UBIRAJARA
José Alencar
© Copyright 2017, VirtualBooks Editora e Livraria Ltda.
1ª edição: Publicado
em 1874. Todos os direitos
reservados, protegidos pela lei 9.610/98
– José Martiniano de Alencar
(1829 — 1877) Ubirajara, José Martiniano de Alencar. Pará de Minas, MG, Brasil:
Editora VirtualBooks. ISBN: 9781521762608 CDD- B869 Literatura brasileira.
Romance.
ADVERTÊNCIA
Este livro é irmão de
Iracema.
Chamei-lhe de lenda como ao
outro. Nenhum título responde melhor pela propriedade, como pela modéstia, às
tradições da pátria indígena.
Quem por desfastio percorrer
estas páginas, se não tiver estudado com alma brasileira o berço de nossa
nacionalidade, há de estranhar em outras coisas a magnanimidade que ressumbra
no drama selvagem a formar-lhe o vigoroso relevo.
Como admitir que bárbaros,
quais nos pintaram os indígenas, brutos e canibais, antes feras que homens,
fossem suscetíveis desses brios nativos que realçam a dignidade do rei da
criação?
Os historiadores, cronistas
e viajantes da primeira época, senão de todo o período colonial, devem ser
lidos à luz de uma crítica severa. É indispensável sobretudo escoimar os fatos
comprovados, das fábulas a que serviam de mote, e das apreciações a que os
sujeitavam espíritos acanhados, por demais imbuídos de uma intolerância
ríspida.
Homens cultos, filhos de uma
sociedade velha e curtida por longo trato de séculos, queriam esses forasteiros
achar nos indígenas de um mundo novo e segregado da civilização universal uma
perfeita conformidade de ideias e costumes.
Não se lembravam, ou não
sabiam, que eles mesmos provinham de bárbaros ainda mais ferozes e grosseiros
do que os selvagens americanos.
Desta prevenção não
escaparam muitas vezes espíritos graves e bastante ilustrados para escreverem a
história sob um ponto de vista mais largo e filosófico.
Entre muitos citarei um
exemplo. Barlaeus referindo as justas que se faziam entre os selvagens para
obterem em prêmio de seu valor a virgem mais formosa, não se esqueceu de
acrescentar este comento — finis spectantium est voluptas.
Narrados com este pessimismo,
as cenas da cavalaria, os torneios e justas não passariam de manejos inspirados
pela sensualidade. Nada resistiria à censura ou ao ridículo.
Por igual teor, senão mais
grosseiras, são as apreciações de outros escritores acerca dos costumes
indígenas. As coisas mais poéticas, os traços mais generosos e cavaleirescos do
caráter dos selvagens, os sentimentos mais nobres desses filhos da natureza são
deturpados por uma linguagem imprópria, quando não acontece lançarem à conta
dos indígenas as extravagâncias de uma imaginação desbragada.
Releva ainda notar que duas
classes de homens forneciam informações acerca dos indígenas, dos missionários
e a dos aventureiros. Em luta uma com outra, ambas se achavam de acordo nesse
ponto, de figurarem os selvagens como feras humanas. Os missionários encareciam
assim a importância da sua catequese; os aventureiros buscavam justificar-se da
crueldade com que tratavam os índios.
Faço estas advertências para
que ao lerem as palavras textuais dos cronistas citados nas notas seguintes não
se deixem impressionar por suas apreciações muitas vezes ridículas. É
indispensável escoimar o fato dos comentos de que vem acompanhado, para fazer
uma ideia exata dos costumes e índole dos selvagens.
O CAÇADOR
Pela margem do grande rio
caminha Jaguarê, o jovem caçador. O arco pende-lhe ao ombro, esquecido e
inútil. As flechas dormem no coldre da uiraçaba.
Os veados saltam das moitas
de ubaia e vêm retouçar na grama, zombando do caçador.
Jaguarê não vê o tímido
campeiro, seus olhos buscam um inimigo capaz de resistir-lhe ao braço robusto.
O rugido do jaguar abala a
floresta; mas o caçador também despreza o jaguar, que já cansou de vencer.
Ele chama-se Jaguarê, o mais
feroz jaguar da floresta; os outros fogem espavoridos quando de longe o
pressentem.
Não é esse o inimigo que
procura, porém outro mais terrível para vencê-lo em combate de morte e ganhar
nome de guerra.
Jaguarê chegou à idade em
que o mancebo troca a fama do caçador pela glória do guerreiro.
Para ser aclamado guerreiro
por sua nação é preciso que o jovem caçador conquiste esse título por uma
grande façanha.
Por isso deixou a taba dos
seus e a presença de Jandira, a virgem formosa que lhe guarda o seio de esposa.
Mas o sol três vezes guiou o
passo rápido do caçador através das campinas, e três vezes como agora deitou-se
além nas montanhas da Aratuba, sem mostrar-lhe um inimigo digno de seu valor.
A sombra vai descendo da
serra pelo vale e a tristeza cai da fronte sobre a face de Jaguarê.
O jovem caçador empunha a
lança de duas pontas, feita da roxa craúba, mais rija que o ferro.
Nenhum guerreiro brandiu
jamais essa arma terrível, que sua mão primeiro fabricou.
Lá estaca o jovem caçador no
meio da campina. Volvendo ao céu o olhar torvo e iracundo, solta ainda uma vez
seu grito de guerra.
O bramido rolou pela amplidão
da mata e foi morrer longe nas cavernas da montanha.
Respondeu o ronco da sucuri
na madre do rio e o urro do tigre escondido na furna; mas outro grito de guerra
não acudiu ao desafio do caçador.
Jaguarê arremessou a lança,
que vibrou nos ares e foi cravar-se além no grosso tronco da emburana.
A copa frondosa ramalhou,
como as palmas do coqueiro ao sopro do vento, e o tronco gemeu até à raiz. O
caçador repousa à sombra de sua lança. Salta uma corça da mata e veloz
atravessa a campina. Mais veloz a persegue gentil caçadora com a seta embebida
no arco flexível. Ergue-se Jaguarê. Seu olhar ardente voou, sôfrego de
encontrar o inimigo que lhe tardava. Avistando uma mulher, a alegria do mancebo
apagou-se no rosto sombrio. Pela faixa cor de ouro, tecida das penas do tucano,
Jaguarê conheceu que era uma filha da valente nação dos Tocantins, senhora do
grande rio, cujas margens ele pisava. A liga vermelha que cingia a perna
esbelta da estrangeira dizia que nenhum guerreiro jamais possuíra a virgem
formosa. A corça veio cair aos pés de Jaguarê, atravessada pela flecha certeira
da jovem caçadora que a seguia de perto. A virgem reconheceu o cocar da nação
que na última lua chegara aos campos do Taari e da qual os pajés tinham dado
notícia.
— Guerreiro Araguaia, pois
vejo pela pena vermelha de teu cocar que pertences a essa nação valente; se
pisas os campos dos Tocantins como hóspede, bem-vindo sejas; mas se vens como
inimigo, foge, para que tua mãe não chore a morte de seu filho e tenha quem a
proteja na velhice.
— Virgem dos Tocantins,
Jaguarê já soltou seu grito de guerra. Ele pisa os campos de teus pais como
senhor. Tu és sua prisioneira. Não que vencer a corça tímida seja glória para o
caçador; mas tu chamarás o inimigo que ele espera.
— Se o veado te der a sua
ligeireza, jovem guerreiro, ela não te servirá senão para ver o rasto de meu pé
antes que o vento o apague.
A linda caçadora desferiu a
corrida pela imensa campina. Após ela se arremessou Jaguarê que muitas vezes
vencera o tapir.
Mas a virgem dos Tocantins
corria como a nandu no deserto, e o caçador conheceu que seu braço nunca a
poderia alcançar.
Travou do arco e o brandiu.
A seta obedeceu-lhe, pregando no tronco do açaí a faixa que flutuava ao sopro
do vento.
— A filha dos Tocantins tem
no pé as asas do beija-flor; mas a seta de Jaguarê voa como o gavião. Não te
assustes, virgem das florestas; tua formosura venceu o ímpeto de meu braço e
apagou a cólera no coração feroz do caçador. Feliz o guerreiro que te possuir.
— Eu sou Araci, a estrela do
dia, filha de Itaquê, pai da grande nação Tocantins. Cem dos melhores
guerreiros o servem em sua cabana para merecer que ele o escolha por filho. O
mais forte e valente me terá por esposa. Vem comigo, guerreiro Araguaia, excede
aos outros no trabalho e na constância, e tu romperás a liga de Araci na
próxima lua do amor.
— Não, filha do sol; Jaguarê
não deixou a taba de seus pais onde Jandira lhe guarda o seio de esposa, para
ser escravo da virgem. Ele vem combater e ganhar um nome de guerra que encha de
orgulho a sua nação. Torna à taba dos Tocantins e dize aos cem guerreiros
cativos de teu amor, que Jaguarê, o mais destemido dos caçadores Araguaias, os
desafia ao combate.
— Araci vai, pois assim o
queres. Se fores vencido, ela guardará tua lembrança, pois nunca seus olhos
viram mais belo caçador. Se fores vencedor, será uma alegria para a virgem do
sol pertencer ao mais valente dos guerreiros.
A virgem disse e desapareceu
na selva. Os olhos de Jaguarê seguiram o passo ligeiro da formosa caçadora,
como o guaxinim que rasteja a zabelê.
Quando ela desapareceu o
jovem caçador recostou-se ao tronco da emburana e esperou.
Do outro lado da campina
assoma um guerreiro.
Tem na cabeça o canitar das
plumas de tucano, e no punho do tacape uma franja das mesmas penas. E um
guerreiro Tocantins. De longe avistou Jaguarê e reconheceu o penacho vermelho
dos Araguaias.
As duas nações não estão em
guerra; mas sem quebra da fé pode um guerreiro, cansado do longo repouso,
oferecer a outro guerreiro combate leal. Quando o Tocantins armou o arco,
Jaguarê já tinha brandido o seu e disparado no ar uma seta, mensageira do
desafio.
Respondeu o guerreiro
disparando também uma flecha no ar, para dizer que aceitava o combate.
Então os dois campeões
caminharam um para o outro com o passo grave e pararam frente a frente.
— Eu sou Jaguarê, filho de
Camacã, chefe da valente nação dos Araguaias, que vem de longe em busca da
terra de seus pais. Minha fama corre as tabas e tu já deves conhecer o maior
caçador das florestas. Mas Jaguarê despreza a fama do caçador; ele quer um nome
de guerra, que diga das nações a força de seu braço e faça tremer aos mais
bravos. Se tua nação te aclamou forte entre os fortes, prepara-te para morrer;
se não, passa teu caminho, guerreiro vil, para que o sangue do fraco não manche
o tacape virgem de Jaguarê.
— O caraíba guiou teu passo
ao encontro de Pojucã, o matador de gente, guerreiro chefe da terrível nação
Tocantim, que enche de terror as outras nações. Há três luas, desde que fugiram
espavoridos os bárbaros tapuias, que Pojucã não combate; e seu tacape tem fome
do inimigo. Tu não és digno dos golpes de um guerreiro chefe; mas Pojucã se
compadece de tua mocidade e consente em combater contigo. Terás a glória de ser
morto pelo mais valente guerreiro Tocantim. Os cantores de meus feitos
lembrarão teu nome; e todos os mancebos de tua nação invejarão tua sorte.
— Jaguarê agradece a Tupã
que te fez um grande guerreiro e o chefe mais feroz da grande nação Tocantim,
Pojucã, matador de gente. A tua morte será a primeira façanha do caçador
Araguaia e lhe dará um nome de guerra que se torne o espanto dos teus e o
terror das outras nações.
Os dois campeões recuaram
passo a passo até que se acharam a um tiro de arco.
Então soltaram o grito de
guerra e se arremessaram um contra o outro brandindo o tacape.
Os tacapes toparam no ar e
os dois guerreiros rodaram como as torrentes impetuosas no remoinho da Itaoca.
Dez vezes as clavas bateram,
e dez vezes volveram para bater de novo.
Os animais que passavam na
floresta fugiram espavoridos, como se a borrasca ribombasse no céu.
Ainda uma vez encontraram-se
os dois tacapes e voaram em lascas pelos ares.
— O ubiratã é forte; mas há
outro ubiratã que lhe resiste. Como o braço de Pojucã é que não há outro braço.
Já viste, jovem caçador, o veado nas garras da jiboia? Assim vais morrer.
— Se tu fosses a cascavel
que somente sabe morder, Jaguarê te esmagaria a cabeça com o pé e seguiria seu
caminho. Mas tu s a jiboia feroz; e Jaguarê gosta de estrangular a jiboia. Não
morrerás pelo pé, mas pela mão do caçador. Lança teu bote, guerreiro Tocantim.
Pojucã estendeu os braços e
estreitou os rins de Jaguarê, que por sua vez cingiu os lombos do guerreiro.
Cada um dos campeões pôs na
luta todas as suas forças, bastantes para arrancar o tronco mais robusto da
mata.
Ambos, porém, ficaram
imóveis. Eram dois jatobás que nasceram juntos e entrelaçaram os galhos
ligando-se no mesmo tronco.
Nada os desprende; nada os
abala. O tufão passa bramindo sem agitá-los; e eles permanecem quedos pelo
volver dos tempos.
Um pajé que passou na orla
da mata viu os lutadores e esconjurou-os pensando que eram as almas de dois
guerreiros presos no abraço da morte.
Já a sombra se desdobrava
pelo vale fora e o sol despedia-se dos cimos dos montes, sem que os campeões se
movessem.
Por fim afrouxaram os braços
e cada lutador recuou para contemplar seu adversário. Nenhum mostrava no rosto
sombra de fadiga.
Conheceram que podiam lutar
corpo a corpo, a noite inteira, sem que um prostrasse o outro.
— Tu és igual na valentia e
na força ao guerreiro chefe da nação Tocantim. Mas Pojucã não consente que haja
na terra quem resista a seu braço. É preciso que tu morras, Jaguarê, para que
ele seja o primeiro dos guerreiros que o sol alumia.
— Pojucã, matador de gente,
guerreiro feroz da nação Tocantim, Jaguarê deixou-te viver até este momento
para saber se tu eras digno de dar-lhe um nome de guerra. Agora que te conhece
como o primeiro dos guerreiros que existiram até este momento, ele quer que tua
derrota seja a sua primeira façanha.
— Esta arma que tu vês é a
lança de duas pontas. Jaguarê fabricou-a do rijo galho da craúba, endurecido
pelo fogo. Sua mão foi a primeira que a arremessou e teu corpo é o primeiro
cujo sangue ela vai beber. Empunha a lança de duas pontas, guerreiro chefe, e
ataca Jaguarê para receberes a morte dos valentes. Pojucã repeliu a lança que o
jovem caçador lhe apresentara.
— Jamais no combate um
guerreiro Tocantim atacará seu adversário desarmado; nem Pojucã precisa da
lança. Ataca tu, Jaguarê, que não tens confiança em teu braço; o de Pojucã
basta para te prostrar.
— O orgulho te cega,
guerreiro chefe. A lança conhece Jaguarê que a inventou e lhe obedece como o
arpão à corda do pescador. Aperta-a bem em tua mão robusta, e Jaguarê estará
duas vezes mais armado do que tu, que não sabes manejá-la. O chefe Tocantim
cruzou os braços.
— Toma a lança, Pojucã, se
não queres que te chame covarde; pois tu sabes que Jaguarê não te matará
desarmado, mas te abandonará como indigno de combater com o filho do maior
guerreiro Araguaia, o grande Camacã.
Disse e arrancando do tronco
da emburana a lança de duas pontas caminhou outra vez para Pojucã.
O chefe Tocantim arrojou-se
contra Jaguarê que travou-lhe dos pulsos, e outra vez os dois campeões ficaram
imóveis.
A noite veio achá-los na
mesma posição. Três vezes cessaram a luta, e de novo a travaram. Mas afinal se
convenceram que nenhum derrubaria o outro.
Então Pojucã disse:
— Guerreiro Araguaia, é
preciso acabar o combate. A terra não chega para dois guerreiros como nós.
Finca no chão a lança e caminhemos até a margem do rio. Aquele que primeiro
chegar, será o senhor da lança e da vida do outro.
Assim fizeram os dois
campeões. Chegados à margem do rio, dispararam a corrida. Ao mesmo tempo a mão
de ambos tocou a haste da lança; mas Jaguarê, arremessado pelo ímpeto da
desfilada, não pôde arrancar a arma que ficou na mão de Pojucã.
O guerreiro chefe enrista
desdenhosamente a lança e caminha para Jaguarê. Não vai como o guerreiro que
marcha ao combate, mas como o matador que se prepara para imolar a vítima.
— Guerreiro chefe, Jaguarê
não te quer matar como a serpente que ataca o descuidado caçador. Dez vezes já,
se quisesse, ele te houvera ferido com tua própria mão.
— Abandona a glória do
guerreiro, que não é para ti, nhengaíba. Pojucã te concederá a vida e te levará
cativo à taba dos Tocantins para que tu cantes as suas façanhas na festa dos
guerreiros.
— Cativo serás tu, mas não
para cantar os feitos dos guerreiros. Tu servirás na taba dos Araguaias para
ajudar as velhas a varrer a oca.
Arremessou-se Pojucã avante
e desfechou o golpe; mas a lança rodara e foi o chefe Tocantim quem recebeu no
peito a ponta farpada.
Quando o corpo robusto de
Pojucã tombava, cravado pelo dardo, Jaguarê d’um salto calcou a mão direita
sobre o ombro esquerdo do vencido, e brandindo a arma sangrenta, soltou o grito
do triunfo:
— Eu sou Ubirajara, o senhor
da lança, o guerreiro invencível que tem por arma a serpente. Reconhece o teu
vencedor, Pojucã, e proclama o primeiro dos guerreiros, pois te venceu a ti, o
maior guerreiro que existiu antes dele.
— Se meu valor, que serviu
para aumentar a tua fama, merece de ti uma graça, não deixes que Pojucã sofra
mais um instante a vergonha de sua derrota.
— Não, chefe Tocantim. Tu me
acompanharás à taba dos Araguaias para narrar o meu valor. A fama de Jaguarê
precisa de um prisioneiro como o grande Pojucã na festa da vitória.
— Tu és cruel, guerreiro da
lança; mas fica certo que se tua arma traiçoeira feriu-me o peito, o suplício
não vencerá a constância do varão Tocantim, que sabe afrontar as iras de Tupã e
desprezar a vingança dos Araguaias.
O GUERREIRO
Retumba a festa na taba dos
Araguaias.
As fogueiras circulam a
vasta ocara e derramam no seio da noite escura as chamas da alegria.
Toda a tarde o trocano
reboou chamando os guerreiros das outras tabas à grande taba do chefe.
Era a festa guerreira de
Jaguarê, filho de Camacã, o maior chefe dos Araguaias.
No fundo da ocara, preside o
conselho dos anciões, que decide da paz ou da guerra e governa a valente nação.
Os anciões, sentados no
longo jirau, contemplam taciturnos a geração de guerreiros que eles ensinaram a
combater, e têm saudades da passada glória.
Suspenso em frente deles
está o grande arco da nação Araguaia, ornado nas pontas das penas vermelhas da
arara.
É a insígnia do chefe dos
guerreiros, a qual Camacã, pai de Jaguarê, conquistou na mocidade e ainda
conserva, pois ninguém ousa disputá-la.
Ei-lo, o velho chefe,
embaixo do arco, que sua mão tantas vezes brandiu na guerra. Em pé, arrimado ao
invencível tacape, ele dirige a festa. De um e outro lado da vasta ocara, está
a multidão dos guerreiros, colocados por sua ordem primeiro os chefes das
tabas; depois os varões; por último os moços guerreiros.
Vêm depois os jovens
caçadores que já deixaram a oca materna e estão impacientes de ganhar por suas
proezas a honra de serem admitidos entre os guerreiros.
Mas para isso têm de passar
pelas provas, e sua juventude não lhes consente ainda a robustez, que tamanho
esforço demanda.
Todos invejam a glória de
Jaguarê, que ontem era o primeiro entre eles, e hoje ali está disputando a fama
aos mais valentes guerreiros.
Por detrás da estacada
apinham-se as mulheres, que segundo o rito pátrio não podem ser admitidas nas
festas guerreiras.
De longe acompanham
silenciosas, com os olhos, as velhas aos filhos, as esposas aos seus
guerreiros, e as virgens aos noivos.
Exultam quando ouvem
celebrar as façanhas dos seus; mas não ousam murmurar uma palavra.
Entre elas está Jandira, a
doce virgem, cujos negros olhos não se cansam de admirar Jaguarê, seu futuro
senhor.
Já lhe tarda o momento de
ver aclamar guerreiro ao jovem caçador, para ter a felicidade de servi-lo como
escrava na paz, e acompanhá-lo como esposa ao combate.
No centro da ocara ergueu-se
Jaguarê.
Defronte dele, Pojucã, no
corpo que a ferida não abateu, mostra a grande alma, serena em face dos
inimigos.
Camacã troou a inúbia para
ordenar silêncio e o filho começou:
— Guerreiros Araguaias, ouvi
a minha história de guerra.
“Depois que Jaguarê sofreu
as provas do valor, partiu para conquistar um nome famoso.
“Deixando a taba, viu o
falcão negro que despedia o voo para as águas sem fim, e Jaguarê disse:
“O falcão negro é o valente
guerreiro dos ares; ele será a fama do guerreiro Araguaia que atravessará as
nuvens e subirá ao céu.
“Então Jaguarê marcou o voo
do falcão negro e seguiu por ele.
“O sol despediu-se e voltou;
uma, duas, três vezes. No último sol Jaguarê encontrou um guerreiro da nação
Tocantim, senhora do grande rio.
“Guerreiros Araguaias,
quereis saber qual foi o campeão que Tupã enviou a Jaguarê para dar-lhe o nome
de guerra?
“Ele aí está diante de vós.
“É o grande Pojucã, o feroz
matador de gente, chefe da tribo mais valente da poderosa nação dos Tocantins,
senhores do grande rio.
“Vós que o tendes aqui
presente, vede como é terrível o seu aspecto, mas só eu que o pelejei conheço o
seu valor no combate.
“O tacape em sua mão
possante é como o tronco do ubiratã que brotou no rochedo e cresceu.
“Jaguarê, que arranca da
terra o cedro gigante, não o pôde arrancar de sua mão e foi obrigado a
despedaçá-lo.
“Os braços de Pojucã, quando
ele os estende na luta, não há quem os vergue; são dois penedos que saem da
terra.
“Seu corpo é a serra que se
levanta no vale. Nenhum homem, nem mesmo Camacã, o pode abalar.
“Pojucã era o varão mais
forte e o mais valente guerreiro que o sol tinha visto até aquele momento.
“Foi este, guerreiros
Araguaias, o herói que ofereceu combate ao filho de Camacã; e Jaguarê aceitou,
porque logo conheceu que havia encontrado um inimigo digno do seu valor.
“Ele vos contempla,
guerreiros Araguaias. Se alguém duvida da palavra de Jaguarê e da força do
guerreiro Tocantim, chame-o a combate e saberá quem é Pojucã.”
O chefe Tocantim lançou um
olhar ameaçador à multidão dos guerreiros; mas nenhum ousou aceitar o desafio.
Pojucã alçou a mão em sinal
de que desejava falar; todos escutaram com respeito o herói, ainda maior na
desgraça.
— Guerreiros Araguaias, ouvi
a voz de Pojucã, vosso inimigo, que afronta as iras dos fortes e despreza a
vingança dos fracos.
“Pojucã, guerreiro chefe da
grande nação Tocantim, jamais encontrou guerreiro que resistisse à força de seu
braço invencível.
“Mas Tupã, cansado de ouvir
celebrar em todas as festas o nome de Pojucã, como vencedor, emprestou sua
força a Jaguarê, o maior guerreiro que já pisou a terra.
“Eu que senti o ímpeto de
sua coragem, posso dizer-vos que só o sangue Tocantim é capaz de gerar um guerreiro
tão poderoso.
“Foi alguma virgem Araguaia
que vagando pela floresta encontrou Pojucã, e trouxe no seio fecundo a alma do
grande guerreiro.
“Seu braço é como o corisco
do céu; e a sua força como a tempestade que desce das nuvens.”
Calou-se Pojucã; e Jaguarê
continuou o seu canto de guerra:
“Quando a sombra começava a
descer da crista da montanha, Pojucã e Jaguarê caminharam um contra o outro.
“Toda a noite combateram. O
sol nascendo veio achá-los ainda na peleja, como os deixara; nem vencidos, nem
vencedores.
“Conheceram que eram os dois
maiores guerreiros, na fortaleza do corpo, e na destreza das armas.
“Mas nenhum consentia que
houvesse na terra outro guerreiro igual; pois ambos queriam ser o primeiro.
“Foi então que o chefe
Tocantim ganhou na corrida a lança de duas pontas, que Jaguarê havia fabricado.
“Três vezes seu punho
robusto a brandiu, e três vezes ela escapou-lhe da mão, como a serpente das
garras do gavião.
“Mais uma vez o grande
guerreiro investiu com o bote armado; e a lança, escrava de Jaguarê, cravou o
peito do inimigo.
“Ele caiu, o guerreiro
chefe, o grande varão dos Tocantins, o valente dos valentes, Pojucã, o feroz
matador de gente.”
E Jaguarê, brandindo a arma
da vitória, bradou:
“Eu sou Ubirajara, o senhor
da lança, que venceu o primeiro guerreiro dos guerreiros de Tupã.
“Eu sou Ubirajara, o senhor
da lança, o guerreiro terrível que tem por arma uma serpente.”
O trocano ribombou,
derramando longe pela amplidão dos vales e pelos ecos das montanhas a pocema do
triunfo.
Os tacapes, vibrados pela
mão pujante dos guerreiros, bateram nos largos escudos retinindo.
Mas a voz possante da
multidão dos guerreiros cobriu o imenso rumor, clamando:
— Tu és Ubirajara, o senhor
da lança, o vencedor de Pojucã, o maior guerreiro da nação Tocantim.
“Os guerreiros Araguaias te
recebem por seu irmão nas armas e te aclamam forte entre os fortes.
“Os cantores celebrarão teu
nome como os mais famosos da nação Araguaia; e Camacã terá a glória de
chamar-se pai de Ubirajara; como foi glória para Jaguarê, ser filho de Camacã.”
Quando parou o estrondo da
festa e cessou o canto dos guerreiros, avançou Camacã, o grande chefe dos
Araguaias.
De um salto o ancião
alcançou o arco da nação, insígnia do chefe na guerra, e caminhou para
Ubirajara.
O arco era de ubiratã,
grosso como o braço do mais robusto guerreiro; a corda trançada de crautá tinha
o corpo do dedo que a brandia.
Os mais possantes varões da
nação Araguaia, a custo, empunhavam o grande arco; mas só um tinha força para
disparar a seta era Camacã, o chefe dos chefes, que dirigia na guerra os
guerreiros Araguaias.
Assim falou o ancião:
— Ubirajara, senhor da
lança, é tempo de empunhares o grande arco da nação Araguaia, que deve estar na
mão do mais possante. Camacã o conquistou no dia em que escolheu por esposa
Jaçanã, a virgem dos olhos de fogo, em cujo seio te gerou seu primeiro sangue.
Ainda hoje, apesar da velhice que lhe mirrou o corpo, nenhum guerreiro ousaria
disputar o grande arco ao velho chefe, que não sofresse logo o castigo de sua
audácia. Mas Tupã ordena que o ancião se curve para a terra, até desabar como o
tronco carcomido; e que o mancebo se eleve para o céu como a árvore altaneira.
Camacã revive em ti; a glória de ser o maior guerreiro cresce com a glória de
ter gerado um guerreiro ainda maior do que ele. Ubirajara tomou o arco que lhe
apresentava o pai e disse:
— Camacã, tu és o primeiro
guerreiro e o maior chefe da nação Araguaia. Para a glória de Jaguarê bastava
que ele se mostrasse teu filho no valor, como é teu filho no sangue. Mas o
grande arco da nação Araguaia, Ubirajara não o recebe de ti e de nenhum outro
guerreiro, pois o há de conquistar pela sua pujança. Disse, e arremessando no
meio da ocara o grande arco, bradou:
— O guerreiro que ouse
empunhar o grande arco da nação Araguaia, venha disputá-lo a Ubirajara.
Nenhuma voz se ergueu;
nenhum campeão avançou o passo.
O trocano reboou de novo, e
no meio da pocema do triunfo, a multidão dos guerreiros proclamou:
— Ubirajara, senhor da
lança, tu és o mais forte dos guerreiros Araguaias; empunha o arco chefe.
Então Ubirajara levantou o
grande arco, e a corda zuniu como o vento na floresta.
Era a primeira seta,
mensageira do chefe, que levava às nuvens, a fama de Ubirajara.
Os cantores exaltaram a
glória dos dois chefes a do velho Camacã, que trocara a arma do guerreiro pelo
bordão do conselho; e a do jovem Ubirajara, que na sua mocidade já se mostrava
tão grande, como fora o pai na robustez dos anos.
Pojucã teve o consolo de
ouvir seu nome repetido muitas vezes e louvado a par com o de seu vencedor.
Os cantores celebraram
depois os grandes feitos da nação Araguaia, desde os tempos remotos em que os
progenitores deixaram a grande taba dos Tamoios, seus avós.
Quando os nhengaçaras
entoaram o canto do triunfo, vieram as mulheres com vasos cheios do generoso
cauim e apresentaram as taças aos guerreiros.
Jandira suspirou; ela era
virgem, e como suas companheiras, não podia aparecer na festa dos guerreiros.
Sentiu não ser já esposa,
para ter o orgulho de encher de vinho espumante, por ela fabricado, a taça de
seu herói e senhor.
O guincho agoureiro da
inhuma ressoava na mata, quando começou a dança guerreira que durou até perto
da alvorada.
A NOIVA
Ao raiar da luz no céu,
Jandira abriu os lindos olhos negros.
Seu canto foi o primeiro que
saudou o nascer do dia e acordou em seu ninho a viuvinha.
A doce filha de Majé saltou
da rede que embalara os sonhos castos da virgem; e despediu-se dela como a
jaçanã que deixa a moita para habitar o ninho do amor.
A virgem Araguaia acreditava
ter dormido a última noite na cabana paterna, que essa manhã ia trocar pela
cabana do esposo.
O jovem caçador que a amava,
Jaguarê, fora aclamado guerreiro, e entre todos os guerreiros, o chefe da
nação.
Como guerreiro ele pode
tomar uma esposa; e como chefe pertence-lhe a virgem de sua escolha, entre as
mais formosas da taba.
Ainda que a virgem tenha um
noivo, ou que o pai a destine a outro, se o chefe a deseja, a vontade de Tupã é
que lhe pertença.
Tupã assim ordena para que
os grandes chefes possam gerar de seu sangue os mais belos e valentes
guerreiros.
Jaguarê antes de ser
aclamado chefe já a tinha escolhido, e Jandira não aceitaria outro noivo senão
o jovem caçador a quem amava.
Ela o espera. Logo que o sol
alumie a terra, Ubirajara, o grande chefe, há de vir buscá-la.
Então a virgem se despedirá
de Majé; e irá armar na cabana de seu guerreiro e senhor a rede da esposa.
Ligeira e contente, corre a
banhar-se no rio antes que chegue Ubirajara, para quem purifica seu corpo e
unge-se com o óleo fragrante do sassafrás.
Ela quer que o destemido
guerreiro ache seu amor saboroso como o vinho que espuma na taça e ferve nas
veias.
Tornando à cabana, perfumou
de beijoim a larga rede que tecera dos fios do algodão entrelaçados com as
penas do guará.
Essa rede tinha duas vezes o
tamanho de sua rede de virgem porque era a rede do casamento em que devia
receber o esposo.
Depois arrumou no uru a
louça que havia fabricado para o serviço do guerreiro, e que devia transportar
à sua nova cabana.
Quando terminou todos os
preparativos, encostou-se à porta da cabana; seus olhos impacientes chamavam
Ubirajara.
Mas o guerreiro não vinha, e
o sol já tinha subido além da crista da serra.
A luz do dia derramava a
alegria pelos campos; e a alegria que lhe afogara os sonhos da noite fugia
agora da alma de Jandira.
Então a filha de Majé partiu
em busca do noivo que a esquecera.
No mais escuro da mata, vaga
o chefe dos Araguaias.
Seus olhos fogem à luz do
dia e buscam a sombra, onde encontram a imagem que traz na lembrança. A noite,
quando o guerreiro dormia em sua rede solitária, Araci, a linda virgem, lhe
apareceu em sonho e lhe falou:
— Jaguarê, jovem caçador, tu
dormes descansado enquanto os guerreiros Tocantins se preparam para roubar a
virgem de teus amores. Ergue-te e parte, se não queres chegar tarde.
Ele erguera-se para
segui-la; mas a virgem formosa desferiu a corrida veloz através da campina e
desapareceu na floresta.
Neste ponto do sonho o
guerreiro acordara.
Uma estrela brilhante
listrava o céu, como uma lágrima de fogo, e Ubirajara pensou que era o rasto de
Araci, a filha da luz.
A juriti arrulhou docemente
na mata e Ubirajara lembrou-se da voz maviosa da virgem do sol.
O guerreiro tornou à rede,
esperando achar ali outra vez o sonho que visitara sua alma; porém o sono
fugira de seus olhos.
Quando raiou a primeira
alvorada, Ubirajara saiu da cabana e buscou no mais espesso da mata a sombra
propícia à saudade.
Seu passo o guiava sem
querer para as bandas do grande rio, onde devia ficar a taba dos Tocantins.
É assim que os coqueiros,
imóveis na praia, inclinam para o nascente seu verde cocar.
Ubirajara ouviu o rumor de
um passo ligeiro através da mata; de longe conheceu Jandira que o procurava.
A doce virgem achara à porta
da cabana o rasto do guerreiro e o seguira através da floresta.
— Que mau sonho aflige
Ubirajara, o senhor da lança e o maior dos guerreiros, chefe da grande nação
Araguaia, para que ele se afaste de sua taba e esqueça a noiva que o espera?
— A tristeza entrou no
coração de Ubirajara, que não sabe mais dizer-te palavras de alegria, linda
virgem.
— A tristeza é amarga;
quando entra no coração do guerreiro o enche de fel. Mas Jandira fará como sua
irmã, a abelha, ela fabricará em seus lábios, os favos mais doces para seu
guerreiro; suas palavras serão os fios de mel que ela derramará na alma do
esposo.
— Filha de Majé, doce
virgem, ainda não chegou o dia em que Ubirajara escolha uma esposa; nem ele
sabe ainda qual o seio que Tupã destinou para gerar o primeiro filho do grande
chefe dos Araguaias.
O lábio de Jandira emudeceu;
mas o peito soluçou.
A virgem conheceu que o amor
de Ubirajara retirava-se dela, e que de todo o perderia se o não defendesse.
Então escondeu a dor no
fundo da alma e chamou o riso a seus lábios, a alegria a seus olhos.
Ela sabia que os guerreiros
amam a flor da formosura, como a folhagem da árvore; e que a tristeza murcha a
graça da mais linda virgem.
— Chefe dos Araguaias,
Ubirajara, não desprezas Jandira que outrora escolheste para tua noiva. Se
então ela era formosa a teus olhos, mais formosa se fará para merecer teu amor.
Tu gostavas de seus cabelos negros que arrastam no chão; ela os entrançará com
as plumas vermelhas do guará para que te pareçam mais bonitos. Seus olhos
negros que te falavam, ela os cercará de uma listra amarela como os olhos da
jaçanã. Sua boca, que ainda não provaste, Jandira a encherá de amor para que
bebas nela o contentamento. Jandira esperou a palavra de Ubirajara; mas os
lábios mudos do guerreiro não se abriram.
— Teu amor, Ubirajara,
ficará em meu seio como a flor no vale. Jandira te dará muitos filhos e todos
dignos de teu valor. Nestes peitos que te pertencem, ela os nutrirá com seu
sangue, não menos guerreiro do que o teu; porque é o sangue de Majé, o maior
dos anciões, depois de Camacã. Seus braços, que outrora querias para tua
cintura, não servirão unicamente para te abraçarem, mas também para te
servirem. Tua esposa te acompanhará por toda parte, na taba, como no campo do
combate; ela cuidará de tua cabana; aprontará as mais saborosas iguarias para
seu guerreiro, e fabricará para ele o vinho, que a alma da festa.
— Jandira é a mais bela das
virgens Araguaias. Seu amor fará a ventura de um guerreiro valente. Ubirajara
não podia achar para si uma esposa mais fiel; nem para seus filhos outra mãe
tão fecunda. Mas a noite desceu em sua alma. Só a estrela do dia pode
restituir-lhe a alegria que o abandonou. A filha de Majé merece um guerreiro
que tenha olhos para a sua formosura.
Pojucã sentou-se pensativo à
porta da cabana.
O semblante, sempre grave,
como convém a um chefe, cobre-se de tristeza.
A noite que foge da terra,
vencida pelo sol, parece recolher-se na alma do chefe Tocantim.
Não é sua ferida que o faz
sofrer. O bálsamo suave da embaíba sara rapidamente os golpes mais profundos; e
os varões Tocantins aprendem desde o berço a desprezar a dor.
E em seu coração de
guerreiro que Pojucã sente as garras do Anhangá.
O revés de ser vencido e
cair prisioneiro, ele o suporta como o varão forte que viu prostrados por
Aresqui, no campo da batalha, os mais terríveis guerreiros.
A grandeza do vencedor o
consola; resta-lhe ainda a glória de ter resistido a um braço como o de
Ubirajara, grande chefe dos Araguaias.
Mas ele esperava que depois
de haver ornado com sua presença a festa do triunfo, o vencedor fosse generoso,
e lhe concedesse a honra do sacrifício.
É o temor de que Ubirajara
lhe recuse uma morte gloriosa e o retenha cativo, que nesse momento acabrunha o
chefe dos Tocantins.
Ele, um guerreiro livre, que
pisara outrora como senhor aqueles campos, reduzido à condição de escravo?
Ele, um varão chefe, que
tinha na obediência de seu arco mais de mil guerreiros valentes, obrigado a
reconhecer um dono?
Ele, que afrontava a cólera
de Tupã, quando o deus irado rugia do céu, curvar-se ao aceno de um homem,
fosse, embora, o mais pujante dos filhos da terra?
Pojucã estremecia quando se
lembrava que podia ser condenado a tão grande humilhação.
Em seu terror promovia o
passo, com o ímpeto de fugir para sempre da taba dos Araguaias, onde o ameaçava
aquela vergonha.
Mas uma força invencível
atava-lhe a vontade. Ele não se pertencia desde o momento em que Ubirajara
calcou-lhe a mão direita no ombro.
Esse era o sinal da
conquista, que prendia o vencido ao vencedor; aquele que violasse a lei da
guerra, perderia para sempre o nobre título de guerreiro.
O desprezo do inimigo o
acompanharia aos seus nativos; e a taba de seus irmãos não se abriria para o
fugitivo que houvesse desonrado o nome de sua nação.
Por isso, na cabana
solitária, Pojucã está mais guardado do que se o cercasse a multidão dos
guerreiros Araguaias.
Vela ele próprio em si,
porque vela em sua fama.
Pode Ubirajara esquecê-lo
que na volta o encontrará ali onde o deixou.
Nada o arrancará da cabana;
nem a necessidade de buscar o alimento para o corpo.
Bem-vinda será a fome, se
durar tanto que prostre seu corpo robusto, e o entregue ao seio da terra, onde
o guerreiro dorme o sono da glória.
Além, rompe da selva
Ubirajara, que se encaminha para a cabana com o passo rápido.
Segue-o de perto Jandira,
como a gentil corça acompanha o caçador, que roubou-lhe o companheiro.
Descobrindo o chefe dos
Araguaias, Pojucã encerrou a tristeza dentro de sua alma; e chamou ao rosto a
altivez dos grandes guerreiros.
O chefe Tocantim não queria
que seu vencedor se regozijasse de ter-lhe abatido o ânimo inflexível.
Quando Ubirajara
aproximou-se da cabana, Pojucã tomou-lhe o passo.
— Ubirajara, senhor da
lança, grande chefe da nação Araguaia, não confessaste tu, diante dos anciões
das tabas e de todos os teus guerreiros, que Pojucã era o varão mais forte e o
mais terrível no combate, que o sol tinha visto até o momento de ser vencido
por ti?
— Ubirajara o disse. É a voz
da nação Araguaia.
— Desde que tu cruzaste
comigo a seta do desafio até este momento, Pojucã, guerreiro varão, e chefe de
uma taba na valente nação dos Tocantins, mostrou-se pela sua constância e valor
digno do sangue de seus avós?
— Pojucã o disse, e a fama o
repete.
— Então, por que Ubirajara,
o grande chefe dos Araguaias, não concede a Pojucã a morte gloriosa, que os
Tocantins jamais recusaram a um guerreiro valente, e que somente se nega aos
fracos? Já não serviu Pojucã à tua glória na festa do triunfo? Esperas dele que
te obedeça como um escravo? Se aviltas o varão a quem venceste, humilhas o teu
valor que ele exaltava.
— Ubirajara não recusa ao
bravo chefe Tocantim, seu terrível inimigo, o suplício, que não negaria a
qualquer guerreiro valente. Ele esperava que tua ferida se fechasse de todo,
para que o grande Pojucã possa, no dia do último combate, sustentar a fama de
seu nome, e a glória de um varão que só foi vencido por Ubirajara.
O grande chefe Araguaia
ouviu sem interromper o prisioneiro e respondeu com gravidade.
O grande chefe dos Araguaias
levou aos lábios a inúbia de Camacã; a voz do mando reboou pelo vasto âmbito da
taba.
Apareceram vinte jovens
guerreiros, a quem ele ordenou que chamasse a conselho os anciões.
Depois tornou ao chefe
Tocantim:
— Os Araguaias receberam de
seus avós o costume das nações que Tupã criou. Eles destinam ao prisioneiro a
mais bela e a mais ilustre de todas as virgens da taba, para que ela conserve o
sangue generoso do herói inimigo e aumente a nobreza e o valor de sua nação.
“É esta também a lei, que os
guerreiros Tocantins observam em suas tabas.
“A mais bela e a mais nobre
de todas as virgens Araguaias, aquela que se ergue como a palmeira no meio da
campina coberta de flores, é Jandira, a filha de Majé, que tem no seio os doces
favos da abelha.”
Travando então do pulso de
Jandira, que ali ficara presa de sua vista, levou-a ao prisioneiro.
— Recebe-a como esposa do
túmulo.
Jandira, que ouviu
espavorida aquelas palavras, quis fugir; porém a mão do chefe Araguaia a
reteve.
— Ubirajara parte, mas ele
voltará para assistir a teu suplício e vibrar-te o último golpe. Pojucã terá a
glória de morrer pela mão do mais valente guerreiro. Ficaram Jandira e Pojucã
em face um do outro.
— Virgem dos Araguaias, Tupã
te reservou para esposa do mais terrível dos inimigos de tua nação. O filho de
seu sangue será o mais valente dos guerreiros; tu sentirás orgulho por havê-lo
gerado em teu seio.
— Pojucã, chefe Tocantim,
Jandira nunca será tua esposa.
— Não é Ubirajara o chefe de
tua nação, e não te destinou ele para servir de noiva do túmulo ao guerreiro que
vai morrer no suplício?
— Ubirajara é o grande chefe
da nação Araguaia; à sua voz cala-se a palavra dos anciões; a seu gesto
curva-se a fronte dos guerreiros; à sua vontade obedecem as tabas. Mas no amor
de Jandira, ninguém manda, nem Tupã. Jandira é noiva de Ubirajara, e se ele não
quiser aceitá-la, o guanumbi a levará para os campos alegres onde repousam as
virgens que morreram.
— Pojucã não carece do amor
de Jandira. Nas tabas dos Tocantins, a mais bela das virgens se regozijaria de
pertencer ao mais valente dos chefes e de habitar sua rede. Nas tabas dos
Araguaias, onde nascem guerreiros como Ubirajara, não faltarão virgens
formosas, que desejem a glória de ser mãe de um filho de Pojucã.
— Jandira seria a primeira,
se não conhecesse Jaguarê, o mais belo dos jovens caçadores, que é hoje
Ubirajara, o senhor da lança e chefe dos chefes. Pojucã merece uma esposa que
nunca tenha ouvido o canto de outro guerreiro, para dar-lhe um filho digno
dele.
— Os ritos de tua nação não
punem a noiva que rejeita o prisioneiro?
— Jandira sabe que
sujeita-se à morte; mas a morte é menos cruel do que o abandono.
— Então foge, virgem dos
Araguaias; e esconde-te à cólera dos anciões. Talvez mais tarde Ubirajara se
arrependa e te perdoe.
— Jandira parte. Ela te
deseja uma esposa terna e a morte gloriosa.
A filha de Majé penetrou na
floresta e afastou-se rapidamente da taba. Quando já estava muito longe, sentou
à sombra de um manacá coberto de flores e cantou.
— Eu fui Jandira, a linda
abelha, que fabricava os favos de cera para enchê-los de mel saboroso.
“Agora arrancaram-me as
minhas asas com que eu voava pela campina colhendo o pó das flores e secou a
doçura de meu sorriso.
“O canto que saía de meu
seio era como o da patativa ao pôr do sol, quando se recolhe em seu ninho de
paina macia. “Agora eu queria ter no coração uma serpente para morder aquela
que roubou-me o amor de meu guerreiro.
“Guardei a minha formosura
para orgulho do esposo, e inveja dos outros guerreiros. “Agora eu trocaria a
flor do meu rosto por um aspecto terrível que infundisse pavor. “Meus seios
mais lindos que os botões do cardo, por um peito feroz, e as mãos ligeiras que
tecem os fios do algodão pelas garras do jaguar. “Eu fui Jandira, o manacá
viçoso que se vestia de flores azuis e brancas. “Agora sou como a juçara que
perdeu a folha, e só tem espinhos para ferir aqueles que se chegam.” Os anciões
já estavam reunidos na oca do conselho, quando Ubirajara entrou. Falou Camacã:
— Ubirajara, senhor da
lança, chefe dos chefes, os pais da grande nação Araguaia escutam a tua voz. O
grande chefe três vezes bateu no chão com a ponta do arco e disse:
— Pojucã, o chefe Tocantim,
pede a morte do combate; ele a merece, porque é um grande guerreiro e um varão
ilustre. Ubirajara concedeu-lhe essa honra, como seu vencedor.
— Ubirajara é um inimigo
generoso, respondeu Camacã.
Todos os anciões inclinaram
gravemente a cabeça encanecida para exprimirem sua aprovação às palavras de
Camacã. Prosseguiu Ubirajara:
— É tempo de escolher para o
prisioneiro uma esposa digna de acompanhar em seus últimos dias ao herói
inimigo, e de ser mãe do Marabá, o filho da guerra. Todos os Abarés desejavam
para si a glória de oferecer uma filha ao prisioneiro.
— Ubirajara destinou-lhe
Jandira, filha de Majé. Ela o merece por sua formosura e pelo sangue do grande
guerreiro que gira em suas veias.
— Ubirajara é um grande
chefe, disse Camacã.
Os anciões aprovaram outra
vez com a cabeça; Majé acrescentou:
— O sangue do velho Majé não
desmentirá em Jandira a fama da nação Araguaia.
— Não! disse Ubirajara, e
todos os anciões repetiram Não!
O grande chefe tornou com a
voz pausada.
— Celebrai a cerimônia da
entrega da esposa ao prisioneiro. Ubirajara parte; só estará de volta na
próxima lua para assistir ao suplicio de Pojucã. Se na ausência de Ubirajara
cair na taba a flecha, anúncia da guerra, conduzi o trocano ao sitio onde se
abraçam os grandes rios e soltai a voz da nação Araguaia. Nesse dia Ubirajara
será convosco.
Os prudentes anciões, com a
cabeça inclinada para melhor ouvir, recebiam as palavras do grande chefe e as
guardavam na memória.
Quando Ubirajara calou-se,
Camacã repetiu, ainda mais pausado, as recomendações do filho:
— É esta a vontade de
Ubirajara?
— Tu o disseste.
— Os anciões guardaram a
palavra do chefe dos chefes? perguntou ainda Camacã.
— Ela entrou no espírito dos
Abarés, como a raiz no seio da terra; observou Majé.
— Bem dito; repetiram todos.
Ubirajara saiu do
carbeto; após ele os anciões se retiraram lentamente.
A HOSPITALIDADE
Na entrada do vale ergue-se
a grande taba dos Tocantins. É a hora em que as sombras abraçam os troncos das
árvores e o sol descansa em meio da carreira.
A floresta emudece e todos
os viventes se abrigam da calma que abrasa.
Ubirajara deixa o escuro da
mata e caminha para a grande taba dos Tocantins.
Quando chegou à distância do
tiro de uma flecha despedida pelo mais robusto guerreiro, tocou a inúbia.
O guerreiro de vigia
respondeu; e o chefe Araguaia, quebrando a seta, alçou a mão direita para
mostrar a senha da paz.
Então avançou para a taba;
na entrada da caiçara que cercava o campo dos Tocantins, atirou ao chão a seta
partida.
Os guerreiros que tinham
acudido ao som da inúbia, deixaram passar o estrangeiro sem inquirir donde
vinha, nem o que trouxera.
Era este o costume herdado
de seus maiores; que o hóspede mandava na taba aonde Tupã o conduzia.
Ubirajara passou entre os
guerreiros e dirigiu-se à cabana mais alta que ficava no centro da ocara.
A figura do tucano, feita de
barro pintado, e colocada em cima da porta, dizia que era ali a cabana do
grande chefe. Mas Ubirajara já o sabia; pois antes de penetrar na taba, subira
à grimpa do mais alto cedro da floresta para conhecer o sítio onde habitava
Araci, a estrela do dia.
A cabana estava deserta
naquele instante, mas ouvia-se a fala das mulheres que trabalhavam no terreiro.
Ubirajara transpôs o limiar
e, levantando a voz, disse:
— O estrangeiro chegou.
Acudiram as mulheres e
conduziram Ubirajara à presença do grande chefe dos Tocantins.
Itaquê passava as horas da
ardente calma à sombra da frondosa gameleira, que podia abrigar cem guerreiros
embaixo de sua rama.
Repousando dos combates, o
formidável guerreiro não desdenhava as artes da paz em que era tão consumado
como nas batalhas.
Assim honrava as fadigas da
taba, dando o exemplo do trabalho à família de que era pai, e à nação de que
era chefe.
Nesse momento as mulheres
colocadas em duas filas, com as mãos erguidas, urdiam os fios de algodão,
passados pelos dedos abertos em forma de pente. Itaquê manejava a lançadeira,
tão destro como na peleja vibrava o tacape. Sua mão ligeira tramava a teia de
uma rede, que entretecia das penes douradas do galo-da-serra.
Quando chegou Ubirajara, o
grande chefe dos Tocantins, depois de ter rematado a urdidura, entregou a
lançadeira ao guerreiro Pirajá que estava a seu lado, e veio ao encontro do
hóspede.
— O estrangeiro veio à
cabana de Itaquê, grande chefe da nação Tocantim; disse Ubirajara.
— Bem-vindo é o estrangeiro
à cabana de Itaquê, grande chefe da nação Tocantim. Então o tuxava voltou-se para
Jacamim, a mãe de seus filhos:
— Jacamim, prepara o
cachimbo do grande chefe, pare que ele e o estrangeiro troquem a fumaça da
hospitalidade.
Os mensageiros já corriam
pela taba, avisando os guerreiros Moacaras da vinda do hóspede à cabana de
Itaquê.
Os moacaras, revestidos de
seus ornatos de festa, se encaminharam com o passo grave à oca principal, a fim
de honrar o hóspede do grande chefe da nação Tocantim.
Ali chegados, cada um
dirigiu ao estrangeiro a pergunta da hospitalidade e deu-lhe a boa vinda.
Depois que Itaquê ofereceu a
Ubirajara o cachimbo da paz, e com ele trocou a fumaça da hospitalidade, os
cantores entoaram a saudação da chegada:
“O hóspede é mensageiro de
Tupã. Ele traz a alegria à cabana; e quando parte, leva consigo a fama do
guerreiro que teve a fortuna de o acolher.
“Nas tabas por onde passe, e
na terra de seus pais, ele conta aos velhos, que depois ensinam aos moços, as
proezas dos heróis que viu em seu caminho, e de quem recebeu o abraço da paz.
“O hóspede é mensageiro de
Tupã. Ele traz consigo a sabedoria; na cabana do guerreiro, que tem a fortuna
de o acolher, todos o escutam com respeito.
“Em suas palavras prudentes,
os anciões da taba aprendem, para ensinar aos moços, os costumes dos outros
povos, as façanhas de guerras desconhecidas por eles, e as artes da paz, que o
estrangeiro viu em suas viagens.
“O hóspede é mensageiro de
Tupã. O primeiro que apareceu na taba dos avós da nação Tocantim, foi Suma, que
veio donde a terra começa e caminhou pare onde a terra acaba.
“Dele aprenderam as nações a
plantar a mandioca para fazer a farinha; e a tirar do caju e do ananás o
generoso cauim, que alegra o coração do guerreiro.
“O hóspede é mensageiro de
Tupã. Quando o estrangeiro entra na cabana, o guerreiro que tem a fortuna de o
acolher, não sabe se ele é um chefe ilustre ou o grande Suma que volta de sua
viagem.
“O sábio ensina, por onde
passa, os segredos da paz, e o herói, as façanhas da guerra; mas ambos deixam
na cabana da hospitalidade, a glória de ter abrigado um grande varão.
“O hóspede é mensageiro de
Tupã. Por seu caminho vai deixando a abundância e a festa; depois do banquete
da boa vinda, as árvores vergam com os frutos e a caça não cabe na floresta.
“A cabana, que fecha a porta
ao hóspede, o vento a arranca, o fogo do céu a abrasa. O guerreiro que não se
alegra com a chegada do hóspede, vê murchar ao redor de si a esposa, os filhos,
as mulheres e as roças que ele plantou.
“Bem-vindo seja o
estrangeiro na cabana de Itaquê, o grande chefe da nação Tocantim, que teve a
glória de ser escolhido pelo hóspede.
“Os guerreiros exultam com a
honra de seu chefe, e os cantores te saúdam, mensageiro de Tupã.”
Enquanto na cabana ressoa o
canto da boa vinda, Jacamim, a esposa de Itaquê, chamou as amantes do marido,
sues servas, pare ajudá-la a preparar o banquete da hospitalidade.
As servas pressurosas
estenderam à sombra da gameleira as alvas esteiras de palmas entrançadas de
airi; e colocaram sobre elas os urus cheios de farinha-d’água.
Trouxeram também os camucins
rasos, onde se apinhavam as moquecas envoltas em folhas de banana, e peças de
carne, assada no biaribi, que ainda fumegava nos pratos feitos de concha de
tartaruga.
Depois suspenderam a caça
mais volumosa, veados e antas, assim como as igaçabas de cauim, nos ramos
inclinados da árvore, em altura que o braço do guerreiro pudesse alcançar.
Frutas de várias espécies,
pencas douradas de bananas, cachos roxos de açaí, os rubros croás e os fragrantes
abacaxis, enchiam o jirau levantado no meio do terreiro.
Jacamim conduzira o hóspede
à sombra da gameleira, onde o esperava o banquete da chegada.
Ao lado de Ubirajara
sentou-se Itaquê e depois os moacaras que tinham vindo para a festa da
hospitalidade.
Os guerreiros comeram em
silêncio. As mulheres diligentes os serviam, enchendo de vinho de caju e ananás
as largas cumbucas, tintas com a pasta do crajuru que dá o mais brilhante
carmim.
Quando o hóspede, depois de
satisfeito o apetite, lavou o rosto e as mãos, Jacamim ordenou às servas que
recolhessem os restos das provisões, e retirou-se com elas.
Também afastaram-se os
jovens guerreiros, que ainda não tinham voz no conselho. Só ficaram sentados
com o hóspede, Itaquê, e os moacaras, senhores das cabanas.
O cachimbo do grande chefe
passou de mão em mão e cada ancião bebeu a fumaça da erva de Tupã, que inspira
a prudência no carbeto.
Então disse o chefe.
— Itaquê deseja dar a seu
hóspede um nome que lhe agrade; e precisa que o ajude a sabedoria dos anciões.
A lei da hospitalidade não
consentia que se perguntasse o nome ao estrangeiro que chegava, nem que se
indagasse de sua nação.
Talvez fosse um inimigo; e o
hóspede não devia encontrar na cabana onde se acolhia, senão a paz e a amizade.
O chefe, que tinha a fortuna
de receber o viajante, escolhia o nome de que ele devia usar enquanto
permanecia na cabana hospedeira.
Foi Ipê quem primeiro falou:
— Tu chamarás ao hóspede
Jutaí, porque sua cabeça domina o cocar dos mais fortes guerreiros, como a copa
do grande pinheiro aparece por cima da mata. Disse Tapir:
— Chama ao hóspede Boitatá,
porque ele tem os olhos da grande serpente de fogo, que voa como o raio de
Tupã.
Os moacaras, cada um por sua
vez, falaram; e como a voz começava do mais moço para acabar no mais velho, as
últimas falas eram menos guerreiras e traziam a prudência da idade.
Assim Caraúba, que era o
segundo antes do chefe, disse:
— Itaquê, o hóspede é o
núncio da paz. Tu deves chamá-lo Jutorib, porque ele trouxe a alegria à tua
cabana. Guaribu, cujos anos enchiam a corda de sua existência de mais nós, do
que tem o velho cipó da floresta, falou por último.
— O viajante é senhor na
terra que ele pisa como hóspede e amigo; e o nome é a honra do varão ilustre,
porque narra sua sabedoria. Pergunta ao estrangeiro como ele quer ser chamado
na taba dos Tocantins.
— Bem dito!
Itaquê, aprovando as
palavras prudentes do ancião, perguntou a Ubirajara que nome escolhia; este lhe
respondeu:
— Eu sou aquele que veio
trazido pela luz do céu. Chama-me Jurandir.
Nesse momento, Araci, a
estrela do dia, apareceu por entre as palmeiras e caminhou para a cabana.
Os mais valentes entre os
jovens guerreiros Tocantins acompanhavam a formosa caçadora. Eram os servos do
amor, que disputavam a beleza da virgem.
Os cantores saudaram de novo
o hóspede pelo nome que ele escolhera.
— Tu és aquele que veio
trazido pela luz do céu. Nós te chamaremos Jurandir; para que te alegres
ouvindo o nome de tua escolha.
“Tu és aquele que veio
trazido pela luz do céu. Nós te chamaremos Jurandir; e o nome de tua escolha
alegrará o ouvido dos guerreiros. “
De longe Araci viu o
estrangeiro, sentado entre os anciões, como o frondoso jacarandá no meio dos
velhos troncos das aroeiras.
A virgem reconheceu logo o
caçador Araguaia e adivinhou que ele viera à cabana de Itaquê para disputar sua
beleza aos guerreiros Tocantins.
O coração de Araci encheu-se
de alegria. Seus negros cabelos estremeceram de contentamento, como as penas da
jaçan quando pressente o formoso inverno.
O estrangeiro não queria ser
conhecido; pois deixara o cocar das plumas da arara, que eram o ornato
guerreiro de sua nação. Mas a imagem do jovem caçador ficara na lembrança da
virgem, como fica na terra a verde folhagem, depois da lua das águas.
A lei da hospitalidade
proibia à virgem revelar o segredo do estrangeiro, só dela sabido. Nesse
momento foi à sua alma que obedeceu e não ao costume da nação.
Quando Araci chegou ao
terreiro, os anciões se preparavam para ouvir a maranduba do hóspede. Os
guerreiros e as mulheres escutavam em silêncio.
O estrangeiro começou:
— Jurandir é moço; ainda
conta os anos pelos dedos e não viveu bastante para saber o que os anciões da
grande nação Tocantim aprenderam nas guerras e nas florestas.
“O moço é o tapir que rompe
a mata, e voa como a seta. O velho é o jabuti prudente que não se apressa.
“O tapir erra o caminho e
não vê por onde passa. O jabuti observa tudo, e sempre chega primeiro.
“Jurandir é moço; mas
conhece as grandes florestas; e atravessou mais rios do que as veias por onde
corre o sangue valente de seu pai.
“A primeira água em que
Jaçanã, sua mãe, o lavou, quando ele rasgou-lhe o seio, foi a do grande lago
onde Tupã guardou as águas do dilúvio, depois que as retirou da terra.
“Ainda Jurandir não era um
caçador, quando ele se banhou no pará sem fim, onde os rios despejam a sua
corrente, e cujas águas quando dormem se mudam em sal.
“Duas vezes Jurandir seguiu
o pai dos rios, desde a grande montanha onde nasce, até a várzea sem fim que
ele enche com suas águas.
“Ele viu o grande rio
combater com o mar, no tempo da pororoca. Os dois chefes tocam a inúbia antes
da peleja, para chamar seus guerreiros.
“Vêm de um lado as águas do
mar; são os guerreiros azuis, com penachos de araruna; vêm do outro as águas do
rio; são os guerreiros vermelhos com penachos de nambu.
“Começa a batalha. Os
guerreiros se enrolam, como a corrente da cachoeira, batendo no rochedo; a
terra estremece com o trovão das águas.
“Mas o grande rio agarra o
mar pela cintura. Arranca do chão o inimigo; carrega-o nos ombros; solta o grito
de triunfo. “Por muito tempo os Tetivas, que habitam sobre as árvores, veem
passar correndo as águas do marzão os guerreiros azuis que fogem espavoridos e
vão esconder-se na sombra das florestas.
“Jurandir também viu a terra
onde habitam as mulheres guerreiras, senhoras de seu corpo, que vivem embaixo
das águas do grande rio.
“Só elas sabem o segredo das
pedras verdes, que tornam os guerreiros cativos de seu amor, sem privá-las da
liberdade.
“Por isso, todas as luas,
grande número de guerreiros as visitam em sua taba; e elas guardam para os mais
valentes a flor de sua beleza.
“Quando chega o tempo de vir
o fruto do amor, guardam somente as filhas; e enviam aos guerreiros os filhos,
donde saem os maiores chefes.
“Feliz o guerreiro que acha
uma terra valente e fecunda para a flor do seu sangue. O filho será maior do
que ele; e o neto maior do que o filho.
“Sua geração vai assim
crescendo de tronco em tronco; e forma uma floresta de guerreiros, onde o
último cedro se ergue mais frondoso e robusto, porque recebe a seiva de seus
avós. “
Quando Jurandir proferiu as
últimas palavras, seus olhos que tinham muitas vezes buscado Araci, repousaram
nela.
A virgem Tocantim
compreendeu que o estrangeiro se referia a si; e não escondeu sua alegria, como
não esconde sua flor a juquiri que o rio beija.
A formosa caçadora cantou.
Sua voz era límpida e sonora como o gorjeio do sabiá, quando se deleita com o
calor do sol.
— Feliz a terra que recebe a
semente do cedro frondoso e robusto; ela se cobrirá de sombra e frescura. Os guerreiros
gostarão de reunir-se aí para falar da paz e da guerra.
“Ela é como a virgem que um
chefe ilustre escolheu para sua esposa, e que se povoa de uma prole numerosa.
As nações a respeitam porque é a mãe de valentes guerreiros; os anciões escutam
seu conselho na paz e na guerra.
“As mulheres guerreiras,
senhoras de seu corpo, são como a palmeira do muriti, que rejeita o fruto antes
que ele amadureça e o abandona à correnteza do rio.
“A esposa não desprende de
si o filho, senão quando ele não chupa mais seu peito. Ela é como a mangabeira;
nutre o fruto com seu leite, que é a flor de seu sangue.
“Não é na terra das mulheres
guerreiras que o estrangeiro deve buscar a esposa; mas na taba de sua nação,
onde Tupã guarda para seu valor a mais bela das virgens, aquela que tem o
sorriso de mel.”
O hóspede respondeu:
— Jurandir sabe onde
encontrará a virgem que deseja para esposa. A luz do céu o guia, e nada resiste
à força de seu braço.
Depois de responder ao canto
de Araci, o estrangeiro continuou sua maranduba, que todos ouviram silenciosos.
Ele contou o que havia
aprendido nas praias do mar, habitadas pela valente nação dos Tupinambás,
descendentes da mais antiga geração de Tupi.
Os pajés dos Tupinambás lhe
disseram que nas águas do pará sem fim vivia uma nação de guerreiros ferozes,
filhos da grande serpente do mar.
Um dia esses guerreiros
sairiam das águas para tomarem a terra às nações que a habitam; por isso os
Tupinambás tinham descido às praias do mar, para defendê-las contra o inimigo.
Os guerreiros do mar também
tinham suas guerras entre si, como os guerreiros da terra. Então as águas
pulavam mais altas do que os montes; seu estrondo era como o trovão.
Jurandir contou mais, que
nas praias do mar se encontrava uma resina amarela, muito cheirosa, a qual a
grande serpente criava no bucho.
Os Tupinambás faziam dessa
goma contas para seus colares; Jurandir mostrou a pulseira que lhe cingia o
artelho, presente de um guerreiro daquela nação.
Essas contas tornavam o pé
do guerreiro ágil na corrida, e protegiam o viajante contra os caiporas da
floresta, que apartavam-se de seu caminho.
Muitas outras coisas referiu
Jurandir; e os anciões admiravam-se de ver o juízo prudente de um abaré no
corpo jovem de tão forte guerreiro.
Os mais velhos dos moacaras
acreditaram que o hóspede era filho de Sumé, mandado por seu pai correr as
terras que o sábio tinha visto em sua mocidade.
Calaram porém seu
pensamento, para o comunicarem aos anciões quando se reunisse o carbeto da
nação.
O sol já descia para as
montanhas, quando terminou a festa da hospitalidade na cabana de Itaquê.
Os moacaras partiram. Itaquê
voltando à sua ocupação, deixou o hóspede senhor de sua vontade, para fazer o
que lhe agradasse.
Vieram os jovens pescadores
da taba, com os anzóis e jequis, saber do hóspede que peixe ele preferia.
Depois deles chegaram os
jovens caçadores que, antes de partir para a floresta, vinham receber os
desejos do hóspede.
Por fim aproximaram-se as
mulheres que já tinham rompido o fio da virgindade; mas não eram nem esposas,
nem amantes de guerreiros.
Essas eram as mulheres
livres, que davam seu amor e o retiravam quando queriam, mas não recebiam a
proteção de um guerreiro, nem podiam jamais ser mães da prole.
Os filhos, concebidos no
próprio seio, só tinham por mãe a esposa, que o guerreiro tomou por companheira
de sua existência e raiz de sua geração.
O rito da hospitalidade,
entre os filhos da floresta, manda que se dê ao estrangeiro amigo tudo que
deleita ao guerreiro.
Por isso vinham as moças
oferecer a Jurandir sua beleza, para que ele escolhesse entre elas uma
companheira, que partilhasse sua rede na cabana hospedeira.
Todas se tinham enfeitado
com seus mais belos ornatos, para agradar aos olhos de Jurandir; pois não havia
para elas maior glória do que a de merecer o amor do estrangeiro.
Umas traziam as tranças
urdidas com penas vistosas dos pássaros de sua predileção; outras haviam
perfumado da essência do sassafrás os cabelos soltos, que derramavam sua
fragrância ao sopro da brisa.
Chegando diante do
estrangeiro, começaram uma dança amorosa para mostrar a graça do seu corpo.
Aquelas que tinham a voz doce cantavam em louvor de Jurandir.
Araci fora buscar seu balaio
de palha vermelha, e sentara-se no terreiro, junto à porta da cabana. Seus
dedos ágeis enfiavam as sementes de jequiriti, de que fazia um ramal para seu
colo gentil.
Enquanto compunha o colar, a
virgem percebia que os olhos de Jurandir abandonavam os encantos das mulheres e
buscavam seu rosto.
Mas ela voltava-se para a
floresta; com o trinado de seus lábios chamava o crajuá, que voava no olho da
palmeira. O passarinho, iludido, vinha, cuidando ouvir o canto da companheira.
Jurandir apartou as mulheres
e disse:
— As moças Tocantins são
formosas; qualquer delas alegraria o sono do estrangeiro. Mas Jurandir não veio
à cabana de Itaquê para gozar do amor de uma noite; ele velo buscar a esposa
que há de acompanhá-lo até à morte, e a virgem que escolheu para mãe de seus
filhos.
Quando Araci ouviu estas
palavras cobriu-se de sorrisos, como o guajeru se cobre de suas flores alvas e
perfumadas, com os orvalhos da manhã.
Jurandir voltou-se então
para a virgem caçadora.
— Estrela do dia, Araci,
conduze-me à presença de Itaquê. É tempo que ele saiba o segredo do estrangeiro.
— Os sonhos disseram a
Araci, duas noites seguidas, que o jovem caçador chegaria à cabana de Itaquê;
ela te esperou. Quando meus olhos te viram sentado entre os moacaras, logo
conheceram que tu vinhas buscar a esposa. O estrangeiro respondeu:
— Jurandir chegou à taba dos
seus, e recebeu um nome de guerra e o grande arco de sua nação. Mas a cabana do
chefe estava deserta; e sua rede não lhe guardou o sono tranquilo do guerreiro.
Ele ouviu tua voz que o chamava, virgem Tocantim, e ergueu-se; tua luz o guiou,
filha do sol, e o trouxe à tua presença.
— Grande chefe dos
Tocantins, Jurandir não veio à tua cabana para receber a hospitalidade; veio
para servir ao pai de Araci, a formosa virgem, a quem escolheu para esposa.
Permite que ele a mereça por sua constância no trabalho, e que a dispute aos
outros guerreiros pela força de seu braço. Itaquê respondeu:
— Araci é a filha de minha
velhice. A velhice é a idade da prudência e da sabedoria. O guerreiro que
conquistar uma esposa como Araci terá a glória de gerar seu valor no seio da
virtude. Itaquê não pode desejar para seu hóspede maior alegria.
SERVO DO AMOR
Jurandir, conduzido pela
virgem, caminhou ao encontro de Itaquê e disse:
— Desde esse momento,
Jurandir não foi mais estrangeiro na taba dos Tocantins. Pertencia à oca de
Itaquê, e devia, como servo do amor, trabalhar para o pai de sua noiva.
Os guerreiros, cativos da
beleza de Araci, conheceram que tinham de combater um adversário formidável;
mas seu amor cresceu com o receio de perder a filha de Itaquê. Jurandir tomou
suas armas e desci ao rio. Era a hora em que o jacaré boia em cima das águas
como o tronco morto; e a jaçanã se balança no seio do nenúfar.
O manati erguia a tromba
para pastar a relva na margem do rio. Ouvindo o rumor das folhas, mergulhou na
corrente, mas já levava o arpéu do pescador, cravado no lombo.
Jurandir não esperou que o
peixe ferido desenrolasse toda a linha. Puxou-o para terra; e levou-o ainda
vivo à cabana de Itaquê, onde três guerreiros custaram a deitá-lo no jirau.
As mulheres cortaram as
postas de carne e os guerreiros cavaram a terra para fazer as grelhas do
biaribi.
Jurandir partiu de novo e
entrou na floresta. Ao longe reboavam os gritos dos caçadores que perseguiam a
fera.
Pelo assobio o guerreiro
conheceu que era um tapir. O animal zombara dos caçadores e vinha rompendo a
mata como a torrente do Xingu.
As árvores que seu peito
encontrava caíam lascadas.
Jurandir estendeu o braço. O
velho tapir, agarrado pelo pé, ficou suspenso na carreira, como o passarinho
preso no laço. Nunca, até aquele momento, encontrara força maior que a sua.
Uma vez descera à lagoa para
beber. A sucuri, que espreitava a caça, mordeu-o na tromba. Ele fugia,
esticando a serpente; e a serpente encolhendo-se, o arrastava até à beira
d’água.
Assim tornou uma, duas, três
vezes. Mas o tigre urrou de fome. O velho tapir disparou pela floresta; e a
sucuri com a cauda presa à raiz da árvore arrebentou pelo meio.
O velho tapir rompeu a
serpente como se rompe uma corda de piaçaba; mas não pôde abalar o braço de
Jurandir, mais firme do que o tronco do guaribu.
O estrangeiro tornou à
cabana com a caça. Nenhum dos guerreiros da taba, nem mesmo o velho Itaquê,
pôde aguentar com as duas mãos a fera bravia.
Então Jurandir obrigou o
animal a agachar-se aos pés de Araci e disse:
— O braço de Jurandir fará
cair assim, a teus pés, o guerreiro que ouse disputar ao seu amor a tua
formosura, estrela do dia.
Nunca a abundância reinara
na cabana sempre farta do chefe dos Tocantins, como depois que a ela chegara o
estrangeiro.
Jurandir era o maior caçador
das florestas e o primeiro pescador dos rios. Seu olhar seguro penetrava na
espessura das brenhas, como na profundeza das águas.
Nada escapava à destreza de
sua mão. Onde ela não chegava, iam as unhas de suas flechas certeiras, que
rasgavam o seio da vítima, como as garras do jaguar.
O estrangeiro soubera de
Araci, qual era a caça que Itaquê preferia e qual o peixe que ele achava mais
saboroso. Desde então nunca o velho chefe sentiu a falta do manjar predileto.
Se não era a lua própria do
peixe desejado, Jurandir sabia onde o podia encontrar. Não tornava à cabana sem
a provisão necessária para a refeição do dia.
Depois da caça e da pesca,
Jurandir trabalhava nas roças de Itaquê. Fazia no tabuleiro os matumbos, para
que Jacamim enterrasse as estacas da maniva e semeasse o feijão, o milho e o
fumo.
Entre os filhos das
florestas, a plantação devia ser feita pela mão da mulher, que era mãe de
muitos filhos; porque ela transmitia à terra sua fecundidade.
A semente que a mão da
virgem depositava no seio da terra dava flor; mas da flor não saía fruto. E se
era um guerreiro que plantava, o aipim endurecia como o pau-d’arco.
Nas vazantes do rio,
Jurandir capinava a terra coberta de relva e outras plantas, e só deixava
crescer o arroz, o inhame e as bananeiras.
Quando o estrangeiro partia
pela manhã, Araci o acompanhava de longe pela floresta. Sua vontade a levava
após ele.
O costume da taba não
consentia que a virgem desejada pelos servos do seu amor preferisse um
guerreiro, antes de saber se ele a obteria por esposa.
A filha de Itaquê não queria
pertencer a outro guerreiro. Mas lembrava-se que a virgem deve merecer o esposo
por sua paciência; assim como o guerreiro merece a esposa por sua constância e
fortaleza. Então voltava ao terreiro enquanto os outros guerreiros espreitavam
sua vontade, ela tecia as franjas para a rede do casamento.
Sua mão sutil urdia como
alvo fio do crauatá a fina penugem escarlate. Os noivos cuidavam que era a do
peito do tucano; mas ela sabia que era do peito da arara e que tinha as cores
do seu guerreiro.
Quando o sol chegava ao cimo
dos montes, ouvia-se o canto de Jurandir que voltava da caça. A virgem, seguida
pelos guerreiros, ia ao encontro do estrangeiro.
Então desciam ao rio. Era a
hora do banho. Araci cortava as ondas mais lindas que a garça cor-de-rosa; e os
guerreiros a seguiam de perto, como um bando de galeirões.
Mas nenhum, nem mesmo
Jurandir, que nadava como um boto, podia alcançar a formosa virgem. Ela parecia
a flor do mururê que se desprendeu da haste e passe levada pela corrente.
Uma vez a filha das águas
soltou um grito e desapareceu no seio das ondas. Jacamim cuidou que o jacaré
tinha arrebatado a filha de seu seio. Os guerreiros mergulharam pare salvá-la;
mas não a encontraram.
Todos a julgavam perdida,
quando apareceu Jurandir que trazia nos braços o corpo da virgem formosa.
Pisando em terra, ela correu para a cabana, onde foi esconder sua alegria.
Desde então, era no banho
que Araci recebia o abraço de Jurandir, sem que os outros guerreiros
suspeitassem da preferência dada ao estrangeiro.
No seio das ondas ninguém a
adivinhava a não ser o ouvido sutil de Jurandir, a quem ela chamava com o doce
murmúrio do irerê.
Encontravam-se no fundo do
rio, enquanto durava a respiração. Depois desprendiam-se do abraço e surgiam
longe um do outro.
Tarde, voltando da caça,
Jurandir viu na floresta um rastro, que ele conhecia.
Chegado à cabana, entregou a
Jacamim o veado que matara e saiu para visitar os arredores. Nada encontrou de
suspeito; o rastro, que o inquietava, não chegara até ali.
No outro dia, ao romper da
alvorada, logo depois do banho, os guerreiros partiram para a caça e para a
pesca. Só ficaram na cabana Jacamim e as mulheres de Itaquê.
Araci tomou o arco e entrou
na floresta. A imagem do guerreiro amado fugia naquele instante de seus olhos;
eles buscaram entre as folhas o sinal de seus passos e não o descobriram.
Lembrou-se a virgem, que
Jurandir gostava da polpa do guaraná adoçada com o mel da abelha; e colheu os
frutos encarnados que pendiam dos ramos da trepadeira.
Nesse momento a arara cantou
no olho do pirijá. Araci precisava de suas plumas vermelhas, para o cocar que
ela tecia em segredo.
Era o cocar do amor, com que
desejava ornar a cabeça de seu guerreiro e senhor, no dia em que ele a
conquistasse por esposa.
A virgem armou o arco e
seguiu a arara rompendo a folhagem. Quando ia disparar a seta, ouviu ao lado um
rumor desusado.
Jurandir estava perto dela e
segurava o braço de uma mulher, que ainda tinha na mão a macana afiada.
Araci conheceu a virgem
Araguaia pela faixa de algodão entretecida de penas, que lhe apertava a curva
da perna; e adivinhou que era Jandira, a noiva do guerreiro.
— Filha de Majé, tua mão
quis matar a virgem que Jurandir escolheu para esposa. Tu vais morrer.
— Desde que Ubirajara
abandonou Jandira, ela começou a morrer, como a baunilha que o vento arranca da
árvore. Acaba de matá-la; para que sua alma te acompanhe de dia na sombra das
florestas e te fale de noite na voz dos sonhos.
— A virgem Araguaia ameaçou
a vida de Araci; ela lhe pertence; disse a filha de Itaquê. Jurandir cortou na
floresta uma comprida rama de imbé e atou as mãos de Jandira.
— Jandira é tua escrava. Não
lhe dês a liberdade. Ela tem a astúcia da serpente e seu veneno.
— Eu era a cobra-d’água,
amiga do guerreiro, que habita sua cabana e a guarda contra o inimigo. Quem foi
que me fez a cascavel venenosa, que traz nos lábios o sorriso da morte?
Jurandir não respondeu.
Nesse momento ele teve saudade de sue cabana e lembrou-se do tempo em que,
jovem caçador, seguia na floresta a formosa virgem Araguaia.
As duas virgens ficaram sós
no claro da floresta.
Já o rumor dos passos de
Jurandir se apagara ao longe e ainda tinham ambas os olhos cativos uma da
outra.
Jandira pensou que ela não
podia dar a Ubirajara a formosura da filha de Itaquê. Araci receou que o amor
do guerreiro se voltasse outra vez para a linda virgem Araguaia.
A filha de Majé preparou-se
para morrer à mão de sua rival, mas ela preferia a morte ao suplício de
contemplar sua beleza.
Araci, a estrela do dia,
cantou:
— O amor do guerreiro é a
alegria da virgem; quando ele foge, a virgem fica triste como a várzea que
perdeu sua relva.
“Por isso Jandira está
triste; o amor do guerreiro fugiu dela; e a deixou solitária como a nambu, a
quem o companheiro abandonou.
“Mas o amor do guerreiro é
como o orvalho da noite. Quando o sol queima a várzea, ele desce do céu para
cobri-la de verdura e de flores.
“Araci está alegre; porque o
amor do guerreiro voltou-se para ela; e Jurandir vai fazê-la companheira de sua
glória e mãe de seus filhos.
“Quando a esposa de Jurandir
não tiver mais beleza para dar a seu guerreiro, ela consentirá que Jandira
durma em sua rede.
“E o orvalho da noite
descerá do céu para cobrir a várzea de verdura e de flores. E Jandira achará
outra vez seu sorriso de mel.”
Assim cantou Araci, a
estrela do dia; e a virgem Araguaia respondeu:
— A árvore que morreu não
sofre quando o fogo a queima. Jandira prefere a morte à vergonha de ser tua
serva e à tristeza de ver a cada instante a formosura da estrangeira que roubou
seu amor.
“Araci, a estrela do dia, é
mais bela do que Jandira, mas não sabe amar o guerreiro, que a escolheu para
mãe de seus filhos.
“Nunca Jandira ofereceria
sua rede de esposa a outra mulher; e aquela que recebesse o amor de seu
guerreiro morreria por sua mão.
“Ela amaria seu esposo tanto
que sua graça nunca se retirasse dela; pois saberia morrer quando não tivesse
mais beleza para dar-lhe.
“A nação Araguaia nunca levanta
a taba do vale onde acampou, senão quando a terra já não pode dar-lhe mais
frutos.
“Assim é o guerreiro. Ele
não retira seu amor da esposa que habita, senão quando ela já não sabe alegrar
sua alma.”
Tornou a virgem Tocantim:
— A cajazeira depois que dá
seu fruto perde a folha; o guerreiro busca a sombra de outra árvore para
repousar.
“Mas vem a lua das águas e a
cajazeira outra vez se cobre de folhas; sua sombra é doce ao guerreiro.
“A esposa é como a
cajazeira. Quando o guerreiro não acha alegria em seus braços, ela sofre que
busque outra sombra e espera que lhe volte a flor para chamá-lo de novo ao
seio.
“Araci ama seu guerreiro,
como Jacamim ama Itaquê. A cabana do grande chefe dos Tocantins está cheia de
servas; mas seu amor nunca abandonou a esposa.
“As servas deram a Itaquê
muitos filhos; mas os filhos da velhice, foi só Jacamim quem os deu ao grande
chefe; porque o primeiro amor do guerreiro não morre nunca.
“Ele é como a grama que
nunca mais deixa a terra onde nasceu, podem arrancá-la que brota sempre.
“Araci quer apagar a
tristeza de tua alma e beber o teu sorriso de mel, para que o esposo ache mais
doces seus lábios, quando os provar.
“Tu serás irmã de Araci e
lhe darás um filho de Jurandir, tão valente, como os que seu amor há de gerar
no seio da esposa.”
Jandira afastou os olhos da
virgem dos Tocantins, para desviar dela sua ira.
— Tua palavra dói como o
espinho da juçara, que tem o coco mais doce que o mel.
“As flechas do teu arco não
matam mais do que os sorrisos que o amor do guerreiro derrama em teu rosto,
estrela do dia.
“Ubirajara deixou-me por ti;
mas foi a Jandira que ele primeiro escolheu para esposa, quando ainda era jovem
caçador.
“Nos campos alegres, onde
vão os guerreiros quando morrem, ele me chamará; e o guanumbi virá buscar a minha
alma no seio da flor do manacá para levá-la a seu amor.
“Mata-me ou deixa que eu
morra para não ver mais tua beleza e não ouvir o canto de tua alegria. “
Araci caminhou para Jandira
e desatou-lhe os pulsos.
— O amor do guerreiro não
pertence à mulher que seus olhos primeiro viram; mas àquela que ele escolheu.
“Apanha teu arco; e morra
aquela que não souber defender seu amor e merecer o esposo. “
Araci disse, e tirou da
uiraçaba uma seta. Jandira ficou imóvel, com os pulsos cruzados, como se ainda
estivessem presos.
— A vontade de
Ubirajara atou os braços de Jandira; ela rejeita a liberdade dada por ti. Araci
pode ser preferida; porém, não será mais generosa do que a filha de Majé.
O COMBATE NUPCIAL
Chegou o dia, em que os
noivos de Araci deviam disputar a posse da formosa virgem.
Era a hora em que o sol
transpondo a crista da montanha, estende pelo vale sua araçoia d’ouro.
A grande nação Tocantim
cerca a vasta campina. No centro estão os anciões, que formam o grande carbeto.
Em frente aparece Araci, a
estrela do dia, que há de ser o prêmio da constância e fortaleza do mais destro
guerreiro.
Jacamim acompanha a filha;
nesse momento remoça com a lembrança do dia em que Itaquê a conquistou, lutando
com os mais feros mancebos Tocantins.
De um e outro lado seguem
pela ordem da idade os moacaras. Cada um cerca-se da esposa, das servas e das
filhas, que vieram para assistir ao combate.
É a única das festas
guerreiras, em que o rito de Tupã consente a presença das mulheres, porque
trata-se de sua glória.
Contemplando o esforço
heroico dos mais nobres guerreiros para conquistar a formosura de uma virgem,
as outras virgens aprendem a prezar a castidade, e as esposas se ufanam de
guardar a fé no primeiro amor.
Itaquê, o grande chefe dos
Tocantins, preside ao combate, orgulhoso pela valente nação que dirige, como
pela formosa virgem de que é pai.
Quando seus olhos admiram a
multidão de guerreiros, servos do amor de Araci, que se preparam a disputar a
esposa, o grande chefe ergue a fronte soberba como o velho ipê da floresta
coroado de flores.
Os noivos se distinguem dos
outros guerreiros pelo bracelete de contas verdes, que o guerreiro cinge ao
pulso da esposa, quando rompe a liga da virgindade.
Lá caminha Pirajá, o grande
pescador, senhor dos peixes do rio, a quem obedece o manati e o golfinho.
Junto dele ergue-se Uiraçu,
que tomou este nome do valente guerreiro dos ares, pelo ímpeto do assalto.
Vem depois Arariboia, a
grande serpente das lagoas, Cauatá, o corredor das florestas, Cori, o altivo
pinheiro, e tantos outros, ainda mancebos, e já guerreiros de fama.
Entre todos, porém, assoma
Jurandir. Sua fronte passa por cima da cabeça dos outros guerreiros, como o sol
quando se ergue entre as cristas da serrania.
Os músicos fizeram retroar
os borés, anunciando o começo da festa; e os servos do amor se estenderam em
linha pelo meio da campina.
Então os nhengaçaras
levantaram o canto nupcial:
«A esposa é a alegria e a
força do guerreiro. Ela acende em suas veias um fogo mais generoso que o do
cauim, e prepara para seu corpo o repouso da cabana.
«Por isso, o primeiro desejo
do mancebo, quando ganha nome de guerra, é conquistar uma esposa.
«Não basta ser valente
guerreiro para merecer a virgem formosa, filha de um grande chefe; é preciso a
paciência para sofrer e a perseverança no trabalho.
«Araci, a estrela do dia,
filha de Itaquê, será a alegria e a glória do mais forte e do mais valente.
«Os filhos que ela gerar em
seu seio, onde corre o sangue do grande chefe, serão os maiores guerreiros das
nações.»
Itaquê deu o sinal; o
combate começou.
Pirajá foi o primeiro que
saiu a campo, e clamou esgrimindo o tacape.
— Araci, estrela do dia, tu
serás esposa do guerreiro Pirajá, que te vai conquistar pela força de seu braço.
Avançou Uiraçu, e disse:
— A virgem formosa ama ao
guerreiro Uiraçu e há de pertencer-lhe.
A noiva cantou:
— Araci ama o mais forte e
mais valente. Ela pertencerá ao vencedor, que vencer a bravura dos outros
guerreiros, como venceu a vontade da esposa.
A voz maviosa da virgem
afagou a esperança de todos os campeões; mas seus olhos ternos só viam o nobre
semblante de Jurandir, o escolhido de sua alma.
Os dois guerreiros travaram
a pugna; os tacapes girando nos ares encontravam-se como dois madeiros arrojados
pelo remoinho da cachoeira.
Afinal Pirajá, ameaçado pelo
bote do adversário, recuou um passo do lugar em que se postara. Pela lei do
combate estava vencido, e teve de deixar o campo.
Arariboia tomou o seu lugar;
e o combate prosseguiu com vária fortuna, até Cori que, expelindo o vencedor,
manteve-se firme contra todos que vieram disputá-lo.
Faltava Jurandir. O
estrangeiro avançou gravemente, como convinha a um grande guerreiro da nação
Araguaia.
Ele queria dar ao vencedor
de tantos combates, o tempo preciso para descansar.
A mão do guerreiro arrastava
pelo chão o tacape, que desdenhava erguer para um combate sem glória.
Quando Jurandir achou-se em
face do vencedor, levantou a voz e disse:
— Para merecer Araci, a
estrela do dia, Jurandir queria vencer a cem guerreiros, e não, combater um
guerreiro fatigado.
“Tu empunhas um tacape; toma
outro, habituado a vencer; ele restituirá a teu braço a força que perdeu. Basta
a Jurandir esta mão, para te arrebatar todas as tuas vitórias. “
Disse, e arremessou a arma
aos pés do adversário.
Cori, pensando que seu rival
o atacava, desfechou-lhe o golpe. Mas Jurandir aparou-o na mão firme e,
arrebatando o tacape que o ameaçava, arrancou o guerreiro do chão.
Assim o pinheiro que o tufão
arrebata, antes de partir o tronco, desprende a raiz da terra, onde nada o
abalava.
Jurandir ficou só no campo.
Mas todos os noivos se haviam mostrado valentes guerreiros; talvez nas outras
provas saíssem vencedores.
Os músicos tocaram os borés;
e os jovens caçadores trouxeram para o meio do campo a figura da noiva.
Era um grosso toro de
madeira, no qual a mão destra de um pajé entalhara, com o dente da cutia, a
cabeça de uma mulher.
Três caçadores vergavam com
o peso da carga e foram precisos dez para trazê-lo desde a cabana do pajé até o
campo, onde ficou semelhante a uma mulher sentada.
Na véspera, o pajé burnira
de novo com a folha da samambaia o toro de madeira, e o esfregara com a banha
do teiú, para que ele escorregasse da mão do guerreiro como o lagarto da mão do
caçador.
Depois os mancebos
guerreiros espalharam pelo campo, troncos de árvores cortadas com as ramas e as
folhas; e fincaram cercas de estacas entre os barrancos da várzea que ia morrer
à margem do rio.
Itaquê deu o sinal; e os
guerreiros começaram a nova prova, mais difícil que a primeira.
Era preciso que o guerreiro,
à disparada, levantasse do chão, sem parar, o toro de madeira; e se defendesse
dos rivais que o assaltavam para tomá-lo.
Esse jogo era o emblema da
agilidade e robustez, que o marido devia possuir, para disputar a esposa e
protegê-la contra os que ousassem desejá-la.
Na primeira corrida foi
Jurandir quem mais rápido chegou. Como o condor que, rebatendo o voo, leva nas
garras a tartaruga adormecida; assim o veloz guerreiro suspendeu a figura da
esposa e com ela arremessou-se pela campina.
Os outros o seguiam ardendo
em ímpetos de roubar-lhe a presa. Na planície aberta seria vão intento porque
nenhum corria como o estrangeiro.
Mas Jurandir achava diante
de si, para tolher-lhe o passo, as árvores derrubadas, os barrancos profundos e
outros obstáculos de propósito acumulados.
Não hesitou, porém, o
destemido mancebo. Saltou as corcovas, galgou as caiçaras, e subiu pelos galhos
que estrepavam o chão.
Uma vez os guerreiros
aproximaram-se tanto, que Jurandir sentiu nos cabelos o sopro da respiração
ofegante. Em frente, erguia-se a alta estacada. Se tentasse subir, carregado
como estava, os guerreiros com certeza o alcançariam a tempo de arrancar-lhe a
presa. Então arremessou pelos ares o toro de madeira, como se fosse o tacape de
um jovem caçador; e seguiu após. Sempre vencedor dos assaltos dos rivais,
Jurandir percorreu a vasta campina, e foi colocar a figura da esposa no meio do
carbeto dos anciões. Ali era o termo da correria. O guerreiro que chegava a esse
ponto com a sua carga, saía triunfante da prova. Ele mostrava como arrebataria
a esposa do meio dos inimigos e a defenderia contra seus ataques até recolhê-la
em um asilo seguro. De todos os guerreiros só Cori e Uiraçu conseguiram ganhar
a prova; mas nenhum com a galhardia de Jurandir.
Cori por vezes foi
alcançado, e só à confusão dos outros deveu escapar-se. Uiraçu recuperou a
presa já perdida, porque Pirajá, que havia empolgado, falseou na corrida e
tombou.
Os três vencedores entraram
de novo em campo para decidir entre si. O triunfo não se demorou. Jurandir o
arrebatou, como o gavião arrebata a presa que disputam duas serpes.
Soaram os borés; e ao som do
canto de triunfo entoado pelos nhengaçaras, os chefes e os guerreiros saudaram
o vencedor dos vencedores.
Quando voltou o silêncio,
Ogib, o grande pajé dos Tocantins, estava em pé no meio do campo.
Junto dele, uma das velhas
mães dos guerreiros segurava o camucim da constância, que tinha o bojo pintado
de vermelho.
O pajé disse:
— Não basta que o guerreiro
seja forte e valente, para merecer a esposa.
“É preciso que tenha a
constância do varão, e não se perturbe com o sofrimento.
“É preciso que ele tenha a
paciência do tatu, e suporte sereno as mortificações das mulheres, e as
importunações das crianças.
“O guerreiro que não tem
constância e paciência, depressa gasta suas forças.
“O rio que se derrama pela
várzea, nunca verá suas margens cobertas de grandes florestas.
“Assim é o guerreiro que não
sabe sofrer, e derrama sua alma em lamentações.
“Nunca ele será pai de uma
geração forte e gloriosa, nem verá sua cabana povoar-se dos guerreiros de seu
sangue.
“Se queres merecer a filha
de Itaquê, mostra, Jurandir, que és varão ainda maior do que o famoso guerreiro
que todos admiram.”
O grande pajé levantou o
tampo do camucim, e descobriu uma abertura, bastante para caber o punho do mais
robusto guerreiro.
Jurandir meteu a mão no
vaso. O semblante sempre grave do guerreiro cobriu-se de um sorriso doce como
da luz a alvorada; e seus olhos, mais contentes que dois saís, pousaram no
rosto de Araci.
O camucim da constância
continha um formigueiro de saúvas, que o pajé havia fechado ali na última lua.
Açuladas pela fome de tantos
dias, as formigas vorazes se prepararam para dilacerar a primeira vítima que
lhes caísse nas garras.
A dentada da saúva, que anda
solta no campo, dói como uma brasa; quando são muitas e com fome, queimam como
a fogueira.
Todas as vistas se fitaram
no semblante do guerreiro para espreitar-lhe o mínimo gesto de sofrimento.
Mas Jurandir sorria; e seus
lábios ternos soltaram o canto do amor. De propósito o guerreiro adoçou a voz,
para não parecer que disfarçava o gemido com o rumor do grito guerreiro. Assim
cantou ele:
— A dor é que fortalece o
varão, assim como o fogo é que enrija o tronco da craúba, da qual o guerreiro
fabrica o arco e o tacape.
“A juçara tem setas agudas
mas Araci quando atravessa a floresta, colhe o coco de mel, embora a palmeira
lhe espinhe a mão.
“O ferrão da saúva dói mais
do que o espinho da juçara; mas Jurandir acha o mel dos lábios de Araci mais
doce do que o coco da palmeira.
“Quando Jurandir era jovem
caçador, gostava de tirar a cutia da toca, embora o seu dente agudo lhe sarasse
a carne. “O ferrão da saúva não dói como o dente afiado; e Jurandir sabe que o
pelo dourado da cutia, não é tão macio como o colo de Araci.
“Jurandir despreza a dor.
Seus olhos estão bebendo o sorriso da virgem, mais suave que o leite do sapoti.
Sua mão está sentindo o roçar dos cabelos da virgem formosa.”
Os anciões deram sinal para
concluir a prova da constância; mas o guerreiro continuou o seu canto de amor.
— A cumari arde no lábio do
guerreiro; mas torna mais gostosa a carne do veado assado no moquém.
“O cauim queima a boca do
guerreiro; mas derrama a alegria dentro d’alma.
“A saúva arde como a cumari
e queima como o cauim; porém torna os beijos de Araci mais saboroso se o amor
de Jurandir espuma como o vinho generoso.
“Araci há de sorrir de
felicidade, quando o filho de seu guerreiro lhe rasgar o seio.
“Jurandir não tem corpo para
sofrer, quando o sorriso de Araci lhe enche a alma de amor.”
Foi preciso quebrar o
camucim para que o guerreiro pudesse retirar a mão, de inflamada que ficara.
O grande pajé esfregou na
pele vermelha o suco de uma erva dele conhecida; e logo desapareceu a inchação.
Faltava a última prova,
chamada a prova da virgem.
As outras serviam para
conhecer o valor, a destreza e robustez do guerreiro, assim como a força de seu
amor.
Nesta era que a virgem podia
mostrar seu agrado pelo vencedor; ou livrar-se de um esposo, que não soubera
ganhar-lhe o afeto.
Os cantores disseram:
“Tupã deu asas à nambu para
que ela escape às garras do carcará.
“Tupã deu ligeireza à
virgem, para que ela fuja do guerreiro que não quer por esposo.
“Mas a nambu, quando ouve o
canto do companheiro, espera que ele chegue para fabricar, seu ninho.
“A virgem, quando segue o
guerreiro que ela prefere, pensa na cabana do esposo e corre devagar para
chegar depressa.”
Araci deixou a mãe, e
avançou até o meio do campo.
O grande pajé colocou
Jurandir na distância de uma muçurana, que cinge dez vezes a cintura do
guerreiro.
Estrela do dia lançou para
as espáduas as longas tranças negras que voaram ao sopro da brisa.
Arqueou os braços mimosos,
vestidos com franjas de penas, como as asas brilhantes do arirama, e quando
soou o sinal, desferiu a corrida.
Jurandir seguiu-a. Ele
conhecia a velocidade do pé gentil de Araci, que zombava do salto do jaguar.
Nem que pudesse alcançá-la,
o guerreiro o tentaria; depois de vencedor, queria dever a esposa ao amor dela
e não a seu esforço.
Disputaria Araci não só a
todos os guerreiros das nações, como a todas as nações das florestas; só à
vontade da própria virgem não a disputaria, pois a queria rendida e não
vencida.
Mas sua glória mandava que
ele, o chefe de uma grande nação, se mostrasse digno da formosa virgem, que o
aceitasse por esposo.
Araci voava pela campina. Às
vezes trançava a corrida como o colibri que adeja de flor em flor, outras vezes
fugia mais rápida do que a seta emplumada de seu arco.
Quando mostrou a todos que
Jurandir não a alcançaria nunca, se ela quisesse fugir-lhe, reclinou a cabeça
para esconder o rubor.
Jurandir abriu os braços e
recebeu a esposa que se entregava a seu amor.
O guerreiro suspendeu a
virgem formosa ao colo; e levou-a à cabana do amor que ele construíra à margem
do rio.
As ramas de jasmineiro e do
craviri vestiam a cabana e matizavam o chão de flores.
Araci foi buscar a rede
nupcial, que ela tecera de penas de tucano e arara; e Jurandir conduziu os
utensílios da cabana.
Então o estrangeiro sentou-se
com a virgem no terreiro e, antes de passar a soleira da porta, revelou a Araci
quem era o guerreiro que ela aceitara por esposo.
— Araci pertence ao grande
chefe da nação Araguaia. Ela teve a glória de vencer ao maior guerreiro das
florestas. Ela será mãe dos filhos de Ubirajara; e terá por servas as virgens
mais belas, filhas dos chefes poderosos.
“A palmeira é formosa quando
se cobre de flores e o vento agita as suas folhas verdes que murmuram; mais
formosa, porém, quando as flores se mudam em frutos, e ela se enfeita com seus
cachos vermelhos.
“Araci também ficará mais
formosa quando de seu sorriso saírem os frutos do amor e quando o leite encher
seus peitos mimosos, para que ela suspenda ao colo os filhos de Ubirajara.”
Araci ouviu as palavras do guerreiro,
palpitante como a corça; e ornou a fronte do esposo com o cocar de plumas
vermelhas, que tecera em segredo.
Depois, sentindo os olhos de
Ubirajara, que bebiam a sua formosura, ela vestiu o aimará mais alvo do que a
pena da garça.
A túnica de algodão,
entretecida de penas de beija-flor, desce das espáduas até a curva da perna,
cingida pela liga da virgindade.
Quando Araci passava entre
os guerreiros que admiravam sua beleza, ela não corava, porque sua castidade a
vestia, como a flor à sapucaia.
Mas agora, em presença do
guerreiro a quem ama e para quem guardou sua virgindade, tem pejo, e esconde
sua formosura às vistas de Ubirajara.
— Os olhos do esposo são
como o sol, disse o guerreiro; eles queimam a flor do corpo de Araci.
“Araci tem medo que os olhos
do esposo não a achem digna de seu amor; e vestiu seus enfeites.
“Araci queria ser como a
juriti, e ter no corpo uma penugem macia, que só a deixasse ver em sua
formosura.
“Foi por isso que tua esposa
se cobriu com o seu aimará. Os olhos de Ubirajara não lhe queimarão mais a flor
de seu corpo.”
O guerreiro respondeu:
— A flor do igapê é mais
formosa quando abre, e se tinge de vermelho aos beijos do sol, do que fechada
em botão e coberta de folhas verdes.
Ubirajara tomou nos braços a
esposa e pôs o pé na soleira da porta.
Nesse momento soou um
clamor; chegaram os guerreiros que vinham chamar o vencedor à presença de
Itaquê.
O carbeto dos anciões tinha
decidido que o vencedor antes de receber a esposa, devia declarar quem era;
pois fora recebido como estrangeiro, e ninguém na taba o conhecia.
A GUERRA
Itaquê esperava sentado na
cabana e cercado do carbeto dos anciões. Jurandir entrou; Araci ficou na porta,
orgulhosa do esposo que a conquistara e da admiração que ele ia inspirar aos
guerreiros da sua nação.
Itaquê falou:
— Quando o estrangeiro
chegou à cabana de Itaquê, ninguém lhe perguntou quem era e donde vinha. O
hóspede é senhor.
“Mas agora o estrangeiro
saiu vencedor do combate do casamento e conquistou uma esposa na taba dos
Tocantins.
“É preciso que ele se faça
conhecer; porque a filha de Itaquê, o pai da nação dos Tocantins, jamais
entrará como esposa na taba, onde habite quem tenha ofendido a um só de seus
guerreiros.”
O estrangeiro disse:
— Morubixaba, abarés,
moacaras, e guerreiros da valente nação Tocantim, vós tendes presente o chefe
dos chefes da grande nação Araguaia.
“Eu sou Ubirajara, o senhor
da lança; e o maior guerreiro depois do grande Camacã, cujo sangue me gerou. Se
quereis saber por que tomei este nome, ouvi a minha maranduba de guerra.”
Ubirajara contou o seu
encontro com Pojucã; o combate em que o venceu e a festa do triunfo, até o
momento em que deixou a taba dos Araguaias.
Terminou dizendo que no
seguinte sol partiria, para assistir ao combate da morte, como prometera ao
prisioneiro.
Ninguém interrompeu a
maranduba de guerra. Ubirajara ouviu um gemido; mas não soube que rompera do
seio de Araci.
Itaquê arquejou como o rio
ao peso da borrasca.
— Tu és Ubirajara, senhor da
lança. Eu sou Itaquê, pai de Pojucã. Tenho em face o matador de meu filho; mas
ele é meu hóspede!
“Chefe dos Araguaias, tu és
um jovem guerreiro; pergunta a Camacã que te gerou, qual deve ser a dor do pai,
que não pode vingar a morte do filho. “
O grande chefe vergou a
cabeça ao peito, como o cedro altaneiro batido pelo tufão.
Pojucã tinha sua taba mais
longe, na outra margem do rio. Ele partira na última lua para rastejar a marcha
dos tapuias; e voltava senhor do caminho da guerra quando encontrou Ubirajara.
Seu pai e os guerreiros de
sua taba pensavam que ele buscava na floresta o caminho da guerra. Mal sabiam
que a essa hora esperava prisioneiro na taba dos Araguaias o combate da morte.
Anciões e guerreiros
emudeceram. Todos respeitavam a dor do pai, e não ousavam perturbá-la.
Jacamim, a mãe de Pojucã,
aproximara-se. O grande chefe ouviu seu gemido.
— A esposa de Itaquê não
chora na presença do matador de seu filho. A voz do esposo, a mãe teve força
para esconder no seio sua tristeza e mostrar-se digna do grande chefe dos
Tocantins. Ubirajara falou:
— A vingança é a glória do
guerreiro; Tupã a deu aos valentes. Ubirajara venceu Pojucã em combate leal e
aceita o desafio de Itaquê e de todos os chefes Tocantins.
— Tu és meu hóspede;
enquanto Itaquê brandir o grande arco da nação Tocantim, ninguém ofenderá o
amigo de Tupã na taba de seus guerreiros. Dizendo assim, o grande chefe
ergueu-se e trocou com o estrangeiro a fumaça da despedida.
— Parte. O sol que viu o
estrangeiro na cabana hospedeira o acompanhará amigo; mas com a sombra da
noite, mil guerreiros, mais velozes que o nandu, partirão para levar-te a
morte. Ubirajara tomou suas armas e disse:
— O hóspede vai deixar tua
cabana, chefe dos Tocantins; tu verás chegar o guerreiro inimigo.
Itaquê seguiu o estrangeiro
até o terreiro; em torno dele se reuniram os abarés, os moacaras e os
guerreiros para assistirem à partida.
Ubirajara caminhou com passo
lento e grave até o fim da taba.
Chegado ali, tornou rápido à
entrada da cabana e retrocedeu, apagando no chão o vestígio de seus passos.
A nação Tocantim o observava
imóvel.
Por fim o estrangeiro
postou-se no centro da coara e com o formidável tacape vibrou no largo escudo
um golpe, que repercutiu pela taba como o estrondo da montanha.
— O hóspede passou o limiar
da cabana que o tinha acolhido, e apagou seu rastro na taba dos Tocantins.
“Quem está aqui é um
guerreiro armado, que pisa senhor a taba de seus inimigos.
“Itaquê, morubixaba dos
Tocantins, Ubirajara, o senhor da lança, grande chefe dos Araguaias, te envia a
guerra na ponta de sua seta.”
Quando o guerreiro acabou de
proferir estas palavras, Itaquê levantou os olhos e viu cravada na figura do
tucano, que era o símbolo da nação, a seta de Ubirajara.
Mil arcos se ergueram, mil
tacapes brandiram. A voz possante de Itaquê abateu as armas de seus guerreiros.
Disse o morubixaba:
— A lei da hospitalidade é
sagrada. A cólera do estrangeiro não deve perturbar a serenidade do varão
Tocantim. Depois voltou-se para o inimigo.
— Ubirajara, grande chefe
dos Araguaias, Itaquê, o pai da poderosa nação Tocantim, aceita a guerra que tu
lhe enviaste. Recebe em teu escudo o penhor do combate.
A corda do grande arco da
nação Tocantim brandiu, e a seta de Itaquê mordeu o escudo de Ubirajara.
— Vai buscar teus guerreiros
e nós combateremos à frente das nações.
— Ubirajara combaterá até
que lhe restituas a esposa; assim como ele a conquistou a seus rivais, saberá
conquistá-la a ti e à tua nação.
O chefe Araguaia partiu. No
seio da floresta encontrou Araci que o esperava.
A formosa virgem fora à cabana
do casamento buscar a rede nupcial e preparar-se para acompanhar o esposo.
— Ubirajara parte; mas antes
de cinco sóis ele estará aqui para te conquistar à tua nação.
— A esposa te acompanha. Teu
braço valente já a conquistou; e ela entregou-se a seu senhor. Araci te
pertence; deves levá-la.
A virgem Tocantim desejava
seguir Ubirajara à taba dos Araguaias. Falava em sua alma a ternura da esposa e
da irmã.
Partindo, ela unia-se para
sempre a seu guerreiro e esperava que o amor o moveria a salvar Pojucã.
Ubirajara pensou e disse:
— Se Ubirajara tivesse
rompido a liga de Araci, ela era sua esposa; e ninguém a arrebataria de seus
braços. Mas a virgem Tocantim não pode abandonar a cabana onde nasceu, sem a
vontade de seu pai. Araci suspirou:
— Ubirajara vai deixar a
lembrança de Araci nos campos dos Tocantins. Jandira o espera na taba dos
Araguaias e lhe guarda o seu sorriso de mel.
— A luz de teus olhos,
Araci, estrela do dia, foi buscar Ubirajara na taba dos seus, onde ressoavam os
cantos de seu triunfo, e o trouxe à tua cabana. «Quando ele partiu encontrou
Jandira, e para que a filha de Majé não o acompanhasse, a deu a Pojucã como esposa
do túmulo.»
— O grana do lago voa longe,
longe, para banhar-se nas águas da chuva que alagaram a várzea; mas logo volta
ao seu ninho, e não se lembra mais da moita onde dormiu.
— Ubirajara é um guerreiro,
ele não aprende com o grana do lago, que foge do perigo, mas com o gavião,
grande chefe dos guerreiros do ar, que nunca mais abandona o rochedo onde
assentou a sua oca.
— Se Ubirajara amasse a
esposa, também não a abandonaria. Os braços de Araci já cingiram o colo de seu
guerreiro. O tronco não desprende de si a baunilha que se entrelaçou em seus
galhos. Ubirajara calcou a mão sobre a cabeça de Araci.
— Itaquê respeitou a lei da
hospitalidade no corpo de Ubirajara; Ubirajara não deixará a traição na terra
hospedeira.
“Araci não deve querer para
esposo um guerreiro menos generoso do que seu pai.”
A virgem emudeceu. Ela sabia
que a honra é a primeira lei do guerreiro.
Antes de partir, o chefe
consolou a esposa.
— Ubirajara vai pedir ao
gavião suas asas para voltar ao seio de Araci. Ele virá à frente de sua nação,
conduzido pela luz de teus olhos.
“As outras mulheres são o
prêmio de um combate entre os servos de seu amor. Araci terá essa glória; que
ela será o prêmio da maior guerra que já viram as florestas.”
O chefe Araguaia pôs as mãos
nos ombros de Araci; duas vezes uniu o seu ao rosto dela, por uma e outra face,
para exprimir que nada os podia separar.
Quando o guerreiro
desapareceu na floresta, Araci caminhou para a cabana do esposo, que ficara
triste e solitária.
A virgem fechou a porta;
sentou-se na soleira e cantou sua tristeza.
Dois sóis tinham passado; e
viera a noite.
A última estrela se apagava
no céu, quando Ubirajara pisou os campos dos Araguaias.
Sua mão robusta, vibrando a
clava, feriu o trocano. A voz da nação Araguaia derramou-se ao longe pelo vale,
como o estrondo da montanha que arrebenta.
Com o primeiro raio do sol
que subia o píncaro da serra, chegaram à grande taba os chefes das cem tabas
Araguaias, com todos os seus guerreiros, convocados à coara da nação.
Ubirajara mandou que Pojucã,
o prisioneiro, viesse à sua presença.
— Vê o mar de meus
guerreiros que enche a terra, como as águas do grande rio quando alaga a
várzea. Eles esperam o aceno de Ubirajara para inundarem teus campos.
“A nação Tocantim carece
neste momento do braço de seus maiores guerreiros; vai levar-lhe o socorro de
teu valor, para que se aumente a glória de Ubirajara, seu vencedor.
“Tu és livre, Pojucã; parte
e voa, que a guerra dos Araguaias te segue os passos.”
O semblante do filho de
Itaquê ficou sombrio.
— Pojucã é um chefe ilustre;
não merece esta desonra. Tu lhe prometeste a morte dos bravos. Ele exige o
combate.
— Ubirajara não sabia que
Pojucã era filho de Itaquê; pois ele nunca pisaria como hóspede a cabana de um
guerreiro, a quem tivesse decepado um filho.
O chefe Araguaia contou a
maranduba da hospitalidade.
“É preciso que recuperes a
liberdade para que não se diga que Ubirajara surpreendeu a hospitalidade do
grande chefe dos Tocantins.”
Pojucã não respondeu. Ele
reconhecera que a honra do seu vencedor exigia sua volta à taba dos seus.
— Parte. Nós combateremos à
frente das nações. Ubirajara pertence a Itaquê; mas depois dele, terás a glória
de ser vencido outra vez por este braço.
— Ubirajara é um grande
chefe e maior guerreiro. Se Tupã não consente que Pojucã seja vencedor, ele não
quer maior glória do que a de morrer combatendo Ubirajara.
Pojucã foi à cabana de seu
vencedor buscar as armas. Ubirajara arrimou-se ao tacape, como o rochedo que se
apoia ao tronco do ipê, e meditou.
Quando passou o chefe
Tocantim que voltava à sua taba, Ubirajara levantou a cabeça e disse:
— Os olhos de Ubirajara te
acompanham; tu és irmão de Araci e vais para junto dela. Dize à estrela do dia
que seu esposo está com ela.
O conselho dos abarés se
reunira para meditar sobre a guerra. O velho Majé, a quem irritava o
desaparecimento da filha, reparou que sem o voto do carbeto se convocasse a
nação.
Veio um mensageiro chamar o
grande chefe para o carbeto. Ubirajara chegou. Antes que falasse a voz dos
anciões, o guerreiro levantou o arco e disse:
— O conselho dos anciões
governa a taba e medita nas coisas da paz Toda a nação respeita sua prudência e
sabedoria.
“Mas enquanto Ubirajara
brandir o grande arco dos Araguaias, tem a guerra fechada em sua mão.
“Quando ele soltar o grito
do combate, a voz que falar da paz, emudecerá para sempre, ainda que venha da
cabeça do abar que a lua já embranqueceu.
“Quem não quiser assim,
venha arrancar da mão de Ubirajara, este arco que ele conquistou por seu
valor.”
Os abarés estremeceram. Mas
o carbeto meditou e decidiu que a maior glória e sabedoria da nação era ter o
seu grande arco de guerra na mão de um chefe como Ubirajara.
Camacã tratou com os anciões
acerca da defesa das tabas; e o grande chefe abriu o caminho da guerra.
Quando Ubirajara desdobrou
sua guerra pela margem do grande rio, ele viu que uma nação tapuia preparava-se
para assaltar a taba dos Tocantins.
O grande chefe tocou a
inúbia, cuja voz chamava o jovem Murinhém, primeiro dos cantores Araguaias.
Correu o nhengaçara à
presença do grande chefe, e dele recebeu a mensagem que devia levar ao campo
inimigo.
Os cantores eram respeitados
por todas as nações das florestas como os filhos da alegria; porque serviam de
mensageiros entre as nações em guerra.
Eles penetravam no campo
inimigo, entoando o seu canto de paz; e nenhum guerreiro ousava ofender aquele
a quem Tupi concedera a fonte da alegria.
Murinhém atravessou rápido a
campina e apresentou-se em frente de Canicrã, chefe dos tapuias.
— Ubirajara, o senhor da
lança, que empunha o arco da poderosa nação Araguaia, te manda, a ti, quem quer
que sejas, e a todos quantos te obedecem, a sua vontade. O tapuia rugiu; mas
seus olhos viam o mar dos guerreiros Araguaias que o cercava, e na frente o
grande vulto de Ubirajara, semelhante ao rochedo sombrio e imóvel do meio dos
borbotões da cachoeira.
— Os guerreiros de Canicrã
só conhecem a vontade do seu chefe; e Canicrã afronta a cólera de Tupã e das
nações que ele gerou. Dize, mensageiro, o que pede Ubirajara ao grande chefe
dos tapuias.
— Ubirajara te manda que
encostes o tacape da guerra. A nação Tocantim aceitou a sua flecha de desafio,
e ele não consente que ninguém combata seu inimigo, antes de o ter vencido.
— Torna e dize ao grande
chefe Araguaia, que Canicrã veio trazido pela vingança. Pojucã, um dos chefes
Tocantins, penetrou em sua taba e incendiou a cabana do pajé, que foi devorado
pelas chamas.
“Ubirajara é um grande
chefe; ele que diga se o pai da nação pode sofrer tão dura afronta. Canicrã
escutará a voz de sua amizade. “
O chefe tapuia tomou uma de
suas flechas; arrancou o farpão e deu ao mensageiro a haste emplumada com as
asas negras do anum, que era o emblema guerreiro de sua nação.
— Toma; entrega ao grande
chefe Araguaia o penhor da aliança.
Murinhém partiu e foi à taba
dos Tocantins levar igual mensagem. Itaquê escutou o que lhe mandava Ubirajara
e respondeu.
— Antes que Itaquê trocasse
com Ubirajara a seta do desafio, Pojucã tinha levado a guerra à taba dos
tapuias.
“Canicrã veio trazido pela
vingança; e a nação Tocantim não pode recusar o combate. Mas Itaquê sabe honrar
seu nome se Ubirajara quer, ele combaterá juntamente os dois inimigos.”
O mensageiro tornou ao campo
dos Araguaias com as respostas dos dois chefes. Ubirajara ouviu e meditou.
— Escuta a vontade de
Ubirajara para levá-la aos inimigos. O grande chefe Araguaia não roubará a
Canicrã a glória da vingança; ele respeita a honra da nação tapuia, mas rejeita
sua aliança. Restitui o penhor que recebeste.
«Itaquê pode aceitar o
combate que Pojucã foi buscar; Ubirajara não ofende o nome de um guerreiro,
ainda mais de um morubixaba, e do pai de Araci.
“O chefe dos Araguaias não
carece de auxílio para triunfar de seus inimigos deseja que a nação Tocantim
derrote aos tapuias, para ter ele a glória de vencer ao vencedor.
“Se Itaquê não pode repelir
os tapuias, Ubirajara toma a si castigar os bárbaros; e depois de varrê-los das
florestas, combaterão as duas nações.
“Se os Tocantins necessitam
de aliados para resistir ao ímpeto dos Araguaias, Ubirajara espera que Itaquê
os chame e que eles venham.
“Murinhém falará assim a um
e outro chefe; a ambos dirá que a cabana onde estiver Araci fica sob a guarda
de Ubirajara; quem nela penetrar como inimigo, sofrerá a morte vil do covarde.”
O guerreiro deixou a voz do
chefe e falou com a voz de esposo.
— A Araci levarás o canto de
amor de Ubirajara. Tu lhe dirás que arme a rede nupcial e não deixe nossa
cabana, enquanto Ubirajara não a for buscar.
“Conta-lhe também que o
canitar que ela teceu, ainda não deixou a cabeça do seu guerreiro e há de
acompanhá-lo sempre. “
A BATALHA
A um lado da imensa campina
move-se a multidão dos guerreiros Tocantins, do outro lado, a multidão dos
guerreiros tapuias.
As duas nações se estendem
como dois lagos formados pelas grandes chuvas, que se transformam em rios e
atravessam o vale.
De um e outro campo
levantou-se a pocema guerreira; e os dois povos arremetendo travaram a batalha.
Itaquê achou-se em frente de
Canicrã. Ambos se buscavam; dez vezes tinham combatido; vencedores ambos,
nenhum fora vencido.
Enquanto viverem os
formidáveis guerreiros, não é possível quebrar a flecha da paz entre as duas
nações.
Era preciso que um deles
morresse para que o vencedor encostasse o tacape do combate e desse repouso à
sua nação para reparar os estragos da guerra.
Quando os dois chefes se
encontraram, os guerreiros de um e outro campo ficaram imóveis, contemplando o
pavoroso combate.
Ubirajara de longe, apoiado
em seu grande arco, admirava os dois guerreiros e pensava qual não seria o seu
orgulho em vencê-los ambos.
Durava a peleja o espaço de
uma sombra. Em torno dos chefes lastravam o chão os tacapes e escudos que se tinham
espedaçado aos golpes de cada um.
Imóveis no mesmo lugar, só
agitavam a cabeça e os braços; semelhantes a dois condores, que de garras
presas aos píncaros do rochedo, se dilaceram com o bico adunco.
Um rugido espantoso atroou
pela campina, que estremeceu a batalha e rolou pelas profundezas da floresta.
Pahã, a seta, era o último
filho de Canicrã. Ainda curumim, pelejava ao lado do irmão, o guerreiro Crebã,
cujo ombro mal alcançava com o braço.
Ele tinha nos olhos a vista
da gaivota, e nas setas de seu arco, feitas de espinho de ouriço, a velocidade
e a certeza do voo do guanumbi.
Quando caçava na floresta,
divertia-se em matar as mutucas traspassando-as com suas flechas, que voavam
mais rápidas e certeiras que as vespas venenosas.
Pahã saltara sobre os ombros
do guerreiro Crebã para assistir ao combate. Admirando o valor de Canicrã, teve
orgulho e inveja do pai.
Itaquê desfechara tão
formidável golpe, que o tacape e escudo de Canicrã se espedaçaram em suas mãos,
deixando-o à mercê do inimigo.
O chefe Tocantim arrojou-se,
e já sua mão descia sobre a espádua do tapuia para fazê-lo prisioneiro.
O arco de Pahã sibilou duas
vezes. Os olhos de Itaquê, os olhos do varão forte que nunca umedecera uma
lágrima, choraram sangue.
As setas do curumim tinham
vazado as pupilas do fero guerreiro, cuja vista era raio. Assim a jandaia rói o
grelo do prócero coqueiro.
Foi então que Itaquê soltou
o rugido pavoroso que fez tremer a terra. Mas o grito de espanto soçobrou no
peito dos guerreiros e rompeu em um grito de horror.
Itaquê estendera os braços,
hirtos como duas garras de condor. A mão direita abarcou o penacho e a
cabeleira de Canicrã, a esquerda entrou pela boca do tapuia e travou-lhe o
queixo.
Separaram-se os braços do
guerreiro cego, e a cabeça de Canicrã abriu-se como um coco que se fende pelo
meio.
Agitando no ar o crânio
sangrento como um maracá de guerra, Itaquê arrojou-se contra os inimigos,
buscando a morte que lhe fugia.
Quando o sol entrou, não
havia na campina a sombra de um tapuia.
O velho herói voltou à cabana
conduzido por Pojucã.
— Tupã viu que Itaquê não
podia ser vencido pela mão dos homens; e quis vencê-lo ele mesmo pela mão de um
menino.
Quando Ubirajara viu o êxito
do combate, lamentou que dos dois grandes guerreiros não restasse nenhum, para
que ele o vencesse.
Seus olhos descobriram Pahã
que fugia no meio dos destroços de sua nação. Ergueu a mão, mas não chegou a
retesar a seta.
A águia não persegue a
andorinha. Era indigno de um guerreiro, quanto mais de um chefe, empregar seu
valor contra um menino.
O chefe chamou à sua
presença Tubim, um dos jovens caçadores, que tinham acompanhado a guerra para
prover o alimento.
— Tubim tem as asas da
abelha; se ele alcançar o curumim tapuia que eu estou olhando, Ubirajara lhe
dará o nome de Abeguar.
O jovem caçador seguiu o
olhar do chefe e sumiu-se num turbilhão de poeira. Quando os vaga-lumes
começaram a luzir no escuro da mata, ele estava de volta ao campo dos
Araguaias; e trazia o curumim fechado nos braços.
Nessa mesma noite, Tubim
recebeu o nome de Abeguar, senhor do voo, em honra da façanha que tinha
realizado.
Os cantores entoaram seu
louvor; e o jovem caçador teve a glória de receber os aplausos dos moacaras de
sua nação, e de um chefe como Ubirajara.
Ao raiar da manhã, Murinhém
foi à taba dos Tocantins, acompanhado por vinte guerreiros que conduziam o
curumim.
Quando chegou em frente à
cabana do grande chefe, o cantor viu Itaquê no terreiro, sentado em uma
sapopema.
O guerreiro fitava os olhos
no céu, onde o calor lhe dizia que estava o sol. Mas não encontrava a luz que
para sempre o abandonara.
Então o velho guerreiro
abaixava os olhos para a terra, como se buscasse o lugar do repouso.
Quando soaram longe os
passos dos estrangeiros, o chefe alongou a fronte para ver pelo ouvido o que os
olhos lhe recusavam.
Murinhém chegou e disse:
— Ubirajara envia a Itaquê o
resto da vingança. Este é Pahã, o filho de Canicrã. Ele te roubou a vista; mas
não salvou o pai de tua mão terrível. Faze do curumim tapuia um mancebo
Tocantim; e ele será a luz dos teus olhos e caminhará na frente do grande chefe
para abrir-lhe o caminho da guerra. Pahã avançou:
— O filho de Canicrã jamais
será escravo; nasceu tapuia e tapuia morrerá, como o grande chefe que o gerou.
Enquanto o ouriço viver nas florestas, ele roubará seus espinhos para furar os
olhos dos tucanos. Itaquê pousou a palma da mão na cabeça do menino.
— O curumim que ama seu pai
é filho de Itaquê. Tu és livre, Pahã; vai caçar o ouriço. Quando fores um
guerreiro, acharás cem mancebos do sangue de Itaquê para castigarem tua audácia.
O chefe voltou-se para o cantor.
— Tupã tirou a luz dos olhos
de Itaquê; mas aumentou a força de seu braço. Ubirajara terá para combatê-lo um
inimigo digno de seu valor.
Murinhém tornou ao chefe
Araguaia com esta resposta.
Quando partia o cantor, chegaram
à cabana de Itaquê os abarés da nação Tocantim.
Os anciões sentaram-se em
torno do guerreiro cego; e bebendo a fumaça da sabedoria, formaram o carbeto.
Falou Guaribu:
— O grande arco da nação
carece de uma mão robusta para brandir sua corda; e de um olho seguro para
dirigir sua seta. Itaquê é o maior guerreiro das florestas; seu nome faz tremer
aos mais valentes dos inimigos; seu braço fere como o raio. Mas a luz fugiu de
seus olhos e ele não pode mais abrir o caminho da guerra.
O velho chefe ergueu-se com
o passo trôpego. Alcançando o grande arco dos Tocantins abraçou-se com ele e
falou-lhe.
— Quando Itaquê te recebeu
da mão do grande Javari, ele pensava que só a morte o separaria de ti, para
transmitir-te a um guerreiro de seu sangue. Mas Itaquê ficou na terra, como um
tronco levado pela corrente, que não sabe onde vai.
Um esguicho de sangue saltou
dos buracos, onde o velho tivera os olhos. Era a lágrima que a desgraça lhe
deixara.
Os abarés meditaram. Guaribu
falou de novo.
— O grande arco da nação que
tu recebeste do grande Javari, teu pai, não te abandonará. Ele fica em tua mão
invencível; haverá outro arco na mão do mais valente guerreiro, que abrirá o
caminho da guerra. Mas enquanto Itaquê viver, sua voz governará a nação que ele
defendeu com seu braço. O semblante do velho chefe cobriu-se de um sorriso,
como o negro rochedo sobre o qual desliza um raio de luar.
— Pais da sabedoria, abarés,
olhai aquele jatobá que se levanta no meio da campina, e que eu só posso ver
agora na sombra de minha alma.
“Ele tem muitas raízes que o
sustentam nos ares, tem muitos galhos que o cercam e estendem ao longe a sua
rama. Mas o tronco é um só.
“As grossas raízes são os
abarés que sustentam o chefe com o seu conselho. Os galhos fortes são os
moacaras que cercam o chefe e geram a multidão de guerreiros mais numerosa que
as folhas das árvores. O tronco é o chefe da nação; se ele se dividir, o jatobá
não subirá às nuvens, nem terá forças para resistir ao tufão.
“O lugar de Itaquê é no
conselho. O último dente de seu colar de guerra foi o que ele arrancou da boca
de Canicrã. Convocai os guerreiros, e o que for mais forte e mais valente
empunhe o grande arco da nação.”
O trocano chamou a nação ao
carbeto. Vieram os moacaras, conduzindo suas tribos.
O velho Itaquê contava pelos
passos os guerreiros que chegavam. O grande arco da nação, que ele segurava
direito, parecia um dos esteios da cabana, e tinha a corda tão grossa como a da
rede do chefe.
Os mais famosos guerreiros
Tocantins se apresentaram para disputar o grande arco; muitos conseguiram
vergá-lo, mas a seta não partiu.
Itaquê escutava com o ouvido
atento; o som dele conhecido não feriu os ares.
— Onde está Pojucã?
perguntou o velho chefe.
O valente guerreiro do
sangue de Itaquê estava de parte, grave e taciturno. Algum motivo o separava do
arco-chefe, que ele devia ser o primeiro a disputar.
— Teu filho te escuta;
respondeu.
— Empunha o arco-chefe; se
há um guerreiro Tocantim que possa conquistá-lo, esse deve ser do sangue de
Itaquê.
Pojucã recebeu o arco.
Fincando nele os pés, o guerreiro arrojou-se para trás como a jiboia quando se
enrista para armar o bote.
A seta partiu, e foi cravar
a cabeça de um chefe tapuia, fincada na estaca, à entrada da taba.
Itaquê
curvara a cabeça. Ele ouviu brandir a arma; não era, porém, aquele o zunido da
corda do arco, quando o vergava sua mão possante.
Pojucã
depôs o arco-chefe aos pés de Itaquê e disse.
—
Pojucã mostrou que em suas veias corre o sangue generoso de Itaquê. Mas o
grande arco pesa em sua mão. Só há um guerreiro na terra que o possa brandir
como Itaquee esse não cinge a fronte com o cocar das penas de tucano.
—
Pojucã negou a Itaquê esta última consolação. O arco invencível do grande
Tocantim, que foi o pai da nação, vai sair de sua geração. Tocantim o
transmitiu a seu filho Javari, que me gerou; mas eu não soube gerar com seu sangue
um guerreiro digno deles.
UNIÃO DOS ARCOS
Os tapuias voltaram; com
eles vinha Agniná à frente de sua nação, para vingar a morte de Canicrã, seu
irmão.
Era grande a multidão dos
guerreiros; e maior a tornavam a sanha da vingança e a fama do chefe que a
conduzia.
Não eram tantos os
Tocantins; mas bastaria seu valor para igualá-los, se não lhes faltasse a
cabeça, que rege o corpo.
A poderosa nação estava como
o bando de caitetus que perdeu o pai e desgarra-se pela floresta, correndo sem
rumo.
Os mais valentes moacaras,
chefes das tribos, esperavam pelo grande chefe da nação para abrir-lhes o
caminho da guerra.
Os abarés meditaram. Eles
não podiam inventar um guerreiro capaz de suceder a Itaquê; mas não se
resignavam a abater a glória da nação, trocando o arco invencível do grande
Tocantim por outro arco mais leve, que Pojucã manejasse.
Também Pojucã anunciara que,
não podendo brandir o arco de Itaquê, jamais empunharia outro arco-chefe, menos
glorioso do que o do grande Tocantim.
Abarés, chefes, moacaras,
guerreiros, toda a nação se reuniu em torno do herói cego.
Daquele que durante tantas
luas defendera a nação com a força de seu braço e a protegera com o terror de
seu nome, esperavam ainda a salvação.
O velho ouviu a voz dos
abarés, a voz dos chefes, a voz dos moacaras, a voz dos guerreiros, e disse:
— Itaquê ainda pode combater
e morrer por sua nação; mas sem a luz do céu, ele não pode mais abrir a seus
filhos o caminho da vitória.
“O braço de Itaquê defendeu
sempre a nação Tocantim; quer ela ser defendida agora pela palavra daquele, que
não tem mais para dar-lhe senão a experiência de sua velhice?
“Pensem os abarés, os
chefes, os moacaras e os guerreiros.”
Guaribu respondeu:
— A nação pensou. Fala e
todos obedecerão à tua palavra, como obedeciam ao braço de Itaquê.
— A voz do coração diz ao
neto de Tocantim que a glória da nação que ele gerou não se pode extinguir. O
sangue de Itaquê, passando pelo seio de Araci, se unirá a outro sangue generoso
para brotar maior e mais ilustre.
“Assim a terra onde nasceu
uma floresta de acajás, recebe o limo do rio e gera nova floresta mais frondosa
que a outra.
“Jacamim, chama Araci, a
filha de nossa velhice. E vós, abarés, chefes, moacaras e guerreiros,
segui-me.”
O velho herói atravessou a
taba guiado por Araci.
A nação o seguia em
silêncio.
Quando o guerreiro cego
passava com a mão no ombro da virgem formosa que dirigia o seu passo incerto,
os guerreiros lembravam-se do tronco já morto que a rama do maracujá ainda
sustenta de pé junto ao penedo.
Os cantores iam adiante e
entoavam um canto de paz.
Um mensageiro de Itaquê o
precedera no campo dos Araguaias.
Ubirajara, cercado de seus
abarés, chefes, moacaras e guerreiros, veio ao encontro do morubixaba dos
Tocantins.
A alma do grande chefe
Araguaia encheu-se da alegria de ver Araci; mas ele retirou os olhos da esposa,
para que o amor não perturbasse a serenidade do varão.
— Ubirajara está em face de
Itaquê; para combatê-lo, se trouxe a guerra; para abraçá-lo, se trouxe a paz.
— Nunca Itaquê pediu a paz
ao inimigo que trouxe-lhe a guerra, antes de o vencer; nem teria vivido tanto
para cometer essa fraqueza. Ele vem trazer-te a vitória para que tu a repartas
com seu povo. O velho herói avançou o passo.
— Chefe dos Araguaias, tu
levaste a guerra à taba dos Tocantins para conquistar Araci, a filha de minha
velhice.
“Por teu heroísmo, e ainda
mais pela nobreza com que restituíste a liberdade a Pojucã, tu merecias uma
esposa do sangue de Tocantim.
“Mas desde que tu ameaçaste
tomá-la pela força de teu braço, Itaquê não podia mais conceder-te a filha de
sua velhice, senão depois que abatesse teu orgulho.
“Ele preparava-se para te
combater, e à tua nação; mas fugiu-lhe dos olhos a luz que dirige a seta da
guerra; e não há entre seus guerreiros um que possa brandir o arco do grande
Tocantim.”
Quando pronunciou estas
palavras, a voz do velho guerreiro soçobrou-lhe no peito:
— O arco de Itaquê é como o
gavião que perdeu as asas e não pode mais levar a morte ao inimigo. As
andorinhas zombam de suas garras.
“Empunha o arco de Itaquê,
chefe dos Araguaias, e tu conquistarás por teu heroísmo uma esposa e uma nação.
“À esposa farás mãe de cem
guerreiros como Itaquê; e à nação, conservarás a glória que ela conquistou
quando o filho de Javari a conduziu à guerra.
“Tupã dará a teu braço esta
força para que o sangue de Itaquê brote mais vigoroso e os netos de Tocantim
dominem as florestas. “
Ubirajara sorriu:
— Chefe dos Tocantins, teus
olhos não podem ver o grande arco da nação Araguaia; mas pergunta à tua mão se
o arco que Camacã brandia invencível e agora empunha Ubirajara, cede ao arco de
Itaquê.
O velho herói palpou o
arco-chefe dos Araguaias e vergou-lhe a ponta ao ombro, como se a haste fosse
de taquari.
Ubirajara travou do arco de
Itaquê e desdenhando fincá-lo no chão, elevou-o acima da fronte. A flecha
ornada de penas de tucano partiu.
O semblante de Itaquê
remoçou, ouvindo o zunido que recordava-lhe o tempo de seu vigor. Era assim que
ele brandia o arco outrora, quando as luas cresciam aumentando a força de seu
braço.
O velho inclinou a fronte
para escutar o sibilo de sua flecha que talhava o azul do céu. Os cantores não
tinham para ele mais doce harmonia do que essa.
Ubirajara largou o arco de
Itaquê para tomar o arco de Camacã. A flecha Araguaia também partiu e foi
atravessar nos ares a outra que tornava à terra.
As duas setas desceram
trespassadas uma pela outra como os braços do guerreiro quando se cruzam ao peito
para exprimir a amizade.
Ubirajara apanhou-as no ar.
— Este é o emblema da união.
Ubirajara fará a nação Tocantim tão poderosa como a nação Araguaia. Ambas serão
irmãs na glória e formarão uma só, que há de ser a grande nação de Ubirajara,
senhora dos rios, montes e florestas.
O chefe dos chefes ordenou
que três guerreiros Araguaias e três guerreiros Tocantins ligassem com o fio do
crautá as hastes dos dois arcos.
Quando o arco de Camacã e o
arco de Itaquê não fizeram mais que um, Ubirajara o empunhou na mão possante e
mostrou-o às nações.
— Abarés, chefes, moacaras e
guerreiros de minhas nações, aqui está o arco de Ubirajara, o chefe dos grandes
chefes. Suas flechas são gêmeas, como as duas nações, e voam juntas.
Ambas as cordas brandiram a
um tempo. A seta Araguaia e a seta Tocantim partiram de novo como duas águias
que par a par remontam às nuvens.
Quando calou-se a pocema do
triunfo, Ubirajara caminhou para a filha de Itaquê.
— Araci, estrela do dia, tu
pertences a Ubirajara, que te conquistou pela força de seu braço. Agora que é
senhor, ele espera a tua vontade.
A formosa virgem rompeu a
liga vermelha que lhe cingia a perna e atou-a ao pulso de seu guerreiro.
Ubirajara tomou a esposa aos
ombros e levou-a à cabana do casamento.
O jasmineiro semeava de
flores perfumadas a rede do amor.
O outro sol rompia, quando
os tapuias estenderam pela campina a multidão de seus guerreiros.
Na frente assomava Agniná, a
montanha dos guerreiros, ainda mais feroz do que o irmão, o terrível Canicrã.
De um lado e do outro
seguiam-se os chefes, cada um à frente de seus guerreiros.
Ubirajara escolheu mil
guerreiros Araguaias e mil guerreiros Tocantins, com que saiu ao encontro dos
tapuias.
Depois que desdobrou sua
batalha pela campina, o chefe dos chefes caminhou só para o inimigo.
Quando chegava a meio do
campo, os tapuias levantaram a pocema de guerra, que atroou os ares, como o
estrépito da cachoeira.
Um turbilhão de setas crivou
o longo escudo do herói, que ficou semelhante ao grosso tronco de juçara,
eriçado de espinhos.
Ubirajara embraçou o escudo
na altura do ombro, e com o pé brandiu sete vezes a corda do grande arco gêmeo.
As setas vermelhas e
amarelas subiram direitas ao céu e perderam-se nas nuvens.
Quando voltaram, Agniná e os
chefes que obedeciam a seu arco, tinham cada um fincado na cabeça o desafio do
formidável guerreiro.
Enfurecidos mais pelo
insulto do que pela dor, arremessaram-se contra o inimigo que os esperava
coberto com seu vasto escudo.
Agniná era o primeiro na
corrida e o primeiro na sanha. Após ele vinham os outros a dois e dois, lutando
na rapidez.
Quando o esposo de Araci viu
que eles se estendiam pela campina, como dois ribeiros que se aproximam para
confundir suas águas; o herói empunhou a lança de duas pontas e soltou seu grito
de guerra, que era como o bramir do jaguar, senhor da floresta.
Seu pé devorou o espaço; e a
lança de duas pontas girou em sua mão, como a serpente que enrosca-se nos ares,
silvando.
Caiu Agniná do primeiro
bote; após ele caíram aos dois os chefes tapuias, como caem os juncos talhados
pelo dente afiado da capivara.
Então o herói soltou seu
grito de triunfo, que era como o rugido do vento no deserto:
— Eu sou Ubirajara, o senhor
da lança, o guerreiro invencível que tem por arma uma serpente.
“Eu sou Ubirajara, o senhor
das nações, o chefe dos chefes, que varre a terra, como o vento do deserto.”
O herói estendeu a vista
pela campina, e não descobriu mais o inimigo, que sumia-se na poeira.
Ubirajara lançou-lhe seus
guerreiros, que tinham fome de vingança; porém o terror de sua lança dava asas
aos fugitivos.
Desde esse dia nunca mais um
tapuia pisou as margens do grande rio.
Ubirajara voltou à cabana,
onde o esperava Araci.
A esposa despiu as armas de
seu guerreiro, enxugou-lhe o corpo com o macio cotão da monguba, e cobriu-o do
bálsamo fragrante da embaíba.
Encheu depois de generoso
cauim a taça vermelha feita do coco da sapucaia; e aplacou a sede do combate.
Enquanto nas grandes tabas
se preparava a festa do triunfo e o herói repousava na rede, Araci foi ao terceiro
e voltou conduzindo Jandira pela mão.
— Jandira é irmã de Araci,
tua esposa. Ubirajara é o chefe dos chefes, senhor do arco das duas nações. Ele
deve repartir seu amor por elas, como repartiu a sua força. A virgem Araguaia
pôs no guerreiro seus olhos de corça.
— Jandira é serva de tua
esposa; seu amor a obrigou a querer o que tu queres. Ela ficará em tua cabana
para ensinar a tuas filhas como uma virgem Araguaia ama seu guerreiro.
Ubirajara cingiu ao peito, com um e outro braço, a esposa e a virgem.
— Araci é a esposa do chefe
Tocantim; Jandira será esposa do chefe Araguaia; ambas serão as mães dos filhos
de Ubirajara, o chefe dos chefes, e o senhor das florestas.
As duas nações, dos
Araguaias e dos Tocantins, formaram a grande nação dos Ubirajaras, que tomou o
nome do herói.
Foi esta poderosa nação que
dominou o deserto.
Mais tarde, quando vieram os
caramurus, guerreiros do mar, ela campeava ainda nas margens do grande rio.
****
© Copyright 2021,
VirtualBooks Editora.
Publicamos seu livro a
partir de 20 exemplares e-books nos formatos: e-pub ou PDF.
Whatsapp +55 37 99173-353
e-mail: capasvb@gmail.com
http://www.virtualbooks.com.br
*
Clube do Livro VirtualBooks
Caso queira divulgar o seu
livro: capa, sinopse e seu e-mail. É grátis!
*
Grátis o e-book: UMA INTRODUÇÃO GERAL À PSICANÁLISE, Sigmund Freud
‘UMA INTRODUÇÃO GERAL À PSICANÁLISE” (A GENERAL INTRODUCTION TO PSYCHOANALYSIS) são palestras para leigos, tão elementares e quase coloquiais. Freud expõe com uma franqueza quase surpreendente as dificuldades e limitações da psicanálise, e também descreve seus principais métodos e resultados como apenas um mestre e criador de uma nova escola de pensamento pode fazer. Essas palestras são ao mesmo tempo simples e quase confidenciais, e resumem os resultados de trinta anos de pesquisa devotada e meticulosa à Psicanálise.
Para baixar grátis: https://bit.ly/3GHGIsb