mas.
Decide-te a namorar o rapaz e deixa-te de meninices. Tu é que tens a lucrar. O
Zuza tem fortuna, está a formar-se e com mais um ano pode ser teu marido e
fazer-te muito feliz.

O que é que
esperas de teu padrinho, um sujeito estúpido e usurário como um urso? Já não
tens pai nem mãe, e ele já fala em tirar-te da Escola. É muito homem para
botar-te a cozinhar. Não sejas tola!…

Lídia
interrompeu-se para cumprimentar um cavaleiro que passava. Era o Zuza montado
numa alazão reluzente ao sol, de cauda aparada e arreios de prata. O estudante
trajava flanela e meias botas de polimento, chapéu castor desabado, uma grande
rosa branca no peito, luva, rebenque, muito vistoso com seus óculos de ouro e
seu bigodinho retorcido para cima.

Fazia o
costumado passeio matinal e lembrara-se de passar à porta do amanuense.
Cumprimentou rasgadamente a Campelinho. Maria ocultou-se envergonhada atrás do
postigo olhando por entre as gretas.

 – Adorável! fez Lídia. E tu ainda queres mais,
hein, minha tola?

Como sentia
não ser ela a querida do Zuza! Ambos com vinte anos de idade, encarando a vida
por um mesmo prisma: passeios a cavalo, toilletes de verão e
d’inverno, como nos figurinos, com chácara no Benfica, um phaetom para
virem à cidade, vacas de leite… um maná!…

Tinha o seu
Loureiro, mas o guarda-livros parecia-lhe muito casmurro, muito indiferente a
essas cousas de bom gosto, aos requintes da vida aristocrática que ela
ambicionava tanto. Queria-o mais por um capricho, porque não encontrava outro
homem em melhores condições que desejasse casar com ela. Sabia de sua má fama e
agarrava-se ao Loureiro como a uma tábua de salvação. Tudo menos ficar
para tia. Verdade, verdade, o Loureiro não era um sujeito ignorante
pobre que lhe fizesse vergonha; mas não tinha certo aprumo, certa elegância ao
trajar; aferrava-se à calça e ao colete branco, invariavelmente, e ninguém o
demovia daquele velho hábito. Entretanto possuía seu cabedal em casas e
apólices da dívida pública. Ao passo que o outro, o Zuza, sabia empregar seu
dinheiro divertindo-se, trajando bem, passeando como um príncipe. Uma simples
questão de temperamento.

 – Atira-te minha tola. Aproveita enquanto o
Braz é tesoureiro…

 – Que queres tu que eu faça?

 – Escreve logo essa carta e faze com eu: marca
o dia do casamento. Assim é que se faz. Quem pensa não casa, lá diz o ditado, e
é muito certo.

A voz de D.
Terezinha chamou Maria do outro lado da rua. Era hora do almoço. O amanuense
estava apressado porque tinha de ir à praia ao embarque do conselheiro Castro e
Silva que seguia para o Rio de Janeiro.

João da
Mata almoçou às carreiras, como quem vai tomar o trem, e abalou, enfiando-se no
inseparável e já velho chapéu chile.

Seriam onze
horas pouco mais ou menos. Um mormação de fornalha abafava os transeuntes que
desciam e subiam a rua de Baixo a pé, esbaforidos.

No porto
havia grande lufa-lufa de gente que embarcava e desembarcava simultaneamente,
bracejando, falando alto. A maré d’enchente crispada pela ventania de sudoeste,
num contínuo vaivém, alagava o areal seco e faiscante. Muita gente ao embarque
do Conselheiro. Curiosos de todas as classes, trabalhadores aduaneiros de
jaqueta azul, guardas d’Alfândega e oficiais de descarga com ar autoritário, de
fardeta e boné, marinheiros da Capitania, confundiam-se numa promiscuidade
interessante. Jangadeiros arregaçados até aos joelhos, chapéu de palha de
carnaúba, mostrando o peito robusto e cabeludo, iam armando a vela às jangadas.
A cada fluxo do mar havia gritos e assobios. Um alvoroço! Jangadas iam e vinham
em direção ao nacional que tombava como um ébrio aproado ao
vento. Apenas quatro navios mercantes fundeados e uma canhoneira argentina.
Reluzia em caracteres garrafais, pintadinhos de fresco na popa d’uma barca
italiana  – “Civita Vecchia”.

O vapor
apitou pedindo mala. Era uma maçada ir à bordo com a maré cheia e um vento como
aquele. Demais o sol estava de rachar. Um carro parou à porta da Escola de
Aprendizes de Marinheiros: era o Conselheiro, metido numa sobrecasaca muito
comprida, cheio de atenções. Já o esperavam os amigos receosos de que o vapor
suspendesse sem “o homem”.

A música da
Polícia, formada à porta do quartel, gaguejou o Hino Nacional e o Conselheiro,
cheio de si, cortejando à direita e à esquerda, muito ancho, seguiu a tomar o
escaler d’Alfândega.

 – Pílulas! fez João da Mata limpando a testa.
Não vale a pena a gente se sacrificar com um calor d’este!

Lá adiante
encontrou o Loureiro que vinha de despachar uma fatura no Trapiche,
muito apressado com sua calça branca lustrosa de gome sem uma dobra.

 – Por ali?

 – É verdade, tinha ido a negócio.

 – Que há de novo? tornou o Loureiro.

 – Nada. Vou aqui ao embarque do Conselheiro.

 – Hás de ganhar muito com isto…

 – Que queres, filho? A política, a política…

 – Qual política, homem! Com um solão deste não
havia quem me fizesse ir a embarque de filho d mãe nenhum.

Uma lufada
de poeira redemoinhou a dois passos dos interlocutores derrubando bruscamente o
chapéu da amanuense, pondo-lhe a calava à mostra.

 – Com os diabos! vociferou João da Mata
abaixando-se mais que depressa para apanhar seu chile que rodava sobre as abas
numa disparada vertiginosa por ali fora.

 – Fiau! Fiau! Pega! pega! prorrompeu a
garotada numa vaia estrepitosa de gritos e assobios.

 – Canalha! resmungava o homem, enquanto o
Loureiro escafedia-se daquela situação grotesca, sacudindo com a ponta dos
dedos a poeira do paletó, muito calmo.

O
conselheiro tinha chegado ao Trapiche com o seu préstito
oficioso de amigos.

O amanuense
encavacou deveras ” – Diabos levem conselheiros e tudo!” dizia ele
mal humorado, piscando os olhos desesperadamente por trás dos óculos escuros,
cobrindo a calva com um lenço para não constipar. E dali mesmo voltou à casa,
maldizendo-se por haver deixado os seus cômodos por uma estopada inútil
d’aquela.

Dava
meio-dia. À porta do Quartel de Linha um soldado soprava a todo pulmão num
corneta muito bem areada.

João da
Mata caminhava devagar, automático, como quem vai com uma idéia fixa. Que seca!
Podia muito bem estar em casa àquela hora, metido na sua camisola fresca, de
papo para o ar na rede, ao conchego morno da afilhada, saboreando-lhe o cheiro
bom das carnes; entretanto ali vinha ofegante como um boi e suado como dois
burros, todo emporcalhado da poeira, furioso. Não lhe contassem para outra. Já
tinha pensado mesmo em abandonar para sempre a política. Pílulas! Mal lhe
chegava o tempo para pensar na Maria do Carmo, naquela deliciosa boquinha
fresca e rosada, boa para a gente levar a vida inteira a beijar…

O Zuza
tinha lhe acordado o instinto; receava agora que a menina se deixasse levar
pelas gabolices do estudante e então lá se iam os seus belos projetos águas
abaixo.

Nunca se
preocupara tanto com Maria do Carmo. Desde que o Zuza começou a frequentar a
rua do Trilho não lhe saia mais da cabeça a afilhada. A própria D. Terezinha
por vezes tinha estranhado seus modos para com a menina.

Achava a
Teté uma mulher gasta: queria uma rapariga nova e fresca, cheirando a leite,
sem pecados torpes, a quem ele pudesse ensinar certos segredos do amor,
ocultamente, sem que ninguém soubesse… Estava farto do “amor
conjugal”. Nunca experimentara o contato aveludado do corpo de uma mulher
educada, virgem das impurezas do século. E quem melhor do que Maria do Carmo,
uma normalista exemplar e recatada, poderia satisfazer os caprichos de seu
temperamento impetuoso? Era sua afilhada, mas, adeus! não havia ente ele e a
menina o menor grau de consanguinidade, portanto, não podia haver crime nas
suas intenções… Si Maria houvesse de cair nas garras de algum bacharelete
safado, fosse ele, João da Mata, o primeiro a abrir caminho.

Demais,
argumentava de si para si, podia arranjar tudo sem que ninguém soubesse. O
segredo ficaria entre ele e a afilhada, inviolável como a sepultura de um
santo…

E ia
parafusando um meio simples e natural de conquistar o coração de Maria.  –
Toda a questão era de oportunidade.

Àquela hora
a normalista arrastava ao piano a valsa Minha esperança, cuja
cadência punha uma monotonia irritante na quietação morna da rua do Trilho.

 

4

 

O futuro
bacharel em leis, ou simplesmente o Zuza, como era conhecido em Fortaleza o
filho do coronel Souza Nunes, passava uma vida regalada, usufruindo largamente
a fortuna do pai avaliada em cerca e cem contos de réis. O coronel franqueava a
burra ao filho com uma generosidade verdadeiramente paternal. Queria-o assim
mesmo com todas as suas manias aristocráticas e afidalgadas, com os seus gestos
elegantes, arrostando grandeza e bom gosto, tal qual o presidente da província
de quem se dizia amigo.

 – “Cada qual com seu igual”,
doutrinava o coronel. O que não admitia é que o filho se metesse com gente de
laia ruim, que ele, coronel, nunca descera de sua dignidade para tirar o chapéu
ou apertar a mão a indivíduos que não tivessem uma posição social definida.
Aprendera isso em pequeno com o pai, o finado desembargador Souza Nunes, homem
de costumes severos que sabia dar aos filhos uma educação esmerada, quase
principesca. O Zuza, dizia ele, não era mais do que uma vergôntea digna desse
belo tronco genealógico dos legítimos Souza Nunes, tão nobres quanto
respeitados no Ceará.

Era um
orgulho para o coronel ver o filho passar a cavalo com o presidente, alvo de
olhar bisbilhoteiro do mulherio elegante em trajes de montaria, roupa de
flanela, botas, chapéu mole desabado.

O Zuza
dava-se muito com o presidente, que também pertencia a uma alta linhagem de
fidalgos de São Paulo e fora educado na Europa; um rapagão alegre, amador de
cavalos de raça, ilustrado e amigo de mulheres.

As
revelações da Matraca sobre o namoro do Trilho de Ferro deram
que falar à cidade inteira. Nas rodas de calçada o fato propalou-se
imediatamente à guisa d’escândalo. A princípio ninguém sabia ao certo qual era
a tal “normalista ex-irmã de caridade”. Que havia de ser a Lídia
Campelo afirmavam uns. Mas a Campelinho nunca fora religiosa, quanto mais
freira. Afinal sempre se veio a verdade e espalhou-se logo que a afilhada de
João da Mata estava com um namoro pulha mais o estudante. Não era a Lídia mas
dava no mesmo, dizia-se: ambas estudavam na mesma escola, eram dignas uma da
outra.

E toda
gente dizia sua pilhéria, atirava seu conceito à boca pequena, com risadinhas
sublinhadas  – pilhérias e conceitos que chegavam até aos ouvidos do
coronel Souza Nunes, percucientes, incisivos como ferroadas de maribondos.
” – Não era possível, pensava ele. O Zuza era incapaz de semelhante
criancice; um rapaz de certa categoria não se deixa iludir por uma simples
normalista sem eira nem beira, uma rapariga sem juízo, filha de pais
incógnitos, educada em casa d’amanuense reles. Quem, o Zuza? Pois não viam logo
a monstruosidade do absurdo? Era uma calúnia levantada a seu filho. Que esta!
Não faltava mais nada senão ver o nome do rapaz em letra redonda estampado
na Matraca, um jornaleco imundo como uma cloaca!”

Morava na
rua Formosa, numa casa assobradada e vistosa com frontaria d’azulejos,
varandas, e dois ananazes de louça no alto da cimalha, à velha moda portuguesa.

O coronel
gostava de passar bem, de “fazer figura”, e, até certo ponto,
revelava uma natureza delicada que não era indiferente ao aspecto exterior das
coisas; sabia mesmo aquilatar objetos de arte, escolher bric-à-bracs.

Ninguém o
excedia. Era o que se pode chamar “um homem de bons costumes”, um
pouco orgulhosos e d’uma susceptibilidade à toda a prova em matéria de
dignidade pessoal: irrepreensível e caprichoso na intimidade doméstica como na
vida pública.

Fazia gosto
a sala de visitas, forrada a papel-veludo, claro com ramagens cinzenta,
mobiliada com inexcedível graça, sem ostentação, sem luxo, mas onde se notava
logo certa correção no arranjo dos móveis, na colocação dos quadros, na
limpidez dos cristais.

Ao fundo,
entre as duas portas altas e esguias que diziam para o interior da casa, ficava
o piano, um Pleyel novo, muito lustroso, sempre mudo, sobre o qual assentavam
estatuetas de biscuit. À direita, descansando sobre grandes pregos
dourados, o retrato a óleo do coronel com sua barba em ponta, olhava para o
piano, muito sério, em simetria com o da a esposa.

O corredor
da entrada separava a sala de visitas do gabinete do Zuza, que ficava à
esquerda.

 – “Não faltava mais nada!” repetia
mentalmente o coronel estendido na espreguiçadeira de lona, pernas trançadas,
defronte da varanda, aparando as unhas.

Em casa
usava calças brancas , paletó de seda amarelo e sapatos de entrada baixa com
flores no rosto de lã.

Era hora do
almoço, o Zuza não devia tardar. Ia falar-lhe decididamente; aquela história do
namoro não lhe cheirava bem. Talvez o filho tivesse mesmo a estroinice pueril
de desfrutar a rapariga.

Daí a pouco
entrou o estudante Vinha muito jovial, cantarolando o Bocácio:

 

Si acaso
algum de nós

tiver por sina atróz

mulher que se não cale

que a toda hora fale…

 

E repetia
muito alegre:

 

 Trá, lá, lá, lá…

 

 – Vens, muito alegre, hein, meu filho?
interrompeu o coronel da sala.

Zuza tinha
entrado para o gabinete e começava a despir-se

 – Ah! meu pai estava aí?

E logo…

 – Trago uma novidade.

 – Vejamos…

 – Vou a Baturité com o presidente.

 – Ainda bem, ainda bem, fez o coronel num tom
desusado, sem erguer a cabeça.

Como ainda
bem? inquiriu o estudante aproximando-se.

Apenas
trocava o fraque por um paletó de brim branco.

 – Porque… porque… Eu precisava mesmo
falar-te. Ora dize uma coisa: leste o último número da Matraca?

Zuza
franziu o sobrolhos desconfiado, com um risinho seco.  – “Não tinha
lido a Matraca, não. Um jornaleco imoral que andava por aí? Não,
não tinha lido. Por que?

 – Que história é uma de namoro no Trilho de
Ferros? Fala-se em ti, no teu nome, numa normalista…

Cresceu o
assombro do rapaz.

 – Eu!?… Meu pai está gracejando…

 – Juro-te que não. Mas olha, quem diz é
Matraca e alguém afirmou-o particularmente que a rua está
cheia…

 – E esta! fez o Zuza cruzando os braços
admirado. Pois o meu pai não vê logo que isto é um gracejo de mau gosto, um
canalhismo de província?

 – O que é certo é que não te fica bem a
brincadeira.

 – Absolutamente não, e eu preciso saber quem é
o autor do pasquim…

A criada
anunciou que o almoço estava na mesa.

 – … Sim, continuou Zuza, vou informar-me,
preciso saber…

 – Eis aí porque fazes bem indo passar uns dias
em Baturité.

E polindo
as unhas, o coronel dirigiu-se para a sala de jantar, grave como um apóstolo do
bem, enquanto o filho ia desabafando suas cóleras contra a sociedade cearense.

 – “Uma sociedade que lê a Matraca e
gosta!”

No outro
dia, com efeito, o futuro bacharel seguia no expresso para Baturité em
companhia do Dr. Castro, presidente do Ceará.

Lia-se
na Província:

“Segue
amanhã, pela manhã, com destino a Baturité, a fim de visitar a importante
fábrica Proença, O Exmo. Sr. Presidente da Província. Acompanham o
ilustre amigo do Ceará os nossos distintos amigos e correligionários Srs. Dr. José
de Souza Nunes e José Pereira nosso colega de redação. S. Excia. pretende
demorar-se alguns dias naquela cidade”.

Maria do
Carmo leu com surpresa a notícia da Província e não pode
conter um gesto de despeito. Era desse modo que o Sr. Zuza estava doido por
ela! Ir-se embora sem ao menos lhe comunicar! Nem sequer deixava um bilhetinho,
um cartão com duas palavras, duas somente! Que custava escrever num pedaço de
papel  – Vou e volto ?

Zangara-se
deveras, atirando a folha para um lado, trombuda, furiosa.

Estava tudo
acabado, não falaria mais no Zuza, não lhe escrevia; que fosse bugiar! Moças
havia muitas no Ceará: que procurasse uma lá a seu jeito e ela por sua vez
trataria de arranjar noivo, mas noivo para casar, noivo sério, noivo de bem!

Entretanto,
Maria não tinha feito reparo na despedida do Zuza, um soneto endecassílabo, com
sílabas de mais num versos e de menos noutros. Adeus  – era o
título e vinha na terceira página da Província. Depois é que viu,
porque a Lídia mostrou-lhe.

 – Já estavas fazendo mau juízo do rapaz, hein?
disse a Campelinho.

 – Certamente, confirmou Maria. Nem ao menos
teve a lembrança de me avisar!

 – Como querias tu que ele avisasse se ainda
não lhe respondeste a carta?

Maria
esteve pensando com o jornal na mão, lendo e relendo os versos, e, meio
arrufada, meio risonha:

 – Embora! O dever dele era me participar. O
homem é que faz tudo…

E na manhã
seguinte, muito cedo, pulou da rede e foi no bico dos pés, embrulhada no
lençol, ver passar o trem através da vidraça.

A
locomotiva disparou numa rapidez crescente, soltando rolos de fumo e fagulhas
que pareciam uma irrisão aos olhos da normalista. A sineta, num badalar
contínuo, acordava os moradores do Trilho, àquela hora, ainda nos lençóis.

Maria viu
passar a enfiada de vagões estralejando sobre os trilhos e esteve muito tempo
em pé ouvindo sino longínquo da locomotiva, que ia, como uma coisa doida,
sertão a dentro! Começou então a sentir-se só, teve vontade de abrir num choro
histérico como si lhe houvessem feito uma grande injustiça. Voltou para a
tepidez do seu quarto e lá deixou-se ficar até sair o sol, com um peso no
coração, encolhida na rede, sem ânimo para levantar-se, desejando um quer que
era vago e extraordinário que lhe punha arrepios intermitentes na pele. Que bom
se o Zuza estivesse ali com ela, na mesma rede, corpo a corpo, aquecendo-a com
seu calor… Aquela hora onde estaria ele? Talvez em Arronches…; não, já
devia ter chegado a Mondubi… Imaginava-o metido num comprido guarda-pó de
brim pardo, tomando leite fresco na estação ao lado do presidente, tirando do
bolso da calça um maço de notas de banco, muito amável, rindo… Depois o trem
apitava. Havia um movimento rápido de gente que embarcava às pressas, e… lá
ia outra vez por aqueles descampados fora, caminho da serra que se via ao
longe, rente com as nuvens, como aquelas cadeias colossais de montanhas onde há
gelos eternos e que na geografia tem o nome de Alpes…

De repente,
lembrou-se:

 – “E se o trem desencarilhasse?…”
Ia adormecendo quando lhe veio à mente esta idéia. Sentou-se na rede,
esfregando os olhos como se tivesse acordado de um pesadelo. ” – Se o trem
desencarilhasse o presidente morreria também…”

… Teve um
consolo. Não, o trem havia de chegar em paz com todos os passageiros.
Espreguiçou-se toda com estalinhos de juntas e, maquinalmente, deixou escapar
um  – ai! ai!  – muito lânguido e prolongado.

Lá fora
recomeçava a labuta cotidiana. A criada puxava água da cacimba; o cargueiro
d’água potável enchia os potes; cegos cantavam na rua uma lenga-lenga maçante,
pedindo esmola numa voz chorada ; vendedores ambulantes ofereciam cajus…
Havia um ruído matinal de cidade grande que desperta.

Nesse dia
Maria do Carmo não foi à Escola Normal: que estava incomodada com uma enxaqueca
muito forte.

João da
Mata tomou-lhe o pulso, mandou que mostrasse a língua, muito solícito, com
cuidados de pais:  – “Não era nada, uma defluxeira.” E largou-se
para a Repartição, palitando os dentes.

A Lídia,
essa tinha liberdade plena em casa da mãe, ia à escola quando queria e, se lhe
convinha, lá não punha os pés. Deixou-se ficar também com a Maria.  –
Tinham muito que conversar.

 – Que saudades, hein? começou a Campelinho.

Estavam
sós, na sala do amanuense. D. Terezinha tinha ido à casa da viúva mostrar um
corte de fazenda que o Janjão lhe comprara.

Maria,
derreada na cadeira de balanço, fechou o volume que estivera lendo, e com um
bocejo:  – “É verdade, o diabo do rapaz não lhe saía da lembrança.
Nem um castigo… Mas estava muito desgostada da vida, já andavam inventando
histórias, calúnias”.

 – Não te importes, minha tola. Ora! ora!
ora!… Isso a gente faz ouvidos de mercador e vai para adiante. A vida é esta,
e tola é quem se ilude.

 – Não, Lídia, as coisas não são como tu
pensas; No Ceará basta um rapaz ir duas vezes à casa de uma moça para que se
diga logo que o namoro está feio, que é um escândalo, e nós é que somos
prejudicadas. “Ah! porque já não é mais moça, porque é uma
sem-vergonha”. é o que dizem…

 – Pois olha, esta aqui há-de namorar até não
poder mais. Queres que te diga uma coisa? Isso de casamento é uma cantilena…

E, num
assomo de despeito, a Campelinho lembrou mulheres casadas que tinham amantes e
que viviam muito bem na sociedade; citou a mulher do Dr. Mendes, juiz
municipal. Estava ali uma que fora encontrada aos beijos com José Pereira
da Província, em pleno Passeio Público! Quem não sabia? Ninguém!
Entretanto frequentava as melhores famílias da capital  – era a Sra. D.
Amélia! Queria outro exemplo!

E abaixando
a voz:

 – Aqui mesmo em casa o tens, minha tola.
Ninguém ignora neste mundo que D. Terezinha é amigada com teu padrinho. E tudo
é assim, querida Maria. A canalha fala de invejam invejosos é o que não faltam
nesta terra,

Maria
prestava atenção, silenciosa.

 – Então, disse ela por fim, achas que devo continuar
o namoro?

 – Que dúvida, mulher! Eu é porque já tenho o
meu. Assim mesmo…

Maria
sentiu uma pontinha de ciúmes roçar-lhe o coração. Disfarçou com um risinho
seco.

 – Eu estive pensando, disse, caso o Zuza me
pregue um taboca…

 – Nada mais simples: prega-lhe outra casando
com o primeiro bilontra que aparecer. Amor com amor se paga…

 – Não, falemos sério…

 – Que queres tu que se diga? Eu cá não costumo
enganar ninguém. Sou muito franca  – pão, pão, queijo, queijo…

 – Dão licença? disse uma voz fora, na rua.

Era Da.
Amélia, mulher do Dr. Mendes.

Maria foi
abrir a rótula.

 – Oh! por ali?…

 – É verdade, meninas, venho morta de calor.
Uf! que solão, que solão!

Lídia,
muito expedita e pronta, ajudou a desatar o véu e tirar as luvas.

Como estava
a Teté? perguntou Da. Amélia muito afogueada, tirando o chapéu defronte do
espelho. Da. Amanda ia bem? E sentando-se:

 – Já sei que não foram hoje à escola… Boa
vida! Não há como ser moça. Pois, meninas, venho duma seca. Fui ali à casa da
costureira experimentar o meu vestido de cetim…

 – Isso é que é boa vida, disse a Campelinho:
passeios, vestidos…

Maria tinha
ido chamar a madrinha, que era um pulo.

 – Qual passeios! Quem tem filhos pode lá
passear?

D.
Terezinha não se fez esperar. Entrou sacudindo os quadris, bamboleando-se toda.

 – Ora viva! disse atirando-se nos braços de
Da. Amélia. Como vai, como tem passado? Que milagre!

Agora todas
falavam a um tempo, rindo, gabando-se.

 – Sabem quem esteve ontem conosco? O Zuza. Diz
que volta sábado de Baturité. Gabou muito a Maria: que é uma cearense distinta,
muito prendada, chique a valer, um horror! Ao que parece temos casório…

 – Qual casório! fez Maria com um rubor nas
faces. Invenções…

 – Não havia de ser contra minha vontade, disse
D. Terezinha . Seria até uma felicidade. Deus o permita…

Falaram de
modas.

D.
Terezinha alardeou o seu rico vestido de cetim, que a viúva Campelo achara de
muito bom gosto.

D. Amélia
queixou-se do marido: um homem sem gosto, um mosca-morta, muito desleixado, com
venetas de doido. Ela até já se aborrecia, porque o Mendes tinha o mau costume
de beber aguardente; às vezes chegava tropeçando, com a língua pegada, sem
poder falar. Vestidos ela via-os de ano em ano. Um indiferente, o Mendes.
Sofria de uma erisipela na perna direita que o proibia de trabalhar meses
inteiros…

 – Pois olha, disse D. Terezinha, o meu faz-me
as vontades, mesmo porque eu não sou mulher de muitos me-deixes. Todos os meses
é p’r’ali um vestido. Diabo é quem os poupa! Também, minha filha, dou-lhe toda
a liberdade, fora e dentro de casa. Felizmente não tenho queixa dele.

Lídia pediu
a D. Amélia que tocasse alguma coisa, a Juanita, que era a valsa da
moda.

A propósito
D. Amélia perguntou se já tinham ido ao teatro. Que fossem, que fossem. O grupo
lírico da Naghel estava fazendo sucesso. A Bellegrandi era um mulherão capaz de
arrebatar uma platéia inteira! Que modos, que requebros! Domingo ia a Juanita pela
última vez em benefício da Aliverti. Que fossem. Era uma opereta
interessantíssima, por sinal tinha sido representada cem vezes na Corte! A
beneficiada ia fazer o papel de Juanita.

 – Eu é para que tenho jeito, atalhou a
Campelinho, é para o teatro. Deve ser uma vida tão cheia de sensações a das
atrizes… Vestem-se de todas as formas, recebem presentes ricos, jóias, anéis
de brilhante… são aplaudidas e ainda por cima ganham dinheiro à ufa. Eu já
disse à mamãe, mas ela não quer por coisa alguma, diz que é uma vida imoral…
Tolice! Há tanta gente boa nos teatros… A última vez que fui ao circo fiquei
encantada pela Estrela do Mar.

 – É o que você pensa, menina, disse D. Amélia.
Essas pobres mulheres fazem um ror de sacrifícios… Sabe Deus quanto lhes
custa uma noite de espetáculo! Acabam quase sempre miseráveis, coitadas, nalgum
quarto d’hotel, a esmolas. Enquanto são moças ainda, ainda encontram quem lhes
estenda a mão, porém, depois, morrem p’r’aí em qualquer pocilga, sem um real
para a mortalha. Tibis, menina, nem se lembre de tal coisa!

Maria, a um
canto do sofá, pensava no estudante, perdida num labirinto de reflexões, com
uma languidez no olhar vago. O Zuza preocupava-a como um sonho d’ouro. Começava
a sentir o que nunca sentira por homem algum, certo desejo de ter um marido a
quem pudesse entregar-se corpo e alma, certa sentimentalidade sem causa
positiva, uma como abstração do resto da humanidade… “E quando Da. Amélia,
sentando-se ao piano, começou a tocar a Juanita, veio-lhe um vago e
esquisito desejo de ir-se pelo mundo fora nos braços do “seu” Zuza,
rodopiando numa valsa entontecedora até cansar… Via-se nos braços dele,
arquejando ao compasso da música, quase sem tocar o chão, voando quase leve com
um floco d’algodão, como uma pena, como uma coisa ideal aérea… E lembrava-se
do padrinho. Ah! o padrinho queria tanto mal ao Zuza… D’ora avante ia agradar
muito a João, tratá-lo com mais carinho, dar-lhe muitos cafunés, fazer-lhe
todas as vontades, adulá-lo, a fim de que ele não ralhasse por causa do
estudante. Que tola não ter escrito logo ao Zuza, àquele Zuza que era agora a
quantidade constante dos seus cálculos, a preocupação única de seu espírito, o
seu alter ego.

Sim,
porque, de resto, ela não havia de ser nenhuma freira que ficasse p’r’aí
solteirona, sempre casta como uma vestal.

A Lídia
tinha razão  – a mulher fez-se para o homem e o homem para a mulher. Era
sempre melhor aceitar a cartada que se lhe oferecia do que entregar-se aí a
qualquer caixeiro do armarinho, a qualquer lojista usurário e safado. Ao menos
o Zuza tinha dinheiro e posição, era um rapaz conceituado. Comparava-se com
Lídia e sentia-se outra, muito outra, noiva de um moço elegante, estimada,
querida por todos. Ninguém se lembraria, depois, de sua origem humilde, todo
mundo a respeitaria como esposa do Sr. Dr. José de Souza Nunes! Começava mesmo
a sentir uma grande afeição pelo Zuza.

As últimas
notas do piano produziram-lhe uma comoçãozinha, uma ponta de saudade sincera,
um arrepio na epiderme. E. levantando-se muito desconfiada, foi juntar-se às
outras que palravam por quantas juntas tinham.

A voz da
Campelinho timbrava muito fina e metálica, traduzindo todo um temperamento
nervoso e irrequieto.

Acharam
deliciosa a valsa da Juanita. Maria também deu o seu parecer:
que era linda, que ia ensaiá-la. Falavam alto, numa intimidade de amigas
velhas, sem pensar nas horas que iam passando rapidamente.

Fazia
sombra na calçada. Pela janela aberta entrava uma poeira sutil que punha uma
camada muito tênue e pardacenta no verniz gasto dos móveis. Vinha lá de dentro,
d’envolta com o fumaceiro da cozinha, um cheiro gorduroso e excitante de
guisados.

Deram três
horas.

 – Jesus! fez D. Amélia, erguendo-se admirada.
Três horas! Vou-me chegando, meninas.

 – Agora fique para o jantar, solicitou D.
Terezinha. Nada de cerimônias, o Janjão não tarda, é comida de pobre, mas
sempre se passa…

 – Ora fique, Jesus!

 – Não, Tetezinha de minh’alma, não posso, o
Mendes me espera. aquilo é um estouvado. Vim somente para pedir um favorzinho,
mas é segredo…

 – Oh! filha…

Entraram as
duas para a sala de jantar. A Mendes pediu água, e, dando estalinhos com a
língua, acariciando a mão de D. Terezinha, disse muito baixo, quase ao ouvido, engrossando
a voz, que precisava de dez mil réis para pagar a costureira e vinha pedir-lhos
até o fim do mês. A Teté não imaginava: tinha em casa o essencial para a feira
do dia seguinte! O Mendes pouco se importava que houvesse ou não dinheiro…
Tivesse paciência , sim? Pagava sem falta, no fim do mês.

Disse que
os meninos andavam descalços, que as despesas eram muito grandes, alegou o
preço da carne… Um horror! Não se podia num tempo d’aquele comer com pouco
dinheiro. Não sobrava nem para um vestido.

Também
estava muito “quebrada”, disse D. Terezinha compungida. O Janjão
tinha feito um ror de despesas naquele mês; dava graças a Deus quando lhe vinha
um dinheirinho do Pará, de rendas… Só ao velho Teixeira, um que emprestava
dinheiro a juros, deviam duzentos mil réis. Em todo caso sempre ia ver se
arranjava p’ra cinco mil réis. Era um instantinho…

Foi
depressa à alcova, abriu com estrondo a gaveta da cômoda e d’aí a pouco voltou
com uma nota de 5$000, muito velha e ruça, quase em frangalhos, que entregou à
outra. Era só o que tinha para servi-la.

 – Muito obrigada, minha santa, não sabe quanto
lhe agradeço… No fim do mês sem falta.

E,
guardando o dinheiro na velha bolsinha de couro da Rússia:

 – Agora deixe-me ir.

 – Por que não fica p’ra jantar? insistiu D.
Terezinha. O Janjão está chegando, mande um recadinho ao Dr. Mendes.

 – Qual filha, não posso. O Mendes é muito
enjoado: fica para outra vez, sim?

Beijaram-se
depressa e a mulher do juiz municipal retirou-se com o seu passo miudinho,
arrepanhando o vestido.

 – Apareçam, hein? disse da rua. Amor com amor
se paga…

E
desapareceu, como um foguete na esquina.

Às quatro
horas entrou o amanuense com a papelada debaixo do braço, muito suado,
assobiando a Mascote.

A
Campelinho tinha se escapulido: que eram horas de jantar.

Maria do
Carmo sentara-se ao piano e ensaiava a Juanita.

D.
Terezinha, essa andava para dentro, às voltas com a cozinheira, provando as
panelas, ralhando.

João apenas
sacudiu os papeis sobre o sofá foi direto à afilhada.

 – A santa está tocando Juanita?
Que mimo, Jesus! Como se pode ser bonita assim?

E sem dar
tempo a Maria defender-se, pôs-lhe um grande beijo na face. A normalista sentiu
um braseiro no rosto ao contato da barba espinhenta do amanuense, e um bafo
insuportável de álcool tomou-lhe as narinas. Era a primeira vez, depois que
saíra da Imaculada Conceição, que o padrinho lhe beijava m cheio na
face. O amanuense tinha se aproximado devagarinho, de mão p’ra trás, e, de
repente tomando-lhe a cabeça entre as mãos fedorentas a cigarro, beijou-a perto
da orelha, continuando cinicamente a assobiar.

Ela apenas
pode dizer  – “Padrinho!” agarrando-se à cadeira de mola. Ficou
muito séria a limpar o rosto com a manga do casaco. Ah! mas dentro, nas
profundezas de sua alma, teve um ódio imenso àquele homem nojento que abusava
de sua autoridade sobre ela para beijá-la! Fosse outro, ela teria correspondido
com uma bofetada na cara… Mas, que fazer? Era seu padrinho, quase seu pai,
devia aturá-lo, tinha a obrigação de submeter-se, porque estava em sua casa,
comia de seus pirões, e o papai lhe pedira muito que o respeitasse. A princípio
até o estimava, não o achava mau completamente, agora, porém, que uma espécie
de instinto irresistível a impelia para o Zuza, agora que o estudante ocupava
um lugar no seu coração enchendo-o quase, o padrinho ia-se-lhe tornando
repugnante e desprezível. Não podia chegar-se a ele, vê-lo de perto, encará-lo
frente a frente, sem um profundo e oculto frenesi. Um homem que não cuidava dos
dentes, que não se banhava, um bêbedo!

Esteve
folheando o livro de músicas automaticamente, sem se mexer, sem dar palavra,
esperando que João se retirasse da sala. Ele, porém, bateu o postigo com força,
cambaleando, dando encontrões nos móveis, aproximou-se outra vez da afilhada,
e, num movimento abrutalhado, abraçando-a por trás, curvando-se para a frente
sobre ela, chimpou-lhe outro beijo, agora na boca, um beijo úmido, selvagem,
babando-a como um alucinado…

Maria quis
gritar sufocada, mas o amanuense, tapando-lhe a boca, ameaçou…

 – Nada de gritos, hein! nada de gritos… Eu
sou seu padrinho, posso lhe beijar onde e quando quiser, está ouvindo? Nada de
gritos!

E Maria,
com os lábios muito vermelhos, como a polpa d’uma fruta, debruçada sobre o
piano, desandou a chorar nervosamente.

 João
da Mata tinha bebido sofrivelmente na bodega do Zé Gato onde costumava aquecer
os pulmões ao voltar da Repartição. Nesse dia excedeu-se, tomando em demasia,
porque lá estava o Perneta, um dos correios, que usava muleta, que também
gostava da pinga e escrevia versos para o Judeu Errante.

Num momento
deram cabo d’uma garrafa em cujo rótulo lia-se este reclame atraente
como visgo: Cumbe legítima.

E que
loquacidade! Falaram por três deputados brasileiros sobre poesia e política.

O Perneta,
sujeito pretensioso e pernóstico, metido a literato, falando sempre com certo
ar dogmático, ventilou uma questão de literatura cearense  – Que não
tínhamos poeta, disse: o que havia era uma troça de malandros e de pedantes
muito bestas, que escrevinhavam para a Província coisas tão
ruins que até faziam vergonha aos manes do glorioso José de Alencar; uma súcia
de imitadores que se limitavam a copiar dos jornais da Corte.

Na sua
opinião o Ceará só possuía um poeta verdadeiramente inspirado  – era
Barbosa de Freitas. Esse, sim, cantava o que sentia em versos magistrais,
dignos de Victor Hugo. Conhecera-o pessoalmente. Um boêmio! Fazia gosto
ouvi-lo, Que eloquência, que verve, que talento! Sabia de cor muitas poesias
dele, mas nenhuma se comparava ao Êxtase, “esse poema de
amor”, que valia por todas as poesias de Juvenal Galeno. O João queria que
recitasse?

 – Recita lá, fez o amanuense emborcando o
cálice.

E o
Perneta, com a voz cavernosa, os cotovelos sobre a mesinha de ferro pintada de
amarelo, recitou de um fôlego o Êxtase

 

Quando às
horas silentes da noite,

Doce flauta descanta no ar,

Quando as vagas soluçam baixinho

Sobre a praia que alveja o luar

Terminou
cansado, com um acesso de tosse, cuspindo para o lado.

 

 – Sim, senhor! fez João da Mata com um murro
na mesa. Isto é que é ser poeta!

 – Queriam alguma coisa? veio perguntar o
caixeiro, um rapazinho magro, doente, com olheiras.

 – Não, menino, disse o amanuense, está acesa a
lanterna por ora. Foi entusiasmo.

Estavam no
fundo da bodega, numa saleta escura, sem saída por trás, com as paredes
encardidas, úmida, cheirando a cachaça, onde os fregueses tomavam bebidas.
“Somente os fregueses de certa ordem”, prevenia o Zé Gato.

 – Pois é isto, continuou o Perneta. O pobre
Barbosa de Freitas acabou como o grande Luiz de Camões na enxerga d’um
hospital, e nisto, penso eu, está a sua maior glória.

 – Apoiado!

 – E o que se vê hoje? Pedantismo somente. Os
poetas e hoje usam fraque, gravata de seda e polainas, escrevem crônicas
elegantes, fazem política. Os Alvares de Azevedo e os Barbosa de Freitas são
gênios que aparecem de século em século, como certos cometas, no céu da
literatura.

 – Que tal achas o Zuza como poeta? perguntou o
amanuense.

 – Não me fales em semelhante gente. Aquilo é
pior do que um cano de esgoto, homem. Quem chama o Zuza poeta não sabe o que é
ser poeta, nunca leu o nosso Barbosa de Freitas. O Zuza emporcalha papel 
– nada mais. Aquilo só presta mesmo para capacho do presidente.

A conversa
encaminhou-se para a política e João da Mata tomou a palavra.  – Que a
política era a desgraça do Ceará; que estava cansado de trabalhar gratuitamente
para a política. O que queria agora era dinheiro para acabar de levantar uma casinha
no Outeiro.

 – E que tal o presidente? perguntou o Perneta.
Acha que fará alguma coisa em benefício do Ceará?

 – Homem, como sabes, eu sou governista, porque
infelizmente sou funcionário público, mas entendo que o Sr. Dr. Carlos é um
grandíssimo pândego.

E noutro
tom, limpando os óculos:

 – Nós precisamos é de homens sérios, seu
Perneta, nós queremos gente séria!

Contou
então que na seca tinha ganho muito dinheiro à custa dos cofres públicos; que
fora comissário de socorros, e que os presidentes do Ceará eram uns urubus que
vinham beber o sangue ao emigrante cearense.

Tinha
assistido a muita ladroeira na seca de 77.

 – Aqui p’ra nós, acrescentou cauteloso,
abaixando a voz, o atual presidente não é  – justiça lhe seja  – um
homem sem juízo, um idiota, um leigo, mas, a continuar como vai, forçando a
emigração para o sul, dentro em pouco transforma esta terra numa espécie de
feitoria de S. Paulo. É embarcar muita gente para o sul, seu compadre! Já lá
foram quatorze mil e tantos! Isso é despovoar p Ceará, isto é fazer pouco caso
do Ceará, c’os diabos!

 – É bem feito! disse o Perneta, é muito bem
feito para não sermos bestas. Isto é uma terra em que os estranhos fazem o que
querem e ninguém protesta, ninguém reage. Nós só sabemos ser maus para os
nossos patrícios.

 – Mas olha que o Cearense tem
comido o couro ao homem…

 – Qual comido o couro! O povo é que devia dar
uma lição de mestre ao governo, a este governo sem patriotismo e sem critério!
E com esta me vou, que isso de política fede… Queres mais alguma coisa?

 – Olha que demos cabo d’uma garrafa! Nem mais
uma gota. Que horas tens?

O outro
puxou um relógio de plaquê desbotado, dentro d’uma capa de
camurça, e, erguendo-se:

 – Quatro menos cinco minutos. Safa! O tempo
voa! O Zé, bota na conta isto: uma garrafa de branca.

 – Já cá está, acudiu o Zé Gato, muito sujo,
com um dedo amarrado num pano preto, o lápis detrás da orelha , arrastando os
chinelos.

 – … Na conta do Perneta, explicou João da
Mata

E saíram
pisando em falso, por entre fardos de carne seca e caixas de cebola.

 – Ó João, perguntou na rua o aleijado, a
menina casa sempre com o tipo?

 – Quem, a Maria?

 – Sim.

 – Casa, mas há-de-ser com o diabo! Sujeitos
daquela ordem não me entram em casa…

 – Mas olha que é um casamentão!

 – Nem que ele viesse coberto de ouro num
palanque de diamante. Ela só há-de casar com quem o padrinho quiser. E
adeusinho, menino, adeusinho.

Separaram-se.

Passava um
enterro caminho do cemitério. Quatro gatos-pingados, de preto, conduziam o
caixão cujos galões cor de fogo luziam ao sol. Pouca gente acompanhando: uns
dez homens cabisbaixos, taciturnos, de chapéu na mão, marchavam a passo e
passo. Na frente caminhava um padre, de estola e sobrepeliz, olhando para os
lados, indiferente, mais um menino de cor de batina encarnada carregando a
cruz.

O sino da
Sé dobrava a finados melancolicamente. Gente chegava às janelas para ver passar
o préstito.

 – De quem é? Quem morreu? perguntava-se com
mistério.

 – A terra lhe seja leve, fez o Zé Gato, abando
a cabeça com um ar triste.

João da
Mata parou à beira da calçada afagando a pêra com os dedos magros e compridos,
nervoso  – Quem morreria? pensava  – E, assim que o préstito passou,
foi andando devagar, cabeça baixa, equilibrando-se.

No outro
lado da rua, o Romão, o negro Romão que fazia a limpeza da cidade, passava
muito bêbado fazendo curvas, de calças arregaçadas até os joelhos, peito à
mostra, com um desprezo quase sublime por tudo e por todos, gritando numa voz
forte e aguardentada:

 Arre corno!… Um garoto atirou-lhe
uma pedra.

Mas o
negro, pendido p’ra frente, ziguezagueando, tropeçando, encostando-se às
paredes, torto, baixo, o cabelo carapinha sujo de poeira, pardacento, repetia
insistentemente, alto e bom som, o estribilho que todo o Ceará estava
acostumado a ouvir-lhe  – Arre corno! e que repercutia como
uma verdade na tristeza calma da rua.

 

5

 

Um tédio
invencível, um desânimo infinito, foi-se apoderando de Maria do Carmo a ponto
de lhe alterar os hábitos e as feições. Começou a emagrecer, a definhar,
enfadando-se por dá cá aquela palha, maldizendo-se. Tudo a contrariava agora,
tinha momentos de completo abandono de si mesma, o mais leve transtorno nos
seus planos fazia-lhe vontade de chorar, de recolher-se ao seu quarto e
desabafar consigo mesma, sem que ninguém visse, num choro silencioso. Estava-se
tornando insociável como uma freira, tímida e nervosa como uma histérica. Ia à
Escola para não contrarias os padrinhos, para evitar desconfianças, mas o seu
desejo, o seu único desejo ser viver só, completamente só, numa espécie de
deserto, longe de todo o ruído, longe d’aquela gente e d’aquela casa, num lugar
onde ela pudesse ver o Zuza todos os dias e dizer-lhe tudo que quisesse, tudo o
que lhe viesse à cabeça. O ruído que se levantou em torno de seu nome
incomodava-a horrivelmente, como zumbir d’uma vespa enorme que a perseguisse
constantemente.  – Que inferno! Todo o mundo metia-se com sua vida, como
se fosse uma grande coisa ela casar com o Zuza! Era melhor que fossem plantar
batatas e não estivessem encafifando-a . Havia de casar com Zuza, porque
queria, não era da conta de ninguém, seu coração era livre como as andorinhas.
Oh!…

 – Mas, menina, quem diz o contrário?
perguntava a Campelinho. Eu sempre te aconselhei que o melhor partido era
aceitar o amor do estudante.

Não era a
Lídia, eram as outras, as invejosas, as brutas, que nem sequer sabiam conjugar
um verbo. estava cansada de ouvir pilhérias e risinhos tolos, mas à primeira
que lhe dissesse tanto assim (e indicava o tamanho da unha), à primeira que
abusasse da sua paciência, ela, Maria, saberia responder na ponta da língua .
Umas namoradeiras que punham-se a dar escândalos com os estudantes do Liceu,
umas sem-vergonhas! Havia de mostrar!

Ela é que
era uma tola, dizia a Lídia; as normalistas falavam de invejosas, mandasse
plantar favas. Cada qual namora com quem quer, e, demais, não era nenhuma
admiração a Maria casar com o Zuza. Por quê? Porque ele era rico e ela era
pobre?

Muito
obrigada! Napoleão! tinha-se casado com uma simples camponesa, e mais era um
imperador!

E Maria do
Carmo passava noites sem dormir, a pensar no futuro bacharel, retratando-o na
imaginação, amando-o de longe. Havia já seis dias que ele seguira com o
presidente, num domingo.

Que custo,
que viagem sem fim! Aquela demora impacientava-a. Já era tempo de terem
voltado…

Todos os
dias, à noitinha, ia esperar a Província na janela, a ver se
encontrava alguma notícia dos excursionistas.

Mas nada!

No domingo
seguinte, porém, a folha oficial noticiou que “os ilustres touristes
deviam regressar à capital no dia imediato.

 – Oito dias! Tê-la-ia esquecido? Oito dias na
serra, tomando banhos de cachoeira, passeando a cavalo, caçando,
divertindo-se  – que excelente vida!  – Maria do Carmo sentiu uma
alegria deliciosa ao saber que d’aí a vinte quatro horas o Zuza estaria de
volta, mais amável talvez, mais nutrido, mais gordo e mais bonito, contando-lhe
as minudências da viagem. Agora, sim, conversaria com ele, perguntar-lhe-ia se
gostara da serra, se tencionava partir logo para o Recife, se pretendia casar
no Ceará…

Nessa noite
fez-se muito boa para o padrinho, chamou-o “padrinhozinho”,
acariciou-lhe os bigodes, sem dar a entender o seu grande contentamento, a sua
grande felicidade. Durante o víspora esteve perto dele, acompanhando-lhe o
jogo, lembrando quando ele esquecia marcar um número, dando-lhe cafunés no alto
da cabeça, com uma solicitude ingênua.

Quando
os habitués do víspora retiraram-se, João da Mata chamou a
afilhada à alcova, e, muito em segredo, como se fossem velhos namorados,
pediu-lhe um beijo na “boquinha”. Maria ofereceu-lhe os lábios com
uma passividade de escrava, sem a menor resistência, pondo-se nos bicos dos
pés, porque João era muito alto, e deixou que ele sugasse-os em dois tempos, às
pressas, antes que viesse D. Terezinha.

Grande foi
a admiração e a luxúria do amanuense. Maria entregara-se sem um grito, sem um
esforço! E suspendendo-a pela cintura, num ímpeto de carnalidade indomável,
apertou-a contra si, com força, rilhando os dentes, nervoso, bambas as pernas,
o coração aos pulos; mas soltou-a logo. D. Terezinha ali vinha pelo corredor,
arrastando os velhos sapatos achinelados. João pôs-se a assobiar de mãos para
trás.

 – Estavam jogando o sério? perguntou a mulher.

 – Não. Porque?

 – Tão calados!…

 – Queria tu que estivéssemos a gritar como
doidos? fez o amanuense ainda trêmulo da comoção, enquanto Maria, sem dizer
palavra, disfarçava na janela, olhando o céu.

D.
Terezinha começara a desconfiar das intenções de João da Mata. Via-o agora
muito babado pela Maria, convidando-a sempre para junto de si, perseguindo-a
mesmo e notava que a rapariga ultimamente já não era a mesma para ele,
evitava-o, fugia de sua presença, esquivava-se como uma gatinha corrida pelo
macho.

Um dia,
vendo-a triste a uma canto, perguntou-lhe o que tinha. Maria conservou-se
calada e séria, sem erguer a cabeça. D. Terezinha quis atribuir aquele estado à
ausência do Zuza, mas notou que havia no olhar da afilhada um como
ressentimento novo, de momento. Nesse dia, justamente, João esbravejara muito
contra a rapariga, ameaçando-a espancar se ela ousasse “pensar” no
estudante. Desde então começaram as suspeitas de D. Terezinha que conhecia
certas tendências instintivas de João.  – De certo alguma coisa se passava
ente eles. Esses sobressaltos, essas arrelias…  – Entretanto, deixava as
coisas no mesmo pé, sem dizer nada. Talvez fosse desconfiança.

E o mais
curioso é que o João agora tinha rusgas consecutivas com a mulher, sem motivo,
por ninharia, ao voltar da Repartição ou pela manhã antes de ir.

Um belo dia
rompeu deveras. João sentiu logo o sangue subir-lhe à cabeça, e, numa excitação
violentíssima, num daqueles ímpetos de raiva que lhe eram tão comuns devido à
sua natureza irascível, ao seu temperamento bilioso, desandou furioso contra D.
Terezinha, arremetendo com a mão fechada, fulo de cólera.  – Naquela casa
quem mandava era ele, ficasse sabendo! Não aturava desaforos de mulher alguma,
quanto mais dela que não tinha nada com sua vida!

 – E fique você sabendo, acrescentou com sua
vozinha estridente, dando murros na mesa. Fique você sabendo que uma mulher
amigada é como se fosse uma fêmea qualquer, ouviu? Se duvidar, ponho-lhe no
olho da rua!

Palavras
não era ditas. D. Terezinha saltou como uma fera congestionada, os olhos acesos
d’um fulgor fosforescente, desesperada, possessa, os braços em arco e as mãos
nas ilhargas:

 – Você o que quer é abusar da menina e
plantar-lhe um filho no buxo, seu grandis…

Não acabou
a palavra, porque o amanuense, ferido no seu amor próprio, na sua autoridade de
chefe da casa, cego, tresvariado, encheu-lhe a boca com uma formidável bofetada
que fê-la rodar.

Maria ficou
perplexa, cosida à janela, muito trêmula, sem saber o que fizesse, muda, como
petrificada. Nos seus magníficos olhos cor de azeitona perpassou a sombra d’uma
desgraça. O padrinho tinha enlouquecido, pensou. E um pavor infantil tomou-a
toda.

Mal
acordada dos efeitos da agressão, titubeante, manquejando com a mão no queixo,
D. Terezinha foi estender-se lá dentro na alcova, soluçando tão alto que se
ouvia fora , na rua.

Defronte,
em casa da viúva Campelo, estava formada a panelinha do costume  – o
Loureiro, a viúva e a afilhada.

Eram quase
nove horas da noite.

A Lídia com
um pulo veio saber, muito curiosa, o que sucedera, tinha ouvido choro… Se precisassem
de alguma cosa…

Mas o
amanuense tranquilizou-a: que não era nada, coisas de mulher, coisas de
mulher…

A
Campelinho compreendeu que se tratava de assuntos íntimos e rodou nos
calcanhares.  – Não era nada, era o doido do amanuense que andava aos
pontapés.

 – Gente canalha! fez o guarda-livros
inalterável. Que educação, que fina educação, recebia-se naquela casa!

Logo no dia
seguinte à chegada do Zuza  – uma segunda feira luminosa de Outubro, muito
azul no alto, com irradiações no granito das calçadas e uma aragem insensível
quase a arrepiar a fronde espessa dos arvoredos da praça do Patrocínio  –
Maria do Carmo foi recebida na Escola Normal com um chuveiro imprevisto
de  – parabéns  – que as normalistas lhe davam à guisa de presentes
de ano.  – Parabéns! Parabéns! repetiam arrastando os pés para trás,
abrindo alas, como se cortejassem uma princesa.  – Tinham combinado
saudá-la pela chegada do Zuza com esse espírito irrequieto de colegial
despeitado que se apraz em chacotear outro, e talvez com uma ponta de inveja a
mordicá-las por dentro.

A praça
permanecia numa inquietação abençoada, com seus renques de mungubeiras muito
sombrias, verde-escuras e eternamente frescas, a desafiar, frente a frente, a
pujança outonal dos cajueiros em flor que os liceistas castigavam a pedradas.

Meninos
apregoavam numa voz clara e vibrante:

 – Loteria do Pará, 30 contos!

O edifício
da Escola Normal, a um canto do quadrilátero, pintadinho de fresco, cinzento,
com as janelas abertas à claridade forte do dia, tinha o aspecto alegre d’uma
casa de noivos acabada de criar-se.

Maria
estava radiante! Que extraordinária alegria infiltrava-se-lhe na alma, que
excelente disposição moral! Acordara mais cedo que nos outros dias, como se
tivesse de ir a alguma festa matinal, a algum passeio no campo, espanejando-se
toda numa delícia incomensurável, feliz como uma ave que solta o primeiro vôo.
Mas ao entrar na Escola desapontou deveras. Seriam onze horas. O diretor ainda
não havia chegado. Raparigas de todos os tamanhos, trajando branco, azul e rosa
conversavam animadas de livro na mão, formando grupos, no vestíbulo que
separava a sala de música do gabinete de ciências naturais, no pavimento
superior.

Maria
entrou vivamente alegre, de braço com a Lídia, dando  – bom dia!  –
às colegas, uma bonita orquídea no peito, toda de branco, apertada por uma
cinta. Mas a sua delicada susceptibilidade estremeceu ante a insólita
manifestação que se lhe fazia, e uns tons de rosa desmaiados,  – um
ligeiro rubor  – coloriram-lhe o moreno claro das faces.  –
“Aceitava os parabéns, como não? Muito obrigada, muitíssimo obrigada!
Queriam debicá-la? Corujas! Fossem debicar a avó!”

Uma
gargalhada irrompeu do grupo indiscreto, clamorosa e prolongada.

 – Meninas! fez a Lídia. Isso são modos!

 – Olha a baronesa!

 – Como ela está grande!

 – Sua incelência…

Maria a
custo pôde abafar a raiva que lhe sacudia os nervos. Sentou-se à varanda que
dizia para uns terrenos devolutos do lado de Benfica, mordiscando a pelo dos
beiços, trombuda, cara fechada, a olhar o arvoredo com um ar afetado de
absoluta indiferença.

Continuava
o ruído. Havia um jogo contínuo de ditinhos picantes acompanhado de risadinhas
sublinhadas.  – Uma queria um botão de flor de laranjeira, da grinalda,
outra desejava apenas um copito de aluá, ess’outra contentava-se
com um beijo na “noiva”, aquela queria ser madrinho do “primeiro
filho”…

Começaram a
atirar-lhe bolinhas de papel.

Maria
marcava o compasso com o pé, furiosa, sem ver nada diante dos olhos.

 – Já basta! disse a Lídia abrindo os braços
para afastar as outras. Tudo tem limite. Vocês estão se excedendo…

 – Umas ignorantes! saltou Maria acordando.
Umas idiotas que querem levar a gente a ridículo por uma coisa atoa. Ainda hei
de mostrar!…

 – O diretor, o diretor! veio avisar a Jacintinha,
uma feiosa, d’olho vazado, com sinais de bexiga no rosto, e que estava acabando
de decorar alto a lição de geografia.

Foi como se
tivesse dito para um bando de crianças traquinas:  – Aí vem o tutu!

Houve uma
debandada: umas embarafustaram pela sala de música, outras pela de ciências,
outras, finalmente, deixaram-se ficar em pé, lendo a meia voz muito sérias.
Fez-se um silêncio respeitoso, e daí a pouco surgiu no alto da escada a figura
antipática do diretor, um sujeito baixo, espadaúdo, cara larga e cheia com uma
pronunciada cavidade na caixa do queixo, venta excessivamente grande e chata
dilatando a um sestro especial, cabelo grisalho descendo pelas têmporas em
costeletas compactas e brancas, olhos miúdos e vivos, testa inteligente…

Maria
respirou com alívio.

Mas assim
que o diretor deu as costas, entrando para o seu gabinete, recomeçou o zumzum
de vozes, a princípio baixinho, depois num crescendo.

O sol
obrigou-a a fechar o livro. Ergueu-se e foi para a aula, carrancuda,
extremamente bela com o seu vestidinho de cassa, apertado na cinta delgada.

Ao meio
dia, pontualmente, chegou o professor de geografia, o Berredo, um homenzarrão
alto, grosso e trigueiro, barba espessa e rente, quase cobrindo o rosto, olhos
pequenos e concupiscentes. Cumprimentou o diretor, muito afetuoso, limpando o
suor da testa. E consultando o relógio:

 – Meio dia! São horas e dar o meu recado. Com
licença.

Contavam-se
na sala d’aula pouco mais de umas dez alunas, quase todas de livro aberto sobre
as carteiras, silenciosas agora, à espera do professor. Maria ocupava um dos
bancos da primeira fila.

Ao entrar o
Berredo, houve um arrastar de pés, todas simularam levantar-se, e o ilustre
preceptor sentou-se, na forma do louvável costume, passeando o olhar na sala,
vagarosamente, com bonomia paternal  – tal um pastor d’ovelhas a velar o
casto rebanho.

A sala era
bastante larga para comportar outras tantas discípulas, com janelas para a rua
e para os terrenos devolutos, muito ventilada. Era ali que funcionavam as aulas
de ciência físicas e naturais, em horas diferentes das de geografia. Não se via
um só mapa, uma só carta geográfica na paredes, onde punham sombras escuras
peles de animais selvagens colocadas por cima de vidraças que guardavam,
intactos aparelhos de química e física, redomas de vidro bojudas e reluzentes,
velhas máquinas pneumáticas nunca servidas, pilhas elétricas de Bunsen,
incompletas, sem o amálgamas de zinco, os condutores pendentes num abandono
glacial; coleções de minerais, numerados em caixinhas, no fundo da sala, em
prateleiras volantes… Nenhum indício, porém, de esfera terrestre.

O professor
pediu um compêndio que folheou de relance.  – Qual era a lição? A Oceania?
Pois bem…

 – Diga-me, senhora Da. Maria do Carmo: A
Oceania é ilha ou continente?

Maria
fechou depressa o compêndio que estivera lendo, muito embaraçada, e, fitando
mestre, batendo com os dedos na carteira, com um risinho:

 – Somente uma parte da Oceania pode ser
considerada um continente.

 – Perfeitamente bem!

E
perguntou, radiante, como se chama essa parte da Oceania que pode ser
considerada continente; explicou demoradamente e categoricamente a
natureza das ilhas australianas, elogiando as belas paisagens claras da Nova
Zelândia, a sua vegetação opulenta, as riquezas do seu solo, o seu clima, a sua
fauna, com entusiasmo de touriste, animando-se pouco e pouco, dando
pulinhos intermitentes na cadeira de braços que gemia ao peso de seu corpo.

Maria,
muito séria, sem mover-se, ouvia com atenção, o olhar fixo nos olhos do
Berredo, bebendo-lhe as palavras, admirando-o, adorando-o quase como se visse
nele um doutor em ciências, um sábio consumado, um grande espírito.
Decididamente era um talento, o Berredo! Gostava imenso de o ouvir falar,
achava-o eloquente, claro, explícito, capaz de prender um auditório ilustrado.
Era a sua aula predileta, a de geografia, o Berredo tornava-a mais interessante
ainda. Os outros, o professor de francês e o de ciências, nem por isso; davam
sua lição como papagaios, e  – adeus, até amanhã. O Berredo, não senhores,
tinha um excelente método de ensino, sabia atrair a atenção das alunas com
descrições pitorescas e pilhérias encaixadas a jeito no fio do discurso.

 – “Muitas ilhas da Oceania, dizia ele,
coçando a barba, são habitadas por selvagens antropófagos, como os da América
antes de sua descoberta…”

 – “Imaginem as senhoras, que horror!
Homens devorando-se uns aos outros, comendo-se com a mesma satisfação, com a
mesma voracidade, com o mesmo canibalismo com que nós outros, civilizados,
trinchamos um beef-steak ao almoço…”

Houve um
casquinada de risos à surdina.

 – Agora se o Zuza te come, disse baixinho, por
trás de Maria do Carmo, uma moçoila de pincenez. Toma cuidado, menina, o bicho
tem cara de antropófago…

 – “E note-se, continuou o Berredo, as
próprias mulheres não escapam à fúria das tribos inimigas: devoram-se
também…”

 – Virgem! fez Maria com espanto…

 – “As senhoras com certeza preferem viver
n o Ceará a habitar a Papuásia…”

 – Credo! fizeram muitas a uma voz.

 – E no Brasil há desses selvagens? perguntou
estouvadamente uma loura que se escondia na última fila, estirando o pescoço.

O pedagogo
sorriu, passando a mão cabeluda na barba; e muito delicado, num tom benévolo:

 – “Atualmente existem poucos… Restos de
tribos extintas…”

E continuou
a falar com a loquacidade de um sacerdote a pregar a moral, explicando a vida e
costumes dos selvagens da Nova Zelândia, citando Júlio Verne, cujas obras
recomendava às normalistas com um “precioso tesouro de conhecimentos úteis
e agradáveis”.  – Lessem Júlio Verne nas horas d’ócio; era sempre
melhor do que perder tempo com leituras sem proveito, muitas vezes impróprias
de uma moça de família…

 – Vá esperando…. murmurou a Lídia.

 – “Eu estou certo,  – dizia o
Berredo, convicto,  – de que as senhoras não leem livro obscenos, mas
refiro-me a esses romances sentimentais que as moças geralmente gostam de ler,
umas historiazinhas fúteis de amores galantes, que não significam absolutamente
coisa alguma e só servem de transtornar o espírito às incautas… Aposto em
como quase todas as senhoras conhecem a Dama das camélias, Lucíola…”

Quase todas
conheciam.

 – “….Entretanto, rigorosamente, são
péssimos exemplos…”

Tomou um
gole d’água, e continuando:

 – “Nada! As moças deviam ler somente o
grande Júlio Verne, o propagandista das ciências. Comprem a Viagem ao
Centro da Terra, Os filhos do Capitão Grant
 e tantos outros romances
úteis, e encontrarão neles alta soma de ensinamentos valiosos, de conhecimentos
práticos…”

O contínuo
veio anunciar que estava terminada a hora.

Dias depois
o Berredo lecionava, como de costume, a seu bel-prazer, derreado na larga
cadeira de espaldar, quando o contínuo, fazendo uma mesura, anunciou: “S.
Excia. o Sr. Presidente da Província”, e imediatamente assomou à porta da
sala o ilustre personagem, mostrando a esplendida dentadura num sorriso
fidalgo, com o peito da camisa deslumbrante de alvura, colarinhos muito altos e
tesos, gravatas de seda cor de creme, onde reluzia uma ferradura de ouro
polido, bigodes torcidos imperiosamente: um belíssimo tipo de sulista
aristocrata. Estava um pouco queimado da viagem a Baturité.

O Berredo
desceu logo do estrado a cumprimentá-lo com o seu característico aprumo d’homem
que viajara a Europa. Todas as alunas ergueram-se.

 – Como passa V. Excia., bem? Estava agora
mesmo…

O
presidente pediu que não se incomodasse, que continuasse. Acompanhavam-no, como
sempre, o José Pereira e o Zuza.

Maria, ao
dar com os olhos do estudante, ficou branca, um calafrio gelou-lhe a espinha,
baixou a cabeça. fria, fria, como se tivesse diante de um juiz inflexível.

S. Excia.
tomou assento entre o professor e o diretor. José Pereira e o Zuza sentaram-se
nas extremidades da mesa.

As alunas
tinham-se formalizado, muito respeitosas, imóveis quase, de livro aberto, com
medo à chamada. Houve um silêncio.

 – Pode continuar, disse o presidente para o
Berredo. E este, inalterável:

 – V. Excia. não deseja argumentar?

 – Não, não. Obrigado…

 – Neste caso…

E para s
discípulas:

 – Diga-me a Sra. D. Sofia de Oliveira, quantos
são os pólos da Terra? Veja como responde, é uma pequena recapitulação. Não se
acanhe. Quantos são os pólos da Terra?

O Berredo
lembrou-se de fazer uma ligeira recapitulação para dar idéia do adiantamento de
suas alunas.

Sofia de
Oliveira era uma pequerrucha de olhos acesos, morena, verdadeiro tipo de
cearense: queixo fino, em angulo reto, fronte estreita, olhos negros e
inteligentes.

 – Quantos são os pólos da Terra? fez ela
olhando para o teto como procurando a resposta, embatucada.  – Os
pólos?… Os pólos são quatro.

Risos

 – Quatro? Pelo amor de Deus! Tenha a bondade
de nomeá-los

 – Norte, sul, leste, oeste.

Nova
hilaridade

 – Está acanhada, desculpou o Berredo
voltando-se para o presidente. Até é uma das minhas melhores alunas.  –
Não confunda, tornou para a normalista. Olhe que são pólos e não pontos
cardeais…

Outro
disparate:

 – Há uma infinidade de pólos…

 – Ora! Adiante… D. Maria do Carmo.

Maria
estremeceu, embatucando também, sem dizer palavra, sufocada. A presença do Zuza
anestesiava-a, incomodava-lhe atrozmente. Sob a pressão do olhar magnético do
estudante, que a fixava, sua fisionomia transformou-se.

 – Então, D. Maria?… Também está acanhada?

 – Passe adiante, pediu o Zuza, compadecido.

Duas
lágrimas rorejaram nas faces da normalista ciando com um sonzinho seco sobre a
carteira. Estava numa das suas crises nervosas. Outras duas lágrimas
acompanharam a primeira, vieram outras, outras, e Maria, cobrindo o rosto com
seu lencinho de rendas, desatou a chorar escandalosamente.

 – Sente-se incomodada? tornou o Berredo. D.
Maria! Olhe… Tenha a bondade de levantar a cabeça…

 – Está nervosa, disse o presidente com o seu
belo ar de céptico elegante.

 – Pudores de donzela, murmurou o diretor. Isso
acontece.

O Berredo
passou a mão no bigode, desapontado, e encontrando o olhar faiscante de
Lídia:  – A senhora… Quantos são os pólos da Terra?

 – Dois: o pólo norte e o pólo sul.

 – Perfeitamente! confirmou o professor batendo
com o pé no estrado e esfregando as mãos satisfeito. – Dois, minhas senhoras,
disse mostrando os dois dedos abertos em ângulo; dois! O pólo norte, que é o
extremo norte da linha imaginária que passa pelo centro da Terra, e o pólo sul,
isto é, a outra extremidade diametralmente oposta; eis aqui está! Está ouvindo,
D. Sofia? Está ouvindo D. Maria do Carmo? São os dois pólos da Terra!

 – Estou satisfeito, disse o presidente,
erguendo-se.

Arrastar de
cadeiras e pés, zunzum de vozes, e S. Excia., grave, correto e calmo,
retirou-se com o seu estado-maior.

O Zuza
ferrou em Maria do Carmo um olhar tão demorado e comovido que chegava a meter
pena. Os seus óculos de ouro, muito límpido e translúcidos, tinham um brilho de
cristal puro. Trazia na botoeira do redingote claro (o Zuza gostava de roupas
claras) uma flor microscópica.

Alguém
murmurou ao vê-lo passar:

 – Sempre correto!

Maria
deixou-se ficar sucumbida, de cabeça baixa, mordiscando a ponta do lenço, com
uma lágrima retardada a tremeluzir-lhe na asa do nariz, desesperada, revoltada
contra si mesma, que não soubera responder uma coisa tão simples… que
vergonha, que humilhação! pensava.

Não saber
quantos pólos tem a Terra! E quem havia de responder? A Lídia, logo a Lídia! O
Zuza agora ficava fazendo um juízo muito triste a seu respeito e não a
procuraria mais… Ah! era muito tola decididamente! E jurava consigo “não
ter mais vergonha de homem algum”.

Pediu
licença ao professor e retirou-se antes de findar a aula para evitar os
gracejos das colegas, voltando à casa sem Lídia, sozinha, acaçapada,
inconsolável.

Uma vez no
seu discreto quartinho, bateu a porta com força, despindo-se às carreiras,
desabotoando os colchetes com espalhafato, aos empuxões, impaciente, até ficar
em camisa, e atirou-se à rede soltando um grande suspiro. Esteve muito tempo a
pensar no acadêmico, na “figura triste” que fizera na aula, em mil
outras coisas por associação de ideias, com o olhar, sem ver, numa velha
oleografia do “Cristo abrindo os braços e mostrando o coração à
humanidade”, que estava na parede.

Era uma desgraçada,
suspirava tomada de desânimo. Todas tinham seus namorados, viviam felizes, com
o futuro mais ou menos garantido, amando, gozando; todas tinham seu dia de
felicidade, e ela?

Era como
uma gata borralheira, sem pai nem mãe, obrigada a suportar os desaforos d’um
padrinho muito grosseiro que até a proibia de casar. Nem amigas tinha. A Lídia
essa parecia-lhe uma desleal, fingida, hipócrita; não viram como ela tinha dado
quinau na aula? Uma ingrata… Sim, está visto que havia de
ter um fim muito triste…

O
verdadeiro era fugir com o primeiro sujeito que lhe aparecesse, fugir para fora
do Ceará, ir de uma vez… Estava cansada de viver naquela casa…

E
revoltava-se contra os padrinhos, contra a sociedade, contra Deus, contra tudo,
num desespero febril, ansiando-se por uma vida feliz, independente, livre de
cuidados ao lado de um homem que a soubesse compreender, que lhe fizesse todas
as vontades.

Por seu
gosto não iria mais à Escola Normal para coisíssima alguma. Estava muito bem
educada, não precisava de aprender em colégio, já não era criança.

Acudiram-lhe
reflexões absurdas, idéias extravagantes, pensamentos de colegial estouvada,
inquieta na rede, virando-se revirando-se, ora fitando com olhar piedoso a
imagem de Cristo, ora mergulhando a vista numa telha de vidro, espécie de
claraboia, que havia no telhado, e através da qual brilhava um pedaço do céu
sem nuvens.

Começou a
sentir uma ponta de enxaqueca e caiu numa madorna, deitada de costas, os braços
cruzados sobre a cabeça, traindo a penugem rala das axilas, respirando
levemente, como uma criança. A camisa fina, quase transparente, arregaçada por
descuido até a parte superior da coxa esquerda, mostrava toda a perna roliça,
morena, cheia, sem depressão, arqueando-se no joelho…

 

6

 

O primeiro
cuidado de Zuza ao regressar da excursão presidencial a Baturité foi ajustar
contas com o redator da Matraca, ameaçando urbi et orbi fazê-lo
engolir o número do pasquim que trazia versalhada torpe sobre o namoro do
Trilho de Ferro.

No Ceará
não havia outro homem que usasse flor na lapela, dizia; o estudante, filho de
titular, que andava a cavalo mais o presidente da província, era ele, Zuza.
Estava claro, claríssimo, que a diatribe, o insulto, a infâmia, referia-se à
sua pessoa, e o único meio, simples, fácil e positivo, de se ensinar um patife
é dar-lhe de rebenque na cara. Conclusão: o redator da Matraca não
só ia engolir o papelucho, mas também apanhar de rebenque no focinho, custasse
o que custasse.

 – Grandíssimo canalha!

— Mas no
Ceará não se faz reparo nessas coisas, meu Zuza. O insulto nesta terra é um
divertimento como qualquer outro, como o entrudo, por exemplo. Cada cidadão
aqui é uma verdadeira Matraca, Não te importes, não te dês
cuidado…

Isto
dizia-lhe o José Pereira na redação da Província, mas o Zuza
recalcitrava:

— Eu?! Hei
de tomar um desforço, custe o que custar. Se é costume desta terra os
indivíduos se insultarem mutuamente, com a mesma facilidade com que tomam uma
xícara de café, pílulas! é preciso dar ensino, é preciso que alguém se levante!

— É
bobagem, filho. Toda a gente toma a defesa do réu e aí fica a vítima do insulto
com cara de besta. É o que é. Lá diz o rifão: quem não quer ser lobo…

Esse José
Pereira, fisicamente, dir-se-ia irmão gêmeo do Berredo da Escola Normal. Alto,
cheio de corpo, trigueiro, a mesma barba espessa negra cobrindo quase todo o
rosto, os mesmíssimos olhinhos vivos e concupiscentes. Dele é que se dizia que
fora surpreendido em flagrante adultério com a mulher do juiz municipal no
Passeio Público, um escândalo que por muitos dias serviu de pastos a boticários
e bodegueiros.

Começara
vida pública no Correio, como carteiro, e agora aí estava feito redator
da Província, em cujo caráter tornou-se geralmente admirado por
seus folhetins alambicados, que o público digeria à guisa de pastilhas de
Detan. Aos sábados publicava no rodapé do jornal fantasias literárias, contos
femininos em estilo 1830, histórias dissolutas que eram lidas com avidez, mesmo
com certa gula pelo mulherio elegante e pela burguesia sentimental e piegas.

Cedo José
Pereira começou a inchar como a rã de La Fontaine e a julgar-se, com efeito, um
grande escritor, “um talento”, capaz, olá! muitíssimo capaz de fazer
as delícias de qualquer sociedade inteligente e ilustrada. Daí certo ar
autoritário, certa prosápia que ele afetava em toda a parte, dizendo-se
“contemporâneo de Rocha Lima”, “amigo de Capistrano de
Abreu”; certo aprumo pedante que não condizia com sua velha sobrecasaca de
diagonal cujo estado incomodava deveras a alta sociedade cearense.

Que diabo!
um sujeito inteligente, com ares de fidalgo avarento, redator de um jornal,
sempre trazendo a mesmíssima sobrecasaca! E o chapéu? Sempre o mesmo também, um
triste chapéu de feltro com manchas oleosas! Oh! a respeitável sociedade
cearense exigia primeiro que tudo decência no trajar, e aquilo assim, aquela
sobrecasaca sórdida escandalizava-a como se escandaliza uma donzela diante
d’uma estátua nua. Pois o Sr. José Pereira não podia, sem grandes sacrifícios,
comprar um fato novo? Então, que diabo! não aparecesse entre as pessoas de
certa ordem, ficasse em casa, fosse mais modesto. Sim, porque todo homem de
talento, na opinião da sociedade cearense, deve acompanhar a moda em todas as
suas nuances, em todos os seus requintes, deve ter sempre uma casaca à ultima moda,
conforme os figurinos, para os “momentos solenes”; deve ser enfim um
sujeito “correto” na acepção mais lata da palavra.

O Sr.
Pereira sabia dar um laço na gravata, lá isto sabia, e também não ignorava como
se calça uma luva; mas (e isto é que preocupava a sociedade cearense) o Sr.
José Pereira, quer fosse a um baile de primeira ordem, quer fosse a uma festa
inaugural, quer fosse ao teatro, levava sempre, invariavelmente, a mesma
sobrecasaca surrada e o mesmo chapéu ruço! Um homem de talento, sem gosto, o
que não se admite. A sociedade cearense, porém, ignorava que o Sr. José Pereira
era casado, tinha filhos e ganhava apenas o essencial para o seu sustento e o
da família. cento e cinquenta mil réis por mês, uma ninharia.

Os seus
amigos, às vezes, gracejando, propunham-lhe abrir uma subscrição para a compra
de um paletó novo e de um chapéu idem. José Pereira, porém, tinha espírito e
respondia-lhes ao pé da letra, mudando logo o rumo da conversa.

Nesse tempo
o redator da Província ainda era calouro em política. Dava o
seu voto e nada mais. A literatura é que o absorvia. Um livro novo era para ele
a melhor novidade: caísse embora o ministério, rebentasse uma revolução, ele
conservava-se a ler, virando páginas, devorando a obra como um alucinado,
defronte do abajur de papelão, no seu modesto gabinete de escritor pobre.
Conhecia Dumas pai de cor e salteado; fora o seu primeiro “mestre”.
Depois entregou-se a ler os Miseráveis, declarando-se hugólatra
incondicional em uma apreciação que fizera do grande poeta. O artigo concluía
deste modo:

“Vitor
Hugo é o Cristo da legenda transfigurado em profeta moderno. Ele é todo um
século. Tudo nele é grande como a natureza. Os Miseráveis são
a apoteose de todas as misérias humanas. Vitor Hugo, o Mestre, é o Sol da Humanidade.
Amemo-lo como a um Deus!”

Isso
produziu efeito entre os literatos contemporâneos, que não dispensaram elogios
ao “valente folhetinista” da Província.

A fama de
José Pereira encheu depressa toda a cidade. Dizia-se — “aí vai o José
Pereira!” como quem diz — “aí vai um gênio!” E ele saudava a
todos convictamente, tocando de leve a aba mole do chapéu preto de massa.

Em fins de
1886 José Pereira conservava-se ainda na Província, como um dos
principais redatores. A sua fama não decrescera, era a mesma, com uma pequena e
insignificante diferença — é que ele já não era simplesmente um “talento
fecundo”, mas também um fecundíssimo canalha, um requintado “sedutor
de mulheres casadas”, o que afinal de contas não o prejudicava assaz no conceito
do mulherio. Havia as viúvas, casadas e solteiras que o defendiam tenazmente.

Não, diziam
elas, o diabo não é tão feio quanto o pintam. José Pereira podia ser um rapaz
alegre, divertidíssimo, jovial e espirituoso, amigo das mulheres — vá, mas, em
suma, um excelente rapaz e um belo caráter. Porque o fato d’um homem
apaixonar-se facilmente por muitas mulheres ao mesmo tempo ou em épocas
diferentes não quer significar que esse homem seja um sedutor e um patife.
Demais, José Pereira era artista, e o artistas, escultor ou poeta, pintor ou
músico, não pode compreender a vida sem o amor…

— Mas é um
homem casado, profligavam as outras.

— Bem; mas
o casamento…

E
demonstrava que o casamento, longe de ser um atentado contra o livre arbítrio
das partes, é, ao contrário, uma instituição que concede, tanto ao homem como à
mulher, plena liberdade de amar ao próximo como a si mesmo.

Entre as
que adotavam a prática destas teorias tão abstrusas quanto originais,
distinguiam-se a mulher de João da Mata e a do Dr. Mendes.

— Então,
decididamente, queres quebrar a cara ao redator da Matraca! dizia
ele ao Zuza.

— Mas que
dúvida!

Quem quer
que fosse o verrinista havia de ficar sabendo de quantos paus se faz uma
jangada.

— Mas olhas
que é uma imprudência pueril, homem. Quando o insulto vem de baixo a gente deve
responder com o desprezo. O desprezo é a arma invencível dos espíritos
superiores. Eu é como tenho resolvido as questões desta natureza.

— Qual
desprezo! Não se mata com desprezo um réptil venenoso; pisa-se-o, reduz-se-o a
papas. Isto é o que fazem os espíritos superiores. Sabes —quem é o biltre?

— Homem ,
francamente, confesso-te que não o conheço. Dizem ser um tal Guedes,
vulgo Pombinha, um sujeito reles, um trocatintas, um miserável que
nem vale a pena de um escândalo…

— Não vale
a pena? Quebro-lhe a cara, ora se quebro… Onde fica tipografia do jornaleco?

— Na rua de
São Bernardo, creio eu, uma espécie de toca imunda, com ares de latrina

— Guedes
(Pombinha) … rua de São Bernardo. Muito bem!

E o Zuza
tomou nota no seu canhenho, guardando-o resolutamente.

— Diabos me
levem se eu não faço uma estralada hoje.

Mudando de
tom:

— Quero que
publiques hoje o meu soneto A volta; deve sair hoje infalivelmente.

— É
dedicado à mesma?


Certamente. Sabes que eu sempre fui muito correto nos meus amores. A pequena
está pelo beicinho. Há de cair como mosca, eu te garanto.

— Um
divertimento, hein?

— Não, sou
muito capaz de casar. Aquele arzinho ingênuo, aqueles olhos de madona
traduzindo uma alma cheia de sentimentos bons… — tudo nela, enfim, agrada-me.

— Mas é uma
pobretona, filho. Aquilo é para a gente namorar, encher de beijos e — pernas
p’ra que te quero! És muito calouro ainda nisso de amores. Aproveita a tua
mocidade, deixa-te de pieguismo, menino. A vida é uma comédia, como lá diz o
outro…

Então o
Zuza, acendendo um cigarro, disse que estava aborrecido de mulheres que se
entregavam facilmente. Em Pernambuco namorara a filha de um barão e, se não
fosse esperto, àquelas horas estaria talvez às voltas com o minotauro de que
fala Balzac. Era uma rapariga esplêndida, mas tão depravada, tão dissoluta que
acabou fugindo com um jóquei do Prado Pernambucano, um negro!

Quanto às
mulheres de vida alegre, detestava-as; tinha gasto muito dinheiro, precisava
casar, mas, casar com uma menina ingênua e pobre, porque é nas classes pobres
que se encontra mais vergonha e menos bandalheira. Ora, Maria do Carmo
parecia-lhe uma criatura simples, sem essa tendência fatal das mulheres
modernas para o adultério, uma menina que até chorava na aula simplesmente por
não ter respondido a uma pergunta do professor! Uma rapariga assim era um caso
esporádico, uma verdadeira exceção no meio de uma sociedade roída por quanto
vício há no mundo. Ia concluir o curso, e, quando voltasse ao Ceará, pensaria
seriamente no caso. A Maria do Carmo estava mesmo a calhar: pobrezinha, mas
inocente…

— É o que
tu pensas, retorquiu o outro. Hoje não há que fiar em moças, pobres ou ricas.
Todas elas sabem mais do que nós outros. Lêem Zola, estudam anatomia humana e
tomam cerveja nos cafés. Então as tais normalistas, benza-as Deus, são
verdadeiras doutoras de borla e capelo em negócios de namoros. Sei de uma que
foi encontrada pelo professor de história natural a debuxar um grandíssimo falo
com todos os seus petrechos…

— O que,
homem?

— É o que
estou a dizer-te, por sinal acabou amigando-se com um bodegueiro de Arronches e
lá vive muito bem com o sujeito. Creio até que já tem filhos.

— Oh!
Senhor, então ao que me vai parecendo, está muito adiantada a nossa pequena
sociedade! Exclamou o Zuza muito admirado, cavalgando o pincenez. Pois olha eu
supunha isto aqui uma santidade…

— É que há
muito tempo não vinhas ao Ceará. Por cá também se dão escândalos como em
Pernambuco, e escândalos de pasmar a um sacerdote da moral, como o filho de meu
pai.

O
escritório da Província estava quase deserto. Apenas o José
Pereira e o estudante conversavam amigavelmente, sentados um defronte do outro
à mesa dos redatores, fumando, enquanto lá dentro, nos fundos onde ficavam as
oficinas, os tipógrafos compunham atarefados a matéria do dia.

Seriam duas
horas da tarde. A calor abafava.

Um
rapazinho raquítico, em mangas de camisa, com manchas de tinta no rosto e um ar
amolentado, veio trazer as provas do expediente do governo.

— Falta
matéria? Perguntou José Pereira, encarando-o. “Não sabia, não senhor, ia
ver”. E saiu voltando imediatamente: que o jornal estava completo.

— Bem,
disse o Zuza, levantando-se, vou à casa do Sr. Guedes. Preciso acabar com isso.

— Mas olha,
recomendou o redator, não vás fazer asneiras, hein?

— Não, não.
A coisa é simples. Addio.

E
retirou-se fazendo piruetas com a bengala no ar.

— É um
criançola esse Zuza, murmurou José Pereira molhando a pena.

Imediatamente
entrou o Castrinho, outro colaborador da Província, também
poeta e amigo particular de José Pereira, autor das Flores
Agrestes 
publicadas há dias e que tinham sido muito bem recebidas pela
crítica indígena. Vinha trazer a resposta ao crítico do Cearense que
o chamara — plagiador de obras alheias.

— Então
temos polêmica? Perguntou José Pereira sem levantar a cabeça, revendo as
provas.

— Porque
não? Hei de provar à evidência que não preciso plagiar a ninguém. Aqui está o
primeiro artigo. É de arromba!

O Castrinho
sacou do bolso do paletó de alpaca um calhamaço de tiras de papel gordurosas e
sacudindo-as, como quem toma o peso a alguma cousa:

— Aqui
está: hei de rebater uma a uma, sem dó nem piedade, todas as asserções do meu
invejoso contendor.

— Já te
falo, disse o outro, continuando o trabalho. Tem paciência um pouquinho. O
diabo das provas…

— Sim,
continua; não te quero interromper…

Plagiador,
ele, que tinha talento para dar e emprestar a toda a caterva de versejadores
cearenses? Havia de provar o contrário, porque tanto sabia burilar um soneto
como manejar a prosa.

Até
estimara a provocação do Cearense, porque desse modo o público
ficaria sabendo quem eram os imitadores, os parasitas da poesia nacional. Ali
estavam o juízo da imprensa fluminense, ali estava o juízo de toda a imprensa
do Brasil, do Amazonas, do Prata, sobre as Flores Agrestes. Um
jornal do Sul — O Cometa — comparara-o até a Olavo Bilac e a
Raimundo Corrêa.

— Inveja,
murmurou José Pereira. O verdadeiro talento é sempre vítima do despeito das
mediocridades.

E
terminando a revisão:

— Vejamos
isto, disse o Castrinho entregando a papelada. Hei-de convencer ao zoilo
do Cearense, por a+b que ele é quem é plagiador, o
invejoso, o ignorante, a besta, e eu o poeta consciencioso e moderno que não se
limita a cantar Elviras e a copiar Lamartine.

José
Pereira derreou-se na cadeira de espaldar, um velho traste que fora da Perseverança e Porvir,
“atestado eloquente de uma luta de heróis” — como dizia o Zuza — e,
depois de acender a ponta do cigarro, que estava à beira da mesa, devorou com
olhar protetor a série de argumentos mais ou menos esmagadores com que o outro
pretendia aniquilar o articulista da folha adversa. Tinha a epígrafe — As
Flores Agrestes e a Inveja Furiosa,
 — e concluía nestes termos:
“Voltarei à questão para esmagar com a lógica irrefutável da verdade o
ousado e néscio criticista que me acoimou de plagiador. O público verá qual de
nós tem razão; eu, que tive o aplauso da quase totalidade da imprensa
brasileira, ou o zoilo do Cearense, que pretendeu obscurecer o
meu merecimento”.


Magnífico! Exclamou José Pereira, levantando-se. Dá cá um abraço. Homem.

E
estreitando o Castrinho contra o peito:

— Tens
talento como um bruto, menino. Olha que quem escreveu vale o que escreveu,
caramba! Continua, Castrinho, continua, que ainda hás de vir a ser um grande
poeta. Desta massa é que se fazem os Byron e os Vítor Hugo… E logo,
paternalmente: — Queres jantar comigo?

— Obrigado.
Hás de permitir que te agradeça, hein? Adeuzinho. Não esqueças o artigo.


Absolutamente não. Amanhã, impreterivelmente, ve-lo-ás na segunda página, todo
inteirinho. Adeus.

Vendedores
de jornais esperavam a Província, à porta da redação, inquietos,
turbulentos, a questionar por dá cá aquela palha, e já se ouvia o barulho do
prelo lá dentro imprimindo a folha governista. Empregados públicos voltavam das
repartições taciturnos, em sobrecasacas sórdidas, mordendo cigarros Lopes Sá,
amarelos, linfáticos, o estômago a dar horas. Pouco movimento na rua do Major
Facundo; um ou outro transeunte macambúzio, de chapéu de sol, caixeiros que
atravessavam a rua ligeiros, em mangas de camisa, e alguns pobres diabos
arrastando-se a pedir esmola.

A cidade
permanecia na sua costumada quietação provinciana, muito cheia de claridade,
bocejando preguiçosamente de braços cruzados, à espera do Progresso. Suava-se
por todos os poros e respirava-se a custo, debaixo d’uma atmosfera equatorial,
acabrunhadora. Estalava à distância, num ritmo cadenciado e monótono, o canto
estridente e metálico d’uma araponga, cujo eco repercutia em todo o âmbito da
pequena capital cearense.

Ao dobrar a
rua da Assembleia o Zuza parou, à espera que o bonde passasse, e esteve
considerando um instante. — De que lhe servia ir onde estava o Guedes e
quebrar-lhe as costelas a bengaladas? O rapaz podia repetir a agressão e aí
estava o conflito sério, em que necessariamente um dos dois havia de sair
ferido. Afinal de contas era provocar um escândalo inútil, vinha a polícia e a
vergonha era dele, Zuza, unicamente dele, um rapaz de posição, amigo do
presidente… Não valia a pena abrir luta com um pasquineiro. O melhor era,
como aconselhara o José Pereira, dar o desprezo ao cão. Se ele, porém, o
abocanhasse outra vez, então, decididamente, quebrava-lhe a cara. Apelava para
a reincidência do foliculário. Província estúpida! Estava doído por se ver
livre de semelhante canalhismo. E àquilo é que se chamava terra da luz!

Seguiu para
casa preocupado com essas idéias, com um nojo do Ceará.

O coronel
divertia-se tranquilamente com a passarada do viveiro, metido no inseparável
gorro de veludo bordado a ouro e retrós. Era amigo de pássaros e tinha-os
magníficos em gaiolas de arame penduradas na sala de jantar, além do viveiro,
também em arame, em forma de quiosque chinês, com uma bola de vidro no alto,
colocado no quintal, defronte da casinha de banhos.

Uma vidinha
estúpida aquela! Pensava o estudante estendendo-se na rede. Morria-se de tédio
e calor. Vieram-lhe saudades do Recife. Oh! O Recife, o Prado aos domingos, os
passeios, os belos piqueniques a Caxangá… Lembrou-se da sua última conquista
amorosa — a Rosita, uma espanhola com quem estivera seguramente uns seis meses.
Um peixão! Morava na Madalena. Vira-a uma vez no teatrinho da Nova Hamburgo,
sozinha num camarote, muito bem vestida, com um rico leque de plumas, anéis de
brilhante, esplêndida: era argentina.

Que de cerveja
e ceiatas e passeios de carros e pagodeiras nos hotéis! Relembrava a primeira
noite que passara com Rosita, por sinal tinha tomado muita champanhe, tinha
feito um figurão. A rapariga compreendeu que tratava com gente fina e
entregou-se. Uma noite deliciosa! Começou por uma ceia em casa dela, na
Madalena, um chalezinho de porta e janela com varanda, forrado a papel sangue
de boi e jardinzinho na frente. A sala de visitas era um mimo com sua
mobília mignon de assento estufado, piano, quadros do
paganismo, bibelots… E a alcova? Um ninho, um perfeito ninho de
amores. Zuzinha — era como ela o tratava, toda ternura cobrindo-o de beijos,
suspendendo-o nos braços como se levantasse uma criança, sentando-o no colo —
ela de pegnoir de fustão com fitinhas azuis, uns olhos
matadores úmidos de sensualidade, e ele à frescata, em mangas de camisa, sem
colarinho — um deboche!

E uma
saudade imensa invadia-o, saudade da Rosita, saudade da república,
— uma troça alegre de rapazes endinheirados e limpos, — saudades dos banhos de
mar em Olinda…

Depois
veio-lhe à mente a normalista, a cearense do Trilho de Ferro. Muito bonitinha,
é verdade, mas uma tola que não sabia tratar com rapazes educados. Lá por ser
pobre, não; mas parecia-lhe tão atrasadinha, assim como apalermada, indiferente
a tudo. Além disso um nome de matuta — Maria do Carmo. Ainda se fosse Maria
Luiza, mas Maria do Carmo!…

Começou
então a fazer considerações sobre Maria. Achava-a até parecida com a Franzina,
uma rapariga de Pernambuco, também morena e d’olhos cor de azeitona, baixinha e
sem vergonha, “passada” por todos os estudantes da academia. Mas
mesmo muito parecida, agora é que se lembrava: era a Franzina. Um horror! No
Ceará não se encontravam mulheres públicas de certa ordem. Tudo era uma récua
de meretrizes imundas, carregadas de sífilis até os olhos. Os rapazes viviam se
queixando de moléstias secretas.

Levantou-se
em ceroulas, para acender um cigarro, espreguiçando-se.

O quarto
era pequeno, mas arranjado com certo decoro e bom gosto. O Zuza herdara essa
qualidade característica dos Souza Nunes — o amor à ordem. Tudo dele era
arrumado e limpo. Adorava a boêmia, mas a boêmia que não cospe no assoalho e
que toma banho ao menos uma vez por dia. Nisto de assei, como em muitas outras
coisas, era correto e o pai o louvava por essa qualidade especial de se portar
com a máxima inteireza, no asseio do corpo, como no das ações. Toda a mobília
do pequeno compartimento consistia numa estante envidraçada, cadeiras, um sofá
e uma mesinha redonda, colocada no centro e coberta com um pano azul, de lã.
Comunicava com outro quarto menor onde estava a cama de ferro e uma rede. Ma
cabine à coucher
, dizia o Zuza mostrando aos amigos esse interior
confortável de boêmio rico. A claridade entrava pela varanda e ia morrerem penumbra
lá dentro no segundo quarto. No papel claro das paredes destacavam-se
litografias encaxilhadas de poetas célebres e o retrato de Gambetta, na postura
habitual em que o grande orador falava ao povo. Em política era o seu ídolo,
dizia o estudante, e, no auge do entusiasmo, colocava-o acima de Mirabeau. Em
cima da mesa números avulsos da Revista Jurídica confundindo-se
com jornais ilustrados, e um porta-retratos com as fotografias do coronel e da
esposa, olhando para os lados, em sentidos opostos. Tal o “gabinete”
do Zuza, o seu remanso de estudante cuidadoso.

Tinha
aberto ao acaso seu romance querido — A Casa de Pensão. Um
livro importante, gabava; um livro que revelava o grau de
adiantamento da literatura brasileira, não deixando a desejar os melhores dos
escritores naturalistas portugueses. Este exagero do Zuza deve se levar a conta
do ódio injusto que ele votava a tudo quanto cheirasse a lusitanismo.

O
estudante, porém, nunca passara a vista sequer num romance de Eça ou numa
crítica de Ramalho. — “Não queria, não podia tragar coisas que lhe
provocassem vômitos”. Preferia um churrasco à baiana ao “tal”
Sr. Camilo Castelo Branco, um sujeito inimigo do Brasil, que não pedia a
ocasião de nos ridicularizar. De Portugal, Camões exclusivamente, isso mesmo
porque o grande épico era uma “glória universal”. Certas palavras
tinham um encanto particular a seus ouvidos. Gostava de frases cheias e
retumbantes. Os Lusíadas? eram uma “epopéia
imortal”, dizia ele. Pronunciava a palavra epopéia com a
boca cheia, acentuando muito o é. Uma obra de arte reconhecidamente
boa era, a seu ver, uma epopéia, fosse qual fosse o gênero d’ela. O
Cristo e a adúltera
 de Bernadelli? Uma epopéia nacional!

Começou a
ler A Casa e Pensão em voz alta, em tom de recitativo,
pausadamente, repetindo frases inteiras, aplaudindo o romancista com
entusiasmo, exclamando de vez em vez: — “Bonito, seu Zuza” como se
fosse ele próprio o autor do livro. Depois, sacudindo o romance sobre uma
cadeira, levantou-se espreguiçando-se com estalinhos nas articulações,
escancarando a boca num bocejo largo. Que horas seriam? O despertador de níquel
marcava quatro e meia. Ô diabo! Tinha-se descuidado. Estava convidado para
jantar com o presidente às cinco pontualmente. Começou a vestir-se assobiando
trechos de música seródia. De repente: — “E a normalista que não lhe tinha
respondido a carta!” Muito atrasadinhas as cearenses, pensava. Que mais
queria ela? E defronte do espelho, pondo a gravata: — “Era um rapaz chic,,
dava muita honra à Sra. D. Maria do Carmo escrevendo-lhe uma carta amorosa,
pois não? Era o que faltava, a Sra. D. Maria do Carmo não lhe dar atenção! Mas
havia de cair por força. Era uma questão de tempo”.

Cinco
horas. O Zuca enfiou a sobrecasaca às pressas, perfumou-se, endireitou a
gravata e — até logo — foi-se como um raio.

 

7

 

À proporção
que se aproximava o dia do casamento de Lídia com o guarda-livros, as visitas
d’este à casa da viúva Campelo iam-se tornando de mais a mais frequentes. A
Campelinho não cabia em si de contentamento; pudera! Ia enfim ver-se livre do
perigo de ficar para tia. De resto o Loureiro era um ótimo rapaz, excelente
empregado, natural de bom gênio, tolerante em extremo e senhor de seu nariz.
Era como se fosse de casa, como se já fizesse parte da família, surdo como uma
pedra aos boatos mais ou menos mentirosos que corriam sobre a vida privada de
D. Amanda. Nunca se dera ao trabalho de averiguar se efetivamente o
procedimento de sua futura sogra merecia censuras da gente honesta, mesmo
porque o seu emprego não lhe deixava tempo para isso.

Não,
senhor, dizia ele, se por ventura alguém procurar abrir-lhe os olhos; a viúva
era um modelo de mãe de família, coitada, vivendo modestamente do minguado
montepio de seu finado marido, afora um negociozinho de rendas que tinha no
Pará, e que lhe deixava para mais de cinquenta por cento. O mais eram
palanfrórios, e ele, no caráter de futuro genro da viúva, não podia consentir
que ninguém a difamasse impunemente.

João da
Mata lhe dissera uma vez, ao ouvido, batendo-lhe amigavelmente no ombro, que
não se iludisse, que a Campelo recebia fora de horas o Batista da feira; que
ele, João da Mata, vira muitas vezes, com os próprios olhos, o negociante
entrar cosido à parede, alta noite, como um gato.

Histórias!
O amanuense fazia mal andar propalando suspeitas que podiam prejudicar muito os
créditos da pobre senhora. Absolutamente não acreditava em tais boatos.
Conhecia bem o gênio e a vida de D. Amanda para desprezar semelhantes
falsidades. Em suma, era da escola de S. Tomé: ver para crer.

Até então
só tinha motivos para louvar o procedimento da sua futura sogra. E concluía:
“— Por amor de Deus não falassem mais em tais coisas… Tinha olhos p’ra
ver”.

Todas as
noites, invariavelmente, lá ia ele dar seu dedo de palestra com a noiva, e,
depois do víspora em casa do amanuense, ficavam os dois horas e horas na
calçada, num aconchego muito íntimo, ela apoiada sobre seus ombros, fazendo-se
meiga e apaixonada, ele babando-se de satisfação ao contato palpitante das
carnes rijas e abundantes da sua futura mulher. D. Amanda entrava
propositadamente para os deixar à vontade naquele arrebatamento de noivos
sadios e vigorosos.

Um noite o
guarda-livros quis ir mais longe nas vivas demonstrações de seu amor pela
Campelinho. Com os lábios pregados à boca da Lídia, quase abraçados, procurou
com uma das mãos apalpar alguma coisa que a rapariga ocultava religiosamente no
templo inviolável de sua castidade.

— Não, isso
não! Fez ela esquivando-se, toda cautelosa, com ar de surpresa.

Deixasse
d’aquilo, que era muito feio entre noivos. Não havia necessidade; tinham muito
tempo depois. Tivesse paciência, sim?

E muito
terna, derreando-se de novo sobre o ombro do guarda-livros, beijou-o na face
áspera de espinhas, sem repugnância, e começou a cofiar-lhe carinhosamente os
bigodes, devagarinho, arregaçando-os, assanhando-os para tornar a alisá-los,
prolongando assim a delícia de Loureiro que nesses momentos era como um escravo
das mãozinhas brancas e delicadas de Lídia.

— Mas, que
tem? Perguntou ele com a voz trêmula, um fluído estranho no olhar terno.

— Não, meu
bem, isso não, que é feio, tornou a Campelinho. Tem paciência.

Não fazia
mal, continuou o Loureiro. Não eram noivos? Não eram quase casados? Que diabo!
Consentisse ao menos uma vez. Era um instantinho. Ora! Uma coisa tão simples,
tão natural!… Ninguém via, deixasse, que tolice!

E enquanto
falava, muito baixo, com hesitações trêmulas na voz embargada pela
sensualidade, estendia a mão por baixo, o olhar fito nos olhos vivos e
penetrantes a rapariga.

Nem um
ruído da rua do Trilho, nem uma voz, nem o vôo pesado de um morcego: tudo
silêncio, e uns restos de luar a extinguir-se esbatendo defronte nos telhados.
Apenas, ao longe, vago e indistinto quase, o ruído monótono do mar no silêncio
da noite calma.

— Oh!
não… suplicou a Campelinho sentindo o contato da mão grossa do guarda-livros.
Deixa…

Houve
um fru-fru de vestidos machucados e o baque de uma cadeira.

Momentos
depois o Loureiro despedia-se triunfante, pisando devagar, caminho do HOTEL
DRAGOT.

Desde então
começou a retirar-se muito tarde. Havia noites em que só saía depois de uma
hora da madrugada. Ultimamente almoçava e jantava na casa da viúva. Era mais
econômico do que pagar hotel, dizia D. Amanda: bastava que ele contribuísse com
trinta mil réis mensais e tudo se arranjaria ali mesmo em família; de modo que
o Loureiro pouco a pouco foi-se fazendo, por assim dizer, dono da casa, chefe
da família. Por fim todas as despesas corriam por sua conta e risco. Aluguel de
casa, comedoria, roupa lavada e engomada, vestidos para a Lídia, tudo era ele
que pagava de boa vontade, sem tugir, nem mugir, porque queria e tinha prazer
nisso. Muito econômico, amigo de seu dinheirinho, mas em se tratando das
Campelo, não tinha mãos a medir, era de uma prodigalidade sem limites.
Coitadas! Lamenta consigo, eram umas pobres; cada um sabe de si e Deus de
todos; tinha quase o dever de ampará-las, tanto mais quando estava para ser
marido da pequena. E abriu o seu grande coração e a sua bolsa àquelas duas
criaturas, que se lhe afiguravam duas santas através do prisma azul de seu amor
pela rapariga. Subscritor da sociedade de São Vicente de Paulo, um pouco
devoto, às vezes tinha rasgos de verdadeiro filantropo. D. Amanda e a filha
eram aos seus olhos “duas vítimas da maledicência de uma sociedade hipócrita
e torpe até a raiz dos cabelos”. Agora jantava e almoçava em casa da
viúva, que já lhe sabia os gostos, as manias. Ela mesma ia preparar a comida,
os ovos quentes e a linguiça assada do almoço, o feijão e o lombo assado para o
jantar. D. Amanda estava radiante com o genro. Tratava-o a velas de libra,
fazia-lhe todas as vontades, escovava-lhe a roupa, e eram cuidados de mãe
carinhosa ou de criança que tem um pássaro na mão e receia lhe fuja.

Aos
domingos o guarda-livros ia logo cedo para o Trilho, às vezes com a cara por
lavar, metido em calças pardas, abotoado até ao pescoço. Era quando tinha algum
descanso das lidas quotidianas do armazém, da escrituração do Caixa. Às seis
horas da manhã já ele estava de caminho para o Trilho, muito à fresca, cigarro
ao canto da boca, prelibando as delícias de um dia inteiro em companhia da
noiva, sem ter que dar satisfação a Carvalho & Cia., com a consciência
tranquila de quem cumpriu religiosamente o seu dever.

Nem sequer
tomava café no hotel. Pulava da rede às pressas, sem perder tempo, enfiava as
botinas, as calças, o paletó surrado, e abalava por ali fora, escadas abaixo.
Às vezes, ainda encontrava a porta da viúva fechada. Batia devagar com a ponta
dos dedos: “— Sou eu, o Loureiro!” Imediatamente D. Amanda vinha
abrir, embrulhada nos lençóis, cabelos soltos, em mangas de camisa. E a faina
começava. Escancaravam-se as portas para dar entrada livre ao arzinho fresco da
manhã, que se derramava por toda a casa, como um fluido que se evaporasse de
repente de um depósito aberto. O Loureiro tirava o paletó, abria a toalha no
ombro, e, enquanto se punha a ferver a água para o café, refestelava-se num
confortável banho frio puxado de véspera na grande tina que havia no
“banheiro”. Era tempo de cajus. O guarda-livros tinha a mania dos
depurativos. Antes do banho emborcava um copo de mocororó “para
retemperar o sangue!, dizia ele. Depois o cafezinho quente, coado pelas mãos de
D. Amanda, e, finalmente, o belo dia passado currente calamo; tranquilamente,
num longo idílio, naquele canto obscuro de Fortaleza, com a “sua
santa”. O hotel servia-lhe apenas para dormir, porque o Loureiro era filho
do Rio Grande do Norte, onde perdera pai e mãe, não tinha no Ceará sequer um
parente em cuja casa pudesse passar as noites. Amigos capazes de merecerem toda
a sua confiança também não os tinha. Pacato, concentrado e pouco expansivo,
dificilmente comunicava-se a quem não o procurasse em primeiro lugar. Sua
natureza egoísta aprazia-se com a vida sedentária. — Um esquisitão de força,
uma espécie de urso! Diziam os seus camaradas do comércio.

E os dias
passavam, longos e modorrentos, cheios de sol, sem nuvens no azul, iguais
sempre, eternamente monótonos.

Novembro
estava a chegar. Novembro, o mês dos cajus e das ventanias desabridas, com as
manhãs friorentas e claras, em que, às vezes, nuvens sombrias acumulam-se no
horizonte e vão subindo até desmancharem-se completamente num chuvisco ligeiro
que apenas borrifa de leve a superfície seca do solo, pondo cintilações
diamantinas nas folhas do arvoredo; novembro, o mês dos estudantes, o mês dos
exames, que passa levando consigo as ilusões cor-de-rosa dos que deixam os
bancos preparatórios e dos que começam a vida pública.

O Zuca não
tinha pressa em se formar. De resto era uma questão de tempo o seu bacharelato.
Resolvera passar mais alguns meses no Ceará, com a família, e então ir-se-ia
completar o curso. Já agora o Ceará não lhe era inteiramente uma terra má.
Habituava-se pouco a pouco a essa vida de província pacata em que se trabalha
um quase nada e fala-se muito da vida alheia. Maria do Carmo tinha lhe escrito
uma cartinha lacônica e expressiva confessando o seu amor. Entregou-a ela
mesma, no Passeio Público, numa quinta feira, à noite, uma belíssima noite de
luar. A avenida Caio Prado tinha o aspecto fantástico d’um terraço oriental
onde passeassem princesas e odaliscas sob um céu de prata polido, com suas
filas de combustores azuis, encarnados e verdes, com as suas esfinges…
Senhoras de braço dado, em toilettes garridas, iam e vinham no
macadame, arrastando os pés, ao compasso da música, conversando alto,
entrechocando-se, numa promiscuidade interessante de cores, que tinham reflexos
vivos ao luar; d’um lado e d’outro da avenida estendiam-se duas alas de
cadeiras ocupadas por gente de ambos os sexos, na maior parte curiosos que
assistiam tranquilamente ao vaivém contínuo dos passantes.

O
plenilúnio muito alto dir-se-ia uma grande medalha de prata reluzente com o
anverso para a terra, suspensa por um fio invisível lá em cima na cúpula azul
do céu. Defronte da avenida o mar, na sua aparente imobilidade, tinha reflexos
opalinos que deslumbravam, crivado de cintilações minúsculas, largo, imenso,
desdobrando-se por ali a fora a perder de vista, e para o sul, muito ao longe,
a luz branca do farol tinha lampejos intermitentes, de minuto a minuto. No
porto, a mastreação dos navios destacava nitidamente, inclinando-se num
movimento incessante para um e outro lado, como oscilações de um pêndulo
invertido.

— Uma noite
admirável, hein? Maria! dizia Lídia de braço com a amiga, levada pela onda
dos dilettandi. A normalista, porém, não deu atenção à Campelinho,
muito distraída, caminhando maquinalmente, a pensar no estudante. Decididamente
entregava-lhe a carta, fosse como fosse. Eram oito horas e o Zuca ainda não
havia chegado. Estava aflita, inquieta, impaciente. E se ele não fosse ao
Passeio esta noite? Ela rasgaria a carta e nunca mais havia de o procurar. O
seu coração batia com força. Ia e vinha, cansada de esperar, com ímpetos de
voltar para casa.

— Tem
paciência, menina, disse a outra. O rapaz não tarda. Está no clube, talvez.

Qual clube!
Era necessário acabar com aquilo. Começava a desconfiar do Zuca. Certo ele
queria passar o tempo folgadamente, por isso fingira aquela comédia de amor.
Não era possível, não acreditava na sinceridade do Zuca. Se ele fosse outro
procurá-la-ia sempre, em toda a parte, nos passeios, no teatro, nos bailes. E
ela é que estava fazendo uma figura ridícula a procurá-lo, como se ele fosse o
único homem do Ceará com quem ela pudesse ser feliz!

E lá veio o
maldito nervoso, uma vontade de fechar os olhos a tudo e viver para si,
egoisticamente, como o bicho da seda no seu casulo. Incomodava-lhe o zunzum de
vozes e as pisadas da multidão, a própria música começou a fazer-lhe mal à
cabeça. Que horror! Nem sequer podia passear!

Nisto ouviu
uma voz que lhe pareceu a do estudante.

— Boa
noite, minhas senhoras!

Era
realmente ele, que vinha chegando ao lado do José Pereira, muito correto, de
chapéu alto, calça de casimira clara, croisé aberto, grandes colarinhos
lustroso de ponta virada e a infalível flor na botoeira.

Maria
voltou-se aturdida e um suspiro largo e bom escapou-lhe do peito.

Até que
enfim! Ele ali estava inteiro, completo, absoluto!

Agora
pensava em como entregar a carta sem que ninguém visse, sem escândalo.

A Lídia
sugeriu-lhe uma idéia — iriam à outra avenida, mais sombria e menos frequentada;
ele naturalmente havia de ir também e então passava-lhe a carta num aperto de
mão franco e amigável.

— Sim,
vamos…

E
dirigiram-se para a avenida Carapini, ensombrada pelos castanheiros, que
formavam uma como abóbada compacta de ramagens através das quais o luar
coava-se aqui e ali, pelas clareiras.

Puseram-se
por ali a esperar, em pé defronte dos gnomos de louça, à beira dos
reservatórios d’água onde cruzavam gansos e marrequinhas vadias que grasnavam
alegremente inundadas de luar ou, caminhando devagar, iam contando os minutos,
enquanto a música, no coreto, executava trechos alegres de operetas em voga. No
botequim, rodeado de toscas mesinhas de madeira, abriam-se garrafas de cerveja
com estrondo e havia um movimento desusado de gente. As normalistas
afastaram-se para mais longe.

— Eles não
vêm, disse Maria desanimada, enquanto a outra procurava com o olhar o
estudante, que se confundia coma a multidão.

— Tem
paciência, tolinha. Por que não hão de vir?

Com efeito,
d’aí a pouco assomou no extremo oposto da avenida a figura corpulenta de José
Pereira, alta, larga, colossal, ao lado do Zuca, que lhe ficava pelo ombro,
apesar de alto também, com o seu corpo fino em contraste frisante com o todo
asselvajado do amigo. Vinham passo a passo, discretamente. Pararam no botequim,
numa roda de rapazes que discutiam calorosamente sobre política.

De braço
dado, ombro a ombro, as duas raparigas tinham procurado o lugar mais sombrio da
avenida onde não podiam ser facilmente reconhecidas pelos passeantes da Caio
Prado.


Esperemo-los aqui, disse Lídia, sentando-se com um vago suspiro.

E
continuava a chegar gente e a encher o Passeio por todas as avenidas do
primeiro plano, cruzando-se em todos os sentidos, acotovelando-se,
confundindo-se. Na Mororó, mais larga que as outras, havia uma promiscuidade
franca de raparigas de todas as classes: criadinhas morenas e rechonchudas, com
os seus vestidos brancos de ver a Deus, de avental, conduzindo crianças; filhas
de famílias pobres em trajes domingueiros, muito alegres na sua encantadora
obscuridade; mulheres de vida livre sacudindo os quadris descarnados, com
ademanes característicos, perseguidas por uma troça de sujeitos pulhas que se
punham a lhes dizer gracinhas insulsas. Toda uma geração nascente, ávida de
emoções, cansada d’uma vida sedentária e monótona, ia espairecer no Passeio
Público aos domingos e quintas feiras, gratuitamente, sem ter que pagar dez
tostões por uma entrada, como no teatro e no circo.

Ali não
havia distinção de classes, nem camarotes, nem cadeiras de primeira ordem:
todos tinham ingresso para saracotear nas avenidas ao ar puro das noites de
luar.

Apenas quem
não tivesse dois vinténs esta proibido de sentar-se, porque, nesses dias, as
cadeiras eram alugadas, havia assinaturas baratas. Lia-se mesmo na Província o
seguinte anúncio: “No estabelecimento Confúcio e no Club
vendem-se cartões de assinaturas de cadeiras no Passeio Público, com abatimento
nos preços”. Mas, ora, toda a gente possuía vinténs para alugar uma
cadeira, e, demais, ia-se ao Passeio para andar, para se mostrar aos outros
como numa vitrine, não valia a pena ir para ficar sentado, casmurro, a ver
desfilar o que? O mesmo carnaval de todos os domingos e quintas-feiras, as
mesmas caras, as mesmas toilettes. Não valia a pena de certo.

Quando a
música parava, um realejo fanhoso, ao som do qual rodavam cavalinhos de pau, em
um dos ângulos do jardim, gemia, num tom dolente e irritante, o Trovador atordoando
os ouvidos delicados do Zuca que achava aquilo simplesmente insuportável e
medonho como um assassinato em plena rua.


“Como é que se consentia semelhante importunação em uma capital que tinha
foros de civilizada? Oh! em Pernambuco, o italiano que se lembrasse de tocar
realejo à porta d’uma república era imediatamente punido a
batatas e as cascas de laranja. Estava muito atrasadinho o Ceará!”

Gostava
pouco d’ir ao Passeio, o que fazia raríssimas vezes a convite do José Pereira,
que comparava aquilo a um paraíso.

— O Passeio
Público? dizia ele; o Passeio Público é um dos mais belos do Brasil e a coisa
mais bem feita que o Ceará possui. Que vista, que magnífico panorama se aprecia
da avenida Caio Prado, à tarde! Nem o Passeio Público do Rio de Janeiro!

E justificava
o anti-bairrismo do estudante:

— É que tu
tens passado a melhor parte da tua vida na Corte e em Pernambuco, menino, dizia
ele. Se vivesse algum tempo nesta terra, havias de gostar extraordinariamente.
Mas o que te posso afirmar é que no Brasil não há uma cidade tão bem alinhada
como esta, uma iluminação mais rica do que a nossa e um Passeio Público assim
como este.

— “Não
duvidava, não duvidava, mas o Ceará ainda estava muito atrasadinho, lá isso
estava”.

Afinal
chegou o momento que Maria do Carmo aguardava com a impaciência febril de um
desesperado. O redator da Província e o Zuca tinham deixado o
grupo de políticos e aproximavam-se a passos lentos. Ao passarem pelas
normalistas a Campelinho levantou-se e, muito desembaraçada, com esse tic indizível
das raparigas habituadas a convivência dos homens e à vida elegante, dirigiu-se
aos dois amigos, saudando-os rasgadamente com um belo sorriso aristocrata:

— Como
passou, Sr. José Pereira?… Sr. Zuca…

— Oh! minha
senhora… fizeram os dois ao mesmo tempo.

E a Lídia,
depois de perguntar a José Pereira, com quem tinha alguma familiaridade, se
vira por ali D. Amélia, e com uma ponta de cinismo, dirigiu-se ao Zuca:

— Que tal o
Passeio, Sr. Zuca?


Esplêndido, minha senhora! Está de encantar!

— Isto é um
inimigo do Ceará, D. Lídia, atalhou José Pereira rindo, com a sua voz muito
grossa, os dentes muito brancos e pequeninos. Isto é um vândalo.

— Vândalo,
não. Sou apenas um admirador, um amante do progresso. A meu ver, repito, o
Ceará tem muito ainda, mas mesmo muito (e deu umas castanholas com o dedo) que
andar para ser uma capital de primeira ordem.

— Eu já
sabia que o Sr. Zuca não gostava da terra de Iracema, disse a normalista.

Maria tinha
se deixado ficar à distância, sentada num banco de madeira encostado a uma
árvore, na meia sombra que havia de um lado da avenida, quieta, imóvel,
acaçapada, como uma cousa a toa… Sentia-se cada vez mais tola, mais matuta e
insociável.

A presença
do acadêmico punha-lhe calafrios na espinha, e vinha-lhe logo um desejo de
isolar-se e não dizer palavra. Não sabia o que aquilo era; o certo é que a
presença do Zuca hipnotizava-a, fazia-lhe perder a cabeça, como se estivesse
diante de um monstro, de uma criatura misteriosa, cujo poder sobre ela fosse
enorme.

Zangava-se
consigo mesma nesses momentos. Já estava em idade de perder de todo o
acanhamento e que diabo! Atirar-se à vida, à sociedade, sem medo, sem receios
infundados, sem pieguismos. Bolas! De si para si, tornava a jurar nunca mais
ter medo de homem algum, mas no outro dia era a mesma da véspera, fraca,
impotente para dominar-se.

— Pois
estamos distraindo o espírito, tornou a Lídia. A avenida Caio Prado está muito
cheia; vimos apreciar o movimento d’aqui, da avenida dos charutos.

O Zé
Povinho denominava avenida dos charutos, a avenida Carapini por ser
mais frequentada por gente de cor, e Lídia achava muita graça naquilo, não
podia acertar com o verdadeiro nome da sombria aleia, ponto dileto de
cozinheiras e raparigas baratas da rua da Misericórdia.

— Ah! Fez o
Zuca. Então V. Excia. não veio só?

— Não, não.
Vim com a minha amiga inseparável.

E voltou-se
para Maria, que fingia olhar para o coreto da música.

— Quem D.
Maria do Carmo? Perguntou José Pereira, voltando-se também.

— Sim, a
Maria…

— Oh!
exclamou o redator dirigindo-se para a normalista. Está triste hoje, D. Maria?
Uma moça bonita não se deixa ficar assim na sombra. Como vai, como tem passado,
boazinha? Sempre acanhada!… Venha, faz favor? Quero-lhe apresentar a um moço
muito chic e que lhe aprecia muito.

Quem , o
Sr. Zuca? Ela já conhecia. Estava descansando.

— Ô Zuca!

O acadêmico
e Lídia aproximaram-se.

E José
Pereira num tom de cortesia:


Apresento-te aqui a Sra. D. Maria do Carmo, normalista, e uma das moças mais
distintas da nossa sociedade, uma flor!

Riram todos
àquele disparate premeditado, pondo uma nota alegre nesse obscuro recanto do
Passeios.

— Oh! Já se
conheciam? Não sabia, por Deus! Então já conheces a moça mais bonita do Trilho
de Ferro, hein? Uma coisa que não sabes: faz versos também…

Maria cumprimentou
o estudante com um modo muito discreto, conservando-se sentada, aflita.

A música
deu começo a um tango repinicado, saltitante e carnavalesco, espécie de Chorado
Baiano
, com rufos de tambor, em que sobressaía o clarinete, cujas notas,
muito prolongadas e queixosas, morriam languidamente.

De quando
em quando os instrumentos faziam uma pausa e rompia um coro de vozes grossas
— Quem comeu o boi?… que a molecagem, lá fora, repetia numa
desafinação irritante de vozes finas.

— Vamos
tomar alguma coisa, insistiu José Pereira oferecendo o braço à Lídia
cortesmente. Ô Zuca, você dá o braço a D. Maria do Carmo.

E, dois a
dois, dirigiram-se para o botequim, José Pereira na frente com a Campelinho.

A ocasião
era oportuna.

Maria a
princípio desanimou completamente, mas, num ímpeto decisivo e franco, fazendo
um esforço supremo sobre a si mesma, nervosa, mais tímida que nunca, sacou a
carta, passou-a ao estudante, com a mão trêmula, sem proferir palavra, e
imediatamente veio-lhe um arrependimento profundo de se ter comprometido
daquele modo, como se naquela carta fosse toda a sua honra, todo seu pudor de
rapariga honesta. Estava perdida! Pensou, e já lhe parecia que toda a gente — o
Passeio Público em peso — seguia-lhe as pegadas observando-lhe todos os
movimentos.

— Ah! Fez o
Zuca satisfeito. Pensei que não respondesse.

E
sentindo-se dono daquela prenda, com um frêmito de pálpebras através dos óculos
de ouro, aconchegou a si o braço roliço da normalista meio descoberto.

Maria
conservou-se calada, sentindo cada vez mais forte o poder misterioso do
estudante sobre seu coração extremamente sensível e bom. Deixou-se ir
automaticamente, como uma sonâmbula.

Sentaram-se.
José Pereira quis saber o que desejavam tomar. Havia sorvete, cidra, cerveja,
vinho do Porto, chocolate…

— Cerveja,
acudiu a Lídia.

Todos
assentaram, depois de alguns minutos de indecisão, em tomar cerveja, e o
redator da Província, sempre alegre e cortês, enfiando a
cabeça para dentro do botequim, pediu três garrafas de Carls Berg, gelo e
quatro copos.

O serviço
do botequim era feito por um menino que entrava e saía sem descanso, uma
azáfama dos diabos, suado, com os cabelos empastados na testa, sem paletó, uma
toalha nauseabunda e úmida no ombro, acudindo, ele só, a todos os chamados.

Rapazes
impacientes, de chapéu caído para a nuca, tresandando ixora, muito arrebitados,
batiam com as bengalas sobre as mesinhas.

— Uma
garrafa de cerveja, menino!

— Ó
pequeno, aqui. Olha dois cafés.

O pobre
caixerinho não tinha tréguas, com a cara enfaruscada, resmungando.

De vez em
quando, esfregava a toalha nas mesas com força, salpicando restos de comida nos
janotas.

— Ó burro,
estás cego?

O menino
zangava-se e corria à outra mesa.

Vinha de
dentro do quiosque um cheiro ativo de café requentado. Saíam bandejinhas com
chocolates e pão-de-ló.

— Muito mal
servido isto, objetou Zuca com ser ar afetado de fidalgo, limpando os bigodes.
Tenho notado mesmo que aqui, no Ceará, não se usa guardanapo…

— É objeto
de luxo, disse José Pereira, atirando também o seu dichote.

E pouco a pouco
a conversação foi se animando, pouco a pouco foi-se estabelecendo uma
intimidade entre todos, aos passo que os copos esvaziavam.

Pediram
mais uma garrafa de cerveja.

A própria
Maria do Carmo tinha o rosto em fogo. Foi perdendo o acanhamento e ria também
com os outros quando o redator dizia pilhéria.

A Lídia
essa, lambia os beiços a cada copo que virava de dois tragos. Era a sua bebida
predileta — cerveja. Bebera pela primeira vez ali mesmo no Passeio, por sinal o
Alferes Coutinho, do batalhão, é que tinha pago. Estava em meio do terceiro
copo, — Aquilo é que era uma bebida agradável e higiênica”, dizia ela. Não
gostava de licores e bebidas adocicadas. A champanhe mesmo enjoava-lhe.

— E que tal
acha o peru? Perguntou maliciosamente o José Pereira.

Isso era
outra coisa: o peru era uma excelente bebida; bastava ter sido
inventada pelo presidente da província, um moço de educação muito fina,
viajado. Diziam até que tinha ido à Rússia…

Então
falou-se do presidente, que José Pereira não perdia ocasião de elogiar
exageradamente.

Um homem
superior, gabava ele, um gentleman, um fidalgo de raça, uma dessas
criaturas que a gente ficava querendo bem por toda a vida. Pois não! Excelente
amigo, dedicado até, jogador de florete, sabendo montar a cavalo
“divinamente” e atirando ao alvo com uma perfeição ultra! E que
educação, que finíssima educação social! O homem falava francês como um
parisiense, entendia inglês e tinha um modo excepcional de se portar em
qualquer ocasião solene. Com tudo isto, acrescentava pigarreando, era muito bom
democrata, sim senhores. Passeava sem ordenança, a pé; ia ao mercado pela manhã
“ver aquilo” como qualquer plebeu , e jogava o bilhar na Maison
Moderne…
 Que queriam mais? D’um homem assim é que o Ceará precisava.
Ele estava ali na pessoa do Castro.

Tratava o
presidente familiarmente, como a um amigo de muita intimidade.

Por sua vez
o Zuca elevava o presidente aos cornos da lua. A sua opinião resumida era a
seguinte: “Todos os cearenses juntos, trepados uns sobre os outros, não
chegavam aos pés do fidalgo paulista”.

— Eu o que
mais admiro nele é o pescoço, a brancura escultural do pescoço, disse Maria.

O
presidente foi analisado escrupulosamente da cabeça aos pés, como uma estátua
grega, ao sabor da cerveja Carls Berg.

Já não
havia quase ninguém no Passeio, quieto agora, sem o ruído tumultuoso dos
passantes, sem música, todo iluminado pela claridade branda e melancólica do
luar. Apenas se ouvia o grasnar áspero dos gansos nos reservatórios, o gritar
estridente das marrequinha e a toada dos soldados no quartel, rezando.

José
Pereira tinha pedido mais uma garrafa de cerveja e instava para que Maria do
Carmo tomasse “um bocadinho só”. A normalista, porém, cobria o copo
com a mão, recusando. Que não: estava muito cheia, sentia uma pontinha de dor
de cabeça. Botasse p’ra Lídia…

Ora,
fizesse favor, aceitasse, por vida de seus magníficos olhinhos de princesa
encantada, suplicou o redator da Província fixando os olhos em
Maria que esperava o assentimento do Zuza.:

— Por que
não toma, D. Maria? perguntou este num tom quase imperativo. O José Pereira
pede-lhe com tão bons modos…

Maria
aceitou com um gesto de repugnância.

— À sua
saúde, fez José Pereira, tocando o copo no da normalista.

Houve um
tilintar de cristais chocando-se ao de leve, e todos beberam ruidosamente.

— Agora
vamo-nos chegando que se faz tarde, propôs Lídia levantando-se

Mal se
sustinha em pé. José Pereira ofereceu-lhe o braço.

Uma
languidez extrema tinha-se apoderado de Maria, cujas pálpebras pesavam como
chumbo. Foi preciso amparar-se ao estudante para não cair redondamente.

— Uma
tonteira! Queixou-se ela fechando os olhos.

Não era
nada, disse o outro, passando-lhe o braço pela cintura; e enquanto o redator
seguia pela avenida com a Lídia, deixavam-se ficar naquela posição, em pé ambos
e quase abraçados.

— Olhe, D.
Maria…

A rapariga
tentou abrir os olhos, e nesse momento, naquele silencioso recanto do Passeio
estalou um beijo. Depois seguiram também, e, juntos todos quatro foram tomar
café no restaurante Tristão.

 

8

 

Maria do
Carmo chegou à casa ofegante, esfalfada, com a cabeça a arder, muito corada e
alegre, o olhar cheio de meiguice, transfigurada pelos efeitos da cerveja,
rindo por da cá aquela palha. Atirou-se com todo o peso do corpo nos braços de
João da Mata, fazendo-lhe festa, muito amorosa, como uma cadelinha de estima
depois d’uma ausência. No seu olhar aveludado e submisso havia uma súplica
irresistível.

— Cheguei
um bocadinho tarde, não é assim, padrinho? Perguntou cosendo-se ao amanuense, a
cabeça derreada para trás.

João
olhou-a, olhou-a, hesitante, com um ar de extrema bonomia no rosto ainda há
pouco carrancudo.

Tinha
acabado de ralhar pela demora da afilhada e agora achava-se sem ânimo de dizer
uma só palavra áspera à rapariga, cujo olhar fascinava-o com um abismo. Ali
estava ela a seus pés, submissa e mais bela do que nunca, acariciando-lhe a
barba, toda sua, como uma escrava.

— Sim
senhora, chegou um bocadinho tarde. Isto não são horas de uma moça estar
passeando…

Afetava um
tom repreensivo e ao mesmo tempo paternal.

Quase dez
horas! Não era bonito aquilo, tivesse mais juizinho. Enfim, por aquela vez, o
dito pelo não dito, mas, por amor de Deus, não fizesse outra, senão, senão…

— Mas,
padrinho…

— Não tem
padrinho, não tem nada. Pode ir ao Passeio, mas, por favor, não me volte a
estas horas.

E afagava
os cabelos de Maria, passava-lhe a mão nas faces, atoleimado, imbecil, como um
velho impotente, o olhar aceso através dos óculos escuros, a calva reluzente
como uma grande bola de bilhar.

— Tu
bebeste cerveja, aposto, tornou tomando entre as mãos a cabeça da rapariga, e
cheirando-lhe a boca. Ora se tomou…

— Tomei,
sim, padrinho, tomei um copo assim. E indicou o tamanho do copo. Mas não estou
tonta, não, padriozinho… Olhe, foi só um copo.

— E quem
t’o pagou?

— Quem
pagou? … Ora, quem pagou…

— Sim ,
quero saber quem te pagou a cerveja. Tu não levaste dinheiro…

— Quem
pagou foi o Sr. José Pereira…

— Eu logo
vi! Aposto em como o tal Zuca também entrou na festa.

Maria
fez-se desentendida, e agarrando-se ao pescoço do amanuense, com um pulo
plantou-lhe um beijo na testa.

João da
Mata desequilibrou-se.

— Ora, ora,
ora, esta menina!…

Não sabia o
que fizesse. Ralhar? Não. Maria estava encantadora e pagava-lhe com beijos as
recriminações. Calar? Também não. A rapariga era capaz de reincidir na falta. O
verdadeiro era não falar mais no Zuca. E João da Mata rematou a conversa:

— Vá, minha
filha, vá dormir, que você não está boa…

Maria
beijou, como de costume, a mão descarnada do padrinho, e, d’um salto, recolheu-se
ao seu querido quarto do meio, caindo pesadamente na rede, vestida como estava,
sem ao menos lembrar-se de soltar os cabelos, tendo apenas tirado os sapatinhos
e desabotoado o corpete.

Arre!
Estava muito fatigada, precisava descansar.

E adormeceu
imediatamente com um sorriso adorável na pequenina boca entreaberta.

Teve sonhos
impossíveis e horrorosos nessa noite. Cerca de onze horas acordou sobressaltada
com um pesadelo. Sonhou, coisa extravagante! Que ia sozinha por um caminho
deserto e interminável onde havia urze e flores em profusão. Estava perdida,
sem saber o rumo que devia tomar , caminhando sem olhar p’ra trás.

De repente
— Arre corno! Ouviu a voz aguardentada do Romão, o mesmo que fazia
a limpeza da cidade, e logo surgiu-lhe em frente a figura nauseabunda e
miserável do negro. Era um Romão colossal, grosso e musculoso como um Hércules,
nu da cintura p”ra cima, as espáduas largas reluzentes de suor, calças
arregaçadas até os joelhos, preto como carvão, as pernas curvas formando um
grande O, os braços levantados segurando na cabeça chata um barril enorme
transbordando imundícies! —Arre corno! Grania o negro no silêncio
da noite clara, cambaleando muito bêbado, perseguido por uma cáfila de cães que
ladravam desesperadamente. Fazia um luar esplêndido…

Assim que
deu com os olhos nela, o negro atirou o chão o barril de porcarias, que se
despedaçou empestando o ar. E o Romão, cambaleando sempre, muito fedorento,
atirou-se a ela, rilhando os dentes num frenesi estúpido, beijando-a,
besuntando-a.

Que horror!
Ela mais que depressa, cobrindo o rosto com as mãos, quis fugir sentindo toda a
hediondez daquele corpo imundo, mas o negro deitou-a no chão com força e … E
Maria do Carmo acordou quase sem sentidos, sentando-se na rede, com um grande
peso no coração, aflita, sufocada, sem poder falar, porque tinha a língua
presa…

— Virgem
Maria! suspirou logo que pôde voltar a si. Que sonho feio!…

Suava em
bicas, muito pálida, como se acabasse de sair de um forno. Só então reparou
muito admirada que ainda estava com a mesma roupa com que fora ao Passeio
Público. Riscou um fósforo com a mão trêmula, acendeu a velinha de carnaúba e
começou a despir-se depressa.

Lá fora na
rua, passava uma serenata. Uma voz de homem cantava uma modinha conhecida,
acompanhada de violão e flauta:

Não
cho..res, querida Elvi…ra…

Maria
sentia-se doente, com um sabor desagradável na boca e uma dor forte nas
têmporas. Vinha-lhe uma vontade de vomitar, de deitar fora a cerveja que
bebera: sentia um mal estar geral em todo o corpo, como se estivesse para cair
gravemente doente.

Que seria,
Deus do céu? Aproximou a vela do espelho, um velho traste com o aço muito
estragado, e achou-se abatida, os olhos fundos, uma crosta esbranquiçada na
língua. Nunca mais havia de tomar a tal cerveja, uma bebida selvagem, sem
gosto, repugnante como um vomitório. Só tomara naquela noite por causa do Zuza,
porque ouvira dizer que “era moda nas grandes cidades”, na Corte e no
Recife, as senhoras tomarem cerveja. Mas credo! Noutra não caía. Se soubesse
teria pedido cidra.

Quis chamar
a Mariana para lhe fazer um chazinho de laranja, mas era muito tarde, podiam
desconfiar e, depois o padrinho agora dormia na sala de jantar…

Não, não,
era melhor não incomodar a ninguém! aquilo havia de passar, se Deus permitisse.

Tinha até
esquecido de rezar…

Ajoelhou-se,
mesmo em camisa, diante da oleografia que representava o Cristo abrindo o
coração à humanidade, balbuciou uma oração, persignou-se e, mais aliviada, mais
fresca, adormeceu novamente, pensando no estudante.

O amanuense,
no mesmo dia da briga com a mulher, resolvera de então em diante dormir numa
rede na sala d jantar. Uma figa! Não estava mais para suportar o calor infernal
da alcova, e, além disto, viviam ultimamente, ele e D. Terezinha, arengando
consecutivamente como duas crianças invejosas, pela coisa mais insignificante.
Ele, muito jubiloso, achava que tudo em casa ia muito ruim, que D. Terezinha
não se importava com as coisas, que não se fazia mais economia — “Um gasto
enorme de dinheiro! um desperdício sem nome, um esbanjar sem trégua, e afinal
de contas, não passavam da carne cozida e do lombo assado com arroz. Isso assim
ia mal, muito mal. Depois ninguém fosse chorar por dinheiro…”

Quem, ela,
chorar? Que esperança! Estava muito enganado, seu “pap’angu” de
boceta. Tinha muito para onde ir, não faltavam casa de gente séria no Ceará.
Socasse os eu dinheiro onde quisesse…

Toda a
vizinhança, ávida de escândalos, ouvia com risinhos de pérfida satisfação
aqueles torniquetes às vezes imorais até, do amanuense com a mulher. Era um
divertimento.

— Deus o
fez e o diabo os ajuntou, dizia a mulher d’um barbeiro que morava ali perto,
paredes meias.

Quando João
da Mata entrava na pinga então a coisa tomava proporções assustadoras. Ameaçava
expulsar a mulher de casa a pontapés, berrava como um possesso, batia as
portas, quebrava louça ao jantar, rogava pragas e a própria empregada não
escapava à sua cólera.

Mariana era
uma rapariga muito pacata e em pouco acostumou-se às impertinências ríspidas de
“seu Joãozinho”.

— Para que
havia de dar o pobre homem, dizia ela às vezes, penalizada, cruzando os dedos
sobre o ventre. Credo! A gente vê coisas! Hum, hum!…

E muito
risonha, muito tola, com o seu ar idiota de animal dócil, lá se ia para a
cozinha cuidar das panelas e da louça, porque era ao mesmo tempo cozinheira e
copeira.

Quase todos
os dias a mesma lengalenga, o mesmo duelo de palavras de porta de feira, a
mesma pancadaria de descomposturas. Não era raro sair da boca desdentada do
amanuense uma obscenidade!

— Jesus!
exclamava Maria fugindo para o seu quarto com as mãos nos ouvidos.

Ao ouvir a
voz de João da Mata berrando como um danado, a vizinhança chegava às janelas
ávida de escândalo. Meninos em fralda de camisa, chupando o dedo, paravam
defronte da porta do amanuense, muito espantados, olhando cheios de curiosidade
pelas frinchas da rótula.

E a
algazarra crescia lá dentro, como se papagueassem muitas pessoas ao mesmo
tempo.

As duas
criaturas faziam as delícias da rua do Trilho, que se regozijava com aqueles
espetáculos gratuitos de um cômico irresistível.


“Aquilo ainda acabava mas era num escândalo badejo“,
resmungava a mulher do barbeiro, uma magricela de cara de quem está sempre com
dor de barriga. O Loureiro repetia indignado, dando-se ares de homem sério e
reformador de costumes:

— “Uma
gente sem vergonha. Uma canalha! Tomara já se casar para ver-se longe de
semelhante peste. Até que era feio a Lídia ter amizade com aquela gente”.

E
aconselhava à rapariga que fosse, pouco a pouco, deixando de ir à casa de João
da Mata, porque não lhe ficava bem, a ela, “rapariga de família”, em
véspera de casar, ter relações com uma corja d’aquela.

Já não se
jogava o víspora na casa do amanuense. As velhas coleções dormiam esquecidas no
saquinho de baeta verde em cima do piano.

D. Terezinha
transformava-se a olhos vistos. Pouco lhe importavam os móveis cobertos de
poeira e de fuligem das locomotivas; protestara nunca mais abrir o bico para
dar ordens naquela casa. Esta cansada de aguentar desaforos “do
corno” do Sr. João da Mata.

E tudo por
que? Por causa de uma peste que se lhe metera casa adentro e agora andava
mostrando os dentes e mais alguma cousa ao padrinho, com partes de afilhada.
Não, ela é que não servia de alcoviteira a ninguém, meu bem. Estava muito
enganadinho . Se quisesse fazer mal à sonsa da Maria fosse fazer onde bem
entendesse, mas ela, Teté, não servia de travesseiro, não, mas não mesmo…
Estimava muito que lhe deixassem dormir só, na sua cama. Não perdia nada.

Por seu
lado o amanuense encarava a mulher bcom um desprezo solene. Vinha-lhe agora um
arrependimento profundo por ter feito a asneira de amigar-se com D. Terezinha.
Tanta rapariguinha fresca e bonita vivia à procura de um homem, tanta retirante
“moça” e pobre, tanta gente boa no mundo, fora amigar-se logo com
quem? com quem, Sr. João da Mata? Com uma sujeita feiosa que só tinha carne nos
quadris, um monstro de gordura, com pernas finas e ainda por cima estéril! Que
grandíssima cabeçada! Entretanto, podia estar muito bem casado com uma mulher
de certa ordem, rica mesmo, bem educada e bonitona.

Depois que
se mudara para sala de jantar apoderou-se dele um aborrecimento inexplicável
por D. Terezinha.. Passava horas e horas estendido na rede, de papo para o ar,
em ceroula e camisa de meia, acendendo cigarros, a pensar na vida, como um
grande capitalista que sonha no dinheiro acumulado usurariamente; e Maria do
Carmo aparecia-lhe na imaginação como um tesouro preciosíssimo, que ele receava
fosse cobiçado um belo dia pelo rapazio galante da cidade… Estava ficando velho,
era preciso aproveitar o resto da vida. É verdade que em 77, na seca, tinha
desfrutado muita “bichinha” famosa. Nesse tempo ele era comissário de
socorros… Mas nenhuma daquelas retirantes chegava aos pés da afilhada.
Chegava o que! Nem havia termo de comparação. Maria, além de ser uma rapariga
asseada, e apetitosa como uma ata madura, tinha, sobre as outras, a vantagem de
ser inteligente e educada.

Estas
qualidades da normalista tinham um encanto extraordinário aos olhos do
amanuense. Nunca em sua vida cheia de aventuras amorosas encontrara uma
rapariga nas condições de Maria do Carmo, filha da família, branca,
singularmente encantadora e que estivesse ao alcance de seu coração, ah! nunca.

Maria
punha-o doido com seus belos olhinhos cor de azeitona. A sua imaginação criava
planos fantásticos, inexequíveis, por meio dos quais ele pudesse iludir a
afilhada, e, zás, tirar-lhe o lírio branco da virgindade. Não queria
precipitar-se com o risco de um escândalo comprometedor, isso não. Preferia
insinuar-se pouco a pouco, devagar, no ânimo da pequena, sem a sobressaltar,
fazendo-lhe todas as vontades, de modo que, na ocasião oportuna, no momento
preciso, ela se entregasse prontamente, sem resistência.

Com efeito
Maria, agora, para não desagradar ao padrinho, obedecia-lhe cegamente, com a
resignação indolente e fria duma escrava. Que havia de fazer, ela uma pobre
filha adotiva, se o padrinho era quem lhe dava de comer e de vestir? Consentia,
pudera não! sem a menor resistência, que o amanuense afagasse-lhe o bico dos
seios virgens e lhe passasse a mão pelas coxas tenras e polpudas…

— Está
fazendo cócegas, padrinho, murmurava rindo, com riso sem expressão, que lhe
vinha do fundo d’alma de donzela.

— Sossega,
tolinha, ralhava João.

E ela não
tinha remédio senão ficar quieta, imóvel, com o olhar úmido no teto, abandonada
às carícias sensuais d’aquele homem repugnante que a perseguia com um animal no
cio, mas que afinal de contas era seu padrinho…

Muitas
vezes, ah! quase sempre, vinham-lhe ímpetos de reagir com toda a força do seu
pudor revoltado, mas ao mesmo tempo lembrava-se que era só no mundo, porque já
não tinha pai nem mãe, e podia ser muito desgraçada depois… Sim, era preciso
paciência para suportar tudo até que o Zuza se decidisse a ampará-la sob a sua
proteção de rapaz rico. Vivia agora, sabe Deus como, entre a indiferença cruel
de D. Terezinha e a vontade soberana do amanuense, por assim dizer sozinha
naquela casa onde tudo tinha o aspecto sombrio e desolado da pobreza desonesta.
Ah! mas aquilo havia de acabar fosse como fosse…

A própria
Lídia já não a procurava como dantes toda orgulhosa com o seu noivo. A
felicidade da amiga aumentava-lhe ainda mais o desespero. Decididamente era
muito infeliz. Aí vinham-lhe outra vez as lágrimas e os soluços concentrados.
Recolhia-se com os olhos cheios d’água ao seu quarto com uma tristeza infinita
no coração e só achava conforto nas confidências amorosas do Zuza, que ela
guardava como uma relíquia no fundo de uma caixinha perfumada de sândalo.
Esquecia-se a lê-las devagar, repetindo frases inteiras, admirando a bela
caligrafia em que elas eram escritas, beijando-as sobre a assinatura do
estudante, toda entregue ao seu amor.

Havia uma
semana que se correspondiam por cartas onde a vida de ambos era descrita como
num diário, minuciosamente, em todos os seus detalhes. Porque o futuro bacharel
desconfiara do modo frios com que o amanuense o recebia, e, sem dizer nada a
ninguém, resolvera nunca mais pôr os pés naquela casa que ele
“honrara” durante quase um mês com a sua presença. Pílulas!

Todos os
dias encontrava o sujeito com uma cara de mata-mouros, a pequena tinha ordem de
não lhe aparecer, e mesmo era uma estopada ir ao Trilho a pé, sujeitando-se à
crítica idiota dos mequetrefes da vida alheia. Estava decidido — não iria mais
ao Trilho de Ferro. E cumpriu a sua palavra com a dignidade de um fidalgo.

Encontravam-se
diariamente na Escola, que o Zuza frequentava agora com a pontualidade
irrepreensível d’um inglês. E, como não podiam conversar à vontade sem
escandalizar os créditos do estabelecimento já um tanto abalados, trocavam
cartinhas no intervalo das aulas.

Era voz
geral na cidade que o estudante estava disposto a casar com a normalista mesmo
contra a vontade de seus pais e a despeito da burguesia aristocrata que lamentava
por sua vez tamanho “desastre”. Um rapaz fino, com um
futuro invejável diante de si, estimado, amigo do presidente, casar-se com uma
simples normalista sem eira nem beira! E em toda a parte, desde o Café
Java
 até ao Palácio da Presidência, comentava-se, discutia-se
ruidosamente o assombroso acontecimento. Uns asseguravam que o Zuza estava
desfrutando a rapariga para depois — fuisser! pôr-se ao fresco e
nunca mais pisar o solo cearense. Outros, porém, eram de parecer que o
acadêmico tinha boas intenções e até fazia bem levantar da miséria uma criatura
como a Maria, que estava se perdendo em companhia do amanuense. Havia outro
grupo que acreditava no casamento do Zuza com a normalista porque, na sua
opinião, a menina já “estava pronta”, isto é, o estudante já lhe
tinha “plantado no bucho um Zuzinha”. E, assim, multiplicavam-se as
opiniões, enquanto o Zuza, fazendo ouvidos de mercador, não se dava ao trabalho
de desfazer boatos — “Que se fomentassem todos. Não tinha que dar
satisfações a ninguém por seus atos”.

Um belo
domingo a Matraca lembrou-se outra vez de curtir o couro ao
Zuza em redondilhas escandalosas que enchiam quase toda uma página. Os
vendedores do pasquim atravessavam as ruas em disparada esbaforidos, apregoando
alto e bom som o Namoro do Trilho de Ferro.

Em todas as
esquinas surgiam meninos maltrapilhos sobraçando o jornaleco, arquejantes sob a
luz crua do sol que incendiava a cidade nesse luminoso meio-dia de novembro.

O casarão
do governo, acaçapado e informe, com o seu aspecto branco e tradicional de
velho edifício português do tempo do Sr. D. João VI, com a sua fila de janelas,
alinhas à maneira de hospital, espiando para a praça do General Tibúrcio,
parecia dormir um sono bom de sesta, batido pelo sol, na mudez solene de um
monumento arqueológico. Tinha dado meio-dia na Sé; ainda vibrava no espaço
iluminado e azul a última nota das cornetas.

Àquela hora
o estudante acabara de almoçar com o presidente, e, de pernas cruzadas,
reclinado numa cadeira de balanço, dedicava-se a fumar tranquilo o seu havana
mais o José Pereira, na larga sala de recepção do palácio.

De repente:

 A
Matraca a 40 réis! O namoro do Trilho de Ferro! O estudante e a normalista!
Grande escândalo!

Um menino
passava gritando a todo pulmão, numa voz fina de adolescente, as notícias da
folha domingueira.

Zuza — com
o rosto afogueado pelo Bordeaux que tomara ao almoço — estremeceu na cadeira.

— Hein?

O vendedor
de jornais repetia a lengalenga lá fora, na praça. Então o estudante, fulo de
raiva, sacudindo fora o resto do charuto, levantou-se e foi direto à janela.

— Psiu!
Psiu! Ó menino da Matraca!

— Eu?

— Sim, você
mesmo!

Enquanto se
esfrega um olho os dois encontraram-se em baixo na porta do palácio.

— Que está
você a gritar, seu patife? perguntou Zuza segurando o vendedor pelas orelhas.

— Nada, seu
dotô; é o namoro do Trilho…

— Você
ainda repete, seu grandíssimo corno!

E, depois
de encher o pequeno de petelecos, o futuro bacharel tomou-lhe todos os
exemplares da Matraca, rasgando-os imediatamente.

O outro
abriu-lhe a goela a chorar encostando-se à parede, com a cabeça entre os
braços.

— E puxe!
continuou o Zuza implacável, com o seu olhar de míope. Vá, vá, vá e diga ao
dono desta imundície que eu ainda lhe quebro a cara a bengaladas, hein? Vá, vá,
vá…

O pequeno
não teve outro jeito senão ir-se arrastando pela parede, muito triste,
resmungando, protestando nunca mais vender a Matraca, enquanto o
Zuza explicava o caso ao José Pereira e ao presidente, que o receberam com uma
explosão de risos.

O caso não
era par rir, dizia ele formalizado limpando os óculos com a ponta do lenço de
seda. O caso não era para rir, que diabo! Ainda havia de quebrar a cara do
redator da Matraca. Aquilo excedia as raias do decoro e do respeito
que se deve ter à sociedade. Que essa! Não era nenhum filho da mãe que
estivesse a servir de judas a Deus e ao mundo. Era assim que se resolviam
questões de dignidade pessoal — à bengala!

— Mas vem
cá, ó Zuza, disse amigavelmente o fidalgo paulista; tu perdes o tempo e o latim
com semelhante gente…

— Eu já o aconselhei,
interrompeu José Pereira. O desprezo é a arma dos fortes.

— Qual
desprezo, hein? O desprezo é a arma dos covardes. Eu cá resolvo as coisas
positivamente a bengaladas.

— Quantas
já destes ao redator da Matraca? — perguntou José Pereira para confundir
o Zuza.

— Não dei
nenhuma ainda, mas pretendo, antes de me ir embora, quebrar-lhe os queixos,
sabe você?

O
presidente para não provocar mais a bílis do Zuza perguntou, a propósito de
jornais que se ocupavam da vida alheia, se tinham lido o Pedro II, e
a conversa descambou para o terreno árido da política local.

— Que diz o
papelucho? perguntou fidalgo de dentro dos seus grandes colarinhos lustrosos.

— A mesma
coisa de todos os dias, respondeu José Pereira com um gesto de desprezo. Que
você é um péssimo presidente, que você gosta de tomar champagne, e,
finalmente, que você “vai encaminhando as coisas públicas para um
abismo”.

— Ora,
suporte-se uma coisa destas!, saltou o Zuza. Eis aí: é ou não para se dar o
cavaco?

— Mas,
Zuza, eu vou respondendo a cada artigo com a demissão de dez funcionários
amigos da oposição. Queres ver uma coisa?… Que dia é hoje?


Domingo…

— Pois bem,
vou mandar lavrar a demissão de alguns empregados públicos, que se dizem miúdos,
com a data de hoje. Eis aí está como se resolvem questões desta ordem.
Insultam-me, não é assim? injuriam-me, acham que sou mau, que não tenho juízo,
que sou indiferente à sorte do Ceará… Pois bem, hoje mesmo muita gente vai
pagar pelos diretores do tal partido. Nada mais simples, não achas?

Ante a resolução
pronta e decisiva do presidente o Zuza ficou perplexo. Decididamente era um
grande homem aquele!

— Mas olha
que vais reduzir à miséria muitas famílias…

O
presidente teve um sorriso de suprema indiferença àquelas palavras do estudante
e dirigiu-se à secretaria com o passo firme de quem caminha para uma ação nobre
com o seu belo porte de diplomata.

Zuza
pretextou uma forte enxaqueca e abalou a pensar no vendedor da Matraca.
Tinha feito mal em esbofetear o rapazinho, porque afinal de contas o pequeno
estava inocente, nada tinha que ver com os desaforos publicados. Era um simples
vendedor, coitado.

Enfiou pela
rua da Assembléia, macambúzio, com um ar indolente, chapéu derreado para trás,
riscando o chão coma bengala, muito distraído.

“— Que
diabo! A gente sempre faz asneiras…”

E, pecador
arrependido, entrou em casa esbaforido, soltando, logo à entrada, um bocejo de
velho preguiçoso.

Entretanto
a demora do Zuza na capital cearense começava a inquietar o coronel Souza
Nunes. Era época de exames e o estudante nem sequer falava em tirar passagem
para o Recife onde já se devia achar a fim de concluir o curso.

— Se lhe
entrasse na cabeça a idéia de casamento com a tal senhora normalista, então,
adeus, pensava o coronel; ia tudo águas abaixo. Seria talvez preciso improvisar
um passeio à Europa, do contrário o rapaz era capaz de fazer uma estralada dos
diabos.

Ia falar ao
Zuza como pai, ia repreendê-lo severamente, dizer-lhe com a franqueza rude de
um superior para um subalterno que aquilo não podia continuar, que era tempo de
seguir para o Recife, que se preparasse.

Mas o filho
tinha umas maneiras capciosas de convencê-lo, fazendo-se enérgico,
revoltando-se contra a maledicência pública, provando-lhe com argumentos fortes
que tudo que se dizia na rua era mentira, que ele, Zuza, até desejava ir-se
logo para Pernambuco, o que decididamente faria no primeiro vapor.

— O certo é
que vapores passam, e tonam a passar e tu vais ficando, objetou-lhe um dia o
coronel que abstinha-se de falar na normalista.

— … Mas,
ora, há tempo bastante para tudo. Os exames começam tarde este ano.

— Qual
tarde, meu filho! tu estás perdendo um tempo precioso quando já devias estar
lá.

Havia ente
os dois, pai e filho, uma familiaridade moderna, como se fossem apenas irmãos.

A esposa do
coronel é que não se envolvia em questões.

Adorava o
filho, é verdade, tratava-o com todo carinho, tinha orgulho nele, mas, sempre
muito boa, respeitava as resoluções do Zuza e evitava contrariá-lo na mais
pequena coisa. Demais, D. Sofia estimava até que o filho se demorasse o mais
possível em sua companhia.

A formatura
do Zuza era para ela uma questão secundária que havia de se resolver mais cedo
ou mais tarde; de si para si achava que o estudante tinha pouco amor aos
estudos, mas não revelava este seu pensamento a ninguém. Vivia constantemente
incomodada, com fortes dores no útero provenientes de um parto infeliz em que
fora preciso arrancar a criança a fórceps.

Era uma
senhora de quarenta anos com todos os característicos de uma boa esposa;
inimiga de passeios, importando-se pouco ou nada com a vida elegante,
arrastando a sua enfermidade incurável pelo interior sossegado da casa. O Zuza
tinha-lhe uma afeição supersticiosa. D. Sofia era a única mulher sincera e boa
no mundo a seus olhos de filho agradecido. Um pedido, um desejo de sua mãe era
satisfeito imediatamente, sem considerações, custasse o que custasse.

Ela, por
sua vez, a pobre senhora, retribuía-lhe o afeto com a mesma dedicação, com o
mesmo desprendimento, não contrariando o mais leve pensamento do rapaz.

“— É o
que me obriga vir ao Ceará, dizia ele, é minha velha, do contrário jamais eu
tornaria a esta província insuportável.”

Mas
entravam e saiam vapores e ele deixava-se ficar com o seu tédio, preso
irresistivelmente aos olhos cor de azeitona da normalista como a uma forte
cadeia de ferro. “— Tinha tempo, tinha tempo…” repetia, decidido a
passar o Natal em, Fortaleza. Que diabo! deixassem-no ao menos provar o
tradicional aluá. Os exames? ninguém se incomodasse, faria-os em
março; era até melhor, porque assim podia estudar mais e “fazer
figura”.

E os dia
passavam e cada vez mais crescia no seu espírito o desejo veemente, a ambição
romântica de possuir completamente aquela rapariga que se tinha apoderado de
todo o seu coração. Queria para esposa uma mulher nas condições de Maria do
Carmo, órfã, de origem obscura e pobre. Decididamente casava-se desta vez
embora isso custasse algum desgosto ao pai. Todo homem deve ter a liberdade de
escolher a mulher que melhor lhe quadrar.

— Mas olha
que a rapariga é normalista… lembrava José Pereira maliciosamente.

Que
importava isso? Fazia muito bom juízo da sociedade cearense para não acreditar
que todas as normalistas do Ceará fossem indignas de um rapaz de certa ordem. O
que queria é que a pequena soubesse corresponder à sua confiança.

 

9

 

Foi num
sábado, à noite, que se realizou cerimoniosamente, com toda a pompa de uma
festa de província, o casamento da Lídia com o guarda-livros, na igreja de N.S,
do Patrocínio.

Às sete
horas parou à porta da viúva Campelo um carro e saltou o Loureiro todo de
preto, gravata branca, o cabelo lustroso, repartido ao meio em trunfas,
empunhando o seu famoso clak. Estava glorioso dentro da sua casaca
de pano fino mandada fazer especialmente para o ato.

Que festa
na rua do Trilho!

No
quarteirão compreendido entre a rua das Flores e a do Senador Alencar,
notava-se um movimento desusado de gente que se debruçava às janelas e parava
na calçada e nas esquinas para esperar a saída dos noivos. Uma curiosidade
flagrante estampava-se na fisionomia dos moradores que assistiam basbaques à
chegada dos carros, comunicando a sua ruidosa alegria àquele pedaço de rua
habitualmente silenciosa e sossegada.

Havia
folhas tapetando o chão defronte da casa da viúva onde reinava agora uma
estranha aglomeração de pessoas de ambos os sexos, compactas, abafadas,
espremidas entre as quatro paredes da pequena sala de visitas.

A noiva
estava acabando de colocar a grinalda quando entrou o Loureiro muito teso com
um riso amável e desconfiado que lhe arrebitava o bigode espesso. Dois
sujeitos, também encasacados, de luvas, foram recebe-los à porta. —”Chegou
o homem”, anunciou uma voz, e a estas palavras cresceu o zunzum
propagando-se por ali fora entre os curiosos que se acotovelavam à porta da
rua.

E logo toda
gente a repetiu transmitindo-se a grande notícia —”chegou o noivo!” —
e todos os olhares caíram de chofre sobre o guarda-livros transfigurado em
herói de comédia.

D. Amanda,
muito azafamada, tomou-o pelo braço e conduziu-o à sala de jantar para lhe
oferecer um calizinho de vinho do Porto.

Loureiro
queixou-se do calor sacando fora as luvas, rubro, com a testa reluzente de
óleo, metido num colarinho em folha, todo ele recendendo opopánax. Nunca
ninguém o vira tão bem disposto, tão lépido, com um ar ao mesmo tempo condescendente
e soberano de capitalista sem débito. —”A noiva estava pronta?” —
perguntou. E, sem esperar resposta, começou a contar um incidente que lhe
sucedera no hotel no momento em que se vestia. Nada, uma infâmia que não lhe
atingia sola do sapato. Uma carta anônima contra a reputação de Lídia, coisas
do Ceará, coisas dessa terra…

Incomodara-se
a princípio, o sangue subira-lhe à cabeça ao ler semelhantes torpezas, mas
acalmara-se logo, porque não valia a pena a gente incomodar-se por uma carta
anônima escrita em péssima letra e, o que era mais, acrescentou convicto o
Loureiro, “sem assinatura”.

A viúva não
se inquietou, atarefada, suando, muito apertada na sua toilette de
seda escarlate, os grandes seios ameaçando romper o corpete e uma rosa no cabelo.
— Calúnias, nada mais, observou servindo o vinho. O guarda-livros emborcou o
cálice à saúde da noiva, gabando a boa qualidade do Porto.

A pequena
sala de jantar, caiadinha de novo, tinha agora outro aspecto mais asseado e
alegre, sem manchas de gordura nas paredes amarelecidas, como d’antes, com
vasos de flores no aparador, iluminada à vela de espermacete. Sobre a mesa do
centro coberta com um pano novo de riscadinho encarnado, pousavam duas
lanternas em forma de sino, jarros, pratos com bolos e garrafas intactas
dispostas em simetria. O chão de tijolo ainda estava meio úmido da baldeação
que se fizera na véspera. De resto os mesmos móveis do costume: um lavatório de
ferro com espelho defronte do corredor, a mesa de jantar, o aparador de
nogueira e o guarda-louça, uma velha peça que fora do tempo do marido de D.
Amanda.

A
verdadeira casa do Loureiro, o ninho em que ele ia passar a lua-de-mel com a
Lídia, era no Benfica, uma casinha também de porta e janela, mas muito fresca e
alegre, nova, ainda cheirando à tinta. Resolvera não fazer festa. Um
“copito” de vinho aos amigos, um taco de bolo e o deixassem em paz
com a sua “querida”. Tinha feito muitas despesas com o casamento. Da
igreja iria diretamente para a “chácara”, onde ficava à disposição
dos amigos. Isso de pândega em noite de núpcias não era próprio, achava uma
formidável maçada. Demais não era nenhum milionário para não contar o dinheiro
que gastava.

Uma
miniatura a casinha do Benfica, um sonho do poeta lírico, assobradada, com a
sua fachada azul ainda fresca, recebendo em cheio até o meio-dia toda a luz do
nascente. Logo à entrada havia uma escadinha de três degraus, d’onde se via, lá
dentro, nitidamente, como por um cristal muito límpido, a sala de jantar e as
bananeiras do quintalejo, de um verde tenro… Sala e visitas, alcova,
comunicando com um quarto, casa de jantar, varanda, dispensa,
quarto para criado, cozinha e quintal, tudo asseado e confortável, com uns tons
aristocráticos matizando a compostura graciosa dos móveis, papel claro nas
paredes, e lustres na sala de visitas.

Concluídas
as obras da casa, o trabalho de renovação, Loureiro dera-se pressa em
mobiliá-la a seu jeito, conforme as suas posses e os seus hábitos de empregado
zeloso e metódico. Não pedira conselhos a ninguém; escolhera ele mesmo os
móveis e objetos decorativos, tudo novo e lustroso, como se tivesse saído da
fábrica naquele instante. Mandara vir dos Estados Unidos, por intermédio da
casa Confúcio, um piano americano e uma máquina de costura. E uma vez tudo
pronto, tudo no seu lugar, passou uma revista geral na casa, desde a sala de
visitas até ao fundo do quintal, admirando com a alma cheia de satisfação a
espécie de paraíso que ele próprio criara para si.

“—
Sim, senhor, tinha cumprido rigorosamente o seu dever. Estava tudo que nem um
brinco! Agora, sim, podia casar.”

Lídia
pasmou diante daquele novo mundo que se lhe oferecia à vista. Nunca pensara que
o guarda-livros soubesse preparar uma casa com tanta graça. Pelo primeira vez
na sua vida o Loureiro revelara-se um homem moderno e civilizado. Estava
encantada! Já agora não invejava a sorte de Maria do Carmo: o Loureiro podia
competir com o Zuza em bom gosto! Quem diria? Supunha o guarda-livros mais
tolo, mais ignorante e sensaborão. Agora estava convencida de que o seu homem
era capaz de fazer figura em qualquer sociedade. Percorreu todos os aposentos,
revistando os móveis, admirando a qualidade fina dos objetos, com exclamações
de íntima alegria. Sentou-se ao piano e ensaiou uma escala achando-o excelente.


Esplêndido, hein, mamãe? Melhor que o das Cabraes!

Mirou-se ao
espelho, uma peça magnífica, de cristal, que o guarda-livros comprara num
leilão particular por preço exorbitante. Subia de ponto a satisfação da
rapariga. Esteve quase se atirando ao pescoço do noivo e beijando-o agradecida;
conteve-se porém. A viúva, essa acompanhava a filha, embasbacada, dando graças
a Deus por ter encontrado semelhante genro. —”Olha isto, menina, olha
aquilo!” dizia, muito gorda chamando a atenção da Lídia.

Da sala de
visitas passaram à alcova. O guarda-livros guiava-as, na frente, explicando os
melhores detalhes, a procedência dos objetos, o seu valor. — “Oh, a cama!
saltou a Lídia, sentando-se no belo leito de ferro azul com esmaltes d’ouro,
armado à inglesa em forma de dossel.

Achava muito
elegante as camas que se estavam usando. Experimentou o enxergão de arame
calcando-o com o corpo. Magnífico! A viúva também se sentou um instantinho, e
continuaram a visita.

Era quase
noite quando se retiraram.

Agora, uma
semana depois, num sábado, toda agente falava no casamento da Campelinho como
d’um acontecimento extraordinário. A Campelçinho, hein? Quem diria!… Uma
felizarda! E todos comentavam o fato com ruído, recapitulando a vida inteira da
viúva e da filha, lembrando episódios, cochichando malícias, prognosticando o
futuro da rapariga, admirando a boa fé do Loureiro. Coitado, ele talvez
ignorasse mesmo certos pormenores da vida da Lídia…

Daí quem
sabia? talvez fossem muito felizes. Conheciam-se moças mal comportadas que,
depois, casando-se tinham-se tornado verdadeiras mães de famílias.

O Guedes,
da MATRACA, esse, logo às seis horas começou a beber no Zé do Gatto mais o
Perneta, vomitando todo o seu despeito contra a Lídia que ele cobria de
impropérios aguardentados.

Debalde o
Perneta procurava acalmá-lo, o Guedes estava fora de si, com os olhos ensanguentados,
esbravejando como uma fera.

— Deixa-te
disso, ó Guedes, aconselhava o Perneta. Olha que te podem ouvir, homem!

— Que
ouçam, que ouçam, cambada de infames!

E batendo
no peito orgulhoso:

— Esse aqui
beijou muito aquela tipa, sabes? Não preciso dela para coisíssima alguma, estás
ouvindo? Aquilo é uma sem vergonha muito grande, aquela fêmea!

— Cala a
boca, menino…

— Cala a
boca, porque? Pensa você que tenho medo de caretas? Hei de dizer o que eu muito
bem quiser, fique você sabendo!

— Quem te
diz o contrário, homem de Deus? O que não é bonito é estares por aí a dizer
asneiras.

De vez em
quando aproximava-se o Zé Gato e suplicava que não falassem tão alto, que na
rua se estava ouvindo. Mas o Guedes não atendia a coisa alguma, com o
pensamento na Lídia, transbordando cólera, possesso.

Escureceu e
ele ainda lá estava no fundo da bodega esvaziando cálices de aguardente, a
falar desesperadamente.

Às sete
horas dois foguetes queimados defronte da casa da viúva Campelo, no Trilho,
deram sinal de que os noivos iam sair. Com efeito, d’aí a pouco surgiu na
calçada a Campelinho caracterizada em noiva, afogada em seda branca, com uma
auréola de imortalidade, cabisbaixa, pisando devagar, de braço com a firma
Carvalho & Cia.

E àquela
aparição levantou-se um rumor em todo o quarteirão. “Já vem, já vem!”
era a voz geral.

Logo após
vinha o Loureiro com a viúva, em seguida Maria do Carmo e um rapaz empregado no
comércio, D. Terezinha, o Castrinho, e outras pessoas de mais ou menos
intimidade, duas a duas.

O cortejo
desfilou a pé, ante a curiosidade indiscreta da vizinhança que se debruçava na
janela para ver melhor a noiva. —”Como aquilo ia orgulhoso!”, disse
Justina Proença, uma paraense equívoca, vizinha de João da Mata. —”Tão
besta é um quanto o outro”, murmurou a mulher do barbeiro, num muxoxo.

Moleques
com tabuleiros de doces na cabeça acompanhavam o préstito.

De repente
houve um fecha-fecha na esquina onde iam dobrar os noivos.

Que é? Que
foi? Recomeçou o zunzum mais forte, como um zumbido de abelhas num cortiço e os
boatos circulavam vertiginosamente. Toda a gente queria saber o que era, o que
tinha acontecido. A verdade é que ao aproximar-se o “casamento” da
venda do Zé Gato, saltou de dentro o Guedes, bêbedo como uma cabra, espumando,
sem chapéu e pôs-se no meio da rua a vociferar obscenidades contra a Campelinho
e mais o guarda-livros.

Um
escândalo. Soaram apitos; compareceram guardas de polícia; o Zé Gato saiu à rua
para acalmar o borracho; foi alterada a ordem do préstito; a Lídia ficou branca
debaixo do véu e ia tendo uma síncope; o Loureiro quis avançar contra o
desordeiro, mas foi detido por João da Mata…

Afinal de
contas, depois de alguns segundos, fez-se a ordem e o “casamento”
seguiu em paz, direto à igreja do Patrocínio.

O Guedes
forcejara por evadir-se dos braços do Zé Gato e d’outro sujeito, que procuravam
conduzi-lo à venda.

— Sou eu
que te pedes, ó Guedes, vamos. Deixa de tolices, rapaz; estás dando escândalo,
homem!

— Não vou,
porque não quero, está ouvindo? Não vou, porque não quero. Eu hoje faço o
diabo!

E
agachava-se, e caía p’ra trás e tombava para os lados, sem gravata, os olhos
esbugalhados, os cabelos em desordem, como um doido. Foi uma luta para
acalmá-lo.

Por fim o
Zé Gato mandou vir uma xícara de café sem açúcar, deu-lhe a cheirar limão, e em
pouco, o redator da Matraca dormia beatificamente, debruçado
sobre a mesa de ferro onde serviam-se as bebidas.

— Coitado!
lamentou o vendeiro. Um talento famoso! É um segundo tomo de Barbosa de
Freitas…

Cerca de
uma hora depois voltaram os noivos com o seu bizarro cortejo de amigos e
amigas, mas agora vinham os dois na frente abrindo caminho, conversando
baixinho, com um belo ar de familiaridade. Nas fileiras do préstito havia um
rumor de franca liberdade. Falava-se um pouco alto, ouviam-se risadinhas
gostosas, tinha-se perdido a cerimônia grave de momentos antes. A volta não se
parecia com a ida. A alegria dos noivos comunicava-se instintivamente aos
circunstantes como se na verdade estes compartilhassem da íntima felicidade
daqueles.

Outra vez a
casinhola da viúva encheu-se que num um ovo. No meio dos convidados havia
estranhos que invadiam a sala sem cerimônia, imiscuindo-se no tumulto de gente
como se fossem amigos velhos, de paletó saco e gravatas de cores espaventosas.

Ninguém os
conhecia, mas ninguém ousava despedi-los, deixando-os ficar, por uma
condescendência razoável. Curiosos de ambos os sexos debruçavam-se da parte de
fora das janelas para dentro, espremidos uns contra os outros.

Os noivos
tinham se sentado no sofá, defronte à janela, aconchegados, prelibando as
delícias do matrimônio na casinha do Benfica.

Loureiro
limpava devagar com o lenço recendendo opopánax o suor que lhe corria em gotas
da testa, encarando com supremo orgulho a curiosidade pulha dos circunstantes.

Pousava os
pés sobre o tapete deixando ver as meias de seda cor de carne com pintas de
ouro.

Lídia
estava divina com sua suntuosa toilette de noiva
comprimindo-lhe os quadris rijos e carnudos, muito séria, o rosto afogueado.

O
guarda-livros contemplava-a de instante a instante com um profundo olhar
apaixonado de dono que acaricia um objeto querido, sentindo-se mais que nunca
irresistivelmente atraído pela formosura sensual da Campelinho.

D. Amanda,
sempre muito solícita, veio convidá-los para a ceia: que estava pronto o chá, e
logo toda gente enfiou pelo corredor atrás dos noivos, sequiosa de cerveja e
vinho do Porto.

Um rubor de
ocasião solene tomou as faces do Castrinho, disposto já a brindar os noivos num
grande rasgo de eloquência demostênica.

A saleta de
jantar resplandecia à luz dos dois castiçais de vidro com mangas em forma de
sino, colocados nas extremidades da mesa. A um canto, sobre uma mesinha de
pinho, uma bateria de garrafas de cerveja desafiava a ganância dos convidados.
Houve um assalto à mesa. Todos acercaram-se dela com a avidez de gastrônomos,
e, antes que os noivos tomassem assento à cabeceira, já havia alguém sentado no
extremo oposto. O Castrinho não pode reprimir um — oh! de indignação, que felizmente
passou despercebido. —”Sentem-se, sentem-se”, ordenava a viúva,
inquieta como uma barata à volta da mesa, indicando as cadeiras. Todos se
sentaram com ruído, acotovelando-se. Ao lado dos noivos os padrinhos, Carvalho
& Cia. e a esposa, tinham o ar modesto de quem se vê cercado de honras
imerecidas. O Castrinho que não faltava à festa alguma dessa ordem, sentou-se
ao centro com uma comoção visível no olhar agitado.

Os curiosos
da rua tinham invadido o corredor e assistiam em pé, ao redor da mesa, àquela cena
banal de doze pessoas que comiam bolo à guisa de pirão de farinha; ao todo eram
quatorze, mas o Loureiro e a Lídia, por um escrúpulo mal entendido, apenas
provaram o delicioso manjar e cruzaram o talher.

O Castrinho
não se fez demorar muito. Quando menos se esperava, ei-lo de pé, empunhando o
cálice.

— Silêncio,
silêncio! advertiu uma voz.

O poeta
das Flores Agrestes pigarreou solenemente abrangendo com um
olhar vitorioso toda a saleta, e enfiando a mão direita no bolso da calça. com
um grande ar de tribuno acostumado a falar às massas, começou:

— Meus
senhores… e minha senhoras….

Fez-se um
silêncio grave e recolhido, em que se destacava apenas, muito de leve, o ruído
dos talheres que continuaram a funcionar ativamente.

— Eu
faltaria ao mais sagrado dos deveres….

Uma voz: —
Não apoiado.

— … Si
neste momento solene, em que toda a natureza veste-se de gaias para receber em
seu vastíssimo seio os noivos presentes… eu, o mais humilde amigo desta
casa…

— Não
apoiado…

—… não
erguesse a minha fraca voz… para saudar… para saudar o himeneu destas duas
criaturas (apontando para os noivos) nascidas “no mesmo galho, da mesma
gota de orvalho”… como diria o nosso Casimiro de Abreu…

— Bravo!
murmurou o mesmo apartista dos não apoiado numa voz cava, com
a boca cheia.

O orador,
visivelmente inquieto, sem tirar a mão de dentro do bolso, endireitou a gravata
com pancadinhas suaves, e, mergulhando o olhar na fruteira, continuou:

— Sim, meus
senhores… e minhas senhoras, o casamento é a base de toda a sociedade
civilizada; o casamento, como dizia certo escritor, cujo nome não vem ao caso
citar… o casamento é a mais nobre de todas as instituições, e o homem que se
casa dá um passo para o infinito, isto é para Deus!…

Uma salva
de palmas cobriu as palavras do Castrinho, que agradeceu comovido. No peito de
sua camisa, muito alva e lustrosa, reluzia uma pedra duvidosa.

Crescia a
animação da festa. Os talheres batiam nos pratos com mais força e as palavras
do liceista comunicavam ao auditório certo entusiasmo sereno que se traduzia em
apetite voraz e insaciável secura nas gargantas. Ouviam-se trabalharem as
mandíbulas.

Houve uma
pausa depois da qual o Castrinho, tomando o cálice cheio, concluiu com ênfase:

— Portanto,
eu brindo ao ditoso par, desejando-lhe um futuro de rosas banhado pelos
eflúvios do amor conjugal…

E,
escorropichando o cálice:

— Aos
noivos!

— Hip, hip,
hurra!

Todos se
levantaram.


Loureiro…

— D.
Lídia…

— Sr.
Castro não quer se servir de um pedacinho de bolo de mandioca? ofereceu a viúva
por trás do poeta.


Agradecido, minha senhora, agradecido… Estou satisfeito.

— Então,
mais um copo de vinho…

Aceitava,
pois não.

— Não façam
cerimônia, minha gente, observou D. Amanda. Já acabou, Sr. João da Mata? Um
pinguinho de doce de caju, Sr. Alferes… E você, menina, coma sem cerimônia.

Maria do
Carmo não podia disfarçar a tristeza, a ponta de inveja concentrada que lhe
tomava de assalto a alma inteira. Sentara-se à mesa por civilidade, para
corresponder aos reclamos da viúva, mas o seu único desejo era ir-se embora
para casa; a festa da amiga fazia-lhe mal aos nervos, e, demais, o Zuza
proibira-lhe de ir a qualquer parte onde ele não estivesse. Fora ao casamento
da Lídia, porque o padrinho a obrigara, não por sua espontaneidade. E agora ali
estava casmurra, silenciosa, com um arzinho recolhido de filha de Maria,
vendo sem ver, ouvindo sem ouvir, as pessoas e os ruídos, numa abstração
infinita, no meio de toda aquela gente que festejava o casamento da amiga.
Agora, mais do que nunca, por um excesso de sensibilidade nervosa, doía-lhe no
coração de pomba desolada não poder, como a Lídia e como outras tantas
raparigas felizes, amar livremente, sem ter que obedecer aos caprichos de um
padrinho atrabiliário e despótico como João da Mata. Enquanto os outros
divertiam-se sorvendo cálices de vinho, saudando aos noivos, ela, toda entregue
a seus pensamentos, permanecia muda e bisonha como quando pela primeira vez.
apresentara-se à sociedade, logo ao chegar de Campo Alegre, menina ainda,
matutinha. Ah! naquele tempo ela tinha o seu papai e a sua mamãe perto de si,
não era como agora, anos depois, uma simples, uma pobre, uma desprezada órfã,
assistindo com uma grande tristeza egoísta derramada nalma à felicidade alheia
triunfante…

— Atenção,
meus senhores! Atenção!

Desta vez
ia falar o alferes Coutinho, quartel mestre do batalhão, um moreno, de
costeletas, cabelo penteado em pastinhas, certo ar arrogante de pelintra
acostumado a todas as festas, desde os sambas do Outeiro aos bailes do Clube
Iracema, magricela, olhos cavados. Nas horas d’ócio dava-se ao luxo de fabricar
sonetos no gênero piegas dos últimos trovadores de salão.

Arrastava
ao piano as valsas em moda e dizia-se exímio tocador de flauta.

Convidado à
toda parte, não perdia ocasião de exibir-se na poesia ou na música. Tinha fama
de primeiro recitador do Ceará, ninguém como ele sabia marcar um quadrilha,
todo enfezado, sempre de lenço na mão, metido invariavelmente na sua farda de
alferes com colete branco.

Houve um
silêncio profundo. Todas as vistas caíra, de chofre sobre o militar como se de
sua boca fossem sair preciosas revelações.

Era o
alferes Coutinho? Oh? magnífico! Psiu! psiu!… Silêncio!…

— Meus
senhores. Respeitabilíssimas senhoras… Não dispondo de dotes oratórios, tão
úteis nas ocasiões solenes como esta, eu, que tenho a honra de pertencer à
falange dos discípulos de Castro Alves, Casimiro de Abreu, Varela e tantos
outros astros de primeira grandeza, que brilham no firmamento da poesia
brasileira, eu vou ler uns versos de minha lavra, que tomei a liberdade de
dedicar aos donos desta festa inolvidável…

Nem um
aparte. O mesmo silêncio cauteloso e recolhido. A noiva abaixou a cabeça
afetando modéstia e Loureiro fixou o olhar atrevidamente no orador. Mas o
Coutinho, calmo e desembaraçado, sacou do bolso da farda um papel, e lendo:

— Noite
de Núpcias
 é o título dos pobres versos…

— Não
apoiado…

— … que
tenho a honra de oferecer a Excia. Sra. D. Lídia, uma das estrelas mais
fulgurantes que ornam o céu da sociedade cearense…

Lídia estremeceu
com um belo sorriso de agradecimento,

—… e ao
Sr. Dias Loureiro, inteligente e zeloso guarda-livros da nossa praça, ambos,
portanto, dignos um do outro e da nossa eterna amizade…


Apoiadíssimo, confirmou Carvalho & Cia, palitando os dentes.

Sem mais
preâmbulos, o alferes entrou a declamar com uma convicção admirável os tais
versos de sua lavra, uma enfiada de palavrões antigos e bolorentos, que ele
procurava animar com sua voz de trovão, seca e cavernosa, brandindo o papel com
a mão esquerda e a direita gesticulando como se estivesse a marcar compasso de
música.

Ao terminar
o último verso —

Chovam
bênçãos de amor sobre os que casam!”

Uma salva
de palmas forte e prolongada ecoou na pequenina sala.

— Bravo!
muito bem! muito bem!

E o poeta
sentou-se agradecendo com repetidos movimentos de cabeça as manifestações de
que era alvo. Diversas pessoas levantaram-se e foram cumprimentá-lo de perto.
Um velho calvo que se sentava a seu lado, lembrou-se de perguntar-lhe ao ouvido
“Se o Sr. Alferes era cearense”.

— Não
senhor, respondeu o Coutinho, voltando-se gravemente, sou guasca,
nasci na cidade de Porto Alegre.

E contou
quando viera para o ceará, disse a sua grande simpatia por essa província e que
pretendia casar com uma cearense.

O
“brinde de honra” foi feito em duas palavras por Carvalho & Cia à
D. Amanda, “encarnação de todas as virtudes domésticas, senhora de
incomparável brandura e sisudez”.

— Hip! hip!
hip! hurrah!

Foi um
delírio esse final de banquete nupcial, em que tomavam parte o exército representado
pelo Alferes Coutinho, a poesia na pessoa do autor de Flores Agrestes e
o comércio em grosso simbolizado no ventre obeso de Carvalho & Cia.
Esgotaram-se as botelhas de vinho do Porto e de cerveja com um açoitamento de
quem não bebia água há três dias e depara uma piscina abundante do precioso
líquido. E, ao levantarem-se da mesa, os convidados olhavam com soberano desdém
a toalha manchada de nódoas de vinho sobre a qual havia um confusão grotesca de
copos e pratos em desordem, abandonados ali como restos de um festim
sardanapalesco. Uma coisa tinha sido respeitada e conservava-se no mesmo lugar
em que fora colocada pela mão zelosa de D. Amanda, era o paliteiro de prata
representando um alcaide com chapéu de três bicos e aspecto napoleônico, de braços
cruzados , numa imobilidade de objeto de luxo que se receia tocar por
escrúpulo.

Os
espectadores intrusos evacuaram o corredor com a mesma facilidade de ligeireza
com que se tinham introduzido e depressa a sala de jantar ficou entregue à
viúva e ao criado. que se ocuparam de cobrir os restos dos bolos, recolhendo-os
ao guarda-comidas. O troço dos comensais, homens e senhoras, enchiam a sala de
visitas, cujas cadeiras estavam todas ocupadas, e palrava agora
desembaraçadamente numa atmosfera pesada de fumaça e heliotrópico, — umas
abanando-se com os grandes leques de cetim, outros com os lenços , porque o
calor crescia. Transpirava-se por todos os poros, o que fazia o alferes
Coutinho trazer constantemente o lenço no pescoço, resguardando o colarinho,
onde já havia sinal de suor. A janela estava tomada por algumas pessoas que
formavam roda ao redor do Loureiro, em pé. Senhoras entravam e saíam da alcova
com ar desconfiado, compondo discretamente os vestidos.

Deram dez
horas no relógio da Sé, cujas badaladas faziam-se ouvir, graves e sonolentas,
em todo o âmbito da cidade.

Dez horas!
Carvalho & Cia. consultou o relógio. Havia uma pequena diferença de dez
minutos. Safa! o tempo voava!.

E, alto,
levantando-se:

— Vamos,
Quininha?

— É muito
cedo, acudiu a Lídia, que conversava com Maria do Carmo no sofá.

— É
verdade, minha gente, saltou D. Terezinha, saindo da alcova. Os noivos precisam
descansar. Dez horas!

— Estávamos
tão distraídos! disse o alferes Coutinho puxando os punhos.

— Vamos,
vamos, repetiram muitas vozes.

— É cedo,
minha gente! implorava a Lídia muito amável, com um sorriso de irresistível
faceirice.

Imediatamente
todos se levantaram impulsionados pela mesma idéia, à procura dos chapéus, num
reboliço crescente, aos encontrões, enfiando pela alcova e pelo corredor.

Estrondou
um bocejo senil e demorado, que se propagou por ali a fora — era o velho calvo,
de óculos, que se tinha encafuado a um canto da sala cochilando, e que
despertara agora num espreguiçamento como se estivesse em sua própria casa.

As senhoras
agasalhavam-se nos fichus, defronte do espelho.

D. Amanda,
de um lado para outro, de dentro para fora da alcova, não descansava as pernas.

Começaram
as despedidas.

Que de
beijos estalados à queima roupa! Em pé no meio da sala, os noivos, competentemente
formalizados, agradeciam reconhecidos a chuva de felicitações que caiam sobre
eles à guisa de flores desfolhadas sobre suas cabeças, ao mesmo tempo que Lídia
ia distribuindo a uns e outros botões de laranjeiras.

Que fossem
muito felizes; que tivessem uma eterna lua-de-mel; que fossem muito unidos
sempre como dois irmãos; que não esquecessem as velhas amizades…

— Olhe,
minha filha, aconselhou D. Terezinha com a mão no ombro da Lídia, depois de a
ter beijado. Olhe, seja sempre boa para seu maridinho, faça o que ele quiser, o
que ele mandar. O homem é que faz a mulher e a mulher é que faz o homem. Adeus,
ouviu?

Todos
tiveram mais ou menos o que dizer aos noivos.

— Não
esqueça o que lhe pedi, ouviu Lídia? recomendou de fora uma voz de mulher.

— Boa noite!

— Sejam
felizes!

— Durmam
bem!…

Em pouco
todos tinham se retirado. Havia ainda alguns curiosos fora, na calçada.
Loureiro mandou aproximar o carro que o esperava. A rua estava silenciosa e
escura como se fosse alta noite. Defronte, em casa de João da Mata, fecharam-se
as portas apagando-se completamente a última luz que clareava aquele trecho da
rua do Trilho.

D. Amanda
chamou a filha à alcova onde estiveram conversando alguns minutos, e depois,
abraçando-a ternamente com os olhos úmidos:

— Deus os
conduza em paz…

Lídia
beijou comovida a mão da viúva e, dando o braço ao Loureiro, entrou no carro
que rodou em direção de Benfica, com a sua luzinha amarela tremeluzindo no
escuro.

Minutos
depois D. Amanda recebia, como de costume, o Batista da Feira Nova… 

 

 

10

 

Quando
chegaria sua vez? pensava Maria do Carmo nessa noite, sem poder conciliar o
sono, com um desalento profundo no coração apreensivo. Que tal , hein? O Sr.
Zuza não se resolvia a pedi-la em casamento, sempre com evasivas, pretextando
tolices, como se estivesse tratando com uma biraia qualquer! Porque isso?
porque não se decidia logo a dizer a verdade fosse ela qual fosse?

Era sempre
melhor do que estar perdendo tempo sem tomar uma resolução franca e definitiva.
Quem sabe? talvez o padrinho não fizesse questão agora que a tratava tão bem,
que lhe fazia todas as vontades… Uma felizarda a Lídia!… Casara com um
guarda-livros, mas embora, casara…

E
imediatamente vinha-lhe uma confiança ilimitada no estudante. Já estava tão
acostumada com ele que nem era bom pensar em uma deslealdade. Paciência,
paciência — Roma não se fez em um dia… Consolava-se ao penar nas confidências
íntimas do futuro bacharel, embebidas de ingênua e tocante sinceridade, na
franqueza ativa com que ele dizia todas as suas idéias e todas as suas ações,
como se já fossem noivos. Zuza contava-lhe tudo com a maior simplicidade,
dava-lhe conta de seus passeios, de seus planos, de suas intenções.

Pode-se
mesmo dizer que não havia segredo entre os dois. Era lá possível que o Zuza,
aquele Zuza tão amável, tão sincero, tão bom a esquecesse, ele que reprovava
com frases repassadas de indignação o procedimento de certos indivíduos para
quem a mulher outra coisa não é senão uma espécie de fruto amargo que a gente
prova e deita fora? Qual! O Zuza era incapaz de descer até onde começava o
rebaixamento do caráter de um homem…

Animava-se
ao fazer estas considerações tão simples, tão espontâneas, saídas do mais
íntimo de sua alma enamorada. Tinha momentos em que tudo afigurava-se-lhe uma
comédia, cujo protagonistas — o estudante — aprazia-se em vê-la rendida a seus
pés por um simples capricho de rapaz do mundo que se diverte à custa de muitas
raparigas como ela, ainda não corrompidas pelos costumes modernos. Nascida no
interior de uma província essencialmente católica, educada em um colégio
religioso, o convívio com as suas colegas da Escola Normal não lhe apagara de
todo essa bondade característica dos filhos do sertão, que se revela em uma
confiança ingênua nos outros. Por isso é que ao mesmo tempo Maria não podia
acreditar que o Zuza faltasse à sua palavra para com ela. Duvidava às vezes,
mas não perdia de todo a confiança, porque amava deveras, e o amor transforma a
pessoas ou objeto querido numa espécie de ídolo, que a gente adora como a um
modelo de virtudes incomparáveis.

Quando
chegaria sua vez? E a figura de João da Mata surgia-lhe aos olhos como uma
visão pavorosa, que a fazia estremecer da cabeça aos pés. Sim, o padrinho não
gostava que se falasse no Zuza, implicava com ele, odiava-o gratuitamente, sim,
gratuitamente, porque o rapaz nunca lhe fizera o menor mal, até pelo contrário,
uma vez lhe emprestara cinquenta mil réis, e ela o sabia pela boca de D.
Terezinha. Que infelicidade, a sua, que caiporismo! além do padrinho não gostar
do Zuza, aquela casa parecia agora um verdadeiro inferno: era o padrinho para
um lado e a madrinha para o outro, ambos de cara fechada, sem se trocarem
palavras, e ela, Maria, para um canto, coitada, sem amigas, sem parentes,
vivendo uma vida de criminosa…

Que maldito
inferno!… Antes nunca tivesse nascido.

Onze
horas… meia noite! e ela ainda velava, sem um bocadinho de sono, a matutar na
vida, a pensar em frioleiras.

Entrou a
parafusar no casamento da Lídia, rememorando toda a festa, tintim por tintim, com
a pachorra de quem procura armar um castelo de cartas. — Assim mesmo tinha ido
muita gente, sim senhora, parecia até uma festa de gente rica. Inegavelmente a
Lídia estava encantadora debaixo do véu de noiva. Nunca vira a igreja de N.S.
do Patrocínio tão cheia de povo! Ah! mas fora uma coisa horrorosa o escândalo
provocado pelo Guedes. Que horror! Se fosse ela, Maria do Carmo, teria caído no
meio da rua com um ataque…

Palpitavam-lhe
a imaginação, como num sonho, os menores acidentes daquela noite, em que todos
tomaram o seu cálice de vinho e só ela, irressistivelmente mordida de inveja
por ver a sua maior amiga num torno de felicidade, ela somente se deixara ficar
esquecida como qualquer lagalhé, na impotência da sua tristeza. Entretanto, se
não fora o padrinho, ela também podia breve estar de caminho para a igreja, ao
lado de seu noivo, metendo inveja às outras. Então é que a festa seria
d’estrondo! O coronel Souza Nunes abriria o seu salão iluminado como um palácio
real, e haveria dança e música e um banquete lauto. E iria o presidente da
província e toda a gente grande do Ceará. Que bom que seria!…

Nisto
adormeceu e logo tornou-lhe a aparecer em sonho o negro Romão com as calças
arregaçadas e um barril na cabeça a gritar —Arre corno! cercado de
garotos que lhe atiravam pedras e sacudiam-lhe punhados de farinha-do-reino na
carapinha, por detrás no meio de gritos e assobios.

Depois o
preto deixou cair o barril, que se derramou, inundando a calçada de imundícias,
e ei-lo montado num cavalo magro, a fazer de palhaço de Circo, uivando uma
porção de asneiras, que a molecagem replicava sempre com o mesmo estribilho, a
uma voz: — É sim, sinhô!

Depois….
(não se lembrava o resto)

Davam duas
horas no relógio do vizinho, quando acordou muito assustada e nervosa, a olhar
para todos os lados, sem consciência exata do ambiente que a cercava. Teve um
sobressalto ao ver sobre uma cadeira, perto da rede, o vestido com que fora ao
casamento. — Credo, que susto!

A luzinha
da vela de carnaúba agonizava numa poça de cera derretida.

E essa! Era
a segunda vez que sonhava com o Romão, sem quê nem p’ra quê… Com certeza
estava para lhe suceder alguma desgraça. Que esquisitice! hum, hum,…

A porta do
quarto, que se conservava entreaberta, rangeu nas dobradiças, como se alguém a
empurrasse de manso. Apoderou-se de Maria um pavor terrível; arrepiaram-se-lhe
os cabelos, e uma extraordinária sensação de frio percorreu-lhe o sangue. Ficou
assombrada, sem se mexer, com o ouvido alerta e os olhos fechados, numa
prostração de quem está sem sentido. Pareceu-lhe ouvir chamar pelo seu nome e
então subiu um ponto o terror que lhe tapava a boca como uma mordaça de ferro.
Abriu os olhos para verificar se com efeito estava acordada e tornou a
fechá-los mais que depressa. Instintivamente fez um esforço supremo para
gritar, para chamar alguém, mas não podia abrir a boca, estarrecida.

Maria?
repetiu a mesma voz, que ela julgava ouvir, uma voz fina, mas abafada, como se
saísse das entranhas da terra.

E logo:

— Sou eu,
Maria. É o padrinho…

De feito,
João da Mata vinha-se chegando, pé ante pé, subtilmente, segurando-se à parede,
equilibrando-se na ponta dos pés, como um ladrão, sem o menor ruído, com
estalinhos de juntas.

Maria
encolheu-se toda debaixo do lençol duvidando. Tremia como um doente de sezões,
embiocada que nem caracol.

— Não
grites, Maria, olha sou eu, teu padrinho, tornou João da Mata, agora quase ao
ouvido da afilhada, agarrando-se ao punho da rede.

A rapariga
respirou forte, como se saísse de dentro de um buraco, e pôde abrir os olhos,
meio aliviada, presa ainda de uma grande comoção. Ao medo sucedera-lhe uma
apreensão dolorosa, que o seu espírito repelia como impossível. Não teve tempo
de associar idéias, porque o amanuense foi se sentando na rede, a seu lado. — O
padrinho por ali, no quarto d’ela, àquelas horas?… Estaria sonhando?…


Padrinho…

— Sou eu
mesmo, minha flor… Olha, queres saber uma coisa?… Deixe-me descansar um
bocadinho e eu te direi, ouviste?… Espera…

— Mas,
padrinho!…

— Olha, não
fales alto… Sou eu, estás ouvindo? eu, teu padrinho mesmo… Bico…

Maria do
Carmo não compreendeu logo a presença de João da Mata ali

no seu
quarto, àquela hora.

Fez-se uma
confusão inextricável, caótica, no seu espírito subitamente assaltado por um
turbilhão de idéias sem nexo, disparatadas; o coração pulsava-lhe forte, como
se tivesse acabado de fazer um grande esforço; operava-se em seu duplo ser
moral e físico um desses abalos extraordinários, que deixam a gente numa
prostração invencível. Pela primeira vez na sua vida achava-se frente a frente
com um homem, alta noite, no silêncio de um quarto escuro. Mal acordada do
terrível pesadelo que acabava de ter, vendo ainda, esboçada na sua imaginação,
a figura hedionda do negro com os bugalhos injetados, a boca abrindo-se num riso
nervoso e alvar, o peito à mostra, a venta chata, ela permanecia imóvel,
olhando para o escuro como uma idiota.

A luz tinha
se apagado completamente. Ouvia-se a respiração asmática da criada no quarto
pegado à sala de jantar. Longe, nalgum quintal, ladrava um cão. Ao calor
insuportável sucedia o friozinho bom da madrugada.

João estava
em ceroula, nu da cintura para cima. Desde que chegara da festa do Loureiro não
fechara os olhos, a fumar no seu cachimbo curto, que preferia às vezes aos
cigarros, andava-lhe na cabeça o plano há muito formado, de ir ao quarto da
afilhada uma noite. Nada mais fácil: da sala de jantar, onde dormia agora, ao
quarto eram dois passos; o diabo era se a menina abrisse a goela a chamar por
gente, isto é que era o diabo!… Qual! ela não tinha coragem para tanto,
mormente sabendo logo que era ele, o padrinho. — Mãos à obra, João; nada de
pensar em asneiras. Isso a gente inventa uma história de embalar crianças, diz
que a vida é esta, e … foi um dia uma donzela. Oh! pois ela não é tua
afilhada! demais, meu besta, já lhe pegaste umas tantas vezes no bico dos
seios, sem que ela reagisse, a Maria, naturalmente porque sabes encampar a tua
autoridade de padrinho. E depois, que diabo! Quem arrisca… Um, dois…

E, com um
salto, o amanuense levantou-se, dirigindo-se ao quarto da rapariga, cosendo-se
às paredes, macio, cauteloso, todo agachado, pisando devagar, no bico dos pés
descalços.

A fresca da
madrugada arrepiava-lhe o tronco magro e cabeludo.

Ah! como se
sentia bem agora, sentado na mesma rede em que ela dormia, sozinho com ela,
adivinhando, no escuro, toda a incomparável perfeição de suas formas
rechonchudinhas de rapariga nova! O calor brando do corpo dela comunicava-se
agora a seu corpo, infiltrando-lhe no sangue um fluído bom e vigoroso.

Sentia-se
forte como um touro, ali assim a seu lado, ele, um pobre homem sem força, um
magricela sem carnes.

E Maria
esperava, numa aflição, o desenlace daquela trapalhada que ela não compreendia
bem.

Estiveram
ambos calados alguns minutos até que o amanuense, escorregando para o fundo da
rede, pousou a mão sobre o ombro da afilhada, segredando-lhe — se ela estava
com frio?

— Frio? …
não …

— Pois
olha, na sala de jantar, faz um frio dos demônios. Por isso eu vem para junto
de ti…

Maria não
disse nada.

Então o
amanuense começou com uma lengalenga, um despropósito de palavras murmuradas
como uma oração, numa voz que mal se ouvia, inclinado sobre a afilhada,
sufocando-a com seu hálito nauseabundo, roçando-lhe no rosto a ponta da barba.

— Olha,
Maria, dizia-lhe, tu não sabes quanto eu abomino o Zuza… Há muito tempo que
estava para te dizer umas certas coisas, mas era preciso segredo, muito
segredo… Agora, que estamos sós, deixe que te fale com franqueza… Tu amas o
rapaz, não é assim? Não mintas… sei que gostas muito dele, e até já se fala,
na rua, em casamento. Ainda hoje alguém afirmou-me que vocês se beijam na
Escola Normal. Eu sei de tudo, minha afilhada, eu sei de tudo. Mas, olha bem o
que te digo, tudo depende de ti, só de ti…

Maria estremeceu
no fundo da rede, debaixo do lençol, e sentiu-se irressistivelmente presa às
palavras de João da Mata. Se ele a quisesse deixar, nesse momento, ela não
consentiria, tão viva era a sua curiosidade, agora que o padrinho lhe falara do
Zuza; e o movimento quase imperceptível da rapariga não passou despercebido a
João da Mata.

— Sim,
minha cabocla, tudo depende de ti, porque eu também te quero muito bem e não
consentiria nunca nesse casamento, se… Olha, deixa dizer-te ao ouvido…

E, colando
a boca ao ouvido de Maria:

— … se
não fosses boa para teu padrinho.

Pouco a
pouco o amanuense ia deitando ao lado da rapariga, acotovelando-a, machucando-a
com o seu corpo ossudo, devagar, cautelosamente.

“—Estava
bem armada a rede? Era preciso comprar outra mais larga, mais rica…”

Um grilo
entrou a cantar monotonamente num canto do quarto — testemunha oculta daquela
cena inacreditável.

Entretanto
Maria não dava palavra, com as pálpebras pesadas de sono, respirando a custo,
numa espécie de inconsciência muda, como hipnotizada. Este estado porém durou
pouco; espreguiçou-se, puxando o lençol para se cobrir melhor e começou a achar
certo encanto naquela intimidade secreta, ombro a ombro com o padrinho. Seu
instinto de mulher nova acordara agora obscurecendo-lhe todas as outras
faculdades, ao cheiro almiscarado que transudava dos sovacos de João da Mata.
Coisa extraordinária! aquele fartum de suor e sarro de cachimbo produzia-lhe um
efeito singular nos sentidos, como uma mistura de essências sutis e deliciosas,
desconcertando-lhe as idéias. Uma coisa impelia-o para o padrinho, sem que ela
compreendesse exatamente essa força oculta e misteriosa.

E quando
ele, num tom paternal e amoroso, lhe falou no Zuza, Maria teve um frêmito bom,
como se tivesse caído por terra o paredeiro que mediava entre ela e o
estudante. Tudo dependia dela, somente dela… Ficou a pensar nestas palavras,
sem atinar com o seu verdadeiro sentido, alheada, os olhos fitos, quase sem
pestanejar, na telha de vidro, por onde escoava agora uma claridade tênue de
alvorada;

João
respirou, e, passando-lhe o braço por trás do pescoço:

— Então?…

— É quase
dia, padrinho, podem nos ver assim…

— E que
tem? já nos têm visto tantas vezes? Agora espera, só me vou se me deres uma
boquinha…

E, sem
esperar resposta, o amanuense beijou-a na face, apertando-a contra si, numa
impaciência de quem não tempo a perder.

Maria repeliu-o brandamente.

— Juro-te, continuou ele, juro-te que casarás
com o Zuza, mas por amor de Deus, deixa… ou não contes comigo para coisíssima
alguma. Por alma de tua mãe que está no céu. Olha, sou eu quem te pede…
Ninguém saberá, o próprio Zuza não poderá saber nunca… É como se não tivesse
havido nada, são segredos que não aparecem, sabes? Eu te peço…

Tinha-se feito a verdade aos olhos da normalista,
como um clarão que de repente iluminasse todo o quarto. ao mesmo tempo que uma
luta medonha travava-se dentro de si, sem lhe dar tempo a pensar. Estava
justamente em vésperas de ter o incomodo. Toda ela vibrava como uma lâmina de
aço ao contato daquele homem que comunicava-lhe ao corpo um fluido misterioso,
transformando-a numa criatura inconsciente atraída por um poder extraordinário
como o de uma cobra sobre um rato.

As palavras do padrinho, embebidas de
voluptuosidade e o nome do Zuza pronunciado naquele instante e, mais que tudo
isso, a invocação feita à alma de sua mãe, confundiam-lhe os sentidos,
acordando no coração de donzela o que tinha de mais delicado. teve piedade de
João, como se ele fosse na verdade o mais desgraçado dos homens. Sentiu-o a seu
lado, humilde como um ser desprezível que reconhece a sua baixeza, com uma
tremura na voz, rendido, suplicante, e não teve coragem de o enxotar, de
dar-lhe com a mão na cara e de desaparecer para sempre d’aquela casa imoral,
onde ela vivia tristemente com as doces recordações de seu passado, como uma
flor que vegeta num montão de ruínas. Ao contrário d’isto, a visível submissão
do padrinho, doera-lhe nalma como a ponta d’uma lanceta. Sem o saber, João da
Mata encontrou a afilhada numa dessas extraordinárias predisposições de corpo e
alma. em que, por mais forte que seja, a mulher não tem forças para resistir às
seduções de um homem astuto e audacioso. Conhecia suficientemente o gênio de
Maria — nada mais, e isto lhe bastava para que a vitória fosse certa,
infalível.

De resto, algumas palavras atoa murmuradas à
surdina, o contato morno de um corpo viril… e Maria do Carmo aumentava o
número de suas dores.

A madrugada veio encontrá-la de joelhos, mãos
juntas, duas grandes lágrimas no olhar, como um anjo de sepultura, defronte da
oleografia de Cristo abrindo o coração à humanidade. Nunca o doce e meigo olhar
de Jesus pareceu-lhe tão meigo.

Era domingo. Cantavam galos de campina nas
ateiras do quintal. E enquanto, lá fora, a cidade acordava e a vida recomeçava
seu eterno poema de alegrias e dores, Maria procurava no coração de Jesus um
conforto para seu doloroso arrependimento.

 

11

Maria do
Carmo passou uma semana inteira, oito dias consecutivos, sem ir à Escola
Normal, sem pôr os pés na rua, sucumbida , mortificada, com receios de encarar
os conhecidos, sem ânimo para se apresentar em público.

Se até
então a vida fora-lhe um nunca acabar de desgostos e contrariedades, o que
seria agora, depois de se ter comprometido levianamente para todo o resto da
sua existência, entregando-se, num momento de desvario dos sentidos, aos
desejos concupiscentes do padrinho?

Estava
doida, não havia que ver, estava doida naquele momento, não tinha um bocadinho
de juízo! Devia ter visto logo que uma mulher de certa ordem não se entrega por
força alguma d’este mundo a outro homem, que não seja o seu marido, o dono de
seu coração, o legítimo esposo de seu corpo e de sua alma. Que desgraçada
imprudência a sua! Que vergonha, santo Deus, que vergonha! Era para isso que se
tinha coração, para se deixar cair numa armadilha daquela… Se fosse uma
mulher forte e resoluta, capaz de todos os escândalos, contanto que soubesse
guardar a sua honra… bem, não teria sucedido nada. Mas, não : fora uma
grandíssima tola, uma menina d’escola, deixando-se levar pelo coração até o
ponto de compadecer-se do padrinho! Que infelicidade!…

E chorava
que nem uma criança, com a cabeça no travesseiro, metida no seu quarto,
dizendo-se a mais infeliz de todas as mulheres, supersticiosa ao peso de sua
culpa irremediável, com grandes manchas lívidas ao redor dos olhos,
inconsolável na sua dor..

Às vezes
supunha estar sonhando, como que procurava iludir-se a si própria, enxugava os
olhos na ponta do lençol, via-se ao espelho e experimentava um bem-estar passageiro,
um conforto muito íntimo; mas punha-se logo a pensar, a fazer consigo mesma mil
conjecturas, e desandava outra vez num choro silencioso, que lhe sacudia o
corpo todo em estremecimentos nervosos. Não sabia bem porque chorava; uma
coisa, porém, dizia-lhe que nunca mais seria feliz em sua vida, desde o momento
que, por sua condescendência imperdoável, entregara seu corpo àquele homem…

À proporção
que os dias passavam, sucedendo-se numa monotonia aborrecida, uniformes como os
elos d’uma grande cadeia de ferro, crescia o desânimo em Maria do Carmo, cujas
feições transformavam-se a olhos vistos. Tomava-lhe o rosto uma palidez de
reclusa macerada pelos jejuns, cavavam-se-lhe os olhos, onde se refletia
visivelmente o estado de sua alma, e os cabelos iam perdendo aquele brilho
resplandecente que era o desespero do Zuza. Em uma semana sua fisionomia
adquiria uma expressão iniludível de dor concentrada.

No sábado
recebeu um bilhete da Lídia convidado-a para jantar com ela no dia seguinte.
“Espero-te sem falta. Todas as minhas amigas tem vindo me visitar, menos
tu. Creio que não te dei motivo para procederes deste modo. Por andar
incomodada é que ainda não fui te ver”.

Quedou-se
numa imobilidade profundamente triste, com a face na não, a olhar para a letra
da amiga, escrita em papel-amizade, e ficou assim muito tempo, como num êxtase.
Veio-lhe a mente o Zuza. Já não se lembrava d’ele, toda entregue à sua dor. Há
uma semana que não o via, nem sequer tinha notícia dele, e agora o estudante
aparecia-lhe vagamente na imaginação como a lembrança remota de uma coisa que
se viu em sonho. As lágrimas começaram a cair-lhe dos olhos duas a duas,
silenciosamente, sobre o bilhete de Lídia.

Uma…
duas…

Duas horas
da tarde. O amanuense ainda não tinha voltado da Repartição. D. Terezinha
costurava na sala de jantar, cantarolando uma modinha cearense em desafio com o
sabiá, que desferia seu eterno e monótono dobrado, esquecido ao sol. Havia no
tépido interior d’aquela casa a calma preguiçosa d’essa hora do dia, em que se
ouve o voar do moscardo impertinente e cantos do galo ao longe, nos quintais.
Mariana suspirava na cozinha às voltas com as panelas, cachimbando. Sultão,
esse dormia tranquilamente o seu sono do meio-dia aos pés de D. Terezinha,
orelhas murchas, deitado de banda.

Todos os
dias, invariavelmente, era a mesma quietação, a mesma sonolência, o mesmo
ramerrão, até que viesse o amanuense com as suas hemorróidas ou com sua cachaça
dar à casa o ar de sua graça. Frequentemente João chegava às quatro horas,
demorando-se às vezes até às cinco, o que não era muito raro.

Nesse dia,
porém, antes que o velho pêndulo da sala de jantar marcasse quatro horas,
entrou de chapéu na cabeça, como de costume, para não constipar, e foi direto
ao quarto da afilhada.

“—
Como tinha passado o dia? Muito fastio ainda!” — E puxando uma cadeira
sentou-se ao lado de Maria, que ainda se conservava deitada.

Ao pé da
rede, sobre a esteira gasta, eternizava-se uma tigela com o resto de caldo onde
flutuavam moscas. João fez um gesto de aborrecimento, e apanhando a tigela:

— Mariana!

Demônio de
gente! Naquela casa ele é que fazia tudo, e, se havia uma pessoa doente, era o
mesmo que nada.

— Mariana!

— Inhô!

— Não está
ouvindo chamar, seu diabo!

D.
Terezinha continuava a cantarolar, sem se dar por achada, por pirraça.

Mariana
apareceu à porta do quarto, sem casaco, os seios moles, dentro da cabeção da
camisa tisnada. pés descalços, cabelos assanhados.

João
mediu-a com olhar, d’alto a baixo, e entregando-lhe a louça:

— Por que
ainda não tirou isto?

— Estava cuidando
do jantar…

— Cuidando
no jantar, hein? Cuidando no jantar?… Burra!…

A criada,
porém, deu-lhe as costas e saiu rindo com seu ar idiota.

Uma pessoa
somente interessava-se pela saúde de Maria do Carmo — era ele, João da Mata,
cujos cuidados para com ela redobravam dia a dia.

D.
Terezinha, essa nem sequer chegava à porta do quarto, resmungando sempre,
rogando pragas, dizendo indiretas, que Maria do Carmo ouvia com lágrimas nos
olhos.

Nunca João
fora tão bom para a afilhada como agora: Trazia-lhe mimos da rua, bons
bocados
, confeitos, rendas, com uma solicitude paternal, animando-a,
prometendo-lhe muitas felicidades, contando-lhe tudo quanto ouvia dizer na rua,
dando-lhe notícias dos conhecidos.

— Teve
febre hoje? continuou ele tornando a sentar-se.

— Não
sei…

— Deixe ver
o pulso… Não, nem um bocadinho… Bom, não se amofine, hein, não se amofine.
Amanhã, se Deus quiser, pode levantar-se. E baixo:

— Tolice…
Morrendo sem quê nem para quê! Se continuas, é pior… podem até saber… Isto
a gente faz cara alegre e vai para a adiante, com as outras, minha tola… Olha
a tua amiga Lídia… Casou e casou bem… E assim a maior parte… Deixa de
tolices.

Logo no dia
seguinte à noite do seu defloramento Maria do Carmo queixou-se de fortes dores
de cabeça e nos quadris, indisposição geral, e uma ausência quase absoluta de
apetite. Não podia ver comida de espécie alguma nem sentir ao menos cheiro de
guisados. Tudo a enjoava provocando-lhe náuseas. Cada vez que se lembrava de
João vinham-lhe arrepios na pele e “agasturas na boca do estômago”.

Pungia-lhe
uma espécie de remorso, que a fazia passar horas inteiras numa abatimento
medonho, encafuada no quarto, sem coragem para continuar a vida como dantes.
Lamentava-se como uma desgraçada: — Que vida! que vida!

Não quis
almoçar e passou o dia com uma xícara de café, que a Mariana lhe levara.

D.
Terezinha não se abalava: era como se Maria do Carmo não existisse. Que fosse
para lá com seus faniquitos, não tinha obrigação de criar filhos de ninguém.
Antes de ir para a Repartição João lhe recomendara: — Olhe: Maria amanheceu
doente. Está com uma pontinha de febre, não a deixe morrer de fome , hein…

Foi como se
não recomendasse, porque D. Terezinha nem sequer pôs os pés no quarto da
rapariga. Limitou-se a dizer à criada: — Ouviste! Não deixes morrer de fome
mimosa.

Ah! esse
desprezo, essa indiferença da madrinha doía nalma de Maria como um insulto.
Lembrava-se às vezes de a mandar chamar e pedir-lhe por amor de Deus que não a
tratasse assim, que não a desprezasse… Mas ao mesmo tempo achava que isto era
confessar a sua culpa, porque na verdade nunca houvera ente elas causa para o
mais leve rompimento, a não serem as impertinências de João da Mata. Que culpa
tinha ela se o padrinho dissesse desaforos à mulher?

E assim ia
passando agora, abandonada, sem uma pessoa que se interessasse verdadeiramente
por sua sorte, a não ser João da Mata.


Trataram-na bem? perguntava o amanuense ao voltar do trabalho.


Trataram… murmurava ela.

Mas a
verdade é que Maria passava uma vida miserável De manhã, enquanto João ainda
estava em casa, ele mesmo ia levar-lhe o café com torradinhas de pão, mas,
depois, ela ficava entregue à preguiça da criada e à indiferença da madrinha,
em termos de morrer de fraqueza. Davam-lhe um caldo ao meio-dia, único alimento
com que ela esperava o jantar às quatro horas, quando o padrinho viesse. Por
fim quase não podia suportar aquilo, e nove dias depois, um domingo,
levantou-se resolvida a ir jantar com Lídia, ao menos por desfastio, que aquela
casa era um horror! Mostrou a João a carta da amiga, acrescentando que até era
bom para ela passar o resto do dia fora, no Benfica, ouvir tocar piano,
distrair, enfim, porque andava muito triste.

O amanuense
aprovou prontamente: que sim! mas era preciso saber se já estava completamente
boa, se não sentia mais nada.

— Mais
nada, passei muito bem a noite.

João
tomou-lhe o pulso com carinho.

— Pois bem,
vista-se e vamos. Amanhã pode até ir à escola, não é assim?

E, noutro
tom:

— Não vale
a pena a gente se amofinar por qualquer coisa, filha. A vida é isto mesmo —
andar p’ra diante sempre com a cara alegre. Vamos, vá se vestir.

Ainda não
tinha dado meio dia no pêndulo. Maria foi ao quarto, abriu baús, mais
consolada, escolheu o melhor de seus vestidos de cretone, um azul de riscados
brancos, em pouco saiu do lado ao padrinho, traçando o fichu, sem dar palavra a
D. Terezinha.

Ninguém na
rua do Trilho, deserta àquela hora como uma rua d’aldeia.

Seguiram
para a Praça Ferreira a tomar o bonde de Pelotas. Pouca gente na praça ensombrada
por suas enormes mungubeiras. Dois sujeitos sentados um defronte do outro,
jogavam silenciosamente o dominó no Café Java: Às portas da Maison
Moderne
 famílias esperavam os bonds em pé,
silenciosas, com ar de infinito aborrecimento. Dentro jogava-se bilhar. Muitas
pessoas rodeavam uma das mesas para ver jogar o presidente, que, em colete,
escanchado num ângulo da mesa, calculava o efeito das bolas. Maria teve um
estremecimento ao vê-lo. Certo o Zuza também andava por ali… Instintivamente
procurou-o com o olhar. O José Pereira tomava cerveja a um canto mais o
Castrinho.

Os bonds iam
chegando uns atrás dos outros , enfileirados.

Antes de
subir para o de Pelotas, Maria lançou um último olhar à sala de bilhares. O
José Pereira sem o Zuza! Era realmente assombroso!

Mas d’aí a
pouco o bond rodava outra vez caminho do Benfica, e
invadiu-lhe o coração uma melancolia sem causa, uma tristeza vaga que lhe deu
vontade de estar só, de voltar à casa.

Lídia veio
receber a amiga de braços abertos, muito alegre, de branco, com papelotes no
cabelo e sandálias de cetim. — Ora, até que enfim! Já não a esperava mais, Sra.
D. Maria. Noiva de fidalgo… pudera!

— Não diga
isso, minha negra. não vim há mais tempo, porque tenha andado adoentada. Tu não
imaginas…

Cobriam-se
de beijos.

Lídia
mandou-os entrar para a sala de visitas.

— Como vai
D. Terezinha, Sr. João? perguntou maliciosamente escancarando as janelas.

— Bem,
respondeu o amanuense num tom seco, pondo o chapéu sobre uma cadeira. E logo…
— Homem, isto está que nem um paraíso!

— Qual
paraíso! Está nos debicando?…

— Não
senhora, longe de mim tal pensamento. O que digo é a verdade. O Loureiro
preparou isto à fidalga.!

E ia
examinando, através dos detestáveis óculos escuros, os quadros, o papel da
sala, o piano, os bibelots, com uma curiosidade infantil,
estendendo o olhar de vez em quando até o interior da casa, disfarçadamente.

Maria
tinha-se sentado no sofá e por sua vez confirmava a admiração do amanuense: —
Sim, senhora, tudo muito bem arranjadinho, muito chique…

— Vejam só,
vejam só, a graça! repetia a outra, sentando-se ao lado da amiga.

— E o Sr.
Loureiro como ia? inquiriu Maria.

— Bem
menina, muito atarefa do com o emprego. É uma vidinha cansada, esta de
guarda-livros. O Loureiro, coitado, não tem sossego de espírito. Vive na loja,
e, ainda por cima, trabalha em casa. Um horror! Tu é que estás magrinha: estou
te achando tão abatida, tão pálida…

— Saudades
tuas…

— Saudades,
eu sei de quem…

Riram.

— Agora é
que reparo, continuou Lídia muito amável, tira o fichu e vamos ver a casa.

E
levantando-se:

— Preciso
conversar muito contigo. Já não te lembravas de mim, hein?… Sr. João tenha a
bondade de esperar um pouquinho — o Loureiro não tarde: está às voltas com a
papelada.

— Oh! minha
senhora…

João da Mata
deliciava-se a observar os quadros e as estatuetas de terracota, de mãos para
trás, como se estivesse numa exposição. Depois chegou à janela por onde entrava
um arzinho puro impregnado de essência de resedás. Defronte enchia a vista o
verde sombrio d’uma esplêndida floresta de cajueiros onde oscilavam pequeninos
pontos amarelos e vermelhos quebrando a monotonia da paisagem larga e igual,
batida de sol. O palacete azul do Loureiro perdia-se num fundo
de verdura. À direita, lá longe, na esquina de um grande sítio, passava a linha
de bonds. E que frescura! Dava vontade à gente pecar muitas vezes
por dia, como Adão no Paraíso, ali assim, naquele pedacinho do Ceará, sem seca
e sem política, entretendo relações sentimentais com a natureza agreste e
sincera.

— Bom para
se copiar um balanço, isto aqui, costumava dizer o ingênuo guarda-livros.

João pôs-se
a contemplar, com um enlevo nalma, toda essa poesia selvagem iluminada por um
sol implacável.

De súbito:

— Olá, seu
Mata, como vai você? Que milagre foi este?

Era o
guarda-livros, em chinelos, calça branca e paletó de seda amarelo.

João
voltou-se.

— Oh!…
Estava admirando a grandeza do Criador… Você assim mesmo tem gosto, seu
Loureiro, você é um danado, homem! Sim, senhor, isto aqui é um maná! Faz vir
água à boca.

— Escolhi
este local por ser muito isolado da civilização. Detesto o ruído da cidade…

— Tens
também a tua veia poética, hein?

— Qual veia
poética! Isso de versos não é comigo. Tenho até horror à poesia. O que eu quero
é sossego, o bem estar, o conforto…

— Fazes
muito bem, filho, não há nada como se viver no seu cantinho com a sua mulher e
os seus filhos, comendo com o suor do seu rosto. Eu, se pudesse fazia o mesmo —
deserdaria da capital, do centro da civilização, para viver comodamente, bem
longe de toda essa porcaria que se chama sociedade. Fazes muito bem. Quem não
quer ser lobo não lhe veste a pele.

— E você
como vai?

— Homem,
assim mesmo: nem p’ra diante nem p’ra trás, remando contra a maré… Têm-me
aparecido umas doresinhas do lado esquerdo…

— Por que
não usa você o vinho de caju?

O
guarda-livros fez a apologia do vinho de caju, citando casos de curas
assombrosas produzidas pelo uso quotidiano desse depurativo. Ele mesmo,
Loureiro, tinha-se curado radicalmente de um dartro na perna esquerda. Na sua
opinião o vinho de caju era muitíssimo superior à salsa, ao iodureto e à quanta
panaceia receita-se por aí sem resultado.

O
amanuense, porém, afirmou que seu mal era no pulmão, que já tinha consultado o
Dr. Melo.

— Não te
fies em médicos do Ceará, que dão cabo de ti. Olha o Calado, conferente
d’Alfândega: diagnosticaram-lhe lesão cardíaca e o pobre homem, coitado,
estirou a canela no Rio de Janeiro com uma enfermidade nos rins. Uns
ignorantes, seu João, uns magarefes da humanidade é o que eles são. Meta-se no
vinho de caju, que é o grande remédio para as moléstias do sangue.

Enquanto os
dois, sentados no sofá, de pernas trançadas, iam discutindo banalidades, Lídia
e Maria do Carmo comunicavam-se como boas amigas, numa intimidade franca e
expansiva, abrindo-se mutuamente em confidências de colegial felizes. Primeiro
tinham percorrido toda a casa. Lídia mostrara à outra todos os seus confortos e
todas as suas jóias desde a cama de casados, ampla e fresca, até o presente de
noivado, um magnífico jogo de pulseiras cravejadas de pérolas em forma de
serpentes, o guarda-vestidos, os vidros de essências, os chapéus, as toalhas de
labirintos, feitas no Aracati e tudo o mais que o Loureiro comprara com aquela
bondade ingênua que o caracterizava.

Maria via
tudo aquilo embasbacada, com surpresas no olhar, falando por monossílabos,
examinando com inveja cada objeto que seus olhos deparavam, achando tudo muito
bom, muito fino, de muito bom gosto. E a outra: olha isto, vê lá, aqui está o
meu relógio d’algibeira, comprado no Jaques, tu ainda não viste a minha cinta
de tartaruga; é verdade, e o meu tinteiro de prata, presente do Carvalho, e o
meu leque de plumas…

Foram sair
na sala de jantar, e aí, uma defronte da outra, em cadeiras de balanço, Lídia
entrou indiscretamente a falar no Zuza.

— Ainda o
amas muito? Então fica para a volta?…

Maria não
compreendeu a pergunta.

— Como fica
para a volta?

— Sim, de
certo, creio que vocês não se casaram…

— Não te
compreendo?

— Olha a
engraçada!… Quer um peitinho?!

— Por Deus
como te não entendo…

— Pergunto
se o casamento é quando o Zuza voltar, não te faças tola…

— Quando o
Zuza voltar?

— E
então?…

— Mas
voltar d’onde?

— Estás
hoje muito misteriosa, minha espertalhona;

Maria teve
um pressentimento: — “E o Zuza tinha ido embora?”

— Pois não
embarcou anteontem?

Olhavam-se
as duas sem se compreenderem, como se estivessem jogando o disparate.

— Para
onde?…

— Para o
Recife, ora adeus! para onde havia de ser?… A estas horas anda ele bem longe
do Mocuripe.

Maria do
Carmo empalideceu, como se acabasse de saber uma notícia funesta.

— Estás
gracejando, murmurou com a voz trêmula.

— Não
sabias?

— Não, não
sabia…

— Pois
Província deu notícia.

— Infame.

E Maria não
pode resistir à comoção que lhe sufocava, os olhos umedeceram-se-lhe de
lágrimas, e desatou a chorara com o rosto mergulhado no lencinho de rendas.

— Que é
isso, criatura? Tolice!

Lídia não
contava com o pieguismo da amiga.

Ora adeus,
o rapaz havia de voltar, que asneira! Era preciso paciência para tudo, e então?
Ela mesma, Lídia, não esperara pelo Loureiro quase um ano? Tolice…

— Deixa-te
d’isso, filha, vamos tocar piano. Estás nervosa.

Inclinada
sobre a rapariga, que soluçava como se lhe tivesse morrido alguém, Lídia
procurava carinhosamente arrancar-lhe o lenço dos olhos , alisando-lhe os
cabelos, comovida.

— Então?…
Levanta, vamos para a sala, que está mais fresco. Não sê criança, vamos…

— Sou uma
desgraçada, disse Maria enxugando os olhos com força.

— Que
desgraçada o que, estás feito criança… Isso acontece a todo mundo, criatura.
Vamos, vamos p’ra sala. Já viste o meu álbum.

Maria
levantou-se devagar, preguiçosamente, com as faces escarlates, as pestanas
úmidas, assoando-se; e arrependida.

— Não,
fiquemos aqui mesmo, depois se toca. Não foi nada — um nervoso…

— Bem, mas
não te ponhas a choramingar por aí, como uma tola. Tu sabes, a família do Zuza
não quer o casamento, quem sabe se o rapaz foi obrigado a embarcar à última
hora? Espera cartas, se ele não te escrever, então sim, podes ficar certa de
que não te ama.

Tornaram a
sentar-se.

A criada,
alta como um pau de sebo, veio saber da Sra. D. Lídia “se a
sopa era de macarrão ou de arroz”.

— De
macarrão mesmo, Tomázia, faça de macarrão, mas faça uma sopa gostosa, ouviu?

E para a
amiga:

— Não
imaginas quanto aborreço a cozinha. Há dias em que não ponho lá os pés.
Felizmente o Loureiro arranjou uma boa criada, que até já foi cozinheira do Dr.
Paula Souza, da Estrada de Ferro. É assim como viste, seca e ríspida, mas uma
excelente criada. Faz tudo a meu gosto.

— Mas,
então o Zuza embarcou, hein? tornou Maria voltando à conversa.

— Não
falemos mais nisto. estás hoje muito sentimental e eu não quero que passes mal
o resto do dia em minha casa, sabes? Não falemos mais nisto.

— Mas,
diz-me… aquilo foi uma tolice… diz-me, não o viste mais?

— Não. O
José Pereira é que está muito nosso amigo, sabes? Tem vindo aqui duas vezes
nesta semana. E que amabilidades, menina, que delicadezas! Ofereceu-se para
apresentar o Loureiro ao presidente da Província, mandou-nos outro dia um
camarote para o teatro…

— E tu,
como passas a nova vida?


Perfeitamente. Desejava antes morar na cidade, mas o Loureiro é muito
impertinente, diz que prefere isto — paciência. Agora quando vierem os filhos,
isso então… Por enquanto estou muito satisfeita. Um bocado triste isto aqui
no Benfica, mas ..vai se passando. É verdade, precisas vir passar uns dias
comigo, estás muito magra; o ar aqui pé melhor que na cidade. Tens ido à
Escola?

— A Escola
qual! Passei oito dias em casa como, uma freira, sem ir à parte alguma. creio
que não irei mais àquilo.

— Eu, no
teu caso, faria o mesmo. Agora, então, que estou casada, olha…

Fez um
gesto com as mãos.

— …
bananas, não estou para suportar desaforos d’aquela canalha. Porque tudo aquilo
é uma canalha, menina. Fazes muito bem em não pondo os pés naquela feira de
reputações. As raparigas ali aprendem a ser falsas e imorais. Conheço muito o
tal Sr. Berredo, o tal Sr. Padre Lima e mais os outros todos. O próprio
diretor… eu cá sei…

Maria
estava mais consolada ante a solicitude da amiga. Achava-a mais amável, mais
expansiva.

Foram para
a sala de visitas, de braços trançados nas cinturas, e Lídia cantou ao piano
Non m’amava, a velha romanza sentimental, que
encheu de lágrimas os olhos de Maria.

E os dias
passavam uns após outros, longos, intermináveis, como uma repetição monótona
que faz mal aos nervos.

Vieram as
festas, o Natal e o Ano Bom.

Maria do
Carmo, cada vez mais magra, sentido-se definhar dia a dia, descrente de tudo,
tinha agora uma certeza cruel que a torturava barbaramente, a certeza que
estava para ser mãe, de que muito breve o seu nome estaria completamente
desmoralizado. Sentia bulir dentro de si uma coisa estranha, que lhe incomodava
como uma perseguição, e mais de uma vez, nos seus momentos de grande desânimo,
atravessara-lhe a mente a idéia sinistra do suicídio. Sim, preferia matar-se a
assistir às exéquias de sua honra na praça pública, em todas as ruas da cidade,
em todas as bocas. estava irremediavelmente perdida, não tinha pai nem mãe, nem
alguém que lhe fosse sincero no mundo, pois bem, acabar-se-ia de uma vez, sem
ter que dar satisfação a ninguém por isso. Era um pecado, mas não era uma
vergonha, porque não teria que corar nunca diante da sociedade, como uma
criminosa, como uma culpada. Não, mil vezes, não! Outra, que não ela,
preferisse arrastar uma existência vergonhosa, a morrer fosse como fosse.

Uma ocasião
estava prestes a ingerir uma dose de láudano, mas faltou-lhe coragem. Começou a
imaginar mil coisas. Via-se morta dentro de um caixão azul, de mãos cruzadas
sobre o peito, numa sala onde havia gente chorando e um crucifixo à cabeceira
entre velas de cera que ardiam lugubremente. Que horror! recuou espantada
fazendo em pedaços o vidro de veneno.

Às vezes,
vinham-lhe resignações, um desejo místico de ser irmã de caridade, depois que
desse à luz a criança, arredar-se para sempre do mundo e ir viver na Santa Casa
de Misericórdia, curando os enfermos metida nas suas vestes azuis, debaixo de
um grande chapéu de asas, dedicar-se toda a Deus, como uma santa.

Dera para
devota; não faltava à missa aos domingos, na Sé, vestida com muita
simplicidade, e rezava sempre, com uma contrição admirável, ao deitar-se e ao
acordar, defronte da oleografia do Coração de Jesus.

Foi em casa
da Lídia que ela teve a certeza de achar-se grávida. Até então ignorava certos
segredos da maternidade, certos fenômenos da fisiologia amorosa, que nunca lhe
tinham dito, nem mesmo as companheiras de Escola, “aliás versadas em
assuntos dessa natureza”.

Tinha ido
passar uma semana com a amiga, nas festas, e um dia a Lídia disse-lhe que
“estava pronta” e que ela, Maria, havia de ser a madrinha do primeiro
filho.

Então,
aproveitando a oportunidade, Maria do Carmo quis saber como as mulheres tinham
certeza de estar grávidas.

Lídia
explicou tudo minuciosamente; a suspensão das regras, os antojos, as dores
madre e, finalmente, os primeiros movimentos do feto no útero. Depois leram
junto a Fisiologia do Matrimônio de Debay, que o Loureiro
tivera o cuidado de comprar, especialmente o capítulo — da calipedia ou
arte de procriar filhos
, o mais importante, na opinião da esposa do
guarda-livros.

— Todo meu
desejo, dizia a Lídia com o livro sobre a perna, todo meu desejo é que o
pequeno, menino ou menina, se pareça com o presidente da província. Ainda no
último baile em palácio não tirei os olhos dele.

E Maria
nesse dia, ao jantar, teve um grande enjôo da comida, cruzando o talher logo no
primeiro prato, inapetente. Não havia dúvida, “estava pronta” também
como a Lídia, e esta idéia tornou-se uma idéia fixa, de todos os dias, de todas
as horas, de todos os minutos. Ela com um filho, Jesus! Decididamente estava
perdida para sempre no conceito honesto da gente séria. Não passaria mais de
uma simples rapariga que “já teve filho”! As revelações de Lídia
tinham-lhe aberto os olhos; sentia agora perfeitamente bulir a criança, e até,
na sua alucinação, parecia-lhe ouvir os vagidos do bebê. Se fosse possível
evitar o seu desenvolvimento, matá-lo mesmo no ventre… Mas não: seria uma
barbaridade, uma malvadez; Afinal de contas era seu filho, de suas entranhas,
embora fruto de um crime…

E Maria
agoniava-se, fazendo essas considerações e mil outras conjecturas absurdas, sem
coragem de esperar o desenlace d’aquele drama secreto que ela era a protagonista.
Vivia assombrada e não raro caía num desfalecimento que lhe tirava a ação do
corpo e do espírito.

Por uma
espécie de instinto, previa todas as consequências do seu estado e pressentia o
desprezo acerbo que havia de lhe cair sobre a cabeça, implacavelmente, como uma
grande mão de ferro, esse desprezo convencional e hipócrita de uma sociedade
ávida de escândalos, cevando-se da desgraça alheia, banqueteando-se em torno da
vítima, como para torturá-la ainda mais.

E enquanto
a Lídia ganhava, com sorrisos de triunfo, as simpatias dessa mesma sociedade
que há poucos meses a maldizia, ela, Maria do Carmo, sobre cuja reputação
pairava a sombra de uma nódoa, via-se pouco a pouco ludibriada, tratada como
uma mulher a toa, num abandono completo, sem amigas, sem honra, pobre, sem pai,
nem mãe, mísera cadela que a gente enxota a pontapés de dentro da casa por
safada e indecente. 

 

12

 

O Zuza
abalara de feito numa sexta-feira, dias depois do casamento da Lídia. Por toda
a parte se comentava, com risinhos sublinhados, o escandaloso namoro com a
normalista, e o pai, o coronel Souza Nunes, escrupuloso em tudo que lhe dizia
respeito, exigiu do filho que embarcasse no primeiro vapor, sob penas severas.

— Mas, meu
pai…

— Tenha
santa paciência, vocemecê embarca ou diz porque não embarca. Fala-se em toda a
cidade nos seus namoros com a rapariga e eu não quero, não consinto em
semelhante escândalo. Sei muito bem o que isso é. Não pode ser boa mãe de
família uma rapariga educada em companhia de um safardana reconhecido, como o
tal Sr. João da Mata. Prepare as malas e deixe-se de histórias, que é perder
tempo.

Nestas
condições o estudante não teve jeito senão resignar-se ante a vontade imperiosa
do pai e anunciar ao José Pereira o seu embarque d’aí a dois dias.

— De acordo,
aprovou o redator da Província. Deves tratar quanto antes da tua
formatura e então podes voltar ao Ceará e fazer um figurão na nossa
magistratura, que já conta em seu seio bons talentos, rapazes da tua estatura,
inteligentes e resolutos.

Sentia
muito que o Zuza não se demorasse mais algum tempo, mas, enfim, como esperava
em breve tornar a vê-lo formadinho, com o seu título de bacharel, “dando
sorte” na capital cearense, que diabo! era preciso abafar a saudade e
consolar-se.

O Zuza,
porém, estava contrariado. Agora que as coisas corriam-lhe tão bem, que a
rapariga entregava-se-lhe de corpo e alma, é que o obrigavam a embarcar da
noite para o dia, sem ao menos ter tempo de despedir-se d’ela, de dar-lhe uma
beijoca, um abracinho sequer, às escondidas. É verdade que o seu amor não era
lá para que se dissesse um amor extraordinário, uma dessas paixões incendiárias
que decidem do futuro de um cristão, mas, tinha a sua simpatia por aqueles
olhinhos ternos como os de uma santa, lá isso tinha… Tão boas as palestras ao
meio-dia, na Escola Normal, enquanto as outras normalistas divertiam-se lá para
dentro à espera dos professores! Uma gentinha levada da breca, essas
normalistas ! Com que facilidade a Maria do Carmo, aliás, uma das mais
comportadas, entregava-lhe a face para beijar e escrevia-lhe cartinhas
perfumadas, cheias de juras e protestos de amor! Se fosse outro, até já podia
ter feito uma asneira… Arrependia-se agora de não ter aproveitado os melhores
momentos… Grandíssimo calouro! podia ter desfrutado a valer.

E concluiu,
preparando-se para sair:

— Ora sabem
que mais? Há males que vêm para bem. A cidade está cheia do meu nome e do nome
da rapariga, o verdadeiro é ir-me embora mesmo, sem dar satisfação a ninguém.
Meu pai é um homem de juízo. Eu podia muito bem engraçar-me deveras com a
menina para casar e depois… sabe Deus as consequências. Já se foi o tempo de
um homem sacrificar posição e futuro por uma mulher pobre. Concluo o meu curso
e sigo para a Europa, é o verdadeiro, ora adeus!

Enfiou a
manga do redingote, atabalhoado, e saiu a despedir-se dos amigos.

Toda a
cidade soube logo da viagem intempestiva do estudante. A notícia propalou-se
com a rapidez do fogo em palha, por todos os botequins, por todos os cafés e
restaurantes, avolumando-se, como se se tratasse de um grande acontecimento.

Quem o
Zuza, o filho do coronel Souza Nunes? Então não se casava com a normalista?

— Por esta
já esperava eu, diziam uns convictamente.

— E eu,
repetiam outros.

— Pela cara
se conhece quem tem lombrigas, seu Sussuarana, afirmava um sujeito reles na
botica do Travassos. Aquele tipo sempre me pareceu uma bisca. Agora a pobre
rapariga é quem fica por aí com a cara de besta, sem achar quem lhe roa os
ossos.

— Pode
dizer, seu compadre. Esses fidalgos o que querem é isso mesmo — desfrutar e
pôr-se ao fresco. Todo nosso mal é recebermos em nossas casas qualquer
sunga-nenén que chegue a esta terra. Nós, os pais de família, é que somos os
culpados.

— E o
compadre João da Mata o que pretende fazer?

— Eu sei
lá, homem de Deus, aquele é outro…

A viagem
imprevista do Zuza assumia proporções de escândalos. Nas fileiras políticas
especialmente entre os partidos contrários à administração presidencial,
alardeava-se o fato: que o rapaz era um produto da política do governo, que
todos os amigos do presidente mediam-se pela mesma bitola, que era tudo uma
súcia de bandidos de casaca, usurpadores da honra cearense, o diabo!

Os jornais
da oposição rosnaram contra a moralidade dos governistas, responsabilizando o
presidente pelo “desmembramento de caracteres” que ia pela sociedade
cearense, alcunhando-o de negro Romão. Tal dizia que “S.
Excia. era homem de costumes dissolutos, acostumado a beber cerveja nos cafés
cantantes de Paris, e a passear de braço com as cocottes no Bois de
Boulogne
“. Tal outro afirmava que ” S. Excia. sabia manobrar
perfeitamente um phateon, montava muito bem a cavalo, mas não tinha
capacidade para dirigir os destinos de um país”.

Insinuava
aquele que “a viagem inesperada de certo bacharel por formar-se era um
atentado contra os nosso brios e contra a moral pública”, aquele outro
confirmava que “a polícia devia dar caça a um tal Sr. bacharel de nome
açucarado contra quem pesavam as mais sérias acusações no tocante ao seu
procedimento para com a família cearense”.

E toda gente
sabia que se tratava do Zuza e da Maria do Carmo.

O
estudante, azucrinado por todos os lados, numa roda viva de indiretas, indagava
na Agência se o vapor já tinha chegado, esbaforido, às carreiras, doido por já
se ver barra afora, debruçado tranquilamente na amurada, a ver sumirem-se no
horizonte, como visões de uma noite mal dormida, as areias do Mucuripe.

Uff! …
Estava cansado de suportar tanta sujidade! Decididamente não voltaria ao Ceará
por preço algum. Diabo de província onde ninguém está livre da calúnia e da
descompostura pela imprensa desde que não se submeta às imposições d’uma
política de interesses pessoais.

Revoltava-se
de novo contra o Ceará, contra os costumes cearenses, contra a política,
“essa política sem ideal e sem patriotismo, que só servia de nos rebaixar,
obrigando o indivíduo a vender-se por amor de sua mulher e seus filhos”.
Que diabo tinha ele com a política para que se viesse meter com sua vida? Só
porque era amigo do presidente e filho de político? Sebo! Então não se podia
ter amigos no Ceará, decididamente. E porque tanto barulho em trono do seu
nome, porque não lhe diriam? Por causa de um simples namoro com uma pobre
normalista sem eira nem beira? Era o cúmulo!

Com que
deliciosa alegria ele ergueu-se da rede no dia do embarque, de manhã muito
cedo, as malas no meio do quarto prontas, a passagem comprada no bolso, sem
dívidas, sem compromissos, completamente pronto a deixar o Ceará. Quando vieram
lhe chamar para o banho, às seis horas, já há muito estava de pé, em chambre,
muito bem disposto, fumando o seu cigarro, passando uma vista d’olhos na maleta
do camarote onde refulgia, numa frescura capitosa, a roupa branca — ceroulas,
camisas, meias e toalhas de rosto — tudo arrumado cautelosamente, com um
cuidado feminino, umas cheirando ainda a sabão, passadinhas a ferro outras.

Ah! ia
deixando fora a Casa de Pensão. Tomou do livro que se achava sobre
a mesa e colocou-o na maleta, ao lado, para ler na viagem.

Agora sim,
não faltava mais nada. Só pedia a Deus que não chovesse, porque um embarque
debaixo d’aguaceiro era um desastre horroroso.

De feito
ameaçava chover. Era em Janeiro. Há dias caia sobre a cidade uma chuvinha
sintomática de inverno, persistente e miúda, acompanhada de trovões longínquos,
lavando a atmosfera, encharcando as ruas, alentando a população, enverdecendo
as árvores. Os longos meses de seca iam ser compensados por uma abundância de
chuvas consoladoras e refrigerantes. As manhãs iam se tornando frescas e já se
viam passar, em tabuleiros, feixes de feijão verde e hortaliças para feira.

Zuza tinha
aberto a vidraça para consultar o tempo. Os telhados, defronte, estavam úmidos
e o céu de uma cor esmaecida de safira, arqueava-se, sem uma nuvem na penumbra
da ante-manhã. Passava um fiscal da Câmara com o seu boné, jaqueta com botões
dourados, chapéu de chuva debaixo do braço, assoando-se com estrondo.

— Tudo
fechado ainda, com efeito! pensou o Zuza. Entretanto já tinha dado seis horas!

Entrou e
pôs-se a reler as cartas de Maria do Carmo, trincando a ponta do bigode.

“Meu
querido Zuza…”

Nesta
normalista jurava como não tinha ido ao Club Iracema; que era uma
calúnia o que tinham dito ao estudante..

“Tua
querida Maria”.

Zuza meneou
a cabeça com um ar de riso e abriu outra.

“Zuza
do meu coração…”

Nest’outra
Maria lamentava que o rapaz não tivesse aparecido na Escola Normal na véspera.

“Tu já
não me amas, Zuza; não queiras matar-me de saudades. Todos os dias peço a Deus
por ti e tu nem sequer lembras da tua futura esposa!”

E assim,
uma a uma, o futuro bacharel releu toda a série de cartas da normalista,
enfeixando-as depois, dobradinhas, com um cadarço.

Que horror,
meu Deus, quanta banalidade! E ela a tomar a coisa a sério! A gente sempre faz
asneiras de criança nessa idade!…

E guardando
o maço de cartas no fundo da maleta: “— Magnífico rol de asneiras para
fazer rir a rapaziada de Pernambuco.”

As horas
passavam vertiginosas. A claridade larga do sol penetrava no quarto pela janela
aberta, como um visita sem cerimônia, anunciando um dia seco e esplêndido.

Já lá fora,
na rua, recomeçava a labuta quotidiana. Um barbeiro, que morava defronte,
amolava as navalhas assobiando um trecho de fandango, com as pernas
cruzadas, de frente para a rua. Passavam burricos com cargas d’água, procurando
as coxias. Meninos apregoavam o Cearense.

José
Pereira ficara de vir almoçar com o Zuza, mais cedo que de costume, para
seguirem juntos ao ponto de embarque.

D. Sofia
andava numa faina, da sala para a cozinha, com os olhos empanados de lágrimas,
esquecendo as suas dores de útero para pensar no Zuza, no seu filho que ia
embora.

O coronel,
esse não se alterava, calmo, consultando o relógio de vez em quando, bem
humorado nesse dia, passeando o seu grande ar de homem independente.

Cerca de 10
horas entrou o redator da Província anunciando a chegada do
vapor.

— A que
horas sai? perguntou o estudante.

— Está
marcado para as duas. Em todo o caso é prudente ir mais cedo…

— Sem
dúvida. Ao meio dia, o mais tardar, devo estar a bordo. Qual é o vapor?

— O
Espírito Santo
.

— Diabo,
uma carroça!

José Pereira
entrara para o quarto do Zuza, e, sentado na larga rede de varandas encarnadas,
perna traçada com desembaraço, passeava o olhar morosamente naquele tabernáculo
de rapaz solteiro, agora em desordem, como um ninho abandonado, enquanto o
estudante acabava de fazer a toilette no aposento contíguo.

Na frente
das duas malas, uma grande e outra menor lia-se em letreiros impressos e
nítidos — José de Souza Nunes — Recife. Perto estava um
caixote com livros e o mesmo dístico no alto.

— Dez e
meia! fez o redator levando o relógio ao ouvido.

Imediatamente
surgiu o Zuza lépido, esfregando as mãos, como se saísse de um banho de
perfumes.


Prontinho, disse ele.

E
misteriosamente:

— Então,
com quê a canalha tem-se divertido à minha custa, hein?

— Como
assim?

— Oh!
homem, inventaram por aí que eu deflorei a Maria do Carmo. Não leste o Pedro
II 
e o Cearense?

— E tens
culpa no cartório?

— Não, c’os
diabos, mas isso é um horror! Ninguém pode mais gracejar, ninguém tem mais o
direito de chegar-se a uma rapariga honesta sem intenções malévolas. Cada vez
me convenço mais de que isso é uma terra selvagem, seu José Pereira! Isto é um
país de bárbaros. Vocês da imprensa devem civilizar este povo, devem ensinar a
esta gente a pensar e a ter juízo, do contrário…

— Mas, fala
a verdade, interrompeu o outro com um ar de riso malicioso; tu nunca…

— Palavra
como não! É verdade que dei alguns beijos, mas o nosso namoro nunca foi além
disso, mesmo porque, tu compreendes a minha responsabilidade… Depois, só fui
a casa do padrinho umas três vezes, no máximo. Calúnia, simples calúnia…

— É. Este
povo é muito indiscreto…


Indiscreto não — alcoviteiro, mentiroso, ignorante e besta, é o que ele é.

E depois de
uma pausa:

— Bem,
vamos almoçar que deve ser hora.

Uma vez
instalado a bordo, o seu camarote do lado do mar, o futuro bacharel, de
binóculo a tiracolo e boné, respirou a todo pulmão e foi assistir da tolda a
manobra do vapor que suspendia o ferro.

Eram duas
em ponto. O tempo estava magnífico. Ventava forte e o mar em ressaca atirava
sobre o quebramar uma toalha de espuma que se desmanchava em poeira tenuíssima
irisada pelo sol. A cada golpe do mar havia uma algazarra na praia coalhada de
gente. Escaleres navegavam para a terra puxados a remo, destacando a bandeira
do escaler Capitania do Porto.

Zuza
assestou o binóculo, e, sacando do lenço, correspondeu aos acenos que lhe
faziam de um escaler que se afastava. sentia agora uma ponta de saudade a
espiaçar-lhe o coração. Através da confusão que reinava no seu espírito, como
um ponto luminoso por entre um nevoeiro denso, via mentalmente e nitidamente a
cabeça branca de D. Sofia, de sua boa mãe, e só então sentiu que uma coisa
prendia-lhe ao Ceará, atraía-lhe a essa terra que ele tanto detestava. Não
sabia mesmo porque, por índole, por sistema, por pedantismo.

— Sim,
queria mal ao Ceará, mas não podia esquecer nunca o Ceará, porque nele ficava a
sua velha que ainda há pouco, abraçando-o entre lágrimas, metera-lhe no bolso
uma nota de cem mil réis e cheirando a fundo de baú.

Boa e santa
velhinha! pensava ele, e já não enxergava coisa alguma, porque os vidros do
binóculo estavam úmidos e enevoados.

Depois,
quando o vapor singrava em direção ao Mucuripe, começou a examinar a costa
cearense, como se nunca a tivesse visto de fora, da tolda de um navio. Viu
passar diante de seus olhos arregalados todo o litoral de Fortaleza, desde o
farol do Mucuripe até a Ponta dos Arpoadores…

Primeiro o
farol, lá muito longe, embranquecido, cor de areia, ereto, batido pelos ventos;
depois a extensa faixa de areia que se desdobra em ziguezague até a cidade; a
praia alvacenta e rendilhada de espumas. Em seguida o novo edifício da
alfândega, em forma de gaiola, acaçapado, sem arquitetura, tão feio que o mar
parece recuar com medo à sua catadura.

Noutro
plano, coqueiros maltratados pelo rigor do sol, erguendo-se da areia movediça
que os ameaçava soterrar, uns já enterrados até a fronde, outros inclinados,
prestes a desabar; o torreão dos judeus Boris, imitando a torre de um castelo
medieval, cinzento e esguio; o seminário por trás, no alto da Prainha, com as
suas torres triangulares; as torres vetustas e enegrecidas da Sé; o Passeio
Público, com seus três planos em escadarias; a S. C. de Misericórdia, branca,
no alto; o Gasômetro; a Cadeia; e por ali fora o arraial Moura Brasil, invadido
pelo mar, reduzido a um montão de casebres trepados uns sobre os outros…

— Sim,
senhor, pensou o Zuza, bonito aspecto para se ver de longe, barra a
fora…”

Dentro em
pouco o vapor começou a tombar desesperadamente. Fortaleza já não era mais do
que uma pintura microscópica diluindo-se muito ao longe na tinta alvacenta do
horizonte…

… E só
agora, três dias depois da partida do Zuza é que Maria do Carmo sentia a dor do
seu abandono, ao mesmo tempo que adquirir a certeza esmagadora de que estava
para ser mãe; sim, para ser mãe de um filho espúrio, concebido num momento de
desvario, mal acordada de um pesadelo horrível. Era de mais, era! Se dissesse
que ela tinha deixado seu quarto para ir ter à rede do padrinho, oferecendo-se-lhe
como uma fêmea desavergonhada vá; era justo que caísse sobre si toda a cólera
dos homens; mas, ao contrário, ele, o infame do padrinho, é que fora alta noite
ao seu quarto, provocar-lhe, impor-lhe, para bem dizer, uma coisa d’aquelas, e
ela, coitada, tão inexperiente, tão tola que nem ao menos tivera coragem para
dar um escândalo, expulsando-o, como se expulsa um ladrão, dando-lhe com a mão
no focinho, embora com sacrifício de sua vida.

Chegavam
aos seus ouvidos, indistintamente, como um surdo rumor de cochichos, os ecos da
maledicência. Na Escola Normal as outras raparigas atiravam-lhe indiretas
fortes, que ela não tinha ânimo de repelir como dantes.

Viam-na
triste, para um canto, muito desconfiada, com grandes olheiras. Todas notavam a
alterações de sua fisionomia, e certo desleixo no trajar, que faziam dela uma
outra Maria do Carmo, albardeira e insociável, inimiga da convivência das
companheiras, egoísta, intratável.

— Aquilo é
uma coisa… comentavam maliciosamente as normalistas. A Maria viu alma d’outro
mundo, não é possível.

— Que o
quê, menina, são desgostos de família. Dizem que o padrinho a maltrata.

— Quem, o
João da Mata? Um grandíssimo miserável. D’aí talvez seja isso mesmo.

— Não se
iludam, meninas, insinuou a zarolha, a Maria ficou assim depois que o Dr. Zuza
foi-se embora. Ela d’antes era até uma rapariga muito alegre, vocês não se
lembram?

— Coisas
deste mundo, mulher, coisas deste mundo. Ninguém deve fazer mau juízo das
pessoas.

O diretor
um dia maltratou-a. Ao chegar viu desenhada na pedra da aula, a giz, uma
obscenidade. Ficou furioso, disse muitas grosserias às raparigas e quis saber
quem era a autora de semelhante indecência.

Silêncio
profundo. Ninguém se atrevia a responder.

— Tenham a
bondade de dizer quem fez isto! repetiu o diretor, e, de relance, viu, na
última fila, um dedo que apontava para Maria do Carmo.

— Ah! foi a
senhora, D. Maria do Carmo?

Maria
empalideceu.

— Eu, não
senhor!

— Tenha a
bondade, faça o favor de vir apagar isto.

— Mas não
fui eu, Sr. Diretor, tornou ela, erguendo-se.

— Embora,
venha sempre: a senhora paga pelas outras.

— Não
senhor, não posso responder por uma falta que não cometi.

— Não vem?

— Não
senhor…

Toda a aula
estava voltada para Maria do Carmo, medindo-a de alto a baixo, como se vissem
nela uma transfiguração extraordinária.

— Então a
senhora não vem? repetiu o homem, fazendo uma carranca medonha.

— Não
senhor…

— Retire-se
da aula! fez ele apontando a porta. A senhora é uma insubordinada, desobedeceu
à primeira autoridade deste estabelecimento. Vamos, retire-se!

Houve um
silêncio grave, e Maria, tomando os livros, séria e resignada, sem olhar para
as colegas, retirou-se taciturna, ouvindo atrás de si o atrito da esponja na
pedra.

E tudo mais
era assim, sucediam-se as contrariedades como um castigo. Crescia-lhe na alma o
desgosto, como uma nuvem que sobe no horizonte vagarosamente alastrando pouco a
pouco toda a vasta cúpula do céu para se desfazer em chuva caudalosa. Tinha
pena de não ser como as “outras mulheres”, indiferente a tudo, até nos
momentos mais difíceis da vida. Vinham-lhe às vezes alegrias intermitentes, uma
resignação infinita animava todo seu ser, e dispunha-se a enfrentar todas as
consequências do seu desatino com uma calma heróica, sem dar mostra da mais
leve tristeza.

Nesses
momentos abria-se em infusões de ingênua bondade para com D. Terezinha,
procurando-a, puxando conversa, oferecendo-se-lhe para pentear o cabelo,
gabando-lhe os vestidos, com uma humildade de escrava. Mas a madrinha, seca e
indomável, aborrecia-se com aquilo, enfadava-se, sempre de cara fechada,
respondendo por monossílabos às perguntas da afilhada. Quando amanhecia mal
humorada, com as suas desconfianças, inquisilava-se demais. — “Deixe-me,
criatura, deixe-me, por amor de Deus, oh!” Maria não dizia palavra,
recolhia-se ao silêncio do seu quarto a costurar ou a ler o Almanaque
das Senhoras
 por desfastio, para se distrair.

Entretanto
João da Mata progredia no vício de beber aguardente. Andava agora muito chegado
ao Perneta e ao Guedes, de quem se dizia amigo do coração.

A bodega do
Zé Gato continuava a ser o ponto de suas reuniões, onde se demoravam às vezes
até alta noite a jogar a bisca num esquecimento absoluto de família e de
deveres, saturados de álcool,, lívidos à luz de um miserável candeeiro de
querosene. O triste ordenado que lhe pingava no bolso em cada fim de mês
escorria-lhe por entre os dedos como azougue, transformando-se em fichas na
banca de jogo e desaparecendo como por encanto, sem que ele próprio soubesse
disso.

Quantas
vezes sucedia entrar em casa sem um real no bolso para mandar à feira no dia
seguinte!

Era preciso
então tomar dinheiro a juros aos agiotas, correr toda a cidade atrás de alguém
que lhe emprestasse alguns mil réis até ao fim do mês, contar as suas
necessidades, as pequeninas misérias domésticas, inventar situações incríveis.
Porque os seus “amigos do coração”, o Perneta e o Guedes da Matraca,
também eram pobretões e perdulários, sentiam muito as necessidades do Janjão,
mas não podiam lhe ser úteis por forma alguma, senão dando-lhe a ganhar no jogo
quando a sorte o protegia.

— É. Eu bem
sei que vocês também têm família como eu e precisam também. É o diabo, é o
diabo.

D’aí as
dissensões, os conflitos, em casa, com a mulher por causa de dinheiro. Ele já
não conseguia impor a D. Terezinha a sua autoridade de chefe da casa, como
d’antes; ao contrário, agora suportava-lhe as impertinências, as saraivadas de
impropérios, com uma passividade de animal submisso.

— Tenha
vergonha, homem de Deus, tenha vergonha, que você já não é criança, dizia-lhe
nas bochechas, quase lhe abanando o queixo. Olhe para as barbas que tem na
cara, porte-se como gente!

Ele ouvia
tudo aquilo sem dizer água vai, caladinho, como um prego, murcho, impotente.

Como os
tempos mudam! Há poucos dias era ele o forte, o manda-chuva naquela casa;
bastava um olhar seu, por cima dos óculos escuros, para que todos, D.
Terezinha, Maria do Carmo e a Mariana, estremecessem com medo, porque sabiam de
quanto ele era capaz nos momentos de cólera; agora não, tinham-se trocado os
papéis; bastava um olhar de D. Terezinha para que ele desse-lhe as costas
disfarçadamente para evitar barulho.

— Basta,
basta, basta! costumava dizer quando a mulher dirigia-se para ele com os olhos
chamejantes, de mãos fechadas.

E
escafedia-se até ao fundo do quintal para não lhe ouvir os disparates.

Estava
magro, muito magro, e queixava-se de dores nos intestinos.

Diabo de
Repartição não lhe deixava tempo para nada. Era um trabalhar sem descanso,
sentado a uma banca, das nove às três, copiando ofícios, riscando papel estupidamente.
Se ao menos tivesse quem lhe arranjasse com o ministro uma aposentadoria ainda
que fosse com a metade do ordenado… Mas qual! tudo uns políticos sem
importância, uns legalhés que iam para a Câmara proferir barbaridades, a
repetir que o país estava à beira d’um abismo e nada mais. Até estimava que lhe
demitissem do emprego, porque iria fazer pela vida noutra parte, e escusava
perder tempo a emporcalhar papel, para no fim do mês — tome lá seu ordenado,
uns míseros vinténs que mal chegavam para o boi. Uma desgraça.

De resto a
Maria não lhe dava muito cuidado. A princípio ainda lhe fizera uns carinhos,
dera-lhe uns cortes de chita e um rico vestido de cassa da Índia para agradar,
porque também seria uma ingratidão vê-la para um canto a se acabar, magra e
amarela que nem uma lesma. Achava até que tinha feito muito. Outros havia
piores que ele, ora!

— Meu bem,
tristezas não pagam dívidas. É andar, é andar sem olhar para trás.

Mas quando,
um belo dia, Maria declarou-lhe positivamente que estava prenha, que sentia
“uma coisa” bolir-lhe na barriga, João estremunhou. — Que se há de
fazer, filha? Agora é ter paciência. Foi uma fatalidade, foi uma fatalidade. Há
de se arranjar a coisa do melhor modo possível. Vais aí para qualquer sítio,
fora da cidade, e ninguém saberá de coisa alguma. Dá-se tanto d’isto…

— E depois?
murmurou Maria mordendo a ponta do lenço, cabisbaixa.

— E depois?
E depois… ora adeus! e depois dá-se a alguém para criar o trambolho e tu
voltas à tua santa vidinha.

Maria
soluçava baixo, fungando numa crise nervosa.

— Já te
pões a chorar como uma criança! Tolice! Estou a dizer-te que o caso é muito
simples…

Uma tarde
em que o Mendes, o juiz municipal e a mulher, tinham ido passear ao Trilho,
João da Mata entrou alvoroçado, sem fôlego, com uma notícia a escapulir-lhe da
boca.— Sabem quem está muito doente?

Todos
voltaram-se surpreendidos, com o olhar cheio de curiosidade. — Não, ninguém
sabia. Algum conhecido?

— O
presidente, o Dr. Castro, teve um ataque há um pouquinho. A rua está cheia. Diz
que está bem mal.

— De quê,
menino? interrogou o juiz muito admirado e já nervoso.

Houve logo
um interesse comovido nos circunstantes.

E João,
sentando-se, sem apertar a mão aos Mendes, pálido, limpando a testa, foi
dizendo o que sabia: — Muita gente defronte do palácio. Tinham sido chamados
todos os médicos, e todos, menos o Dr. Melo, eram de parecer que se tratava de
um caso de febre amarela. O presidente tinha acabado de jantar e lia à
cabeceira da mês a correspondência do sul chegada naquele momento, quando
começou a sentir-se mal — embrulho no estômago, tonteiras, calafrios.
Imediatamente, ergueu-se, lívido, e, ao dar o primeiro passo, caiu
fulminado!…

— Ai! fez
D. Terezinha cruzando as mãos sobre o regaço. E depois?

— Depois
conduziram-no à cama, sem sentidos, vomitando uma coisa preta…

João fez
esgar de nojo. Todos cuspiram.

— … e
quando os médicos chegaram já o encontraram sem pinga de sangue no rosto,
vomitando ainda golfadas de bílis sobre a esposa que o amparava, coitada, nem
sei mesmo como…

— Coitado!
lamentaram num tom arrastado as duas senhoras.

Maria do
Carmo ouvia silenciosa e compungida a narração do padrinho, ao lado do piano,
com os olhos úmidos e o ar assustado.

— Mas,
João, isto é sério? perguntou o juiz municipal erguendo-se com os braços
cruzados, estupefato.

— Oh!
senhor, pois eu havia de inventar uma coisa d’esta? Admiro até como vocês ainda
não sabiam, porque a rua está cheia. Eu soube ali, na bodega do Zé Gato.

Fez-se um
silêncio repassado se suspiros.

— Um homem
tão forte, vendendo saúde! fez o juiz.

— Mas bebia
muito, coitado, tornou João da Mata, respirando com força. Era homem que não
bebia água.

— Por isso
não, atalhou D. Terezinha. Que asneira! Tanta gente se embriaga todos os dias e
não lhe sucede nada.

— D’aí pode
ser que escape, murmurou D. Amélia; não queiram sepultar o homem em vida.

— Pode ser.

— Pode ser,
repetiu o juiz. A ciência faz milagres.

— Que
dúvida!

Então o
Mendes tomando o chapéu, muito impressionado, as mãos trêmulas:

— Bem,
vamo-nos Amélia. esta vida, esta vida!

Era cedo,
insistiu D. Terezinha triste. Mas os Mendes pretextaram afazeres, lembraram as
crianças que tinham ficado com a criada e despediram-se.

Maria do
Carmo passou a noite nervosa com insônias, sentida com a doença do Dr. Castro,
muito apreensiva.

Não podia
se conformar com a idéia da morte do presidente, o homem da moda, o
“querido das moças”, o grande amigo do Ceará, que tantos benefícios
fizera a esta província, mandando construir açudes no sertão, reconstruindo o
Passeio Público, ativando as obras do porto, facilitando a emigração,
prodigalizando esmolas, e, finalmente, introduzindo em Fortaleza certos
costumes parisienses, como por exemplo, o sistema de passear a cavalo a chouto,
de aparar a cauda aos animas de sela.

Lembrava-se
as qualidades pessoais do fidalgo paulista, o seu modo de falar num sotaque
aportuguesado, muito moderado na conversação íntima, as suas maneiras
delicadas, os seus belos dentes branquejando sob um bigode sedoso e bem
tratado. Uma vez, no baile oferecido à oficialidade do cruzador “1º de
março” dançara com ele uma quadrilha, por sinal bebera muita champagne nessa
noite a ponto de ficar um pouco tonta da cabeça. Coitado! uma alma boa. É
verdade que tinha demitido o Pinheirão mais os filhos, deixando-os na miséria,
mas no dia seguinte mandara-lhe um envelope com cinquenta mil réis. Tudo por
causa da política; a política é que o fazia mau. Tinha rasgos de generosidade
fidalga, lá isso era inegável, tanto assim que um dia dera ao negro Romão, um
negro sujo coma aquele, cinco mil reisinhos. Era uma pena se morresse, coitado,
havia de fazer uma falta tão grande. … — Compadecia-se como se fosse seu
parente. Balbuciou uma promessa às almas do purgatório e só muito tarde, pela
uma hora da manhã, conseguiu adormecer.

Ao outro
dia procurou saber logo como ia o presidente. As notícias eram cada vez mais
desagradáveis. As janelas do palácio continuavam fechadas e os transeuntes
olhavam contristados o casarão ao redor do qual pairava uma melancolia lúgubre.
Os boatos multiplicavam-se penetrando todas as casas como um vento de desgraça.
Província suspendeu a publicação por condolência, e os
jornais da oposição fizeram uma pausa nos seus ataques à administração
provincial.

As
filhinhas do presidente estavam em casa do José Pereira, na rua Major Facundo,
duas crianças louras e inteligentes, que falavam francês, uma nascida em Paris,
e outra no Rio de Janeiro. Um cabo de ordem, arrastando o chanfalho, passava a
toda pressa em direção ao telégrafo. O espírito público começava a inquietar-se
com a sorte do presidente, e os próprios adversários políticos enchiam-se de
penas concentradas.

Pela noite
desabou um formidável aguaceiro e toda a população, por assim dizer toda,
aguardava ansiosa, dentro da casa, ao sussurro da chuva que caía fora, sacudida
pelo vento, notícias sobre o estado do Dr. Castro. Maria, como toda a gente
sentia um peso no coração ao lembrar-se daquele homem sadio e robusto, a seus
olhos a síntese da mais requintada elegância. que tanto amara o Ceará, e cujo
nome andava gravado a canivete até nos troncos dos cajueiros, nos sertões por
onde tinha andado, tão moço ainda e já às portas da morte, acabando-se como
qualquer mortal! — A Providência às vezes era injusta com os homens: poupava um
ente abominável como o padrinho e um pelintra desleal como o Zuza, para
aniquilar, enquanto se esfrega um olho, um homem da força do Dr. Castro,
“útil ao país e benfeitor da humanidade!”

Indignava-se
com essa preferência injusta das cortes celestes , e, de si para si, concluía
que não valia a pena uma pessoa ser honesta, trabalhar noite e dia, dedicar-se
a uma coisa nobre, engrandecer-se aos olhos da humanidade para um belo dia —
toma! vá para a cova que é seu lugar! Uma coisa estúpida a vida, afinal de
contas.

Entretanto
outros viviam aí a cometer mil desatinos, a roubar, a assassinar, a iludir os
incautos e tinham vida para um século inteiro, livre de congestões, de febre
amarela e de quanta doença há.

Acordou
cedo e foi pôr-se à janela à espera de alguém que lhe desse notícias do presidente.
O céu estava carregado de nuvens compactas e neblinava. A casa da viúva
Campelo, defronte, estava fechada; a viúva tinha ido passar uns dias com a
filha no Benfica. Passou um empregado da Estrada de Ferro, condutor de trem,
com as calças arregaçadas, comendo pão. Maria chamou-o: — O Sr. sabe me dizer
como vai o presidente?

— Faleceu
ás duas horas da madrugada, respondeu o sujeito, mastigando, indiferente.

— Obrigado,
disse Maria, empalidecendo, e entrou imediatamente batendo o postigo. —
Coitado! foi dizendo pela casa, com grade mágoa na voz. Coitado! Que pena!

— Que foi?
perguntou o amanuense, que subia o corredor em ceroulas.

— O
presidente morreu!…

João parou
assombrado como se lhe tivesse caído um raio defronte.

— Morreu,
hein?!

— Disse-me
agora mesmo um empregado da Estrada de Ferro.


Realmente! E vá gente se fiar na justiça divina! Morre um homem d’aqueles, da
noite para o dia, como qualquer bêbedo!

E lá foi
resmungando contra Deus e contra os padres.

Os sinos da
Sé começaram a dobrar a finados. Aumentava a chuva, que já se ouvia chiar nas
calçadas como uma panela fervendo.

Maria
entrou para o seu quarto, aflita. Essa manhã foi para ela de tristeza e
desânimo. Acudiam-lhe à imaginação lembranças extravagantes, idéias lúgubres,
como aves negras que pousassem de chofre num arvoredo, alvoraçadas, cantando
sinistramente. Caía em abstrações prolongadas em que se punha a contar os dedos
maquinalmente, como se fosse ensandecer. Apoderou-se dela um medo pueril, um
inexplicável pavor das coisas sombrias, um supersticioso receio d’almas d’outro
mundo, um mal estar, um quer que era que lhe trancava a respiração, que lhe
oprimia o peito.

Procurava
disfarçar as apreensões, arrumando os trastes do quarto, mexendo nos baús, numa
inquietação crescente, num vira-e-mexe cada vez mais açodado, abrindo e
fechando gavetas, atarantada, com o coração aos pulos.

— O
enterro! o enterro! bradou à porta a Mariana que ia às compras.

Todos
correram à janela. D. Terezinha, na precipitação, deixou cair um copo, que se
esfarinhou; e João da Mata esquecera os óculos, enfiando as mangas da camisa.

Maria
arrancou como uma louca, dando um encontrão na mesa do centro da sala de
visitas.

Continuava
a chover, agora devagar, com uma insistência importuna, o sol a espiar por trás
d’uma nuvem, frio, indeciso, mandando, com um supremo desdém pelas coisas cá de
baixo, uma réstia de luz tímida e complacente sobre a manhã úmida.

O enterro
do presidente passava na esquina, caminho do cemitério.

Maria do
Carmo assistia com a respiração suspensa e um nó na garganta o desfilar do
préstito, o caixão levado por seis homens de preto, coberto de galões dourados
debaixo da chuva miúda, o acompanhamento — uma comparsaria dispersa de gente de
todas as classes de chapéu-de-chuva aberto, marchando resignadamente ao som da
música do batalhão que tocava à funeral.

Os padres
já tinham passado, na frente, com os seus acólitos, muito graves, olhando para
o chão evitando as poças d’água. Um carro seguia atrás, todo fechado, devagar.

E a chuva a
cair e a música a tocar o funeral, deixando por onde passava uma tristeza vaga
que lembrava um dia de finado entre as sepulturas…

D.
Terezinha enxugava os olhos com a aba do casaco e João da Mata pigarreava
disfarçando a comoção.

Maria ficou
à janela vendo passar o resto do acompanhamento, sujeitos sem paletó, de chapéu
de palha de carnaúba, outros sem chapéu.

— Que
triste, meu Deus!

E entrou
muito inquieta, com um frio na medula, as pupilas dilatadas, pálida, toda
trêmula. Mas no meio da sala perdeu o equilíbrio — escureceu-lhe a vista,
tropeçou numa cadeira e estendeu-se no chão pesadamente, como morta.

— Chega! A
Maria teve uma coisa! gritou D. Terezinha, correndo para a filhada. Chega,
Janjão, chega depressa!

— A água
Florida, a água Florida, em cima da cômoda!

O amanuense
precipitou-se pelo corredor a grandes passadas, atônito, aterrado, sem saber o
que fizesse, seguido pelo Sultão que lhe tomou a frente
ganindo.

— Jesus, o
que foi?!

— Sei lá,
uma coisa que lhe deu de repente… Segura aí nos braços…

E ambos,
João da Mata e a mulher, pálidos, muito vexados, conduziram a rapariga para a
alcova, arrastando os pés com o peso.

— Chega
depressa água Florida, mandou João abando o rosto à doente

D.
Terezinha trouxe a garrafa e começou logo o afanoso trabalho de umedecer a têmporas
de Maria, dando-lhe a cheirar o líquido, friccionando-lhe a testa com força,
numa aflição.

— Um copo
com água, um copo com água, Janjão.

Maria deu
um grande suspiro, entreabrindo os olhos, estendida no comprido na larga cama
de jacarandá.

— Cheira mais,
cheira mais, recomendava D. Terezinha, agora mais aliviada.

Maria
murmurou que estava melhor.

— Já pode
se sentar? perguntou o amanuense, chegando o copo. Vá, faça um esforçozinho…
Upa!

— Não seria
bom chamar o médico? lembrou D. Terezinha.

Maria fez
com a mão que não, e com a voz fatigada, apoiada ao espelho da cama: —
“Não era preciso, já estava boa…”

— Sentes
alguma coisa? quis saber o amanuense. Se sentes, dize.

— Apenas
uma dorzinha aqui… — E indicou o flanco esquerdo.

— Bom, bom,
bom, quietinha…

E desde
esse dia aumentaram as suspeitas de D. Terezinha, que observava agora os
menores movimentos da afilhada, insistentemente, examinando-lhe a roupa usada,
medindo-lhe o volume da barriga, perseguindo-a com os olhos.

— Isto,
isto ainda acaba mal! pensava ela. 

 

13

 

Em poucos
meses o estado interessante de Maria do Carmo foi carecendo de cuidados mais
sérios, e João da Mata assim o julgou, tratando logo de arranjar uma casa, um
sítio nos subúrbios, onde ela pudesse tranquilamente e sem escândalo, alijar a
carga, desembuchar a criança. Mas onde e como poderia ele dispor as coisas do
melhor modo, sem despertar a curiosidade pública? Esta era a grande questão que
afligia o amanuense, cada vez que seu olhar vesgo descia sobre o ventre da
afilhada, vendo-o crescer dia a dia, tomar uma forma esférica iniludível,
arredondar-se, arquear-se para fora numa convexidade característica e
esmagadora. — “E agora?” interrogava-se ele, passando a mão na calva.
O caso ia se tornando grave, urgia fazer qualquer arranjo logo e logo, antes
que a Teté rebentasse por aí em quatro pedras a acusá-lo violentamente,
atirando-lhe em rosto a sua infidelidade, o seu crime, a sua pouca vergonha. A
rapariga engordava a olhos vistos: só um cego não veria dentro d’aquela
redondeza uma criatura humana em formação.

Toda ela —
o ventre, os seios, os braços, o rosto — inchava, adquiria um cunho
extraordinário de maturidade precoce. Notavam-se-lhe agora, asperezas na pele,
uma cor seca de folha sazonada e certo ar amolentado que se traduzia numa
sonolência infinita e na prematura tendência para o abandono de si mesma.

Com efeito,
Maria, apenas com quatro meses de grávida, tinha perdido muito da antiga
expressão insinuante e viva de sua fisionomia. Na idade em que a mulher, como a
flor, em plena exuberância dos tecidos, desabotoa numa singular alacridade de
cores, toda frescura e beleza, ela, que não transpusera ainda os dezoito anos,
olhava a vida com uma indiferença, única, estiolando ali assim entre as paredes
d’aquela casa sem ar e sem luz, esperando resignadamente o seu fim. Queria ver
até quando duraria aquele estado de coisas, até onde a queriam levar!

Já não
chegava à janela com vergonha de ser vista pela vizinhança e pelos conhecidos
— refugiara-se, como uma culpada, no ádito misterioso do seu
quarto, egoisticamente, sem ao menos lembrar-se da Lídia que não a esquecia e
que lhe mandava de onde em onde presentezinhos, recados e abraços.

E João
inquietava-se, procurando meio de evadir-se da alhada em que se metera com
risco de um escândalo medonho!

Havia um
mês que Maria do Carmo caíra com o ataque no meio da sala. D. Terezinha
ruminava sutilidades para descobrir uma sombra sequer, um vestígio que
confirmasse de uma vez as suas suspeitas. Batera todos os aposentos, todos os
cantos da casa, indagara da lavadeira se não vira alguma nódoa, alguma mancha
na roupa da afilhada; acordava vezes sem conta, alta noite, prestando ouvidos a
qualquer ruído, por mais leve, e nada! absolutamente nada! Faziam-lhe espécie
os modos reservados de Maria, esse impenetrável desgosto que a punha triste,
com um ar esquisito de “galinha choca”. Alguma coisa havia, por
força, era capaz de jurar.

D.
Terezinha nunca mais dormira com João da Mata e era só quem passava bem naquela
casa; até estava criando banha no pescoço. Pudera! Uma vida relativamente
calma, senhora absoluta de seu nariz, ganhando um dinheirão com o negócio de
rendas que mandava para o norte pelo despenseiro do vapor, tudo corria-lhe às
mil maravilhas. Queria ter um pesinho para rusga, isso queria. E se ainda
“fazia vida” com o Janjão, era por condescendência, para não dar
escândalo; achava feio uma mulher deitar-se com um homem e depois — passe bem —
abalar por esse mundo afora, como uma doida, atrás de aventuras. Não era mulher
para essas coisas; o que queria era o seu descanso — comer bem, dormir bem,
passar bem; não admitia que a fizessem de tola.

Tinha uma
amiga sincera — a Amélia, senhora do Dr. Mendes. Essa, sim, sabia-lhe apreciar
as virtudes, dar-lhe importância, tratá-la com consideração, mesmo porque ela,
Terezinha, trabalhava para ganhar a vida honradamente.

— Você é
tola, Teté, a gente não deve se matar, dizia-lhe a mulher do Dr. Mendes.

— Lá isso é
verdade, mas você o que quer? É fado, é mania…

As
conhecidas admiravam-lhe a boa disposição para o trabalho. Sentava-se à máquina
às dez horas do dia, cabelos úmidos sobre a toalha de banho estendida nos
ombros e labutava três, quatro horas consecutivas a cantarolar modinhas,
costurando para o fornecedor da polícia.

E sempre
gorda, sadia e forte!

— Mulher
mouro! dizia João da Mata aos amigos.

Uma tarde,
ao voltar da rua, o amanuense entrou alegre, como se tivesse tirado a sorte
grande na loteria, saboreando um charuto mau que lhe dera o Guedes. Vinha um
pouco toldado.

— Olha esse
jantar! bradou para dentro, atirando fora aponta do charuto. E começou a cantar
desafinadamente os Sinos de Corneville, então muito repisados

 

Vai,
marinhei…ro,

vôa ligei…ro,

velas à brisa

no espelho do mar

E logo:

Nunca
percas a esperan…ça,

Quando houver temporal,

que há de ver a bonan…ça,

e depois o … final

 

— À cena a
Naghel, à cena a Naghel! bradava o amanuense batendo as palmas com fúria.

— Ainda
mais esta! resmungou D. Terezinha na sala de jantar.

— Olha essa
lambugem! tornou João enfiando pelo corredor.

Estava num
de seus dias felizes. Foi até à cozinha acompanhado pelo Sultão que
lhe pulava às pernas, ganindo alegre. Mariana mexia o pirão escaldado de
farinha num velho alguidar de barro, com a saia arrepanhada na cintura, o
casaco desabotoado, exibindo como de costume, o seu detestável colo nu.

— Como vai
isto, ó estafermo! rosnou o amanuense, espalmando a mão em cheio nas ancas da
rapariga.

— Sô
Janjão… fez esta pudicamente.

E João
trauteou, fazendo festa ao cão.

 

Mariana diz
que tem

sete saias de veludo…

 

— Tenha
modos, homem de Deus! repreendeu D. Terezinha. Tenha juízo, dê-se a respeito!

— É boa!
Então já não de pode ser alegre?! Ora muito obrigado!

Durante o
jantar declarou que a Maria, no dia seguinte, domingo, ia passar uma semana no
Cocó, em casa da tia Joaquina, conhecida pela velha dos cajus.

— Faz ela
muito bem, aprovou D. Terezinha, com enfado, cortando o cozido.

E João,
muito meigo, olhando por cima dos óculos:

— Você
compreende, ela anda adoentada, teve outro dia aquele ameaço… não tem apetite,
e o médico, o Dr. Azevedo, disse-me a mim que aquela gordura não val’nada, é
toda postiça, é uma gordura falsa… Sim, a rapariga coitada, precisa tomar o
seu leitinho, descansar um pouco…

Maria, que
se sentara defronte da madrinha, não pode ocultar seu embaraço. Fez-se
escarlate, e muito submissa:

— É se a
madrinha consentir…

— Ainda
mais esta! Podes ir até p’ra China quanto mais p’ro Cocó!…

— E tu, não
queres ir também? perguntou João com certa frieza.

Mas D.
Terezinha torceu o beiço com desdém:

— “Só
se estivesse doida, credo”.

— Vá você
com sua afilhada.

— Ah! se eu
pudesse passar uma temporadazinha fora… suspirou João. Mas qual, minha filha,
não posso faltar um só dia à Repartição, que o chefe não venha logo com os seus
arrebatamentos que o governo não sustenta vadios, que o empregado público deve
ser infalível como o papa, e tanta asneira!… Coitado, já está velho e
suspira, como eu, por uma aposentadoria.

Houve um
ligeiro silêncio.

— Pois é
isto, tornou o amanuense limpando o bigode com a toalha. Está ouvindo, Maria?
Prepare o seu bauzinho, a sua roupinha. Amanhã depois da missa da madrugada. É
p’ra lá do Outeiro, na Aldeola, um sitiozinho, um lugar muito bom, muito
saudável. A casa é que é pobre, mas, ora! pobres somos nós também…

Os talheres
batiam nos pratos com força. João falava mastigando, com a boca cheia, cortando
o invariável e sediço lombo assado, com uma voracidade espantosa.

Galinhas
debicavam debaixo da mesa, cacarejando. Sultão muito
rechonchudo, sentado nas patas traseiras, orelhas em pé, alongava o olhar
súplice para cima, à espera que lhe caísse um osso ou uma pelanca. Ouvia-se o
miar desesperado de um gato na cozinha. De onde em onde a voz da Mariana punha
em debandada os parasitas de crista: — “Chô, galinha! Chô!…”

Havia um
rumor d’asas pesadas, e um velho galo de cauda furtacor estendia o pescoço
num cocorocô estridente e prolongado que fazia João fechar os
ouvidos, berrando para Mariana que enxotasse “aquele demônio”.

A sala de
jantar era uma espécie de alpendre assentado sobre grossos pilares de tijolo,
abrindo toda para o quintal, onde, àquela hora, via-se a roupa lavada a
enxugar, de uma brancura de hóstia, ao redor da cacimba. Fazia ângulo à
esquerda com a cozinha, e, à direita, um velho muro escalavrado separava o
quintal d’outros quintais, com uma medonha dentadura de cacos de garrafa.

Desde as
três horas começava a fazer sombra no alpendre e às quatro já se podia respirar
ali a frescura das ateiras.

Sobre a
mesa nada mais que um toalha com manchas de gordura, pratos e copos em
desordem, uma moringa muito estragada, bananas e laranjas.

D.
Terezinha fazia bocados de pirão com os dedos em pinha e atirava a Sultão.

— Boa alma
aquela tia Joaquina, continuou o amanuense acendendo o cigarro. O mestre Cosme,
esse é um homem pobre, coitado, mas honesto como poucos. Vive de vender lenha
na feira… Bom velho!

— Leva
estes pratos, Mariana, disse D. Terezinha erguendo-se.

Tinha
jantado num momento.

A tia
Joaquina, conhecida no mercado pela velhinha dos cajus, e mais o mestre
Cosme, eram um pobre casal que moravam na Aldeota, cerca de um quilômetro da
cidade, numa casinhola de taipa, dentro de um largo cercado de pau-a-pique
plantado de cajueiros, todo verde no inverno, com um grande poço no centro,
cavado toscamente, e ao fundo do qual sangrava um veio d’água cristalina.

Era aí que
viviam, há anos, desde a seca de —77, entre brenhas de camapus e matapasto, à
sombra dos cajueiros, felizes, sem filhos. Corria-lhe a vida como um abundante
manancial d’águas límpidas em leito de areia.

Pela manhã,
muito cedo, mestre Cosme saltava da rede armada no alpendre, enfiava a grossa
camisa d’algodão e lá ia, com um xícara de café no estômago, atrás da jumenta,
da sua inseparável jumenta, que lhe dava o pão de cada dia e que carinhosamente
chamava-a Coruja. O dócil animal costumava pastar à beira da cerca,
tão feliz quanto o dono, cuja presença punha-lhe uma expressão reconhecida no
olhar manso. Mestre Cosme metia-lhe o focinho no freio, armava-lhe a cangalha,
e abalava para o morro do Cocó a explorar a mata, a fazer lenha para vender no
mercado a dez tostões a carga. Um dinheirão!

Mestre
Cosme não queria vida melhor. Ao por do sol voltava com seus ricos dobrões na
ponta do lenço, escanchado na Coruja, sem cuidados, debaixo do seu
grande chapéu de palha de carnaúba.

Tia
Joaquina ficava trocando os bilros na almofada, Mas, em chegando o fim do ano,
ia também à cidade fazer o seu negócio, com uma grande cuia na cabeça: —
“Olha o cajuzinho bom do Cocó! Olha o cajuzinho bom!” E voltava com a
cuia vazia e com a isquinha de fígado para a ceia ou com o cangulinho fresco
d’alto mar.

Chamavam-na
velhinha dos cajus, porque os cajus que tia Joaquina vendia
tinham um sabor especial, eram doces como açúcar.

Queriam-se
os dois como um casal novo em lua de mel. “meu velho” e “minha
velha” — é como se tratavam.

João da
Mata conhecia-os de longa data, desde a seca, por sinal naquele tempo tinham
uma filha moça — também Maria (Maria das Dores) que morrera das febres em 77.
João era comissário de Socorros e fazia-lhes muitos
benefícios. Mestre Cosme morava, então, no Pajeú, numa palhoça miserável.

— Tempo de
calamidades! murmurava o velho ao lembrar-se da seca.

O amanuense
viu o mestre Cosme no mercado e teve a idéia de lhe falar da ida de Maria do
Carmo para a Aldeota “—Tinha um grande favor a pedir ao mestre
Cosme”, começou, pousando a mão no ombro do velho

— Pois diga
lá… Seu Joãozinho sabe que a gente vive no mundo p’ra servir uns aos
outros…

— É isto,
mestre Cosme: A Maria, minha afilhada, tem andado doente, coitada, está
fraquinha, precisa tomar um pouco de leite fora da cidade… Eu queria que ela
fosse passar uns tempos no Cocó, a rapariga tem um fastio que até mete pena…

O bom velho
ficou admirado: “— Só isso?… Ora, seu Joãozinho, isso não é favor! Eu
até estimo. A menina pode ir quando quiser. È casa de pobre, vocemecê bem sabe,
mas a gente sempre veve

— Pois está
bem, mestre Cosme, a pequena vai domingo cedo. Diga à tia Joaquina. Deixe estar
que não lhe esquecerei. Lembra-se da seca?…

— Se
me alembro? Ora, ora, ora, como se fosse hoje. Comi muita farinha
do seu Joãozinho, pois não hei de me alembrar? Aquilo é que
foi morrer gente!…

— Bem. Você
ainda mora na mesma casa, não é assim?

— Sim
senhor, p’ra lá do Asil; na Aldeota, à direita de quem sobe…

— Muito
bem, adeus. Domingo, sem falta. Tome lá p’ra você comprar fumo.

E João deu
um níquel ao velho.

Estava tudo
arranjado.

O amanuense
começou a ver claro na espessa caligem de seu espírito. Decididamente era um
homem de recurso.

 No
domingo, com efeito, depois da missa da madrugada na Sé, Maria do Carmo e o
padrinho seguiram para a Aldeota, a pé.

Ainda
tremeluziam estrelas no alto. Para as bandas do Coração de Jesus, por ente os
coqueiros que se avistavam da praça do Colégio, nuvens esfarripavam-se numa
soberba apoteose de púrpura e violeta.

Tinham-se
apagado as luzes da cidade e pouco a pouco, imperceptivelmente, como numa
mágica, sucediam-se as nuances, cada vez mais claras, esbatendo o contorno das
coisas há pouco difundidas numa meia tinta escura. Ia-se fazendo gradativamente
a majestosa mise-en-scêne do dia: clarões rasgavam-se d’um e
d’outro lado do horizonte, incendiando a fachada dos edifícios e o cabeço dos
montes longínquos, iluminando tudo…

Ao passarem
pela Imaculada Conceição, a normalista olhou por entre as
grades do colégio. Lá estavam, como antes, sombrios e silenciosos, os quatro
pés de tamarindo, numa imobilidade tímida e respeitosa. Ouvia-se lá dentro o
coro abafado das educandas ora pro nobis…ora pro nobis. Maria
teve um estremecimento, um vago desejo de viver como as irmãs de caridade; mas
passou logo…

Ia vestida
de preto, com o pescoço e a cabeça envolvidos num fichu cor de creme, segurando
manual da missa.

João ao
lado fumava distraidamente, muito preocupado.

Chegaram à
praça do Asilo. O grande edifício, à esquerda, abria as janelas sonolentas para
o descampado. Havia luz dentro. À direita, no meio da praça, a “cacimba do
povo”, cor de tijolo, em forma de quiosque, desolada àquela hora, tinha um
aspecto misterioso, quase lúgubre. E adiante, lá longe, por trás da floresta
baixa e espessa, branquejavam os morros do alto Cocó.

Já era dia.
Mulheres em tamancos passavam para a cidade falando alto, de cachimbo no
queixo, cuia de hortaliças na cabeça, ar desenvolto, chale trançado.

João da
Mata perguntou a uma delas “se ainda estava longe o mestre Cosme?”

— Hum, hum,
respondeu a mulher, meneando a cabeça, sem tirar o cachimbo da boca.

E
voltando-se:

— Está
vendo aquele cercado lá adiante, aquela casinha branca na encruzilhada? pois é
ali.

— Obrigado.

Corria um
ar fresco e matinal. Revoada de periquitos, num vôo de flecha, cortavam a
limpidez da atmosfera e desciam d’um e d’outro lado da estrada sobre o matagal
espesso e verde. As primeiras chuvas do ano tinham fecundado a terra, cuja
exuberância ostentava-se agora prodigiosamente na esplêndida paisagem que os
olhos de Maria do Carmo viam com admiração. Sentia-se um fartum de terra úmida
que fazia gosto. As matas da Aldeola, de um verde gaio pitoresco, estendiam-se
por ali fora, a perder de vista, eriçadas pelo terral, sob a larga irradiação
do sol nascente.

Aquela
estrada branca de areia, larga e interminável, desenrolava-se aos olhos da
normalista como uma via láctea de ilusões, como um caminho de ouro que a
conduzisse a uma outra vida, completamente outra daquela que até ali vivera, a
uma vida sossegada, sem hipocrisias e sem traições, sem dores e sem lágrimas…

Fazia-lhe
bem, como um tônico, o ar fresco da manhã que lhe bafejava o rosto. Sentia-se
melhor respirando aquele ar, bebendo toda a selvagem frescura do campo, todo o
delicioso, o inefável perfume que se levanta dos crotons e das salsas bravas.

— Que dizes
a isto, hein? perguntou João bruscamente, apontando o campo. Vais engordar,
minha filha, vais passar bem. Para longe a tristeza, para longe as mágoas, e
deixa correr o marfim.

E
descrevendo um círculo com a mão espalmada.

— Como está
isto bonito! Não há notícia de inverno igual. Mete inveja, a quem mora naquele
inferno de cidade. Uma delícia, Maria, isto é que é vida! O que vais engordar!

Aproximaram-se
da casinha de mestre Cosme. Vacas babujavam silenciosamente e voltavam a cabeça
com uma vagarosa melancolia no olhar.

Os velhos
já estavam de pé na porteira do cercado.

— Ora muito
bom dia! saudou o amanuense

— Louvado seja
N. S. Jesus Cristo, correspondeu a tia Joaquina, recuando. — Então é esta a sua
afilhada.

— Esta
mesma, tia Joaquina. Moça feita e… bonitona, como está vendo.

— Entrem,
entrem, convidou mestre Cosme solícito.

— Sim
senhor! fez a velha admirada. Bonita mesmo, pode dizer! Coitadinha, parece que
vem tão cansada…

Maria teve
um sorriso consolado. Estava, com efeito, cansada e pálida.

Houve logo
um princípio de intimidade entre ela e os velhos, que não cessavam de
contemplar o seu belo perfil de noviça envolto numa penumbra melancólica.

Provisoriamente
instalada no seu bucólico e nemoroso retiro da Aldeota, longe de tudo que lhe
arreliava o juízo, a um bom quilômetro das rabujices de D. Terezinha e do mau
hálito de João da Mata, outra foi com efeito a vida de Maria do Carmo. O viver
simples e sossegado de Mestre Cosme e da tia Joaquina, o aspecto úmido da mata
resplandecendo num fundo verde claro e onde variados matizes da flora agreste
punham efeitos surpreendentes, o bom leite puro e fresco bebido pela madrugada
à porta do curral, e, à tardinha, quase ao anoitecer, o violão de mestre Cosme
gemendo saudades de um país remoto e abençoado, a liberdade que se bebia ali na
larga convivência da Natureza, tudo isto robustecia-lhe o corpo e a alma,
inoculando-lhe no sangue um conforto viril, ressuscitando-lhe o quase extinto
amor à vida, a alegria, a mocidade, e as apagadas reminiscências do bom tempo
em que ela, ainda inocente, em Campo Alegre, ia esperar o papai que voltava
da vasante.

Que mudança
na sua vida, que transformações desde 77! Antes nunca tivesse saído da Imaculada
Conceição
 para se meter numa escola sem disciplina e sem moralidade,
sem programa e sem mestres, e onde uma rapariga, filha de família, é expulsa da
aula porque outra de maus costumes escreveu obscenidades na pedra!

Mil vezes
Imaculada Conceição com os seus claustros, com as suas
capelas, com o seu silêncio respeitoso, com a sua disciplina austera; ao menos
não teria voltado à casa dos padrinhos, àquela maldita casa de hipócritas, e
não teria dado espetáculos com Sr. Zuza.

Ah! o
Zuza… Vinha-lhe um forte desejo de vingar-se do estudante, de caluniá-lo e de
culpá-lo pela sua desgraça. Àquela hora o que não estariam dizendo d’ela na
cidade?…

Pensava
essas coisas no seu pobre quartinho de taipa abrindo para a Natureza, enquanto
tia Joaquina fazia rendas.

Dentro de
um mês era notável a influência do campo na sua saúde. Criara novas cores, novo
sangue, muito solícita agora nas preocupações domésticas.

— A menina
Maria está criando banha! admirava a tia Joaquina. Sim senhora!

— O leite,
tia Joaquina, o leitinho é que tem me feito bem.

João da
Mata aos domingos, invariavelmente, ia ver a afilhada, afetando grande
interesse por seu estado. Dizia-lhe as novidades, os escândalos, dava-lhes
lembranças da Lídia Campelo, e, ao retirar-se prevenia: — “Se houver
necessidade mandem-me dizer”.

— Vá
descansado, seu Joãozinho, vá descansado, que há de chegar o dia…

Mas o
estado de Maria do Carmo não inspirava cuidados. O útero revigorava,
funcionando com a regularidade precisa d’uma excelente máquina moderna; por
sinal Maria, desde que se mudara para a Aldeota, nunca mais sentira pontadas.

O amanuense
exultava, alegre e feliz. A princípio receara um aborto, mas agora tinha a
certeza de que triunfavam as qualidades procriadoras da rapariga.

— É,
pensava ele, roendo o canto das unhas. Um bom útero é tudo na mulher: equivale
a um bom cérebro!

E
esquecia-se a filosofar na vida intra-uterina, admirando-se muito do que uma
simples gota de esperma pudesse gerar um homem!

 

14

 

A ausência
de Maria do Carmo não passou despercebida às rodas de calçada e aos frequentadores
do Café Java, cujo tema quotidiano — a política — não lhe
satisfazia o prurido de entrar pela vida alheia a esmiuçar escândalos como quem
procura agulha em palheiro.

Nas portas
de botica, nos cafés, nas repartições públicas, mo mercado, em toda
aparte comentava-se o desaparecimento da normalista, em tom misterioso e com
risadinhas sublinhadas a princípio, depois abertamente, sem rebuços, com uma
ponta de perfídia, traindo a sisudez convencional da burguesia aristocrata.

Que tinha
ido tomar ares a Maracanaú, afirmavam uns acentuando a ironia:
outros — que andava adoentada de uma pneumonia “proveniente de desarranjos
na madre”; outros — que estava proibida de sair à rua e de chegar à janela
por desconfianças do amanuense. Alguns, porém, como o José Pereira, comunicavam
secretamente, pedindo toda a cautela, que a rapariga tinha sido raptada por um
paraense e que se achava depositada no Cocó, em casa de uma tal Joaquina
Xemxem, por sinal o Manoel Pombinha, tipógrafo, “os vira passar uma note
embuçados numa capa preta” caminho do Outeiro.

Na Escola
Normal rebentavam suspeitas à flor das discussões que preenchiam o intervalo
das aulas.

Quem, a
Maria do Carmo? Aquela mesma não era mais moça, não, meu bem. Ela
sempre fora muito metida á aristocrata, por isso mesmo caíra na mãos de um
Zuza. Era bem feito! Uma grandíssima orgulhosa com carinha de santa. Aí estava
a santidade…

Vinham à
baila casos análogos de filhas-famílias que tinham ido para fora da
cidade tomar ares e, no fim de contas, iam mas era
“desembuchar” onde ninguém pudesse ver…

— Então, já
apareceu a rapariga? perguntava-se com interesse.

O Guedes
ardia em desejos de saber a verdade nua e crua. Diabo de tantas histórias e
ninguém descobria a incógnita do problema.

Aproveitou
uma ocasião em que João da Mata jogava a bisca no Zé Gato. O amanuense estava
já um pouco atordoado pela cachaça.

É agora!
pensou da Matraca, e formalizou-se, carregando o chapéu para a
nuca.

— Então é
verdade o que se diz por aí, ó João?

— Sobre os
amores secretos do falecido presidente?

— Não,
homem, não é essa a ordem do dia. Isso passou. A questão é outra.


Desembucha!

— Pergunto
se é verdade o que corre sobre…

—… Sobre
a Maria do Carmo? Uma calúnia, seu Guedes, uma calúnia. Você bem conhece este
povo.

— Eu já
tinha dito isso mesmo a alguns amigos: que a D. Mariquinha era incapaz de
semelhante procedimento.

— Idem,
idem, atalhou o Perneta embaralhando as cartas. Essa é a minha opinião.

— E que
fosse verdade, continuou João da Mata partindo o baralho, e que fosse verdade,
não era da conta de ninguém.

— Que
dúvida! confirmou o Guedes.

— Mando
copas, rosnou o amanuense.

E o jogo
continuou sem que o Guedes soubesse a verdade.

Mas, ao
retirarem-se, cerca de meia noite, interpelou novamente o amanuense na esquina,
à luz de um lampião. João da Mata cambaleava, equilibrando-se, a praguejar
contra o calçamento das ruas e contra a Câmara Municipal. A rua do trilho
perdia-se na escuridão, silenciosa como um subterrâneo.

O Guedes
tinha tomado pouco nesse noite e fumava o seu cigarro com um grande ar de
superioridade, pisando forte, o gesto largo e o paletó aberto num abandono
frouxo de boêmio.

— Cuidado !
não vás cair, avisava com as mãos nos ombros do outro.

— Que cair
nada, homem! Pensas tu que estou bêbedo, hein? estás muito enganado! O diabo
dos óculos escuros é que não me deixam ver bem…

— Por aqui,
por aqui, guiava o Guedes, cauteloso. Espera, vais fumar um cigarrinho fino…

Pararam. Um
polícia passou do outro lado da rua, sonolento e lúgubre.

Então o
redator da Matraca abraçando o amigo pelo pescoço, depois de
lhe ter dado o lume:

— Tu não me
quiseste ser franco ainda agora na presença do Perneta, mas nós somos amigos…
tu sabes… Aonde diabo meteste tu a rapariga?

João
cuspinhou para o lado.

— Hein?

— A Maria
do Carmo, onde anda ela?

— Ah! seu
marreco, você quer saber onde está a rapariga, hein? Pois não lhe digo, não…

— Fala
sério, homem. Dizem que está no Cocó, que teve um filho?… Juro-te como esta
boca não se abrirá… Sentemo-nos aqui um pouquinho, que ainda não deu
meia-noite.

Sentaram-se
à beira da calçada, debaixo do gás e o amanuense, encostando-se à coluna do
lampião, o chapéu, o inseparável chile enterrado na cabeça, foi dizendo à meia
voz:

— A coisa
não é como se diz, seu Guedes; a verdade é esta, que eu lhe confio porque sei
que você é meu amigo: a menina está no Cocó, mas ainda não teve a criança…

— Ah!…

— Sim,
quero dizer, você bem sabe o que quero dizer…

O Guedes
era todo ouvidos.

Luziam-lhe
os bugalhos no fundo das órbitas, parados, imóveis, caindo sobre o amanuense
com a fixidez de claraboias de vidro. Sentia um prazer especial, uma
comoçãozinha esquisita, um extraordinário bem estar ao ouvir a história, a verdadeira
história do escândalo, narrada pelo João da Mata, pela própria boca do padrinho
da rapariga, gente de casa, testemunha ocular.

Encolhia-se
todo de gozo, ante aquelas maravilhosas palavras do amanuense.

— E o pai?

— Que pai?
O pai morreu no Pará…

— Não,
homem, o pai da criança…

— Sim… o
pai da criança, o Zuza? Pois não foi-se embora para Recife? Aquilo é um infame,
um biltre… Eu cá previa tudo quando proibi formalmente que a pequena lhe
mostrasse o nariz, logo a princípio, mas, que querem? encontravam-se na Escola
Normal, no Passeio Público, e, afinal foi o que resultou…

Soaram doze
badaladas graves e dormentes na Sé. João contou uma a uma.

— Meia
noite, seu compadre, vou-me embora, adeus! Perdi hoje tanto como dez pintos.

E
separaram-se friamente, como dois desconhecidos.

Perto de
casa o amanuense esbarrou com um vulto que se movia no escuro, — era um burro,
o pobre animal babujava a rama da coxia, solitário e mudo.

Uma vez
senhor do segredo, o Guedes não se conteve, disse-o, ao ouvido Perneta,
e com pouco ninguém ignorava na cidade, “que a normalista do Trilho fora
desembuchar, ao Cocó, um filho do Zuza”.

— Do Zuza?
exclamou o José Pereira ao saber da novidade na redação da Província,
pela manhã.

— Sim, do
Zuza, confirmou o Castrinho pousando a pena atrás da orelha. É o que diz o
público. Vox populi…

— E esta!

José
Pereira arrepanhou as abas da sobrecasaca, e, passeando o olhar sobre a banca
de trabalho onde destacavam dois grandes dicionários de Aulete, sentou-se
vagarosamente, voltando para o poeta.

— Admira-se
você, tornou este. Oh! homem, pois um fato que toda gente previa!..

O outro
recomendou que falasse mais baixo por causa dos tipógrafos…

E o
Castrinho, à meia voz, estrangulado por uns colarinhos extraordinariamente
altos:

— Qual! O
fato está no domínio público, não há por aí quem não o saiba. Dizem que o velho
Souza Nunes só falta perder a cabeça.

Em todo
caso sempre era prudente guardar certo sigilo, negar mesmo , se possível fosse,
uma vez que se tratava da reputação do Zuza…

Meninos de
bolsa a tiracolo questionavam com o agente da folha, do outro lado do tabique
que dividia a sala da redação e onde se viam o empilhamento de jornais sobre
uma velha mesa gasta.

Daí a pouco
entrou o Elesbão, outro redator, um sujeito lúgubre, muito pálido, faces
encovadas, olhar triste, tossindo devagar. Foi perguntando, numa voz sumida e
lenta, do que se tratava.

O Castrinho
disse, empertigando-se na cadeira, que se tratava “dos brios da sociedade
cearense”. O outro arregalou os olhos com ar de espanto. — Como assim? E
explicou: Tinha estado fora, na Guaiúba, a leites, não sabia as novidades.

— Um fato
muito natural, disse José Pereira, nada mais que a reprodução de fatos
velhos… Não valia a pena tocar na ferida…

Mas o
Eslebão estranhou que “os colegas” tivessem segredos para ele… E,
depois de saber o “mistério”:

— Magnífico
assunto para folhetim realista, hein?

Escrevia
folhetins realistas para o rodapé da Província e trabalhava
num livro de fôlego, os Mistérios de Arronches, com que, dizia,
pretendia fundar uma escola “mais consentânea com o estado atual da
ciência”.

A sua
opinião sobre o novo escândalo que preocupava agora a população cearense era
que “nós ainda não tínhamos compreendido o importante papel da mulher na
civilização”.

— A educação
feminina, acrescentou com cansaços na voz, a educação feminina é um mito ainda
não compreendido pelos corifeus da moderna pedagogia. Queríamos introduzir no
Ceará os dissolventes costumes parisienses, à fortiori, mas
não eram essas as tendências do nosso povo essencialmente católico e
essencialmente crédulo. Não admitia a teocracia tal como a aceitavam os padres
— “essa corja de especuladores” — mas era preciso respeita as crenças
populares, o verdadeiro sentimento religioso, sem hipocrisia, sem preconceitos.

De quando
em quando a tosse o interrompia, uma tossezinha seca e pigarreada; levava a mão
ao peito e expectorava. — “Diabo de catarro não o deixava em paz!”

E,
continuando:

— Que é a
Escola Normal, não me dirão? Uma escola sem mestres, um estabelecimento
anacrônico, onde as moças vão tagarelar, vão passar o tempo a ler romances e a
maldizer o próximo, como vocês sabem melhor que eu…

José
Pereira contestou, lembrando o Berredo, “uma ilustração invejável” ,
o padre Lima, “um excelente educador em cujas aulas as raparigas aprendiam
ao mesmo tempo a ciência e a religião”.

— Mas não
têm método, não fazem caso d’aquilo, vão ali por honra da firma, por amor aos
cobres, rebateu o Eslebão, forcejando por falar alto. Aquilo é uma sinecura,
não temos educadores, é o que é.

— Você
deste modo ofende o atual diretor da Escola Normal, tido e havido como um
pedagogista de primo cartello! advertiu o Castrinho, que se
conservava calado.

— Não
ofendo a ninguém, ao contrário, folgo em reconhecer nele um homem estudioso e
bem intencionado, mas isto não basta , meu caro…

Novo acesso
de tosse desta vez mais prolongado.

—… É
preciso orientação e muito bom senso, isto é justamente o que falta aos nossos
corpos docentes…

— Tudo isso
é inútil, Elesbão, tudo isso é completamente inútil quando uma mulher tende
fatalmente para um homem. Foi o que se deu com a Maria do Carmo…

— É
verdade, gabou o Castrinho roendo as unhas desesperadamente. Dizem que é
inteligente e bem educada.

— E além
d’isto, acrescentou José Pereira, uma rapariga até morigerada…

— Não
creio, duvidou o Eslebão batendo com o pé, curvado, já com uma poça de cuspo ao
lado da cadeira, no chão. O amor tem suas exigências, incontestavelmente, mas,
quando a mulher é bem educada e tem noções exatas da vida, dificilmente se
entregará a qualquer mariola que se lhe chegue.

E
sentenciosamente:

— Todo
fenômeno é consequência de uma causa. Não há efeito sem causa. No caso vertente
a causa é a falta de educação, a falta de absoluta de quem sabe dirigir a
mocidade feminina. A nossa educação doméstica é detestável, os nossos costumes
são de um povo analfabeto.

Um
tipógrafo aproximou-se e pediu licença ao Sr. José Pereira para perguntar uma
palavra.

— O que é?

O rapaz
mostrou o original: — “Está aqui”, disse apontando com o dedo sujo de
tinta…

— Crápula,
disse o José Pereira.

O tipógrafo
foi repetindo — crápula, crápula…

— Que é
isso? inquiriu Eslebão curioso.

Era um
artigo contra o Pedro II, uma formidável descompostura a um dos
redatores da folha oposicionista.

Entraram a
falar no novo presidente da província.

A notícia
do escândalo chegou até o Benfica, à casa do Loureiro. A Lídia ficou
estupefata.

— A Maria,
hein?! Tão calada, tão sonsa…

E repetia:

— Este
mundo, este mundo!…

Ao mesmo
tempo apoderava-se dela um pesar sincero pela amiga. Tão moça ainda, coitada,
tão boazinha…

— São
coisas, são coisas, rosnava o Loureiro. Eu nunca me enganei com aquela gente.
Uma súcia de doidos, a começar pelo tal Sr. João da Mata, um tipo que anda
caindo nas ruas, bêbedo como uma cabra.

— Que é
isso, Loureiro! ralhava a Campelinho, empinada, carregando os seus oito meses
de prenhez.

Pensou em
escrever à Maria lamentando o deplorável acontecimento, mas não sabia ao certo
onde ela parava. Ouvia falar no Outeiro, na Aldeota, no Cocó… Se fosse
possível, até iria, ela mesma, dar um abraço na sua amiga de escola,
consolá-la. Imaginava-a muito triste, cortada de desgostos, num abandono
pungente, em casa d’alguma mulher à toa, sem ter quem lhe aparasse as
lágrimas…

Pobre
Maria! É assim — uns tão felizes e tão maus, outros ao contrário, bons e
infelizes…

E Lídia
soltava uns suspiros vagos, traspassados de pena ao lembrar-se de sua velha
companheira agora atirada ao desprezo como um ente nulo e prejudicial à
sociedade!

— Este
mundo, este mundo!…

Entretanto,
corria-lhe a vida deliciosamente, não lhe faltava coisa alguma, o Loureiro a
estimava cada vez mais, comia e vestia do melhor, tinha relações com as
principais famílias da capital, ia ao teatro e frequentava o Club
Iracema
; gozava!

Se pudesse
repartir a sua felicidade com Maria, coitadinha…

Ultimamente
andava muito preocupada com o enxoval do seu primeiro filho. Até já havia
escolhido um nome para ele, para o pequeno — chamar-se-ia Julieta ou Romeu. O
Loureiro tinha lhe dito que Romeu era nome de gato, mas ela teimava em batizar
o filho com este nome se fosse “menino”. Os padrinhos também já
estavam designados — o comendador Carreira e a esposa.

 Por
sua vez a mulher do juiz municipal correu logo à casa de João da Mata numa ânsia
de saber como as coisas tinham se passado. Era da escola de S. Tomé — ver para
crer. Vestiu-se às pressas, atabalhoadamente, e voou para o Trilho de Ferro,
como uma seta, atirando-se nos braços de D. Terezinha, esfalfada, sem fôlego, o
rosto quente do mormaço.

A mulher do
amanuense saudou-a com o seu invariável — salvou-se uma alma! — proferido entre
beijos.

Sem esperar
oportunidade, D. Amélia foi direto ao móvel da sua inesperada visita. —
“Então era mesmo certo o que se dizia na rua?”

— De que?

— Da Maria…

— Se era?
Tão certo como dois e dois são quatro. Jurava sobre os Santos Evangelhos.

O demônio
metera-se-lhe em casa com a rapariga, e por tal modo que, de certo tempo àquela
parte, nem fazia gosto a gente viver.

A Amélia
não fazia idéia — uma vergonha! criatura, uma vergonha! Ela, Terezinha, estava
cansada de sofrer desapontamentos, nem sequer saía à rua para não ser olhada
com maus olhos. Haviam de pensar que ela era outra…

— E onde
está Maria?

— Sei lá,
menina, sei lá… No Cocó, na Aldeota, no inferno. Tomara que aquela peste não
me entre mais em casa!

— E tu não
viste logo se ela estava grávida?

— Vi lá o
que! Andava aqui toda espremida, com um arzinho de mosca morta, metida no
quarto que nem uma feira. Uma sonsa, Amélia, uma sonsa é o que ela é.

— O tal do
Sr. Zuza, hein?!

— Qual
Zuza, mulher, elas é que são as culpadas, porque não se dão ao respeito, não
têm vergonha.

— E o que
diz a isso o Sr. Joãozinho? Furioso, hein?

— É o que
tu pensas, indiferente como se não fosse com gente dele…

E o diálogo
continuou animado, sem que D. Terezinha revelasse à amiga as suspeitas acerca
de João da Mata e Maria do Carmo.

D. Amélia
falou sobre o José Pereira, queixando-se de que ele há muitos dias não aparecia
em nossa casa, “todo embebida com a outra , com a Lídia”. O redator
da Província não tirava os pés do Benfica, e, às vezes,
voltava depois da nove, no último bonde.

A Teté não
achava feio isso, um homem ir diariamente, às mesmas horas, à casa duma senhora
casada! Era feíssimo! Já andavam dizendo até coisas. E então o José Pereira que
não era tolo e tinha fama…

— Queira
Deus que a tal Sra. D. Lídia não vá se arrepender… É verdade, a mãe, a viúva
Campelo, como vai?

— Naquilo
mesmo, respondeu D. Terezinha com um sorriso de malícia, piscando um olho.

Riram
baixinho e a conversa recaiu sobre D. Amanda àquela hora entregue ao seu
delicioso farniente de mulher solteira que dispõe do tempo a
seu bel-prazer e da algibeira de um capitalista generoso.

Toda a
cidade vivias agora do escândalo, dando-lhe vulto, criando novelas de romance,
esmiuçando pequeninos acidentes domésticos, com um olho na política e outro na
normalista, à espera de chuvas e de novos acontecimentos sensacionais.

João da
Mata não se inquietava muito, de resto, e continuava a sua vida inalterável de
empregado subalterno, sem prestar ouvidos à maledicência, encantonado no seu
absoluto desprezo à sociedade e à opinião pública, cada vez mais submisso à
mulher que o cobria de injúrias e labéus.

— Sedutor
de filhas alheias! dizia-lhe ela na cara, ameaçadoramente. Peste! Coisa ruim!
Sem vergonha!

E ele
punha-se a cantarolar, com os ouvidos arrolhados, o olhar no teto, estendido na
rede, mudo, impotente como um eunuco.

Uma noite,
pela madrugada, despertou com o desejo veemente de ir ter com D. Terezinha na
alcova. Há meses não se chegava à mulher alguma, cheio de aborrecimento pelo
outro sexo, frio mole, inacessível quase às carícias da fêmea. Agora, porém,
renascia-lhe a virilidade, sentia uma forte vontade, indomável e impetuosa, de
amar fisicamente, de crucificar-se nos braços de uma mulher que não fosse de
todo o mundo e confundir-se o seu sangue com o dela num demorado e
indescritível espasmo. Tremiam-lhe as carnes como ao contato de um condutor
elétrico, uma formidável ereção a distender-lhe os nervos escabujando na rede
em espreguiçamentos lúbricos, vergando, como um vencido, ao poder irresistível
da animalidade humana. O sangue pulava-lhe nas artérias numa hiperquinesia que
lhe atordoava os sentidos, que lhe tirava a respiração, impelindo-o para a
mulher…

Pensou na
Mariana, que dormia ali perto, mas a Mariana era uma criada que não se lavava,
um estafermo sem sexo, incapaz de satisfazer os apetites de um homem. Não havia
jeito senão tentar a Teté. E lá se foi sutilmente, pé ante pé, corredor a fora,
direito à alcova da infeliz senhora.

A alcova
tinha uma porta para o corredor. João olhou pelo buraco da fechadura, mas não
pode ver senão o espelho do velho toucador, defronte, inclinado para a frente,
refletindo um vaso noturno e roupas espalhadas no chão.

Bateu de
leve, e, receoso da criada, deu volta pela sala da frente, tateando no escuro,
sem ruído. A outra porta da alcova conservava-se entreaberta: empurrou de leve
enfiando a cabeça para dentro.

— Teté!
chamou numa voz quase imperceptível.

Silêncio
profundo. Os cortinados da cama estavam cerrados. João foi entrando devagar,
equilibrando-se nos bicos dos pés.

— Teté!
repetiu à meia voz.

Ninguém
respondeu. Adiantou-se e escancarou as cortinas, mas — oh!… — o leito
matrimonial, largo e fresco, branquejava desolado, sem sombra de mulher.

João ficou
boquiaberto, muito admirado. —”Que significava aquilo?” Os lençóis
revoltos acusavam o desespero de uma pessoa que não teve tempo a perder. Ante a
clarividência assombrosa da realidade, o amanuense rodou sobre os calcanhares,
e, resignado como um boi, sem proferir palavras, murcho, sentiu desaparecer-lhe
subitamente o forte desejo que ainda há pouco o espicaçava como uma urtiga.
Retirou-se macambúzio a pensar nos caprichos da sorte.

 

15

 

Quando
mestre Cosme, uma manhã, foi avisar a João da Mata que “a menina estava
com as dores”, o amanuense dormia ainda sob os lençóis e nem sequer
sonhava com a afilhada.

Ergueu-se
da rede, com um pulo, enfiou as calças, lavou-se num instante, e abalou mais o
velho para a Aldeota, sem dizer palavra à D. Terezinha.

— Já tinham
arranjado parteira? inquiriu acelerando o passo.

— Já, nhor
sim, a comadre Joana Pataca, uma do Outeiro.

— Boa?

Mestre
Cosme não afirmava porque não conhecia bem, mas era limpa e não tinha má cara. Diz
que era a melhor parteira do Outeiro. Agora, se seu Joãozinho não quisesse… A
mulher já estava cuidando da menina…

— Quando
apareceram as dores? — Se Maria gemia muito…

O velho
informou tudo minuciosamente, sem ocultar um só detalhe, juntando às palavras
os seus gestos rudes de homem do campo.

A rapariga
há dois dias queixava-se d’uma dores nas “ancas e no pé da barriga”,
acompanhadas de fraquezas nas pernas e grande falta de ar… Se gemia? Muito,
coitada, metia até pena. Pudera! novinha ainda… A parteira disse logo que a
criança estava no nascedouro. Aquela noite as dores tinham piorado,
ninguém dormira, velando a pobre moça. Eram chás e fricções, e — corre d’aqui e
chega depressa — todos com cuidado, rezando à N.S. do Bom Parto.

Logo da
porteira do sítio João escutou os gemidos de Maria do Carmo, trêmulos,
sentidos, longos … e aquilo apertou-lhe o coração.

No pequeno
quarto de taipa, com uma janelinha para o descampado, achava-se Tia Joaquina, à
cabeceira da normalista, alisando-lhe os cabelos, com carinho, e uma outra
mulher gorda, pançuda, sem casaco, muito trigueira, com marcas de bexiga no
rosto, meio idosa.

— Dão
licença? murmurou João da Mata descobrindo-se com respeito.

A mulher
gorda tomou o casaco, às pressas, e Maria volveu os olhos úmidos e
profundamente melancólicos para o padrinho, gemendo.

Mestre
Cosme trouxe um tamborete.

Sentia-se
um cheiro ativo de alfazema queimada: encostada à parede fumegava o braseiro.

— Então,
como vai? perguntou João tomando a mão da afilhada. Muitas dores, hein?

— Assim…
respondeu a rapariga mordendo o beiço com um gesto doloroso, revirando-se na
rede, e continuou a gemer alto.

— A senhora
é que é a parteira? tornou João para a mulher gorda que se conservava imóvel
com o queixo na mão.

— Sua
criada Joana Pataca.

— Já
verificou se a criança está perfeita, se não há novidade?

— Ora, ora,
ora… há que tempo! D’aqui a pouquinho o menino está fora, se Deus quiser.

O amanuense
encarou por cima dos óculos, com ar de desconfiança o todo obeso da mulher. E,
sentando-se:

— A senhora
tem licença para assistir?

Não era
preciso licença, não senhor. No Ceará qualquer mulher podia ser parteira
contanto que merecesse confiança. Ela, Joana Pataca, era muito conhecida no
Outeiro, por sinal tinha partejado uma vez a mulher do comandante do
batalhão…

— Vocemecê
duvida?

— Não,
não… é que eu queria saber… Então não é preciso licença?

— Inhor
não. É qualquer uma.

— Está bom,
está bom… Mas não se descuide… Olhe não vá esquecer…

A parteira
pousou no chão o cachimbo que estivera fumando, e foi aquecer uns panos.

 Deu
meio dia e a rapariga não teve a criança. As dores tinham melhorado um pouco.
Tia Joaquina batia os beiços rezando “—Tenha paciência, minha filha, tenha
fé no Senhor do Bonfim”, dizia ela muito solícita.

João da
Mata passou todo esse dia na Aldeota, aguardado o sucesso, bebendo aguardente e
acendendo cigarros, esquecido da repartição.

Mestre
Cosme armara-lhe uma rede no alpendre e fora-se a desbastar a mata, escanchado
na Coruja.

Fazia um
belo dia de sol, calmo e luminoso. O arvoredo imóvel dormitava na esplêndida
pulverização da luz que o narcotizava para beber-lhe a seiva. O passaredo
aninhava-se na verde espessura dos cajueiros em flor, contubernal e gárrulo;
rolas bravas debicavam nas clareiras os minúsculos diamantes que o sol punha na
areia. E no silêncio e na beatitude d’aquela espécie de cemitério João pôde
dormir um sono bom de duas horas, embalado pelos gemidos da afilhada como por
um vago e monótono estribilho repassado de melancolia.

Às sete
horas da noite, ao acender-se a primeira vela, Maria teve um sobressalto e
ergueu-se bruscamente com uma fortíssima dor no baixo ventre, muito branca, o
olhar desvairado e os cabelos em desordem.

— Que é
isso, comadre! repreendeu-a a parteira agarrando-a.

— Minha
filha! fez a tia Joaquina.

E em pé,
entre as duas mulheres, com a cabeça arqueada para trás, contorcendo-se numa
aflição suprema, a rapariga soltava gemidos estrangulados, cortada de dores,
agarrando-se como uma louca ao pescoço das velhas, no bico dos pés, em camisa.

Houve uma
confusão extrema.

— Sente-se,
comadre, sente-se, por amor de Deus! suplicava a parteira, agarrando com jeito.

— Sente-se,
minha filha, repetia a outra.

João da
Mata acudiu gelado.

— Calma!
calam! bradou estacando à porta do quarto.

Mas era
tarde. Ouviu-se uma pancada surda no chão, como a queda de um balão de barro
úmido, e, imediatamente, rios de sangue jorraram aos pés da parteira, e no
linho branco da camisa de Maria do Carmo desenhou-se larga faixa rubra, d’alto
a baixo, como uma bandeira de guerra desdobrada.

— Louvado
seja Nosso Senhor Jesus Cristo! rosnou Joana Pataca estremecendo.

Passou-se a
noite às voltas. O amanuense resolveu não chamar médico — que era uma asneira,
o perigo tinha passado. A parturiente adormecera profundamente, depois de lhe
terem ministrado um hidromel de aguardente.

Sobre uma
grande caixa de pinho, a um canto do quarto, envolvido, em panos, o recém
nascido — uma criança nutrida e robusta — dormia o sono eterno, roxo, d’olhos
fechado, as gordas mãozinhas cruzadas sobre o peito, com um fio de sangue a
escorrer-lhe do nariz.

João não
pregara os olhos, pensativo, com a calva entre as mãos, ao lado da afilhada. —
Era o diabo, era o diabo! Até lhe doía a cabeça! Grandíssima besta, a parteira,
que nem ao menos soubera apanhar a criança! Estúpida! deixar morrer assim uma
criança tão bem feita e nutrida! Isso só acontecia a ele, João da Mata.

De meia em
meia hora acendia um cigarro automaticamente e punha-se p’r’ali a ruminar
silenciosamente, à luz d’uma triste vela de carnaúba, que pingava a sua cera
denegrida no gargalo d’uma velha botija de genebra, esbatendo ao fundo do
quarto o perfil do recém-nascido.

Diabo!
pensava o amanuense quebrando a cinza do cigarro. Um caiporismo! Tantos
cuidados, tanta aflição, e, afinal de contas, lá ia tudo por água abaixo. Por
um lado era uma felicidade o pequeno ter morrido, porque isso de filho natural
sempre dava que falar às más línguas e até podia-se descobrir a verdade.

Consolava-se
com esta idéia.

Perto, numa
palhoça vizinha, havia um samba que durava desde o anoitecer. No silêncio da
noite ecoava um alarido medonho, vozes aguardentadas, sapateados que
estremeciam o chão, cantos, desafios ao som d’uma viola cansada.

Maria ressonava docemente, com o rosto voltado
para a parede, o tronco repousando sobre chumaços de pano onde brilhavam
manchas de sangue. Cerca de onze horas moveu-se devagar, abrindo os olhos e
soerguendo-se , como quem acorda de um pesadelo; mas faltaram-lhe as forças e
repousou novamente.

— Queria alguma coisa? perguntou João.

— Onde está meu filho?

— Não te lembres d’isto agora, vê se
descansas…

— Mas onde puseram ele? está vivo?

— Qual vivo, filha! Pois queria tu que
escapasse?

E em tom lamentoso:

— Coitado, ao menos está no céu, livre das
misérias d’este mundo…

Maria não se conteve: repuxou o lençol, e, com
os olhos cheios d’água, murmurou numa voz entrecortada de soluços:

— Pobrezinho! … Porque não me disseram logo?

— Já te pões a chorar!

Maria do Carmo soluçava com desespero, sentindo
crescer dentro de si, no íntimo de seu coração, avassalando-a, abalando todo o
seu ser, toda sua delicada alma de mulher, como um sopro violento e devastador,
esse inestimável desgosto que as mães sentem ao verem o filho morto. Ela que
desejava tanto criá-lo, amamentá-lo com o seu leite, que era o seu próprio
sangue, a sua própria vida, amá-lo, adorá-lo, com toda a força do seu
coração!… Era um filho natural, mas era seu filho, nascido em suas entranhas,
carne de sua carne, sangue do seu sangue, havia de amá-lo muito…

— Quero vê-lo, deixe-me vê-lo, pediu aflita.

— Que tolice! fez João agasalhando-a melhor.
Não pense nisto agora, criatura, os médicos recomendam toda a calma. A criança
está morta, que se há de fazer?

Continuavam os soluços, um choro estugado,
interrompido por um tossezinha convulsa.

— Mau! mau! tornou João.

E, imediatamente, foi buscar o cadáver do
filho, depondo-o carinhosamente sobre os joelhos.

Tia Joaquina apareceu, envolvida numa larga
coberta de chita feita de retalhos. “— O que era?…”

— Nada, tia Joaquina. Ela que desejou ver o
filho, explicou João. Uma imprudência. Até pode lhe fazer mal…

— Vejam a vela, por favor, pediu Maria. Quero
ver meu filho…

E ao mirar o rosto lívido da criança, os
bracinhos rechonchudos, o filete de sangue escorrendo do nariz como um veio de
rubim, a rapariga sentiu um calafrio e um grande vácuo no peito, como se lhe
tivessem arrancado um pedaço do corpo. E entrou a soluçar outra vez de um modo
tão penoso e comovente que João da Mata não pode recalcar duas lágrimas, as
primeiras de sua vida, que rolaram vagarosas nas suas faces magras, como duas
linhas cristalinas na aspereza tosca d’uma rocha.

No dia seguinte, antes do sol nascer, mestre
Cosme foi ao fundo do sítio cavar uma sepultura para o pequenino cadáver. João
acompanhou-o taciturno. Pararam ao pé de um grande cajueiro, que ficava
defronte da casa, e, com pouco, o amanuense viu sumir-se debaixo da terra o
corpo do seu primeiro filho.

Mestre Cosme socou bem a areia, nivelou o
terreno com os pés e suspirou com força, como depois d’um trabalho penoso.

João assistiu em pé, sem dar palavra, mãos p’ra
trás, olhos cravados na terra.

— Pronto! fez o velho pousando a enxada no
ombro.

— Bem, murmurou João. E seguiram por entre as
ateiras, calados e graves.

Seriam seis horas da manhã. No alto de um
coqueiro que farfalhava à beira do cercado, cantava uma gralha, e as notas
límpidas do seu canto vibravam demoradamente na transparência do ar, sobre a
verde monotonia do campo, como um toque de alvorada!

Tinha-se calado o samba havia pouco.

Meses depois, quando Maria do Carmo
apresentou-se na Escola Normal para concluir o curso interrompido, estava nédia
e desenvolta, muito corada, com uma estranha chama de felicidade no olhar. A
sua presença foi uma ressurreição. “—A Maria do Carmo, hein? Nem parecia a
mesma!” — Houve um alarido entre as normalistas: abraços, beijos,
cochichos… Até o edifício tinha-se pintado de novo como para recebê-la.

O programa era outro, mais extenso, mais amplo,
dividido metodicamente em educação física, educação intelectual,
educação nacional ou cívica, educação religiosa
… pelo moldes de H.
Spencer e Pestalozzi; o horário das aulas tinha sido alterado, havia uma escola
anexa de aplicação, estava tudo mudado!

A esse tempo um grande acontecimento preocupava
toda a cidade. Lia-se na seção telegráfica da Província as
primeiras notícias sobre a proclamação da república brasileira. Dizia-se que o
barão de Ladário tinha sido morto à pistola por um oficial de linha, na Praça
da Aclamação, e que o imperador não dera uma palavra ao saber dos
acontecimentos em Petrópolis.

O Ceará estremecia a esses boatos. Grupos de
militares cruzavam as ruas, ouviam-se toques de corneta no batalhão e na Escola
Militar. Tratava-se de depor o presidente da província a um coronel do
exército. Os canhões La Hitte, da fortaleza de N.S. d’Assunção, dormiam
enfileirados na praça dos Mártires, defronte do Passeio Público, guardados por
alunos de patrona e gola azul.

Ninguém se lembrava dos escândalos domésticos
nem de pequeninos fatos particulares.

Um homem revoltava-se, indignado com o novo
estado de coisas — era João da Mata.

— É boa! bradava ele na Bodega do Zé Gato,
esmurrando a mesa. Isto é um país sem dignidade, uma nação de selvagens!
Expulsar do trono um Monarca da força de D. Pedro II, mandá-lo para o
estrangeiro doente e quase louco, é o cúmulo da ignorância e da selvageria!

E Maria do Carmo. agora noiva do alferes
Coutinho, da polícia, via diante de si um futuro largo, imensamente luminoso,
como um grande mar tranquilo e dormente.

 

  
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