Ler online: AS AVENTURAS EXTRAORDINÁRIAS DE ARSÈNE LUPIN, Maurice Leblanc

 

Belle Epoque en París, Jean Béraud




AS AVENTURAS EXTRAORDINÁRIAS
DE ARSÈNE LUPIN

 

Maurice Leblanc

 

 

© Copyright 2021, VirtualBooks Editora e Livraria Ltda. – MEMÓRIAS, Liev
Tolstói. Tradução: Jessica Nunes Arbur – CDD 840. Literatura russa. Memórias. ISBN:
9781521081246 – Todos os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98.

 

 

Para
Pierre LAFITTE.

 

Meu caro
amigo,

Você me
levou por um caminho onde eu nunca acreditei que deveria me aventurar, e eu
achei tanto prazer e prazer literário que me parece correto escrever seu nome
no cabeçalho deste primeiro volume, e aqui afirmar meus sentimentos de carinho
e gratidão fiel.

 

ML

 

 

PREFÁCIO

 


Conte-nos, vocês que contam tão bem, uma história de ladrões…

– Ou, diz
Voltaire (ou outro filósofo do século XVIII E, porque a anedota
é atribuída a vários desses faladores incomparáveis).

E ele
começou:

– Era uma
vez um fazendeiro general…

O autor de
As
 aventuras
de Arsène Lupin, que também sabe contar histórias de maneira tão bela, teria
começado de forma bem diferente:

– Era uma
vez um senhor ladrão…

E esse
começo paradoxal teria levantado a cabeça alarmada dos ouvintes. As
aventuras de Arsène Lupin, tão incríveis e cativantes quanto as de Arthur
Gordon Pym, foram melhores. Eles não apenas interessaram a um salão, como
cativaram a multidão. Desde o dia em que esse personagem surpreendente fez
sua aparição em
 Eu
Sei Tudo, ele amedrontou, encantou, divertiu centenas de milhares de
leitores e, na nova forma do volume, entrará triunfantemente na biblioteca,
após conquistar a revista .

Essas
histórias de detetives e apaches da alta vida
 ou a rua sempre teve
uma atração singular e poderosa. Balzac, deixando M me de
Morsauf, viveu a dramática existência de um cão de caça policial. Ele
deixou o lírio do vale lá pelo refratário do riacho. Victor Hugo inventou
Javert, perseguindo Jean Valjean enquanto o outro “inspetor”
perseguia Vautrin. E ambos estavam pensando em Vidocq, aquele estranho
cervo-lobo que se tornou um cão de guarda, cujo poeta des
 Misérablese
o romancista de Rubempré conseguira reunir os segredos. Mais tarde, e em
uma ordem inferior, Monsieur Lecoq havia despertado a curiosidade dos
entusiastas do romance judicial, e M. de Bismarck e M. de Beust, esses dois
adversários, um feroz, o outro espiritual, haviam encontrado, antes e depois de
Sadowa, o que menos os dividia: as histórias de Gaboriau.

Assim,
acontece ao escritor encontrar em seu caminho um personagem de quem faz tipo e
que, por sua vez, faz a fortuna literária de seu inventor. Feliz quem cria
do nada um ser que logo parecerá tão vivo quanto os vivos: Delobelle ou Priola!
O romancista inglês Conan Doyle popularizou Sherlock Holmes. M. Maurice
Leblanc encontrou seu Sherlock Holmes, e acredito que, desde as façanhas do
ilustre detetive inglês, nenhuma aventura no mundo despertou a curiosidade tão
agudamente quanto as façanhas desse
 Arsène Lupin, essa sucessão de fatos que
agora se tornaram um livro.

O sucesso
das histórias de M. Leblanc tem sido, nós podemos
 ou seja,
esmagadoramente na resenha mensal em que o leitor, que outrora se contentava
com as intrigas vulgares do romance em série, buscará (desenvolvimento
significativo) uma literatura que o entretenha, mas que, no entanto, continue
sendo literatura.

O autor
estreou-se há doze anos, se não me engano, no velho
 Gil Blas, onde os seus
contos originais, sóbrios e potentes o colocaram de imediato na melhor posição
dos contadores. Normand, Rouennais, o autor era obviamente da boa linha de
Flauberts, Maupassants, Albert Sorels (que também era um
 novellière nas
horas
 vagas ). Seu primeiro romance, Une Femme, foi
muito notado, e, desde então, vários estudos psicológicos, A
 Obra da
Morte, Armelle e Claude, o Entusiasme, uma peça em três atos, aplaudida por
Antoine,
 o Pitié, foram acrescentados a esses pequenos romances em
duzentas linhas em que M. Maurice Leblanc se destacou.

É preciso
ter um dom especial de imaginação para encontrar esses dramas atalhos, esses
contos rápidos que encerram a própria substância de volumes inteiros, visto que
essas vinhetas magistrais contêm quadros prontos. Essas raras qualidades
de inventor estavam fadadas a encontrar um quadro mais amplo um dia, e o autor
de
 Uma
mulher logo se concentraria depois de se dispersar em tantas histórias
originais.

Foi então
que conheceu a deliciosa e inesperada Arsène Lupin.
 Nós conhecemos a
história do bandido do XVIII ° século voando pessoas com
manchetes como Buffon escreveu sua
 História Natural. Arsène Lupin é
um sobrinho deste canalha que amedrontava e sorria aos amedrontados e seduzidos
marqueses.

– Pode
comparar, disse-me o senhor Marcel L’Heureux, trazendo-me as provas do trabalho
do colega e os números em que
 sei que tudo ilustrava as façanhas de
Arsène Lupin, pode comparar Sherlock Holmespara Lupin e Maurice Leblanc
para Conan Doyle. É certo que os dois escritores têm pontos de
contato. Mesmo poder de história, mesma habilidade de intriga, mesma
ciência de mistério, mesma sequência rigorosa de fatos, mesma sobriedade de
meios. Mas que superioridade na escolha dos temas, na própria qualidade da
dramatização! E observe este tour de force: com Sherlock Holmes, cada vez
enfrentamos um novo roubo e um novo crime; aqui, sabemos de antemão que
Arsène Lupin é o culpado; sabemos que, quando tivermos desvendado os fios
emaranhados da história, nos encontraremos cara a cara com o famoso
cavalheiro-ladrão! Houve um obstáculo aqui, é claro. Evitou-se, era até
impossível evitá-lo com mais habilidade do que fez Maurice Leblanc. Com a
ajuda de procedimentos que os mais informados não conseguem distinguir, ele o
mantém em suspense até o desfecho de cada aventura. Até a última linha
permanecemos na incerteza, curiosidade, angústia, e a torção é
 sempre
inesperado, opressor e inquietante. Na verdade, Arsène Lupin é um tipo, um
tipo jálendária, e que permanecerá. Uma figura viva, jovem, cheia de
alegria, o inesperado, a ironia. Ladrão e ladrão, vigarista e trapaceiro,
o que você quiser, mas tão legal, aquele bandido! Ele age com uma naturalidade
tão bonita! Quanta ironia, tanto charme e tanta inteligência! Ela é uma
diletante. É um artista! Observe bem: Arsène Lupin não voa; ele gosta
de voar. Ele escolhe. Se necessário, ele restaura. Ele é nobre e
charmoso, cavalheiresco, delicado, e repito, tão simpático, que tudo o que ele
faz parece certo, e que se encontra, apesar de si mesmo, a esperar o sucesso de
seus empreendimentos, que se alegra, e que a própria moralidade parece estar de
lado. Tudo isso, repito, porque Lupin é criação de um artista, e porque ao
compor um livro em que deu asas à imaginação, Maurice Leblanc não se esqueceu
de que foi antes de tudo, e no sentido pleno do termo, um escritor! “

Assim
falou o Sr. Marcel L’Heureux, tão bom juiz no assunto e que conhece o valor de
um romance por ter escrito tão notáveis. E aqui estou eu de sua opinião
depois de ter lido essas páginas ironicamente divertidas, nada amorais, apesar
do paradoxo que tanto seduz o cavalheiro que rouba seus
contemporâneos. Certamente eu não daria um prêmio Montyon a este Lupin
muito atraente. Mas teríamos coroado Fra Diavolo por sua virtude, que encantou
nossas avós na Opéra-Comique, em um passado distante?
 onde os símbolos de Ariadne
e Barba Azul não foram inventados?

Aqui está ele vindo

A pena vermelha em seu chapéu…

Arsène
Lupin é um Fra Diavolo armado não com um bacamarte, mas com um revólver,
vestido não com uma jaqueta de veludo romântica, mas com um smoking de formato
adequado, e desejo-lhe sucesso. Mais de cem anos do irresistível salteador que
M Auber chantageou.

Mas o que!
não há nada a desejar para Arsène Lupin. Ele entrou na popularidade
vivo. E a voga que a revista começou tão bem, o livro vai continuar.

 

Jules Claretie 

 

 

A PRISÃO
DE ARSÈNE LUPIN


eu viagem estranha! Mas tinha começado tão bem! De
minha parte, nunca fiz um que se anunciasse sob auspícios mais
felizes. O Provence é um transatlântico rápido,
confortável, controlado pelo mais afável dos homens. A sociedade mais
escolhida estava reunida ali. Relacionamentos foram formados, o
entretenimento foi organizado. Tínhamos essa impressão primorosa de
estarmos separados do mundo, reduzidos a nós mesmos como numa ilha
desconhecida, obrigados, portanto, a nos aproximarmos.

E nós estávamos chegando mais
perto…

Você já pensou no que é
original e imprevisto neste grupo de seres que, na véspera, não se
conheciam, e quem, por alguns dias, entre o céu infinito e o imenso mar, vai
viver a vida mais íntima, juntos vão desafiar a ira do oceano, o assalto
terrível das ondas, a maldade das tempestades e a astuta calma da água
adormecida?

É, no fundo, vivida numa
espécie de atalho trágico, a própria vida, com as suas tempestades e a sua
grandeza, a sua monotonia e a sua diversidade, e por isso, talvez, se saboreie
com pressa febril e este curto percurso é ainda mais intenso, cujo fim pode ser
visto assim que começa.

Mas, há vários anos, algo tem
acontecido que contribui de forma singular para as emoções da travessia. A
pequena ilha flutuante ainda depende deste mundo do qual pensávamos estar
livres. Fica um elo que só vai se desfazendo aos poucos no meio do oceano,
e aos poucos, no meio do oceano, se restabelece. O telégrafo sem fio! Chamada
de outro universo de onde receberíamos notícias da forma mais misteriosa
possível! A imaginação não tem mais o recurso de conjurar fios nos quais a
mensagem invisível escorrega. O mistério é ainda mais insondável, mais
poético também, e é às asas do vento que devemos recorrer para explicar este
novo milagre.

Assim, nas primeiras horas,
sentimo-nos seguidos, escoltados, precedidos até por esta voz distante,
que de vez em quando sussurrava algumas palavras dali para um de nós. Dois
amigos falaram comigo. Dez outros, vinte outros enviaram a todos nós,
através do espaço, suas tristes ou sorridentes despedidas.

Porém, no segundo dia, a
quinhentas milhas da costa francesa, em uma tarde tempestuosa, o telégrafo sem
fio nos transmitiu um despacho, cujo conteúdo é o seguinte:

Arsène Lupin a bordo,
primeira classe, cabelos loiros, lesão no antebraço direito, viajando sozinha,
com o nome de R…

Naquele preciso momento, um
estrondo violento de trovão irrompeu no céu escuro. As ondas elétricas
foram interrompidas. O resto do despacho não chegou até nós. Do nome
sob o qual Arsène Lupin estava escondido, apenas a inicial era conhecida.

Teria sido outra notícia, não
tenho dúvidas de que o segredo teria sido guardado escrupulosamente pelos funcionários
da estação telegráfica, assim como pelo comissário do navio e pelo
capitão. Mas é um daqueles eventos que parecem exigir a mais rigorosa
discrição. No mesmo dia, sem que ninguém pudesse dizer como havia sido
noticiado, todos sabíamos que o famoso Arsène Lupin se escondia entre nós.

Arsène Lupin entre nós! o
evasivo ladrão cujas façanhas foram contadas em todos os jornais durante meses!
o personagem enigmático com quem o velho Ganimard, nosso melhor policial, se
envolveu neste duelo até a morte, cujas aventuras se desenrolaram de forma tão
pitoresca! Arsène Lupin, o fantasioso cavalheiro que só opera em castelos e
salões, e que, uma noite, ao entrar no Barão Schormann, saiu de mãos vazias e
deixou seu cartão, adornado com esta fórmula: “Arsène Lupin,
cavalheiro-ladrão, vai voltar quando o móvel for autêntico “. Arsène
Lupin, o homem de mil disfarces: alternadamente motorista, tenor, bookmaker,
filho de família, adolescente, velho, vendedor de Marselha, médico russo,
toureiro espanhol!

Estejamos cientes disso: Arsène
Lupin indo e vindo no quadro relativamente restrito de um transatlântico, o que
estou dizendo! neste cantinho das estreias onde nos encontramos a todo o
momento, nesta sala de jantar, nesta sala de estar, nesta sala de fumar! Arsène
Lupin, talvez fosse este senhor… ou este… meu vizinho da mesa… meu
companheiro de cabana…

– E vai durar mais cinco vezes
vinte e quatro horas! gritou Miss Nelly Underdown no dia seguinte, mas é
insuportável! Espero que possamos impedi-lo.

E falando comigo:

“Vamos, você, Monsieur
d’Andrézy, que já está no seu melhor com o capitão, não sabe de nada?”

Gostaria de saber algo para
agradar a Srta. Nelly! Ela era uma daquelas criaturas magníficas que, onde quer
que estejam, imediatamente ocupam o lugar de maior destaque. Sua beleza
tanto quanto sua fortuna deslumbram. Eles têm uma corte, devotos,
entusiastas.

Criada em Paris por uma mãe
francesa, ela se juntou ao pai, o rico Underdown, de Chicago. Uma de suas
amigas, Lady Jerland, o acompanhou.

Desde a primeira hora,
solicitei um flerte. Mas, na rápida privacidade da viagem, seu charme
imediatamente me perturbou, e me senti um pouco comovido demais para um flerte
quando seus grandes olhos negros encontraram os meus. No entanto, ela
recebeu meus respeitos com certo favor. Ela se dignou a rir de minhas
piadas e se interessar por minhas anedotas. Uma vaga simpatia parecia
corresponder à ansiedade que mostrei a ele.

Um único rival, talvez, teria
me preocupado, um menino bastante bonito, elegante, reservado, cujo temperamento
ela às vezes parecia preferir. taciturno em meus caminhos mais
“fora” de Paris.

Ele era apenas um do grupo de
admiradores que cercou Miss Nelly quando ela me questionou. Estávamos no
convés, agradavelmente sentados em cadeiras de balanço. A tempestade do
dia anterior havia clareado o céu. A hora estava deliciosa.

‘Não sei nada específico,
mademoiselle,’ respondi, ‘mas é impossível conduzir nossa investigação nós
mesmas, tão bem quanto o velho Ganimard, o inimigo pessoal de Arsène Lupin,
faria?

– Oh! Oh! você está avançando
muito!

– Em quê? O problema é tão
complicado?

– Muito complicado.

– É que você esquece os
elementos que temos para resolvê-lo.

– Quais elementos?

– 1 o Lupin
se autodenomina Monsieur R…

– Uma pequena descrição vaga.

– 2 o Ele
viaja sozinho.

– Se esse recurso for o
suficiente para você!

– 3 o Ele
é loiro.

– E daí?

– Depois, basta consultar a
lista de passageiros e proceder à eliminação.

Eu tinha essa lista no
bolso. Eu peguei e caminhei por ele.

– Observo em primeiro lugar que
existem apenas treze pessoas que suas iniciais designam à nossa atenção.

– Apenas treze?

– Primeira classe,
sim. Destes treze senhores R…, como pode assegurar-se, nove estão
acompanhados por mulheres, crianças ou criados. Quatro personagens
isolados permanecem: o Marquês de Raverdan…

– Secretário da embaixada,
interrompeu Miss Nelly, eu o conheço.

– Major Rawson…

– Ele é meu tio, alguém disse.

– Sr. Rivolta…

“Presente”, gritou um
de nós, um italiano cujo rosto desapareceu sob uma barba do mais belo negro.

Miss Nelly começou a rir.

– Monsieur não é exatamente
loiro.

“Então”, continuei, “somos
forçados a concluir que o culpado é o último da lista.

– Quer dizer?

– Quer dizer, M.
Rozaine. Alguém conhece o Sr. Rozaine?

Ficamos em silêncio. Mas
Miss Nelly, chamando o jovem taciturno cuja diligência perto dela me
atormentava, disse-lhe:

– Bem, senhor Rozaine, o senhor
não está atendendo?

Voltamos nossos olhos para
ele. Ele era loiro.

Vamos enfrentá-lo, eu senti um
pequeno choque bem no fundo de mim. E o silêncio constrangedor que pesava
sobre nós me disse que os outros assistentes também estavam sofrendo esse tipo
de sufocação. Além do mais, era um absurdo porque nada nos modos deste
senhor permitia que alguém suspeitasse dele.

– Por que não estou
respondendo? disse ele, mas porque, pelo meu nome, pelo meu estatuto de
viajante solteiro e pela cor do meu cabelo, já fiz uma investigação semelhante
e cheguei ao mesmo resultado. Portanto, sou de opinião que estou sendo
preso.

Ele parecia engraçado ao dizer
essas palavras. Seus lábios, finos como duas feições inflexíveis, se
estreitaram novamente e empalideceram. Riscos de sangue escorreram de seus
olhos.

Certamente ele estava
brincando. No entanto, sua fisionomia, sua atitude nos
impressionaram. Ingenuamente, Miss Nelly perguntou:

– Mas você não tem uma lesão?

– É verdade, disse ele, a
ferida sumiu.

Nervoso, ele ergueu a algema e
desnudou o braço dela. Mas imediatamente uma ideia me ocorreu. Meus
olhos encontraram os de Miss Nelly: ele havia mostrado o braço esquerdo.

E minha fé, eu deixaria claro,
quando um incidente desviou nosso Aviso. Lady Jerland, amiga da Srta.
Nelly, veio correndo.

Ela estava chateada. As
pessoas se aglomeraram ao seu redor, e só depois de muito esforço ela conseguiu
gaguejar:

– Minhas joias, minhas pérolas!…
Levamos tudo! …

Não, não tínhamos levado tudo,
como soubemos depois; coisa muito mais curiosa: tínhamos escolhido!

Da estrela de diamante, do
pingente de rubi cabochão, dos colares e das pulseiras quebradas, havíamos
retirado, não as pedras maiores, mas as mais finas, as mais preciosas, aquelas,
dir-se-ia, que tinham mais valor enquanto pegavam o mínimo de espaço. As
montarias estavam deitadas sobre a mesa. Eu os vi, todos nós os vimos,
despojados de suas joias como flores cujas belas pétalas brilhantes e coloridas
haviam sido arrancadas.

E para realizar este trabalho,
foi necessário, durante a hora em que Lady Jerland estava tomando chá, foi
necessário, em plena luz do dia, e em um corredor movimentado, arrombar a porta
da cabine, para encontrar uma pequena bolsa escondida propositalmente no
quarto. fundo de uma caixa de chapéu, abra e escolha!

Houve apenas um grito entre
nós. Havia apenas uma opinião entre todos os passageiros quando o roubo
foi conhecido: era Arsène Lupin. E, na verdade, era sua maneira
complicada, misterioso, inconcebível… e lógico porém, porque se era
difícil esconder a massa incômoda que todas as joias teriam se formado, quanto
menos o constrangimento com pequenas coisas independentes umas das outras,
pérolas, esmeraldas e safiras.

E no jantar, isso aconteceu: à
direita e à esquerda de Rozaine, as duas cadeiras permaneceram vazias. E à
noite soubemos que ele havia sido convocado pelo comandante.

Sua prisão, que ninguém
questionou, foi um verdadeiro alívio. Finalmente estávamos
respirando. Naquela noite jogamos joguinhos. Nós dançamos. Miss
Nelly, acima de tudo, exibia uma alegria vertiginosa que me fez ver que, se a
homenagem de Rozaine lhe fora aceitável no início, ela mal se lembrava
delas. Sua graça me conquistou. Por volta da meia-noite, ao luar
sereno, afirmei minha devoção a ele com uma emoção que não parecia
desagradá-lo.

Mas no dia seguinte, para
espanto de todos, soubemos que, como as acusações contra ele não eram
suficientes, Rozaine estava em liberdade.

Filho de um importante
comerciante de Bordéus, exibira papéis perfeitamente válidos. Além disso,
seus braços não mostravam o menor sinal de lesão.

– Papéis! certidões de
nascimento! gritaram os inimigos de Rozaine, mas Arsène Lupin fornecerá o
quanto você quiser! Quanto ao ferimento, é que ele não recebeu… ou que apagou
o rastro!

Objetaram-se a eles que, no
momento do roubo, Rozaine – havia sido demonstrado – caminhava sobre a
ponte. A que eles estavam respondendo:

– Um homem do calibre de Arsène
Lupin precisa testemunhar o roubo que comete?

E então, além de qualquer
consideração estrangeira, havia um ponto que os mais céticos não podiam
elaborar: quem, exceto Rozaine, viajava sozinho, era loiro e tinha um nome
começando com R? Quem o telegrama designava, senão Rozaine?

E quando Rozaine, poucos
minutos antes do almoço, corajosamente se aproximou do nosso grupo, a Srta.
Nelly e Lady Jerland se levantaram e foram embora.

Na verdade, era medo.

Uma hora depois, uma circular
manuscrita passou de mão em mão entre os empregados do navio, marinheiros,
viajantes de todas as classes: o Sr. Louis Rozaine prometeu uma soma de dez mil
francos a quem desmascarasse Arsène Lupin, ou encontrasse o dono do navio
roubado pedras.

“E se ninguém vier em meu
socorro contra esse bandido”, declarou Rozaine ao comandante,
“tratarei do assunto dele com ele.”

Rozaine contra Arsène Lupin, ou
melhor, para usar a palavra que se usava, o próprio Arsène Lupin contra Arsène
Lupin, a luta não faltou interesse!

Durou dois dias. Rozaine
foi vista vagando da direita para a esquerda, misturando-se à equipe,
questionando, bisbilhotando. Vimos sua sombra à espreita à noite.

Por sua vez, o comandante
desdobrou a energia mais ativa. De cima a baixo, em cada esquina, a Provença foi
pesquisada. Todas as cabines foram revistadas, sem exceção, sob o pretexto
muito correto de que os objetos estavam escondidos em qualquer lugar, exceto na
cabana do culpado.

– Vamos descobrir alguma coisa
eventualmente, não é? Miss Nelly me perguntou. Não importa o quão
mago ele seja, ele não pode tornar diamantes e pérolas invisíveis.

– Mas sim, respondi, ou
teríamos que explorar os casacos dos nossos chapéus, o forro das nossas
jaquetas e tudo o que vestimos com a gente.

E mostrando a ela minha câmera,
uma 9 × 12 com a qual não me cansei de fotografá-la nas mais diversas atitudes:

– Só em um dispositivo não
maior do que este, você não acha que haveria espaço para todas as pedras
preciosas de Lady Jerland? Afetamos tirar fotos e voila.

– Mas ainda ouvi que não há
ladrão que não deixe alguma pista atrás de si.

– Existe um: Arsène Lupin.

– Por que?

– Por que? porque não pensa
apenas no roubo que comete, mas em todas as circunstâncias que o podem
denunciar.

– No começo você estava mais
confiante.

– Mas desde então eu o vi no
trabalho.

– Então, o que você acha?

– Na minha opinião, estamos
perdendo nosso tempo.

E de fato, as investigações não
deram resultado, ou pelo menos, aquele que não correspondeu ao esforço geral: o
relógio do comandante foi roubado.

Furioso, ele redobrou seu ardor
e ficou de olho em Rozaine, com quem tivera várias entrevistas. No dia
seguinte, de maneira charmosa e irônica, o relógio foi encontrado entre os
colarinhos do segundo em comando.

Tudo isso tinha ares de
prodígio e denunciava o jeito humorístico de Arsène Lupin, ladrão, sim, mas
diletante também. Ele trabalhou por gosto e vocação, é claro, mas também
por diversão. Ele deu a impressão de que o cavalheiro estava gostando do
jogo que elejogou, e que, nos bastidores, riu muito de seus gracejos e das
situações que ele imaginou.

Decididamente, ele era um
artista da sua espécie, e quando observei Rozaine, sombria e obstinada, e que
pensava no duplo papel que este personagem curioso sem dúvida desempenhava, não
podia falar sobre isso sem uma certa admiração.

Porém, na penúltima noite, o
oficial da guarda ouviu gemidos na parte mais escura da ponte. Ele se
aproximou. Um homem estava estendido, a cabeça enrolada em um lenço cinza
muito grosso e os pulsos amarrados com uma corda fina.

Ele foi libertado de suas
amarras. Ele foi criado, o cuidado foi dado a ele.

Este homem era Rozaine.

Foi Rozaine atacado durante uma
de suas expedições, oprimido e despojado. Um cartão de visita fixado em
sua vestimenta por um alfinete trazia as seguintes palavras: “Arsène Lupin
aceita com gratidão os dez mil francos de M. Rozaine.” “

Na verdade, a carteira roubada
continha 20 mil notas.

Naturalmente, o infeliz foi
acusado de ter simulado esse ataque a si mesmo. Mas, além do fato de que
teria sido impossível para ele se amarrar dessa forma,ficou estabelecido que a
caligrafia no mapa era absolutamente diferente da caligrafia de Rozaine e, pelo
contrário, parecia, para se enganar, a de Arsène Lupin, reproduzida em um
antigo diário encontrado a bordo.

Então Rozaine não era mais
Arsène Lupin. Rozaine era Rozaine, filho de um comerciante de Bordéus! E a
presença de Arsène Lupin se afirmou mais uma vez, e que ato formidável!

Foi terror. Não ousávamos
mais ficar sozinhos em sua cabana, nem nos aventurarmos sozinhos em lugares
muito distantes um do outro. Nós nos agrupamos cuidadosamente entre
pessoas que estavam seguras umas das outras. E, no entanto, uma
desconfiança instintiva dividia os mais íntimos. Isso porque a ameaça não
partiu de um indivíduo isolado, vigiado e, portanto, menos perigoso. Arsène
Lupin, agora era… era todo mundo. Nossa imaginação superexcitada
atribuiu a ele um poder miraculoso e ilimitado. Ele deveria ser capaz de
se disfarçar dos mais inesperados, de ser por sua vez o respeitável Major
Rawson, ou o nobre Marquês de Raverdan, ou mesmo, porque não paramos mais no
acusador inicial, ou mesmo em tal e tal ou tal pessoa conhecido por todos,
tendo esposa, filhos, servos.

Os primeiros despachos sem fio
não trouxeram notícias. Pelo menos o comandante nãoNão o compartilhamos, e
tal silêncio não era para nos tranquilizar.

Portanto, o último dia parecia
interminável. Vivíamos na expectativa ansiosa de algum
infortúnio. Dessa vez não seria mais roubo, não seria mais um simples
assalto, seria crime, assassinato. Arsène Lupin não teve permissão para se
prender a esses dois roubos insignificantes. Comandante absoluto do navio,
as autoridades reduzidas à impotência, ele só tinha que querer, tudo era
permitido, ele tinha os bens e as vidas.

Horas deliciosas para mim,
admito, pois ganharam a confiança de Miss Nelly. Impressionada com tantos
acontecimentos, de natureza já inquieta, procurou espontaneamente protecção ao
meu lado, uma segurança que tive o prazer de lhe oferecer.

Basicamente, eu estava
abençoando Arsène Lupin. Não foi ele quem nos reuniu? Não era graças
a ele que eu tinha o direito de ter os sonhos mais doces? Sonhos de amor e
sonhos menos quiméricos, porque não confessar? Os Andrézys são de boa
linhagem Poitevin, mas seu brasão está um tanto disfarçado, e não me parece
indigno de um cavalheiro pensar em devolver o brilho perdido ao seu nome.

E esses sonhos, eu senti, não
ofenderam Nelly. Seus olhos sorridentes me permitiramFaçam. A
suavidade de sua voz me disse para ter esperança.

E até o último momento,
apoiados nos trilhos, ficamos próximos um do outro, enquanto a costa americana
navegava à nossa frente.

As buscas foram
interrompidas. Estávamos esperando. Do primeiro ao convés onde os
emigrantes enxameavam, esperamos o último minuto quando o enigma insolúvel
finalmente seria explicado. Quem foi Arsène Lupin? Sob que nome, sob
que máscara o famoso Lupin Arsène se escondeu?

E aquele minuto supremo
chegou. Mesmo que eu viva cem anos, não esquecerei o menor detalhe.

“Como você está pálida,
Srta. Nelly”, disse eu ao meu companheiro, que se apoiava no meu braço,
desmaiado.

– E você! ela respondeu, ah! você
está tão mudado!

– Pense nisso! este é um
momento emocionante e estou muito feliz em vivê-lo com você, Srta.
Nelly. Parece-me que às vezes sua memória vai durar…

Ela não estava ouvindo,
ofegante e febril. A passarela caiu. Mas antes que tivéssemos a
liberdade de atravessá-la, embarcaram pessoas, funcionários da alfândega,
homens de uniforme, carteiros.

Miss Nelly gaguejou:

– Notaríamos que Arsène Lupin
escapou durante a travessia que eu não ficaria surpreso.

– Talvez ele preferisse a morte
à desonra, e mergulhar no Atlântico ao invés de ser preso.

– Não ria, disse ela, irritada.

De repente, comecei e, enquanto
ela me questionava, eu disse a ela:

– Está vendo aquele velhinho
parado no final da passarela?

– Com guarda-chuva e
sobrecasaca verde oliva?

– É Ganimard.

– Ganimard?

– Sim, o famoso policial,
aquele que jurou que Arsène Lupin seria preso com as próprias mãos. Ah! Eu
entendo que não tínhamos nenhuma informação deste lado do oceano. Ganimard
estava lá! e ele não gosta que ninguém se importe com seus pequenos negócios.

– Então Arsène Lupin com
certeza será pego?

– Quem sabe? Ganimard nunca o
viu, ao que parece, exceto vestido e disfarçado. A menos que ele saiba seu
nome falso…

– Ah! disse ela, com aquela
curiosidade um tanto cruel de mulher, se eu pudesse assistir à prisão!

– Vamos ser
pacientes. Certamente Arsène Lupin já percebeu a presença de seu
inimigo. Ele vai preferir sair entre os últimos, quando o olho do velho
estiver cansado.

O desembarque
começou. Apoiado em seu guarda-chuva, parecendo indiferente, Ganimard não
parecia estar prestando atenção à multidão que se aglomerava entre as duas
balaustradas. Notei que um oficial a bordo, postado atrás dele, o
informava de vez em quando.

O marquês de Raverdan, o major
Rawson, o italiano Rivolta marcharam, entre outros, e tantos outros… E vi a
Rozaine se aproximar.

Pobre Rozaine! ele não parecia
ter se recuperado de suas desventuras!

– Talvez seja ele mesmo assim,
disse dona Nelly… O que você acha?

– Acho que seria muito
interessante ter Ganimard e Rozaine na mesma fotografia. Então pegue meu
dispositivo, estou tão carregado.

Eu dei a ela, mas tarde demais
para ela usar. Rozaine estava passando. O oficial inclinou-se sobre o
ouvido de Ganimard, este encolhendo ligeiramente os ombros, e Rozaine passou.

Mas então, meu Deus, quem era
Arsène Lupin?

– Sim, ela disse em voz alta,
quem é?

Restavam apenas cerca de vinte
pessoas. Ela observou por sua vez, com o medo confuso de que ele não fosse, ele
mesmo
, o número daquelas vinte pessoas.

Eu digo a ele:

– Não podemos esperar mais.

Ela deu um passo à
frente. Eu a segui. Mas não tínhamos dado dez passos quando Ganimard
barrou nosso caminho.

– Bem o que? Chorei.

– Espere um minuto, senhor,
quem está insistindo?

– Estou acompanhando
mademoiselle.

“Espere,” ele repetiu
com uma voz mais imperiosa.

Ele me olhou profundamente,
então disse, olho no olho:

– Arsène Lupin, não é?

Eu comecei a rir.

– Não, Bernard d’Andrézy,
simplesmente.

– Bernard d’Andrézy morreu há
três anos na Macedônia.

– Se Bernard d’Andrézy tivesse
morrido, eu não seria mais deste mundo. E não é. Aqui estão meus
papéis.

– Eles são dela. Como você
os conseguiu? É o que terei prazer em explicar.

– Mas você está louco! Arsène
Lupin embarcou com o nome de R.

– Sim, mais uma coisa sua, uma
pista falsa na qual você os lançou, ali. Ah! você é muito forte, meu
camarada. Mas desta vez a sorte mudou. Vamos, Lupin, mostre-se um bom
jogador.

Hesitei por um segundo. De
repente, ele me bateu no antebraço direito. Soltei um grito de
dor. Ele havia batido na ferida ainda mal fechada indicada pelo telegrama.

Vamos, tivemos que nos
resignar. Eu me virei para a Srta. Nelly. Ela ouviu, lívida,
cambaleante.

Seu olhar encontrou o meu,
então caiu na câmera que eu havia dado a ele. Ela fez um gesto repentino e
eu tive a impressão, tive a certeza de que ela entendeu de repente. Sim,
estava lá, entre as paredes estreitas de tristeza negra, no oco do pequeno
objeto que tive o cuidado de colocar em suas mãos antes que Ganimard me
impedisse, era realmente lá que estavam os vinte. Mil francos de Rozaine, Pérolas
e diamantes de Lady Jerland.

Ah! Juro, neste momento solene,
em que Ganimard e dois de seus acólitos me cercaram, tudo ficou indiferente
para mim, minha prisão, a hostilidade do povo, tudo, exceto isto: a resolução
que Miss Nelly ia tomar sobre o assunto do que eu havia confidenciado a ele.

Que eles tinham contra mim esta
prova material e decisivo, nem sequer sonhei em temê-lo, mas Miss Nelly
resolveria fornecer essa prova?

Eu seria traído por
ela? perdido por ela? Ela agiria como uma inimiga que não perdoa, ou
melhor, como uma mulher que lembra e cujo desprezo é amenizado por um pouco de
indulgência, um pouco de simpatia involuntária?

Ela passou na minha frente, eu
a cumprimentei baixinho, sem dizer uma palavra. Misturada aos outros
viajantes, ela caminhou em direção à passarela, minha câmera na mão.

Sem dúvida, pensei, ela não
ousa, em público. Ela dará em uma hora, em um momento.

Mas, chegando no meio do passadiço,
com um movimento de falsa estranheza, ela o deixou cair na água, entre a parede
do cais e a lateral do navio.

Então eu a vi se afastando.

Sua linda figura se perdeu na
multidão, apareceu para mim novamente e desapareceu. Acabou, acabou para
sempre.

Por um momento, fiquei imóvel,
triste ao mesmo tempo e penetrado por um toque suave, então suspirei, para
grande espanto de Ganimard:

– Que pena, mesmo assim, não
ser um homem honesto…

Então, em uma noite de inverno,
Arsène Lupin me contou a história de sua prisão. O acidente de incidentes
sobre o qual algum dia escreverei o relato forjou laços entre nós… devo dizer
amizade? Sim, atrevo-me a acreditar que Arsène Lupin me honra com alguma
amizade, e que é por amizade que às vezes chega inesperadamente à minha casa,
trazendo, no silêncio do meu escritório, a sua alegria juvenil., O esplendor da
sua ardente a vida, o seu bom humor de homem para quem o destino nada mais é do
que favores e sorrisos.

Seu retrato? Como eu
poderia fazer isso? Vinte vezes eu vi Arsène Lupin, e vinte vezes um ser
diferente me apareceu… ou melhor, o mesmo ser de onde vinte espelhos teriam
me devolvido tantas imagens distorcidas, cada uma com seus olhos próprios, sua
forma. rosto especial, seu próprio gesto, sua silhueta e seu caráter.

– Eu mesmo, disse-me ele, não
sei bem quem sou. No espelho, não me reconheço mais.

Boutade, certamente, e
paradoxo, mas verdade a respeito de quem o encontra e que ignora seus infinitos
recursos, sua paciência, sua arte de maquiar, sua prodigiosa faculdade de
transformar até as proporções de seu rosto e de alterar o próprio. relação de
suas características entre si.

– Por que, ele disse novamente,
eu teria uma aparência definitiva? Por que não evitar o perigo de uma
personalidade sempre idêntica? Minhas ações me designam suficientemente.

E ele especifica com um toque
de orgulho:

– Tanto melhor se nunca
pudermos dizer com certeza: Aqui está Arsène Lupin. O principal é que
dizemos sem medo de errar: Arsène Lupin fez isso.

 

Estes são alguns destes actos,
algumas destas aventuras que procuro reconstituir, segundo as confidências com
que teve a boa graça de me favorecer, em certas noites de inverno, no silêncio
do meu escritório. Trabalho…

 



ARSÈNE
LUPIN NA PRISÃO

 


Não há turista digno desse
nome que não conheça as margens do Sena, e que não tenha notado, indo das
ruínas de Jumièges às ruínas de Saint-Wandrille, o estranho pequeno castelo
feudal dos Malaquis, ainda que orgulhosamente acampado em sua rocha, no meio do
rio. O arco de uma ponte o conecta à estrada. A base das suas torres
escuras funde-se com o granito que a sustenta, um enorme bloco destacado de
alguma montanha desconhecida e aí lançado por alguma convulsão
formidável. Por toda a parte, as águas calmas do grande rio brincam entre os
juncos, e os rabos tremem na crista úmida dos seixos.

A história de Malaquis é tão
dura quanto seu nome, tão grosseira quanto sua silhueta. Foram apenas
batalhas, cercos, assaltos, saques e massacres. Nas vigílias do país de
Caux, evocamos emestremecendo com os crimes cometidos lá. Lendas
misteriosas são contadas. Estamos a falar da famosa passagem subterrânea
que outrora conduzia à Abadia de Jumièges e ao solar de Agnès Sorel, a bela
amiga de Carlos VII.

Neste antigo covil de heróis e
salteadores, vive o Barão Nathan Cahorn, o Barão Satanás, como já foi chamado
na Bolsa de Valores, onde ficou rico um pouco repentinamente. Os senhores
de Malaquis, arruinados, tiveram que vender para ele, por um pedaço de pão, a
casa de seus ancestrais. Lá ele instalou suas admiráveis
​​coleções de móveis e pinturas, faiança e madeira entalhada. Ele mora lá sozinho, com três velhos
criados. Ninguém nunca entra. Ninguém jamais contemplou na decoração
desses quartos antigos os três Rubens que ele possui, seus dois Watteaus, sua
cadeira de Jean Goujon e tantas outras maravilhas rasgadas com notas bancárias
dos clientes regulares mais ricos.

O Barão Satanás está com
medo. Ele não teme por si mesmo, mas pelos tesouros acumulados com uma
paixão tão tenaz e a perspicácia de um amador que o mais enganado dos
mercadores não pode se orgulhar de ter enganado. Ele os ama, suas
bugigangas. Ele os ama amargamente, como um avarento; com ciúme, como
um amante.

Todos os dias, ao pôr do sol,
os quatro portões de ferro que controlam as duas extremidades da ponte e a
entrada para o pátio principal, são fechados e trancados. Ao menor choque,
sinos elétricos vibrariam no silêncio. Do lado do Sena, nada a temer: a
rocha sobe direto.

Agora, numa sexta-feira de
setembro, o carteiro se apresentava como sempre na cabeça de ponte. E, de
acordo com a regra do dia-a-dia, era o barão quem entreabria o pesado badalo.

Ele examinou o homem com tanto
cuidado como se já não conhecesse, há anos, aquele rosto bom e feliz e aqueles
olhos de camponês astutos, e o homem disse-lhe, rindo:

– Sou sempre eu, Monsieur le
Baron. Não sou outra que teria levado minha blusa e meu boné.

– Nós sabemos? sussurrou
Cahorn.

O carteiro entregou-lhe uma
pilha de jornais. Então ele acrescentou:

– E agora, Monsieur le Baron,
há algo novo.

– Novo?

– Uma carta… e registrada,
novamente.

Isolado, sem um amigo ou
qualquer pessoa interessada nele, o Barão nunca recebeu uma carta, e
imediatamente lhe pareceu um acontecimento nefasto que o preocupava. O
quefoi este misterioso correspondente que veio reanimá-lo em sua aposentadoria?

– Você tem que assinar,
Monsieur le Baron.

Ele assinou
resmungando. Em seguida, pegou a carta, esperou até que o carteiro
desaparecesse na curva da estrada e, depois de subir e descer, encostou-se no
parapeito da ponte e rasgou o envelope. Ela carregava uma folha de papel
quadriculado com este título manuscrito: Prison de la Santé, Paris. Ele
olhou para a assinatura: Arsène Lupin. Atordoado, ele leu:

“Monsieur le baron,

“Há, na galeria que reúne os vossos dois salões, um
quadro de Philippe de Champaigne de excelente trabalho artesanal e que me
agrada infinitamente. O seu Rubens também é do meu agrado, assim como o
seu Watteau menor. Na sala à direita, noto o aparador Luís XIII, as
tapeçarias de Beauvais, a mesa de pedestal Império assinada por Jacob e o
aparador renascentista. Na da esquerda, toda a vitrine de joias e
miniaturas.

“Por enquanto, ficarei satisfeito com esses objetos
que serão, acredito, de um fluxo fácil. Peço-vos, pois, que os empacotem
devidamente e os enviem em meu nome (portes pagos), para a estação de
Batignolles, no prazo de oito dias… caso contrário, farei com que
prossigam. eu mesmo em sua mudança na noite de quarta-feira, 27 para
quinta-feira, 28 de setembro. E, é claro, não ficarei satisfeito com os
objetos mencionados acima.

“Peço desculpa pelo pequeno incómodo que te
causo e aceite a expressão dos meus sentimentos de consideração respeitosa.

“A RSÈNE L UPIN .” “

“P.-S. – Acima de tudo, não me mande o
maior Watteau. Embora você tenha pago trinta mil francos por ele no Hôtel
des Sales, é apenas uma cópia, o original tendo sido queimado, sob o Diretório,
por Barras, numa noite de orgia. Consulte as Memórias de
Garat não publicadas.

“Também não ligo para a châtelaine Luís XV, cuja autenticidade me parece
duvidosa.”

 

Esta carta incomodou o Barão Cahorn. Assinado
por qualquer outro, já o teria alarmado muito, mas assinado por Arsène Lupin!

Leitor assíduo de jornais, atento a tudo o que se
passava no mundo em matéria de furto e crime, tinha plena consciência das façanhas
do ladrão infernal. Claro, ele sabia que Lupin, preso na América por seu
inimigo Ganimard, estava de fato preso, que seu julgamento estava sendo
investigado – com que dor! -Mas ele também sabia que tudo se podia esperar
dele. Além disso, esse conhecimento exato do castelo, da disposição das
pinturas e dos móveis, era uma pista formidável. Quem lhe contou coisas
que ninguém viu?

O barão ergueu os olhos e contemplou a figura feroz
do Malaquis, seu pedestal íngreme, as águas profundas que o cercavam, e
encolheu os ombros. Não, definitivamente não havia perigo. Ninguém no
mundo poderia entrar no santuário inviolável de suas coleções.

Ninguém, sim, mas Arsène Lupin? Para Arsène
Lupin, existem portas, pontes levadiças, paredes? Para que servem os
obstáculos mais bem imaginados, as precauções mais hábeis, se Arsène Lupin
decidiu atingir tal ou tal objetivo?

Naquela mesma noite, ele escreveu ao promotor
público em Rouen. Ele estava enviando a carta ameaçadora e pedindo ajuda e
proteção.

A resposta não demorou a chegar: o nomeado Arsène
Lupin atualmente detido na Saúde, vigiado de perto, e sem poder escrever, a
carta só poderia ser obra de um mistificador. Tudo o demonstrava, lógica e
bom senso, assim como a realidade dos fatos. No entanto, e por excesso de
cautela, nomeamos um especialistano exame da caligrafia, e, o perito declarou
que, apesar de certas analogias, esta caligrafia não era a do detido.

“Apesar de certas analogias”, o barão reteve apenas
estas três palavras terríveis, nas quais viu a admissão de uma dúvida que, por
si só, deveria bastar para que a justiça interviesse. Seus temores
aumentaram. Ele continuou relendo a carta.”Eu mesmo mandarei fazer a
remoção.”E esta data precisa: a noite de quarta-feira 27 a quinta-feira 28 de
setembro!…

Desconfiado e taciturno, não ousava confiar em seus
servos, cuja devoção não lhe parecia imune a todas as provações. No
entanto, pela primeira vez em anos, sentiu necessidade de conversar, de ouvir
conselhos. Abandonado pela justiça de seu país, não esperava mais se
defender com seus próprios recursos e estava a ponto de ir até Paris implorar a
ajuda de um ex-policial.

Dois dias se passaram. O terceiro, lendo seus
jornais, estremeceu de alegria. Le Réveil de Caudebec publicou
este artigo:

“É uma satisfação ter dentro de nossas paredes, há
quase três semanas, o Inspetor Principal Ganimard, um dos veteranos do
Departamento de Polícia. Sr. Ganimard, a quem a prisão de Arsène Lupin,
seu último feito, rendeuuma reputação europeia, decorre de sua longa fadiga
provocando o garanhão e o desolador.”

Ganimard! este é o auxiliar que o Barão Cahorn
estava procurando! Quem melhor do que o tortuoso e paciente Ganimard poderia
frustrar os planos de Lupin?

O barão não hesitou. Seis quilômetros separam
o castelo da pequena cidade de Caudebec. Ele os atravessa com passo
alegre, como um homem superexcitado pela esperança da salvação.

Depois de várias tentativas infrutíferas de
descobrir o endereço do Inspetor Chefe, ele se dirigiu aos escritórios do Revival,
localizados no meio da plataforma. Lá ele encontrou o editor do artigo
que, aproximando-se da janela, exclamou:

– Ganimard? mas com certeza você o encontrará
ao longo do cais, com a fila na mão. Foi lá que nos conhecemos e que
acidentalmente li seu nome gravado em sua vara de pescar. Aqui, o velhinho
que você pode ver ali, sob as árvores do passeio.

– De sobrecasaca e chapéu de palha?

– Exatamente! Ah! um cara engraçado, não falante e
bastante rude.

Cinco minutos depois, o barão se aproximou do
famoso Ganimard, se apresentou e tentou iniciar uma conversa. Não
conseguindo,ele abordou a questão francamente e explicou seu caso.

O outro ouvia, imóvel, sem perder de vista os
peixes que observava, depois voltou a cabeça para ele, olhou-o de cima a baixo
com ar de profunda pena, e disse:

– Senhor, dificilmente é costume avisar as pessoas
que você quer roubar. Arsène Lupin, em particular, não comete tais erros.

– Contudo…

– Senhor, se eu tivesse a menor dúvida, acredite
que o prazer de enfiar este querido Lupin dentro dele novamente superaria qualquer
outra consideração. Infelizmente, este jovem está atrás das
grades .

– Se ele escapar?…

– Não há como escapar da saúde.

– Mas ele…

– Ele, não mais do que qualquer outra pessoa.

– Contudo…

– Bem, se escapar, melhor ainda, vou beliscar de
novo. Nesse ínterim, durma profundamente e não assuste mais este deserto.

A conversa acabou. O barão voltou para casa,
um pouco tranquilizado pelo descuido de Ganimard. Ele verificou as
fechaduras, espiou os criados e mais quarenta e oito horaspassado durante o qual
ele quase conseguiu se convencer de que, no geral, seus medos eram
quiméricos. Não, definitivamente, como Ganimard dissera, não avisamos as
pessoas que queremos roubar.

A data estava se aproximando. Terça de manhã,
véspera do dia 27, nada em particular. Mas às três horas uma criança
ligou. Ele estava trazendo um despacho.

 

“Nenhum pacote na estação Batignolles. Prepare
tudo para amanhã à noite.

 

“A RSÈNE.”

 

Mais uma vez, foi o pânico, tanto que ele se
perguntou se não cederia às exigências de Arsène Lupin.

Ele correu para Caudebec. Ganimard estava
pescando no mesmo lugar, sentado em uma cadeira dobrável. Sem dizer uma
palavra, ele entregou-lhe o telegrama.

– E depois? disse o inspetor.

– Depois de? mas é para amanhã!

– O que?

– Roubo! o saque de minhas coleções!

Ganimard baixou a corda, voltou-se para ele e, com
os braços cruzados sobre o peito, gritou impaciente:

– Ah! isso, você se imaginacomo vou cuidar de uma
história tão estúpida!

– Qual é a compensação que você está pedindo para
passar a noite no castelo de 27 a 28 de setembro?

– Nem um centavo, me deixe em paz.

– Defina seu preço, eu sou rico, extremamente rico.

A brutalidade da oferta desconcertou Ganimard, que
continuou, mais calmo:

– Estou aqui de licença e não tenho o direito de
interferir…

– Ninguém vai
saber. I promessa, aconteça o que acontecer, a permanecer em
silêncio.

– Oh! nada vai acontecer.

– Bem, vamos, três mil francos, é o suficiente?

O inspetor inalou um rapé, refletiu e deixou cair:

– Aquilo é. Devo dizer-lhe, honestamente, que
é dinheiro jogado pela janela.

– Eu não ligo.

– Nesse caso… E então, afinal, sabemos com esse
demônio de Lupin! Ele deve ter uma gangue inteira sob seu comando… Tem
certeza de seus servos?

– Minha fé…

– Então não vamos contar com eles. Eu contarei
por despacho a dois companheiros do meus amigos que vão nos dar mais segurança…
E agora, foge, que não nos vemos juntos. Vejo você amanhã, por volta das
nove horas.

 

 

No dia seguinte, uma data fixada por Arsène Lupin,
o Barão Cahorn desenganchou sua panóplia, equipou suas armas e caminhou ao
redor de Malaquis. Nada ambíguo o atingiu.

À noite, às oito e meia, despediu os
criados. Eles moravam em uma ala em frente à estrada, mas um pouco atrás,
e no final do castelo. Uma vez sozinho, ele lentamente abriu as quatro
portas. Depois de um tempo, ele ouviu passos se aproximando.

Ganimard apresentou seus dois auxiliares, caras
altos e sólidos, com pescoços de touro e mãos poderosas, e então pediu algumas
explicações. Percebendo o layout das instalações, ele cuidadosamente
fechou e barricou todas as saídas pelas quais alguém poderia entrar nas salas
ameaçadas. Ele inspecionou as paredes, ergueu as tapeçarias e, finalmente,
instalou seus agentes na galeria central.

– Sem bobagem, hein? Não estamos aqui para
dormir. Ao menor alarme, abra as janelas do pátio e me chame. Tenha
cuidado também com o lado da água. Dez metros de falésias retas, demônios
do calibre deles, isso não os amedronta.

Ele os trancou, pegou as chaves e disse ao barão:

– E agora ao nosso posto.

Escolhera, para ali pernoitar, um quartinho feito
na espessura das paredes circundantes, entre os dois portões principais, e que
outrora fora o cubículo do vigia. Um olho mágico se abriu na ponte, outro
no pátio. Em um canto, podia-se ver algo como a abertura de um poço.

“Você me disse, Monsieur le Baron, que este
poço era a única entrada para as passagens subterrâneas e que, na memória viva,
está bloqueado?”

– Sim.

– Então, a menos que haja outro resultado ignorado
por todos, exceto Arsène Lupin, que parece um pouco problemático, estamos bem.

Ele alinhou três cadeiras, espreguiçou-se
confortavelmente, acendeu o cachimbo e suspirou:

– Realmente, Monsieur le Baron, devo ter um forte
desejo de acrescentar um andar à casinha onde devo terminar meus dias, a fim de
aceitar uma tarefa tão elementar. Vou contar a história para o amigo
Lupin, ele vai segurar as costelas de tanto rir.

O barão não estava rindo. Com o ouvido atento,
ele questionou o silêncio com crescente preocupação. De vez em quando ele
se inclinava o poço e mergulhou no buraco aberto um olho ansioso.

Onze horas, meia-noite, uma hora bateu.

De repente, ele agarrou o braço de Ganimard, que
acordou assustado.

– Você ouve?

– Sim.

– O que é aquilo?

– Sou eu quem ronca!

– Não escuta…

– Ah! perfeitamente, é a buzina de um automóvel.

– Nós vamos?

“Bem, é improvável que Lupin usasse um automóvel
como carneiro para demolir seu castelo. Portanto, Monsieur le Baron, em
seu lugar, eu dormiria… como terei a honra de fazer novamente. Boa
noite.

 

Foi o único aviso. Ganimard foi capaz de
retomar sua soneca interrompida, e o barão ouviu apenas seu ronco alto e
regular.

Ao amanhecer, eles deixaram sua cela. Uma
grande paz serena, a paz da manhã à beira da água fresca, envolveu o
castelo. Cahorn radiante de alegria, Ganimard ainda em paz, eles subiram
as escadas. Sem barulho. Nada suspeito.

“O que eu disse a você, Monsieur le
Baron?” Basicamente, eu não deveria ter aceitado… Estou com
vergonha…

Ele pegou as chaves e entrou na galeria.

Em duas cadeiras, curvadas, os braços pendurados,
os dois oficiais dormiam.

– Diga o trovão de um cachorro! rosnou o inspetor.

No mesmo momento, o barão soltou um grito:

– As pinturas! … O aparador! …

Gaguejava sufocado, a mão estendida para os lugares
vazios, para as paredes nuas onde os pregos apontavam, onde pendiam cordas
inúteis. O Watteau foi embora! o Rubens, sequestrado! as tapeçarias,
desenganchadas! as janelas, esvaziadas de suas joias!

– E o meu candelabro Luís XVI!… E o candelabro do
Regente!… E a minha Virgem do décimo segundo! …

Ele estava correndo de um lugar para outro,
perplexo, desesperado. Ele relembrou seus preços de compra, somou os
prejuízos sofridos, cifras acumuladas, tudo isso embaralhado, em palavras
indistintas, em frases inacabadas. Ele pisou forte, ele teve convulsões,
louco de raiva e dor. Ele parecia um homem arruinado que só precisava
estourar os miolos.

Se algo pudesse tê-lo consolado, seria ver o
espanto de Ganimard. Ao contrário do barão, o inspetor não se moveu ele. Ele
parecia petrificado e com um olhar vago examinou as coisas. As janelas? Fechado. As
fechaduras das portas? intacta. Nenhuma violação no teto. Nenhum
buraco no chão. O pedido estava perfeito. Tudo isso deve ter sido
feito de maneira metódica, segundo um plano inexorável e lógico.

– Arsène Lupin… Arsène Lupin, ele sussurrou,
arrasado.

De repente, ele saltou sobre os dois agentes, como
se a raiva finalmente o estivesse sacudindo, e ele os empurrou com fúria e os
amaldiçoou. Eles não acordaram!

– Diabo, disse ele, é por acaso?…

Ele se inclinou sobre eles e, por sua vez,
observou-os com atenção: eles estavam dormindo, mas em um sono não natural.

Ele disse ao barão:

– Nós os colocamos para dormir.

– Mas quem?

– Ei ele, claro! … Ou a gangue dele, mas liderado
por ele. É um sucesso do seu jeito. A garra está lá.

– Nesse caso, estou perdido, nada a fazer.

– Nada para fazer.

– Mas é abominável, é monstruoso.

– Faça uma reclamação.

– Qual é o ponto?

– Senhora! tente sempre… a justiça tem recursos…

– Justiça! mas você pode ver por si mesmo… Aqui,
agora mesmo, onde você poderia procurar uma pista, encontrar algo, você nem se
mexe.

– Descubra algo com Arsène Lupin! Mas, meu caro
senhor, Arsène Lupin nunca deixa nada para trás! Não há coincidência com Arsène
Lupin! Fico me perguntando se não foi de propósito que ele foi preso por mim,
na América!

– Então eu tenho que desistir das minhas pinturas,
de tudo! Mas foram as pérolas da minha coleção que ele roubou de mim. Eu
daria uma fortuna para encontrá-los. Se não podemos fazer nada contra ele,
que diga o seu preço!

Ganimard olhou para ele.

– Essa é uma palavra sensata. Você não tira?

– Não não não. Mas por que?

– Uma ideia que tenho.

– Que ideia?

– Vamos conversar sobre isso se a investigação não
der certo… Só, nem uma palavra minha, se você quiser que eu tenha sucesso.

Ele acrescentou entre os dentes:

– E então, é verdade, não tenho do que me gabar.

Os dois agentes gradualmente recuperaram a
consciência com o olhar atordoado de quem sai. sono hipnótico. Eles
abriram os olhos atônitos, eles tentaram entender. Quando Ganimard os
questionou, eles não se lembraram de nada.

– Porém, você deve ter visto alguém?

– Não.

– Lembrar?

– Não não.

– E você não tem bebido?

Eles pensaram sobre isso e um deles respondeu:

– Sim, eu bebi um pouco de água.

– Água daquele jarro?

– Sim.

– Eu também, declarou o segundo.

Ganimard cheirou, provou. Ela não tinha nenhum
gosto especial, nenhum cheiro.

– Vamos, disse ele, estamos perdendo
tempo. Não é em cinco minutos que resolvemos os problemas colocados por
Arsène Lupin. Mas, morbleu! Juro que vou beliscar de novo. Ele vence
o segundo turno. Pra mim o lindo!

No mesmo dia, foi apresentada uma queixa de roubo
pelo Barão de Cahorn contra Arsène Lupin, detido na Health!

 

 

Esta reclamação, o barão muitas vezes lamentou
quando viu o Malaquis entregue aos gendarmes, ao procurador, ao juiz de
instrução, aos jornalistas, a todos os curiosos que se insinuam por toda a
parte onde não deveriam estar.

O caso já entusiasmou a opinião
pública. Realizada em condições tão especiais, o nome de Arsène Lupin
entusiasmou a imaginação a tal ponto que as histórias mais fantasiosas encheram
as colunas dos jornais e ganharam crédito junto ao público.

Mas a carta inicial de Arsène Lupin, publicada
pelo Echo de France (e ninguém jamais soube quem havia
comunicado o texto), esta carta na qual o Barão Cahorn foi descaradamente
avisado do que o ameaçava, causou considerável emoção. Explicações
fabulosas foram oferecidas imediatamente. Lembramos a existência dos
famosos undergrounds. E o piso de parquete influenciado empurrou sua
pesquisa nesta direção.

Eles vasculharam o castelo de cima a
baixo. Questionamos cada uma das pedras. Foram estudados os trabalhos
em madeira e lareiras, os caixilhos das janelas e as vigas dos tetos. À
luz de tochas, examinamos os porões imensos onde os senhores de Malaquis uma
vez armazenaram suas munições e provisões. Eles sondaram as entranhas da
rocha. Foi em vão. Nem o menor vestígio do subsolo foi
descoberto. Não havia passagem secreta.

De qualquer maneira, respondemos por todos os
lados, mas móveis e quadros não desaparecem como fantasmas. Ele passa
por portas e janelas, e as pessoas que o agarram entram e saem por portas e
janelas também. Quem são essas pessoas? Como eles entraram? E
como eles foram?

A promotoria de Rouen, convencida de sua
impotência, solicitou a ajuda de agentes parisienses. M. Dudouis, o chefe
da Sûreté, enviou seus melhores detetives da brigada de ferro. Ele próprio
passou 48 horas no Malaquis. Ele também não consegue.

Foi então que nomeou o Inspetor Principal Ganimard,
cujos serviços tantas vezes tivera oportunidade de apreciar.

Ganimard silenciosamente ouviu as instruções de seu
superior, então, acenando com a cabeça, ele disse:

– Acho que estamos no caminho errado persistindo em
vasculhar o castelo. A solução está em outro lugar.

– E onde?

– De Arsène Lupin.

– Para Arsène Lupin! Supor isso é admitir sua
intervenção.

– Eu admito. Muito mais, considero certo.

– Vamos, Ganimard, isso é um absurdo. Arsène
Lupin está na prisão.

– Arsène Lupin está na prisão, tudo bem. Ele
está sendo vigiado, admito. Mas ele teria algemas nos pés, cordas nos
pulsos e uma mordaça na boca, o que eu não mudaria de ideia.

– E por que essa obstinação?

– Porque, sozinho, Arsène Lupin é capaz de combinar
uma máquina desta estatura, e de combiná-la de tal maneira que tenha sucesso…
como conseguiu.

– Palavras, Ganimard!

– Quais são realidades. Mas agora, não estamos
procurando por subterrâneos, pedras girando em um pivô e outras bobagens desse
calibre. Nosso indivíduo não usa esses procedimentos antiquados, ele é
hoje, ou melhor, amanhã.

– E você conclui?

– Concluo pedindo-lhe claramente permissão para
passar uma hora com ele.

– Na cela dele?

– Sim. No nosso regresso da América tivemos
excelentes relações durante a travessia e atrevo-me a dizer que ele tem alguma
simpatia por quem soube detê-lo. Se ele puder me fornecer informações sem
se comprometer, não hesitará em me poupar de uma viagem desnecessária.

Era um pouco depois do meio-dia quando Ganimard foi
introduzido na cela de Arsène Lupin. Este, estendido na cama, ergueu a
cabeça e soltou um grito de alegria.

– Ah! isso é uma verdadeira surpresa. Este
querido Ganimard, aqui!

– Ele mesmo.

– Queria muitas coisas no retiro que escolhi… mas
nada mais apaixonadamente do que te receber lá.

– Muito gentil.

– Não, não, tenho a maior consideração por você.

– Estou orgulhoso disso.

– Sempre afirmei: Ganimard é nosso melhor
detetive. Quase vale a pena – você vê como eu sou franco! – ele quase vale
a pena Sherlock Holmes. Mas, na verdade, lamento apenas ter de lhe
oferecer esta escada. E não é um refresco! não um copo de cerveja! Com
licença, estou apenas de passagem.

Ganimard sentou-se com um sorriso e o prisioneiro
continuou, feliz por falar:

– Meu Deus, como fico feliz por pousar os olhos no
rosto de um homem honesto! Já estou farto de todos aqueles rostos de espiões e
delatores que vasculham meus bolsos e minha modesta cela dez vezes por dia para
ter certeza de que não estou planejando uma fuga. Droga, o que o governo
se preocupa comigo! …

– Ele está certo.

– Mas não! Eu ficaria muito feliz se eles me
deixassem morar no meu cantinho!

– Com as pensões de terceiros.

– Não é? Isso seria tão fácil! Mas eu falo, digo
bobagem, e você pode estar com pressa. Vamos, Ganimard! O que me dá a
honra de uma visita?

“O caso Cahorn”, disse Ganimard sem
rodeios.

– Pare aí! só um segundo… É porque eu tenho
tantas coisas! Que primeiro encontro em meu cérebro o arquivo do caso Cahorn…
Ah! Aqui estou. Caso Cahorn, castelo Malaquis, Seine-Inférieure… Dois
Rubens, um Watteau e alguns itens pequenos.

– Menus!

– Oh! meu Deus, tudo isso tem pouca
importância. Existem melhores! Mas tudo que você precisa fazer é se interessar
pelo assunto. Fale, Ganimard.

– Devo explicar onde estamos na investigação?

– Sem utilidade. Eu li os jornais esta
manhã. Vou até me permitir dizer que você não está se movendo rapidamente.

– É justamente por isso que estou me dirigindo à
sua gentileza.

– Completamente ao seu comando.

– Em primeiro lugar: o negócio foi bem conduzido
por você?

– De a até o z.

– A carta de notificação? o telegrama?

– São de verdade. Devo até ter os recibos em
algum lugar.

Arsène abriu a gaveta de uma mesinha de madeira
branca que, junto com a cama e a escada, compunha todos os móveis de sua cela,
pegou dois trapos de papel e os entregou a Ganimard.

– Ah! Mas, gritou este último, pensei que você
estava sendo mantido à vista e procurei um sim ou um não. Mas você lê os jornais,
você recebe os recibos do correio…

– Bah! essas pessoas são tão estúpidas! Eles
descosturam o forro da minha jaqueta, exploram as solas das minhas botas,
examinam as paredes desta sala, mas ninguém pensaria que Arsène Lupin era
estúpido o suficiente para escolher um esconderijo tão fácil. Era com isso
que eu contava.

Ganimard, divertido, exclamou:

– Que menino engraçado você é! Você me
confunde. Vamos, conte-me sobre a aventura.

– Oh! Oh! conforme você vai lá! Apresentar todos os
meus segredos… revelar meus pequenos truques para você… É muito sério.

– Eu estava errado em contar com sua complacência?

– Não, Ganimard, e já que você insiste…

Arsène Lupin andou de um lado para o outro em seu
quarto duas ou três vezes, então parando:

– O que acha da minha carta ao barão?

– Acho que você queria se divertir, impressionar um
pouco a galeria.

– Ah! lá vai você, nossa galeria! Bem, garanto a
você, Ganimard, que pensei que você fosse mais forte. Eu me detenho nessas
puerilidades, eu, Arsène Lupin! Eu teria escrito esta carta se pudesse roubar o
barão sem escrever para ele? Mas entenda, você e os outros, que esta carta
é o ponto de partida essencial, a mola que colocou toda a máquina em
movimento. Vamos ver, vamos em ordem, e vamos preparar juntos, se quiserem,
o assalto aos Malaquis.

– Estou te ouvindo.

– Então, vamos supor um castelo estritamente
fechado e barricado, como o do Barão Cahorn. Vou desistir do jogo e
desistir dos tesouros que cobiço, a pretexto de que o castelo que os contém é
inacessível?

– Obviamente não.

– Vou tentar o assalto como antes, à frente de uma
tropa de aventureiros?

– Infantil!

– Eu vou entrar furtivamente?

– Impossível.

– Resta uma maneira, a única na minha opinião, é
fazer-me ser convidado pelo dono do referido castelo.

– O caminho é original.

– E como é fácil! Suponha que um dia, o referido
proprietário receba uma carta, avisando-o de que um famoso ladrão chamado
Arsène Lupin está conspirando contra ele. O que ele fará?

– Ele vai mandar a carta para o promotor.

– Quem vai rir dele, já que disse que Lupin
está atualmente atrás das grades
. Então, pânico do homem, que está pronto
para pedir ajuda desde o primeiro a chegar, não é verdade?

– Isso está fora de dúvida.

– E se por acaso ele ler em uma folha de repolho
que um famoso policial está de férias na cidade vizinha…

– Ele vai falar com aquele policial.

– Você disse isso. Mas, por outro lado,
admitamos que, antecipando-se a esta etapa inevitável, Arsène Lupin pediu a um
de seus mais hábeis amigos que se estabelecesse em Caudebec, para entrar em
contato com um editor do Réveil, jornal do qual assinava o barão,
para insinuar que ele é tal, o famoso policial, o que vai acontecer?

– Que o editor anuncie no Réveil a
presença em Caudebec do referido policial.

– Perfeito, e uma de duas coisas: ou o peixe –
quero dizer Cahorn – não morde o anzol, e então nada acontece. Ou eé a
hipótese mais provável, ele corre, todo se contorcendo. E então aqui está
meu Cahorn implorando contra mim a ajuda de um de meus amigos!

– Cada vez mais original.

– Claro, o pseudo-policial primeiro recusa sua
ajuda. Então, despache-se de Arsène Lupin. Terror do barão que
implora novamente ao meu amigo e lhe oferece tanto para ver a sua
salvação. O dito amigo aceita, traz dois companheiros de nossa turma, que,
à noite, enquanto Cahorn é avistado por seu protetor, movem um certo número de
objetos pela janela e os deixam deslizar, com a ajuda de cordas, para dentro de
um poço. pequeno barco a remo fretado ad hoc. É tão simples quanto
Lupin.

– E isso é simplesmente maravilhoso, gritou
Ganimard, e não posso elogiar o suficiente a ousadia do design e a
engenhosidade dos detalhes. Mas não vejo um policial famoso o suficiente
por seu nome para ter atraído, sugestivo, o barão a este ponto.

– Existe um, e só existe um.

– Que?

– Do mais ilustre, do inimigo pessoal de Arsène
Lupin, enfim, do Inspetor Ganimard.

– Eu !

– Você mesmo, Ganimard. E aqui está a coisa
deliciosa: se você for lá ese o barão decidir falar, você vai acabar
descobrindo que seu dever é parar a si mesmo, como você me impediu na
América. Eh! a vingança é engraçada: eu prendi Ganimard por Ganimard!

Arsène Lupin riu com vontade. O inspetor,
bastante aborrecido, mordeu o lábio. A piada não parecia a ele merecer
tais acessos de alegria.

A chegada de um guarda deu-lhe tempo para se
recuperar. O homem trouxe a refeição que Arsène Lupin, como um favor
especial, trouxera do restaurante vizinho. Depois de colocar a bandeja na
mesa, ele se retirou. Arsène sentou-se, partiu o pão, comeu dois ou três
goles e continuou:

– Mas não se preocupe, meu caro Ganimard, você não
vai lá. Vou dizer-lhe uma coisa que o vai surpreender: o caso Cahorn está
prestes a ser encerrado.

– Eh!

– Está prestes a ser classificado, eu lhe digo.

– Vamos, estou deixando o chefe de segurança
imediatamente.

– E depois? M. Dudouis sabe mais sobre o que me
preocupa? Você aprenderá a esse Ganimard – desculpe-me – que o
pseudo-Ganimard manteve uma relação muito boa com o barão. Este aqui,
eeste é o principal motivo pelo qual nada confessou, confiou-lhe a delicada
missão de negociar comigo uma transação e, atualmente, por uma certa quantia, é
provável que o barão tenha voltado às suas queridas bugigangas. Em troca, ele
retirará sua reclamação. Então, chega de roubo. Então a promotoria
terá que desistir…

Ganimard olhou para o preso com espanto.

– E como você sabe de tudo isso?

– Acabei de receber o despacho que esperava.

– Você acabou de receber um despacho?

– Agora mesmo, querido amigo. Por educação,
não quis ler na sua presença. Mas se você me permitir…

– Você está brincando comigo, Lupin.

– Por favor, meu caro amigo, decapite delicadamente
este ovo cozido. Você verá por si mesmo que não estou zombando de você.

Ganimard obedeceu mecanicamente e quebrou o ovo com
a lâmina de uma faca. Um grito de surpresa escapou dele. O casco
vazio continha uma folha de papel azul. Na oração de Arsène, ele o
desdobrou. Era um telegrama, ou melhor, parte de um telegrama para o
qualas placas haviam sido arrancadas dos correios. Ele leu :

“Acordo concluído. Cem mil balas entregues. Tudo
está bem.”

– Cem mil balas? ele disse.

– Sim, cem mil francos! Não é muito, mas mesmo
assim os tempos são difíceis… E eu tenho sobrecargas tão pesadas! Se você
conhecesse meu orçamento… um orçamento de cidade grande!

Ganimard se levantou. Seu mau humor havia se
dissipado. Ele pensou por alguns segundos, examinou tudo de uma vez,
tentando descobrir seu ponto fraco. Então ele disse em um tom em que
abertamente permitiu que a admiração de seu conhecedor o penetrasse:

– Felizmente, não existem dezenas como você, caso
contrário, teríamos apenas que fechar a loja.

Arsène Lupin assumiu um ar modesto e respondeu:

– Bah! era preciso divertir-se, ocupar o tempo
livre… até porque o golpe só teria sucesso se eu estivesse na prisão.

– Como? ”Ou“ O quê! Exclamou Ganimard, seu
julgamento, sua defesa, a investigação, tudo isso não é suficiente para
distraí-lo?

– Não, porque decidi não comparecer ao meu
julgamento.

– Oh! Oh !

Arsène Lupin repetiu calmamente:

– Não vou ao meu julgamento.

– Em verdade !

– Ah! isso, minha querida, você imagina que vou
apodrecer na palha úmida? Você está me insultando. Arsène Lupin só
fica na prisão o tempo que quiser, e nem um minuto a mais.

“Poderia ter sido mais seguro não entrar
primeiro”, objetou o inspetor ironicamente.

– Ah! senhor ri? senhor lembra que ele teve a
honra de me prender? Saiba, meu respeitável amigo, que ninguém, não mais
você do que outro, poderia ter posto as mãos em mim, se um interesse muito
maior não tivesse me solicitado neste momento crítico.

– Você me surpreende.

– Uma mulher estava olhando para mim, Ganimard, e
eu a amei. Você entende tudo que existe em ser olhado por uma mulher que
você ama? O resto não importava para mim, eu juro. E é por isso que
estou aqui.

– Por muito tempo, deixe-me notar.

– Eu queria esquecer primeiro. Não ria: a
aventura tinha sido encantadora, e ainda tenho boas lembranças dela… E então,
estouum tanto neurastênico! A vida é tão agitada hoje em dia! Tem que saber, em
certos momentos, fazer o que se chama de tratamento de isolamento. Este
lugar é soberano para regimes como este. Praticamos a cura da saúde em
todo o seu rigor.

– Arsène Lupin, observou Ganimard, você está se
irritando.

“Ganimard,” Lupin disse, “hoje é
sexta-feira. Na próxima quarta-feira, vou fumar meu charuto na sua casa,
na rue Pergolèse, às quatro da tarde.

– Arsène Lupin, estou esperando por você.

Eles apertaram as mãos como dois bons e dignos
amigos, e o velho policial caminhou para a porta.

– Ganimard!

Ele se virou.

– O que é isso?

– Ganimard, você esqueceu seu relógio.

– Meu relógio?

– Sim, ele se perdeu no meu bolso.

Ele devolveu se desculpando.

– Me perdoe… um mau hábito… Mas isso não é
motivo porque eles tiraram o meu para que eu te prive do
seu. Principalmente porque tenho aqui um cronômetro do qual não tenho do
que reclamar e que atende plenamente às minhas necessidades.

Ele tirou da gaveta um grande relógio de ouro,
grosso e confortável, adornado com uma corrente pesada.

– E este aqui de que bolso vem? perguntou
Ganimard.

Arsène Lupin casualmente examinou as iniciais.

– J. B… Quem diabos pode ser isso?… Ah! sim, eu me
lembro, Jules Bouvier, meu juiz de instrução, um homem charmoso…

 



A FUGA DE ARSÈNE LUPIN

 


No momento em que Arsène
Lupin, sua refeição terminada, tirou um belo charuto com seu anel de ouro do
bolso e o examinou complacentemente, a porta da cela se abriu. Ele só teve
tempo de jogá-lo na gaveta e se afastar da mesa. O guarda entrou, era hora
do passeio.

“Eu estava esperando por você, meu caro
amigo,” gritou Lupin, ainda de bom humor.

Eles saíram. Eles mal haviam desaparecido na
esquina do corredor, quando dois homens, por sua vez, entraram na cela e
começaram a examiná-la de perto. Um era o inspetor Dieuzy, o outro, o
inspetor Folenfant.

Queríamos acabar com isso. Não havia dúvida: Arsène
Lupin mantinha sua inteligência com o mundo exterior e se comunicava com seus
associados. No dia anterior, o Grand Journal publicou
esteslinhas dirigidas ao seu colaborador jurídico:

 

” Senhor,

“Num artigo que apareceu nestes dias, você falou
sobre mim em termos que nada pode justificar. Poucos dias antes do início
do meu julgamento, irei pedir-lhe que responda por isso.

“Atenciosamente,

Arsène Lupin.”

 

A escrita era realmente Arsène Lupin. Então
ele estava enviando cartas. Então ele estava conseguindo
alguns. Então ele tinha certeza de que estava planejando essa fuga
anunciada por ele de forma tão arrogante.

A situação estava se tornando insuportável. De
acordo com o juiz de instrução, o próprio chefe da Sûreté M. Dudouis dirigiu-se
à Secretaria da Saúde para explicar ao diretor da prisão as providências que
deveriam ser tomadas. E, assim que ele chegou, ele enviou dois de seus
homens para a cela do prisioneiro.

Eles levantaram cada uma das lajes, desmontaram a
cama, fizeram tudo o que é costume fazer em tal caso e, finalmente, não
encontraram nada. Eles desistiriam de suas investigações,quando o diretor
correu e disse a eles:

– A gaveta… olhe para a gaveta da
mesa. Quando entrei, tive a impressão de que ele o estava afastando.

Eles olharam, e Dieuzy exclamou:

– Por Deus, desta vez, temos ele, o cliente.

Folenfant o deteve.

– Pare aí, meu pequeno, o chefe vai fazer o
inventário.

– Ainda este charuto de luxo…

– Saia de Havana e avise o chefe.

Dois minutos depois, M. Dudouis explorou a
gaveta. Ele encontrou lá primeiro um maço de artigos de jornal recortados
por Argus de la Presse e que diziam respeito a Arsène Lupin,
depois uma bolsa de tabaco, um cachimbo, um papel chamado casca de cebola e,
finalmente, dois livros.

Ele olhou para o título. Era o Culto
dos Heróis de
 Carlyle, edição em inglês, e um Elzévir encantador,
encadernado contemporâneo, o Manual de Epicteto, tradução alemã
publicada em Leiden em 1634. Depois de folheá-los, ele descobriu que todas as
páginas estavam marcadas, sublinhadas, anotadas. Eram sinais convencionais
ou marcas que mostram o fervor que se tem por um livro?

– Veremos isso em detalhes, disse M. Dudouis.

Ele explorou a bolsa de tabaco, o cachimbo. Em
seguida, pegando o famoso charuto com anéis de ouro:

– Droga, ele está bem, nosso amigo, gritou ele, um
Henri Clet!

Com o gesto mecânico de um fumante, ele o aproximou
do ouvido e o estalou. E imediatamente uma exclamação escapou dele. O
charuto havia amolecido sob a pressão de seus dedos. Ele o examinou com
mais cuidado e logo viu algo branco entre as folhas de tabaco. E
delicadamente, usando um alfinete, tirou um rolo de papel muito fino, quase do
tamanho de um palito de dente. Foi um ingresso. Ele o desenrolou e
leu estas palavras, na letra de uma pequena mulher:

“A cesta tomou o lugar da outra. Oito em cada
dez estão preparados. Ao pressionar com o pé externo, a placa sobe e
desce. De doze a dezesseis todos os dias, a HP vai esperar. Mas onde?
Resposta imediata. Não se preocupe, seu amigo está cuidando de você.”

M. Dudouis pensou por um momento e disse:

– É bastante claro… a cesta… as oito caixas… Do
meio-dia às dezesseis, ou seja, do meio-dia às quatro horas…

– Mas esse HP, quem vai esperar?

– HP, neste caso, deve significar automóvel,
HP, cavalos de potência, não é assim na linguagem dos esportes, designamos
a força de ummotor? Vinte e quatro HP é um automóvel de vinte e quatro
cavalos.

Ele se levantou e perguntou:

– O recluso estava terminando o almoço?

– Sim.

– E como ainda não leu esta mensagem como prova o
estado do charuto, é provável que o tenha acabado de receber.

– Como? ”Ou“ O quê?

– Na comida dele, no meio do pão ou da batata, o
que eu sei?

– Impossível, só permitimos que ele trouxesse
comida para prendê-lo, e não encontramos nada.

– Esta noite vamos procurar a resposta de
Lupin. Por enquanto, mantenha-o fora de sua cela. Vou levar isso ao
juiz de instrução. Se for da minha opinião, tiraremos a carta
imediatamente fotografada, e em uma hora você poderá colocar de volta na
gaveta, além desses itens, um charuto idêntico contendo a própria mensagem
original. O detido não deve suspeitar de nada.

Não foi sem certa curiosidade que o senhor Dudouis
voltou à noite ao balconista em companhia do inspetor Dieuzy. Em um canto,
no fogão, três pratos estavam espalhados.

– Ele comeu?

– Sim, respondeu o diretor.

– Dieuzy, por favor, corte esses poucos fios de
macarrão em pedaços bem fininhos e abra essa bola de pão… Nada?

– Não, chefe.

M. Dudouis examinou os pratos, o garfo, a colher,
por fim a faca, uma faca regulamentar de lâmina redonda. Ele girou a alça
para a esquerda, depois para a direita. À direita, a alça cedeu e se
soltou. A faca era oca e servia de bainha para uma folha de papel.

– Pooh! ele disse, não é muito inteligente para um
homem como Arsène. Mas não vamos perder tempo. Você, Dieuzy, vai
fazer uma investigação neste restaurante.

Então ele leu:

“Estou em suas mãos, a HP vai seguir muito atrás,
todos os dias. Eu irei em frente. Até logo, querido e admirável amigo.”

“Finalmente”, exclamou M. Dudouis,
esfregando as mãos, “acredito que o assunto está no caminho
certo. Uma pequena ajuda nossa e a fuga será bem-sucedida… pelo menos o
suficiente para nos permitir beliscar os cúmplices.

– E se Arsène Lupin escorregar pelos seus
dedos? objetou o diretor.

– Vamos empregar o número necessário de
homens. Se, no entanto, ele colocou muita habilidade nisso… minha fé,
que pena para ele! Quanto à banda,visto que o líder se recusa a falar, os
outros falarão.

 

 

E, na verdade, ele não falava muito, Arsène
Lupin. Durante meses, M. Jules Bouvier, o juiz de instrução, tentara em
vão. Os interrogatórios foram reduzidos a conversas irrelevantes entre o
juiz e o advogado, Maître Danval, um dos príncipes da Ordem dos Advogados que,
aliás, sabia tanto do arguido como do primeiro a entrar.

De vez em quando, por educação, Arsène Lupin
desistia:

– Sim, juiz, estamos de acordo: o roubo do Crédit
Lyonnais, o roubo da rue de Babylone, a questão das notas falsas, o caso das
apólices de seguro, o roubo dos castelos d’Armesnil, de Gouret, Imblevain, des
Groseillers, du Malaquis, tudo isso é de seu servo.

– Então, você poderia me explicar…

– Inútil, admito tudo em bloco, tudo e até dez
vezes mais do que você imagina.

Cansado da guerra, o juiz suspendeu esses tediosos
interrogatórios. Depois de saber dos dois bilhetes interceptados, ele os
aceitou de volta. E, regularmente, ao meio-dia, Arsène Lupinfoi trazido da
Saúde para o Depósito no carro da prisão com vários internos. Eles saíram
por volta das três ou quatro horas.

No entanto, uma tarde, esse retorno ocorreu em
condições especiais. Como os outros internos da Saúde ainda não haviam
sido questionados, foi decidido trazer Arsène Lupin de volta
primeiro. Então ele entrou no carro sozinho.

Esses carros-prisão, comumente chamados de
“cestos de salada”, são divididos em seu comprimento por um corredor
central no qual se abrem dez caixas, cinco à direita e cinco à
esquerda. Cada uma dessas caixas está disposta de maneira que um deve
sentar-se nela, e os cinco prisioneiros, portanto, sentam-se uns em cima dos
outros, separados uns dos outros por divisórias paralelas. Um guarda
municipal, colocado no final, vigia o corredor.

Arsène foi conduzido para a terceira cela à direita
e o carro pesado se afastou. Ele percebeu que estávamos saindo do Quai de
l’Horloge e passando em frente ao Palais de Justice. Depois, a meio da
Pont Saint-Michel, apoiou-se com o pé exterior, ou seja, com o pé direito, como
sempre fazia, sobre a chapa que fechava a sua cela. Imediatamente algo foi
acionado e oa chapa se moveu imperceptivelmente. Ele podia ver que estava
bem entre as duas rodas.

Ele esperou, os olhos alertas. O carro subiu o
Boulevard Saint-Michel. No cruzamento de Saint-Germain, ela parou. O
cavalo de um caminhão havia caído. O tráfego sendo interrompido, muito
rapidamente era um congestionamento de táxis e ônibus.

Arsène Lupin enfiou a cabeça. Outro carro da
prisão estava estacionado ao lado do que ele ocupava. Ele ergueu mais o
lençol, colocou o pé em um dos raios da roda-gigante e saltou para o chão.

Um cocheiro o viu, desatou a rir e tentou
ligar. Mas sua voz se perdeu no estrondo dos veículos que passavam
novamente. Além disso, Arsène Lupin já estava longe.

Ele deu alguns passos enquanto corria; mas na
calçada esquerda ele se virou, olhou em volta, parecia pegar o vento, como quem
não sabe bem que direção vai tomar. Então, decidido, enfiou as mãos nos
bolsos e, com o ar despreocupado de um carrinho de bebê, continuou subindo o
bulevar.

O tempo estava ameno, um clima alegre e leve de
outono. Os cafés estavam lotados. Ele se sentou no terraço de um
deles.

Ele pediu uma cerveja e um maço de
cigarros. Ele esvaziou o copo em pequenos goles, fumou um cigarro em
silêncio e acendeu um segundo. Finalmente, tendo se levantado, implorou ao
menino que mandasse chamar o gerente.

O gerente veio e Arsène disse a ele, alto o
suficiente para ser ouvido por todos:

– Sinto muito, senhor, esqueci minha
carteira. Talvez meu nome seja bem conhecido por você para que me conceda
um crédito por alguns dias: Arsène Lupin.

O gerente olhou para ele, pensando que era uma
piada. Mas Arsène repetiu:

– Lupin, detido no Posto de Saúde, atualmente em
estado de fuga. Atrevo-me a acreditar que este nome o inspira com total
confiança.

E ele foi embora, em meio a gargalhadas, sem que o
outro pensasse em perguntar.

Ele cruzou a rue Soufflot em um ângulo e pegou a
rue Saint-Jacques. Ele a seguiu pacificamente, parando nas janelas e
fumando cigarros. Boulevard de Port-Royal, ele se orientou, fez perguntas
e caminhou direto para a Rue de la Santé. As paredes altas e sombrias da
prisão logo se ergueram. Depois de contorná-los, ele foi até o guarda
municipal que estava montando a facção e tirando o chapéu:

– Esta é a prisão da Saúde aqui?

– Sim.

– Eu gostaria de voltar para minha cela. O
carro me deixou na estrada e eu não gostaria de abusar dele…

O guarda rosnou:

– Diga, cara, siga seu caminho, e mais rápido que
isso.

– Desculpe, desculpe, meu caminho passa por essa
porta. E se você impedir Arsène Lupin de cruzá-lo, pode custar muito caro,
meu amigo.

– Arsène Lupin! o que você está cantando para mim!

“Lamento não ter meu cartão”, disse Arsène,
fingindo vasculhar os bolsos.

O guarda o olhou de cima a baixo,
perplexo. Então, sem dizer uma palavra, como que a contragosto, tocou uma
campainha. A porta de ferro abriu uma fresta.

Poucos minutos depois, o diretor veio correndo para
o escritório, gesticulando e fingindo raiva violenta. Arsène sorri:

– Vamos, diretor, não jogue o melhor
comigo. Como? ”Ou“ O quê! eles tomam o cuidado de me trazer de volta
sozinho no carro, preparamos um bom pequeno espaço, e imaginamos que vou
colocar minhas pernas em volta do pescoço para me juntar aos meus
amigos. Bem, e os vinte oficiais de segurança que nos acompanharam a pé,
em táxis e bicicletas? Não, o que eles teriam arranjado para mim! Eu não
teria saídoa viver. Diga-me, diretor, talvez fosse isso que estávamos
contando?

Ele encolheu os ombros e acrescentou:

– Por favor, diretor, não cuide de mim. No dia
em que eu quiser fugir, não vou precisar de ninguém.

Dois dias depois, o Echo de France, que
decididamente se tornou o monitor oficial das façanhas de Arsène Lupin –
dizia-se que ele era um dos principais patrocinadores – o Echo de
France
publicou os detalhes mais completos dessa tentativa de fuga. O
próprio texto das passagens trocadas entre o detido e seu amigo misterioso, os
meios empregados para essa correspondência, a cumplicidade da polícia, o
passeio no Boulevard Saint-Michel, o incidente no café Soufflot, tudo foi
revelado. Sabíamos que a pesquisa do inspetor Dieuzy com os garçons do
restaurante não havia dado resultados. E ficamos sabendo também de uma
coisa surpreendente, que mostrava a infinita variedade de recursos à disposição
desse homem: o carro-prisão em que ele havia sido transportado era um carro
totalmente equipado, que sua turma substituiu por um dos seis carros usuais que
o compõem. o serviço prisional.

A fuga iminente de Arsène Lupin não não há
mais dúvidas para ninguém. Ele próprio o anunciou em termos categóricos,
como provou sua resposta a M. Bouvier no dia seguinte ao incidente. O juiz
zombando de sua falha, ele olhou para ele e disse friamente:

– Ouça isso, senhor, e acredite na minha palavra:
essa tentativa de fuga fazia parte do meu plano de fuga.

– Não entendo, zombou o juiz.

– Você não precisa entender.

E como o juiz, durante este interrogatório que
apareceu nas colunas do Echo de France, quando o juiz estava
voltando às suas instruções, ele chorou cansado:

– Meu Deus, meu Deus, de que adianta! todas essas
questões são irrelevantes!

– Como, não importa?

– Não, porque não vou ao meu julgamento.

– Você não vai comparecer…

– Não, é uma ideia fixa, uma decisão
irrevogável. Nada vai me comprometer.

Tamanha certeza, as inexplicáveis ​​indiscrições que se cometiam todos os
dias, incomodavam e desconcertavam a justiça. Havia segredos lá que apenas
Arsène Lupin conhecia, e cuja revelação só poderia vir dele. Mas com que
propósito ele os revelou? e como?

Arsène Lupin foi alterado de células. Uma
noite ele desceu as escadas. Por sua vez, o juiz concluiu a investigação e
encaminhou o caso para a Câmara de Acusação.

Foi o silêncio. Durou dois meses. Arsène
os passava estendido em sua cama, com o rosto quase sempre voltado para a
parede. Essa mudança de cela parecia tê-lo derrubado. Ele se recusou
a se encontrar com seu advogado. Ele mal trocou algumas palavras com seus
guardiões.

Na quinzena que antecedeu seu julgamento, ele
pareceu reviver. Ele reclamou da falta de ar. Ele foi levado para o
pátio muito cedo pela manhã, flanqueado por dois homens.

A curiosidade pública, no entanto, não
diminuiu. Todos os dias esperávamos pela notícia de sua fuga. Quase o
desejamos, tanto o personagem agradou a multidão com sua verve, sua alegria,
sua diversidade, seu gênio inventivo e o mistério de sua vida. Arsène
Lupin teve que escapar. Era inevitável, fatal. Ficamos até surpresos
por estar demorando tanto. Todas as manhãs, o Prefeito de Polícia
perguntava ao seu secretário:

– Bem, ele ainda não foi?

– Não, Sr. Prefeito.

– Então será para amanhã.

E, um dia antes do julgamento, um senhor se
apresentou nos escritórios do Grande Diário, perguntou ao
colaborador judicial, jogou o cartão na cara dele e saiu rapidamente. No
cartão, estavam escritas as seguintes palavras: “Arsène Lupin sempre cumpre
suas promessas.”

 

 

Foi nestas condições que se iniciaram os debates.

A multidão era enorme. Ninguém que não
quisesse ver o famoso Arsène Lupin e não saboreou de antemão a forma como ele
faria o presidente. Advogados e magistrados, cronistas e socialites,
artistas e mulheres de todo o mundo, o All-Paris pressionava-se nos bancos da
plateia.

Estava chovendo, o dia estava escuro lá fora, foi
difícil ver Arsène Lupin quando os guardas o apresentaram. No entanto, a
sua postura pesada, a forma como se deixou cair no seu lugar, a sua imobilidade
indiferente e passiva não o impediram. Várias vezes o seu advogado – uma
das secretárias de M e Danval, tendo este último
considerado indigno dele o papel a que estava reduzido – várias vezes o seu
advogado lhe falou. Ele acenou com a cabeça e ficou em silêncio.

O escrivão leu a acusação, então o presidente
disse:

– Acusado, levante-se. Seu nome, primeiro
nome, idade e profissão?

Não recebendo resposta, ele repetiu:

– Seu nome? Estou perguntando seu nome?

Uma voz grossa e cansada articulada:

– Baudru, Désiré.

Houve sussurros. Mas o presidente saiu:

– Baudru, Désiré? Ah! bem, um novo avatar! Como
se trata do oitavo nome que você reivindica, e sem dúvida tão imaginário quanto
os outros, ficaremos, se não se importa, com o de Arsène Lupin, pelo qual você
é mais vantajosamente conhecido.

O presidente olhou suas anotações e continuou:

– Porque, apesar de todas as pesquisas, foi
impossível reconstruir sua identidade. Você apresenta este caso bastante
original em nossa sociedade moderna de não ter passado. Não sabemos quem
você é, de onde vem, onde passou sua infância, enfim, nada. Você surgiu de
repente, há três anos, não sabemos exatamente de que pano de fundo, para de
repente revelar a você Arsène Lupin, isto é, um bizarro composto de inteligência
e perversão, imoralidade e generosidade. Os dados que temos sobre você
antes desse período são mais uma suposição. É provável que o nomeRostat,
que trabalhou oito anos atrás ao lado do mágico Dickson, não era outro senão
Arsène Lupin. É provável que o estudante russo que frequentou, há seis
anos, o laboratório do doutor Altier, no hospital Saint-Louis, e que muitas
vezes surpreendeu o professor pela engenhosidade de suas hipóteses sobre
bacteriologia e pela ousadia de suas experiências em doenças de pele, era
ninguém menos que Arsène Lupin. Arsène Lupin, também, o professor de
wrestling japonês que se estabeleceu em Paris muito antes de se falar em
jiu-jitsu. Arsène Lupin, acreditamos, o ciclista que ganhou o Grande
Prêmio da Exposição, recebeu seus 10.000 francos e nunca mais
reapareceu. Arsène Lupin talvez também aquele que salvou tanta gente pela
janelinha do Bazar de la Charité… e os roubou.

E, após uma pausa, o presidente conclui:

– Este é o tempo, que parece ter sido apenas uma
preparação meticulosa para a luta que empreendeu contra a sociedade, um
aprendizado metódico em que elevou ao máximo a sua força, a sua energia e a sua
habilidade. Você aceita a exatidão desses fatos?

Durante esse discurso, o acusado oscilou de uma
perna para a outra, com as costas arredondadas e os braços inertes. Sob a
luz mais forte, notamos sua extrema magreza, suas bochechas encovadas,suas
maçãs do rosto estranhamente salientes, seu rosto cor de terra, marmorizado com
pequenas manchas vermelhas e emoldurado por uma barba irregular e rala. A
prisão envelheceu e o definhou consideravelmente. Já não reconhecíamos a
silhueta elegante e o rosto jovem cujo retrato simpático os jornais tantas
vezes publicavam.

Parecia que ele não tinha ouvido a pergunta feita a
ele. Duas vezes foi repetido para ele. Então ele ergueu os olhos,
pareceu pensar, então, fazendo um violento esforço, murmurou:

– Baudru, Désiré.

O presidente riu.

– Não tenho um relato exato do sistema de defesa
que você adotou, Arsène Lupin. Se for para bancar o tolo e o irresponsável,
você está livre. Quanto a mim, irei direto ao ponto, sem me preocupar com
seus caprichos.

E ele entrou nos detalhes dos furtos, trapaças e
falsas acusações contra Lupin. Às vezes, ele questionava o
acusado. Ele grunhiu ou não respondeu.

O desfile de testemunhas começou. Houve vários
depoimentos insignificantes, outros mais graves, todos com a característica
comum de se contradizerem. Uma escuridão perturbadora envolveu os
procedimentos, mas o Inspetor Chefe Ganimard foi apresentado e o interesse despertou.

Desde o início, porém, o velho policial causou
certa decepção. Ele parecia, não intimidado – ele tinha visto muitos
outros – mas preocupado, desconfortável. Várias vezes ele voltou os olhos
para o acusado com visível embaraço. No entanto, com as duas mãos apoiadas
na barra, ele relatou os incidentes em que estivera envolvido, sua perseguição
pela Europa, sua chegada à América. E ouvimos com atenção, como ouviríamos
a história das aventuras mais emocionantes. Mas no final, tendo aludido às
suas conversas com Arsène Lupin, ele parou duas vezes,
distraído, indeciso.

Estava claro que outro pensamento o
assombrava. O presidente disse a ele:

– Se você não está bem, é melhor interromper seu
testemunho.

– Não, não, só…

Ficou calado, olhou longamente para o arguido,
profundamente, depois disse:

– Peço licença para examinar o acusado mais de
perto. Há um mistério aqui que devo esclarecer.

Ele se aproximou, olhou para ele ainda mais, com
toda a sua atenção concentrada, então voltou para o bar. E aí, em tom um
tanto solene, ele disse:

– Senhor Presidente, afirmo que o homem que está
aqui, na minha frente, não é o Arsène Lupin.

Um grande silêncio saudou essas palavras. O
presidente, surpreso a princípio, exclamou:

– Ah! o que você diz! você é louco.

O inspetor afirmou calmamente:

– À primeira vista, pode-se ficar preso a uma
semelhança, que de fato existe, admito, mas leva apenas um segundo de
atenção. O nariz, a boca, o cabelo, a cor da pele… bem, o que: não é
Arsène Lupin. E então os olhos! ele já teve aqueles olhos de alcoólatra?

– Vamos ver, vamos ver, vamos explicar. O que
você está reivindicando, testemunha?

– Eu sei! Ele terá colocado em seu lugar e colocado
um pobre diabo que iríamos condenar em seu lugar… A menos que ele seja
cúmplice.

Gritos, risos, exclamações se espalharam de todos
os lados do corredor, agitados por essa reviravolta inesperada. O
presidente convocou o juiz de instrução, o diretor de saúde, os guardas e
suspendeu a audiência.

Na retomada, M. Bouvier e o diretor, reunidos pelo
acusado, declararam que havia apenas uma vaga semelhança de características
entre Arsène Lupin e este homem.

“Mas então”, gritou o presidente,
“quem é este homem?” De onde ele é? como está nas mãos da
justiça?

Os dois zeladores da saúde foram
apresentados. Uma contradição impressionante, eles reconheceram o detento
que supervisionavam em turnos! O presidente respirou fundo.

Mas um dos guardas continuou:

– Sim, sim, acho que é ele.

– O que você acha?

– Senhora, eu mal o vi. Ele foi entregue a mim
à noite, e por dois meses ele sempre esteve encostado na parede.

– Mas antes desses dois meses?

– Ah! antes, ele não ocupava a cela 24.

O diretor da prisão esclareceu este ponto:

– Trocamos o presidiário de cela após sua tentativa
de fuga.

“Mas você, senhor diretor, o vê há dois
meses?”

– Não tive oportunidade de vê-lo… ele ficou
quieto.

“E este homem não é o recluso que foi entregue
a você?”

– Não.

– Então quem é ele?

– Não sei dizer.

– Estamos, portanto, perante uma substituição que
teria ocorrido há dois meses. Como você explica isso?

– É impossível.

– Assim?

Em desespero, o presidente voltou-se para o acusado
e, com voz envolvente:

– Venha, acusado, você poderia me explicar como e
desde quando você esteve nas mãos da justiça?

Dir-se-ia que esse tom benevolente desarmava a
desconfiança ou estimulava a compreensão do homem. Ele tentou
responder. Finalmente, questionado com habilidade e delicadeza, ele
conseguiu reunir algumas frases, das quais emergiram: dois meses antes, ele
havia sido trazido para o Depot. Ele passou uma noite e uma manhã
lá. Possuindo uma soma de setenta e cinco cêntimos, ele foi
libertado. Mas, quando ele estava atravessando o pátio, dois guardas o
pegaram pelo braço e o conduziram até o carro da prisão. Desde então, ele
vivia na cela 24, nada infeliz… a gente comia bem… a gente dormia bem… Então
ele não tinha protestado…

Tudo parecia plausível. Em meio a risos e
muito entusiasmo, o Presidente encaminhou o assunto para outra sessão para uma
investigação mais aprofundada.

 

 

A investigação, de imediato, apura este fato
registrado no registro de reclusão: oito semanas anteriormente, um homem
chamado Baudru Désiré havia dormido no Depósito. Libertado no dia
seguinte, ele deixou o Depot às duas da tarde. Porém, naquele dia, às duas
horas, quando foi interrogado pela última vez, Arsène Lupin estava deixando a
instrução e partindo no carro da prisão.

Os guardas cometeram um erro? Enganados pela
semelhança, teriam eles próprios, em um momento de desatenção, substituído este
homem por seu prisioneiro? Eles realmente teriam que dar-lhe uma
complacência que seu histórico de serviço não nos permitia supor.

A substituição foi combinada com
antecedência? Além do fato de que o layout das instalações tornava a coisa
quase impossível, teria sido necessário, neste caso, que Baudru fosse cúmplice
e que tivesse sido preso com o propósito específico de ocupar o lugar de Arsène
Lupin. Mas então, por que milagre esse plano, baseado apenas em uma série
de chances incríveis, encontros fortuitos e erros fabulosos, teve sucesso?

Désiré Baudru foi enviado ao serviço de
antropometria: não havia cartões que correspondessem à sua descrição. Além
disso, seus vestígios foram facilmente encontrados. Em Courbevoie,
Asnières, Levallois, ele era conhecido. Ele vivia de esmolas e dormia em
uma daquelas cabanas de catadores de lixoque estão se acumulando perto da
barreira de Ternes. Por um ano, entretanto, ele havia desaparecido.

Ele tinha sido contratado por Arsène
Lupin? Nada permitiu que ele acreditasse. E quando isso acontecesse,
ninguém saberia mais sobre a fuga do prisioneiro. A maravilha permaneceu a
mesma. Das vinte hipóteses que tentaram explicá-lo, nenhuma foi
satisfatória. A fuga por si só não ficou em dúvida, e uma fuga
incompreensível, impressionante, onde o público, assim como a justiça, sentiu o
esforço de uma longa preparação, um conjunto de atos maravilhosamente enredados
entre si, e cujo desfecho justificou o orgulho de Arsène Lupin previsão:
“Não comparecerei ao meu julgamento.” “

Ao final de um mês de minuciosa pesquisa, o enigma
se apresentava com o mesmo caráter indecifrável. No entanto, não
poderíamos manter esse pobre diabo de Baudru indefinidamente. Seu
julgamento teria sido ridículo: que acusações havia contra ele? A sua libertação
foi assinada pelo juiz de instrução. Mas o chefe da Segurança decidiu
estabelecer uma vigilância ativa ao seu redor.

A ideia veio da Ganimard. Do seu ponto de
vista, não havia cumplicidade nem acaso. Baudru era um instrumento que
Arsène Lupin tocava com sua habilidade extraordinária.Baudru livre, por meio
dele voltaríamos a Arsène Lupin ou pelo menos a alguém de sua gangue.

Os dois inspetores Folenfant e Dieuzy foram
acrescentados a Ganimard e, em uma manhã de janeiro, com tempo nublado, as
portas da prisão se abriram em frente a Baudru Désiré.

A princípio, ele parecia um tanto constrangido e
caminhava como um homem que não tem ideias muito precisas sobre o uso de seu
tempo. Ele seguiu a rue de la Santé e a rue Saint-Jacques. Diante de
uma loja de segunda mão, ele tirou o paletó e o colete, vendeu o colete por
alguns centavos e, colocando o paletó de volta, foi embora.

Ele cruzou o Sena. No Châtelet, um ônibus
passou por ele. Ele queria subir lá. Não havia espaço. O
controlador aconselhando-o a pegar um número, ele entrou na sala de espera.

Nesse momento, Ganimard chamou seus dois homens
para perto dele e, sem sair do escritório, disse-lhes às pressas:

– Pare o carro… não, dois, é mais seguro. Eu
irei com um de vocês e nós o seguiremos.

Os homens obedeceram. Baudru, no entanto, não
apareceu. Ganimard se adiantou: não havia ninguém na sala.

“Idiota que sou,” ele sussurrou, “esqueci a segunda
saída.

O escritório comunica, de fato, por um corredor
interno, com o da rue Saint-Martin. Ganimard correu para a
frente. Ele chegou bem a tempo de ver Baudru no Batignolles-Jardin des
Plantes imperial, que dobrava na esquina da rue de Rivoli. Ele correu e
alcançou o ônibus. Mas ele havia perdido seus dois agentes. Ele foi o
único a continuar a perseguição.

Em sua fúria, ele estava prestes a pegá-lo pelo
colarinho sem mais delongas. Não foi com premeditação e astúcia engenhosa
que o dito imbecil o separou de seus auxiliares?

Ele olhou para Baudru. Ele estava cochilando
no banco, e sua cabeça balançava para frente e para trás. Sua boca um
pouco aberta, seu rosto tinha uma incrível expressão de estupidez. Não,
este não era um oponente capaz de derrubar o velho Ganimard. O acaso o
havia servido, isso era tudo.

No cruzamento Galeries-Lafayette, o homem saltou do
ônibus para o bonde Muette. Seguimos Boulevard Haussmann, Avenida
Victor-Hugo. Baudru só saiu em frente à estação de Muette. E com um
passo indiferente ele mergulhou no Bois de Boulogne.

Ele foi de um corredor para outro, refez seus
passos, afastou-se. O que ele estava procurando? Ele tinha um
objetivo?

Após uma hora neste carrossel, ele parecia exausto
de cansaço. Na verdade, percebendo um banco, ele se sentou. O local,
localizado não muito longe de Auteuil, às margens de um pequeno lago escondido
entre as árvores, estava absolutamente deserto. Meia hora se
passou. Impaciente, Ganimard resolveu entrar em uma conversa.

Ele então se aproximou e tomou seu lugar ao lado de
Baudru. Ele acendeu um cigarro, traçou círculos na areia com a ponta da
bengala e disse:

– Não está quente.

Silêncio. E de repente, neste silêncio, ressoa
uma gargalhada, mas uma risada alegre e feliz, a gargalhada de uma criança que
começa a rir e que não consegue evitar o riso. Claramente, na verdade,
Ganimard sentiu seu cabelo se arrepiar contra o couro levantado de seu couro
cabeludo. Aquela risada, aquela risada infernal que ele conhecia tão bem!

Com um gesto repentino, ele agarrou o homem pelo
revestimento de seu paletó e olhou para ele profundamente, com violência, ainda
melhor do que ele tinha olhado para ele nas Assizes, e na verdade não era mais
o homem que ele vive. Era o homem, mas ao mesmo tempo era o outro, o
verdadeiro.

Ajudado por uma vontade cúmplice, redescobriu a
vida ardente dos seus olhos, completou a máscara emaciada, viu a verdadeira
carne sob a epiderme danificada, a boca verdadeira através do sorriso que a
deformava. E estes eram os olhos dea outra, a boca do outro, era sobretudo
a sua expressão aguda, viva, zombeteira, espiritual, tão límpida e tão jovem!

“Arsène
Lupin, Arsène Lupin,” ele gaguejou.

E de repente, tomado de raiva, apertando a
garganta, ele tentou derrubá-lo. Apesar de seus cinquenta anos, ele ainda
era excepcionalmente vigoroso, enquanto seu oponente parecia em péssimas
condições. E então, que golpe de mestre se ele conseguisse trazê-lo de
volta!

A luta foi curta. Arsène Lupin mal se defendeu
e, tão rápido quanto atacou, Ganimard o soltou. Seu braço direito estava
inerte, entorpecido.

 

“Se você aprendesse jiu-jitsu no Quai des
Orfèvres,” Lupin disse, “você saberia que esse movimento é chamado de
udi-shi-ghi em japonês.

E ele acrescentou friamente:

– Mais um segundo quebrei seu braço, e você teria o
que merece. Como, você, velho amigo, a quem estimo, diante de quem revelo
espontaneamente o meu incógnito, abusa da minha confiança! Está errado… bem,
o quê, qual é o problema?

Ganimard ficou em silêncio. Esta fuga pela
qual se considerava responsável – não foi ele quem, pelo seu testemunho
sensacional, induziujustiça em erro? – essa fuga pareceu-lhe a vergonha de
sua carreira. Uma lágrima rolou por seu bigode cinza.

– Ei! Deus, Ganimard, não se preocupe: se você não
tivesse falado, eu teria providenciado para que outra pessoa falasse. Qual
é, posso admitir que Baudru Désiré foi condenado?

– Então, sussurrou Ganimard, era você quem estava
lá? é você quem está aqui!

– Eu, sempre eu, só eu.

– É possível?

– Oh! você não precisa ser um
feiticeiro. Basta, como disse esse bravo presidente, preparar-se por doze
anos para estar preparado para todas as eventualidades.

– Mas seu rosto? Seus olhos?

– Você entende que se eu trabalhei dezoito meses em
Saint-Louis com o doutor Altier, não é por amor à arte. Achei que aquele
que um dia teria a honra de ser chamado de Arsène Lupin deveria evitar as leis
ordinárias de aparência e identidade. A aparência? Mas nós o modificamos à
vontade. Essa injeção hipodérmica de parafina causa bolhas na pele
exatamente onde você deseja. O ácido pirogálico transforma você em um
moicano. O suco da celidônia te adorna com crostas e tumores do mais feliz
efeito. Tal processoo químico atua no crescimento da sua barba e no seu
cabelo, outro no som da sua voz. Adicionar a esta dieta de dois meses na
cela n o 24, mil vezes repetidos exercícios para abrir
minha boca como sorrir, para levar a minha cabeça neste ângulo e minhas costas
acordo com a curva. Finalmente, cinco gotas de atropina nos olhos para
torná-los abatidos e indescritíveis, e voila.

– Não entendo que os guardas…

– A metamorfose foi gradual. Eles não podiam
notar a evolução diária.

– Mas Baudru Désiré?

– Baudru existe. Ele é um pobre homem
inocente, que conheci no ano passado, e que realmente não é sem me oferecer uma
certa analogia de traços. Antecipando uma prisão sempre possível,
coloquei-o em segurança e me empenhei em discernir desde o início os pontos de
divergência que nos separavam, a fim de atenuá-los tanto quanto
possível. Meus amigos o fizeram passar uma noite no Depot, de modo que ele
saiu mais ou menos na mesma hora que eu, e a coincidência foi fácil de
ver. Porque, observe, tivemos que encontrar vestígios de sua passagem,
caso contrário, a justiça teria se perguntado quem eu era. Ao oferecer a
ela este excelente Baudru, era inevitável, você ouve, inevitável que ela
pulassesobre ele, e que apesar das dificuldades intransponíveis de uma
substituição, ela prefere acreditar na substituição do que admitir sua
ignorância.

– Sim, sim, de fato, sussurrou Ganimard.

– E então, gritou Arsène Lupin, eu tinha em minhas
mãos um trunfo formidável, uma carta inventada por mim desde o início: a
expectativa de todos quanto à minha fuga. E aqui está o erro grosseiro em
que você e os outros caíram nesta parte fascinante que a justiça e eu nos
envolvemos, e cuja aposta era minha liberdade: você supôs mais uma vez que eu
estava agindo por arrogância,que eu estava intoxicado por meus sucessos,
assim como por um beco branco. Eu, Arsène Lupin, que fraqueza! E, não mais
do que no caso Cahorn, você não disse a si mesmo: “Enquanto Arsène Lupin
gritar dos telhados que vai escapar, é porque ele tem motivos que o obrigam a
isso. Grite. Mas, dane-se, entenda então que, para fugir… sem fugir,
tínhamos que acreditar antecipadamente nessa fuga, que era um artigo de fé, uma
convicção absoluta, uma verdade deslumbrante como o sol. E foi isso, por
minha vontade. Arsène Lupin escaparia, Arsène Lupin não compareceria ao
julgamento. E quando você se levantou para dizer: “este homem não é
Arsène Lupin” seria sobrenatural que todos não acreditassem; imediatamente
que eu não era Arsène Lupin. Que apenas uma pessoa duvidou, que apenas uma
emitiu esta restrição simples: “E se fosse Arsène Lupin?” No
minuto em que me perdi. Bastou inclinar-se para mim, não com a ideia de
que eu não era Arsène Lupin, como você e os outros faziam, mas com a ideia de
que poderia ser Arsène Lupin, e apesar de todos os meus cuidados, fui
reconhecido. Mas eu estava quieto. Logicamente, psicologicamente,
ninguém poderia ter essa ideia simples.

Ele de repente agarra a mão de Ganimard.

“Vamos, Ganimard, admita que oito dias depois
de nosso encontro na prisão de La Sante, você me esperou às quatro horas em sua
casa, como eu havia pedido a você?”

– E quanto ao seu carro de prisão? Ganimard
disse, evitando responder.

– Bluff! Foram meus amigos que consertaram e
substituíram este carro velho e surrado e queriam dar uma chance. Mas eu sabia
que era impraticável sem uma combinação de circunstâncias excepcionais. Só
eu achei útil completar essa tentativa de fuga e dar-lhe a maior
publicidade. Uma primeira fuga ousadamente combinada deu à segunda o valor
de uma fuga pré-realizada.

– Para que o charuto…

– Escavado por mim assim como pela faca.

– E quanto aos ingressos?

– Escrito por mim.

– E o misterioso correspondente?

– Ela e eu somos um. Tenho toda a papelada à
vontade.

Ganimard pensou por um momento e objetou:

– Como é possível que no departamento de
antropometria, quando pegamos o cartão de Baudru, não tenhamos notado que ele
coincidia com o de Arsène Lupin?

– O arquivo de Arsène Lupin não existe.

– Vamos!

– Ou pelo menos é falso. Essa é uma questão
que tenho estudado muito. O sistema Bertillon inclui primeiro sinalização
visual – e você pode ver que não é infalível – e então sinalização por medidas,
medidas da cabeça, dedos, orelhas, etc. Não há nada a fazer.

– Assim?

– Então tivemos que pagar. Mesmo antes de meu
retorno da América, um dos funcionários do serviço aceitou tanto entrar com uma
medição falsa no início da minha medição. Isso é o suficiente para que
todo o sistema se desvie e para uma carta se mover em direção a um quadrado
diametralmente oposto ao quadrado onde deveria terminar. O arquivo
Baudruportanto, não deve coincidir com o registro de Arsène Lupin.

Houve outro silêncio, então Ganimard perguntou:

– E agora, o que você vai fazer?

– Agora, exclamou Lupin, vou descansar, seguir uma
dieta de excessos e aos poucos me tornar eu novamente. É muito bom ser
Baudru ou outra pessoa, mudar sua personalidade assim como sua camisa e
escolher sua aparência, sua voz, seu visual, sua escrita. Mas acontece que
não nos reconhecemos mais em tudo isso e que é muito triste. Atualmente
estou experimentando o que o homem que perdeu sua sombra deve ter
experimentado. Vou me procurar… e me encontrar.

Ele andou de um lado para o outro. Um pouco de
escuridão se misturou com a luz do dia. Ele parou na frente de Ganimard.

– Não temos mais nada a dizer um ao outro, eu acho?

– Sim, respondeu o inspetor, gostaria de saber se
você vai revelar a verdade sobre sua fuga… O erro que cometi…

– Oh! Ninguém jamais saberá que foi Arsène Lupin
quem foi solto. Tenho muito interesse em acumular ao meu redor as sombras
mais misteriosas, para não deixar escapar seu caráter quase
milagroso. Também,não tema nada, meu bom amigo, e adeus. Vou jantar
na cidade esta noite e só tenho tempo para me vestir.

– Achei que você queria descansar!

– Ai de mim! Existem obrigações mundanas que não
podem ser evitadas. O descanso começará amanhã.

– E onde você janta?

– Para a Embaixada Britânica.

 



O VIAJANTE MISTERIOSO

 


      no dia anterior, eu havia enviado meu automóvel
para Rouen por estrada. Eu deveria ir com ele lá de trem, e de lá ir ver
amigos que moram nas margens do Sena.

Agora, em Paris, poucos minutos antes da partida,
sete cavalheiros invadiram meu compartimento; cinco deles estavam
fumando. Por mais curta que fosse a viagem em rapidez, a perspectiva de
fazê-lo em tal companhia era desagradável para mim, principalmente porque a
carroça, de modelo antigo, não tinha corredor. Peguei então meu sobretudo,
meus jornais, meu informante e me refugiei em um dos compartimentos vizinhos.

Uma senhora estava lá. Quando me vi, ela fez
um gesto de contrariedade que não me escapou e inclinou-se para um cavalheiro
que se encontrava no degrau, seu marido, sem dúvida, quea acompanhou até a
estação. O senhor me observou e o exame provavelmente acabou em meu
benefício, pois falou em voz baixa com a esposa, sorrindo, no ar que
tranquiliza uma criança que tem medo. Ela sorriu por sua vez e me lançou
um olhar amigável, como se de repente entendesse que eu era um daqueles homens
galantes com quem uma mulher pode ficar trancada por duas horas, em uma
caixinha de quase dois metros quadrados, sem ter nada temer.

Seu marido disse a ela:

– Você não vai me culpar, minha querida, mas tenho
um compromisso urgente e não posso esperar.

Ele a beijou afetuosamente e foi embora. A mulher
mandou beijinhos discretos pela janela e acenou com o lenço.

Mas um apito soou. O trem partiu.

Naquele preciso momento, e apesar dos protestos dos
funcionários, a porta se abriu e um homem apareceu em nosso
compartimento. Minha companheira, que estava então de pé e arrumando suas
coisas ao longo da rede, soltou um grito de terror e caiu no banco.

Não sou covarde, longe disso, mas admito que essas
irrupções de última hora são sempre dolorosas. Eles parecem ambíguos, não
naturais. Deve haver algo lá embaixo ou então…

A aparência do recém-chegado, no entanto, e sua
atitude, teriam atenuado a má impressão produzida por seu ato. Exatidão,
quase elegância, gravata de bom gosto, luvas limpas, rosto enérgico… Mas,
aliás, onde diabos eu tinha visto aquele rosto? Porque, não havia dúvida
possível, eu tinha visto. Pelo menos, mais exatamente, redescobri em mim
mesmo o tipo de memória deixada pela visão de um retrato visto várias vezes e
do qual o original nunca foi visto. E, ao mesmo tempo, sentia a
inutilidade de qualquer esforço de memória, tão inconsistente e vaga era essa
memória.

Mas, tendo voltado minha atenção para a senhora,
fiquei pasmo com sua palidez e a transformação de suas feições. Ela estava
olhando para o vizinho – eles estavam sentados do mesmo lado – com uma
expressão de verdadeiro pavor, e percebi que uma de suas mãos, trêmula,
escorregou em direção a uma pequena bolsa de viagem no banco a 20 centímetros
de seus joelhos. Ela finalmente o agarrou e nervosamente o puxou contra
ela.

Nossos olhos se encontraram, e eu li em sua
inquietação e ansiedade, que não pude deixar de dizer a ele:

– Não está com dor, madame?… Devo abrir esta
janela?

Sem me responder, ela apontou para o indivíduo com
um gesto de medo. Sorri como o marido dela, encolhi os ombros e
expliquei-lhe por sinais que ela não tinha nada a temer, que eu estava ali e,
além disso, aquele cavalheiro parecia bastante inofensivo.

Naquele momento, ele se virou para nós, um após o
outro nos olhou da cabeça aos pés, depois se recostou no canto e não se mexeu.

Houve um silêncio, mas a senhora, como se tivesse
reunido todas as suas energias para realizar algum ato desesperado, disse-me
com uma voz quase imperceptível:

– Você sabe que ele está no nosso trem?

– Que?

– Mas ele… ele… eu garanto.

– Who?

– Arsène Lupin!

Ela não tirou os olhos do viajante e foi para ele,
e não para mim, que pronunciou as sílabas desse nome perturbador.

Ele puxou o chapéu até o nariz. Era para
esconder sua confusão ou ele estava se preparando para dormir?

Fiz esta objeção:

– Arsène Lupin foi condenado ontem, à revelia, a
vinte anos de trabalhos forçados. Portanto, é improvável que ele
cometa hoje a imprudência de se mostrar em público. Além disso, os
jornais não noticiaram sua presença na Turquia neste inverno, desde sua famosa
fuga do Health?

– Ele está neste trem, repetiu a senhora, com a
intenção cada vez mais marcada de ser ouvido por nosso companheiro, meu marido
é vice-diretor dos serviços penitenciários, e ele mesmo é o comissário da
estação. Mesmo quem nos disse que éramos procurando por Arsène Lupin.

– Não é um motivo…

– Nós o conhecemos na sala Pas-Perdus. Ele
comprou uma passagem de primeira classe para Rouen.

– Foi fácil falar com ele.

– Ele desapareceu. O controlador, à entrada
das salas de espera, não o viu, mas presumiu-se que tivesse passado pelas
plataformas suburbanas e que tivesse embarcado no expresso que partiu dez
minutos depois de nós.

– Nesse caso, teremos beliscado.

– E se, no último momento, saltou deste expresso
para vir aqui, no nosso comboio… como é provável… como é certo?

– Nesse caso, é aqui que será
comprimido. Porque os funcionários e os agentes não deixarão de ver esta
passagem de um comboio para o outro, e, quando chegarmos a Rouen, iremos
apanhá-la de forma muito limpa.

– Ele, nunca! ele encontrará uma maneira de escapar
novamente.

– Nesse caso, desejo-lhe uma boa viagem.

– Mas até lá, tudo o que ele pode fazer!

– O que?

– Eu sei? espere tudo!

Ela estava muito agitada e, de fato, a situação
justificava até certo ponto essa excitação nervosa. Quase sem querer, eu
disse a ele:

– Existem sim coincidências curiosas… Mas não se
preocupe. Supondo que Arsène Lupin esteja em uma dessas carroças, ele será
muito sábio lá e, em vez de ter mais problemas, não terá outra idéia a não ser
evitar o perigo que o ameaçará.

Minhas palavras não a tranquilizaram. No
entanto, ela ficou em silêncio, provavelmente temendo ser indiscreta.

Desdobrei meus jornais e li os relatórios do
julgamento de Arsène Lupin. Como não continham nada que já não
soubéssemos, interessaram-me apenas ligeiramente. Além disso, estava
cansado, dormia mal, sentia minhas pálpebras pesarem e minha cabeça
inclinar-se.

– Mas, senhor, você não vai dormir!

A senhora arrancou meus jornais de mim e me olhou
indignada.

– Claro que não, respondi, não quero.

“Seria a última imprudência”, ela me
disse.

“O último”, eu repeti.

E eu lutei energicamente, agarrando-me à paisagem,
às nuvens que riscavam o céu. E logo tudo isso turvou no espaço, a imagem
da senhora agitada e do cavalheiro adormecido se desvaneceu em minha mente, e
estava em mim o grande, o profundo silêncio do sono.

Sonhos inconsistentes e leves logo o embelezaram,
um ser que desempenhava o papel e carregava o nome de Arsène Lupin ocupava um
certo lugar ali. Ele estava se movendo no horizonte, suas costas carregadas
de objetos preciosos, atravessando paredes e derrubando castelos.

Mas a silhueta desse ser, que aliás não era mais
Arsène Lupin, ficou mais clara. Ele veio em minha direção, ficou cada vez
maior, pulou na carroça com uma agilidade incrível e pousou bem no meu peito.

Uma dor aguda… um grito de partir o coração… Acordei. O
homem, o viajante, com um joelho no meu peito, apertou-me pelo pescoço.

Eu vi isso vagamente, pois meus olhos estavam
injetados. Também vi a senhora convulsionando em um canto, nas garras de
um ataque de nervos. Eu nem tenteiresistir. Além disso, eu não teria
forças: minhas têmporas zumbiam, eu estava sufocando… Eu gemia… Mais um
minuto… e era asfixia.

O homem deve ter sentido isso. Ele soltou seu
aperto. Sem se afastar, com a mão direita, ele estendeu uma corda com a
qual havia preparado um laço e, com um gesto brusco, amarrou meus dois
pulsos. Em um instante, fui amarrado, amordaçado, imobilizado.

E ele cumpre essa tarefa da maneira mais natural do
mundo, com uma facilidade que revelava o saber de um mestre, um profissional do
furto e do crime. Nem uma palavra, nem um movimento febril. Frieza e
ousadia. E eu estava lá, no banco, amarrado como uma múmia, eu, Arsène
Lupin!

Na verdade, havia motivo para rir. E, apesar
da gravidade das circunstâncias, não deixei de perceber como a situação era
irônica e deliciosa. Arsène Lupin rolou como um novato! roubado como o
primeiro a chegar – porque, claro, o bandido tirou-me a bolsa e a carteira! Arsène
Lupin, vítima por sua vez, enganada, vencida… Que aventura!

Restava a senhora. Ele nem mesmo prestou
atenção nisso. Ele se contentou em pegar a pequena sacola que estava sobre
o tapete e retirá-la.as joias, bolsas, bugigangas de ouro e prata que
continha. A senhora abriu um olho, estremeceu de terror, tirou os anéis e
entregou-os ao homem como se quisesse poupá-lo de qualquer esforço
desnecessário. Ele pegou os anéis e olhou para ela: ela desmaiou.

Então, ainda calado e quieto, sem prestar mais
atenção em nós, ele voltou ao seu lugar, acendeu um cigarro e empreendeu um
exame minucioso dos tesouros que havia conquistado, um exame que pareceu
satisfazê-lo inteiramente.

Fiquei muito menos satisfeito. Não estou a
falar dos doze mil francos de que fui indevidamente privado: foi uma pena que
só aceitei momentaneamente, e esperava plenamente que estes doze mil francos
voltassem à minha posse o mais rapidamente possível, assim como o papéis muito
importantes em meu portfólio: projetos, citações, endereços, listas de
correspondentes, cartas comprometedoras. Mas, por enquanto, uma
preocupação mais imediata e mais séria estava me incomodando:

O que vai acontecer?

Como você pode imaginar, a agitação causada pela
minha passagem pela estação Saint-Lazare não me escapou. Convidado com
amigos que frequentava com o nome de Guillaume Berlat, e para quem minha
semelhança com Arsène Lupin era motivo de piadascarinhosa, não tinha conseguido
maquiar o rosto como queria, e minha presença havia sido sinalizada. Além
disso, vimos um homem, Arsène Lupin, sem dúvida, correndo do expresso para a
corredeira. Assim, inevitavelmente, fatalmente, o comissário de polícia de
Rouen, avisado por telegrama e auxiliado por um número respeitável de agentes,
se encontraria na chegada do trem, questionaria os viajantes suspeitos e procederia
a uma revisão meticulosa do vagões.

Tudo isso, eu previ, e não fiquei muito comovido
com isso, certo de que a polícia de Rouen não seria mais perceptiva que a de
Paris, e que eu poderia passar despercebida, – não seria o suficiente para mim,
na saída, mostrar casualmente o meu cartão de deputado, graças ao qual já tinha
inspirado toda a confiança no controlador de Saint-Lazare? – Mas como as
coisas mudaram! Eu não estava mais livre. Impossível tentar um dos meus
disparos habituais. Em uma das carroças, o superintendente descobriria o
Sieur Arsène Lupin, que foi lançado por acaso, pés e mãos amarrados, dócil como
um cordeiro, embalado, totalmente preparado. Ele só teria que recebê-lo,
pois recebemos um pacote postal endereçado a você na estação, uma cesta de caça
ou uma cesta de frutas e verduras.

E para evitar esse desfecho infeliz, o que eu
poderia fazer, torcida nas minhas bandas?

E a corredeira girava em direção a Rouen, a única e
próxima estação, queimando Vernon, Saint-Pierre.

Outro problema me intrigou, no qual eu estava menos
interessado diretamente, mas cuja solução despertou minha curiosidade
profissional. Quais eram as intenções do meu companheiro?

Eu teria ficado sozinho se ele tivesse tido tempo,
em Rouen, de descer em paz. Mas a senhora? Assim que a porta se
abrisse, a senhora, tão sábia e tão humilde no momento, gritaria, faria o que
fosse preciso, pediria socorro!

E daí o meu espanto! por que ele não a reduziu ao
mesmo desamparo que eu, o que teria lhe dado tempo para desaparecer antes que
alguém notasse seu duplo delito?

Ele ainda fumava, os olhos fixos no espaço que uma
chuva hesitante começava a formar grandes linhas oblíquas. Uma vez, porém,
ele se virou, agarrou meu indicador e consultou-o.

A senhora, ela tentou permanecer inconsciente, para
tranquilizar seu inimigo. Mas os acessos de tosse, causados
​​pela fumaça, desmentiram esse desmaio.

Quanto a mim, estava muito pouco à vontade e muito
rígido. E eu estava pensando… estava combinando…

Pont-de-l’Arche, Oissel… A corredeira estava
apressada, alegre, embriagada de velocidade.

Saint-Étienne… Nesse momento, o homem se levantou
e deu dois passos em nossa direção, aos quais a senhora se apressou em
responder com um novo grito e um desmaio não tripulado.

Mas qual era seu objetivo? Ele baixou o gelo
do nosso lado. A chuva caía com fúria e seu gesto evidenciava o tédio que
sentia por não ter guarda-chuva nem sobretudo. Ele olhou para a rede: o
lanche da senhora estava lá. Ele pegou. Ele também pegou meu sobretudo
e o vestiu.

Estávamos cruzando o Sena. Ele enrolou a
bainha da calça e, abaixando-se, levantou a trava externa.

Ele iria se jogar na pista? Nessa velocidade,
teria sido a morte certa. Corremos para o túnel sob a costa de
Sainte-Catherine. O homem abriu a porta e, com o pé, sentiu o primeiro
passo. Que loucura! A escuridão, a fumaça, o barulho, tudo fazia com que
essa tentativa parecesse fantástica. Mas de repente o trem diminuiu a
velocidade, as Westinghouse se opuseram ao esforço das rodas. Em
um minuto, o ritmo tornou-se normal, diminuindo ainda mais. Sem dúvida,
estavam previstas obras de consolidação nesta parte do túnel, o que exigia a
lenta passagem dos comboios, por alguns dias, talvez, e o homem sabia disso.

Para isso, bastou colocar o outro pé no degrau,
descer no segundo e afastar-se em paz, não sem antes ter puxado o trinco para
baixo e fechado a porta.

Assim que ele desapareceu, a luz do dia iluminou a
fumaça mais branca. Emergimos em um vale. Outro túnel e estávamos em
Rouen.

Imediatamente a senhora recuperou o ânimo e sua
primeira preocupação foi lamentar a perda de suas joias. Eu implorei com
meus olhos. Ela me entendeu e me libertou da mordaça que estava me
sufocando. Ela também queria desamarrar minhas amarras, eu a impedi.

– Não, não, a polícia deve ver as coisas como elas
são. Eu quero que ela seja construída sobre esse patife.

– E se eu tocar a campainha de alarme?

– Tarde demais, você teve que pensar nisso enquanto
ele me atacava.

– Mas ele teria me matado! Ah! Senhor, eu disse a
você que ele estava viajando neste trem! Eu o reconheci imediatamente, de seu
retrato. E lá vai ele com minhas joias.

– Vamos encontrá-lo, não tenha medo.

– Encontre Arsène Lupin! Nunca.

– Depende de você, senhora. Ouvir. Ao
chegar, esteja na porta e ligue, faça barulho. Agentes e funcionários virá. Então
conte-nos o que você viu, em poucas palavras, a agressão de que fui vítima e a
fuga de Arsène Lupin. Dê a descrição dele, um chapéu mole, um guarda-chuva
– o seu – um sobretudo cinza do tamanho da cintura.

– Seu, ela disse.

– Como, meu? Mas não, dele. Eu não tinha
nenhum.

– Pareceu-me que também não tinha nenhum quando
subiu as escadas.

– Sim, se… a menos que seja uma peça de roupa
esquecida na rede. De qualquer forma, ele estava com ele quando saiu, e
essa é a essência… um sobretudo cinza, na altura da cintura, lembra… Ah! Eu
esqueci… diga seu nome, imediatamente. Os deveres de seu marido
estimularão o zelo de todas essas pessoas.

Nós estávamos indo. Ela já estava se
inclinando para fora da porta. Retomei com uma voz um pouco forte, quase
imperiosa, de modo que minhas palavras ficaram bem gravadas em seu cérebro.

– Diga também meu nome, Guillaume Berlat. Se
for preciso, diga que me conhece… Isso vai nos poupar tempo… temos que
mandar o inquérito preliminar… o importante é o processo de Arsène Lupin… suas
joias… Não tem erro, não é? Guillaume Berlat, amigo de seu marido.

– Ouvi… Guillaume Berlat.

Ela já estava chamando e gesticulando. O
tremnão impediu um cavalheiro de subir, seguido por vários homens. A hora
crítica estava marcando.

Ofegante, a senhora exclamou:

– Arsène Lupin… ele nos atacou… ele roubou minhas
joias… Eu sou Madame Renaud… meu marido é o subdiretor dos serviços
penitenciários… Ah! aqui está precisamente meu irmão, Georges Ardelle, diretor
do Crédit Rouennais… você deveria saber…

Ela beijou um jovem que acabara de se juntar a nós,
a quem o superintendente cumprimentou, e continuou em prantos:

– Sim, Arsène Lupin… enquanto Monsieur dormia, ele
se atirou na garganta dele… Sr. Berlat, um amigo do meu marido.

O comissário perguntou:

– Mas onde ele está, Arsène Lupin?

– Ele saltou do trem sob o túnel, depois do Sena.

– Tem certeza que é ele?

– Se eu tiver certeza! Eu o reconheci
perfeitamente. Além disso, vimos isso na estação Saint-Lazare. Ele
tinha um chapéu mole…

“Não… um chapéu de feltro duro como
este”, corrigiu o superintendente, apontando para o meu chapéu.

“Um chapéu macio, eu digo”, repetiu
Madame Renaud, “e um sobretudo cinza que vai até a cintura.”

– De fato, murmurou o superintendente, o telegrama indica
esse sobretudo cinza, com cintura e gola de veludo preto.

“Exatamente com uma gola de veludo
preto”, gritou Madame Renaud triunfante.

Eu respirei. Ah! o bravo, o excelente amigo
que eu tinha lá!

Os agentes, no entanto, me libertaram de minhas
algemas. Mordi meu lábio violentamente, o sangue fluiu. Curvado, o
lenço sobre a boca, como convém a um indivíduo que está há muito tempo em uma
posição incômoda e que traz no rosto a marca de sangue da mordaça, disse ao
comissário com voz debilitada:

– Senhor, foi o Arsène Lupin, não há dúvida… Com
diligência vamos alcançá-lo… Acho que posso ser de alguma utilidade para você…

O vagão que deveria ser usado para as conclusões da
justiça foi retirado. O trem continuou em direção a Le Havre. Fomos
conduzidos ao escritório do chefe da estação, por entre a multidão de curiosos
que lotavam a plataforma.

Naquele momento, hesitei. Sob algum pretexto,
eu poderia fugir, encontrar meu carro e ir embora. Era perigoso
esperar. Algo aconteceu, chegou um despacho de Paris e eu estava perdido.

Sim, mas meu ladrão? Deixado por conta
própria, em uma região que não era muito familiar para mim, não tinha esperança
de me juntar a ele.

– Bah! vamos tentar, disse a mim mesmo, e vamos
ficar. O jogo é difícil de vencer, mas muito divertido de jogar! E a
aposta vale a pena.

E, enquanto nos pediam para renovar nossos
depoimentos provisoriamente, gritei:

– Senhor Comissário, neste momento, Arsène Lupin
está a progredir. Meu carro está esperando por mim no quintal. Se
você quiser me dar o prazer de ir lá em cima, vamos tentar…

O comissário sorriu astutamente:

– A ideia não é ruim… tão pouco ruim mesmo, que
está em vias de ser concretizada.

– Ah!

– Sim, senhor, dois dos meus agentes andam de
bicicleta… já há algum tempo.

– Mas onde?

– Bem na saída do túnel. Lá, eles coletarão as
pistas, os testemunhos, e seguirão a trilha de Arsène Lupin.

Eu não pude deixar de encolher os ombros.

– Seus dois agentes não coletarão nenhuma pista ou
testemunho.

– Verdadeiramente!

– Arsène Lupin terá providenciado para que ninguém
o veja saindo do túnel. Ele terá entrado na primeira estrada e, a partir
daí…

– E de lá, Rouen, onde vamos beliscá-lo.

– Ele não vai para Rouen.

– Então ele vai ficar na área onde temos ainda mais
certeza…

– Ele não vai ficar por aqui.

– Oh! Oh! E onde ele vai se esconder?

Peguei meu relógio.

– No momento, Arsène Lupin está rondando a estação
Darnétal. Às dez e cinquenta, isto é, dentro de vinte e dois minutos,
tomará o trem que vai de Ruão, Gare du Nord, a Amiens.

– Você pensa? E como você sabe disso?

– Oh! É muito simples. No compartimento,
Arsène Lupin consultou meu informante. Por quê? Havia, não muito longe de
onde ele desapareceu, outra linha, uma estação naquela linha e um trem parando
nesta estação? Por minha vez, acabo de consultar o indicador. Ele me
informou.

– Na verdade, senhor, disse o superintendente, está
maravilhosamente deduzido. Que habilidade!

Levado pela minha convicção, cometi um erro ao
demonstrar tanta habilidade. Ele olhou para mim com espanto, e pensei ter
sentido uma suspeita ao tocá-lo. – Oh! mal, pois as fotos enviadas de
todos os lados pelo chão eram muito imperfeitas, representavam um Lupin Arsène
muito diferente do que ele tinha na frente, para ele ser capaz de me
reconhecer. Mas, mesmo assim, ele estava confuso, confuso e preocupado.

Houve um momento de silêncio. Algo ambíguo e
incerto interrompeu nossas palavras. Eu mesmo, um arrepio de vergonha me
abalou. A sorte se voltaria contra mim? Dominando a mim mesma, eu ri.

– Meu Deus, nada abre seu entendimento como a perda
de uma carteira e o desejo de encontrá-la. E me parece que se você me
desse dois de seus agentes, eles e eu, talvez pudéssemos…

– Oh! Por favor, Senhor Comissário, gritou Madame
Renaud, ouça M. Berlat.

A intervenção do meu excelente amigo foi
decisiva. Pronunciado por ela, esposa de uma figura influente, esse nome
de Berlat se tornou realmente meu e me deu uma identidade que nenhuma suspeita
poderia alcançar. O comissário se levantou:

– Eu ficaria muito feliz, Monsieur Berlat, acredite,
se você tivesse sucesso. Tanto quanto você, me preocupo com a prisão de
Arsène Lupin.

Ele me levou até o carro. Dois de seus
agentes, que ele me apresentou, Honoré Massol e Gaston Delivet, ocuparam seus
lugares. Eu sentei ao volante. Meu mecânico girou a
manivela. Alguns segundos depois, saímos da estação. Eu fui salvo.

Ah! Admito que, enquanto dirigia pelos bulevares
que cercam a velha cidade normanda, com o ritmo poderoso de meus trinta e cinco
cavalos Moreau-Lepton, não deixava de conceber um certo orgulho. O motor
rugiu harmoniosamente. À direita e à esquerda, as árvores fugiram atrás de
nós. E livre, fora de perigo, agora eu só tinha que resolver meus pequenos
negócios pessoais, com a ajuda de dois honestos representantes da força
pública. Arsène Lupin estava indo em busca de Arsène Lupin!

Apoiantes modestos da ordem social, Delivet Gaston
e Massol Honoré, como foi preciosa a vossa ajuda para mim! O que eu teria feito
sem você? Sem você, quantas vezes na encruzilhada eu teria escolhido o
caminho errado! Sem você, Arsène Lupin estava errado, e o outro escapou!

Mas não acabou tudo. Longe dali. Primeiro
eu tinha que alcançar o indivíduo e, em seguida, apreender os papéis que ele
havia roubado de mim. Sem nenhum custo, meus dois acólitos não devem enfiar
o nariz nesses documentos, menos ainda do que os detêm. Usá-los e
atuar fora deles, era o que eu queria e não foi fácil.

Chegamos em Darnétal três minutos depois da
passagem do trem. É verdade que tive o consolo de saber que um sujeito de
sobretudo cinza, até a cintura, com gola de veludo preto, subira para um
compartimento de segunda classe, munido de passagem para
Amiens. Definitivamente, meu começo como policial prometia.

Delivet me diz:

– O trem é expresso e só pára em Montérolier-Buchy,
em dezenove minutos. Se não estivermos lá antes de Arsène Lupin, ele pode
continuar em Amiens, como ramificando em Clères, e de lá para Dieppe ou Paris.

– Montérolier, quão longe?

– Vinte e três quilômetros.

– Vinte e três quilômetros em dezenove minutos… Estaremos
lá antes dele.

A fase emocionante! Nunca meu fiel Moreau-Lepton
respondeu à minha impaciência com mais ardor e regularidade. Parecia-me
que estava comunicando minha vontade a ele diretamente, sem o intermediário de
alavancas e alavancas. Ela compartilhou meus desejos. Ela aprovou
minha teimosia. Ela entendeu minha animosidade contra esse canalha de
Arsène Lupin. aenganoso! o traidor! eu estaria certa sobre ele? Ele
jogaria mais uma vez com autoridade, com essa autoridade da qual eu era a
encarnação?

– À direita gritou Delivet!… À esquerda!… Em
frente! …

Estávamos deslizando acima do solo. Os
terminais pareciam bestas covardes que desapareceram quando nos aproximamos.

E de repente, na curva de uma estrada, um
redemoinho de fumaça, o Express du Nord.

Durante um quilômetro, foi a luta lado a lado, luta
desigual cujo desfecho era certo. No final, nós o vencemos por 20
distâncias.

Em três segundos estávamos na plataforma, em frente
às segundas turmas. As portas se abriram. Algumas pessoas estavam
descendo. Meu ladrão não é. Inspecionamos os compartimentos. Sem
Arsène Lupin.

“Droga”, gritei, “ele deve ter me reconhecido no
carro enquanto caminhávamos lado a lado e teria pulado.

O maestro confirmou essa suposição. Ele tinha
visto um homem caindo pelo barranco, a duzentos metros da estação.

– Aqui, ali… aquele que está passando pela passagem
de nível.

Parti, seguido pelos meus dois acólitos, ou melhor,
seguido por um deles, porque o outro, Massol, passou a ser um corredor
excepcional, tendo tanto fundo quanto velocidade. Em alguns momentos,
o intervalo que o separava do fugitivo diminuiu singularmente. O homem o
viu, cruzou uma cerca viva e saiu correndo rapidamente para um aterro, onde
escalou. Nós o vimos ainda mais longe: ele estava entrando em um pequeno
bosque.

Quando chegamos a este bosque, Massol estava
esperando por nós. Ele havia considerado desnecessário se aventurar mais,
por medo de nos perder.

“E eu o parabenizo por isso, meu caro
amigo”, disse a ele. Depois de tal corrida, nosso indivíduo deve estar
sem fôlego. Nós temos isso.

Examinei os arredores, pensando nos meios de
proceder sozinho à prisão do fugitivo, a fim de me restituir, o que a justiça
sem dúvida teria tolerado somente depois de muitas investigações
desagradáveis. Então voltei para meus companheiros.

– É isso, é fácil. Você, Massol, fique à
esquerda. Você, Delivet, à direita. A partir daí, você fica de olho
em toda a retaguarda do arvoredo, e ele só pode sair, sem ser visto por você,
por esta cavea, onde me posiciono. Se não sair, eu entro e,
inevitavelmente, dobro um ou outro. Então você apenas tem que
esperar. Ah! Esqueci: em caso de alerta, um tiro.

Massol e Delivet seguiram caminhos separados. Assim
que eles se foram, e eu entrei no bosque com o maior cuidado para não ser visto
nem ouvido. Eram matagais espessos, apetrechados para a caça e cortados
por caminhos muito estreitos onde só se podia caminhar em curvas, como nas
verdes passagens subterrâneas.

Um deles levava a uma clareira onde a grama molhada
mostrava pegadas. Eu os segui, tendo o cuidado de deslizar pelo
matagal. Eles me levaram até o sopé de um pequeno outeiro coroado por uma
cabana de gesso meio demolida.

– Ele deve estar aqui, pensei. O observatório
é bem escolhido.

Arrastei-me para perto do edifício. Um leve
ruído me informou de sua presença e, de fato, por uma abertura, eu o vi de
costas para mim.

Em dois saltos, estava em cima dele. Ele
tentou apontar a arma em sua mão. Não lhe dei tempo e o arrastei para o
chão, de modo que seus dois braços ficaram presos sob ele, torcidos, e eu
estava pesando meu joelho em seu peito.

– Escute, meu menino, sussurrei em seu ouvido, sou
Arsène Lupin. Vais devolver-me, de imediato e de boa vontade, a minha
carteira e a pasta da senhora… em troca, vou tirá-la das garras da polícia, e
vou alistá-la entre meus amigos. Uma palavra apenas: sim ou não?

– Sim, ele sussurrou.

– Muito melhor. Seu caso esta manhã foi bem
combinado. Nós vamos nos dar bem.

Levantei-me. Ele enfiou a mão no bolso, tirou
uma grande faca e tentou me acertar com ela.

– Idiota! Chorei.

Com uma das mãos, eu havia aparado o
ataque. Do outro, dei-lhe uma pancada violenta na artéria carótida, que se
chama “anzol carotídeo”… Ele caiu atordoado.

Na minha carteira, encontrei meus papéis e minhas
notas de banco. Por curiosidade, peguei o dele. Em um envelope
endereçado a ele, li seu nome: Pierre Onfrey.

Eu vacilei. Pierre Onfrey, o assassino da rue
Lafontaine, em Auteuil! Onfrey Pierre, que matou M me Delbois
e duas filhas. Eu me inclinei sobre ele. Sim, foi esse rosto que, no
compartimento, tinha despertado em mim a memória de traços já contemplados.

Mas o tempo estava passando. Coloquei notas de
duzentos francos em um envelope, com um cartão e estas palavras: “Arsène
Lupin aos seus bons colegas Honoré Massol e Gaston Delivet, como um sinal de
gratidão.” Coloquei isso de forma proeminente no meio da
sala. Em seguida, o caso de M me Renaud. Não
poderia devolvê-lo ao excelente amigo que me resgatou? eu Confesso,
porém, que retirei tudo o que me interessasse, deixando apenas um pente de
tartaruga, um batom Dorin em bastão e uma bolsa vazia. Que diabos! Negócio
é negócio. E então, realmente seu marido exercia uma profissão tão
vergonhosa! …

Restava o homem. Ele estava começando a se
mexer. O que devo fazer? Não tive posição nem para salvá-lo nem para
condená-lo.

Eu o tirei de suas armas e disparei um revólver
para o ar.

– Os outros dois virão, pensei, deixa ele
administrar! As coisas serão feitas na direção de seu destino.

E eu me afastei correndo ao longo do caminho para a
caverna.

Vinte minutos depois, uma encruzilhada, que eu
havia notado durante nossa perseguição, me trouxe de volta ao meu automóvel.

Às quatro horas, telegrafei a meus amigos em Rouen
que um incidente imprevisto me forçou a adiar minha visita. Entre nós,
temo, dado o que eles precisam saber agora, que terei de entregá-lo
indefinidamente. Desilusão cruel para eles!

Às seis horas, voltei a Paris via Isle-Adam,
Enghien e Porte Bineau.

Os jornais noturnos informaram que finalmente
conseguiram prender Pierre Onfrey.

No dia seguinte, – não desprezemos as vantagens de
um anúncio inteligente – o Echo de France publicou este artigo
sensacional:

“Ontem, perto de Buchy, depois de vários
incidentes, Arsène Lupin prendeu Pierre Onfrey. O assassino da rue
Lafontaine acabara de roubar na linha de Paris para Le Havre M. Me Renaud,
esposa do vice-diretor dos serviços penitenciários. Lupin voltou
a M me Renaud o saco que continha as suas jóias, e
generosamente recompensado os dois agentes de segurança que o ajudaram durante
esta prisão dramática.”

 



O COLAR DA RAINHA

 


     Duas
ou três
vezes por ano, por ocasião das solenidades importantes, como as bolas da
Embaixada da Áustria ou as partes de Lady Billingstone, a condessa de
Dreux-Soubise colocar sobre os ombros brancos “Colar da Rainha”.

Foi de fato o famoso colar, o lendário colar que
Böhmer e Bassenge, joalheiros da coroa, destinaram ao Du Barry, que o cardeal
de Rohan-Soubise acreditava oferecer a Maria Antonieta, rainha da França, e que
a aventureira Jeanne de Valois, condessa de La Motte, desmembrada em uma noite
de fevereiro de 1785, com a ajuda de seu marido e seu cúmplice Rétaux de
Villette.

Para dizer a verdade, apenas a moldura era
genuína. Rétaux de Villette o guardou, enquanto o Sieur de la Motte e sua
esposa espalharam as pedras aos quatro ventos. brutalmente soltas, as
pedras admiráveis
​​tão cuidadosamente escolhidas por
B
öhmer. Mais tarde, na Itália, ele a vendeu a Gaston de
Dreux-Soubise, sobrinho e herdeiro do cardeal, salvo por ele da ruína durante a
retumbante falência de Rohan-Guéménée, e que em memória de seu tio, comprou os
poucos diamantes. ficou na posse do joalheiro inglês Jefferys, complementou-os
com outros de muito menos valor, mas do mesmo tamanho, e conseguiu reconstruir
o maravilhoso “colar de escravos”, visto que saíra das mãos de Böhmer
e Bassenge.

Por quase um século, os Dreux-Soubise se orgulharam
desta joia histórica. Embora várias circunstâncias tivessem reduzido
notavelmente suas fortunas, eles preferiram reduzir seus custos domésticos do
que se desfazer da relíquia real e preciosa. Em particular, a contagem
atual foi associada a ele como alguém valoriza a casa de seus pais. Para
ficar mais seguro, ele havia alugado um cofre no Crédit Lyonnais para colocá-lo
lá. Ele mesmo iria buscá-lo na tarde do dia em que sua esposa quisesse
usá-lo, e ele mesmo o traria no dia seguinte.

Naquela noite, na recepção do Palácio de Castela, a
Condessa teve um verdadeiro sucesso, e o Rei Cristão, em cuja homenagem a festa
foi dada, notou sua beleza magnífica. Joias escorriam pelo
pescoço gracioso. As mil facetas dos diamantes brilhavam e cintilavam como
chamas na clareza das luzes. Ninguém além dela, ao que parecia, poderia
ter suportado com tanta facilidade e nobreza o fardo de tal adorno.

Foi um triunfo duplo, que o conde de Dreux provou
profundamente e aplaudiu quando voltaram ao quarto de seu antigo hotel no
Faubourg Saint-Germain. Ele estava orgulhoso de sua esposa, e talvez tanto
da joia que ilustrou sua casa por quatro gerações. E sua esposa tirava
dela uma vaidade um tanto infantil, mas que era a marca de seu caráter altivo.

Não sem pesar, ela desamarrou o colar dos ombros e
entregou-o ao marido, que o examinou com admiração, como se não o
conhecesse. Depois de colocá-lo de volta em sua caixa de couro vermelho
com os braços do Cardeal, ele foi para um armário vizinho, uma espécie de
alcova em vez de uma que tinha sido completamente isolada do quarto, e a única
entrada que ficava ao pé do sua cama. Como das outras vezes, ele o
escondeu em uma placa bastante alta, entre caixas de chapéus e pilhas de roupa
suja. Ele fechou a porta e se despiu.

Pela manhã, ele se levantou por volta das nove
horas, com a intenção de ir, antes do almoço, ao Crédit Lyonnais. Ele
se vestiu, bebeu uma xícara de café e desceu para os estábulos. Lá ele deu
ordens. Um dos cavalos o preocupou. Ele o fez andar e trotar na
frente dele no pátio. Então ele voltou para sua esposa.

Ela não havia saído do quarto e estava arrumando o
cabelo, ajudada pela empregada. Ela diz a ele:

– Você sai !

– Sim… para esta corrida…

– Ah! na verdade… é mais cuidadoso…

Ele entrou no escritório. Mas, depois de
alguns segundos, ele perguntou, sem a menor surpresa, além disso:

– Você pegou, querido amigo?

Ela respondeu:

– Como? ”Ou“ O quê? mas não, eu não peguei
nada.

– Você o perturbou.

– De jeito nenhum… Eu nem abri aquela porta.

Ele apareceu, se decompôs e gaguejou, sua voz quase
inaudível:

– Você não?… Não é você?… Então…

Ela correu e eles procuraram febrilmente, jogando
as caixas no chão e derrubando as pilhas de roupa suja. E a contagem se
repetiu:

– Inútil… tudo o que fazemos é inútil… É aqui,
ali, neste quadro, que eu coloco.

– Você poderia estar errado.

– Está aqui, ali, neste tabuleiro, e não no outro.

Acenderam uma vela, porque o quarto estava bem
escuro, e retiraram toda a roupa suja e todos os objetos que estavam sujos
dela. E quando não havia mais nada no armário, eles tiveram que confessar
com desespero que o famoso colar, “O Colar da Rainha na Escravidão”,
havia sumido.

Determinada pela natureza, a condessa, sem perder
tempo em vãs lamentações, informou o comissário, M. Valorbe, cujo espírito
sagaz e clarividência já tiveram oportunidade de apreciar. Eles o
informaram em detalhes e imediatamente ele perguntou:

– Tem certeza, Monsieur le Comte, de que ninguém
conseguiu cruzar seu quarto à noite?

– Certeza absoluta. Tenho o sono muito
leve. Melhor ainda: a porta deste quarto estava trancada. Devo ter
puxado esta manhã quando minha esposa tocou a campainha.

– E não há outra passagem que permita entrar no
gabinete?

– Qualquer.

– Sem janela?

– Sim, mas ela está condenada.

– Eu gostaria de perceber isso…

Velas foram acesas, e imediatamente M.
Valorbe lembrou que a janela só estava bloqueada na metade do caminho por
um aparador que, aliás, não tocava exatamente nas molduras.

“Toca o suficiente”, respondeu o sr. De
Dreux, “para tornar impossível movê-lo sem fazer muito barulho.”

– E para onde fica essa janela?

– Em um pátio interno.

– E você ainda tem um andar acima disso?

– Dois, mas no nível dos criados, o pátio é
protegido por uma pequena grade de malha. É por isso que temos tão pouca
luz do dia.

Além disso, quando empurramos a arca para o lado,
notamos que a janela estava fechada, o que não aconteceria se alguém tivesse
entrado de fora.

‘A menos’, observou o conde, ‘que alguém tenha
saído de nosso quarto.

– Nesse caso, você não teria encontrado a fechadura
deste quarto empurrada.

O comissário pensou por um momento, depois se
voltando para a condessa:

– Alguém sabia ao seu redor, senhora, que você teve
que usar este colar ontem à noite?

– Claro, eu não escondi. Mas ninguém sabia que
o estávamos trancando neste gabinete.

– Qualquer pessoa?

– Ninguém… a menos que…

– Por favor, senhora, esclareça. Este é um
ponto muito importante.

Ela disse ao marido:

– Estava pensando em Henriette.

– Henriette? Ela ignora esse detalhe como os
outros.

– Tem certeza?

– Quem é esta senhora? perguntou M. Valorbe.

– Uma amiga de convento, que se zangou com a
família para se casar com uma trabalhadora. Quando o marido dela morreu,
eu a hospedei com o filho e lhes dei um apartamento neste hotel.

E ela acrescentou com vergonha:

– Ela está me fazendo alguns favores. Ela é
muito habilidosa com as mãos.

– Em que andar ela mora?

– Nossa, não muito longe do resto… no final desse
corredor… E até, eu penso nisso… a janela da cozinha dele…

– Abra para este pátio, não é?

– Sim, bem na nossa frente.

Um ligeiro silêncio seguiu esta declaração.

Em seguida, M. Valorbe pediu para ser levado a
Henriette.

Eles a encontraram costurando, enquanto seu
filho Raoul, uma criança de seis a sete anos, lia ao lado dele. Bastante
espantado ao ver o miserável apartamento que lhe fora mobilado e que consistia
no total numa sala sem lareira e numa salinha que servia de cozinha, o
comissário interrogou-a. Ela pareceu chateada quando soube do
roubo. Na noite anterior, ela mesma vestira a condessa e prendia o colar
em seu pescoço.

– Senhor Deus! ela chorou, quem teria me contado?

– E você não tem ideia? sem a menor
dúvida? É possível, porém, que o culpado tenha passado pelo seu quarto.

Ela riu com vontade, sem nem mesmo imaginar que
alguém pudesse tocá-la com uma dica:

– Mas eu não saí do meu quarto! Eu nunca
saio E então, você não viu?

Ela abriu a janela do cubículo.

– Aqui, há três metros para a saliência oposta.

– Quem te disse que estávamos considerando a
hipótese de um furto feito ali?

– Mas… o colar não estava no armário?

– Como você sabe?

– Senhora! Sempre soube que a gente colocava lá à
noite… a gente conversava na minha frente…

Seu rosto, ainda jovem, mas marcado pela dor,
mostrava grande gentileza e resignação. No entanto, no silêncio, ela de
repente teve uma expressão de angústia, como se um perigo a tivesse
ameaçado. Ela puxou o filho contra ela. A criança pegou sua mão e a
beijou com ternura.

– Suponho que não, disse o Sr. de Dreux ao
superintendente, quando eles ficaram sozinhos, suponho que não suspeitasse
dela? Eu respondo por ela. É a própria honestidade.

– Oh! Estou totalmente de acordo consigo, afirmou
M. Valorbe. No máximo, pensei em uma cumplicidade inconsciente. Mas
reconheço que essa explicação deve ser abandonada… especialmente porque não
resolve o problema que enfrentamos.

O comissário não pressionou mais a investigação,
que o juiz de instrução retomou e concluiu nos dias
seguintes. Questionamos os criados, verificamos o estado da fechadura,
fizemos experimentos de fechamento e abertura da janela do armário, exploramos
o pátio de cima a baixo… Tudo foi inútil. A fechadura estava
intacta. A janela não pôde ser aberta ou fechada pelo lado de fora.

Mais especificamente, a investigação centrou-se na
Henriette, porque, apesar de tudo, sempre voltámos a esta área. Nós
procuramos a vida dele minuciosamente, e verificou-se que, durante três
anos, ela só havia saído do hotel quatro vezes, e quatro vezes para corridas
que pudessem ser determinadas. Na verdade, ela serviu como criada e
costureira de Madame de Dreux, que lhe mostrou um rigor que todas as criadas
testemunhavam em sigilo.

“ Além disso, ” disse o juiz de instrução, que,
ao final de uma semana, chega às mesmas conclusões que o comissário, admitindo
que conhecemos o culpado, e não estamos lá. Não saberia mais sobre como o roubo
foi cometido. Estamos bloqueados à direita e à esquerda por dois
obstáculos: uma porta fechada e uma janela fechada. O mistério é duplo! Como
você entrou e como, o que foi muito mais difícil, você escapou de deixar para
trás uma porta trancada e uma janela fechada?

Depois de quatro meses de investigação, a ideia de
segredo de justiça era a seguinte: Sr. e M me Dreux,
pressionado pela necessidade de dinheiro, que na verdade eram consideráveis,
tinha vendido a Rainha Colar. Ele encerrou o caso.

O roubo da joia preciosa desferiu um golpe nos
Dreux-Soubise que mantiveram a marca por muito tempo. Tendo o crédito não
mais sustentado pelo tipo de reserva que tal tesouro constituía, eles se viram
diante de credores mais exigentes e credores menos favoráveis. Eles
tiveram que economizar, alienar, hipotecar. Em suma, teria sido a ruína se
duas grandes heranças de parentes distantes não os tivessem salvado.

Eles também sofreram em seu orgulho, como se
tivessem perdido um distrito de nobreza. E, estranhamente, foi sua
ex-amiga do colégio interno que a condessa atacou. Ela sentiu um
ressentimento real contra ela e a acusou abertamente. Ela foi primeiro
relegada ao andar dos empregados, depois foi dispensada durante a noite.

E a vida fluiu, sem eventos notáveis. Eles
viajaram muito.

Apenas um fato deve ser observado durante este
período. Poucos meses após a partida de Henriette, a condessa recebeu uma
carta dela que a encheu de espanto:

” Sra,

“Eu não sei como te agradecer. Porque foi
você, não foi, quem mandou isso para mim?Só pode ser você. Ninguém mais
sabe sobre minha aposentadoria neste pequeno vilarejo. Se eu estiver
errado, com licença, e pelo menos mantenha a expressão de minha gratidão por
sua gentileza passada…”

O que ela quis dizer? As gentilezas presentes
ou passadas da condessa para com ela resultaram em muitas injustiças. O
que esses agradecimentos significam?

Chamada a se explicar, respondeu que havia recebido
pelo correio, em envelope não registrado nem carregado, notas de dois mil
francos. O envelope, que ela anexou com sua resposta, estava carimbado com
Paris e trazia apenas seu endereço, desenhado em uma escrita visivelmente
disfarçada.

De onde vieram esses dois mil francos? Quem os
enviou? Justiça perguntou. Mas que trilha alguém poderia seguir nesta
escuridão?

E o mesmo fato aconteceu novamente doze meses
depois. E uma terceira vez; e uma quarta vez; e a cada ano
durante seis anos, com a diferença de que no quinto e no sexto anos a soma
dobrou, o que permitiu a Henriette, que adoecera repentinamente, cuidar de si
mesma da maneira apropriada.

Outra diferença: o correio apreendeu uma das cartas
a pretexto de que não estava carregado, as duas últimas cartas foram
enviadas de acordo com os regulamentos, a primeira datada de Saint-Germain, a
outra de Suresnes. O remetente assinou primeiro Anquety, depois
Péchard. Os endereços que ele deu estavam errados.

No final de seis anos, Henriette morreu. O
enigma permaneceu sem solução.

 

 

Todos esses eventos são conhecidos do
público. O caso foi um dos que fascinou a opinião pública, e é estranho o
destino deste colar, que, depois de ter perturbado a França no final do século
XVIII, ainda despertava tanta emoção um século depois. Mas o que estou
prestes a dizer é ignorado por todos, exceto pelos principais interessados
​​e por algumas pessoas a quem o
conde pediu sigilo absoluto.
 Como é provável que um dia ou outro quebrem
a promessa, n
ão tenho receio de rasgar o véu e assim teremos, junto com a
chave do enigma, a explica
ção da carta
publicada nos jornais anteontem. manhã, uma carta extraordinária que
acrescentou, se possível, um pouco de sombra e mistério às obscuridades deste
drama.

Cinco dias atrás. Entre os convidados que
almoçaram no M. de Dreux-Soubise eram suas duas sobrinhas e seu primo, e,
como homens, o presidente de Essaville, o deputado Bochas, o cavaleiro Floriani
que o conde conhecera na Sicília, e o marquês geral de Rouzières, um velho
camarada de círculo.

Depois da refeição, essas senhoras serviram café e
os senhores puderam fumar um cigarro, desde que não saíssem da sala. Nós
conversamos. Uma das meninas se divertia fazendo cartas e fazendo
adivinhações. Então veio a falar de crimes famosos. E foi neste
contexto que o Sr. de Rouzières, que nunca perdeu a oportunidade de provocar o
conde, recordou a aventura do colar, tema de conversa que o Sr. de Dreux teve
com horror.

Todos imediatamente deram sua opinião. Cada um
começou novamente a instrução à sua maneira. E, é claro, todas as
hipóteses se contradiziam, todas igualmente inadmissíveis.

– E o senhor, perguntou a condessa do Chevalier
Floriani, qual a sua opinião?

– Oh! Não tenho opinião, madame.

Nós gritamos. Precisamente o cavaleiro acabava
de narrar de forma brilhante várias aventuras em que se envolvera com o pai,
magistrado de Palermo, e nas quais se afirmaram seu julgamento e gosto por
essas questões.

– Eu admito, disse ele, que consegui enquanto
o mais hábil desistiu. Mas daí para me considerar um Sherlock Holmes… E
então, eu mal sei o que é.

Voltamo-nos para o dono da
casa. Relutantemente, ele teve que resumir os fatos. O cavaleiro
ouviu, refletiu, fez algumas perguntas e sussurrou:

– É engraçado… à primeira vista não me parece que
seja tão difícil adivinhar.

O conde encolheu os ombros. Mas as outras
pessoas se aglomeraram em torno do cavaleiro, e ele retomou em um tom um tanto
dogmático:

– Em geral, para localizar o autor de um crime ou
furto, é necessário determinar como esse crime ou furto foi cometido, ou pelo
menos poderia ter sido cometido. No caso em apreço, nada mais simples a
meu ver, porque nos deparamos, não com várias hipóteses, mas com uma certeza,
uma certeza única, rigorosa, e que se afirma da seguinte forma: o indivíduo não
pode entrar só pelo quarto porta ou janela do armário. No entanto, você
não abre uma porta trancada pelo lado de fora. Então ele entrou pela
janela.

“Estava fechado e nós o encontramos”, declarou
claramente M. de Dreux.

– Para isso, continuou Floriani sem perceber a
interrupção, bastava estabelecer uma ponte, tábua ou escada, entre a
varanda da cozinha e o peitoril da janela, e assim que o cenário…

– Mas repito que a janela estava fechada! gritou o
conde impaciente.

Desta vez, Floriani teve que responder. Ele o
fez com a maior tranquilidade, como um homem a quem uma objeção tão
insignificante não perturba.

– Eu quero acreditar que foi, mas não tem
clarabóia?

– Como você sabe?

– Em primeiro lugar, era quase uma regra nos hotéis
daquela época. E então deve ser assim, caso contrário o roubo é
inexplicável.

– Tem sim, mas estava fechado, assim como a
janela. Nós nem prestamos atenção nisso.

– Está errado. Porque se tivéssemos sido
cuidadosos, obviamente teríamos visto que ele havia sido aberto.

– E como?

– Suponho que, como todas as outras, ele se abra
por meio de um fio trançado, munido de um anel em sua extremidade inferior?

– Sim.

– E esse anel pendurado entre a janela e o baú?

– Sim, mas eu não entendo…

– Aqui está. Através de uma fenda na telha,
poderíamos, com qualquer instrumento, colocar uma barra de ferro munida de
gancho, agarrar a argola, pesar e abrir.

O conde zombou:

– Perfeito! perfeito! você organiza tudo com
facilidade! só se esquece de uma coisa, caro senhor, é que não havia fenda na
vidraça.

– Houve uma rachadura.

– Vamos! nós teríamos visto isso.

– Para ver você tem que olhar, e você não
olhou. A fenda existe, é materialmente impossível que ela não exista, ao
longo do ladrilho, contra a massa… na vertical, claro…

A contagem se levantou. Ele parecia muito
animado. Ele caminhou pelo salão duas ou três vezes com um passo nervoso
e, se aproximando de Floriani:

– Nada mudou desde aquele dia… ninguém pôs os pés
neste escritório.

– Nesse caso, senhor, pode certificar-se de que a
minha explicação está de acordo com a realidade.

– Não concorda com nenhum dos fatos apontados pela
justiça. Você não viu nada, você não sabe de nada, e você vai contra
issode tudo o que vimos e de tudo o que sabemos.

Floriani não pareceu notar a irritação do conde e
disse com um sorriso:

– Meu Deus, senhor, estou tentando ver com clareza,
só isso. Se eu estiver errado, prove que estou errado.

– Sem mais delongas… Admito que, a longo prazo,
seu seguro…

O Sr. de Dreux murmurou mais algumas palavras e, de
repente, foi até a porta e saiu.

Nenhuma palavra foi dita. Esperamos ansiosos,
como se realmente alguma parte da verdade estivesse para aparecer. E o
silêncio era extremamente sério.

Finalmente, o conde apareceu na porta. Ele
estava pálido e extremamente agitado. Ele disse a seus amigos com a voz trêmula:

– Me desculpe… As revelações de Monsieur são tão
imprevistas… Eu nunca teria pensado…

Sua esposa perguntou-lhe ansiosamente:

– Fale… eu te imploro… o que é?

Ele gaguejou:

– A fenda existe… exatamente no local indicado…
ao longo do ladrilho…

Abruptamente, ele agarrou o braço do cavaleiro e
disse imperiosamente:

– E agora, senhor, continue… eu admito que você
está certo até agora, mas agora… não acabou… responda… o que aconteceu de
acordo com você?

Floriani se afastou lentamente e depois de um
momento disse:

– Bem, na minha opinião, foi isso que
aconteceu. O indivíduo, sabendo que M me de
Dreux ia ao baile com a coleira, jogou sua ponte durante sua
ausência. Pela janela ele te observou e te viu escondendo a
joia. Assim que você saiu, ele cortou a janela e puxou o anel.

– Tudo bem, mas a distância é muito grande para ele
ter alcançado a maçaneta da janela pela claraboia.

– Se ele não conseguiu abrir é porque entrou pela
própria clarabóia.

– Impossível; não há homem magro o suficiente
para entrar por ali.

– Então ele não é um homem.

– Como? ”Ou“ O quê!

– Certamente. Se a passagem for estreita
demais para um homem, deve ser uma criança.

– Uma criança!

– Você não me disse que sua amiga Henriette tinha
um filho!

– De fato… um filho chamado Raoul.

– É infinitamente provável que tenha sido esse
Raoul quem cometeu o roubo.

– Que prova você tem?

– Que prova!… provas não faltam… Então por
exemplo…

Ele ficou em silêncio e pensou por alguns
segundos. Então ele continuou:

– Então, por exemplo, essa passarela, não dá para
acreditar que a criança trouxe de fora e ganhou sem a gente perceber. Ele
deve ter usado o que estava disponível para ele. No cubículo onde
Henriette cozinhava, havia, não havia prateleiras penduradas na parede onde as
panelas eram colocadas?

– Dois comprimidos, tanto quanto me lembro.

– Deve-se verificar se essas tábuas estão realmente
fixadas nas ripas de madeira que as sustentam. Do contrário, poderíamos
pensar que a criança os libertou e depois os ligou um ao outro. Talvez
também, como havia um fogão, encontrássemos o gancho de fogão que ele deve ter
usado para abrir a claraboia.

Sem dizer uma palavra, o conde foi embora, e desta
vez os assistentes nem sentiram a pequena ansiedade do estranho que sentiram da
primeira vez. Eles sabiam, eles sabiam absolutamente, que as previsões de
Florianieram justos. Dele emanava a impressão de uma certeza tão rigorosa
que era ouvido não como se deduzisse fatos um do outro, mas como se estivesse
relatando fatos que eram fáceis de verificar à medida que avançavam.

E ninguém se surpreendeu quando, em seu retorno, o
conde declarou:

– É mesmo a criança, é mesmo ele, tudo atesta.

– Você viu as tábuas… o gancho?

– Eu vi… as tábuas foram desfeitas… o gancho ainda
está aí.

Mas M me de Dreux-Soubise
exclamou:

– É ele… Você quer dizer que é a mãe
dele. Henriette é a única culpada. Ela terá agradecido seu filho…

– Não, afirmou o cavaleiro, a mãe não tem nada a
ver com isso.

– Vamos! eles viviam no mesmo quarto, a criança não
poderia ter agido sem o conhecimento de Henriette.

– Moravam no mesmo quarto, mas tudo acontecia no
quarto ao lado, à noite, enquanto a mãe dormia.

– E o colar? disse o conde, teria sido
encontrado nos assuntos da criança.

– Desculpe! ele estava saindo. Na mesma manhã
você o pegou na frente de sua mesa de jantar trabalho, ele veio da escola,
e talvez a justiça, em vez de esgotar seus recursos contra a mãe inocente, se
inspirasse melhor procurando ali, na carteira da criança, entre seus livros de
aula.

– Tudo bem, mas esses dois mil francos que
Henriette recebe todos os anos, não é o melhor sinal da cumplicidade dela?

– Cúmplice, ela teria agradecido por esse
dinheiro? E então, eles não estavam olhando para ela? Enquanto a
criança está livre, ela tem todas as facilidades para correr até a cidade
vizinha, falar com qualquer traficante e dar a ela um diamante, dois diamantes,
dependendo do caso… sob o único. Na condição de que o dinheiro seja enviado
de Paris, pelo que começaremos de novo no ano seguinte.

 

Uma inquietação indefinível oprimia os
Dreux-Soubises e seus convidados. Havia realmente no tom de Floriani, na
sua atitude, algo mais que essa certeza que, desde o início, tanto incomodava o
conde. Havia algo de irônico, e uma ironia que parecia mais hostil do que
simpática e amigável, como ele gostaria.

A contagem fingiu rir.

– Tudo isso é de um engenhoso encantado, meus
cumprimentos. Que imaginação brilhante!

– Não, não, gritou Floriani com mais gravidade, não
imagino, estou evocando circunstâncias que foram inevitavelmente como eu as
mostro.

– Como você sabe?

– O que você mesmo me disse. Imagino a vida da
mãe e do filho, ali, no fundo da província, a mãe que adoece, os truques e as
invenções do pequenino para vender as joias e salvar a mãe ou pelo menos
amolecer a sua. últimos momentos. O mal vence. Ela morre. Os
anos passam. A criança cresce, torna-se homem. E então – e por agora,
quero admitir que minha imaginação está dando rédea solta – suponha que este
homem sinta a necessidade de voltar aos lugares onde viveu sua infância, que os
veja novamente, que encontre aqueles que suspeitou, acusou a mãe… você acha
do interesse pungente de tal entrevista na velha casa onde as vicissitudes do
drama ocorreram?

Suas palavras ecoaram alguns segundos em silêncio
ansioso, e na cara do Sr. e M me Dreux, ler um
esforço desesperado para entender, juntamente com o medo, a ansiedade de
entender. O conde sussurrou:

– Quem é você então, senhor?

– Eu? mas o Chevalier Floriani, que você conheceu
em Palermo, e que você teve a gentileza de convidar várias vezes para sua casa.

– Então o que essa história significa?

– Oh! mas absolutamente nada! É um jogo simples da
minha parte. Estou tentando imaginar a alegria que o filho de Henriette,
se ainda existe, teria para dizer a vocês que ele era o único culpado, e que
era porque sua mãe estava infeliz, à beira da morte. De perder o lugar de …
Serva em que vivia e porque a criança sofria por ver a mãe infeliz.

Ele falou com emoção contida, meio levantado e
inclinado para a condessa. Nenhuma dúvida poderia
permanecer. Chevalier Floriani não era outro senão filho de
Henriette. Tudo, em sua atitude, em suas palavras, o proclamou. Além
disso, não era sua intenção óbvia, seu próprio desejo de ser reconhecido como
tal?

 

O conde hesitou. Que comportamento ele teria
em relação ao personagem ousado? Anel? Causar escândalo? Desmascarar
aquele que o despiu uma vez? Mas foi há muito tempo! E quem iria querer
admitir essa história absurda de uma criança culpada? Não foi melhor aceitar
a situação, fingindo não compreender seu verdadeiro significado. E o
conde, aproximando-se de Floriani, exclamou alegremente:

– Muito engraçado, muito curioso, o seu
romance. Juro para você que me fascina. Mas, na sua opinião, o que
aconteceu com esse bom rapaz, esse modelo de filhos? Espero que ele não
tenha parado por aí.

– Oh! claro que não.

– Não é! Depois de tal começo! Pegue o Colar da
Rainha às seis, o famoso colar que Maria Antonieta cobiçava!

“ E pega ”, observou Floriani, prestando-se ao
jogo do conde, “ pega sem lhe custar o mínimo inconveniente, sem que ninguém
tenha a ideia de examinar o estado dos ladrilhos ou de perceber que o parapeito
da janela está limpo demais, essa saliência que ele limpou para apagar os
vestígios de sua passagem na poeira densa… Admita que havia algo para virar a
cabeça de um garoto da sua idade. Então é tão fácil? Então tudo que
você tem a fazer é querer e estender a mão?… Fé, ele queria…

– E ele estendeu a mão.

“Ambas as mãos”, continuou o cavaleiro,
rindo.

Houve um arrepio. Que mistério estava
escondendo a vida desse chamado Floriani? Quão extraordinária deve ter
sido a existência deste aventureiro, ladrão brilhante aos seis anos de
idade, e que, hoje, pelo requinte de um diletante em busca de emoção, ou no
máximo para satisfazer um sentimento de ressentimento, chegou a desafiar sua
vítima em casa, ousada, louca, e ainda assim com toda a correção de um galante
visitante!

Ele se levantou e se aproximou da condessa para se
despedir. Ela reprimiu um recuo. Ele sorri.

– Oh! Senhora, você está com medo! Então, eu teria
levado minha pequena comédia mágica de salão longe demais!

Ela se controlou e respondeu com a mesma leviandade
zombeteira:

– Nem um pouco, senhor. Pelo contrário, a
lenda deste bom filho me interessou muito, e fico feliz que meu colar tenha
sido a ocasião de um destino tão brilhante. Mas não achas que o filho
desta… mulher, desta Henriette, obedeceu sobretudo à sua vocação?

Ele começou, sentindo o ponto, e respondeu:

– Estou convencido disso, e foi preciso até que
essa vocação fosse séria para que a criança não se rejeitasse.

– E como?

– Mas sim, você sabe, a maioria das pedras eram
falsas. Havia apenas alguns diamantes reais comprados do joalheiro inglês,
tendo os outros sido vendidos um a um de acordo com as duras necessidades da vida.

“Ainda era o colar da rainha, monsieur”,
disse a condessa com altivez, “e isso, me parece, é o que o filho de
Henriette não conseguia entender.

– Ele deve ter entendido, senhora, que, falso ou
verdadeiro, o colar era antes de tudo um objeto de desfile, um sinal.

M. de Dreux fez um gesto. Sua esposa o avisou
imediatamente.

– Senhor, disse ela, se o homem a que se refere tem
a menor modéstia…

Ela fez uma pausa, intimidada pelo olhar calmo de
Floriani.

Ele repetiu:

– Se este homem tiver a menor modéstia…

Ela sentiu que não ganharia nada falando com ele
assim, e apesar de si mesma, apesar de sua raiva e sua indignação, todos
tremendo de orgulho humilhado, ela disse a ele quase educadamente:

– Senhor, diz a lenda que Rétaux de Villette,
quando tinha o Colar da Rainha nas mãos e explodiu todos os diamantes com
Jeanne de Valois, não se atreveu a tocar no engaste. Ele entendeu que os
diamantes eram apenas o ornamento, apenas o acessório, mas que o cenário era a
obra essencial, a própria criação do artista, e elerespeitado. Você acha
que este homem também entendeu?

– Não tenho dúvidas de que o monte existe. A
criança a respeitou.

– Bem, senhor, se por acaso o conhecer, dirá que
está guardando injustamente uma daquelas relíquias que são propriedade e glória
de certas famílias, e que foi capaz de arrancar as pedras sem o Colar da Rainha
deixou de pertencer à casa de Dreux-Soubise. Pertence a nós como nosso
nome, como nossa honra.

O cavaleiro respondeu simplesmente:

– Eu direi a ele, Madame.

Ele curvou-se para ela, curvou-se para o conde,
curvou-se um após o outro para todos os assistentes e saiu.

 

 

Quatro dias depois, M me de
Dreux estava sobre a mesa de seu quarto exuberante de couro vermelho com os
braços do cardeal. Ela abriu. Era o colar da escravidão da rainha.

 

Mas, uma vez que todas as coisas devem, na vida de
um homem preocupado com a unidade e a lógica, trabalhar para o mesmo fim – e um
pouco de publicidade nunca é prejudicial – no dia seguinte o Echo
de France
 publicou estas linhas sensacionais:

“O Colar da Rainha, a famosa joia histórica roubada
da família Dreux-Soubise, foi encontrado por Arsène Lupin. Arsène Lupin se
apressou em devolvê-lo aos seus legítimos proprietários. Só podemos
aplaudir essa atenção delicada e cavalheiresca.”

 



OS SETE DE COPAS


nenhuma dúvida surge, e muitas
vezes foi perguntado:

– Como eu conheci Arsène Lupin?

Ninguém duvida que eu o conheço. Os detalhes
que acumulo sobre este homem desconcertante, os fatos irrefutáveis
​​que exponho, as novas provas
que trago, a interpreta
ção que dou de certos atos dos
quais só se vira as manifestações externas sem penetrar nas razões secretas ou
no mecanismo invisível, tudo isso prova bem, senão uma intimidade, que a
própria existência de Lupin tornaria impossível, pelo menos relações amistosas
e confidências constantes.

Mas como eu o conheci? De onde vem o favor de
ser seu historiógrafo? Por que eu e não outro?

A resposta é fácil: só o acaso presidiu a uma
escolha da qual meu mérito nada tem a ver. Foi o acaso que me colocou no
caminho dele. Por acaso me envolvi em uma de suas mais estranhas e
misteriosas aventuras, enfim por acaso fui ator de um drama do qual ele foi o
maravilhoso diretor, um drama sombrio e complexo, repleto de aventuras que
sinto. certo constrangimento na hora de contar a história.

O primeiro ato acontece nesta famosa noite de 22 a
23 de junho, sobre a qual tanto falamos. E, de minha parte, digamos logo,
atribuo o comportamento bastante anormal que tive na ocasião, ao estado de
espírito muito especial em que me encontrava ao voltar para casa. Jantamos
com amigos no restaurante Cascade e, durante toda a noite, enquanto fumamos e a
orquestra cigana tocava valsas melancólicas, só conversamos sobre crimes e
furtos, intrigas assustadoras e trevas. Esta é sempre uma preparação
inadequada para o sono.

O Saint-Martins foi embora. Jean Daspry, –
este Daspry encantador e despreocupado que, seis meses depois, seria
tragicamente morto na fronteira com o Marrocos, – Jean Daspry e eu voltamos a
pé pela noite escura e quente. Quando nós estávamosChegando em frente ao
pequeno hotel que morei por um ano em Neuilly, no Boulevard Maillot, ele me
disse:

– Você nunca está com medo?

– Que ideia !

– Senhora, este pavilhão é tão isolado! sem
vizinhos… lotes vagos… É verdade, não sou um covarde, e ainda…

– Bem, você é gay!

– Oh! Digo isso como diria outra coisa. Os
Saint-Martins me impressionaram com suas histórias de bandidos.

Apertando minha mão, ele se afastou. Peguei
minha chave e abri.

– Vamos lá! bem, sussurrei, Antoine se esqueceu de
acender uma vela para mim.

E de repente me lembrei: Antoine estava ausente, eu
havia dado licença a ele.

Imediatamente a sombra e o silêncio foram
desagradáveis
​​para mim. Subi às apalpadelas até meu quarto, o mais rápido possível, e imediatamente, ao contrário do meu hábito, girei a
chave e empurrei a fechadura.

A chama da vela restaurou minha compostura. No
entanto, tive o cuidado de tirar meu revólver da bainha, um revólver grande e
de longo alcance, e o coloquei ao lado da minha cama. Essa precaução
completou minha garantia. Fui para a cama e, como sempre, para adormecer,
tomeicriado-mudo o livro que lá me esperava todas as noites.

Fiquei muito surpreso. No lugar do abridor de
cartas com que o marquei no dia anterior, havia um envelope lacrado com cinco
selos de cera vermelha. Eu agarrei ansiosamente. Tinha meu nome e
sobrenome como endereço, acompanhados da menção: “Urgente”.

Uma letra! uma carta em meu nome! quem poderia ter
colocado lá? Um pouco nervoso, rasguei o envelope e li:

“A partir do momento que você
abre esta carta, aconteça o que acontecer, seja o que for que você ouça, não se
mexa, não faça um gesto, não grite. Caso contrário, você está perdido.”

Também não sou covarde e, tão bem como qualquer
outro, sei enfrentar o perigo real ou sorrir dos perigos quiméricos que
assustam a nossa imaginação. Mas, repito, eu estava em um estado de
espírito anormal, mais facilmente impressionável, meus nervos à flor da
pele. E, além disso, não havia algo de perturbador e inexplicável em tudo
isso que teria abalado a alma dos mais intrépidos?

Meus dedos agarraram a folha de papel febrilmente,
e meus olhos releram as frases ameaçadoras uma e outra vez… “Não faça um
gesto… não grite… senão você está perdido…” Vamos! Eu pensei,
isso é uma piada, uma brincadeira tola.

Eu estava prestes a rir, até eu queria rir
alto. Quem me impediu? Que medo indeciso apertou minha garganta?

Pelo menos eu apagaria a vela. Não, eu não
poderia apagá-lo. “Nenhum gesto, ou você está perdido”, estava
escrito.

Mas por que lutar contra esse tipo de autossugestão,
muitas vezes mais convincente do que os fatos mais precisos? Você só tinha
que fechar os olhos. Eu fechei meus olhos.

Ao mesmo tempo, um leve ruído passou no silêncio e
depois estalou. E isso vinha, parecia-me, de uma grande sala contígua onde
eu havia montado meu escritório e da qual estava separado apenas pela antessala.

A aproximação do perigo real me excitou demais, e
eu tive a sensação de que iria me levantar, pegar minha arma e correr para esta
sala. Não me levantei: à minha frente, uma das cortinas da janela da
esquerda havia se movido.

A dúvida não era possível: ele havia se
mexido. Ele ainda estava se movendo! E eu vivo – oh! Eu vi claramente –
que havia entre as cortinas e a janela, neste espaço muito estreito, uma forma
humana cuja espessura impedia o material de cair em linha reta.

E o ser também me viu, tinha certeza que me
viu através dos pontos muito largos do material. Então eu entendi
tudo. Enquanto os outros carregavam seu saque, sua missão era me manter à
distância. Levantar? Pega uma arma? Impossível… ele estava lá! ao
menor gesto, ao menor grito, eu estava perdido.

Um golpe violento sacudiu a casa, seguidos de
pequenos golpes agrupados por dois ou três, como os de um martelo que bate nas
pontas e que ricocheteia. Ou pelo menos foi o que imaginei, na confusão do
meu cérebro. E outros ruídos se entrecruzavam, um verdadeiro alvoroço que
provava que não nos atrapalhamos e que agíamos em total segurança.

Estávamos certos: não me mexi. Foi
covardia? Não, ao invés disso, aniquilação, total incapacidade de mover um
único dos meus membros. Sabedoria também, porque afinal, por que
lutar? Atrás deste homem, havia dez outros que atenderiam a sua
chamada. Eu arriscaria minha vida para salvar algumas tapeçarias e
bugigangas?

E essa tortura durou a noite toda. Tortura
insuportável, terrível angústia! O barulho havia parado, mas fiquei
esperando
 que começasse de novo. E o homem! o homem que me
observava, arma na mão! Meu olhar assustado nunca o deixou. E meu coração
estava batendo! e algunso suor escorria da minha testa e por todo o meu corpo!

E de repente um bem-estar inexprimível tomou conta
de mim: uma carruagem de leiteiro, cujo rolar eu bem conhecia, passou no
bulevar, e ao mesmo tempo tive a impressão de que a madrugada se deslizava
entre as venezianas fechadas e que um pouco de luz do dia lá fora misturado com
a sombra.

E a luz do dia entrou na sala. E outros carros
passaram. E todos os fantasmas da noite desapareceram.

Então, puxei um braço para fora da cama, lenta e
maliciosamente. Do lado oposto, nada se mexeu. Marquei com os olhos a
dobra da cortina, o lugar preciso para mirar, fiz a contagem exata dos
movimentos que precisava executar e, rapidamente, peguei meu revólver e
disparei.

Pulei da cama com um grito de libertação e pulei
para a cortina. O tecido foi perfurado, a janela foi
perfurada. Quanto ao homem, não consegui alcançá-lo… pela boa razão de
que não havia ninguém ali.

Qualquer pessoa! Então, durante toda a noite,
fiquei hipnotizado por uma dobra da cortina! E durante esse tempo, bandidos… Furiosos,
com um impulso de que nada havia parado, girei a chave na fechadura, abri a
porta, atravessei a ante-sala, abri outra porta e entrei correndo no quarto.

Mas um estupor me prendeu na soleira, ofegante,
atordoado, ainda mais espantado do que eu havia ficado com a ausência do homem:
nada havia desaparecido. Todas as coisas que presumi terem removido,
móveis, quadros, veludos e sedas velhas, todas essas coisas estavam em seus
lugares!

Espetáculo incompreensível! Eu não podia acreditar
no que meus olhos estavam vendo! Ainda assim, esse barulho, esses ruídos de
movimento… Andei pela sala, examinei as paredes, fiz um inventário de todos
esses objetos que conhecia tão bem. Não faltou nada! E o que mais me
deixou perplexo é que nada revelava a passagem dos malfeitores tampouco,
nenhuma pista, nenhuma cadeira mexida, nenhum vestígio de passos.

– Vamos, vamos, disse a mim mesmo, segurando com as
duas mãos a cabeça, não sou, porém, um louco! Ouvi! …

Centímetro por centímetro, com os procedimentos de
investigação mais cuidadosos, examinei a sala. Foi em vão. Ou melhor…
mas será que posso interpretar isso como uma descoberta? Debaixo de um
pequeno tapete persa, jogado no chão, peguei uma carta, uma carta de
baralho. Era um sete de copas, como todos os sete de copas nos jogos de
cartas franceses, mas que me chamou a atenção com um detalhe bastante
curioso. O ponto final de cada uma das sete marcas vermelhas em forma de
coração foi perfurado com um orifício, o orifício redondo eregular que o fim de
um soco teria feito.

Isso é tudo. Um cartão e uma carta encontrados
em um livro. Fora isso, nada. Isso era o suficiente para dizer que eu
não tinha sido o brinquedo de um sonho?

 

 

Durante todo o dia, continuei minhas pesquisas na
sala de estar. Era uma sala grande, desproporcional à pequenez do hotel, e
a ornamentação que atestava o gosto bizarro do homem que a projetou. O
parquete era formado por um mosaico de pequenas pedras multicoloridas, formando
grandes desenhos simétricos. O mesmo mosaico cobria as paredes, dispostas
em painéis, alegorias de Pompeia, composições bizantinas, afrescos da Idade
Média. Um Baco estava andando em um barril. Um imperador de coroa dourada,
com uma barba florida, segurava uma espada na mão direita.

No topo, um pouco como uma oficina, destacava-se a
única e grande janela. Estando esta janela sempre aberta à noite, era
provável que os homens tivessem passado por ali, usando uma escada. Mas,
aqui novamente, nenhuma certeza. Os montantes da escada deviam ter deixado
rastros no terreno batido do pátio: não havia nenhum. A grama do deserto
quecercando o hotel deveria ter sido pisado recentemente: não foi.

Confesso que não tinha ideia de ir à polícia, de
tão incoerentes e absurdos os fatos que tive que expor. Eles teriam rido
de mim. Mas, dois dias depois, era meu dia de coluna no Gil Blas,
onde eu escrevia na época. Obcecado pela minha aventura, contei-a o tempo
todo.

O artigo não passou despercebido, mas vi que
dificilmente era levado a sério e que era considerado mais uma fantasia do que
uma história real. O Saint-Martins zombou de mim. Daspry, porém, que
não faltava um certo talento nessas questões, veio me ver, teve o caso
explicado e estudou… sem muito sucesso, aliás.

No entanto, em uma das manhãs seguintes, os sinos
do portão tocaram e Antoine veio me dizer que um cavalheiro queria falar
comigo. Ele não quis dar seu nome. Eu implorei para ele subir.

Era um homem de cerca de quarenta anos, muito
moreno, de rosto enérgico, e cujas roupas limpas mas gastas indicavam uma
preocupação com a elegância que contrastava com os seus modos um tanto
vulgares.

Sem preâmbulos, ele me disse – em voz rouca, com
sotaques que confirmavam a situação social do indivíduo:

– Senhor, durante uma viagem, em um café, o Gil
Blas
 caiu sob meus olhos. Eu li seu artigo. Ele me
interessou… muito.

– Obrigada.

– E eu voltei.

– Ah!

– Sim, para falar com você. Todos os fatos que
você relatou estão corretos?

– Absolutamente correto.

– Não existe um único de sua invenção?

– Nenhum.

– Nesse caso, posso ter algumas informações para
lhe dar.

– Estou te ouvindo.

– Não.

– Como não?

– Antes de falar, devo verificar se eles são
justos.

– E para verificá-los?

– Devo ficar sozinho neste quarto.

Eu olhei para ele com surpresa.

– Não consigo ver muito bem…

– É uma ideia que tive ao ler o seu
artigo. Certos detalhes estabelecem uma coincidência verdadeiramente
extraordinária com outra aventura que o acaso me revelou. Se eu estava
errado, é melhor ficar em silêncio. E a única maneira de descobrir é se eu
ficar sozinho…

O que havia sob esta proposta? Mais tarde
lembrei que ao formulá-lo o homem parecia preocupado, expressão de fisionomia
ansiosa. Mas na época, embora um pouco surpreso, não achei nada de
particularmente anormal em seu pedido. E então essa curiosidade
me estimulou!

Eu respondi:

– Aquilo é. Quanto tempo você precisa?

– Oh! três minutos, não mais. Em três minutos,
te encontro.

Saí da sala. Lá embaixo, peguei meu
relógio. Um minuto se passou. Dois minutos… por que me senti
oprimido? Por que esses momentos pareciam mais solenes para mim do que
outros?

Dois minutos e meio… Dois minutos e meio… E de
repente um tiro foi disparado.

Em poucos passos, subi os degraus e entrei. Um
grito de horror me escapou.

No meio da sala, o homem jazia imóvel, deitado
sobre o lado esquerdo. O sangue escorria de seu crânio, misturado com
restos cerebrais. Perto de seu punho, uma arma fumegante.

Uma convulsão o agitou, e isso foi tudo.

Mas ainda mais do que este espetáculo horrível,
algo me atingiu, algo que me fez não pedir socorro imediatamente, e que não me
joguei de joelhos para ver se o homem estava respirando. A dois
passos dele, no chão, havia um sete de copas!

Eu peguei. As sete pontas das sete marcas
vermelhas foram perfuradas com um buraco…

 

 

Meia hora depois, chegou o comissário de polícia de
Neuilly, depois o médico legista, depois o chefe da Sûreté, M.
Dudouis. Tive o cuidado de não tocar no cadáver. Nada poderia
distorcer as primeiras observações.

Foram breves, ainda mais breves porque a princípio
nada foi descoberto, ou muito pouco. Nos bolsos do morto não há papel, nas
roupas não há nome, no linho não há iniciais. Em suma, nenhuma pista capaz
de estabelecer sua identidade. E na sala na mesma ordem de antes. Os
móveis não foram mexidos e os objetos mantiveram sua antiga posição. No
entanto, esse homem não tinha vindo a minha casa com a única intenção de se
matar, e porque julgou que meu domicílio era mais adequado do que qualquer
outro para seu suicídio! Era necessário que um motivo o tivesse determinado a
este ato de desespero, e que esse próprio motivo resultasse de um fato novo,
por ele observado durante os três minutos que passou sozinho.

Que fato? O que ele viu? O que ele
surpreendeu?Que segredo terrível ele havia descoberto? Nenhuma suposição
foi permitida.

Mas, no último momento, ocorreu um incidente que
nos pareceu de considerável interesse. Quando dois policiais se abaixaram
para levantar o cadáver e carregá-lo em uma maca, notaram que a mão esquerda,
até então fechada e cerrada, havia relaxado e que um cartão de visita amassado
escapou.

Este cartão trazia: Georges Andermatt, rue de
Berry, 37.

O que isso significa? Georges Andermatt foi um
grande banqueiro parisiense, fundador e presidente do Comptoir des Métaux que
deu tanto ímpeto às indústrias metalúrgicas na França. Ele estava no banco
do motorista, possuindo uma carruagem do correio, carros e um estábulo de
corrida. As reuniões foram bem atendidas e foi citada M me Andermatt
por sua graça e beleza.

– Será esse o nome do falecido? Eu sussurrei.

O chefe da segurança se inclinou para a frente.

– Não é ele. O Sr. Andermatt é um homem
pálido, um tanto grisalho.

– Mas então por que esse cartão?

– Você está com o telefone, senhor?

– Sim, no corredor. Se você vier comigo.

Ele olhou na lista telefônica e pediu 415,21.

– O Sr. Andermatt está em casa? – Por
favordiga-lhe que o Sr. Dudouis está pedindo-lhe que venha apressadamente ao
Boulevard Maillot, número 102. É urgente.

Vinte minutos depois, o Sr. Andermatt saiu do
carro. Explicaram-lhe os motivos que exigiram a sua intervenção e, a
seguir, conduziram-no até à frente do cadáver.

Ele teve um segundo de emoção que contraiu seu
rosto, e disse em voz baixa, como se falasse contra si mesmo:

– Étienne Varin.

– Você conhecia ele?

– Não… ou pelo menos sim… mas apenas à
vista. Seu irmão…

– Ele tem um irmão?

– Sim, Alfred Varin… O irmão dele uma vez veio me
perguntar… não sei sobre o quê…

– Onde ele mora?

– Os dois irmãos moravam juntos… rue de Provence,
eu acho.

– E você não suspeita do motivo pelo qual este se
matou?

– De jeito nenhum.

– Mas esse cartão que ele segurava?… Seu cartão
com seu endereço!

– Eu não entendo nada. Obviamente, trata-se
apenas de uma coincidência que a instrução nos explicará.

De qualquer forma, uma curiosa coincidência, pensei
e senti que todos tínhamos o mesmo sentimento.

Essa impressão eu encontrei nos jornais no dia
seguinte, e em todos os meus amigos com quem conversei sobre a
aventura. Em meio aos mistérios que a complicavam, depois da dupla
descoberta, tão desconcertante, desse sete de corações sete vezes trespassados,
depois de dois acontecimentos tão enigmáticos quanto um do outro dos quais
minha casa tinha sido o teatro, este cartão de visitas parecia finalmente
prometa alguma luz. Por meio dela chegaríamos à verdade.

Mas, ao contrário das previsões, Andermatt não dá
nenhuma indicação.

– Eu disse o que sabia, ele repetiu. O que
mais queremos? Eu sou o primeiro surpreso que este mapa tenha sido
encontrado lá, e estou esperando como todos os outros que este ponto seja
esclarecido.

Ele não era. A investigação apurou que os
irmãos Varin, de origem suíça, levaram, sob nomes diferentes, uma vida muito
agitada, frequentando casas de jogo, em contato com todo um bando de
estrangeiros de quem a polícia cuidava e que se dispersaram após uma série de
assaltos em que sua participação só foi estabelecida mais tarde. No número
24 da rue de Provence, onde os irmãos Varinde fato, habitados seis anos antes,
não sabíamos o que havia acontecido com eles.

Confesso que, de minha parte, esse caso me pareceu
tão confuso que mal acreditei na possibilidade de uma solução e que tentei não
pensar mais nisso. Mas Jean Daspry, ao contrário, que eu via muito naquela
época, ficava mais apaixonado a cada dia.

Foi ele quem me informou deste eco de um jornal
estrangeiro que toda a imprensa reproduziu e comentou:

“Vamos prosseguir na presença do imperador, e num
local que guardaremos em segredo até ao último minuto, as primeiras provas de
um submarino que deverá revolucionar as futuras condições da guerra
naval. Uma indiscrição revelou-nos o seu nome: chama-se Le
Sept-de-cœur
.”

Os Sete de Corações! foi um encontro
casual? ou deveria haver uma ligação entre o nome deste submarino e os
incidentes que estamos discutindo? Mas um link de que tipo? O que
estava acontecendo aqui não podia se relacionar com o que estava acontecendo
lá.

– Como você sabe? Daspry me contou. Os
efeitos mais díspares geralmente vêm de uma única causa.

Dois dias depois, outro eco chegou até nós:

“Afirma-se que os planos do Sept-de-Cœur,
o submarino cujas experiências ocorrerão em breve, foram executados por
engenheiros franceses. Esses engenheiros, tendo solicitado sem sucesso o
apoio de seus compatriotas, então se voltaram para o Almirantado Inglês, sem
mais sucesso. Damos esta notícia com reserva.”

Não me atrevo a insistir muito em factos de
natureza extremamente delicada e que provocaram, recordar-se-á, tão grande
emoção. Porém, como todo o perigo de complicação foi eliminado, devo falar
do artigo do Echo de France, que então fez tanto barulho, e que
lançou sobre o caso dos Sete de corações, como foi chamado., Algumas claridades…
confuso.

Aqui está, como apareceu
sob a assinatura de Salvator:

O Caso Sete de
Coração. Uma ponta do véu se ergueu.

“Seremos breves. Dez anos atrás, um jovem
engenheiro de minas, Louis Lacombe, ansioso para devotar seu tempo e sua
fortuna aos estudos que estava cursando, pediu demissão e alugou, no número 102
do Boulevard Maillot, um pequeno hotel que o conde italiano havia construído e
decorado recentemente. Por meio de dois indivíduos, os irmãos Varin, de
Lausanne,um dos quais o ajudava nas experiências como preparador e o outro
procurava patrocinadores, estabeleceu relações com H. Georges Andermatt, que
acabava de fundar o Comptoir des Métaux.

“Depois de várias entrevistas ele conseguiu
interessá-lo por um projeto de submarino no qual estava trabalhando, e ficou
claro que, assim que a invenção fosse finalizada, o Sr. Andermatt usaria sua
influência para obter do ministério da Marinha uma série de ensaios.

“Durante dois anos, Louis Lacombe frequentou
assiduamente o hotel Andermatt e submeteu ao banqueiro as melhorias que fez no
seu projeto, até o dia em que, ele mesmo satisfeito com o trabalho, encontrando
a fórmula definitiva que procurava, implorou ao Sr. Andermatt para assumir a
campanha.

“Naquele dia, Louis Lacombe jantou com a família
Andermatt. Ele saiu à noite por volta das onze e meia. Não o vimos
desde então.

“Ao reler os jornais da época, veríamos que a
família do jovem ia a tribunal e que a acusação estava preocupada. Mas
nenhuma certeza foi alcançada, e era geralmente admitido que Louis Lacombe, que
se passava por um menino original e fantasioso, tinha feito uma viagem sem
avisar ninguém.

“Vamos aceitar esta hipótese… improvável. Mas
surge uma pergunta, capital do nosso país: o que aconteceu com os planos do
submarino? Louis Lacombe os venceu? Eles estão destruídos?

“Pela investigação muito séria que realizamos,
parece que esses planos existem. Os irmãos Varin os tinham nas
mãos. Como? ”Ou“ O quê? Ainda não conseguimos estabelecer isso, nem
sabemos por que eles não tentaram vendê-los antes. Eles ficaram
preocupados com a possibilidade de serem questionados sobre como os
conseguiram? Em todo o caso, este temor não persistiu, e podemos afirmar
com segurança: os planos de Louis Lacombe são propriedade de uma potência
estrangeira e podemos publicar a correspondência trocada sobre este assunto
entre os irmãos. Varin e o representante deste. potência. Atualmente
Sept-de-cœur imaginada por Louis Lacombe é produzida por
nossos vizinhos.

“Será que a realidade vai ao encontro das
previsões otimistas daqueles que se envolveram nesta traição?” Para
esperar o contrário, temos motivos que o acontecimento, gostaríamos de
acreditar, não nos enganará.”

E um postscript adicionado:

” Última hora. – Tínhamos
esperança. Nossas informações específicas nos permitem anunciar que os
testes do Sete de copas não foram satisfatórios. É bem
provável que os planos entregues pelos irmãos Varin carecessem do último documento
trazido por Louis Lacombe ao senhor Andermatt na noite de seu desaparecimento,
documento essencial para a compreensão total do projeto, espécie de resumo em
que encontramos as conclusões, avaliações e mensurações finais contidas nos
demais artigos. Sem este documento, os planos são imperfeitos; assim
como, sem os planos, o documento é inútil.

“Então ainda dá tempo de agir e retomar o que é
nosso. Para esta tarefa tão difícil, contamos muito com a ajuda de M.
Andermatt. Ele fará questão de explicar o comportamento inexplicável que
teve desde o início. Ele dirá não apenas por que não contou o que sabia na
época do suicídio de Etienne Varin, mas também por que nunca revelou o
desaparecimento dos papéis de que tinha conhecimento. Ele dirá por que,
por seis anos, ele fez com que os irmãos Varin fossem vigiados por agentes sob
seu pagamento.

“ Esperamos dele, não palavras, mas
ações. De outra forma… “

A ameaça foi brutal. Mas o que foi? Que
meios de intimidação Salvator, o… autor anônimo do artigo, usou contra o Sr.
Andermatt?

Um enxame de repórteres atacou o banqueiro e dez
entrevistas expressaram o desdém com que ele respondeu a este aviso. Em
que, o correspondente do Echo de France retaliou por estas
três linhas:

“Quer o Sr. Andermatt goste ou não, ele já é nosso colaborador no
trabalho que estamos realizando.”

 

 

No dia em que essa linha apareceu, Daspry e eu
jantamos juntos. À noite, com os jornais espalhados sobre a minha mesa,
discutimos o assunto e o examinamos em todos os seus aspectos com aquela
irritação que se experimenta caminhando indefinidamente nas sombras e sempre
nos deparamos com os mesmos obstáculos.

E de repente, sem meu criado me avisar, sem a
campainha tocar, a porta se abriu e uma senhora entrou, coberta por um véu
espesso.

Eu me levantei imediatamente e caminhei para
frente. Ela me disse :

– É você, senhor, que mora aqui?

– Sim, senhora, mas eu confesso…

“O portão da avenida não estava fechado”,
explicou ela.

– Mas a porta do corredor?

Ela não respondeu, e eu pensei que ela
tinha teve que dar a volta pelas escadas dos fundos. Ela conhecia o caminho?

Houve um silêncio um tanto constrangedor. Ela
olhou para Daspry. Apesar de tudo, como faria em uma sala de estar,
apresentei-o. Então, implorei a ela que se sentasse e me explicasse o
propósito de sua visita.

Ela tirou o véu e vi que era morena, de rosto
normal, e, se não muito bonita, pelo menos de um encanto infinito, que vinha
principalmente de seus olhos, dos olhos sérios e doloridos.

Ela simplesmente diz:

– I M me Andermatt.

– Sra. Andermatt! Eu repeti, cada vez mais
surpreso.

Um novo silêncio. E ela retomou com uma voz
calma e com o ar mais tranquilo:

– Eu vim sobre esse assunto… que você
sabe. Eu pensei que talvez pudesse conseguir algumas informações de você…

– Meu Deus, senhora, não sei mais do que dizem os
jornais. Especifique como posso ajudá-lo.

– Eu não sei… eu não sei…

Só então tive a intuição de que sua calma era
artificial e que, sob esse ar de perfeita segurança, se escondia uma grande
confusão. E ficamos em silêncio, ambos constrangidos.

Mas Daspry, que não parava de observá-lo, aproximou-se
e disse:

– Você me permite, madame, fazer algumas perguntas?

– Oh! sim, ela chorou, então eu vou falar.

– Você vai falar… quais são essas perguntas?

– O que quer que sejam.

Ele refletiu e disse:

– Você conheceu Louis Lacombe?

– Sim, pelo meu marido.

– Quando foi a última vez que o viu?

– Na noite em que ele jantou conosco.

– Naquela noite, nada poderia ter feito você pensar
que não o veria novamente?

– Não. Ele havia de fato aludido a uma viagem
à Rússia, mas de forma tão vaga!

– Então você estava planejando vê-lo novamente?

– Dois dias depois, no jantar.

– E como você explica esse desaparecimento?

– Eu não explico isso.

– E quanto ao Sr. Andermatt?

– Eu não sei.

– Contudo…

– Não me pergunte sobre isso.

– O artigo da Echo de France parece
dizer…

– O que ele parece dizer é que os irmãos Varin não
são estranhos a este desaparecimento.

– Essa é a sua opinião?

– Sim.

– Em que se baseia a sua convicção?

– Ao nos deixar, Louis Lacombe carregava uma pasta
que continha todos os papéis relativos ao seu projeto. Dois dias depois,
houve entre meu marido e um dos irmãos Varin, o que vive, uma entrevista
durante a qual meu marido obteve a prova de que esses papéis estavam nas mãos
dos dois irmãos.

– E ele não os denunciou?

– Não.

– Por que?

– Porque na pasta havia algo diferente dos papéis
de Louis Lacombe.

– O que?

Ela hesitou, estava prestes a responder, então,
finalmente, calou-se. Daspry continuou:

– Então esse é o motivo pelo qual seu marido, sem
avisar a polícia, mandou vigiar os dois irmãos. Ele esperava pegar de
volta os papéis e aquela… coisa comprometedora para a qual os dois irmãos o
estavam chantageando.

– Por ele… e por mim.

– Ah! em você também?

– Principalmente em mim.

Ela articulou essas três palavras com uma voz
oca. Daspry a observou, deu alguns passos e voltou a si:

– Você escreveu para Louis Lacombe?

– Certamente… meu marido era parente…

– Além dessas cartas oficiais, você não escreveu a
Louis Lacombe… outras cartas. Desculpe minha insistência, mas é
essencial que eu conheça toda a verdade. Você escreveu alguma outra carta?

Toda corada, ela sussurrou:

– Sim.

– E essas são as cartas que os irmãos Varin tinham?

– Sim.

– Então o Sr. Andermatt sabe?

– Ele não os viu, mas Alfred Varin revelou a ele a
existência deles, ameaçando publicá-los se meu marido agisse contra
eles. Meu marido estava com medo… ele recuou com o escândalo.

– Só que ele fez de tudo para extrair essas cartas
deles.

– Ele fez tudo o que pôde… pelo menos, suponho
que sim, porque, a partir dessa última entrevista com Alfred Varin, e depois
das poucas palavras muito violentas em que ele me contou sobre isso, não houve
mais entre meu marido e me sem intimidade, sem confiança. Vivemos como
dois estranhos.

– Nesse caso, se você não tem nada a perder, do que
você tem medo?

– Por mais indiferente que eu possa ter me tornado
com ele, eu sou aquele que ele amava, aquele que ele ainda poderia ter
amado; – Oh! Que, tenho certeza, ela sussurrou com voz ardente, ele ainda
teria me amado, se não tivesse pegado aquelas cartas malditas…

– Como? ”Ou“ O quê! ele teria conseguido… Mas os
dois irmãos se desafiaram?

– Sim, e até se gabavam, ao que parece, de ter um
esconderijo seguro.

– Assim? …

– Tenho todos os motivos para acreditar que meu
marido descobriu este esconderijo!

– Vamos! onde ela estava?

– Bem aqui.

Eu pulei.

– Bem aqui !

– Sim, e sempre suspeitei. Louis Lacombe,
muito engenhoso, apaixonado pela mecânica, divertia-se, nas horas vagas, a
fazer baús e fechaduras. Os irmãos Varin devem ter surpreendido e,
posteriormente, usado um desses esconderijos para esconder as cartas… e
outras coisas, sem dúvida.

“Mas eles não moravam aqui”, chorei.

– Até sua chegada, há quatro meses, este pavilhão
permanecia desocupado. Portanto, é provávelque eles voltariam e também
pensaram que a sua presença não iria interferir com eles no dia em que
precisassem retirar todos os seus papéis. Mas contaram sem meu marido que,
na noite de 22 para 23 de junho, forçou o cofre, pegou… o que estava
procurando e deixou seu cartão para mostrar aos dois irmãos que não precisava
mais. Temê-los e os papéis mudaram. Dois dias depois, informado pela
reportagem do Gil Blas, Étienne Varin veio às pressas a sua casa,
ficou sozinho nesta sala, encontrou o cofre vazio… e se matou.

Depois de um momento, Daspry perguntou:

– Isso é só um palpite, não é? O Sr. Andermatt
não lhe contou?

– Não.

– A atitude dele em relação a você não
mudou? Ele não parecia mais sombrio, mais preocupado para você?

– Não.

– E você acha que seria assim se ele tivesse
encontrado as cartas! Para mim, ele não os tem. Para mim, não foi ele quem
entrou aqui.

– Mas quem então?

– O personagem misterioso que conduz este caso, que
detém todos os fios dele e que o direciona para um objetivo que só vislumbramos
em tantas complicações, o personagem misterioso cuja ação visível e onipotente
sentimos desde a primeira hora. É elee seus amigos que entraram neste
hotel no dia 22 de junho, é ele quem descobriu o esconderijo, é ele quem deixou
o cartão do senhor Andermatt, é ele quem guarda a correspondência e os indícios
da traição dos irmãos Varin.

– Who? Eu interrompi, não sem impaciência.

– O correspondente do Echo de France, parbleu,
este Salvator! Isso não é extremamente óbvio? Ele não dá em seu artigo
detalhes que só o homem que penetrou nos segredos dos dois irmãos pode saber?

– Neste caso, gaguejou M me Andermatt,
com terror, ele também minhas cartas, e ele por sua vez ameaça meu marido! O
que fazer, meu Deus!

– Escreva para ele, declarou claramente Daspry,
confie nele sem desvios; diga a ele tudo o que você sabe e tudo o que pode
aprender.

– O que você diz !

– Seu interesse é igual ao dele. Não há dúvida
de que ele está agindo contra o sobrevivente dos dois irmãos. Não é contra
M. Andermatt que ele busca armas, mas contra Alfred Varin. Ajudem-no.

– Como? ”Ou“ O quê?

– Seu marido tem este documento que completa e
quem permite usar os planos de Louis Lacombe?

– Sim.

– Notifique Salvator. Se necessário, tente
obter este documento para ele. Em suma, entre em correspondência com
ele. O que você está arriscando?

O tabuleiro era ousado, perigoso mesmo à primeira
vista, mas M me Andermatt tinha pouca
escolha. Então, como Daspry disse, o que ela estava arriscando? Se o
estranho fosse um inimigo, isso não piorava as coisas. Se ele era um
estranho buscando um objetivo específico, ele deveria atribuir apenas
importância secundária a essas cartas.

De qualquer forma, houve uma ideia, e M me Andermatt,
consternado, ficou muito feliz em juntar-se a ela. Ela nos agradeceu
efusivamente e prometeu nos manter informados.

Dois dias depois, na verdade, ela nos enviou esta
nota que ela recebeu em resposta:

“As cartas não estavam lá. Mas eu os terei,
não se preocupe. Eu cuido de tudo. S.”

Eu peguei o papel. Era a redação do bilhete
que havia sido inserido em meu livro de cabeceira na noite de 22 de junho.

Daspry estava, portanto, certo, Salvator foi de
fato o grande organizador desse caso.

 



Na verdade, estávamos começando a discernir alguns
vislumbres entre as trevas que nos cercavam e alguns pontos foram iluminados
por uma luz inesperada. Mas quantas outras permaneceram obscuras, como a
descoberta dos dois setes de corações! De minha parte, sempre voltava a isso,
talvez mais intrigado do que o necessário por aquelas duas cartas cujas sete
pequenas figuras perfuradas me haviam impressionado os olhos em circunstâncias
tão perturbadoras. Que papel eles desempenharam no drama? Que
importância devemos atribuir a eles? Que conclusão devemos tirar do fato
de que o submarino construído segundo os planos de Louis Lacombe tinha o nome
de Sept-de-cœur?

Daspry, ele prestou pouca atenção às duas cartas,
estudando inteiramente outro problema cuja solução parecia mais urgente para
ele: ele buscou incansavelmente o famoso esconderijo.

“E quem sabe”, disse ele, “se eu não
encontrasse as letras que Salvator não encontrou lá… talvez
inadvertidamente.” É tão pouco confiável que os irmãos Varin se
retiraram de um lugar que consideravam inacessível, cuja arma eles sabiam ter
um valor inestimável.

E ele estava olhando. O grande salão logo não
tendo mais segredos para ele, ele estendeu suas investigações a todas as outras
salas do pavilhão: ele examinou o interior e o exterior, eleexaminou as pedras
e tijolos das paredes e ergueu as lousas do telhado.

Um dia ele chegou com uma picareta e uma pá, me deu
a pá, ficou com a picareta e, apontando para o terreno baldio:

– Vamos lá.

Eu o segui sem entusiasmo. Ele dividiu o
terreno em várias seções que inspecionou sucessivamente. Mas, em um canto,
no ângulo formado pelas paredes de duas propriedades vizinhas, chamou sua
atenção um amontoado de entulho e seixo coberto de amoreira e capim. Ele a
atacou.

Eu tive que ajudá-lo. Por uma hora, em pleno
sol, labutamos desnecessariamente. Mas quando, sob as pedras espalhadas,
alcançamos o próprio solo e o destruímos, a picareta de Daspry desnudou alguns
ossos, um esqueleto remanescente em torno do qual pedaços de roupa ainda se desfizeram.

E de repente eu me senti empalidecer. Vi uma
pequena placa de ferro cravada no chão, recortada em forma de retângulo e onde
parecia distinguir manchas vermelhas. Eu me abaixei. Era isso: o
prato tinha as dimensões de uma carta de baralho, e os pontos vermelhos, um
vermelho de minium comido em alguns lugares, eram sete, dispostos como as sete
pontas de um sete de copas, e perfurados com um buraco em cada uma das sete
extremidades.

– Ouça, Daspry, já estou farto de tudo
isso. Bom para você se eles te interessarem. Eu sou uma falsa
empresa.

Foi a emoção? Foi o cansaço de um trabalho
realizado sob um sol muito forte, ainda é que cambaleei ao sair, e tive que ir
para a cama onde fiquei quarenta e oito horas, febril e ardente, obcecado por
esqueletos que dançavam me e jogou seus corações sangrentos em suas cabeças.

 

Daspry foi leal a mim. Cada dia ele me dava
três ou quatro horas, que passava, é verdade, no grande salão, bisbilhotando,
batendo e dando tapinhas.

– As cartas estão aí, nesta sala, ele vinha e me
dizia de vez em quando, elas estão aí. Eu colocaria minha mão no fogo.

– Me deixe em paz, respondi horrorizada.

Na manhã do terceiro dia, levantei-me ainda muito
fraco, mas sarado. Um almoço substancial me confortou. Mas um pequeno
hematoma que recebi por volta das cinco horas contribuiu, mais do que tudo,
para a minha recuperação completa, por isso a minha curiosidade foi, novamente
e apesar de tudo, aguçada até ao sabugo.

O pneu continha estas palavras:

” Senhor,

“O drama, cujo primeiro ato aconteceu na noite de
22 para 23 de junho, está chegando ao fim. A própria força das
circunstâncias exige que eu traga os dois protagonistas deste drama na presença
um do outro e que este confronto aconteça em sua casa, ficaria imensamente
grato se me emprestasse sua casa para a noite de hoje. ‘hui. Seria bom se
seu servo estivesse ausente das nove às onze horas, e seria melhor se você
mesmo tivesse a amabilidade de deixar o campo livre para seus
adversários. Você pôde perceber, durante a noite de 22 para 23 de junho,
que empurrei até o escrúpulo o respeito por tudo o que lhe pertence. De
minha parte, pensaria que o estava insultando se duvidasse por um só momento de
sua absoluta discrição em relação a quem assina

“Seu devotado,

“Salvator.”

 

Havia nesta missiva um tom de cortês ironia, e no
pedido que exprimia, uma fantasia tão bonita, que me deliciava. Foi
encantadoramente casual, e meu correspondente parecia tão certo da minha
aquiescência! Por nada no mundo eu não teria desejado desapontá-lo ou responder
à sua confiança com ingratidão.

Às oito horas, meu criado, a quem eu havia
oferecido um lugar no teatro, acabava de sair quando Daspry chegou. Eu
mostrei a ele o pequeno azul.

– Nós vamos? ele me disse.

– Bem, deixo o portão do jardim aberto, para que
possamos entrar.

– E você está indo embora?

– De jeito nenhum !

– Mas já que você está convidado…

– Eles me pedem discrição. Serei
discreto. Mas eu realmente quero ver o que vai acontecer.

Daspry riu.

– Bem, você está certo, e eu também
fico. Tenho a impressão de que não vamos ficar entediados.

O som da campainha o interrompeu.

– Eles já? ele sussurrou, e vinte minutos
adiantado! Impossível.

Do corredor, puxei a corda que abria o
portão. Uma silhueta de mulher cruzou o jardim: M me Andermatt.

Ela parecia chateada, e foi sufocando que gaguejou:

– Meu marido… ele está vindo… ele tem um
compromisso… temos que entregar as cartas para ele…

– Como você sabe? Eu disse.

– Aleatório. Um bilhete que meu marido recebeu
durante o jantar.

– Um pequeno hematoma?

– Um recado. O servo me deu por
engano. Meu marido pegou imediatamente, mas era tarde demais… Eu tinha
lido.

– Você tinha lido…

– Isto mais ou menos: ” Às nove horas desta
noite, esteja no Boulevard Maillot com os documentos relativos ao caso. Em
troca, as cartas.
Depois do jantar, subi para minha casa e saí.

– Sem o conhecimento do Sr. Andermatt?

– Sim.

Daspry olhou para mim.

– O que você acha?

– Eu acho o que você pensa, que o Sr. Andermatt é
um dos oponentes convocados.

– Por quem? e com que propósito?

– Isso é exatamente o que vamos descobrir.

Eu os conduzi para o grande salão.

Com um aperto, nós três caberíamos sob o manto da
lareira e nos esconderíamos atrás da cortina de veludo. Nós nos
acomodamos. M me Andermatt sentou-se entre
nós. Através das fendas da cortina, toda a sala apareceu para nós.

Nove horas bateram. Poucos minutos depois, o
portão do jardim rangeu nas dobradiças.

Admito que não deixei de sentir uma certa angústia
e que uma nova febre me superexcitou. Eu estava prestes a saber a palavra
do enigma! A aventura desconcertante cujas aventuras se desenrolavam diante de
mim por semanas, finalmente tomaria seu verdadeiro significado, e era diante
dos meus olhos que a batalha seria travada.

Daspry agarrou a mão de M me Andermatt
e sussurrou:

– Acima de tudo, não é um movimento! O que quer que
você ouça ou veja, permaneça impassível.

Alguém entrou. E eu reconheci imediatamente,
para sua grande semelhança com Étienne Varin, seu irmão Alfred. O mesmo
andar pesado, o mesmo rosto terreno invadido pela barba.

Ele entrou com o ar preocupado de um homem
acostumado a temer as armadilhas ao seu redor, que as fareja e as
evita. De relance ele beijou a sala, e tive a impressão de que aquela
lareira, escondida por uma porta de veludo, era desagradável para ele. Ele
deu três passos em nossa direção. Mas uma ideia, sem dúvida mais
imperiosa, o divertiu, pois se voltou para a parede, parou diante do velho rei
do mosaico, com a barba florida, a espada flamejante, e o examinou longamente,
subindo em um cadeira,seguindo o contorno dos ombros e rosto com o dedo, e
sentindo certas partes da imagem.

Mas de repente ele saltou da cadeira e se afastou
da parede. Passos ecoaram. Na soleira apareceu M. Andermatt.

O banqueiro deu um grito de surpresa.

– Você! Você! Você me ligou?

– Eu? mas não, protestou Varin com uma voz quebrada
que me lembrou de seu irmão, foi sua carta que me trouxe aqui.

– Minha carta !

– Uma carta assinada por você, na qual me oferece…

– Eu não escrevi para você.

– Você não escreveu para mim!

Varin instintivamente se pôs em guarda, não contra
o banqueiro, mas contra o inimigo desconhecido que o arrastara para essa
armadilha. Uma segunda vez, seus olhos se voltaram para o nosso lado e,
rapidamente, ele se dirigiu para a porta.

O Sr. Andermatt barrou seu caminho.

– O que você está fazendo, Varin?

– Tem máquinas lá que eu não gosto. Eu estou
saindo. Boa noite.

– Um momento !

– Vamos, senhor Andermatt, não insista, não temos
nada a dizer um ao outro.

– Temos muito a dizer um ao outro e a oportunidade
é muito boa…

– Deixe-me passar.

– Não, não, não, você não vai passar.

Varin deu um passo para trás, intimidado pela
atitude resoluta do banqueiro, e murmurou:

– Então, rápido, vamos conversar e que isso acabe!

Uma coisa me surpreendeu e não tive dúvidas de que
meus dois companheiros sentiram a mesma decepção. Como pode ser que
Salvator não estava lá? Não fazia parte de seus planos intervir? e o
mero confronto do banqueiro e Varin parecia suficiente para ele? Fiquei
singularmente perturbado. Por causa de sua ausência, este duelo, combinado
por ele, desejado por ele, assumiu o aspecto trágico dos acontecimentos que
despertam e comandam a ordem rigorosa do destino, e da força que golpeou estes
dois homens um contra o outro. uma vez que ela residia separada deles.

Depois de um momento, o Sr. Andermatt abordou Varin
e, cara a cara, olho no olho:

– Agora que esses anos se passaram e você não tem
mais nada a temer, responda-me com franqueza, Varin. O que você fez com
Louis Lacombe?

– Essa é uma pergunta! Como se eu pudesse saber o
que aconteceu com ele!

– Você sabe! Você sabe! Você e seu irmão foram
apegados aos passos dele, vocêquase morei na casa dele, na própria casa onde
estamos. Você estava ciente de todo o trabalho dele, de todos os seus
projetos. E na última noite, Varin, quando acompanhei Louis Lacombe até
minha porta, vi duas figuras escondidas nas sombras. Estou pronto para
jurar isso.

– E então, quando você jura?

– Foi você e seu irmão, Varin.

– Prove.

– Mas a melhor prova é que, dois dias depois, você
mesmo me mostrou os papéis e planos que havia recolhido na pasta de Lacombe e
que se ofereceu para vendê-los a mim. Como estavam esses papéis em sua
posse?

– Já lhe disse, senhor Andermatt, os encontramos na
mesa de Louis Lacombe na manhã seguinte, após seu desaparecimento.

– Isso não é verdade.

– Prove.

– A justiça poderia ter provado isso.

– Por que você não foi ao tribunal?

– Por que? Ah! Por que…

Ele ficou em silêncio, seu rosto sombrio. E o
outro continuou:

– Veja, Sr. Andermatt, se você tinha a menor
certeza, não foi a pequena ameaça que fizemos a você que teria evitado…

– Que ameaça? Estas cartas? Você imagina
que eu alguma vez acreditei por um momento?…

– Se você não acreditou nessas cartas, por que me
ofereceu mil e cem dólares para recuperá-las? E por que, desde então, você
nos fez caçar como animais, meu irmão e eu?

– Para retomar os planos que eu segurei.

– Vamos! era pelas cartas. De posse das
cartas, você nos denunciou. Mais frequentemente do que eu teria largado!

Ele caiu na gargalhada, que interrompeu repentinamente.

– Mas é o suficiente. Por mais que repitamos
as mesmas palavras, não estaremos mais adiante. Portanto, vamos deixar
isso aí.

“Não vamos parar por aí”, disse o banqueiro, “e
como você mencionou as cartas, não vai sair daqui enquanto não as devolver para
mim.

– Vou sair.

– Não não.

– Ouça, Sr. Andermatt, eu o aconselho…

– Você não vai sair.

– Isso é o que veremos, Varin disse com tanta raiva
ênfase M me Andermatt abafou um grito fraco.

Ele deve ter ouvido, porque queria forçar a
passagem. O Sr. Andermatt o empurrou com violência. Então eu o vi
enfiando a mão no bolso da jaqueta.

– Uma última vez !

– Letras primeiro.

Varin sacou um revólver e apontou para o Sr.
Andermatt:

– Sim ou não?

O banqueiro curvou-se rapidamente.

Um tiro explodiu. A arma caiu.

Eu fiquei maravilhado. Foi perto de mim que o
tiro disparou! E foi Daspry quem, com uma bala de pistola, explodiu a arma da
mão de Alfred Varin!

E repentinamente dividido entre os dois
adversários, enfrentando Varin, ele zombou:

– Você tem sorte, meu amigo, uma má
sorte. Esta é a mão que eu estava mirando e é a arma que alcanço.

Ambos o encararam, imóveis e confusos. Ele
disse ao banqueiro:

– Desculpe, senhor, por me intrometer em coisas que
não me dizem respeito. Mas, na verdade, você está desempenhando sua parte
de maneira muito desajeitada. Deixe-me segurar as cartas.

Virando-se para o outro:

– Para nós dois, camarada. E sem problemas,
por favor. O trunfo é o coração e eu jogo o sete.

E, a sete centímetros do nariz, ele enfiou a placa
de ferro nela, onde os sete pontos vermelhos estavam marcados.

Nunca foi dado a mim ver tal comoção. Lívido,
olhos arregalados, feições retorcidas de angústia, o homem parecia hipnotizado
pela imagem que se apresentava a ele.

– Quem é Você? ele gaguejou.

– Já disse, um homem que cuida do que não lhe diz
respeito… mas que cuida bem de tudo.

– O que você quer?

– Tudo que você trouxe.

– Eu não trouxe nada.

– Se, de outra forma, você não tivesse
vindo. Você recebeu uma nota esta manhã chamando você aqui para as nove horas,
e pedindo-lhe para trazer todos os papéis que você tinha. Agora você está
aqui. Onde estão os papéis?

Havia na voz de Daspry, havia em seu comportamento,
uma autoridade que me confundiu, uma maneira totalmente nova de agir neste
homem bastante casual e gentil. Absolutamente domesticado, Varin apontou
para um de seus bolsos.

– Os papéis estão aí.

– Eles estão todos aí?

– Sim.

– Todos os que você encontrou na pasta de Louis
Lacombe e vendeu ao Major von Lieben?

– Sim.

– É a cópia ou o original?

– O original.

– Quantos você quer?

– Cem mil.

Daspry riu.

– Você é louco. O major só lhe deu vinte
mil. Vinte mil jogados na água, pois os testes falharam.

– Não sabíamos como usar os planos.

– Os planos estão incompletos.

– Então por que você está me perguntando?

– Eu preciso disso. Eu te ofereço cinco mil
francos. Nem um centavo a mais.

– Dez mil. Nem um centavo a menos.

– Permitido.

Daspry voltou para o Sr. Andermatt.

– Por favor, assine um cheque, senhor.

– Mas… é que eu não…

– Seu notebook? Aqui está.

Estupefato, o Sr. Andermatt sentiu o bloco de notas
que Daspry lhe entregou.

– É meu… Como é?

– Sem palavras vazias, por favor, caro senhor,
basta assinar.

O banqueiro puxou sua caneta e assinou. Varin
estendeu a mão.

– Fique de pé, disse Daspry, ainda não acabou.

E dirigindo-se ao banqueiro:

– Foi também uma questão de cartas, que afirma?

– Sim, um maço de cartas.

– Onde eles estão, Varin?

– Eu não os tenho.

– Onde eles estão, Varin?

– Eu não sei. Foi meu irmão quem cuidou disso.

– Eles estão escondidos aqui, nesta sala.

– Então você sabe onde eles estão.

– Como eu iria saber?

– Senhora, não foi você quem visitou o
esconderijo? Você parece tão experiente… quanto Salvator.

– As cartas não estão no esconderijo.

– Estão lá.

– Abra.

Varin lançou um olhar de desconfiança. Daspry
e Salvator eram realmente um, como tudo sugere? Nesse caso, ele não
arriscou nada ao mostrar um esconderijo já conhecido. Senão, era inútil…

“Abra”, Daspry repetiu.

– Eu não tenho um sete no coração.

“Sim, aquele”, disse Daspry, estendendo a
placa de ferro.

Varin deu um passo para trás, apavorado:

– Não… não… eu não quero…

– Esquece…

Daspry caminhou até o velho monarca com a barba
florida, subiu em uma cadeira e aplicou o sete de corações na parte inferior da
espada, contra o punho, de forma que as pontas do prato se sobrepusessem
exatamente aos dois gumes da espada. Então, com a ajuda de um furador, que
introduziu alternadamente em cada um dos sete orifícios feitos na extremidade
das sete pontas do coração, ele pesou sete das pequenas pedras do
mosaico. Na sétima pequena pedra incrustada, um gatilho ocorreu, e todo o
busto do rei girou, desmascarando uma grande abertura ajustada como um baú, com
revestimentos de ferro e dois raios de aço reluzente.

– Veja, Varin, o cofre está vazio.

– Sim… Então é que meu irmão terá retirado as
cartas.

Daspry voltou para o homem e disse:

– Não jogue o melhor comigo. Existe outro
esconderijo. Onde ela está?

– Não há nenhum.

– É esse dinheiro que você quer? Quantos?

– Dez mil.

– Sr. Andermatt, essas cartas valem dez mil francos
para o senhor?

– Sim, disse o banqueiro em voz alta.

Varin fechou o baú, pegou o sete de corações, não
sem uma visível relutância, e o aplicou na espada, até o punho e exatamente no
mesmo lugar. Sucessivamente, ele inseriu o furador na ponta dos sete
pontos do coração. Houve um segundo gatilho, mas desta vez,
inesperadamente, foi apenas parte do baú que girou, revelando um pequeno baú
feito na própria espessura da porta que fechava o maior.

O maço de cartas estava lá, amarrado com um
barbante e lacrado. Varin o entregou a Daspry. Ele perguntou:

– O cheque está pronto, Sr. Andermatt?

– Sim.

– E você também tem o último documento que tem de
Louis Lacombe, e que completa os planos do submarino?

– Sim.

A troca aconteceu. Daspry embolsou o documento
e o cheque e ofereceu o pacote ao Sr. Andermatt.

– Isso é o que você queria, senhor.

O banqueiro hesitou por um momento, como
se estava com medo de tocar aquelas páginas amaldiçoadas que ele havia
procurado tão duramente. Então, com um gesto nervoso, ele o agarrou.

Perto de mim, ouvi um gemido. Eu agarrei a mão
de M me Andermatt estava congelando.

E Daspry disse ao banqueiro:

– Eu acredito, senhor, que nossa conversa
acabou. Oh! não, obrigado, por favor. Só o acaso quis que eu pudesse
ser útil para você.

M. Andermatt retirou-se. Ele levou as cartas
da esposa para Louis Lacombe.

 

“Muito bem”, Daspry gritou deliciada, “tudo está
dando certo. Só temos que encerrar nosso caso, camarada. Você tem os
papéis?

– Lá estão eles.

Daspry os examinou, examinou cuidadosamente e os
enfiou no bolso.

– Perfeito, você manteve sua palavra.

– Milho…

– Mas o que?

– Os dois cheques?… O dinheiro?…

– Bem, você tem autoconfiança, meu bom
homem. Como, você se atreve a reclamar!

– Eu reclamo o que me é devido.

– Devemos-te algo pelos papéis que roubaste?

Mas o homem parecia fora de si. Ele estava
tremendo de raiva, os olhos injetados de sangue.

– O dinheiro… os vinte mil… ele gaguejou.

– Impossível… Eu tenho um trabalho.

– Dinheiro! …

– Vamos, seja razoável e, portanto, deixe sua adaga
em paz.

Ele agarrou o braço dela com tanta brutalidade que
a outra gritou de dor e acrescentou:

– Vá embora, camarada, o ar vai te fazer
bem. Você quer que eu aceite você de volta? Percorreremos o terreno
baldio, e mostrarei a vocês um monte de pedras sob as quais…

– Isso não é verdade! Isso não é verdade!

– Mas sim, é verdade. Esta pequena placa de
ferro com os sete pontos vermelhos vem de lá. Ela nunca saiu de Louis
Lacombe, lembra? Você e seu irmão a enterraram com o cadáver… e com
outras coisas que serão de grande interesse para a justiça.

Varin cobriu o rosto com os punhos
furiosos. Então ele disse:

– Aquilo é. Eu estou enrolado. Vamos
parar de falar sobre isso. Uma palavra, entretanto… uma palavra… eu
gostaria de saber…

– Eu escuto.

“Havia uma cassete neste cofre, no maior dos
dois?”

– Sim.

– Quando você veio aqui, na noite de 22 para 23 de
junho, ela estava lá?

– Sim.

– Continha?…

– Tudo o que os irmãos Varin tinham guardado lá,
uma bela coleção de joias, diamantes e pérolas, pendurada da direita e da
esquerda pelos ditos irmãos.

– E você pegou?

– Senhora! Se coloque no meu lugar.

– Então… foi por notar o desaparecimento da fita
que meu irmão se matou?

– Provável. O desaparecimento de sua
correspondência com o major von Lieben não teria bastado. Mas o
desaparecimento da fita… isso é tudo que você tem que me perguntar?

– De novo: seu nome?

– Você fala isso como se tivesse idéias de
vingança.

– Claro! A sorte muda. Hoje você é o mais
forte. Amanhã…

– Vai ser você.

– Eu espero que sim. Seu nome?

– Arsène Lupin.

– Arsène Lupin!

O homem cambaleou e ficou inconsciente como se
tivesse sido atingido por uma clava. Dir-se-ia que essas duas palavras o
privaram de toda esperança. Daspry riu.

– Ah! Isso, você imaginou que um Sr. Durand ou
Dupont poderia ter montado todo este lindo negócio? Vamos, pelo menos um
Lupin Arsène era necessário. E agora que você está informado, minha
pequena, vá preparar sua vingança. Arsène Lupin está esperando por você.

E ele o empurrou para fora, sem outra palavra.

 

 

“Daspry, Daspry”, gritei, ainda dando a
ele, apesar de tudo, o nome pelo qual o conhecia.

Afastei a cortina de veludo.

Ele veio correndo.

– O que? O que é isso?

– M me Andermatt está
doente.

Ele se apressou, fez ela respirar sais e, enquanto
a tratava, me questionou:

– Bem, o que aconteceu?

– As cartas, eu disse a ele… as cartas de Louis
Lacombe que você deu ao marido dela!

Ele deu um tapa na testa.

– Ela acreditava que eu tinha feito isso!… Mas
sim, afinal, ela podia acreditar. Tolo que sou!

me Andermatt, revivido,
ouvia avidamente. Ele tirou da carteira um pequeno pacote semelhante em
todos os aspectos ao que o Sr. Andermatt trouxera com ele.

– Aqui estão suas cartas, madame, as verdadeiras.

– Mas… os outros?

– Os outros são iguais a estes, mas copiados por
mim ontem à noite, e cuidadosamente arranjados. Seu marido ficará ainda
mais feliz em lê-los, pois não suspeitará da substituição, já que tudo parecia
estar acontecendo diante de seus olhos…

– Escrevendo…

– Não há escrita que não possa ser imitada.

Ela agradeceu, com as mesmas palavras de gratidão
que teria dirigido a um homem de sua vida, e vi claramente que ela não deve ter
ouvido as últimas frases trocadas entre Varin e Arsène Lupin.

Olhei para ele não sem constrangimento, sem saber
bem o que dizer a esse velho amigo que se revelou a mim sob uma luz tão
imprevista. Tremoço! era Lupin! meu companheiro de círculo não era outro
senão Lupin! Eu não pude acreditar. Mas, ele muito confortável:

– Você pode dizer adeus a Jean Daspry.

– Ah!

– Sim, Jean Daspry vai viajar. Eu mando para o
Marrocos. É bem possível que ele encontre um final digno ali. Eu até
admito que essa é a intenção dele.

– Mas Arsène Lupin nos deixou?

– Oh! Mais do que nunca. Arsène Lupin ainda
está no início da carreira e conta com…

Um impulso irresistível de curiosidade me jogou
sobre ele, causando alguma distância de M me Andermatt

– Então você acabou descobrindo o segundo
esconderijo, aquele onde estava o maço de cartas?

– Já tive problemas demais! Foi ontem à tarde
enquanto você estava na cama. E, no entanto, Deus sabe como foi fácil! Mas
as coisas mais simples são aquelas em que você pensa por último.

E me mostrando o sete de corações:

– Adivinhei corretamente que, para abrir o baú
grande, era preciso pressionar esse cartão contra a espada do homem do mosaico…

– Como você adivinhou isso?

– Facilmente. Pelas minhas informações
específicas, soube quando vim aqui na noite de 22 de junho…

– Depois de me deixar…

– Sim, e depois de ter colocado você em conversas
escolhidas em tal estado de espírito, que um nervoso e impressionável como você
deve inevitavelmente me deixar agir como eu quiser, sem sair da cama.

– O raciocínio estava correto.

– Então eu sabia, vindo aqui, que havia uma fita
cassete escondida em um cofre com fechadura secreta, e que o sete de copas era
a chave, a palavra dessa fechadura. Era apenas uma questão de enfrentar
este sete de corações em um lugar que estava visivelmente reservado para
ele. Uma hora de exame foi o suficiente para mim.

– Uma hora!

– Observe o homem mosaico.

– O velho imperador?

– Este velho imperador é a representação exata do
rei dos corações de todos os jogos de cartas, Carlos Magno.

– Sim… Mas por que o sete de copas às vezes abre
o baú grande e às vezes o pequeno? E por que você só abriu o baú grande
primeiro?

– Por que? mas porque sempre persisti em colocar
meus sete de corações na mesma direção. Ainda ontem notei que virando-o,
isto é, colocando o sétimo ponto, o do meio, no ar em vez de baixá-lo, o
arranjo dos sete pontos foi mudando.

– Claro!

– Claro, claro, mas você ainda tinha que pensar
nisso.

– Outra coisa que você pode não saber da história
da literatura antes de M me Andermatt…

– Estava falando sobre isso na minha
frente? sim. eu não tinha Descobri no cofre, além da cassete,
apenas a correspondência dos dois irmãos, correspondência que me colocou no
caminho da sua traição.

– Enfim, é por acaso que você foi trazido, primeiro
para reconstituir a história dos dois irmãos, depois para buscar as plantas e
os documentos do submarino?

– Por acaso.

– Mas com que propósito você pesquisou?…

Daspry me interrompeu, rindo:

– Meu Deus! como este caso lhe interessa!

– Ela me fascina.

– Bem, agora mesmo, quando eu renovar
o M me Andermatt e for trazido ao Echo de
France
 a palavra que vou escrever, voltarei e entrarei em detalhes.

Ele se sentou e escreveu uma daquelas pequenas
notas incisivas em que a fantasia do personagem é entretida. Quem não se
lembra do barulho que fez em todo o mundo?

 

“Arsène Lupin resolveu o problema que Salvator colocou
recentemente. Mestre de todos os documentos e planos originais do
engenheiro Louis Lacombe, mandou-os às mãos do Ministro da Marinha. Nesta
ocasião, ele abriu uma assinatura para oferecer ao Estado o primeiro submarino
construído de acordo comesses planos. E ele próprio inscreve-se como chefe
desta subscrição no valor de vinte mil francos.”

 

– Os vinte mil francos dos cheques do Sr.
Andermatt? Eu disse a ele, quando ele me deu o jornal para ler.

– Precisamente. Era justo que Varin redimisse
parte de sua traição.

 

 

E foi assim que conheci Arsène Lupin. Foi
assim que soube que Jean Daspry, camarada de círculo, de relação social, não
era outro senão Arsène Lupin, cavalheiro-ladrão. Foi assim que forjei
muito agradáveis
​​laços de amizade com nosso grande
homem, e como, aos poucos, graças à confiança com que ele está disposto a
honrar-me, tornei-me seu historiador muito humilde, muito fiel e muito grato.

 



MADAME IMBERT

 


           Três horas
da manhã, ainda havia meia dúzia de carros em frente a um dos pequenos hotéis
do pintor que constituem a única lateral do Boulevard Berthier. A porta
deste hotel se abriu. Um grupo de convidados, homens e mulheres,
saiu. Quatro carros dispararam da direita para a esquerda e só sobraram
dois cavalheiros na avenida que se separaram na esquina da rue de Courcelles
onde morava um deles. O outro resolveu voltar para Porte-Maillot.

Ele, portanto, cruzou a avenida de Villiers e
continuou na calçada em frente às fortificações. Nessa linda noite de
inverno, pura e fria, era um prazer passear. Estávamos respirando
bem. O som de passos ecoou vivamente.

Mas depois de alguns minutos ele tinha a
sensação desagradável de que o estávamos seguindo. Na verdade, depois de
se virar, ele viu a sombra de um homem deslizando por entre as
árvores. Ele não era tímido; no entanto, ele apressou o passo para
chegar o mais rápido possível à concessão do Ternes. Mas o homem começou a
correr. Muito ansioso, ele achou que era mais seguro enfrentá-lo e tirar a
arma do bolso.

Ele não teve tempo. O homem o atacou com
violência e imediatamente começou uma luta na avenida deserta, uma luta corpo a
corpo em que ele imediatamente sentiu que estava em desvantagem. Ele
gritou por socorro, lutou e foi derrubado contra um monte de pedrinhas, cerrado
na garganta, amordaçado com um lenço que o oponente enfiou na boca. Seus
olhos se fecharam, seus ouvidos zumbiram e ele estava prestes a desmaiar,
quando de repente o abraço se afrouxou e o homem que o sufocava com seu peso
levantou-se para se defender de um ataque imprevisto.

Um golpe da bengala no pulso, um pontapé no
tornozelo com a bota… o homem deu dois gemidos de dor e fugiu, mancando e
praguejando.

Sem se dignar a persegui-lo, o recém-chegado se
abaixou e disse:

– Está ferido, senhor?

Ele não estava ferido, mas muito tonto
e incapaz de ficar de pé. Felizmente, uma das funcionárias da
concessão, atraída pelos gritos, veio correndo. Um carro era
necessário. O senhor ocupou seu lugar, acompanhado de seu salvador, e o
levaram ao seu hotel na avenida da Grande-Armée.

Diante da porta, completamente recuperado, ele se
confundiu em agradecimento.

– Devo-lhe minha vida, senhor, por favor acredite
que não a esquecerei. Não quero assustar minha esposa agora, mas quero que
ela mesma expresse a você, hoje, minha mais profunda gratidão.

Ele pediu-lhe que viesse almoçar e disse-lhe o seu
nome: Ludovic Imbert, acrescentando:

– Que eu saiba a quem tenho a honra…

– Certamente, disse o outro.

E ele se apresentou:

– Arsène Lupin.

 

 

Na época, Arsène Lupin não tinha a fama que o caso
Cahorn lhe deu, sua fuga da Saúde e tantos outros feitos retumbantes. Ele
nem mesmo se chamava Arsène Lupin. Este nome para o qual o futuro reservou
tal lustre foi especialmente imaginado para designar o salvador do Sr. Imbert,
e nósposso dizer que é neste assunto que ele recebeu o batismo de
fogo. Pronto para a batalha é verdade, armado de todas as partes, mas sem
recursos, sem a autoridade que o sucesso lhe confere, Arsène Lupin era apenas
um aprendiz em uma profissão da qual logo se tornaria mestre.

Então, que emoção de alegria quando ele acordou,
quando se lembrou do convite da noite! Finalmente ele alcançou a meta! Finalmente,
ele empreendeu um trabalho digno de sua força e talento! Os milhões de Imberts,
que presa magnífica para um apetite como o dele!

Vestiu um vestido especial, sobrecasaca surrada,
calças surradas, chapéu de seda meio avermelhado, punhos e golas puídas, tudo
muito limpo, mas cheirando a miséria. Como uma gravata, uma fita preta
presa com um diamante de nogueira surpresa. E, assim vestido, desceu as
escadas do alojamento que ocupava em Montmartre. No
terceiro andar, sem parar, bateu com a maçaneta da bengala na folha
de uma porta fechada. Do lado de fora, ele alcançou os bulevares
externos. Um bonde estava passando. Ele se sentou lá, e alguém
andando atrás dele, o inquilino do terceiro andar, sentou-se ao lado dele.

Depois de um momento, este homem disse a ele:

– Bem, chefe?

– Bem, está feito.

– Como? ”Ou“ O quê?

– Vou almoçar lá.

– Você almoça lá!

– Não o faria, espero, que eu tivesse exposto por
dias livres tão preciosos quanto os meus? Arranquei o Sr. Ludovic Imbert
da morte certa que você reservou para ele. O Sr. Ludovic Imbert é uma
natureza grata. Ele me convida para almoçar.

Um silêncio, e o outro se aventurou:

– Então você não vai desistir?

– Mon petit, disse Arsène, se eu planejei o pequeno
assalto da noite, se eu me desse ao trabalho, às três horas da manhã, ao longo
das fortificações, esticar você com uma bengala no pulso e um chute para a
canela, arriscando ferir meu único amigo, não deve desistir agora do benefício
de um resgate tão bem organizado.

– Mas os rumores ruins sobre fortuna…

– Deixe-os correr. Faz seis meses que sigo o
negócio, seis meses que indago, que estudo, que estico minhas redes, que
interrogo os servos, os agiotas e os homens de palha, seis meses que vivo à
sombra do marido e esposa. Portanto, eu sei o que esperar. Que a
fortuna venha do velho Brawford, pois eles reivindicaram, ou de outra fonte, eu
afirmo que existe. E já que existe, é meu.

– Droga, cem milhões!

– Vamos colocar dez, ou mesmo cinco, sei lá! há
grandes pacotes de títulos no cofre. É o diabo se, um dia ou outro, eu não
colocar as mãos na chave.

O bonde parou na Place de l’Etoile. O homem
sussurrou:

– Então por agora?

– Por enquanto, nada a fazer. Eu vou te avisar. Nós
temos tempo.

Cinco minutos depois, Arsène Lupin subiu a suntuosa
escadaria do Hotel Imbert e Ludovic o apresentou à esposa. Gervaise era
uma boa senhora, muito redonda, muito faladora. Ela deu a Lupin as
melhores boas-vindas.

– Queria que estivéssemos sozinhos para celebrar
nosso salvador, disse ela.

E desde o início tratamos “nosso
salvador” como um amigo de um velho encontro. Na sobremesa, a
privacidade foi total e os segredos correram bem. Arsène contou sua vida,
a vida de seu pai, um magistrado honesto, a tristeza de sua infância, as
dificuldades do presente. Gervaise, por sua vez, falou de sua juventude,
seu casamento, a bondade do velho Brawford, os cem milhões que ela havia
herdado, os obstáculos que atrasaram sua entradana diversão, os empréstimos que
ela deve ter feito a taxas exorbitantes, suas brigas intermináveis
​​com os sobrinhos de Brawford e
as oposi
ções! e sequestro! tudo
finalmente!

– Pense bem, senhor Lupin, os títulos estão ali, ao
lado, no escritório do meu marido, e se tirarmos um único cupom, perdemos tudo!
Eles estão lá, em nosso cofre, e não podemos tocá-los!

Um leve estremecimento sacudiu o Sr. Lupin com a
ideia deste bairro. E ele teve a nítida sensação de que Monsieur Lupin
nunca teria elevação de alma o suficiente para sentir os mesmos escrúpulos que
a boa senhora.

– Ah! lá estão eles, ele sussurrou, com a garganta
seca.

– Eles estão ali.

Relacionamentos iniciados sob tais auspícios só
poderiam formar nós mais próximos. Questionado delicadamente, Arsène Lupin
confessou sua miséria, sua angústia. O infeliz menino foi imediatamente
nomeado secretário particular das duas esposas, com um salário de cento e
cinquenta francos mensais. Ele continuaria a morar com ele, mas viria
todos os dias para receber ordens de serviço e, para maior comodidade, um dos
quartos do segundo andar foi colocado à sua disposição como escritório.

Ele escolhe. Por que excelente coincidência
ela se viu acima da mesa de Ludovic?

 

 

Arsène não demorou a perceber que seu trabalho como
secretário era furiosamente como uma sinecura. Em dois meses, ele tinha
apenas quatro cartas triviais para copiar e foi chamado apenas uma vez ao
escritório de seu chefe, o que lhe permitiu olhar oficialmente para o cofre uma
vez. Além disso, observou que o titular desta sinecura não deve ser
considerado digno de comparecer com o deputado Anquety, ou com o Bâtonnier
Grouvel, porque se omitiu de convidá-lo para as famosas recepções sociais.

Ele não reclamava, preferindo muito manter seu
modesto cantinho na sombra, e ficava afastado, feliz e livre. Além disso,
ele não estava perdendo tempo. Ele fez uma série de visitas clandestinas
ao escritório de Ludovic e apresentou seu dever de casa no cofre, que ainda
assim permaneceu totalmente fechado. Era um enorme bloco de ferro fundido
e aço, com uma aparência ameaçadora, e contra o qual nem limas, nem gavinhas,
nem alicate, monsenhor poderia prevalecer.

Arsène Lupin não era teimoso.

“Onde a força falha, a astúcia tem
sucesso”, disse a si mesmo. O principal é ter olho e ouvido no local.

Tomou, portanto, as medidas necessárias e, após
cuidadosa e meticulosa sondagem no chão da sua sala, introduziu um tubo de
chumbo que terminava no tecto do escritório entre duas molduras da
cornija. Através deste tubo, tubo acústico e telescópio de abordagem, ele
esperava ver e ouvir.

A partir de então, ele viveu de bruços no
chão. E, na verdade, ele costumava ver os Imberts em conferência em frente
ao cofre, examinando registros e manuseando arquivos. Quando giravam
sucessivamente os quatro botões que controlavam a fechadura, ele tentou, para
saber o número, introduzir o número de entalhes que passavam. Ele observou
suas ações, ele observou suas palavras. O que eles estavam fazendo com a
chave? Eles estavam escondendo isso?

Um dia desceu correndo as escadas, tendo-os visto
saindo do quarto sem fechar o porta-malas. E ele entrou
decidido. Eles haviam voltado.

– Oh! com licença, disse ele, peguei a porta
errada.

Mas Gervaise correu e puxou-a:

– Entre, Monsieur Lupin, entre, não está em casa
aqui? Você vai nos dar uma dica. Que títulos devemos vender? Do
lado de fora ou do aluguel?

– Mas a oposição? Lupin objetou, muito
surpreso.

– Oh! não chega a todas as manchetes.

Ela empurrou a porta para o lado. Nas
prateleiras havia carteiras empilhadas com correias. Ela pega um. Mas
seu marido protestou.

– Não, não, Gervaise, seria tolice vender algo lá
fora. Ele vai subir… Enquanto o aluguel está no máximo. O que você
acha, meu caro amigo?

O querido amigo não teve opinião, porém aconselhou
o sacrifício do Aluguel. Então ela pegou outro pacote, e desse pacote, ao
acaso, um pedaço de papel. Era uma participação de 3% de 1.374
francos. Ludovic colocou no bolso. À tarde, acompanhado de seu
secretário, mandou vender esse título por um corretor da bolsa e recebeu 46 mil
francos.

O que quer que Gervaise possa ter dito, Arsène
Lupin não se sentia em casa. Ao contrário, sua situação no Hotel Imbert o
encheu de surpresa. Em várias ocasiões, ele descobriu que os servos não
sabiam seu nome. Eles o chamavam de senhor. Ludovic sempre o designou
da seguinte forma: “Você vai avisar senhor… O senhor já
chegou? »Por que esse nome enigmático?

Além disso, após o entusiasmo no início, os Imberts
quase não falavam com ele, e, enquanto ele tratando com o respeito devido
a um benfeitor, nunca se importou com ele! Parecíamos considerá-lo um original
que não gosta de ser incomodado e respeitamos seu isolamento, como se esse
isolamento fosse uma regra por ele decretada, um capricho de sua
parte. Assim que entrou no corredor, ouviu Gervaise dizer a dois senhores:

– Ele é tão selvagem!

De qualquer maneira, ele pensou, somos um
selvagem. E desistindo de explicar as peculiaridades dessas pessoas, ele
continuou a executar seu plano. Tinha adquirido a certeza de que não era
necessário contar com o acaso nem com a imprudência de Gervaise, a quem a chave
do cofre nunca abandonou e que, aliás, jamais teria tomado esta chave sem ter
previamente embaralhado as letras da fechadura. Portanto, ele teve que agir.

Um acontecimento precipitou as coisas, a violenta
campanha travada contra os Imberts por alguns jornais. Eles foram acusados
​​de fraude. Arsène Lupin testemunhou os altos e
baixos do drama, a turbul
ência na casa, e ele entendeu
que demorando mais iria perder tudo.

Cinco dias seguidos, em vez de sair por volta das
seis horas como costumava fazer, ele se trancou no quarto. Ele deveria
estar fora. Ele se esticou no chão e observou o escritório de Ludovic.

Nas cinco tardes, não tendo ocorrido a
circunstância favorável que esperava não ter ocorrido, retirou-se a meio da
noite, pela portinhola que servia ao pátio. Ele tinha uma chave para isso.

Mas no sexto dia ele soube que os Imberts, em
resposta às insinuações maliciosas de seus inimigos, haviam proposto que o
cofre fosse aberto e levado em consideração.

“É para esta noite,” Lupin pensou.

E, de fato, depois do jantar, Ludovic se acomodou
em seu escritório. Gervaise juntou-se a ele. Eles começaram a folhear
os registros do cofre.

Uma hora se passou, depois outra hora. Ele
ouviu os criados indo para a cama. Agora não havia ninguém no primeiro
andar. Meia-noite. Os Imberts continuaram seu trabalho.

“Vamos,” Lupin sussurrou.

Ele abriu a janela. Dava para o pátio e o
espaço, em uma noite sem lua e sem estrelas, estava escuro. Tirou do
armário uma corda com nós que prendeu na grade da varanda, deu um passo e
deslizou lentamente, com a ajuda de uma calha, até a janela abaixo da
sua. Era o do escritório, e o véu espesso das cortinas de lã obscurecia a
sala. De pé na varanda, ele ficou lá por um momento, com os ouvidos
apurados e os olhos em alerta.

Quieto pelo silêncio, ele empurrou levemente os
dois se cruzaram. Se ninguém se importasse em verificá-los, teriam que
ceder ao esforço, pois ele, durante a tarde, havia virado a lantejoula para que
não fosse mais para o lixo.

Os cruzados cederam. Então, com infinitas
precauções, ele os abriu ainda mais. Assim que ele conseguiu deslizar a
cabeça, ele parou. Um pouco de luz se filtrou entre as duas cortinas mal
unidas: ele viu Gervaise e Ludovic sentados ao lado do baú.

Eles trocaram apenas palavras raras e em voz baixa,
absortos em seu trabalho. Arsène calculou a distância que o separava
deles, estabeleceu os movimentos exatos que teria que fazer para reduzi-los um
após o outro à impotência, antes que tivessem tempo de pedir socorro., E estava
prestes a correr, quando Gervaise disse:

– Como a sala esfriou por um momento! Eu vou para a
cama. E você?

– Eu gostaria de terminar.

– Terminar! Mas você tem um pouco para a noite.

– Não, uma hora no máximo.

Ela se retirou. Vinte minutos, trinta minutos
se passaram. Arsène empurrou a janela um pouco mais. As cortinas
estremeceram. Ele empurrou novamente. Ludovic se virou e, vendo as
cortinas inchando com o vento, levantou-se para fechar a janela…

Não houve um grito, nem mesmo a aparência de uma
luta. Com alguns gestos precisos e sem lhe causar o menor dano, Arsène
atordoou-o, enrolou-lhe a cortina na cabeça, amarrou-a e de tal forma que
Ludovic nem sequer conseguiu distinguir o rosto do seu agressor.

Então, rapidamente, foi até o cofre, pegou duas
carteiras que colocou debaixo do braço, saiu do escritório, desceu as escadas,
cruzou o pátio e abriu a porta dos fundos. Um carro estava estacionado na
rua.

“Pegue aquele primeiro”, disse ele ao
motorista, “e siga-me.”

Ele voltou para o escritório. Em duas viagens
esvaziaram o porta-malas. Em seguida, Arsène subiu para seu quarto,
removeu a corda, apagou todos os vestígios de sua passagem. Foi concluido.

 

Algumas horas depois, Arsène Lupin, ajudado por seu
companheiro, começou a retirar as pastas. Não se decepcionou, tendo-o
previsto, ao descobrir que a fortuna dos Imberts não tinha a importância que
lhe era atribuída. Os milhões não chegavam às centenas, nem mesmo às
dezenas. Mas, afinal, o total ainda formava uma figura muito respeitável,
e esses eram títulos excelentes, títulos de ferrovias, cidades de Paris, fundos
estatais, Suez, minas do Norte, etc.

Ele se declarou satisfeito.

‘Certamente’, disse ele, ‘haverá muito desperdício
quando chegar a hora de negociar. Encontraremos oposição e será necessário
mais de uma vez liquidar a preço baixo. Apesar de tudo, com este primeiro
sinal, assumirei a responsabilidade de viver como eu achar melhor… e de
realizar alguns sonhos que estão no meu coração.

– E o resto?

– Você pode queimá-lo, meu menino. Essas
pilhas de papéis pareciam boas no cofre. Para nós, isso é desnecessário. Quanto
aos títulos, vamos trancá-los bem silenciosamente no armário e aguardar o
momento certo.

No dia seguinte, Arsène pensou que nada o impedia
de voltar ao Hotel Imbert. Mas a leitura dos jornais revelou-lhe esta
notícia inesperada: Ludovic e Gervaise tinham desaparecido.

A abertura do cofre ocorreu em grande
solenidade. Os magistrados encontraram lá o que Arsène Lupin havia deixado…
muito pouco.

 

 

Esses são os fatos, e tal é a explicação dada a
alguns deles pela intervenção de Arsène Lupin. Eu tenho a história para si
mesmo, um dia ele estava confiante.

Ele estava andando de um lado para o outro no meu
escritório naquele dia, e seus olhos estavam com um pouco de febre que eu não
sabia que tinha.

– No final das contas, eu disse a ele, é sua melhor
chance?

Sem me responder diretamente, ele continuou:

– Existem alguns segredos impenetráveis ​​neste assunto. Então, mesmo depois da explicação que te dei, quantas
obscuridades! Por que esse vazamento? Por que eles não aproveitaram a
ajuda que eu estava dando a eles involuntariamente? Era tão simples dizer:
“Os cem milhões estavam no cofre.” Eles não estão mais lá porque
foram roubados ”!

– Eles perderam a cabeça.

– Sim, aí está você, eles perderam a cabeça… Por
outro lado, é verdade…

– É verdade? …

– Sem nada.

O que essa relutância significa? Ele não disse
tudo, era visível, e o que ele não disse, ele detestava dizer. Fiquei
intrigado. Tinha que ser sério para causar hesitação em um homem assim.

Eu fiz a ele perguntas aleatórias.

– Você não os viu de novo?

– Não.

– E não te aconteceu de sentir alguma pena destes
dois infelizes?

– Eu! ele gritou com um sobressalto.

Sua revolta me surpreendeu. Eu acertei
certo? Eu insisto:

– Obviamente. Sem você, eles poderiam
enfrentar o perigo… ou pelo menos sair com os bolsos cheios.

– remorso, é isso que você me atribui, não é?

– Senhora!

Ele bateu violentamente na minha mesa.

– Então, segundo você, eu deveria ter remorso?

– Chame de remorso ou arrependimento, enfim,
qualquer sentimento…

– Qualquer sentimento pelas pessoas…

– Para pessoas de quem você roubou uma fortuna.

– Que fortuna?

– Finalmente… esses dois ou três pacotes de
títulos…

– Esses dois ou três pacotes de títulos! Roubei
pacotes de títulos deles, não roubei? parte de sua herança? Isso é
minha culpa? este é o meu crime?

“Mas, droga, minha querida, você não adivinhou
que esses títulos eram falsos?… Está ouvindo?

 

ELES ESTAVAM ERRADOS!



Eu olhei para ele, pasmo.

– Errado, os quatro ou cinco milhões.

– Falso, gritou ele com raiva, arqui-falso! títulos,
as cidades de Paris, fundos do Estado, papel, nada além de papel! Nem um
centavo, eu não tirei um centavo de todo o quarteirão! E você me pede para ter
remorso? Mas são eles que deveriam ter! Eles me enganaram como uma garota
vulgar! Eles me pegaram como o último de seus tolos, e o mais estúpido!

A raiva real o mexeu, composta de ressentimento e
autoestima ferida.

– Mas, de ponta a ponta, eu tinha o fundo! desde a
primeira hora! Você sabe o papel que desempenhei neste caso, ou melhor, o papel
que eles me fizeram desempenhar? André Brawford’s! Sim, minha querida, e
não vi nada além de fogo!

“Foi depois, através dos jornais, e conciliando
alguns detalhes, que percebi. Enquanto eu posava para o benfeitor, para o
cavalheiro que arriscou a vida para tirar você das garras dos apaches, eles me
fizeram passar por um dos Brawfords!

“Não é admirável? Esse original que tinha seu
quarto no segundo andar, esse selvagem mostrava de longe, era Brawford, e
Brawford, era eu! E graças a mim, graças à confiança que inspirei com o nome de
Brawford, os banqueiros emprestadores e os tabeliães exortou seus clientes
a emprestar! Huh, que escola para um iniciante! Ah! Juro para você que a lição
me serviu bem!

Ele parou abruptamente, agarrou meu braço e me
disse em um tom exasperado em que era fácil perceber nuances de ironia e
admiração, ele me disse esta frase inefável:

– Minha cara, no momento Gervaise Imbert me deve
mil e quinhentos francos!

Pela primeira vez, não pude deixar de rir. Era
uma bufonaria verdadeiramente superior. E ele mesmo teve um acesso de
franca alegria.

– Sim, minha cara, mil e quinhentos francos! Não só
não senti o primeiro centavo do meu salário, mas ela também me pediu mil e
quinhentos francos! Todas as minhas economias quando jovem! E você sabe por
quê? Eu dou a você em mil… Pelos seus pobres! Como eu te digo! por
supostos infelizes que ela substituiu sem o conhecimento de Ludovic!

“E eu cortei lá! ” Isso é engraçado
o suficiente, hein? Arsène Lupin refaz mil e quinhentos francos, e refaz
pela boa senhora de quem roubou quatro milhões de títulos falsos! E quantas
combinações, esforços e truques brilhantes me custou para chegar a este lindo
resultado!

“É a única vez que estou rasgado na minha vida. Mas que droga, eu
estava mesmo dessa vez, e com razão, nos ótimos preços! …

 

 

A PÉROLA NEGRA

 


           O toque violento da
campainha acordou a portaria do número 9, avenue Hoche. Ela puxou a corda,
rosnando:

– Achei que todos tivessem voltado para
casa. São pelo menos três horas!

Seu marido resmungou:

– Talvez seja para o médico.

Na verdade, uma voz perguntou:

– Doutor Harel… em que andar?

– Terceiro à esquerda. Mas o médico não se
importa à noite.

– Ele vai ter que se perturbar.

O cavalheiro entrou no corredor, subiu um andar,
dois andares e, sem parar nem no patamar do doutor Harel, continuou até o
quinto. Lá ele tentou duas chaves. Um operava a fechadura, o outro a
fechadura de segurança.

– Maravilhosamente, ele sussurrou, o trabalho
é consideravelmente simplificado. Mas antes de agir, devemos garantir
nossa aposentadoria. Vamos ver… eu logicamente tive tempo de tocar a
campainha para o médico e ser despedido por ele? Ainda não… um pouco de
paciência…

Depois de dez minutos ou mais, ele desceu as
escadas e bateu no vidro da janela do camarim, resmungando contra o
médico. Foi aberta para ele, e ele bateu a porta atrás de si. No
entanto, esta porta não se fechou, pois o homem aplicou rapidamente um pedaço de
ferro no guarda-redes para que o ferrolho não pudesse entrar.

Então ele voltou calmamente, sem o conhecimento dos
concierges. Em caso de alarme, sua aposentadoria estava garantida.

Tranquilamente, ele subiu os cinco andares. Na
antessala, à luz de uma lanterna elétrica, colocou o sobretudo e o chapéu em
uma das cadeiras, sentou-se na outra e enrolou as botas em grossas sapatilhas
de feltro.

– Ufa! é isso… E com que facilidade! Eu me
pergunto por que nem todo mundo escolhe o trabalho confortável de ladrão? Com
um pouco de habilidade e consideração, não poderia ser mais charmoso. Um
trabalho de descanso… um trabalho de pai de família… Muito conveniente até…
torna-se tedioso.

Ele desdobrou uma planta detalhada do apartamento.

– Vamos começar nos orientando. Bem
aqui, Eu vejo o retângulo do corredor onde estou. Do lado da rua, a
sala de estar, o boudoir e a sala de jantar. Não precisa perder tempo aí,
parece que a condessa tem um gosto deplorável… não é uma bugiganga valiosa!…
Então, direto ao ponto… Ah! aqui está o desenho de um corredor, do corredor
que leva aos quartos. Aos três metros, devo encontrar a porta do armário
com os vestidos que se comunica com o quarto da condessa.

Ele dobrou sua planta, apagou a lanterna e entrou
no corredor, contando:

– Um metro… Dois metros… três metros… Aqui
está a porta… Como tudo está dando certo, meu Deus! Uma fechadura simples,
uma fechadura pequena, separa-me do quarto e, mais do que isso, sei que esta
fechadura se encontra a um metro do chão… De modo que, graças a uma ligeira
incisão que vou fazer à volta, nós vai se livrar disso…

Ele tirou do bolso os instrumentos necessários, mas
uma ideia o deteve.

– E se, por acaso, esse bloqueio não foi
empurrado. Sempre tente… Pelo que custa!

Ele girou o botão da fechadura. A porta se
abriu.

– Meu bravo Lupin, a sorte está definitivamente a
seu favor. O que você precisa agora? Você conhece a topografia dos
locais onde vai operar; você conhece o lugar onde a condessa esconde a
pérola negra…Portanto, para que a pérola negra seja sua, é simplesmente uma
questão de estar mais quieto que o silêncio, mais invisível que a noite.

Arsène Lupin gastou meia hora para abrir a segunda
porta, uma porta de vidro que dava para o quarto. Mas ele o fez com tal
precaução que, embora a condessa não tivesse dormido, nenhum rangido ambíguo
poderia tê-lo perturbado.

De acordo com seu plano, ele só tinha que seguir o
contorno de uma espreguiçadeira. Isso o levou a uma poltrona, depois a uma
mesinha perto da cama. Sobre a mesa havia uma caixa de papel para cartas
e, simplesmente trancada nessa caixa, a pérola negra.

Ele se esticou no tapete e seguiu os contornos da
espreguiçadeira. Mas no final ele parou para suprimir as batidas de seu
coração. Embora nenhum medo o agitasse, era-lhe impossível superar esse
tipo de angústia nervosa que se experimenta em um silêncio excessivo. E
ele ficou surpreso com isso, pois, afinal, ele havia vivido minutos mais
solenes sem emoção. Nenhum perigo o ameaçou. Então, por que seu coração
estava batendo como um sino em pânico? Foi essa mulher adormecida que o
impressionou, esta vida tão perto dele?

Ele ouviu e pensou ter visto o ritmo de uma
respiração. Ele foi tranquilizado como se por uma presença amigável.

Ele estendeu a mão para a cadeira, então, com
pequenos gestos insensíveis, rastejou até a mesa, sentindo a sombra de seu
braço estendido. Sua mão direita encontrou uma das pernas da mesa.

Finalmente! tudo o que ele precisava fazer era se
levantar, pegar a pérola e ir embora. Felizmente! pois o coração dela
voltou a pular no peito como uma fera apavorada, e com tal ruído que lhe
parecia impossível que a condessa não acordasse.

Ele o acalmou com uma prodigiosa onda de vontade,
mas, ao tentar se levantar, sua mão esquerda bateu no tapete um objeto que ele
imediatamente reconheceu como uma tocha, uma tocha revirada; e
imediatamente outro objeto se apresentou, um relógio, um daqueles pequenos
relógios de viagem que são cobertos por uma bainha de couro.

Que? O que estava acontecendo? Ele não
entendeu. Esta tocha,… este relógio… por que esses objetos não estavam
em seus lugares habituais? Ah! o que estava acontecendo nas sombras
assustadoras?

E de repente, um grito escapou dele. Ele havia
tocado… oh! que coisa estranha e indescritível! Mas não, não, o medo
estava perturbando seu cérebro. Vinte segundos, trinta segundos, ele
permaneceu imóvel, apavorado, suor nas têmporas. E seus dedos mantiveram a
sensação desse contato.

Com um esforço implacável, ele estendeu a mão
novamente. Sua mão tocou a coisa novamente,a coisa
estranha, indescritível. Ele sentiu isso. Ele exigiu que sua mão
sentisse e percebesse. Era um cabelo, um rosto… e aquele rosto era frio,
quase gelado.

Por mais aterrorizante que seja a realidade, um
homem como Arsène Lupin a domina assim que a vê. Rapidamente, ele ativou a
mola de sua lanterna. Uma mulher estava deitada na frente dele, coberta de
sangue. Feridas horríveis devastaram seu pescoço e ombros. Ele se
abaixou e o examinou. Ela estava morta.

“Morto, morto”, repetiu ele com espanto.

E ele estava olhando para aqueles olhos fixos, o
sorriso malicioso daquela boca, aquela carne lívida, e aquele sangue, todo
aquele sangue que havia derramado no tapete e agora congelado, espesso e preto.

Levantando-se, ele girou o botão liga / desliga, a sala
se encheu de luz e ele pôde ver todos os sinais de uma luta feroz. A cama
estava completamente desfeita, os cobertores e lençóis rasgados. No chão,
a tocha, depois o relógio – os ponteiros marcavam onze e vinte – depois, mais
adiante, uma cadeira tombada, e por toda parte sangue, poças de sangue.

– E a pérola negra? ele sussurrou.

A caixa de papelaria estava em seu lugar. Ele
o abriu rapidamente. Continha o caso. Mas a caixa estava vazia.

– Droga, disse a si mesmo, você se gabou um
pouco no início da sua sorte, minha amiga Arsène Lupin… A condessa
assassinada, a pérola negra perdida… a situação não é brilhante! Vamos, senão
você corre o risco de incorrer em pesadas responsabilidades.

Ele não se moveu, entretanto.

– Fugir? Sim, outro escaparia. Mas, Arsène
Lupin? Não há algo melhor para fazer? Vamos ver, vamos colocar em
ordem. Afinal, sua consciência está limpa… Suponha que você seja um
superintendente de polícia e precise investigar… Sim, mas isso exigiria um
cérebro mais limpo. E o meu está em um estado!

Ele caiu em uma poltrona, os punhos cerrados contra
a testa quente.

 

 

O caso da Avenue Hoche é um dos que mais nos
intrigam nos últimos tempos, e eu certamente não o teria contado se a
participação de Arsène Lupin não o tivesse iluminado de uma maneira muito
especial. Essa participação, poucos são os que suspeitam. Em todo
caso, ninguém conhece a verdade exata e curiosa.

Quem não sabia, tendo-a conhecido no Bois, Léontine
Zalti, a ex-cantora, esposa e viúva do Conde d’Andillot, o Zalti cujo luxo
deslumbrou Paris, alguns vinte anos, a Zalti, condessa de Andillot, para
quem seus ornamentos de diamantes e pérolas valiam uma reputação
europeia? Dizia-se que carregava nos ombros os cofres de vários bancos e
as minas de ouro de várias empresas australianas. Os grandes joalheiros
trabalharam para os Zalti como costumávamos trabalhar para reis e rainhas.

E quem não se lembra da catástrofe em que toda essa
riqueza foi engolida? Casas de bancos e minas de ouro, o abismo devorou
​​tudo. Da maravilhosa coleção, distribuída pelo leiloeiro, restou
apenas a famosa p
érola negra. A Pérola Negra! ou seja, uma
fortuna, se ela quisesse se livrar dela.

Ela não queria. Ela preferia se restringir,
viver em um apartamento simples com sua companheira, sua cozinheira e um
criado, ao invés de vender esta joia inestimável. Havia um motivo que ela
não tinha medo de admitir: a pérola negra era um presente do imperador! E quase
arruinada, reduzida à existência mais medíocre, ela permaneceu fiel ao seu
companheiro com bom tempo.

– Eu vivo, ela disse, não vou deixá-la.

De manhã à noite, ela o usava no pescoço. À
noite, ela o colocava em um lugar conhecido apenas por ela mesma.

Todos esses fatos relembrados pelos jornais
públicos estimularam a curiosidade e, por incrível que pareça, mas de fácil
compreensão para quem tem a palavra do enigma, foi justamente a prisão do
suposto assassino que complicou o mistério e prolongou o mistério.. Dois dias
depois, de fato, os jornais publicaram as seguintes notícias:

“Somos informados da prisão de Victor Danègre, o
servo da condessa de Andillot. As acusações contra ele são avassaladoras. Na
manga lustrina de seu colete de libré, que o senhor Dudouis, o chefe da Sûreté,
encontrou em seu sótão, entre o estrado de molas e o colchão, havia manchas de
sangue. Além disso, faltava neste colete um botão forrado de tecido. Mas
esse botão, desde o início das buscas, havia sido pego embaixo da cama da
vítima.

“É provável que depois do jantar Danègre, em vez de
voltar ao seu sótão, tenha escorregado para o armário, e que, pela porta de
vidro, tenha visto a condessa escondendo a pérola negra.

“Temos que dizer que, até o momento, nenhuma
evidência veio para apoiar essa suposição. Em qualquer caso, outro ponto
permanece obscuro. Às sete da manhã, Danègre foi à tabacaria no Boulevard
de Courcelles: primeiro o porteiro e depois a tabacaria testemunharam a esse
respeito. Por outro lado, a cozinheira da condessae sua companheira, que
dormem ambas no final do corredor, afirmam que às oito horas, quando se
levantaram, a porta da ante-sala e a da cozinha estavam trancadas com chave
dupla. Há vinte anos a serviço da condessa, essas duas pessoas estão acima
de qualquer suspeita. Portanto, nos perguntamos como Danègre saiu do
apartamento. Ele tinha feito outra chave? A instrução irá esclarecer
esses diferentes pontos.”

A instrução não esclarece absolutamente nada, pelo
contrário. Soubemos que Victor Danègre era um perigoso reincidente, um
alcoólatra e libertino, a quem esfaquear não assustava. Mas o assunto em
si parecia, à medida que era estudado, envolver-se em uma escuridão mais densa
e em contradições mais inexplicáveis.

Em primeiro lugar, uma jovem de Sinclèves, prima e
única herdeira da vítima, declarou que a condessa, um mês antes de sua morte,
havia lhe contado em uma de suas cartas como ela escondeu a pérola
negra. Um dia depois de receber esta carta, ela percebeu que ela havia
desaparecido. Quem o roubou?

Os concierges, por sua vez, contaram que abriram a
porta a um indivíduo que se dirigiu ao doutor Harel. O médico foi
convocado. Ninguém tocou a campainha em sua casa.Então, quem era esse
indivíduo? Um cúmplice?

Essa hipótese de cúmplice foi adotada pela imprensa
e pelo público. Ganimard, o velho inspetor-chefe Ganimard a defendeu, não
sem razão.

“O Lupin está lá embaixo”, disse ele ao
juiz.

– Bah! respondeu o último, você o vê em todos os
lugares, seu Lupin.

– Eu o vejo em todos os lugares, porque ele está em
todos os lugares.

– Diga antes que você o vê sempre que algo não lhe
parece muito claro. Além disso, neste caso, repare o seguinte: o crime foi
cometido às 11h20, como atesta o relógio, e a visita nocturna, denunciada pelos
concierges, só aconteceu às três da manhã.

A justiça frequentemente obedece ao treinamento
dessas convicções, o que significa que os eventos são forçados a obedecer à
explicação inicial que foi dada. Os deploráveis
​​antecedentes de Victor Danègre, reincidente, bêbado e debochado, influenciaram
o juiz e, embora nenhuma nova circunstância viesse a corroborar as duas ou três
pistas originalmente descobertas, nada o abalou. Ele completou sua
instrução. Algumas semanas depois, os debates começaram.

Eles estavam envergonhados e
lânguidos. a o presidente os conduzia sem ardor. O promotor
público atacou suavemente. Nessas condições, o advogado de Danègre fez um
bom jogo, mostrando as lacunas e as impossibilidades da acusação. Nenhuma
evidência física existia. Quem forjou a chave, a chave indispensável sem a
qual Danègre, depois da sua partida, não poderia ter trancado duas vezes a
porta do apartamento? Quem viu essa chave e o que aconteceu com
ela? Quem viu a faca do assassino e o que aconteceu com ela?

– E, em qualquer caso, concluiu o advogado, provar
que foi o meu cliente quem matou. Prove que o autor do furto e do crime
não é aquele personagem misterioso que invadiu a casa às três da manhã. O
relógio marcava onze horas, você vai me dizer? E depois? não podemos
acertar os ponteiros do relógio na hora que mais lhe convier?

Victor Danègre foi absolvido.

 

 

Ele foi libertado da prisão em uma noite de
sexta-feira, emaciado, deprimido por seis meses em uma cela. A instrução,
a solidão, os debates, as deliberações do júri, tudo isso o enchia de um pavor
mórbido. À noite, pesadelos terríveis, visões de andaimes o
assombravam. Ele estava tremendo de febre e terror.

Com o nome de Anatole Dufour, ele alugou um pequeno
quarto nas alturas de Montmartre, e vivia em tarefas aleatórias, mexendo com
direita e esquerda.

Vida lamentável! Por três vezes contratado por três
chefes diferentes, foi reconhecido e demitido na hora.

Muitas vezes ele percebeu, ou pensou ter percebido,
que homens o perseguiam, homens da polícia, ele não tinha dúvidas, que não
desistiram de fazê-lo cair em alguma armadilha. E de antemão sentiu o
abraço rude da mão que o segurava pela gola.

Uma noite, quando ele estava jantando em um bufê
local, alguém sentou-se à sua frente. Ele era um homem na casa dos
quarenta, vestido com uma sobrecasaca preta de limpeza questionável. Ele
pediu sopa, legumes e um litro de vinho.

E depois de tomar a sopa, ele voltou os olhos para
Danègre e olhou para ele por um longo tempo.

Danègre fica pálido. Com certeza esse
indivíduo era um dos que o seguiram por semanas. O que ele queria
dela? Danègre tentou se levantar. Ele não conseguiu. Suas pernas
cambaleavam sob ele.

O homem serviu-se de uma taça de vinho e encheu a
taça de Danègre.

– Bebemos, camarada?

Victor gaguejou:

– Sim… sim… para sua saúde, camarada.

– À sua saúde, Victor Danègre.

O outro saltou:

– Eu!… Eu!… Mas não… eu juro…

– Você me jura o quê? que você não é
você? a serva da condessa?

– Que servo? Meu nome é Dufour. Pergunte
ao chefe.

– Dufour, Anatole, sim, pelo chefe, mas Danègre
pela justiça, Victor Danègre.

– Não é verdade! Não é verdade! mentiram para você.

O recém-chegado tirou um cartão do bolso e
entregou-o. Victor leu: “Grimaudan, ex-inspetor da Sûreté. Informação
confidencial. Ele se encolheu.

– Você é da polícia?

– Não estou mais, mas gostei do trabalho, e
continuo de uma forma mais… lucrativa. De vez em quando, descobrimos
negócios de ouro… como o seu.

– Minha?

– Sim, o seu é um caso excepcional, se, no entanto,
você gostaria de colocar um pouco de complacência nele.

– E se eu não fizer?

– Ele vai. Você está em uma situação em que
não pode me recusar nada.

Uma apreensão surda invadiu Victor
Danègre. Ele perguntou :

– O que é?… Fale.

– De qualquer maneira, respondeu o outro, vamos
acabar logo com isso. Em suma, aqui estou enviada por M lle de
Sinclèves.

– Sinclèves?

– A herdeira da condessa de Andillot.

– Nós vamos?

– Bem, M lle de Sinclèves
pediu-me que lhe pedisse a pérola negra.

– A Pérola Negra?

– O que você roubou.

– Mas eu não tenho!

– Tu tens isso.

– Se eu tivesse, seria o assassino.

– Você é o assassino.

Danègre tentou rir.

– Felizmente, meu bom senhor, o Tribunal de Justiça
não era da mesma opinião. Todos os jurados, você ouve, me consideraram
inocente. E quando você tem a sua consciência para você e a estima de doze
pessoas boas…

O ex-inspetor agarra seu braço:

– Sem frases, meu rapaz. Ouça-me com atenção e
pese minhas palavras, elas valem a pena. Danègre, três semanas antes do
crime, você roubou a chave que abre a porta dos fundos do fogão e mandou fazer
uma chave semelhante em Outard, o chaveiro, 244 rue Oberkampf.

– Não é verdade, não é verdade, ralhou
Victor, ninguém viu esta chave… ela não existe.

– Lá está ela.

Depois de um silêncio, Grimaudan retomou:

– Você matou a condessa com um canivete comprado no
Bazar da República, no mesmo dia em que encomendou sua chave. A lâmina é
triangular e oca com uma ranhura.

– Brincando, tudo isso você fala ao
acaso. Ninguém viu a faca.

– Aqui está.

Victor Danègre recuou. O ex-inspetor
continuou:

– Tem manchas de ferrugem. Você precisa
explicar de onde vem?

– E depois?… Você tem uma chave e uma faca… Quem
pode dizer que me pertenceram?

– Primeiro o chaveiro e depois o funcionário de
quem comprou a faca. Já refresquei a memória deles. Na sua frente,
eles certamente o reconhecerão.

Ele falou rispidamente e asperamente, com uma
precisão aterrorizante. Danègre teve uma convulsão de medo. Nem o
juiz, nem o presidente da Assembleia, nem o advogado-geral o tinham levado tão
de perto, tinham visto com tanta clareza coisas que ele próprio já não via com
clareza.

No entanto, ele ainda tentou jogar indiferença.

– Se essa for a sua prova!

– Eu tenho este sobrando. Você saiu, depois do
crime, pelo mesmo caminho. Mas, no meio do armário assustado dos vestidos,
era preciso encostar na parede para manter o equilíbrio.

– Como você sabe? Victor gaguejou… ninguém pode
saber.

– Justiça, não, não poderia ocorrer a nenhum desses
senhores da sala acender uma vela e examinar as paredes. Mas se o
fizéssemos, veríamos no gesso branco uma marca vermelha muito clara, porém
clara o suficiente para encontrarmos a marca da face anterior do seu polegar,
do seu polegar todo molhado de sangue e que você colocou. Contra a parede. No
entanto, você sabe que na antropometria esse é um dos principais meios de
identificação.

Victor Danègre estava pálido. Gotas de suor
escorreram de sua testa para a mesa. Ele fitou aquele homem estranho com
olhos demente, que falava de seu crime como se o tivesse testemunhado sem ser
visto.

Ele baixou a cabeça, derrotado, indefeso. Por
meses ele lutou contra todos. Contra esse homem, ele teve a impressão de
que nada havia a ser feito.

“Se eu devolver a pérola para você”, ele
gaguejou, “quanto você vai me dar?”

– Nenhuma coisa.

– Como? ”Ou“ O quê! você está tirando sarro! Eu lhe
daria algo no valor de mil e cem mil e não recebo nada?

– Se vida.

O desgraçado estremeceu. Grimaudan
acrescentou, em um tom quase gentil:

– Venha, Danègre, esta pérola não tem valor para
você. Você não pode vendê-lo. Qual é a utilidade de mantê-lo?

– Tem corretivo… e um dia ou outro, a qualquer
custo…

– Um dia ou outro, será tarde demais.

– Por que?

– Por que? mas porque a justiça terá posto as mãos
sobre você, e, desta vez, com as provas que eu irei fornecer, a faca, a chave,
a indicação do polegar, você está arruinado, meu bom homem.

Victor abraçou sua cabeça com as duas mãos e
considerou. Sentia-se perdido, de fato, irreparavelmente perdido e, ao
mesmo tempo, um grande cansaço o invadia, uma necessidade imensa de descanso e
abandono.

Ele sussurrou:

– Quando você precisa?

– Esta noite, antes da uma hora.

– De outra forma?

– Caso contrário, enviarei esta carta para
onde M filha de Sinclèves você denunciou o promotor.

Danègre serviu-se de duas taças de vinho que bebeu
em rápida sucessão, então, levantando-se:

– Pague a conta e vamos… Já estou farto deste
maldito negócio.

 

A noite havia chegado. Os dois homens desceram
a rue Lepic e seguiram os bulevares externos em direção ao
Star. Caminhavam em silêncio, Victor, muito cansado e com as costas
curvadas.

No Parc Monceau, ele diz:

– Fica do lado da casa…

– Claro! você só o deixou, antes de sua prisão,
para ir à tabacaria.

“Chegamos”, disse Danègre, com a voz oca.

Eles caminharam ao longo do portão do jardim e
atravessaram uma rua onde a tabacaria ficava na esquina. Danègre parou
alguns passos mais adiante. Suas pernas tremiam. Ele caiu em um
banco.

– Nós vamos? perguntou seu companheiro.

– Está aqui.

– Está aqui! o que você está cantando para mim?

– Sim ali, na nossa frente.

– Na nossa frente! Diga, Danègre, não devemos…

– Repito que está aí.

– Ou?

– Entre duas pedras de pavimentação.

– Que?

– Descobrir.

– Que? repetiu Grimaudan.

Victor não respondeu.

– Ah! perfeito, você quer que eu poso, meu homem.

– Não… mas… vou morrer de miséria.

– Então, você hesita? Vamos, serei um bom
príncipe. Quanto você precisa

– O suficiente para levar minha passagem de
terceira classe para a América.

– Acordado.

– E cem notas para as primeiras despesas.

– Você terá dois. Falar.

– Conte as pedras do calçamento, à direita do
esgoto. É entre o décimo segundo e o décimo terceiro.

– No riacho?

– Sim, na calçada.

Grimaudan olhou ao seu redor. Os bondes
estavam passando, as pessoas estavam passando. Mas bah! quem poderia suspeitar?…

Ele abriu a faca e a enfiou entre a décima segunda
e a décima terceira pedras do pavimento.

– E se ela não estiver lá?

– Se ninguém me viu me abaixar e empurrá-la, ela
ainda está lá.

Será que ela estava lá! A pérola negra jogada na
lama de um riacho, à disposição do primeiro que chegar! A pérola negra… uma
fortuna!

– Quão profundo?

– Dez centímetros, aproximadamente.

Ele cavou a areia molhada. A ponta de seu
canivete atingiu algo. Com os dedos, ele alarga o buraco.

Ele viu a pérola negra.

– Aqui estão seus duzentos francos. Vou mandar
sua passagem para a América.

 

No dia seguinte, o Echo de France publicou
este pequeno artigo, que foi reproduzido por jornais de todo o mundo:

Desde ontem, a famosa pérola
negra está nas mãos de Arsène Lupin que a tirou do assassino da Condessa de
Andillot. Em pouco tempo, fac-símiles desta joia preciosa serão exibidos
em Londres, São Petersburgo, Calcutá, Buenos-Ayres e Nova York.

Arsène Lupin aguarda as
propostas que seus correspondentes vão querer fazer a ele.

 

 

– E é assim que o crime é sempre punido e a virtude
recompensada, conclui Arsène. Lupin, quando me revelou os meandros do
caso.

– E foi assim que, sob o nome de Grimaudan,
ex-inspetor da Segurança, você foi escolhido pelo destino para tirar do
criminoso o benefício de seu crime.

– Exatamente. E admito que é uma das aventuras
de que mais me orgulho. Os quarenta minutos que passei no apartamento da
condessa, depois de testemunhar sua morte, estão entre os mais surpreendentes e
profundos de minha vida. Em quarenta minutos, enredado na mais
inextricável situação, reconstituí o crime, adquiri a certeza, com a ajuda de
algumas pistas, que o culpado só poderia ser um criado da condessa. Por
fim, entendi que, para ter a pérola, esse criado tinha que ser preso – e deixei
o botão do colete – mas que não deve haver provas irrefutáveis
​​de sua culpa contra ele. – e
peguei a faca esquecida o tapete, tirou a chave esquecida na fechadura, fechou
duas vezes a porta,
 e apagou as impressões digitais no gesso do
armário. Na minha opinião, este foi um daqueles relâmpagos…

– De gênio, eu interrompi.

– De gênio, se quiserem, e que não teria iluminado
o cérebro do primeiro que chegou. Adivinhe os dois termos do problema em
um segundo -uma prisão e uma absolvição – para usar o formidável aparato de
justiça para destruir meu homem, para entorpecê-lo, em suma, para colocá-lo em
um estado de espírito tal que uma vez livre ele teria inevitavelmente,
fatalmente, de cair na armadilha um tanto grosseira que eu configurei para ele!

– Um pouco? dizer muito, pois ele não corria
perigo.

– Oh! não menos importante, uma vez que qualquer
absolvição é final.

– Pobre diabo…

– Pobre diabo… Victor Danègre! você não acha que
ele é um assassino? Teria sido a última imoralidade a pérola negra permanecer
com ele. Ele vive, acho que sim, Danègre vive!

– E a pérola negra é sua.

Ele o tirou de um dos bolsos secretos de sua
carteira, examinou-o, acariciou-o com os dedos e com os olhos movidos, e
suspirou:

– Quem é o boyar, quem é o rajá imbecil e vaidoso
que possuirá este tesouro? Quem é o bilionário americano destinado à
pequena peça de beleza e luxo que adornava os ombros brancos de Léontine Zalti,
condessa de Andillot?…

 



Sherlock
Holmes chega tarde demais

 


  
– É estranho que você se pareça com
Arsène Lupin, Velmont!

– Você o conhece?

– Oh! Como toda a gente, através das suas
fotografias, nenhuma das quais igual às outras, mas cada uma delas deixa a
impressão de uma fisionomia idêntica… que é verdadeiramente tua.

Horace Velmont parecia bastante irritado.

– Não é, minha querida Devanne! E você não é o
primeiro a me apontar isso, acredite.

– É verdade, insistiu Devanne, que se você não
tivesse me sido recomendado por meu primo d’Estevan, e se você não fosse o
famoso pintor cujas belas paisagens marinhas eu admiro, eu me pergunto se eu
não teria informado a polícia de sua presença em Dieppe.

A piada foi recebida com risos gerais. Estavam
ali, na grande sala de jantar do castelo de Thibermesnil, além de Velmont: o
abade Gélis, pároco da aldeia, e uma dezena de oficiais, cujos regimentos
manobravam nas proximidades, e que tinham respondido ao convite do banqueiro
Georges Devanne e sua mãe. Um deles exclamou:

– Mas Arsène Lupin não foi especificamente relatado
na costa, após seu famoso golpe da corredeira de Paris em Le Havre?

– Perfeitamente, três meses atrás, e na semana
seguinte conheci nosso excelente Velmont no cassino, que desde então
gentilmente me honrou com algumas visitas – preâmbulo agradável para uma visita
domiciliar mais séria do que ele me devolverá uma dessas dias… ou melhor, uma
dessas noites!

Rimos de novo e entramos na velha sala da guarda,
uma sala grande e muito alta que ocupa toda a parte inferior da torre
Guillaume, e onde Georges Devanne reuniu a riqueza incomparável acumulada ao
longo dos séculos pelos Senhores de Thibermesnil. Baús e credenciais,
bandeirolas e girandoles o decoram. Tapeçarias magníficas estão penduradas
nas paredes de pedra. As canhoneiras das quatro janelas são profundas,
equipadas com bancos, e terminam em vitrais pontiagudos emoldurados em
chumbo. Entre a porta ea janela da esquerda ergue-se uma monumental
biblioteca de estilo renascentista, em cujo frontão lemos, em letras douradas,
“Thibermesnil” e, abaixo, o orgulhoso lema da família: “Faça o
que quiser”.”

E enquanto eles acendiam charutos, Devanne
continuou:

– Só se apresse, Velmont, é a última noite que você
saiu.

– E porque? disse o pintor, que decididamente levou
o assunto de brincadeira.

Devanne estava prestes a responder quando sua mãe
fez um sinal para ele. Mas a empolgação do jantar, o desejo de interessar
os convidados, prevaleceu.

– Bah! ele sussurrou, eu posso falar agora. A
indiscrição não deve mais ser temida.

Sentaram-se à sua volta com grande curiosidade e
ele disse, com o ar satisfeito de quem anuncia uma grande novidade:

– Amanhã, às quatro da tarde, Sherlock Holmes, o
grande policial inglês para quem não há mistério, Sherlock Holmes, o mais
extraordinário decifrador de enigmas que já vimos, o personagem prodigioso que
parece forjado do zero por a imaginação de um romancista, Sherlock Holmes será
meu convidado.

Nós gritamos. Sherlock Holmes em
Thibermesnil. Então era sério? Arsène Lupin estava mesmo na região?

– Arsène Lupin e sua gangue não estão
longe. Sem contar o caso do Barão Cahorn, a quem atribuir os roubos de
Montigny, Gruchet, Crasville, senão ao nosso ladrão nacional? Hoje é minha
vez.

– E você está avisado, como foi o Barão Cahorn?

– O mesmo truque não funciona duas vezes.

– Assim?

– Então?… então aqui está.

Ele se levantou e apontou para um pequeno espaço
vazio em uma das prateleiras da biblioteca entre dois fólios enormes:

– Havia um livro, um livro do século xvi intitulado o Chronicle
Thibermesnil
, e que foi a história do castelo desde a sua construção pelo
Duque Rollo no local de uma fortaleza feudal. Continha três placas
gravadas. Uma delas era uma visão panorâmica da propriedade como um todo,
a segunda a planta dos edifícios, e a terceira – eu chamo sua atenção para isso
– o layout de uma passagem subterrânea de onde uma das saídas se abre para o
exterior do primeira linha das muralhas, e a outra das quais termina aqui, sim,
na mesma sala em que estamos. No entanto, este livro está desaparecido
desde o mês passado.

– Droga – disse Velmont -, isso é um mau
sinal. Só isso não é suficiente para motivar a intervenção de Sherlock
Holmes.

– Certamente isso não teria bastado, se não
houvesse outro fato que confere ao que acabo de contar todo o seu
significado. Uma segunda cópia desta Crônica existia na Biblioteca
Nacional, e essas duas cópias diferiam em certos detalhes sobre o underground,
como o estabelecimento de um perfil e uma escala, e várias anotações, não
impressas, mas escritas a tinta e mais ou menos apagado. Eu conhecia essas
peculiaridades e sabia que o layout final só poderia ser reconstruído por uma
comparação cuidadosa dos dois mapas. Porém, no dia seguinte ao do
desaparecimento do meu exemplar, o da Biblioteca Nacional foi solicitado por um
leitor que o levou embora sem que fosse possível determinar as condições em que
o furto foi realizado.

Exclamações saudaram essas palavras.

– Desta vez o assunto está ficando sério.

“Portanto, desta vez”, disse Devanne, “a polícia
ficou contrariada e houve uma investigação dupla, que, aliás, não teve
resultado.

– Como todos aqueles de que Arsène Lupin é o
objeto.

– Precisamente. Foi então que me ocorreu pedir
ajuda a Sherlock Holmes, que respondeu que tinha o maior desejo de entrar em
contato com Arsène Lupin.

– Que glória para Arsène Lupin! disse Velmont!
Mas, se nosso ladrão nacional, como você o chama, não tem planos para
Thibermesnil, Sherlock Holmes terá apenas de girar os polegares?

– Há algo mais, e que o interessará profundamente,
a descoberta do underground.

– O que, você nos disse que uma das entradas dava
para o campo, a outra para esta mesma sala!

– Ou? Onde neste show? A linha que representa
a passagem subterrânea nos mapas termina de um lado em um pequeno círculo
acompanhado por estas duas letras maiúsculas “TG”, o que
provavelmente significa, não é, Tour Guillaume. Mas a torre é redonda, e
quem poderia determinar onde começa o contorno do desenho no círculo?

Devanne acendeu um segundo charuto e serviu-se de
uma taça de Beneditino. Eles o pressionaram com perguntas. Ele estava
sorrindo, feliz com o interesse despertado. Finalmente ele disse:

– O segredo está perdido. Ninguém no mundo o
conhece. De pai para filho, diz a lenda, os poderosos senhores a
transmitiram ao leito de morte, até o dia em que Geoffroy, o último com esse
nome, teve a cabeça decepada no cadafalso, no 7º Termidor ano II, aos dez anos
– nono ano.

– Mas, durante um século, tivemos que pesquisar?

– Procuramos, mas em vão. Eu mesmo, quando
comprei o castelo em o sobrinho-bisneto do Leribourg convencional, mandei
fazer escavações. Qual é o ponto? Recorde-se que esta torre, rodeada
de água, só está ligada ao castelo por um ponto, pelo que a passagem
subterrânea deve passar por baixo das antigas valas. A planta da
Biblioteca Nacional mostra também uma série de quatro escadas com quarenta e
oito degraus, o que sugere uma profundidade de mais de dez metros. E a
escala, anexada ao outro plano, fixa a distância em duzentos metros. Na
verdade, todo o problema está aqui, entre este piso, este teto e estas
paredes. Bem, eu admito que hesito em demoli-los.

– E não temos ideia?

– Qualquer.

O Padre Gélis objetou:

– Senhor Devanne, temos de mencionar duas citações.

– Oh! gritou Devanne, rindo, “Monsieur le Curé
é um escavador de arquivos, um grande leitor de memórias, e tudo o que toca
Thibermesnil o fascina. Mas a explicação de que fala só serve para
confundir as coisas.

– Mas ainda?

– Você quer?

– Muito.

– Você saberá assim que resulta de suas leituras
que dois reis da França tiveram a palavra do enigma.

– Dois reis da França!

– Henri IV e Louis XVI.

– Eles não são os primeiros a chegar. E como
Monsieur l’Abbé sabe disso?…

– Oh! é muito simples, continuou Devanne. Um
dia antes da Batalha de Arques, o rei Henrique IV veio jantar e dormir neste
castelo. Às onze horas da noite, Louise de Tancarville, a senhora mais
bonita da Normandia, foi-lhe apresentada através da clandestinidade com a
cumplicidade do duque Edgard, que, nesta ocasião, revelou o segredo de
família. Henrique IV mais tarde confidenciou esse segredo a seu ministro
Sully, que relata a anedota em suas “Economias Reais de Estado” sem
acompanhá-la com qualquer outro comentário além desta frase incompreensível:

O machado gira no ar trêmulo, mas a asa se
abre e alcançamos Deus.”

Houve um silêncio e Velmont zombou:

– Não é muito claro.

– Não é? Monsieur le Cure quer que Sully tenha
escrito a palavra do enigma dessa maneira, sem trair o segredo dos escribas a
quem ele ditou suas memórias.

– A hipótese é engenhosa.

– Eu admito, mas o que é esse machado que gira, e
esse pássaro que voa?

– E o que vai para Deus?

– Mistério!

Velmont retomado:

– E esse bom Luís XVI, foi também para receber a
visita de uma senhora, que mandou abrir o underground?

– Eu não sei. Tudo o que se pode dizer é que
Luís XVI se hospedou em Thibermesnil em 1784, e que o famoso armário de ferro,
encontrado no Louvre sobre a denúncia de Gamain, continha um papel com estas
palavras de sua autoria: “ Thibermesnil : 2-6-12.”

Horace Velmont começou a rir:

– Victoire! mais e mais escuridão está se
dissipando. Duas vezes seis são doze.

– Ria como quiser, senhor, disse o abade, a verdade
é que estas duas citações contêm a solução, e que um dia ou outro virá alguém
que saberá interpretá-las.

– Sherlock Holmes primeiro, disse Devanne… A
menos que Arsène Lupin chegue na frente dele. O que você acha, Velmont?

Velmont se levantou, colocou a mão no ombro de
Devanne e declarou:

– Acho que nos dados fornecidos pelo seu livro e da
Biblioteca faltavam informações da maior importância, e que você teve a
gentileza de me oferecer. Obrigada.

– De modo a? …

– De modo que agora o machado tendo girou ao
redor, o pássaro tendo fugido, e duas vezes seis fazendo doze, eu só tenho que
me colocar em campanha.

– Sem perder um minuto.

– Sem perder um segundo! Não devo que esta noite,
isto é, antes da chegada de Sherlock Holmes, eu roubei seu castelo.

– É fato que você só tem tempo. Você quer que
eu te guie?

– Até Dieppe?

– Até Dieppe. Aproveito para trazer a mim e ao
Sr. M eu de Androl e uma garota de amigos que chegam
no trem da meia-noite.

E se dirigindo aos oficiais, Devanne acrescentou:

“Além disso, todos nós nos encontraremos aqui
amanhã para almoçar, não é, senhores?” Conto com você, já que este
castelo deve ser tomado por seus regimentos e invadido por volta das onze
horas.

O convite foi aceito, nós nos separamos e, um
momento depois, uma Gold Star 20-30 carregou Devanne e Velmont na estrada para
Dieppe. Devanne deixou o pintor em frente ao cassino e foi para a
delegacia.

À meia-noite, seus amigos desceram do trem. À
meia-noite e meia, o automóvel passou pelos portões de Thibermesnil. À uma
hora, após um jantar leve servido na sala, todos se retiraram.Gradualmente,
todas as luzes se apagaram. O grande silêncio da noite envolveu o castelo.

 

 

Mas a lua separou as nuvens que a velavam e,
através de duas das janelas, encheu a sala de estar com uma luz
branca. Durou apenas um momento. Muito rapidamente a lua se escondeu
atrás da cortina de colinas. E era escuridão. O silêncio aumentou com
a sombra mais espessa. De vez em quando, dificilmente o perturbava o
rangido dos móveis, nem o farfalhar dos juncos no lago que banha as velhas
paredes de suas verdes águas.

O relógio marcava uma cadeia infinita de
segundos. Ela tocou duas horas. Então, novamente, os segundos caíram
apressada e monotonamente na pesada paz da noite. Então três horas soaram.

E, de repente, algo estalou, por acaso, à medida
que um trem passava, o disco de um sinal que se abre e desce. E um fino
feixe de luz cruzou a sala de um lado a outro, como uma flecha que deixaria
para trás um rastro cintilante. Saltou do sulco central de uma pilastra
sobre a qual repousa, à direita, o frontão da biblioteca. Ele parou
primeiro no painel oposto em um círculo piscando, então elevagou ao redor como
um olhar ansioso perscrutando as sombras, então desmaiou para explodir
novamente, enquanto parte da biblioteca girava e desmascarava uma grande
abertura em forma de arco.

Um homem entrou segurando uma lanterna elétrica na
mão. Outro homem e um terceiro apareceram carregando um rolo de cordas e
vários instrumentos. O primeiro inspecionou a sala, ouviu e disse:

– Chame os camaradas.

Desses camaradas, oito passaram pelo túnel,
companheiros sólidos com rostos enérgicos. E a mudança começou.

Foi rápido. Arsène Lupin ia de um móvel a
outro, examinava-o e, dependendo do seu tamanho ou valor artístico, perdoava ou
encomendava:

– Tire!

E o objeto foi removido, engolido pela boca
escancarada do túnel, enviado para as entranhas da terra.

E assim foram retiradas seis poltronas Luís XV e
seis cadeiras, e tapeçarias Aubusson e girandoles assinadas Gouthière, e dois
Fragonards, e um Nattier, e um busto de Houdon e estatuetas. Às vezes
Lupin se demorava na frente de um baú magnífico ou de uma pintura soberba e
suspirava:

– Pesado demais aquele… grande demais… que pena!

E ele continuou sua especialidade.

Em quarenta minutos, a sala estava
“organizada” para usar a expressão de Arsène. E tudo isso foi
realizado em uma ordem admirável, sem nenhum ruído, como se todos os objetos
que aqueles homens manuseavam fossem forrados com algodão grosso.

Ele então disse ao último deles que estava saindo,
carregando um cartel assinado por Boulle :

– Não precisa voltar. Entende-se, não é, que
assim que o carro-caminhão é carregado, você se dirige ao celeiro de Roquefort.

– Mas você, chefe?

– Me dê a motocicleta.

Com a saída do homem, ele empurrou o lado móvel da
biblioteca de volta contra ela, então, após remover os vestígios da mudança,
apagando as pegadas, levantou uma porta e entrou em uma galeria que servia de
comunicação entre a torre e o castelo. No meio havia uma janela, e foi por
causa dela que Arsène Lupin continuou suas investigações.

Continha maravilhas, uma coleção única de relógios,
caixas de rapé, anéis, chatelaines, miniaturas dos melhores trabalhos. Com
um alicate, ele forçou a fechadura, e foi umprazer inexprimível em apoderar-se
dessas joias de ouro e prata, dessas pequenas obras de uma arte tão preciosa e
tão delicada.

Ele tinha pendurado uma grande bolsa de lona em
volta do pescoço, especialmente equipada para essas pechinchas. Ele o
preenche. E também encheu os bolsos do paletó, da calça e do
colete. E ele estava fechando o braço esquerdo em torno de uma pilha
daquelas retículas de pérolas com o gosto de nossos ancestrais, e que a moda
atual busca com tanta paixão… quando um leve ruído atingiu seu ouvido.

Ele ouviu: não se enganou, o ruído foi ficando mais
claro.

E de repente ele se lembrou: no final da galeria,
uma escada interna levava a um apartamento, até então desocupado, mas que,
desde aquela noite, estava reservado para essa jovem que Devanne fora procurar
em Dieppe, com seus filhos amigos de Androl.

Com um gesto rápido, pressionou a mola de sua
lanterna com o dedo: apagou-se. Ele mal havia alcançado a seteira de uma
janela quando, no topo da escada, a porta foi aberta e um brilho fraco iluminou
a galeria.

Teve a sensação – pois, meio escondido por uma
cortina, não conseguia ver – de que uma pessoa descia cuidadosamente os
primeiros degraus. Ele esperava que ela não fosse maisdistante. Ela
saiu, porém, e deu vários passos para dentro da sala. Mas ela soltou um
grito. Sem dúvida ela tinha visto a janela quebrada, três quartos vazia.

Pelo cheiro, ele reconheceu a presença de uma
mulher. Suas roupas quase roçaram na cortina que o escondia, e teve a
impressão de ouvir o coração dessa mulher batendo e também ela adivinhar a
presença de outro ser, atrás dela, nas sombras, ao alcance dela. Sua mão… Disse
a si mesmo: “Ela está com medo… vai embora… é impossível ela não
ir.” Ela não foi embora. A vela, que tremia em sua mão,
endureceu. Ela se virou, hesitou por um momento, pareceu ouvir o silêncio
amedrontador e, de repente, puxou a cortina de lado.

Eles se viram.

Arsène sussurrou, chateado:

– Você… você… senhorita.

Era Miss Nelly.

Senhorita Nelly! a passageira do Transatlântico,
aquela que misturou os seus sonhos com os sonhos do jovem durante esta
travessia inesquecível, aquela que testemunhou a sua detenção e que, em vez de
o trair, teve o belo gesto de atirar para o mar onde escondeu as joias e as
notas… Miss Nelly! a querida e sorridente criatura cuja imagem tantas vezes
entristeceu ou alegrou as suas longas horas na prisão!

A chance era tão prodigiosa que os colocou na
presença um do outro neste castelo e a esta hora da noite, que não se mexiam e
não pronunciavam uma palavra, maravilhados, como hipnotizados pela fantástica
aparição de que estavam um pelo outro.

Cambaleando, destruída pela emoção, Miss Nelly teve
de se sentar.

Ele permaneceu parado na frente dela. E pouco
a pouco, ao longo dos intermináveis
​​segundos que se passaram, foi percebendo a impressão que devia dar naquele
momento, os bra
ços carregados de bugigangas, os
bolsos inchados e a bolsa cheia até a borda deles. Uma grande confusão o
invadiu, e ele enrubesceu ao se encontrar ali, naquela postura feia de ladrão
que se assume no ato. Para ela, agora, aconteça o que acontecer, ele é o
ladrão, aquele que põe a mão nos bolsos dos outros, aquele que tranca as portas
e entra furtivamente.

Um dos relógios rolou no tapete, outro
também. E ainda outras coisas iam escorregar de seus braços, que ele não
sabia como conter. Então, decidindo-se abruptamente, deixou alguns dos
itens caírem na poltrona, esvaziou os bolsos e jogou a sacola no lixo.

Ele se sentiu mais confortável na frente de Nelly e
deu um passo em sua direção com a intenção de falar com ela. Mas ela se
encolheu, levantou-se rapidamente, como se estivesse apavorada, e correu para a
frente.em direção à sala de estar. A porta se fechou e ele se juntou a
ela. Lá estava ela, estupefata, tremendo, e seus olhos fitaram com terror
a imensa sala devastada.

Ele imediatamente disse a ela:

– Amanhã às três horas estará tudo arrumado… Os
móveis serão devolvidos…

Ela não respondeu, e ele repetiu:

– Amanhã, às três horas, eu concordo… Nada no
mundo poderá me impedir de cumprir minha promessa… Amanhã, às três horas…

Um longo silêncio pairou sobre eles. Ele não
ousou quebrá-lo, e a emoção da jovem lhe causou uma dor real. Lentamente,
sem dizer uma palavra, ele se afastou dela.

E ele pensou:

– Deixe ela ir!… Deixe ela ficar à vontade para
ir!… Que ela não tenha medo de mim! …

Mas de repente ela começou e gaguejou:

– Ouça… passos… eu ouço andar…

Ele olhou para ela com espanto. Ela parecia
oprimida, à medida que se aproximava do perigo.

– Não ouço nada, disse ele, e mesmo assim…

– Como? ”Ou“ O quê! mas você tem que fugir… rápido,
fuja…

– Fuja… por quê?

– É necessário… é necessário… Ah! não fique…

De repente, ela correu para a entrada da galeria e
ouviu. Não, não havia ninguém. Será que o barulho vinha de fora?… Ela
esperou um segundo, depois, tranquilizada, se virou.

Arsène Lupin havia desaparecido.

 

 

No exato momento em que Devanne percebeu o saque de
seu castelo, ele disse a si mesmo: foi Velmont quem fez o trabalho, e Velmont
não é outro senão Arsène Lupin. Tudo foi explicado assim, e nada foi
explicado de outra forma. Essa ideia apenas arranhou a superfície, de tão
improvável que Velmont não fosse Velmont, isto é, o famoso pintor, o camarada
de círculo de seu primo d’Estevan. E quando o sargento da polícia,
imediatamente informado, se apresentou, Devanne nem pensou em lhe comunicar
essa suposição absurda.

Durante toda a manhã houve idas e vindas
indescritíveis em Thibermesnil. Os gendarmes, o jardineiro, o comissário
de polícia de Dieppe, os habitantes da aldeia, todos se agitavam nos
corredores, ou no parque, ou em volta do castelo. A aproximação das tropas
em manobra, o estalar dos canhões, somavam-se ao cenário pitoresco.

A primeira pesquisa não forneceu pistas. Como
as janelas não foram quebradas nem as portas quebradas, sem dúvida
o movimento foi efetuado pela saída secreta. Porém, no tapete, nenhum
traço de passos, nas paredes, nenhuma marca incomum.

Só uma coisa, inesperada e bem representada a
fantasia de Arsène Lupin: o famoso Chronicle of xvi th século tinha retomado seu antigo
lugar e, em seguida, era um livro similar, que não era outro senão a cópia
roubada da Biblioteca Nacional.

Às onze horas os oficiais chegaram. Devanne os
cumprimentou alegremente – qualquer que fosse o aborrecimento que a perda de
tais riquezas artísticas pudesse causar a ele, sua fortuna o capacitou a
suportá-la sem mau humor. – Seus amigos Androl e Nelly desceram as
escadas.

Pelas apresentações feitas, percebemos que faltava
um convidado, Horace Velmont. Ele não viria?

Sua ausência teria despertado as suspeitas de
Georges Devanne. Mas precisamente ao meio-dia, ele entrou. Devanne
exclamou:

– Tudo em bom tempo! Olha Você aqui !

– Não estou correto?

– Sim, mas você não podia… depois de uma noite
tão agitada! porque você sabe das novidades?

– Que novidades?

– Você roubou o castelo.

– Vamos!

– Como eu te digo. Mas dê tudoprimeiro seu
braço para a Srta. Underdown, e vamos para a mesa… Srta., permita-me…

Ele parou, surpreso com a confusão da
jovem. Então, de repente, lembrando-se:

– É verdade, aliás, você viajou com Arsène Lupin,
há muito tempo… antes da prisão dele… A semelhança te surpreende, não é?

Ela não respondeu. Na frente dela, Velmont
estava sorrindo. Ele se curvou, ela pegou seu braço. Ele a conduziu
até seu assento e se sentou em frente a ela.

Durante o almoço, conversamos apenas sobre Arsène
Lupin, os móveis removidos, o subsolo, Sherlock Holmes. Apenas no final da
refeição, enquanto outros assuntos estavam sendo discutidos, Velmont entrou na
conversa. Ele era divertido e sério, eloquente e espirituoso. E tudo
o que ele dizia parecia dizer apenas para interessar à jovem. Muito
absorta, ela parecia não ouvi-lo.

O café foi servido no terraço com vista para o
pátio principal e o jardim francês na lateral da fachada principal. No
meio do gramado, a música do regimento começou a tocar e a multidão de camponeses
e soldados lotou os becos do parque.

No entanto, Nelly lembrou-se da promessa de Arsène
Lupin: “Às três horas estará tudo lá, concordo.”

Às três horas! e os ponteiros do grande relógio que
adornava a asa direita marcavam duas e quarenta. Ela olhava para eles
apesar de si mesma o tempo todo. E ela também estava olhando para Velmont,
que se balançava pacificamente em uma confortável cadeira de balanço.

Duzentos e cinquenta… dois cinquenta e cinco… uma
espécie de impaciência, misturada com angústia, envolveu a jovem. Seria
admissível que o milagre se realizasse, e que fosse realizado no minuto
marcado, quando o castelo, o tribunal, o campo estivessem cheios de gente, e
que neste mesmo momento o procurador e o juiz de instrução continuassem a sua investigação?

E ainda… ainda assim, Arsène Lupin havia
prometido com tanta solenidade! Será como ele disse, pensou ela, impressionada
com tudo o que havia neste homem, energia, autoridade e certeza. E já não
lhe parecia um milagre, mas um acontecimento natural que devia ocorrer por
força das circunstâncias.

Por um segundo, seus olhos se encontraram. Ela
corou e desviou o olhar.

Três horas… A primeira batida tocou, a segunda
batida, a terceira… Horace Velmont puxou o relógio, olhou para o relógio e
colocou o relógio de volta no bolso. Alguns segundos se passaram. E
aqui está a multidão afastou-se pelo gramado, dando lugar a duas carruagens que
acabavam de cruzar o portão do parque, ambas atreladas a dois
cavalos. Eram as carrinhas que seguem os regimentos e transportam as
cantinas dos oficiais e as malas dos soldados. Eles pararam na frente da
escada. Um contramestre saltou de um dos assentos e perguntou pelo Sr.
Devanne.

Devanne subiu correndo e desceu as
escadas. Sob as lonas, ele viu, cuidadosamente arrumados, bem embrulhados,
seus móveis, suas pinturas, suas obras de arte.

Às perguntas feitas a ele, o contramestre respondeu
mostrando a ordem que havia recebido do ajudante de plantão, e que este
ajudante havia levado, pela manhã, ao relatório. Por esta ordem, a segunda
companhia do quarto batalhão deveria assegurar que os objetos móveis
depositados no cruzamento de Halleux, na floresta de Arques, fossem trazidos às
três horas para o Sr. Georges Devanne, dono do castelo de Thibermesnil. Assinado:
Coronel Beauvel.

– Na encruzilhada, acrescentou o sargento, estava
tudo pronto, alinhado na grama, e sob a guarda… dos
transeuntes. Pareceu-me engraçado, mas o quê! a ordem era categórica.

Um dos oficiais examinou a assinatura: estava
perfeitamente imitada, mas falsa.

A música havia parado de tocar, esvaziamos as vans,
voltamos aos móveis.

Em meio a essa comoção, Nelly foi deixada sozinha
no final do terraço. Ela estava séria e preocupada, agitada por
pensamentos confusos que não procurava formular. De repente, ela viu Velmont
se aproximando. Ela queria evitá-lo, mas o ângulo da balaustrada que
margeia o terraço a cercava dos dois lados e uma fileira de grandes caixas de
arbustos, laranjeiras, loendros e bambus não lhe deixava outro refúgio além do
caminho por onde o jovem estava avançando. Ela não se mexeu. Um raio
de sol tremia em seus cabelos dourados, agitado pelas frágeis folhas de um
bambu. Alguém disse muito baixo:

– Eu mantive minha promessa ontem à noite.

Arsène Lupin estava perto dela, e ao redor deles
não havia ninguém.

Ele repetiu, sua atitude hesitante, sua voz tímida:

– Eu mantive minha promessa ontem à noite.

Ele esperava uma palavra de agradecimento, pelo
menos um gesto que demonstrasse o interesse que ela demonstrava pelo
ato. Ela ficou em silêncio.

Esse desprezo irritava Arsène Lupin e, ao mesmo
tempo, ele tinha uma noção profunda de tudo que o separava de Nelly, agora que
ela sabia a verdade. Ele gostaria de se exonerar, de procurar desculpas,
de mostrar sua vida no que era ousado e grandioso. Mas, de antemão, palavras
o ofendiam e ele sentia o absurdo e a insolência de qualquer
explicação. Então ele sussurrou tristemente, inundado por uma enxurrada de
memórias:

– Quão longe está o passado! Você se lembra das
longas horas na Pont de la Provence? Ah! aqui… você tinha, como
hoje, uma rosa na mão, uma rosa pálida como esta… eu te perguntei… você
parecia não ouvir… Porém, depois de sua partida, encontrei a rosa… provavelmente
esquecida… guardei…

Ela ainda não respondeu. Ela parecia muito
longe dele. Ele continuou :

– Em memória daquelas horas, não pense no que você
conhece. Que o passado esteja ligado ao presente! Que eu não seja aquele
que você viu ontem à noite, mas o de antigamente, e que seus olhos me olhem,
mesmo que por um segundo, ao me olharem… Por favor… Não sou mais o mesmo?

Ela ergueu os olhos, quando ele pediu, e olhou para
ele. Então, sem dizer uma palavra, ela colocou o dedo em um anel que ele
usava no dedo indicador. Só se via o anel, mas o gatinho, virado para
dentro, era feito de um rubi maravilhoso.

Arsène Lupin corou. Este anel pertenceu a
Georges Devanne.

Ele sorri amargamente:

– Você está certo. O que foi, sempre
será. Arsène Lupin é e só pode ser Arsène Lupin, e entre você e ele não
pode haver sequer uma memória… Perdoe-me… Eu deveria ter entendido que
minha mera presença com você é um ultraje…

Ele recuou ao longo do parapeito, chapéu na
mão. Nelly passou por ele. Ele ficou tentado a contê-la, a
implorá-la. A ousadia falhou e ele a seguiu com os olhos, como no dia
distante em que ela cruzava a passarela do cais de Nova York. Ela subiu os
degraus que conduzem à porta. Por um momento mais, sua figura esguia
destacou-se entre os mármores do salão. Ele não a via mais.

Uma nuvem obscurece o sol. Arsène Lupin
observou, imóvel, o traço de pequenos passos impressos na areia. De
repente, ele se assustou: na caixa de bambu contra a qual Nelly se apoiara
jazia a rosa, a rosa pálida que ele não ousara perguntar a ela… Esquecida,
sem dúvida, também? Mas esquecido de propósito ou por distração?

Ele a agarra ardentemente. Pétalas separadas
dele. Ele os pegou um por um como relíquias…

– Venha, disse a si mesmo, não tenho mais nada para
fazer aqui. Considere a aposentadoria. Especialmente porque se
Sherlock Holmes se envolve, pode ficar ruim.

 

 

O parque estava deserto. Porém, perto do
pavilhão que comanda a entrada, estava um grupo de policiais. Ele
mergulhou no matagal, escalou a parede do perímetro e pegou um caminho para
chegar à estação mais próxima, que serpenteava pelos campos. Ele não caminhava
há dez minutos quando o caminho se estreita, espremido entre dois aterros, e
quando ele chegou neste desfiladeiro, alguém estava entrando, vindo na direção
oposta.

Ele era um homem de cerca de cinquenta anos,
talvez, bastante forte, com o rosto raspado e cujo traje destacava o aspecto
estrangeiro. Ele carregava uma bengala pesada na mão e uma bolsa pendurada
no pescoço.

Eles se cruzaram. O estranho disse, com um
sotaque inglês quase imperceptível:

– Com licença, senhor… é esta a estrada para o castelo
aqui?

– Siga em frente, senhor, e à esquerda assim que
estiver ao pé da parede. Estamos ansiosos para vê-lo.

– Ah!

– Sim, minha amiga Devanne nos contou sobre sua
visita ontem à noite.

– Pena para M. Devanne se ele falou demais.

– E fico feliz em ser o primeiro a
cumprimentá-lo. Sherlock Holmes não tem um admirador mais fervoroso do que
eu.

Havia em sua voz um toque imperceptível de ironia
da qual ele imediatamente se arrependeu, pois Sherlock Holmes olhou para ele da
cabeça aos pés, e com um olho ao mesmo tempo tão envolvente e agudo, que Arsène
Lupin teve a impressão de estar sendo apreendido, preso, gravado por esse
olhar, mais exatamente e mais essencialmente do que jamais tinha sido por
qualquer câmera.

– A foto foi tirada, ele pensou. Não há necessidade
de me disfarçar mais com esse cara. Apenas… ele me reconheceu?

Eles se cumprimentaram. Mas os passos ecoaram,
o som de cavalos empinando com um estalo de aço. Foram os
gendarmes. Os dois homens tiveram que se agarrar ao aterro, na grama alta,
para evitar serem empurrados. Os gendarmes passaram e, como se seguiram a
certa distância, foi um pouco longo. E Lupin pensou:

– Tudo depende dessa pergunta: ele me
reconheceu? Nesse caso, há uma boa chance de que ele abuse da
situação. O problema é angustiante.

Quando o último cavaleiro passou por eles, Sherlock
Holmes se levantou e, sem dizer uma palavra, escovou suas roupas
empoeiradas. A alça de sua bolsa foi embaraçada com um galho de
espinhos. Arsène Lupin se apressou. Outro segundo eles se
examinaram. E, se alguém tivesse podido surpreendê-los naquele momento,
teria sido uma visão comovente se o primeiro encontro desses dois homens, tão
estranhos, tão poderosamente armados, ambos verdadeiramente superiores, e
destinados inevitavelmente por suas aptidões especiais a colidir como duas
forças iguais que a ordem das coisas empurra uma contra a outra através do
espaço.

Então o inglês disse:

– Agradeço senhor.

“Tudo a seu serviço,” Lupin respondeu.

Eles se separaram. Lupin caminhou em direção à
estação Sherlock Holmes em direção ao castelo.

 

O juiz de instrução e o promotor público haviam
partido após uma pesquisa infrutífera, e Sherlock Holmes era esperado com uma
curiosidade justificada por sua grande reputação. Ficamos um pouco
decepcionados com sua aparência de bom burguês, que era profundamente diferente
da imagem que tínhamos dele. Ele nada tinha do herói de um romance, do
personagem enigmático e diabólico que a ideia de Sherlock Holmes evoca em
nós. Devanne, no entanto, exclamou em exuberância:

– Finalmente, Mestre, é você! Que felicidade! Faz
tanto tempo que esperava… Estou quase feliz com tudo o que aconteceu, pois me
deu o prazer de vê-lo. Mas, por falar nisso, como você veio?

– De trem !

– Que pena! No entanto, enviei meu carro para o
cais.

– Uma chegada oficial, não é? com bateria e
música! Excelente maneira de facilitar meu trabalho, resmungou o inglês.

Esse tom nada convidativo desconcertou Devanne,
que, tentando brincar, continuou:

– Felizmente, o trabalho é mais fácil do que
escrevi para você.

– E porque?

– Porque o roubo aconteceu ontem à noite.

– Se não tivesse anunciado a minha visita, senhor,
é provável que o roubo não tivesse ocorrido ontem à noite.

– E quando?

– Amanhã ou outro dia.

– E neste caso?

– Lupin teria ficado preso.

– E a minha mobília?

– Não teria sido removido.

– Minha mobília está aqui.

– Bem aqui?

– Eles foram trazidos de volta às três horas.

– Por Lupin?

– Por duas vans militares.

Sherlock Holmes tirou o chapéu violentamente sobre
a cabeça e ajeitou a bolsa; mas Devanne, com cem golpes, exclamou:

– O que você está fazendo?

– Eu estou saindo.

– E porque?

– Sua mobília está aí, Arsène Lupin está
longe. Meu papel acabou.

– Mas eu preciso absolutamente de sua ajuda, caro
senhor. O que aconteceu ontem pode repetir-se amanhã, já que não sabemos o
mais importante, como Arsène Lupin entrou, como saiu e porque, poucas horas
depois, fez essa restituição.

– Ah! você não sabe…

A ideia de um segredo a ser descoberto suaviza Sherlock
Holmes.

– Ok, vamos ver. Mas rápido, não é? e,
tanto quanto possível, sozinho.

A frase designava claramente os
assistentes. Devanne entendeu e apresentou o inglês à sala de
estar. Em tom seco, em frases que pareciam ter sido contadas
antecipadamente, e com que parcimônia! Shears fez-lhe perguntas sobre a noite
anterior, sobre os convidados que estavam lá, sobre os frequentadores do
castelo. Então ele examinou os dois volumes do Chronicle, compararam os
mapas subterrâneos, mandaram repetir-lhe as citações do Padre Gélis, e
perguntou-lhe:

– Foi ontem que, pela primeira vez, você mencionou
essas duas citações?

– Ontem.

– Você nunca os comunicou ao Sr. Horace Velmont?

– Nunca.

– Boa. Encomende o seu automóvel. Estou
saindo em uma hora.

– Em uma hora !

– Arsène Lupin não se esforçou mais para resolver o
problema que você colocou para ele.

– Eu!… Eu perguntei a ele…

– Ei! sim, Arsène Lupin e Velmont, é a mesma coisa.

– Suspeitei… ah! The Rogue!

– Mas ontem à noite, às dez horas, você forneceu a
Lupin os elementos da verdade de que ele faltava e que vinha procurando há
semanas. E, no decorrer da noite, Lupin encontrou tempo para entender,
para montar sua gangue e para roubar você. Eu alego ser tão rápido.

Ele vagou pela sala pensando, então se sentou,
cruzou as longas pernas e fechou os olhos.

Devanne esperou, bastante envergonhado.

– Ele está dormindo? Ele está pensando?

Na chance de ele sair para dar ordens. Quando
ele voltou, ele a viu ao pé da escada da galeria, ajoelhada, olhando para o
tapete.

– O que é isso?

– Olha… ali… essas manchas de vela…

– Bem, de fato… e tudo fresco…

– E vocês também podem vê-los no alto da escada, e
ainda mais em volta dessa janela que Arsène Lupin quebrou, e da qual tirou as
bugigangas para colocá-las nesta poltrona.

– E você conclui?

– Nenhuma coisa. Todos esses fatos explicariam,
sem dúvida, a restituição que ele trouxe. Mas esse é um lado da questão
que não tenho tempo para abordar. O principal é a rota do metrô.

– Você ainda espera…

– Não espero, eu sei. Há, não é, uma capela a
duzentos ou trezentos metros do castelo?

– Uma capela em ruínas, onde se encontra o túmulo
do duque Rollo.

– Diga ao seu motorista que ele nos espera perto
desta capela.

– Meu motorista ainda não voltou… Devem avisar…
Mas, pelo que vejo, você estima que o subterrâneo leva à capela. Em que
pista…

Sherlock Holmes o interrompeu:

– Peço-lhe, senhor, que me dê uma escada e uma
lanterna.

– Ah! Você precisa de uma lanterna e uma escada?

– Aparentemente, já que estou perguntando.

Devanne, um tanto surpreso com essa lógica áspera,
tocou a campainha. Os dois objetos foram trazidos.

As ordens se sucediam com o rigor e a precisão dos
comandos militares.

– Aplique esta escada contra a estante, à esquerda
da palavra Thibermesnil…

Devanne subiu a escada e o inglês continuou:

– Mais à esquerda… à direita… Pare!… Suba… Bem…
Todas as letras desta palavra estão em relevo, não estão?

– Sim.

– Estamos lidando com a letra H. Ela gira para um
lado ou para outro?

Devanne pegou a letra H e exclamou:

– Sim, gira! à direita e um quarto de círculo! Quem
te revelou?…

Sem responder, Sherlock Holmes continuou:

– Você consegue, de onde você é, chegar à letra
R? Sim… Balance-o algumas vezes, como faria com um empurre e puxe a
trava.

Devanne acenou com a letra R. Para seu espanto,
havia um gatilho interno.

– Perfeito, disse Sherlock Holmes. Basta
deslizar a escada para o outro lado, ou seja, no final da palavra Thibermesnil…
Bom… E agora, se não me engano, se as coisas forem feitas como deveriam, a
letra L abrirá bem como uma janela.

Com certa solenidade, Devanne agarrou a letra L. A
letra L se abriu, mas Devanne caiu da escada, pois toda a estante localizada
entre a primeira e a última letra da palavra girou sobre si mesma e descobriu o
orifício de o subterrâneo.

Sherlock Holmes disse, fleumático:

– Você não está ferido?

– Não, não, disse Devanne, levantando-se, não
machucada, mas desnorteada, concordo… essas letras que se movem… esse
subterrâneo escancarado…

– E depois? Isso não está exatamente de acordo com
a citação de Sully?

– Em que, Senhor?

– Senhora! O H gira, o R e L estremeceu abre… e
isso é o que tem permitido Henry para receber M lle Tancarville
em uma hora incomum.

– Mas Luís XVI? perguntou Devanne, pasmo.

– Luís XVI foi um grande ferreiro e um serralheiro
habilidoso. Eu li um “Tratado sobre Fechaduras de Combinação”
atribuído a ele. Da parte de Thibermesnil, estava se comportando como um
bom cortesão ao mostrar a seu mestre esta obra-prima da mecânica. Para
constar, o rei escreveu: 2-6-12, ou seja, HRL, a segunda, a sexta e a décima
segunda letras da palavra.

– Ah! Perfeito, estou começando a entender… Só,
aqui… Se eu me explicar como saímos desta sala, não consigo entender como
Lupin pode ter entrado nela. Porque, veja bem, ele veio de fora.

Sherlock Holmes acendeu a lanterna e deu alguns passos
em direção à passagem subterrânea.

– Aqui, todo o mecanismo é aparente aqui, como as
molas de um relógio, e todas as letras estão lá de cabeça para
baixo. Lupin precisava apenas fazê-los brincar deste lado da partição.

– Que prova?

– Que prova? Veja esta poça de
óleo. Lupin havia até previsto que as engrenagens precisariam ser
engraxadas, disse Sherlock Holmes não sem admiração.

– Mas então ele sabia a outra saída?

– Como eu a conheço. Me siga.

– No subsolo?

– Você está com medo?

– Não, mas tem certeza de que se reconhece aí?

– Olhos fechados.

Eles desceram doze degraus primeiro, depois mais
doze e duas vezes mais doze. Em seguida, eles percorreram um longo
corredor cujas paredes de tijolo traziam a marca de restaurações sucessivas e
que escorria em alguns lugares. O chão estava úmido.

– Passamos embaixo da lagoa, comentou Devanne, nada
tranquilo.

O corredor terminava em uma escada de doze degraus,
seguida por mais três escadarias de doze degraus, que eles escalaram com
dificuldade, e emergiram em uma pequena cavidade escavada na rocha. O
caminho não foi adiante.

– Diabo, murmurou Sherlock Holmes, nada além de
paredes nuas, fica constrangedor.

– Se voltássemos, murmurou Devanne, porque, afinal,
não vejo necessidade de saber mais. Estou edificado.

Mas, tendo levantado a cabeça, o inglês deu um
suspiro de alívio: acima deles repetia-se o mesmo mecanismo da
entrada. Ele só teve que manobrar as três letras. Um bloco de granito
tombou. Do outro lado, estava a lápide do Duque Rollo, gravada com as doze
letras em relevo “Thibermesnil”. E eles se encontraram na
pequena capela em ruínas que os ingleses haviam designado.

– “E vamos a Deus”, ou seja, à capela, disse ele,
relatando o fim da citação.

– É possível, gritou Devanne, confuso com a
clarividência e vivacidade de Sherlock Holmes, será que essa simples indicação
foi suficiente para você?

– Bah! disse o inglês, era até inútil. No
exemplar da Biblioteca Nacional, a linha termina na esquerda, sabe, com um
círculo, e na direita, você ignora, com uma pequena cruz, mas tão apagada que
só dá para ver… no Loup. Esta cruz obviamente significa a capela onde
estamos.

Pobre Devanne, não conseguia acreditar no que
estava ouvindo.

– É incrível, milagroso e, no entanto,
infantilmente simples! Como nunca ninguém resolveu esse mistério?

– Porque ninguém jamais reuniu os três ou quatro
elementos necessários, ou seja, os dois livros e as citações… Ninguém, exceto
Arsène Lupin e eu.

– Mas eu também, objetou Devanne, e padre Gélis… Nós
dois sabíamos tanto quanto você, e mesmo assim…

Shears sorri.

– Sr. Devanne, nem todo mundo é capaz de decifrar
os enigmas.

– Mas estou procurando há dez anos. E você, em
dez minutos…

– Bah! o hábito…

Eles saíram da capela, e o inglês gritou:

– Aqui, um carro esperando!

– Mas é meu!

– Seu? mas pensei que o motorista não tivesse
voltado.

– Sim… e eu me pergunto…

Eles caminharam até o carro e Devanne, chamando o
motorista:

– Édouard, quem mandou você vir aqui?

“Mas”, respondeu o homem, “é M.
Velmont.”

– Sr. Velmont? Então você o conheceu?

– Perto da estação, e ele me disse para ir à
capela.

– Ir para a capela! mas por que?

– Para esperar lá pelo senhor… e seu amigo.

Devanne e Sherlock Holmes se
entreolharam. Devanne diz:

– Ele entendeu que o enigma seria um jogo para
você. A homenagem é delicada.

Um sorriso de contentamento franziu os
lábios detetive esbelto. A homenagem o agradou. Ele disse,
acenando com a cabeça:

– É um homem. Além do mais, só de ver isso eu
tinha julgado.

– Então você o viu?

– Nós nos cruzamos antes.

– E você sabia que era Horace Velmont, quero dizer
Arsène Lupin?

– Não, mas fui rápido em adivinhar… com certa
ironia da parte dele.

– E você deixou escapar?

– Bem, sim… eu tive a parte bonita… cinco
policiais passando.

– Mas dane-se! foi a oportunidade ou nunca de aproveitar…

– Exatamente, senhor, disse o inglês com altivez,
quando se trata de um adversário como Arsène Lupin, Sherlock Holmes não
aproveita as oportunidades… ele as dá à luz…

Mas a hora se aproximava e, como Lupin tinha tido a
encantadora atenção de mandar o automóvel, era preciso aproveitá-lo sem
demora. Devanne e Sherlock Holmes acomodaram-se na parte de trás da
confortável limusine. Edouard girou a manivela e partimos. Campos,
aglomerados de árvores passaram. As suaves ondulações da região de Caux se
achataram diante deles. De repente, os olhos de Devanne foram atraídos
para um pequeno pacote colocado em um dos compartimentos de armazenamento.

– Ei, o que é isso? Um pacote! E para
quem? Mas é para você.

– Para mim?

– Leia:
“M. Sherlock Holmes, de Arsène Lupin.”

O inglês agarrou o pacote, desatou-o, retirou as
duas folhas de papel que o envolviam. Foi um relógio.

– Aoh! disse ele, acompanhando esta exclamação com
um gesto de raiva…

– Um relógio, disse Devanne, isso é por acaso?…

O inglês não respondeu.

– Como? ”Ou“ O quê! é o seu relógio! Arsène Lupin
devolve seu relógio para você! Mas se ele manda de volta para você, é porque
ele o pegou… Ele pegou o seu relógio! Ah! que bom, aquele, o relógio de Sherlock
Holmes roubado por Arsène Lupin! Deus, que engraçado! Não, é verdade… você me
dá licença… mas é mais forte do que eu.

Ele riu com vontade, incapaz de se conter. E
quando riu bem, disse, em tom convicto:

– Oh! ele é realmente um homem.

O inglês não vacilou. Até Dieppe, ele não
disse uma palavra, os olhos fixos no horizonte que se afastava. Seu
silêncio era terrível, insondável, mais violento do que a maioria da raiva feroz. Na
aterrissagem, ele disse simplesmente, sem raiva desta vez, mas em um tom onde
você pudesse sentir toda a vontade e toda a energia do personagem:

– Sim, ele é um homem, e um homem em cujo ombro eu
gostaria de colocar esta mão que estendo a você, Monsieur Devanne. E eu
tenho uma ideia, você vê, que Arsène Lupin e Sherlock Holmes se encontrarão
novamente um dia ou outro… Sim, o mundo é muito pequeno para eles não se
encontrarem… e naquele dia…

 

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A obra é conhecida por sua representação vívida do fenômeno de múltiplas personalidades, quando em uma mesma pessoa existem tanto uma personalidade boa quanto má, ambas muito distintas uma da outra. O impacto do romance foi tal que se tornou parte do jargão inglês, com a expressão “Jekyll e Hyde” usada para indicar uma pessoa que age de forma moralmente diferente dependendo da situação. Stevenson há muito ficava intrigado com a ideia de como as personalidades humanas podem refletir a interação do bem e do mal. 

Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde foi um sucesso imediato e uma das obras mais vendidas de Stevenson. Adaptações teatrais começaram a ser encenadas em Londres um ano após seu lançamento, e a partir de então o livro inspirou a realização de diversos filmes e peças. O aclamado autor de literatura de terror Stephen King considerou a obra como um dos três grandes clássicos do gênero, sendo os outros dois Frankenstein e Drácula

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