Ler online: IRACEMA, José de Alencar

 


Iracema

 

José de Alencar

 

 

© Copyright 2017, VirtualBooks Editora e
Livraria Ltda Publicado pela primeira vez em 1865. Capa José Maria de Medeiros.
Iracema, 1884 Todos os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98. José
Martiniano de Alencar (1829 — 1877) Iracema. José de Alencar. Pará de Minas,
MG, Brasil: VirtualBooks Editora,  2017.  – ISBN: 9781521789124 – CDD- B869 Literatura
brasileira. Romance indianista.

 

À

Terra Natal

Um Filho Ausente

 

Prólogo (da 1ª edição)

Meu
amigo.

Este
livro o vai naturalmente encontrar em seu pitoresco sítio da várzea, no doce
lar, a que povoa a numerosa prole, alegria e esperança do casal.

Imagino
que é a hora mais ardente da sesta.

O
Sol a pino dardeja raios de fogo sobre as areias natais; as aves emudecem; as
plantas languem. A natureza sofre a influência da poderosa irradiação tropical,
que produz o diamante e o gênio, as duas mais sublimes expressões do poder
criador.

Os
meninos brincam na sombra do outão, com pequenos ossos de reses, que figuram a
boiada. Era assim que eu brincava, há quantos anos, em outro sítio, não mui
distante do seu. A dona da casa, terna e incansável, manda abrir o coco verde,
ou prepara o saboroso creme do buriti para refrigerar o esposo, que pouco há
recolheu de sua excursão pelo sítio, e agora repousa embalando-se na macia e
cômoda rede.

Abra
então este livrinho, que lhe chega da corte imprevisto. Percorra suas páginas
para desenfastiar o espírito das cousas graves que o trazem ocupado.

Talvez
me desvaneça amor do ninho, ou se iludam as reminiscências da infância avivadas
recentemente. Se não, creio que, ao abrir o pequeno volume, sentirá uma onda do
mesmo aroma silvestre e bravio que lhe vem da várzea. Derrama-o, a brisa que
perpassou os espatos da carnaúba e a ramagem das aroeiras em flor.

Essa
onda é a inspiração da pátria que volve a ela, agora e sempre, como volve de
contínuo o olhar do infante para o materno semblante que lhe sorri.

O
livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu de cristalino azul, e
depois vazado no coração cheio das recordações vivaces de uma imaginação
virgem. Escrevi-o para ser lido lá, na varanda da casa rústica ou na fresca
sombra do pomar, ao doce embalo da rede, entre os múrmures do vento que crepita
na areia, ou farfalha nas palmas dos coqueiros.

Para
lá, pois, que é o berço seu, o envio.

Mas
assim mandado por um filho ausente, para muitos estranho, esquecido talvez dos
poucos amigos, e só lembrado pela incessante desafeição, qual sorte será a do
livro?

Que
lhe falte hospitalidade, não há temer. As auras de nossos campos parecem tão
impregnadas dessa virtude primitiva, que quantas raças habitem aí a inspiram
com o hálito vital. Receio sim que seja recebido como estrangeiro e hóspede na
terra dos meus.

Se
porém, ao abordar às plagas do Mocoripe, for acolhido pelo bom cearense,
prezado de seus irmãos ainda mais na adversidade do que nos tempos prósperos,
estou certo que o filho de minha alma achará na terra de seu pai a intimidade e
conchego da família.

O
nome de outros filhos enobrece nossa província na política e na ciência; entre
eles o meu, hoje apagado, quando o trazia brilhantemente aquele que primeiro o
criou. Neste momento mesmo, a espada heróica de muito bravo cearense vai
ceifando no campo da batalha ampla messe de glória. Quem não pode ilustrar a
terra natal canta as lendas suas, sem metro, na rude toada de seus antigos
filhos.

Acolha
pois a primeira mostra e ofereça a nossos patrícios a quem é dedicada.

Este
pedido foi um dos motivos de lhe endereçar o livro; o outro lhe direi depois
que o tenha lido.

Muita
cousa me ocorre dizer sobre o assunto, que talvez devera antecipar à leitura da
obra, para prevenir a surpresa de alguns e responder às observações ou reparos
de outros.

Mas
sempre fui avesso aos prólogos; em meu conceito eles fazem à obra o mesmo que o
pássaro à fruta antes de colhida; roubam as primícias do sabor literário. Por
isso me reservo para depois.

Na
última página me encontrará de novo; então conversaremos a gosto, em mais
liberdade do que teríamos neste pórtico do livro, onde as etiquetas mandam
receber o público com a gravidade e reverência devidas a tão alto senhor.

Rio de Janeiro – Maio
de 1865.

J. DE ALENCAR.






I –




Verdes
mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia
nas
frondes da carnaúba;

Verdes
mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do Sol nascente,
perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros.

Serenai
verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro
manso resvale à flor das águas.

Onde
vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco
terral a grande vela?

Onde
vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano?

Três
entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora.

Um
jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um
rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos, filhos ambos
da mesma terra selvagem.

A
lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o marulho
das vagas:

-Iracema!…

O
moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos presos na sombra fugitiva da
terra; a espaços o olhar empanado por tênue lágrima cai sobre o jirau, onde
folgam as duas inocentes criaturas, companheiras de seu infortúnio.

Nesse
momento o lábio arranca d’alma um agro sorriso.

Que
deixara ele na terra do exílio?

Uma
história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da noite,
quando a Lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares.

Refresca
o vento.

O
rulo das vagas precipita. O barco salta sobre as ondas; desaparece no
horizonte. Abre-se a imensidade dos mares; e a borrasca enverga, como o condor,
as foscas asas sobre o abismo.

Deus
te leve a salvo, brioso e altivo barco, por entre as vagas revoltas, e te poje
nalguma enseada amiga. Soprem para ti as brandas auras; e para ti jaspeie a
bonança mares de leite.

Enquanto
vogas assim à discrição do vento, airoso barco, volva às brancas areias a
saudade, que te acompanha, mas não se parte da terra onde revoa.






II –




Além,
muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema,
a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da
graúna, e mais longos que seu
talhe de palmeira.

O
favo da jati não era doce
como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

Mais
rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da
grande nação tabajara. O pé
grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com
as primeiras águas.

Um
dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo
a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia
silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os
pássaros ameigavam o canto.

Iracema
saiu do banho: o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou
em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e
concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.

A
graciosa ará, sua companheira e
amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a
virgem pelo nome; outras remexe o uru de
palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá4, as
agulhas da juçara com que
tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.

Rumor
suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol
não deslumbra; sua vista perturba-se.

Diante
dela e todo a contemplá-la está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não
algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o
mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos
ignotos cobrem-lhe o corpo.

Foi
rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu.
Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.

De
primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O
moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de
ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.

O
sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem
lançou de si o arco e a uiraçaba,
e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara.

A
mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava.
Depois Iracema quebrou a flecha homicida:
deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.

O
guerreiro falou:

-Quebras
comigo a flecha da paz?

-Quem
te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas
matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?

-Venho
de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já
possuíram, e hoje têm os meus.

-Bem-vindo
seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana
de Araquém, pai de Iracema.






III –




O
estrangeiro seguiu a virgem através da floresta.

Quando
o Sol descambava sobre a crista dos montes, e a rola desatava do fundo da mata
os primeiros arrulhos, eles descobriram no vale a grande taba; e mais longe,
pendurada no rochedo, à sombra dos altos juazeiros, a cabana do pajé.

O
ancião fumava à porta, sentado na esteira de carnaúba, meditando os sagrados
ritos de Tupã. O tênue sopro da brisa carmeava, como frocos de algodão, os
compridos e raros cabelos brancos. De imóvel que estava, sumia a vida nos olhos
cavos e nas rugas profundas.

O
pajé lobrigou os dois vultos que avançavam; cuidou ver a sombra de uma árvore
solitária que vinha alongando-se pelo vale fora.

Quando
os viajantes entraram na densa penumbra do bosque, então seu olhar como o do
tigre, afeito às trevas, conheceu Iracema e viu que a seguia um jovem
guerreiro, de estranha raça e longes terras.

As
tribos tabajaras, d’além Ibiapaba,
falavam de uma nova raça de guerreiros, alvos como flores de borrasca, e vindos
de remota plaga às margens do Mearim. O ancião pensou que fosse um guerreiro
semelhante, aquele que pisava os campos nativos.

Tranqüilo,
esperou.

A
virgem aponta para o estrangeiro e diz:

-Ele
veio, pai.

-Veio
bem. É Tupã que traz o hóspede à cabana de Araquém.

Assim
dizendo, o pajé passou o cachimbo ao estrangeiro; e entraram ambos na cabana.

O
mancebo sentou-se na rede principal, suspensa no centro da habitação.

Iracema
acendeu o fogo da hospitalidade; e trouxe o que havia de provisões para
satisfazer a fome e a sede: trouxe o resto da caça, a farinha-d’água, os frutos
silvestres, os favos de mel e o vinho de caju e ananás.

Depois
a virgem entrou com a igaçaba,
que enchera na fonte próxima de água fresca para lavar o rosto e as mãos do
estrangeiro.

Quando
o guerreiro terminou a refeição, o velho pajé apagou o cachimbo e falou:

-Vieste?

-Vim,
respondeu o desconhecido.

-Bem
vieste. O estrangeiro é senhor na cabana de Araquém. Os tabajaras têm mil
guerreiros para defendê-lo, e mulheres sem conta para servi-lo. Dize, e todos
te obedecerão.

-Pajé,
eu te agradeço o agasalho que me deste. Logo que o Sol nascer, deixarei tua
cabana e teus campos aonde vim perdido; mas não devo deixá-los sem dizer-te
quem é o guerreiro, que fizeste amigo.

-Foi
a Tupã que o pajé serviu: ele te trouxe, ele te levará. Araquém nada fez pelo
hóspede; não pergunta donde vem, e quando vai. Se queres dormir, desçam sobre
ti os sonhos alegres; se queres falar, teu hóspede escuta.

O
estrangeiro disse:

-Sou
dos guerreiros brancos, que levantaram a taba nas margens do Jaguaribe, perto do mar, onde habitam os
pitiguaras, inimigos de tua nação. Meu nome é Martim, que na tua língua diz como filho de
guerreiro; meu sangue, o do grande povo que primeiro viu as terras de tua
pátria. Já meus destroçados companheiros voltaram por mar às margens do
Paraíba, de onde vieram; e o chefe, desamparado dos seus, atravessa agora os
vastos sertões do Apodi. Só eu de tantos fiquei, porque estava entre os
pitiguaras de Acaraú, na
cabana do bravo Poti, irmão de Jacaúna, que plantou comigo a árvore da amizade.
Há três sóis partimos para a caça; e perdido dos meus, vim aos campos dos
tabajaras.

-Foi
algum mau espírito da floresta que
cegou o guerreiro branco no escuro da mata, respondeu o ancião.

A
cauã piou, além, na extrema do vale. Caía a noite.






IV –




O
pajé vibrou o maracá, e saiu da cabana, porém o estrangeiro não ficou só.

Iracema
voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de Araquém, e os
guerreiros vindos para obedecer-lhe.

-Guerreiro
branco, disse a virgem, o prazer embale tua rede durante a noite; e o Sol traga
luz a teus olhos, alegria à tua alma.

E
assim dizendo, Iracema tinha o lábio trêmulo, e úmida a pálpebra.

-Tu
me deixas? perguntou Martim.

-As
mais belas mulheres da
grande taba contigo ficam.

-Para
elas a filha de Araquém não devia ter conduzido o hóspede à cabana do pajé.

-Estrangeiro,
Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão
fabrica para o pajé a bebida de Tupã.

O
guerreiro cristão atravessou a cabana e sumiu-se na treva.

A
grande taba erguia-se no fundo do vale, iluminada pelos fachos da alegria.
Rugia o maracá; ao quebro lento do canto selvagem, batia a dança em trono a
rude cadência. O pajé inspirado conduzia o sagrado tripúdio e dizia ao povo
crente os segredos de Tupã.

O
maior chefe da nação tabajara, Irapuã,
descera do alto da serra Ibiapaba, para levar as tribos do sertão contra o
inimigo pitiguara. Os guerreiros do vale festejam a vinda do chefe, e o próximo
combate.

O
mancebo cristão viu longe o clarão da festa, e passou além, e olhou o céu azul
sem nuvens. A estrela morta, que então brilhava sobre a cúpula da floresta,
guiou seu passo firme para as frescas margens do Acaraú.

Quando
ele transmontou o vale e ia penetrar na mata, o vulto de Iracema surgiu. A
virgem seguira o estrangeiro como a brisa sutil que resvala sem murmurejar por
entre a ramagem.

-Por
que, disse ela, o estrangeiro abandona a cabana hospedeira sem levar o presente
da volta? Quem fez mal ao guerreiro branco na terra dos tabajaras?

O
cristão sentiu quanto era justa a queixa; e achou-se ingrato.

-Ninguém
fez mal ao teu hóspede, filha de Araquém. Era o desejo de ver seus amigos que o
afastava dos campos dos tabajaras. Não levava o presente da volta; mas leva em
sua alma a lembrança de Iracema.

-Se
a lembrança de Iracema estivesse n’alma do estrangeiro, ela não o deixaria
partir. O vento não leva a areia da várzea, quando a areia bebe a água da
chuva.

A
virgem suspirou:

-Guerreiro
branco, espera que Caubi volte da caça. O irmão de Iracema tem o ouvido sutil
que pressente a boicininga entre
os rumores da mata; e o olhar do oitibó que
vê melhor na treva. Ele te guiará às margens do rio das garças.

-Quanto
tempo se passará antes que o irmão de Iracema esteja de volta na cabana de
Araquém?

-O
Sol, que vai nascer, tornará com o guerreiro Caubi aos campos do Ipu.

-Teu
hóspede espera, filha de Araquém; mas se o Sol tornando não trouxer o irmão de
Iracema, ele levará o guerreiro branco à taba dos pitiguaras.

Martim
voltou à cabana do pajé.

A
alva rede que Iracema perfumara com a resina do benjoim guardava-lhe um sono
calmo e doce.

O
cristão adormeceu ouvindo suspirar, entre os murmúrios da floresta, o canto
mavioso da virgem indiana.






V –




O
galo-da-campina ergue a poupa escarlate fora do ninho. Seu límpido trinado
anuncia a aproximação do dia.

Ainda
a sombra cobre a terra. Já o povo selvagem colhe as redes na grande taba e
caminha para o banho. O velho pajé que velou toda a noite, falando às estrelas,
conjurando os maus espíritos das trevas,
entra furtivamente na cabana.

Eis
retroa o boré pela
amplidão do vale.

Travam
das armas os rápidos guerreiros, e correm ao campo. Quando foram todos na vasta
ocara circular, Irapuã, o
chefe, soltou o grito de guerra:

-Tupã
deu à grande nação tabajara toda esta terra. Nós guardamos as serras, donde
manam os córregos, com os frescos ipus onde cresce a maniva e o algodão; e
abandonamos ao bárbaro potiguara,
comedor de camarão, as areias nuas do mar, com os secos tabuleiros sem água e
sem florestas. Agora os pescadores da praia, sempre vencidos, deixam vir pelo
mar a raça branca dos guerreiros de fogo, inimigos de Tupã. Já os emboabas
estiveram no Jaguaribe; logo estarão em nossos campos; e com eles os
potiguaras. Faremos nós, senhores das aldeias, como a pomba, que se encolhe em
seu ninho, quando a serpente enrosca pelos galhos?

O
irado chefe brande o tacape e o arremessa no meio do campo. Derrubando a
fronte, cobre o rúbido olhar:

-Irapuã
falou; disse.

O
mais moço dos guerreiros avança:

-O
gavião paira nos ares. Quando a nambu levanta, ele cai das nuvens e rasga as
entranhas da vítima. O guerreiro tabajara, filho da serra, é como o gavião.

Troa
e retroa a pocema da
guerra.

O
jovem guerreiro erguera o tacape; e por sua vez o brandiu. Girando no ar,
rápida e ameaçadora, a arma do chefe passou de mão em mão.

O
velho Andira, irmão do pajé, a
deixou tombar, e calcou no chão, com o pé ágil ainda e firme.

Pasma
o povo tabajara da ação desusada. Voto de paz em tão provado e impetuoso
guerreiro! É o velho herói, que cresceu na sanha, crescendo nos anos, é o feroz
Andira quem derrubou o tacape, núncio da próxima luta?

Incertos
e mudos todos escutam:

-Andira,
o velho Andira, bebeu mais sangue na guerra do que já beberam cauim nas festas
de Tupã, todos quantos guerreiros alumia agora a luz de seus olhos. Ele viu
mais combates em sua vida, do que luas lhe despiram a fronte. Quanto crânio de
potiguara escalpelou sua mão implacável, antes que o tempo lhe arrancasse o
primeiro cabelo? E o velho Andira nunca temeu que o inimigo pisasse a terra de
seus pais; mas alegrava-se quando ele vinha, e sentia com o faro da guerra a
juventude renascer no corpo decrépito, como a árvore seca renasce com o sopro
do inverno. A nação tabajara é prudente. Ela deve encostar o tacape da luta
para tanger o membi da festa. Celebra, Irapuã, a vinda dos emboabas e deixa que
cheguem todos aos nossos campos. Então Andira te promete o banquete da vitória.

Desabriu
enfim Irapuã a funda cólera:

-Fica
tu, escondido entre as igaçabas de vinho, fica, velho morcego, porque temes a
luz do dia, e só bebes o sangue da vítima que dorme. Irapuã leva a guerra no
punho de seu tacape. O terror que ele inspira voa com o rouco som do boré. O
potiguara já tremeu ouvindo-o rugir na serra, mais forte que o ribombo do mar.






VI –




Martim
vai a passo e passo por entre os altos juazeiros que cercam a cabana do pajé.

Era
o tempo em que o doce aracati chega
do mar, e derrama a deliciosa frescura pelo árido sertão. A planta respira; um
doce arrepio erriça a verde coma da floresta.

O
cristão contempla o ocaso do Sol. A sombra, que desce dos montes e cobre o
vale, penetra sua alma. Lembra-se do lugar onde nasceu, dos entes queridos que
ali deixou. Sabe ele se tornará a vê-los algum dia?

Em
torno carpe a natureza o dia que expira. Soluça a onda trépida e lacrimosa;
geme a brisa na folhagem; o mesmo silêncio anela de aflito.

Iracema
parou em face do jovem guerreiro:


a presença de Iracema que perturba a serenidade no rosto do estrangeiro?

Martim
pousou brandos olhos na face da virgem:

-Não,
filha de Araquém: tua presença alegra, como a luz da manhã. Foi a lembrança da
pátria que trouxe a saudade ao coração pressago.

-Uma
noiva te espera?

O
forasteiro desviou os olhos. Iracema dobrou a cabeça sobre a espádua, como a
tenra palma da carnaúba, quando a chuva peneira na várzea.

-Ela
não é mais doce do que Iracema, a virgem dos lábios de mel, nem mais formosa!
murmurou o estrangeiro.

-A
flor da mata é formosa quando tem rama que a abrigue, e tronco onde se enlace.
Iracema não vive n’alma de um guerreiro: nunca sentiu a frescura de seu
sorriso.

Emudeceram
ambos, com os olhos no chão, escutando a palpitação dos seios que batiam
opressos.

A
virgem falou enfim:

-A
alegria voltará logo à alma do guerreiro branco; porque Iracema quer que ele
veja antes da noite a noiva que o espera.

Martim
sorriu do ingênuo desejo da filha do pajé.

-Vem!
disse a virgem.

Atravessaram
o bosque e desceram ao vale. Onde morria a falda da colina o arvoredo era
basto: densa abóbada de folhagem verde-negra cobria o ádito agreste, reservado
aos mistérios do rito bárbaro.

Era
de jurema o bosque sagrado. Em torno corriam os troncos rugosos da árvore de
Tupã; dos galhos pendiam ocultos pela rama escura os vasos do sacrifício;
lastravam o chão as cinzas de extinto fogo, que servira à festa da última lua.

Antes
de penetrar o recôndito sítio, a virgem que conduzia o guerreiro pela mão
hesitou, inclinando o ouvido sutil aos suspiros da brisa. Todos os ligeiros
rumores da mata tinham uma voz para a selvagem filha do sertão. Nada havia
porém de suspeito no intenso respiro da floresta.

Iracema
fez ao estrangeiro um gesto de espera e silêncio, e depois desapareceu no mais
sombrio do bosque. O Sol ainda pairava suspenso no viso da serrania; e já noite
profunda enchia aquela solidão.

Quando
a virgem tornou, trazia numa folha gotas de verde e estranho licor vazadas da
igaçaba, que ela tirara do seio da terra. Apresentou ao guerreiro a taça
agreste.

-Bebe!

Martim
sentiu perpassar nos olhos o sono da morte; porém logo a luz inundou-lhe os
seios d’alma; a força exuberou em seu coração. Reviveu os dias passados melhor
do que os tinha vivido: fruiu a realidade de suas mais belas esperanças.

Ei-lo
que volta à terra natal, abraça sua velha mãe, revê mais lindo e terno o anjo
puro dos amores infantis.

Mas
por que, mal de volta ao berço da pátria, o jovem guerreiro de novo abandona o
teto paterno e demanda o sertão?


atravessa as florestas; já chega aos campos do Ipu. Busca na selva a filha do
pajé. Segue o rastro ligeiro da virgem arisca, soltando à brisa com o crebro
suspiro o doce nome:

-Iracema!
Iracema!…


a alcança e cinge-lhe o braço pelo talhe esbelto.

Cedendo
à meiga pressão, a virgem reclinou-se ao peito do guerreiro, e ficou ali
trêmula e palpitante como a tímida perdiz, quando o terno companheiro lhe
arrufa com o bico a macia penugem.

O
lábio do guerreiro suspirou mais uma vez o doce nome, e soluçou, como se chamara
outro lábio amante. Iracema sentiu que sua alma se escapava para embeber-se no
ósculo ardente.

E
a fronte reclinara, e a flor do sorriso desabrochava já para deixar-se colher.

Súbito
a virgem tremeu; soltando-se rápida do braço que a cingia, travou do arco.






VII –




Iracema
passou entre as árvores, silenciosa como uma sombra: seu olhar cintilante coava
entre as folhas, qual frouxos raios de estrelas; ela escutava o silêncio
profundo da noite e aspirava as auras sutis que aflavam.

Parou.
Uma sombra resvalava entre as ramas; e nas folhas crepitava um passo ligeiro,
se não era o roer de algum inseto. A pouco e pouco o tênue rumor foi crescendo
e a sombra avultou.

Era
um guerreiro. De um salto a virgem estava em face dele, trêmula de susto e mais
de cólera.

-Iracema!
exclamou o guerreiro recuando.

-Anhangá turbou sem dúvida o sono de
Irapuã, que o trouxe perdido ao bosque da jurema, onde nenhum guerreiro penetra
sem a vontade de Araquém.

-Não
foi Anhangá, mas a lembrança de Iracema, que turbou o sono do primeiro
guerreiro tabajara. Irapuã desceu de seu ninho de águia para seguir na várzea a
garça do rio. Chegou, e Iracema fugiu de seus olhos. As vozes da taba contaram
ao ouvido do chefe que um estrangeiro era vindo à cabana de Araquém.

A
virgem estremeceu. O guerreiro cravou nela o olhar abrasado:

-O
coração aqui no peito de Irapuã ficou tigre. Pulou de raiva. Veio farejando a
presa. O estrangeiro está no bosque, e Iracema o acompanhava. Quero beber-lhe o
sangue todo: quando o sangue do guerreiro branco correr nas veias do chefe
tabajara, talvez o ame a filha de Araquém.

A
pupila negra da virgem cintilou na treva, e de seu lábio borbulhou, como gotas
do leite cáustico da eufórbia, um sorriso de desprezo:

-Nunca
Iracema daria seu seio, que o espírito de Tupã habita só, ao guerreiro mais vil
dos guerreiros tabajaras! Torpe é o morcego porque foge da luz e bebe o sangue
da vítima adormecida!…

-Filha
de Araquém, não assanha o jaguar! O nome de Irapuã voa mais longe que o goaná
do lago, quando sente a chuva além das serras. Que o guerreiro branco venha, e
o seio de Iracema se abra para o vencedor.

-O
guerreiro branco é hóspede de Araquém. A paz o trouxe aos campos do Ipu, a paz
o guarda. Quem ofender o estrangeiro, ofende o pajé.

Rugiu
de sanha o chefe tabajara:

-A
raiva de Irapuã só ouve agora o grito da vingança. O estrangeiro vai morrer.

-A
filha de Araquém é mais forte que o chefe dos guerreiros, disse Iracema
travando da inúbia. Ela tem aqui a voz de Tupã, que chama seu povo.

-Mas
ela não chamará! respondeu o chefe escarnecendo.

-Não,
porque Irapuã vai ser punido pela mão de Iracema. Seu primeiro passo, é o passo
da morte.

A
virgem retraiu d’um salto o avanço que tomara, e vibrou o arco. O chefe cerrou
ainda o punho do formidável tacape; mas pela vez primeira sentiu que pesava ao
braço robusto. O golpe que devia ferir Iracema, ainda não alçado, já lhe
trespassava, a ele próprio, o coração.

Conheceu
quanto o varão forte, é pela sua mesma fortaleza, mais vencido das grandes
paixões.

-A
sombra de Iracema não esconderá sempre o estrangeiro à vingança de Irapuã. Vil
é o guerreiro, que se deixa proteger por uma mulher.

Dizendo
estas palavras, o chefe desapareceu entre as árvores. A virgem sempre alerta,
volveu para o cristão adormecido; e velou o resto da noite a seu lado. As
emoções recentes, que agitaram sua alma, a abriram ainda mais à doce afeição,
que iam filtrando nela os olhos do estrangeiro.

Desejava
abrigá-lo contra todo o perigo, recolhê-lo em si como em um asilo impenetrável.
Acompanhando o pensamento, seus braços cingiam a cabeça do guerreiro, e a
apertavam ao seio.

Mas
quando passou a alegria de o ver salvo dos perigos da noite, entrou-a mais viva
a inquietação, com a lembrança dos novos perigos que iam surgir.

-O
amor de Iracema é como o vento dos areais; mata a flor das árvores, suspirou a
virgem.

E
afastou-se lentamente.






VIII –




A
alvorada abriu o dia e os olhos do guerreiro branco. A luz da manhã dissipou os
sonhos da noite, e arrancou de sua alma a lembrança do que sonhara. Ficou
apenas um vago sentir, como fica na moita o perfume do cacto que o vento da
serra desfolha na madrugada.

Não
sabia onde estava.

À
saída do bosque sagrado encontrou Iracema: a virgem reclinava num tronco áspero
do arvoredo; tinha os olhos no chão; o sangue fugira das faces; o coração lhe
tremia nos lábios, como gota de orvalho nas folhas do bambu.

Não
tinha sorrisos, nem cores, a virgem indiana; não tem borbulhas, nem rosas, a
acácia que o sol crestou; não tem azul, nem estrelas, a noite que enlutam os
ventos.

-As
flores da mata já abriram aos raios do Sol; as aves já cantaram, disse o
guerreiro. Por que só Iracema curva a fronte e emudece?

A
filha do pajé estremeceu. Assim estremece a verde palma, quando a haste frágil
foi abalada; rorejam do espato as lágrimas da chuva, e os leques ciciam
brandamente.

-O
guerreiro Caubi vai chegar à taba de seus irmãos. O estrangeiro poderá partir
com o Sol que vem nascendo.

-Iracema
quer ver o estrangeiro fora dos campos dos tabajaras; então a alegria voltará a
seu seio.

-A
juruti quando a árvore seca abandona o ninho em que nasceu. Nunca mais a
alegria voltará ao seio de Iracema: ela vai ficar, como o tronco nu, sem ramas,
nem sombras.

Martim
amparou o corpo trêmulo da virgem; ela reclinou lânguida sobre o peito do
guerreiro, como o tenro pâmpano da baunilha que enlaça o rijo galho do angico.

O
mancebo murmurou:

-Teu
hóspede fica, virgem dos olhos negros: ele fica para ver abrir em tuas faces a
flor da alegria, e para colher, como a abelha, o mel de teus lábios.

Iracema
soltou-se dos braços do mancebo, e olhou-o com tristeza:

-Guerreiro
branco, Iracema é filha do pajé, e guarda o segredo da jurema. O guerreiro que
possuísse a virgem de Tupã morreria.

-E
Iracema?

-Pois
que tu morrias!…

Esta
palavra foi sopro de tormenta. A cabeça do mancebo vergou e pendeu sobre o
peito; mas logo se ergueu.

-Os
guerreiros de meu sangue trazem a morte consigo, filha dos tabajaras. Não a
temem para si, não a poupam para o inimigo. Mas nunca fora do combate eles
deixarão aberto o camucim da
virgem na taba de seu hóspede. A verdade falou pela boca de Iracema. O
estrangeiro deve abandonar os campos dos tabajaras.

-Deve,
respondeu a virgem como um eco.

Depois
sua voz suspirou:

-O
mel dos lábios de Iracema é como o favo que a abelha fabrica no tronco da
guabiroba: tem na doçura o
veneno. A virgem dos olhos azuis e dos cabelos do sol guarda para seu guerreiro na taba
dos brancos o mel da açucena.

Martim
afastou-se rápido, e voltou, mas lentamente. A palavra tremia em seu lábio:

-O
estrangeiro partirá para que o sossego volte ao seio da virgem.

-Tu
levas a luz dos olhos de Iracema, e a flor de sua alma.

Reboa
longe na selva um clamor estranho. O olhos do mancebo alongam-se.


o grito de alegria do guerreiro Caubi, disse a virgem. O irmão de Iracema
anuncia sua boa chegada aos campos dos tabajaras.

-Filha
de Araquém, guia teu hóspede à cabana. É tempo de partir.

Eles
caminharam par a par, como dois jovens cervos que ao pôr-do-sol atravessam a
capoeira recolhendo ao aprisco de onde lhes traz a brisa um faro suspeito.

Quando
passavam entre os juazeiros, viram que atravessava além o guerreiro Caubi,
vergando os ombros robustos ao peso da caça. Iracema caminhou para ele.

O
estrangeiro entrou só na cabana.






IX –




O
sono da manhã pousava nos olhos do pajé como névoas de bonança pairam ao romper
do dia sobre as profundas cavernas da montanha.

Martim
parou indeciso, mas o rumor de seu passo penetrou no ouvido do ancião, e abalou
o corpo decrépito.

-Araquém
dorme! murmurou o guerreiro devolvendo o passo.

O
velho ficou imóvel:

-O
pajé dorme porque já Tupã voltou o rosto para a terra e a luz correu os maus
espíritos da treva. Mas o sono é leve nos olhos de Araquém, como o fumo do sapé
no cocuruto da serra. Se o estrangeiro veio para o pajé, fale; seu ouvido
escuta.

-O
estrangeiro veio para te anunciar que parte.

-O
hóspede é o senhor na cabana de Araquém; todos os caminhos estão abertos para
ele. Tupã o leve à taba dos seus.

Vieram
Caubi e Iracema:

-Caubi
voltou, disse o guerreiro tabajara. Traz a Araquém o melhor de sua caça.

-O
guerreiro Caubi é um grande caçador de montes e florestas. Os olhos de seu pai
gostam de vê-lo.

O
velho abriu as pálpebras e cerrou-as logo:

-Filha
de Araquém, escolhe para teu hóspede o presente da volta e prepara o moquém da viagem. Se o estrangeiro
precisa de guia, o guerreiro Caubi, senhor do caminho, o acompanhará.

O
sono voltou aos olhos do pajé.

Enquanto
Caubi pendurava no fumeiro as peças de caça, Iracema colheu a sua alva rede de
algodão com franjas de penas, e acomodou-a dentro do uru de palha trançada.

Martim
esperava na porta da cabana. A virgem veio a ele:

-Guerreiro,
que levas o sono de meus olhos, leva a minha rede também. Quando nela dormires,
falem em tua alma os sonhos de Iracema.

-Tua
rede, virgem dos tabajaras, será minha companheira no deserto: venha embora o
vento frio da noite, ela guardará para o estrangeiro o calor e o perfume do
seio de Iracema.

Caubi
saiu para ir à sua cabana, que ainda não tinha visto depois da volta. Iracema
foi preparar o moquém da viagem. Ficaram sós na cabana o pajé, que ressonava, e
o mancebo com sua tristeza.

O
Sol, transmontando, já começava a declinar para o ocidente, quando o irmão de
Iracema tornou da grande taba.

-O
dia vai ficar triste, disse
Caubi. A sombra caminha para a noite. É tempo de partir.

A
virgem pousou a mão de leve no punho da rede de Araquém.

-Ele
vai! murmuraram os lábios trêmulos.

O
pajé levantou-se em pé no meio da cabana e acendeu o cachimbo. Ele e o mancebo
trocaram a fumaça da despedida.

-Bem-ido
seja o hóspede, como foi bem-vindo à cabana de Araquém.

O
velho andou até a porta, para soltar ao vento uma espessa baforada de tabaco;
quando o fumo se dissipou no ar, ele murmurou:

-Jurupari se esconda para deixar passar o
hóspede do pajé.

Araquém
voltou à rede e dormiu de novo. O mancebo tomou as suas armas mais pesadas que,
chegando, suspendera às varas da cabana, e se dispôs a partir.

Adiante
seguiu Caubi; a alguma distância o estrangeiro; logo após, Iracema.

Desceram
a colina e entraram na mata sombria. O sabiá-do-sertão, mavioso cantor da
tarde, escondido nas moitas espessas da ubaia, soltava já os prelúdios da suave
endecha.

A
virgem suspirou:

-A
tarde é a tristeza do Sol. Os dias de Iracema vão ser longas tardes sem manhã,
até que venha para ela a grande noite.

O
mancebo se voltara. Seu lábio emudeceu, mas os olhos falaram. Uma lágrima
correu pela face guerreira, como as umidades que durante os ardores do estio
transudam da escarpa dos rochedos.

Caubi,
avançando sempre, sumira-se entre a densa ramagem.

O
seio da filha de Araquém arfou, como o esto da vaga que se franja de espuma, e
soluçou. Mas sua alma, negra de tristura, teve ainda um pálido reflexo para
iluminar a seca flor das faces. Assim em noite escura vem um fogo-fátuo luzir
as brancas areias do tabuleiro.

-Estrangeiro,
toma o último sorriso de Iracema… e foge!

A
boca do guerreiro pousou na boca mimosa da virgem. Ficaram ambas assim unidas
como dois frutos gêmeos do araçá, que saíram do seio da mesma flor.

A
voz de Caubi chamou o estrangeiro. Iracema abraçou para não cair o tronco de
uma palmeira.






X –




Na
cabana silenciosa, medita o velho pajé.

Iracema
está apoiada no tronco rudo, que serve de esteio. Os grandes olhos negros,
fitos nos recortes da floresta e rasos de pranto, parece estão naqueles olhares
longos e trêmulos enfiando e desfiando os aljôfares das lágrimas, que rorejam
as faces.

A
ará, pousada no jirau fronteiro, alonga para sua formosa senhora os verdes
tristes olhos. Desde que o guerreiro branco pisou a terra dos tabajaras,
Iracema a esqueceu.

Os
róseos lábios da virgem não se abriram mais para que ela colhesse entre eles a
polpa da fruta ou a papa do milho verde; nem a doce mão a afagara uma só vez,
alisando a penugem dourada da cabeça.

Se
repetia o mavioso nome da senhora, o sorriso de Iracema já não se voltava para
ela, nem o ouvido parecia escutar a voz da companheira e amiga, que dantes tão
suave era ao seu coração.

Triste
dela! A gente tupi a chamava jandaia,
porque sempre alegre estrugia os campos com seu canto fremente. Mas agora,
triste e muda, desdenhada de sua senhora, não parecia mais a linda jandaia, e
sim o feio urutau que somente sabe gemer.

O
Sol remontou a umbria das serras; seus raios douravam apenas o viso das
eminências.

A
surdina merencória da tarde, que precede o silêncio da noite, começava de velar
os crebros rumores do campo. Uma ave noturna, talvez iludida com a sombra mais
espessa do bosque, desatou o estrídulo.

O
velho ergueu a fronte calva:

-Foi
o canto da inhuma que
acordou o ouvido de Araquém? disse ele admirado.

A
virgem estremecera, e já fora da cabana, voltou-se para responder à pergunta do
pajé:


o grito de guerra do guerreiro Caubi!

Quando
o segundo pio da inhuma ressoou, Iracema corria na mata, como a corça
perseguida pelo caçador. Só respirou chegando à campina, que recortava o
bosque, como um grande lago.

Quem
seus olhos primeiro viram, Martim, estava tranqüilamente sentado em uma
sapopema, olhando o que passava ali. Contra, cem guerreiros tabajaras, com
Irapuã à frente, formavam arco. O bravo Caubi os afrontava a todos, com o olhar
cheio de ira e as armas valentes empunhadas na mão robusta.

O
chefe exigira a entrega do estrangeiro, e o guia respondera simplesmente:

-Matai
Caubi antes.

A
filha do pajé passara como uma flecha: ei-la diante de Martim, opondo também
seu corpo gentil aos golpes dos guerreiros. Irapuã soltou o bramido da onça
atacada na furna.

-Filha
do pajé, disse Caubi em voz baixa. Conduz o estrangeiro à cabana: só Araquém
pode salvá-lo.

Iracema
voltou-se para o guerreiro branco:

-Vem!

Ele
ficou imóvel.

-Se
tu não vens, disse a virgem; Iracema morrerá contigo.

Martim
ergueu-se; mas longe de seguir a virgem, caminhou direito a Irapuã. A sua
espada flamejou no ar.

-Os
guerreiros de meu sangue, chefe, jamais recusaram combate. Se aquele que tu vês
não foi o primeiro a provocá-lo, é porque seus pais lhe ensinaram a não
derramar sangue na terra hospedeira.

O
chefe tabajara rugiu de alegria; sua mão possante brandiu o tacape. Mas os dois
campeões mal tiveram tempo de medir-se com os olhos; quando fendiam o primeiro
golpe, já Caubi e Iracema estavam entre eles.

A
filha de Araquém debalde rogava ao cristão, debalde o cingia em seus braços
buscando arrancá-lo ao combate. De seu lado Caubi em vão provocava Irapuã para
atrair a si a raiva do chefe.

A
um gesto de Irapuã, os guerreiros afastaram os dois irmãos; o combate
prosseguiu.

De
repente o rouco som da inúbia reboou
pela mata; os filhos da serra estremeceram reconhecendo o estrídulo do búzio
guerreiro dos pitiguaras, senhores das praias ensombradas de coqueiros. O eco
vinha da grande taba, que o inimigo talvez assaltava já.

Os
guerreiros precipitaram, levando por diante o chefe. Com o estrangeiro só ficou
a filha de Araquém.






XI –




Os
guerreiros tabajaras, acorridos à taba, esperavam o inimigo diante da caiçara.

Não
vindo, eles saíram a buscá-lo.

Bateram
as matas em torno e percorreram os campos; nem vestígios encontraram da
passagem dos pitiguaras; mas o conhecido frêmito do búzio das praias tinha
ressoado ao ouvido dos guerreiros da montanha; não havia duvidar.

Suspeitou
Irapuã que fosse um ardil da filha de Araquém para salvar o estrangeiro, e
caminhou direito à cabana do pajé. Como trota o guará pela orla da mata, quando vai
seguindo o rastro da presa escápula, assim estugava o passo o sanhudo
guerreiro.

Araquém
viu entrar em sua cabana o grande chefe da nação tabajara, e não se moveu.
Sentado na rede, com as pernas cruzadas, escutava Iracema. A virgem referia os
sucessos da tarde; avistando a figura sinistra de Irapuã, saltou sobre o arco e
uniu-se ao flanco do jovem guerreiro branco.

Martim
a afastou docemente de si, e promoveu o passo.

A
proteção, de que o cercava a ele guerreiro a virgem tabajara, o desgostava.

-Araquém,
a vingança dos tabajaras espera o guerreiro branco; Irapuã veio buscá-lo.

-O
hóspede é amigo de Tupã; quem ofender o estrangeiro ouvirá rugir o trovão.

-O
estrangeiro foi quem ofendeu a Tupã, roubando a sua virgem, que guarda os
sonhos da jurema.

-Tua
boca mente como o ronco da jibóia!
exclamou Iracema.

Martim
disse:

-Irapuã
é vil e indigno de ser chefe de guerreiros valentes!

O
pajé falou grave e lento:

-Se
a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo, ela morrerá; mas o
hóspede de Tupã é sagrado; ninguém lhe tocará, todos o servirão.

Irapuã
bramiu; o grito rouco troou nas arcas do peito, como o frêmito da sucuri na profundeza do rio.

-A
raiva de Irapuã não pode mais ouvir-te, velho pajé! Caia ela sobre ti, se ousas
subtrair o estrangeiro à vingança dos tabajaras.

O
velho Andira, irmão do pajé, entrou na cabana; trazia no punho o terrível
tacape; e nos olhos uma raiva ainda mais terrível.

-O
morcego vem te chupar o sangue, se é que tens sangue e não mel nas veias, tu que ameaças em sua
cabana o velho pajé.

Araquém
afastou o irmão:

-Paz
e silêncio, Andira.

O
pajé desenvolvera a alta e magra estatura, como a caninana assanhada, que se
enrista sobre a cauda, para afrontar a vítima em face. As rugas afundaram, e,
repuxando as peles engelhadas, esbugalharam os dentes alvos e afilados:

-Ousa
um passo mais, e as iras de Tupã te esmagarão sob o peso desta mão seca e
mirrada!

-Neste
momento, Tupã não é contigo! replicou o chefe.

O
pajé riu; e o seu riso sinistro reboou pelo espaço como o regougo da ariranha.

-Ouve
seu trovão, e treme em teu
seio, guerreiro, como a terra em sua profundeza.

Araquém
proferindo essa palavra terrível avançou até o meio da cabana; ali ergueu a
grande pedra e calcou o pé com força no chão: súbito, abriu-se a terra. Do
antro profundo saiu um medonho gemido, que parecia arrancado das entranhas do
rochedo.

Irapuã
não tremeu, nem enfiou de susto; mas sentiu turvar-se a luz nos olhos, e a voz
nos lábios.

-O
senhor do trovão é por ti; o senhor da guerra, será por Irapuã.

O
torvo guerreiro deixou a cabana; em pouco seu grande vulto mergulhou nas
sombras do crepúsculo.

O
pajé e seu irmão travaram a prática na porta da cabana.

Martim,
ainda surpreso do que vira, não tirava os olhos da funda cava, que a planta do
velho pajé abrira no chão da cabana. Um surdo rumor, como o eco das ondas
quebrando nas praias, ruidava ali.

O
guerreiro cristão cismava; ele não podia crer que o deus dos tabajaras desse ao
seu sacerdote tamanho poder.

Araquém,
percebendo o que passava n’alma do estrangeiro, acendeu o cachimbo e travou do
maracá:


tempo de aplacar as iras de Tupã, e calar a voz do trovão.

Disse
e partiu da cabana.

Iracema
achegou-se então do mancebo; levava os lábios em riso, os olhos em júbilo:

-O
coração de Iracema está como o abati n’água
do rio. Ninguém fará mal ao guerreiro branco na cabana de Araquém.

-Arreda-te
do inimigo, virgem dos tabajaras, respondeu o estrangeiro com aspereza de voz.

Voltando
brusco para o lado oposto, furtou o semblante aos olhos ternos e queixosos da
virgem.

-Que
fez Iracema, para que o guerreiro branco desvie seus olhos dela, como se fora o
verme da terra?

As
falas da virgem ressoaram docemente no coração de Martim. Assim ressoam os
murmúrios da aragem nas frondes da palmeira. O mancebo sentiu raiva de si, e
pena dela:

-Não
ouves tu, virgem formosa? exclamou ele apontando para o antro fremente.


a voz de Tupã!

-Teu
deus falou pela boca do pajé: «Se a virgem de Tupã abandonar ao estrangeiro a
flor de seu corpo, ele morrerá!…»

Iracema
pendeu a fronte abatida:

-Não
é voz de Tupã que ouve teu coração, guerreiro de longes terras, é o canto da
virgem branca, que te chama!

O
rumor estranho que saía das profundezas da terra apagou-se de repente: fez-se
na cabana tão grande silêncio que ouvia-se pulsar o sangue na artéria do
guerreiro, e tremer o suspiro no lábio da virgem.






XII –




O
dia enegreceu; era noite já.

O
pajé tornara à cabana; sopesando de novo a grossa laje, fechou com ela a boca
do antro. Caubi chegara também da grande taba, onde com seus irmãos guerreiros
se recolhera depois que bateram a floresta, em busca do inimigo pitiguara.

No
meio da cabana, entre as redes armadas em quadro, estendeu Iracema a esteira da
carnaúba, e sobre ela serviu os restos da caça, e a provisão de vinhos da
última lua. Só o guerreiro tabajara achou sabor na ceia, porque o fel do
coração que a tristeza espreme não amargava seu lábio.

O
pajé bebia no cachimbo o fumo sagrado de Tupã que lhe enchia as arcas do peito;
o estrangeiro respirava ar às golfadas para refrescar-lhe o sangue
efervescente; a virgem destilava sua alma como o mel de um favo, nos crebros
soluços que lhe estalavam entre os lábios trêmulos.


partiu Caubi para a grande taba; o pajé traga as baforadas do fumo, que prepara
o mistério do sagrado rito.

Levanta-se
no ressono da noite um grito vibrante, que remonta ao céu.

Martim
ergue a fronte e inclina o ouvido. Outro clamor semelhante ressoa. O guerreiro
murmura, que o ouça a virgem e só ela:

-Escutou,
Iracema, cantar a gaivota?

-Iracema
escutou o grito de uma ave que ela não conhece.


a atiati, a garça do mar, e tu és a virgem da serra, que nunca desceu às alvas
praias onde arrebentam as vagas.

-As
praias são dos pitiguaras, senhores das palmeiras.

Os
guerreiros da grande nação que habitava as bordas do mar se chamavam a si
mesmos pitiguaras, senhores dos vales; mas os tabajaras, seus inimigos, por
escárnio os apelidavam potiguaras, comedores de camarão.

Iracema
não quis ofender o guerreiro branco; por isso, falando dos pitiguaras, não lhes
recusou o nome guerreiro que eles haviam tomado para si.

O
estrangeiro reteve por um instante a palavra no seu lábio prudente, enquanto
refletia:

-O
canto da gaivota é o grito de guerra do valente Poti, amigo de teu hóspede!

A
virgem estremeceu por seus irmãos. A fama do bravo Poti, irmão de Jacaúna,
subiu das ribeiras do mar às alturas da serra; rara é a cabana onde já não
rugiu contra ele o grito de vingança, porque em quase todas o golpe de seu
válido tacape deitou um guerreiro tabajara em seu camucim.

Iracema
cuidou que Poti vinha à frente de seus guerreiros para livrar o amigo. Era ele
sem dúvida que fizera retroar o búzio das praias, no momento do combate. Foi
com um tom misturado de doçura e tristeza que replicou:

-O
estrangeiro está salvo; os irmãos de Iracema vão morrer, porque ela não falará.

-Saia
essa tristeza de tua alma. O estrangeiro partindo-se de teus campos, virgem
tabajara, não deixará neles rastro de sangue, como o tigre esfaimado.

Iracema
tomou a mão do guerreiro branco e beijou-a.

-Teu
sorriso, continua ele, apagou a lembrança do mal que eles me querem.

Martim
ergueu-se e marchou para a porta.

-Aonde
vai o guerreiro branco?

-Adiante
de Poti.

-O
hóspede de Araquém não pode sair desta cabana, porque os guerreiros de Irapuã o
matarão.

-Um
guerreiro só deve proteção a Deus e a suas armas. Não carece que o defendam os
velhos e as mulheres.

-Não
vale um guerreiro só contra mil guerreiros; valente e forte é o tamanduá, que
morde os gatos selvagens por serem muitos e o acabam. Tuas armas só chegam até
onde mede a sombra de teu corpo; as armas deles voam alto e direito como o
anajê.

-Todo
o guerreiro tem seu dia.

-Não
queres tu que morra Iracema, e queres que ela te deixe morrer!

Martim
ficou perplexo:

-Iracema
irá ao encontro do chefe pitiguara e trará a seu hóspede as falas do guerreiro
amigo.

O
pajé saiu enfim de sua contemplação. O maracá rugiu-lhe na destra, tiniram os
guizos com o passo hirto e lento.

Chamou
ele a filha de parte:

-Se
os guerreiros de Irapuã vierem contra a cabana, levanta a pedra e esconde o
estrangeiro no seio da terra.

-O
hóspede não deve ficar só; espera que volte Iracema. Ainda não cantou a inhuma.

Tornou
a sentar-se na rede o velho. A virgem partiu, cerrando a porta da cabana.






XIII –




Avança
a filha de Araquém nas trevas; pára e escuta.

O
grito da gaivota terceira vez ressoa ao seu ouvido; ela vai direito ao lugar
d’onde partiu; chega à borda de um tanque; seu olhar investiga a escuridão, e
nada vê do que busca.

A
voz maviosa, débil como sussurro de colibri, ressoa no silêncio:

-Guerreiro
Poti, teu irmão branco te chama pela boca de Iracema.


o eco respondeu-lhe.

-A
filha de teus inimigos vem a ti porque o estrangeiro te ama, e ela ama o
estrangeiro.

A
lisa face do lago fendeu-se; e um vulto se mostra, que nada para a margem, e
surge fora.

-Foi
Martim quem te mandou, pois tu sabes o nome de Poti, seu irmão na guerra.

-Fala,
chefe pitiguara; o guerreiro branco espera.

-Torna
a ele e diz que Poti é chegado para o salvar.

-Ele
sabe; e mandou-me a ti para ouvir.

-As
falas de Poti sairão de sua boca para o ouvido de seu irmão branco.

-Espera
então que Araquém parta e a cabana fique deserta; eu te guiarei à presença do
estrangeiro.

-Nunca,
filha dos tabajaras, um guerreiro pitiguara passou a soleira da cabana inimiga,
se não foi como vencedor. Conduz aqui o guerreiro do mar.

-A
vingança de Irapuã fareja em roda da cabana de Araquém. Trouxe o irmão do estrangeiro
bastantes guerreiros pitiguaras para o defender e salvar?

Poti
refletiu:

-Conta,
virgem das serras, o que sucedeu em teus campos depois que a eles chegou o
guerreiro do mar.

Iracema
referiu como a cólera de Irapuã se havia assanhado contra o estrangeiro, até
que a voz de Tupã, chamado pelo pajé, tinha apaziguado seu furor:

-A
raiva de Irapuã é como a andira: foge da luz e voa nas trevas.

A
mão de Poti cerrou súbito os lábios da virgem; sua fala parecia um sopro:

-Suspende
a voz e o respiro, virgem das florestas, o ouvido inimigo escuta na sombra.

As
folhas crepitavam de manso, como se por elas passasse a fragueira nambu. Um
rumor, partido da orla da mata, vinha discorrendo pelo vale.

O
valente Poti, resvalando pela relva, como o ligeiro camarão, de que ele tomara
o nome e a viveza, desapareceu no lago profundo. A água não soltou um murmúrio,
e cerrou sobre ele sua límpida onda.

Iracema
voltou à cabana; em meio do caminho perceberam seus olhos as sombras de muitos
guerreiros que rojavam pelo chão como a intanha.

Araquém,
vendo-a entrar, partiu.

A
virgem tabajara contou a Martim o que ouvira de Poti; o guerreiro cristão
ergueu-se de um ímpeto para correr em defesa de seu irmão pitiguara. Cingiu-lhe
o colo Iracema com os lindos braços:

-O
chefe não carece de ti; ele é filho das águas; as águas o protegem. Mais tarde
o estrangeiro ouvirá em seus ouvidos as falas amigas.

-Iracema,
é tempo que teu hóspede deixe a cabana do pajé e os campos dos tabajaras. Ele
não tem medo dos guerreiros de Irapuã, tem medo dos olhos da virgem de Tupã.

-Eles
fugirão de ti.

-Fuja
deles o estrangeiro, como o oitibó da estrela da manhã. Martim promoveu o
passo.

-Vai,
guerreiro ingrato; vai matar teu irmão primeiro, depois a ti. Iracema te
seguirá até aos campos alegres aonde vão as sombras dos que morrem.

-Matar
meu irmão, dizes tu, virgem cruel.

-Teu
rastro guiará o inimigo aonde ele se oculta.

O
cristão estacou em meio da cabana; e ali permaneceu mudo e quedo. Iracema,
receosa de fitá-lo, tinha os olhos na sombra do guerreiro, que a chama
projetava na vetusta parede da cabana.

O
cão felpudo, deitado no borralho, deu sinal de que se aproximava gente amiga. A
porta entretecida dos talos da carnaúba foi aberta por fora. Caubi entrou.

-O
cauim perturbou o espírito dos guerreiros; eles vêm contra o estrangeiro.

A
virgem ergueu-se de um ímpeto:

-Levanta
a pedra que fecha a garganta de Tupã, para que ela esconda o estrangeiro.

O
guerreiro tabajara, sopesando a laje enorme, emborcou-a no chão.

-Filho
de Araquém, deita na porta da cabana, e mais nunca te levantes da terra, se um
guerreiro passar por cima de teu corpo.

Caubi
obedeceu; a virgem cerrou a porta.

Decorreu
breve trato. Ressoa perto o estrupido dos guerreiros; travam-se as vozes iradas
de Irapuã e Caubi.

-Eles
vêm; mas Tupã salvará seu hóspede.

Nesse
instante, como se o deus do trovão ouvisse as palavras de sua virgem, o antro,
mudo em princípio, retroou surdamente.

-Ouve!
É a voz de Tupã.

Iracema
cerra a mão do guerreiro, e o leva à borda do antro. Somem-se ambos nas
entranhas da terra.






XIV –




Os
guerreiros tabajaras, excitados com as copiosas libações do espumante cauim, se
inflamam à voz de Irapuã que tantas vezes os guiou ao combate, quantas à
vitória.

Aplaca
o vinho a sede do corpo, mas acende outra sede maior na alma feroz. Rugem
vingança contra o estrangeiro audaz que, afrontando suas armas, ofende o deus
de seus pais, e o chefe da guerra, o primeiro varão tabajara.


tripudiam de furor, e arremetem pelas sombras; a luz vermelha do ubiratã, que brilha ao longe, os guia à cabana
de Araquém. De espaço em espaço erguem-se do chão os que primeiro vieram para
vigiar o inimigo.

-O
pajé está na floresta! murmuram eles.

-E
o estrangeiro? pergunta Irapuã.

-Na
cabana com Iracema.

O
grande chefe lança terrível salto; já é chegado à porta da cabana, e com ele
seus valentes guerreiros.

O
vulto de Caubi enche o vão da porta; suas armas guardam diante dele o espaço de
um bote do maracajá.

-Vis
guerreiros são aqueles que atacam em bando como os caititus. O jaguar, senhor da floresta, e o anajê, senhor das nuvens, combatem só o
inimigo.

-Morda
o pó a boca torpe que levanta a voz contra o mais valente guerreiro dos
guerreiros tabajaras.

Proferidas
estas palavras, ergue o braço de Irapuã o rígido tacape, mas estaca no ar: as
entranhas da terra outra vez rugem, como rugiram, quando Araquém acordou a voz
tremenda de Tupã.

Levantam
os guerreiros medonho alarido, e cercando seu chefe, o arrebatam ao funesto
lugar e à cólera de Tupã, contra eles concitado.

Caubi
estende-se de novo na soleira da porta; seus olhos adormecem; mas seu ouvido
vela no sono.

A
voz de Tupã emudeceu.

Iracema
e o cristão, perdidos nas entranhas da terra, descem a gruta profunda. Súbito,
uma voz que vinha reboando pela crasta, encheu seus ouvidos:

-O
guerreiro do mar escuta a fala de seu irmão?


Poti, o amigo de teu hóspede, disse o cristão para a virgem.

Iracema
estremeceu:

-Ele
fala pela boca de Tupã.

Martim
respondeu enfim ao pitiguara.

-As
falas de Poti entram n’alma de seu irmão.

-Nenhum
outro ouvido escuta?

-Os
da virgem que duas vezes em um sol defendeu a vida de teu irmão!

-A
mulher é fraca, o tabajara traidor, e o irmão de Jacaúna prudente.

Iracema
suspirou e pousou a cabeça no peito do mancebo:

-Senhor
de Iracema, cerra seus ouvidos, para que ela não ouça.

Martim
repeliu docemente a gentil fronte:

-Fale
o chefe pitiguara; só o escutam ouvidos amigos e fiéis.

-Tu
ordenas, Poti fala. Antes que o Sol se levante na serra, o guerreiro do mar
deve partir para as margens do ninho das garças; a estrela morta o guiará às alvas praias. Nenhum
tabajara o seguirá, porque a inúbia dos pitiguaras rugirá da banda da serra.

-Quantos
guerreiros pitiguaras acompanham seu chefe valente?

-Nenhum;
Poti veio só com suas armas. Quando os espíritos maus das florestas separaram o
guerreiro do mar de seu irmão, Poti veio em seguimento do rastro. Seu coração
não deixou que voltasse para chamar os guerreiros de sua taba; mas expediu seu
cão fiel ao grande Jacaúna.

-O
chefe pitiguara está só; não deve rugir a inúbia que chamará contra si todos os
guerreiros tabajaras.


preciso para salvar o irmão branco; Poti zombará de Irapuã, como zombou quando
combatiam cem contra ti.

A
filha do pajé que ouvira calada, debruçou-se ao ouvido do cristão:

-Iracema
quer te salvar e a teu irmão; ela tem seu pensamento. O chefe pitiguara é
valente e audaz; Irapuã é manhoso e traiçoeiro como a acauã. Antes que chegues à floresta, cairás;
e teu irmão da outra banda cairá contigo.

-Que
fará a virgem tabajara para salvar o estrangeiro e seu irmão? perguntou Martim.

-Mais
um sol e outro, e a lua das flores vai nascer. É o tempo da festa, em que os
guerreiros tabajaras passam a noite no bosque sagrado, e recebem do pajé os
sonhos alegres. Quando estiverem todos adormecidos, o guerreiro branco deixará
os campos do Ipu, e os olhos de Iracema, mas não sua alma.

Martim
estreitou a virgem ao seio; mas logo a repeliu. O toque de seu corpo, doce como
a açucena da mata, e quente como o ninho do beija-flor, espinhou seu coração,
porque lhe recordou as palavras terríveis do pajé.

A
voz do cristão transmitiu a Poti o pensamento de Iracema; o chefe pitiguara,
prudente como o tamanduá, pensou e respondeu:

-A
sabedoria falou pela boca da virgem tabajara. Poti espera o nascimento da Lua.






XV –




Nasceu
o dia e expirou.


brilha na cabana de Araquém o fogo, companheiro da noite. Correm lentas e
silenciosas no azul do céu, as estrelas, filhas da Lua, que esperam a volta de
sua mãe ausente.

Martim
se embala docemente; e como a alva rede que vai e vem, sua vontade oscila de um
a outro pensamento. Lá o espera a virgem loura dos castos afetos; aqui lhe
sorri a virgem morena dos ardentes amores.

Iracema
recosta-se langue ao punho da rede; seus olhos negros e fúlgidos, ternos olhos
de sabiá, buscam o estrangeiro, e lhe entram n’alma. O cristão sorri; a virgem
palpita; como o saí, fascinado
pela serpente, vai declinando o lascivo talhe, que se prostra sobre o peito do
guerreiro.


o estrangeiro a preme ao seio; e o lábio ávido busca o lábio que o espera, para
celebrar nesse ádito d’alma, o himeneu do amor.

No
recanto escuro o velho pajé, imerso em sua contemplação e alheio às cousas
deste mundo, soltou um gemido doloroso. Pressentira o coração o que não viram
os olhos? Ou foi algum funesto presságio para a raça de seus filhos, que assim
ecoou n’alma de Araquém?

Ninguém
o soube.

O
cristão repeliu do seio a virgem indiana. Ele não deixará o rastro da desgraça
na cabana hospedeira. Cerra os olhos para não ver; e enche sua alma com o nome
e a veneração do seu Deus:

-Cristo!…
Cristo!…

A
serenidade volta ao seio do guerreiro branco, mas todas as vezes que seu olhar
pousa sobre a virgem tabajara, ele sente correr-lhe pelas veias uma centelha de
ardente chama. Assim, quando a criança imprudente revolve o brasido de intenso
fogo, saltam as faúlhas inflamadas que lhe queimam o corpo.

Fecha
os olhos o cristão, mas na sombra de seu pensamento surge a imagem da virgem,
talvez mais bela. Embalde chama ele o sono às pálpebras fatigadas; elas se
abrem, malgrado seu.

Desce-lhe
do céu ao atribulado pensamento uma inspiração:

-Virgem
formosa do sertão, esta é a última noite que teu hóspede dorme na cabana de
Araquém, onde nunca viera, para teu bem e seu. Faze que seu sono seja alegre e
feliz.

-Manda;
Iracema te obedece. Que pode ela para tua alegria?

O
cristão falou submisso, para que não o ouvisse o velho pajé:

-A
virgem de Tupã guarda os sonhos da jurema que são doces e saborosos!

Um
triste sorriso pungiu os lábios de Iracema:

-O
estrangeiro vai viver para sempre à cintura da virgem branca; nunca mais seus olhos
verão a filha de Araquém; e ele quer que o sono já feche suas pálpebras, e o
sonho o leve à terra de seus irmãos!

-O
sono é o descanso do guerreiro, disse Martim; e o sonho a alegria d’alma. O
estrangeiro não quer levar consigo a tristeza da terra hospedeira, nem deixá-la
no coração de Iracema!

A
virgem ficou imóvel.

-Vai,
e torna com o vinho de Tupã.

Quando
Iracema foi de volta, já o pajé não estava na cabana; tirou a virgem do seio o
vaso que ali trazia oculto sob a carioba de
algodão entretecida de penas. Martim lho arrebatou das mãos, e libou as poucas
gotas do verde e amargo licor. Não tardou que a rede recebesse seu corpo
desfalecido.

Agora
podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo, que ali viçava entre
sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la, e sugar desse amor o
mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.

O
gozo era vida, pois o sentia mais vivo e intenso; o mal era sonho e ilusão, que
da virgem ele não possuía mais que a imagem.

Iracema
se afastara opressa e suspirosa.

Abriram-se
os braços do guerreiro e seus lábios; o nome da virgem ressoou docemente.

A
juruti, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro; bate as
asas, e voa para conchegar-se ao tépido ninho. Assim a virgem do sertão,
aninhou-se nos braços do guerreiro.

Quando
veio a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual borboleta que dormiu no
seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores; e
como entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio do Sol, em suas faces
incendidas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor.

Martim
vendo a virgem unida ao seu coração, cuidou que o sonho continuava; cerrou os
olhos para torná-los a abrir.

A
pocema dos guerreiros, troando pelo vale, o arrancou ao doce engano: sentiu que
já não sonhava, mas vivia. Sua mão cruel abafou nos lábios da virgem o beijo que
ali se espanejava.

-Os
beijos de Iracema são doces no sonho; o guerreiro branco encheu deles sua alma.
Na vida, os lábios da virgem de Tupã, amargam e doem como o espinho da jurema.

A
filha de Araquém escondeu no coração a sua alegria. Ficou tímida e inquieta,
como a ave que pressente a borrasca no horizonte. Afastou-se rápida, e partiu.

As
águas do rio depuraram o corpo casto da recente esposa.

A
jandaia não tornou à cabana.

Tupã
já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras.






XVI –




O
alvo disco da Lua surgiu no horizonte.

A
luz brilhante do Sol empalidece a virgem do céu, como o amor do guerreiro
desmaia a face da esposa.

-Jaci!… Mãe nossa!… exclamaram os
guerreiros tabajaras.

E
brandindo os arcos lançaram ao céu com a chuva das flechas o canto da lua nova:

Veio
no céu a mãe dos guerreiros; já volta o rosto para ver seus filhos. Ela traz as
águas, que enchem os rios e a polpa do caju.


veio a esposa do Sol; já sorri as virgens da terra, filhas suas. A doce luz
acende o amor no coração dos guerreiros e fecunda o seio da jovem mãe.»

Cai
a tarde.

Folgam
as mulheres e os meninos na vasta ocara; os mancebos, que ainda não ganharam
nome de guerra por algum feito brilhante, discorrem no vale.

Os
guerreiros seguem Irapuã ao bosque sagrado, onde os espera o pajé e sua filha
para o mistério da jurema. Iracema já acendeu os fogos da alegria. Araquém está imóvel e extático no
seio de uma nuvem de fumo.

Cada
guerreiro que chega depõe a seus pés uma oferenda a Tupã. Traz um a suculenta
caça; outro a farinha d’água; aquele o saboroso piracém da traíra. O velho
pajé, para quem são estas dádivas, as recebe com desdém.

Quando
foram todos sentados em torno do grande fogo, o ministro de Tupã ordena o
silêncio com um gesto, e três vezes clamando o nome terrível, enche-se do deus,
que o habita:

-Tupã!…
Tupã!… Tupã!…

Três
vezes o eco ao longe repercutiu.

Vem
Iracema com a igaçaba cheia do verde licor. Araquém decreta os sonhos a cada
guerreiro, e distribui o vinho da jurema, que transporta ao céu o valente
tabajara.

Este,
grande caçador, sonha que os veados e as pacas correm adiante de suas flechas
para se traspassarem nelas; fatigado por fim de ferir, cava na terra o bucã, e assa tamanha quantidade de caça que
mil guerreiros em um ano não acabaram.

Outro,
fogoso em amores, sonha que as mais belas virgens dos tabajaras deixam a cabana
de seus pais e o seguem cativas de seu querer. Nunca a rede de chefe algum
embalou mais voluptuosas carícias, que ele as frui naquele êxtase.

O
herói sonha tremendas lutas e horríveis combates, de que sai vencedor, cheio de
glória e fama. O velho renasce na prole numerosa, e como o seco tronco, donde
rebenta nova e robusta sebe, cobre-se ainda de flores.

Todos
sentem a felicidade tão viva e contínua, que no espaço da noite cuidam viver
muitas luas. As bocas murmuram; o gesto fala; e o pajé, que tudo escuta e vê,
colhe o segredo das almas desnudas.

Iracema,
depois que ofereceu aos guerreiros o licor de Tupã, saiu do bosque. Não
permitia o rito que ela assistisse ao sono dos guerreiros e ouvisse falar os
sonhos.

Foi
dali direito à cabana onde a esperava Martim:

-Toma
tuas armas, guerreiro branco. É tempo de partir.

-Leva-me
aonde está Poti, meu irmão.

A
virgem caminhou para o vale; o cristão a seguiu. Chegaram à falda do rochedo,
que ia morrer à beira do tanque, em um maciço de verdura.

-Chama
teu irmão!

Martim
soltou o grito da gaivota. A pedra que fechava a entrada da gruta caiu; e o
vulto do guerreiro Poti apareceu na sombra.

Os
dois irmãos encostaram a fronte na fronte e o peito no peito, para exprimir que
não tinham ambos mais que uma cabeça e um coração.

-Poti
está contente porque vê seu irmão, que o mau espírito da floresta arrebatou de
seus olhos.

-Feliz
é o guerreiro que tem ao flanco um amigo como o bravo Poti; todos os guerreiros
o invejarão.

Iracema
suspirou, pensando que a afeição do pitiguara bastava à felicidade do
estrangeiro.

-Os
guerreiros tabajaras dormem. A filha de Araquém vai guiar os estrangeiros.

A
virgem seguiu adiante; os dois guerreiros após. Quando tinham andado o espaço
que transpõe a garça de um vôo, o chefe pitiguara tornou-se inquieto e murmurou
ao ouvido do cristão:

-Manda
à filha do pajé que volte à cabana de seu pai. Ela demora a marcha dos
guerreiros.

Martim
entristeceu; mas a voz da prudência e da amizade penetrou em seu coração.
Avançou para Iracema, e tirou do seio uma voz doce para acalentar a saudade da
virgem:

-Mais
afunda a raiz da planta na terra, mais custa a arrancá-la. Cada passo de
Iracema no caminho da partida, é uma raiz que lança no coração de seu hóspede.

-Iracema
quer te acompanhar até onde acabam os campos dos tabajaras, para voltar com o
sossego em seu peito.

Martim
não respondeu. Continuaram a caminhar, e com eles caminhava a noite; as
estrelas desmaiaram; e a frescura da alvorada alegrou a floresta. As roupas da
manhã, alvas como o algodão, apareceram no céu.

Poti
olhou a mata e parou. Martim compreendeu e disse a Iracema:

-Teu
hóspede já não pisa os campos dos tabajaras. É o instante de separar-te dele.






XVII –




Iracema
pousou a mão no peito do guerreiro branco:

-A
filha dos tabajaras já deixou os campos de seus pais; agora pode falar.

-Que
guardas tu em teu seio, virgem formosa do sertão?

Ela
pôs os olhos cheios no cristão:

-Iracema
não pode mais separar-se do estrangeiro.

-Assim
é preciso, filha de Araquém. Torna à cabana de teu velho pai, que te espera.

-Araquém
já não tem filha.

Martim
tornou com um gesto rudo e severo:

-Um
guerreiro da minha raça jamais deixou a cabana do hóspede viúva de sua alegria.
Araquém abraçará sua filha, para não amaldiçoar o estrangeiro ingrato.

A
virgem pendeu a fronte; velando-se com as longas tranças negras que se
espargiam pelo colo, cruzando ao grêmio os lindos braços, recolheu em seu
pudor. Assim o róseo cacto, que já desabrochou em formosa flor, cerra em botão
o seio perfumado.

-Tua
escrava te acompanhará, guerreiro branco; porque teu sangue dorme em seu seio.

Martim
estremeceu.

-Os
maus espíritos da noite turbaram o espírito de Iracema.

-O
guerreiro branco sonhava, quando Tupã abandonou sua virgem, porque ela traiu o
segredo da jurema.

O
cristão escondeu as faces à luz.

-Deus!…
clamou seu lábio trêmulo.

Permaneceram
ambos mudos e quedos.

Afinal
disse Poti:

-Os
guerreiros tabajaras despertam.

O
coração da virgem, como o do estrangeiro, ficou surdo à voz da prudência. O Sol
levantou-se no horizonte; e seu olhar majestoso desceu dos montes à floresta.
Poti de pé como um tronco decepado esperou que seu irmão quisesse partir.

Foi
Iracema quem primeiro falou:

-Vem;
enquanto não pisares as praias dos pitiguaras, tua vida corre perigo.

Martim
seguiu silencioso a virgem, que fugia entre as árvores como a selvagem cutia. A
tristeza lhe roía o coração; mas a onda de perfumes que deixava na brisa a
passagem da formosa tabajara açulava o amor no seio do guerreiro. Seu passo era
tardo, o peito lhe ofegava.

Poti
cismava. Em sua cabeça de mancebo morava o espírito de um abaeté. O chefe pitiguara pensava que o amor
é como o cauim, o qual bebido com moderação fortalece o guerreiro, e tomado em
excesso abate a coragem do herói. Ele sabia quanto veloz era o pé do tabajara;
e esperava o momento de morrer defendendo o amigo.

Quando
as sombras da tarde entristeciam o dia, o cristão parou no meio da mata. Poti
acendeu o fogo da hospitalidade. A virgem desdobrou a alva rede de algodão
franjada de penas de tucano, e suspendeu-a aos ramos da árvore.

-Esposo
de Iracema, tua rede te espera.

A
filha de Araquém foi sentar-se longe, na raiz de uma árvore, como a cerva
solitária, que o ingrato companheiro afugentou do aprisco. O guerreiro
pitiguara desapareceu na espessura da folhagem.

Martim
ficou mudo e triste, semelhante ao tronco d’árvore a que o vento arrancou o
lindo cipó que o entrelaçava. A brisa, perpassando levou um murmúrio:

-Iracema!

Era
o balido do companheiro; a cerva arrufando-se ganhou o doce aprisco.

A
floresta destilava suave fragrância e exalava harmoniosos arpejos; os suspiros
do coração se difundiram nos múrmures do deserto. Foi a festa do amor, e o
canto do himeneu.


a luz da manhã coou na selva densa. A voz grave e sonora de Poti repercutiu no
sussurro da mata:

-O
povo tabajara caminha na floresta!

Iracema
arrancou-se dos braços que a cingiam e mais do lábio que a tinha cativa:
saltando da rede como a rápida zabelê, travou das armas do esposo e levou-o
através da mata.

De
espaço a espaço, o prudente Poti escutava as entranhas da terra; sua cabeça
movia-se pesada de um a outro lado, como a nuvem que se balança no cocuruto do
rochedo, aos vários lufos da próxima borrasca.

-O
que escuta o ouvido do guerreiro Poti?

-Escuta
o passo veloz do povo tabajara. Ele vem como o tapir, rompendo a floresta.

-O
guerreiro pitiguara é a ema que voa sobre a terra; nós o seguiremos, como suas
asas, disse Iracema.

O
chefe sacudiu de novo a fronte:

-Enquanto
o guerreiro do mar dormia, o inimigo correu. Os que primeiro partiram já
avançam além como as pontas do arco.

A
vergonha mordeu o coração de Martim:

-Fuja
o chefe Poti e salve Iracema. Só deve morrer o guerreiro mau, que não escutou a
voz de seu irmão e o pedido de sua esposa.

Martim
arrepiou o passo.

-A
alma do guerreiro branco não escutou sua boca. Poti e seu irmão só têm uma
vida.

O
lábio de Iracema não falou; sorriu.






XVIII –




Treme
a selva com o estrupido da carreira do povo tabajara.

O
grande Irapuã, primeiro, assoma entre as árvores. Seu olhar rúbido viu o
guerreiro branco entre nuvens de sangue; o grito rouco do tigre rompe de seu
peito cavernoso.

O
chefe tabajara e seu povo vão se precipitar sobre os fugitivos, como a vaga
encapelada que arrebenta no Mocoribe.

Eis
late o cão selvagem.

Poti
solta o grito da alegria:

-O
cão de Poti guia os guerreiros de sua taba em socorro teu.

O
rouco búzio dos pitiguaras estruge pela floresta. O grande Jacaúna, senhor das praias do mar, chegava do
rio das garças com seus melhores guerreiros.

Os
pitiguaras recebem o primeiro ímpeto do inimigo nas pontas eriçadas de suas
flechas, que eles despedem do arco aos molhos, como o cuandu os espinhos do seu corpo. Logo
após soa a pocema, estreita-se o espaço, e a luta se trava face a face.

Jacaúna
atacou Irapuã. Prossegue o horrível combate que bastara a dez bravos, e não
esgotou ainda a força dos grandes chefes. Quando os dois tacapes se encontram,
a batalha toda estremece como um só guerreiro até as entranhas.

O
irmão de Iracema veio direito ao estrangeiro, que arrancara a filha de Araquém
à cabana hospedeira; o faro da vingança o guia; a vista da irmã assanha a raiva
em seu peito. O guerreiro Caubi assalta com furor o inimigo.

Iracema,
unida ao flanco de seu guerreiro e esposo, viu de longe Caubi e falou assim:

-Senhor
de Iracema, ouve o rogo de tua escrava; não derrama o sangue do filho de
Araquém. Se o guerreiro Caubi tem de morrer, morra ele por esta mão, não pela
tua.

Martim
pôs no rosto da virgem olhos de horror:

-Iracema
matará seu irmão?

-Iracema
antes quer que o sangue de Caubi tinja sua mão que a tua; porque os olhos de
Iracema vêem a ti, e a ela não.

Travam
a luta os guerreiros. Caubi combate com furor; o cristão defende-se apenas; mas
a seta embebida no arco da esposa guarda a vida do guerreiro contra os botes do
inimigo.

Poti
já prostrou o velho Andira e quantos guerreiros topou na luta seu válido
tacape. Martim lhe abandona o filho de Araquém, e corre sobre Irapuã:

-Jacaúna
é um grande chefe, seu colar de guerra dá
três voltas ao peito. O tabajara pertence ao guerreiro branco.

-A
vingança é a honra do guerreiro, e Jacaúna ama o amigo de Poti.

O
grande chefe pitiguara levou além o formidável tacape. O combate renhiu-se entre
Irapuã e Martim. A espada do cristão, batendo na clava do selvagem, fez-se em
pedaços. O chefe tabajara avançou contra o peito inerme do adversário.

Iracema
silvou como a boicininga, e se arremessou ante a fúria do guerreiro tabajara. A
arma rígida tremeu na destra possante e o braço caiu desfalecido.

Soava
a pocema da vitória. Os guerreiros pitiguaras conduzidos por Jacaúna e Poti
varriam a floresta. Os tabajaras, fugindo, arrebataram seu chefe ao ódio da
filha de Araquém que o podia abater, como a jandaia abate o prócero coqueiro
roendo-lhe o cerne.

Os
olhos de Iracema, estendidos pela floresta, viram o chão juncado de cadáveres
de seus irmãos; e longe o bando dos guerreiros tabajaras que fugia em nuvem
negra de pó. Aquele sangue que enrubescia a terra era o mesmo sangue brioso que
lhe ardia nas faces de vergonha.

O
pranto orvalhou seu lindo semblante.

Martim
afastou-se para não envergonhar a tristeza de Iracema. Deixou que sua dor nua
se banhasse nas lágrimas.






XIX –




Poti
voltou de perseguir o inimigo. Seus olhos se encheram de alegria, vendo salvo o
guerreiro branco.

O
cão fiel o seguia de perto, lambendo ainda nos pêlos do focinho a marugem do
sangue tabajara, de que se fartara; o senhor o acariciava satisfeito de sua
coragem e dedicação. Fora ele quem salvara Martim, ali trazendo com tanta
diligência os guerreiros de Jacaúna.

-Os
maus espíritos da floresta podem separar outra vez o guerreiro branco de seu
irmão pitiguara. O cão te seguirá daqui em diante, para que mesmo de longe Poti
acuda a teu chamado.

-Mas
o cão é teu companheiro e amigo fiel.

-Mais
amigo e companheiro será de Poti, servindo a seu irmão que a ele. Tu o chamarás
Japi; e ele será o pé ligeiro
com que de longe corramos um para o outro.

Jacaúna
deu o sinal da partida.

Os
guerreiros pitiguaras caminharam para as margens alegres do rio onde bebem as
garças: ali se erguia a grande taba dos senhores das várzeas.

O
Sol deitou-se e de novo se levantou no céu. Os guerreiros chegaram aonde a
serra quebrava para o sertão; já tinham passado aquela parte da montanha que,
por ser despida de arvoredo e tosquiada como a capivara, a gente de Tupã
chamava Ibiapina.

Poti
levou o cristão aonde crescia um frondoso jatobá, que afrontava as árvores do mais alto
píncaro da serrania, e quando batido pela rajada, parecia varrer o céu com a
imensa copa.

-Neste
lugar nasceu teu irmão, disse o pitiguara.

Martim
estreitou o peito ao tronco enorme:

-Jatobá,
que viste nascer meu irmão Poti, o estrangeiro te abraça.

-O
raio te decepe, árvore do guerreiro Poti, quando seu irmão o abandonar.

Depois
o chefe assim falou:

-Ainda
Jacaúna não era um guerreiro, Jatobá, o maior chefe, conduzia os pitiguaras à
vitória. Logo que as grandes águas correram, ele caminhou para a serra. Aqui
chegando, mandou levantar a taba, para estar perto do inimigo e vencê-lo mais
vezes. A mesma Lua que o viu chegar, alumiou a rede onde Saí, sua esposa, lhe
deu mais um guerreiro de seu sangue. O luar passava por entre as folhas do
jatobá; e o sorriso pelos lábios do varão possante, que tomara seu nome e
robustez.

Iracema
aproximou-se.

A
rola, que marisca na areia, se afasta-se o companheiro, adeja inquieta de ramo
em ramo e arrulha para que lhe responda o ausente amigo. Assim a filha das
florestas errara pela encosta, modulando o singelo canto mavioso.

Martim
a recebeu com a alma no semblante; e levando a esposa do lado do coração e o
amigo do lado da força, voltou ao rancho dos pitiguaras.






XX –




A
Lua cresceu.

Três
sóis havia que Martim e Iracema estavam nas terras dos pitiguaras, senhores das
margens do Camucim e Acaraú. Os estrangeiros tinham sua rede na vasta cabana do
grande Jacaúna. O valente chefe guardou para si a alegria de hospedar o
guerreiro branco.

Poti
abandonou sua taba para acompanhar seu irmão de guerra na cabana de seu irmão
de sangue, e gozar dos instantes que sobejavam do amor de Iracema para a
amizade, no coração do guerreiro do mar.

A
sombra já se retirou da face da terra: e Martim viu que ela não se retirara
ainda da face da esposa, desde o dia do combate.

-A
tristeza mora na alma de Iracema!

-A
alegria para a esposa só vem de ti; quando teus olhos a deixam, as lágrimas
enchem os seus.

-Por
que chora a filha dos tabajaras?

-Esta
é a taba dos pitiguaras, inimigos de meu povo. A vista de Iracema já conheceu o
crânio de seus irmãos espetado na caiçara; o ouvido já escutou o canto de morte
dos cativos tabajaras; a mão já tocou as armas tintas do sangue de seus pais.

A
esposa pousou as duas mãos nos ombros do guerreiro, e reclinou ao peito dele:

-Iracema
tudo sofre por seu guerreiro e senhor. A ata é doce e saborosa; quando a
machucam, azeda. Tua esposa não quer que seu amor azede teu coração; mas que te
encha das doçuras do mel.

-Volte
o sossego ao seio da filha dos tabajaras; ela vai deixar a taba dos inimigos de
seu povo.

O
cristão caminhou para a cabana de Jacaúna. O grande chefe alegrou-se vendo
chegar seu hóspede; mas a alegria fugiu logo de sua fronte guerreira. Martim
dissera:

-O
guerreiro branco parte de tua cabana, grande chefe.

-Alguma
cousa te faltou na taba de Jacaúna?

-Nada
faltou a teu hóspede. Ele era feliz aqui; mas a voz do coração o chama a outros
sítios.

-Então
parte, e leva o que é preciso para a viagem. Tupã te fortaleça, e traga outra
vez à cabana de Jacaúna, para que ele festeje tua boa-vinda.

Poti
chegou; sabendo que o guerreiro do mar ia partir, falou:

-Teu
irmão te acompanha.

-Os
guerreiros de Poti precisam de seu chefe.

-Se
tu não queres que eles vão com Poti, Jacaúna os conduzirá à vitória.

-A
cabana de Poti ficará deserta e triste.

-Deserto
e triste será o coração de teu irmão longe de ti.

O
guerreiro do mar deixou as margens do rio das garças, e caminhou para as terras
onde o Sol se deita. A esposa e o amigo seguem sua marcha.

Passam
além da fértil montanha, onde a abundância dos frutos criava grande quantidade
de mosca, de que lhe veio o nome de Meruoca.

Atravessam
os córregos que levam suas águas ao rio das garças, e avistam longe no
horizonte uma alta serrania. Expira o dia; nuvem negra voa das bandas do mar:
são os urubus que pastam nas praias a carniça que o oceano arroja, e com a
noite tornam ao ninho.

Os
viajantes dormem em Uruburetama.
Quando o Sol voltou, chegaram às margens do rio, que nasce da quebrada da serra
e desce a planície enroscando-se como uma cobra. Suas voltas contínuas enganam
a cada passo o peregrino, que vai seguindo o tortuoso curso; por isso foi
chamado Mundaú.

Perlongando
as frescas margens, viu Martim no seguinte sol os verdes mares e as alvas
praias onde as ondas murmurosas às vezes soluçam e outras raivam de fúria,
rebentando em frocos de espuma.

Os
olhos do guerreiro branco se dilataram pela vasta imensidade; seu peito
suspirou. Esse mar beijava também as brancas areias do Potengi, seu berço natal, onde ele vira a luz
americana. Arrojou-se nas ondas e pensou banhar seu corpo nas águas da pátria,
como banhara sua alma nas saudades dela.

Iracema
sentiu chorar-lhe o coração; mas não tardou que o sorriso de seu guerreiro o
acalentasse.

Entretanto
Poti, do alto do coqueiro, flechava o saboroso camorupim que brincava na
pequena baía do Mundaú; e preparava o moquém para a refeição.






XXI –





descia o Sol das alturas do céu.

Chegam
os viajantes à foz do rio onde se criam em grande abundância as saborosas
traíras; suas praias são
povoadas pela tribo dos pescadores, da grande nação dos pitiguaras.

Eles
receberam os estrangeiros com a hospitalidade generosa, que era uma lei de sua
religião; e Poti com o respeito que merecia tão grande guerreiro, irmão de
Jacaúna, maior chefe da forte gente pitiguara.

Para
repousar os viajantes, e acompanhá-los na despedida, o chefe da tribo recebeu
Martim, Iracema e Poti na jangada, e abrindo a vela a brisa, levou-os até muito
longe da costa.

Todos
os pescadores em suas jangadas seguiam o chefe e atroavam os ares com o canto
de saudade, e os múrmuros do uraçá, que imita os soluços do vento.

Além
da tribo dos pescadores estava mais entrada para as serras a tribo dos
caçadores. Eles ocupavam as margens do Soipé, cobertas de matas, onde os veados, as
gordas pacas e os macios jacus abundavam. Assim os habitadores dessas margens
lhes deram o nome de país da caça.

O
chefe dos caçadores, Jaguaraçu, tinha sua cabana à beira do lago que forma o
rio perto do mar. Aí acharam os viajantes o mesmo agasalho que haviam recebido
dos pescadores.

Depois
que partiram do Soipé, os viajantes atravessaram o rio Pacoti, em cujas margens cresciam as
frondosas bananeiras balançando os verdes penachos; mais longe o Iguape, onde a água faz cintura em torno dos
cômoros de areia.

Além
assomou no horizonte um alto morro de areia que tinha a alvura da espuma do
mar. O cabo sobranceiro aos coqueiros parece a cabeça calva do condor,
esperando ali a borrasca, que vem dos confins do oceano.

-Poti
conhece o grande morro das areias? perguntou o cristão.

-Poti
conhece toda a terra que tem os pitiguaras, desde as margens do grande rio, que
forma um braço do mar, até à
margem do rio onde habita o jaguar. Ele já esteve no alto do Mocoribe; e de lá
viu correr no mar as grandes igaras dos guerreiros brancos, teus inimigos, que
estão no Mearim.

-Por
que chamas tu Mocoribe ao grande morro das areias?

-O
pescador da praia, que vai na jangada, lá onde voa a ati, fica triste, longe da
terra e de sua cabana, onde dormem os filhos de seu sangue. Quando ele volta e
que seus olhos primeiro avistam o morro das areias, a alegria volta ao seio do
homem. Então ele diz que o morro das areias dá alegria!

-O
pescador diz bem; porque teu irmão ficou contente como ele, vendo o monte das
areias.

Martim
subiu com Poti ao cimo do Mocoribe. Iracema, seguindo com os olhos o esposo,
divagava como a jaçanã em torno do lindo seio, que ali fez a terra para receber
o mar.

De
passagem ela colhia os doces cajus, que aplacam a sede aos guerreiros, e
apanhava as mimosas conchas para ornar seu colo.

Os
viajantes estiveram em Mocoribe três sóis. Depois Martim levou seus passos
além. A esposa e o amigo o seguiram até a embocadura de um rio cujas margens
eram alagadas e cobertas de mangue. O mar entrando por ele formava uma bacia de
água cristalina, que parecia cavada na pedra como um camucim.

O
guerreiro cristão ao percorrer essa paragem, começou de cismar. Até ali ele
caminhava sem destino, movendo seus passos ao acaso; não tinha outra intenção
mais que afastar-se das tabas dos pitiguaras para arrancar a tristeza do
coração de Iracema. O cristão sabia por experiência que a viagem acalenta a
saudade, porque a alma pára enquanto o corpo se move. Agora sentado na praia,
pensava.

Poti
veio:

-O
guerreiro branco pensa; o seio do irmão está aberto para receber seu
pensamento.

-Teu
irmão pensa que este lugar é melhor do que as margens do Jaguaribe para a taba
dos guerreiros de sua raça. Nestas águas as grandes igaras que vêm de longes
terras se esconderiam do vento e do mar; daqui elas iriam ao Mearim destruir os
brancos tapuias, aliados dos
tabajaras, inimigos de tua nação.

O
chefe pitiguara meditou e respondeu:

-Vai
buscar teus guerreiros. Poti plantará sua taba junto da mairi de seu irmão.

Aproximava-se
Iracema. O cristão mandou com um gesto o silêncio ao chefe pitiguara.

-A
voz do esposo se cala, e seus olhos se baixam, quando chega Iracema. Queres tu
que ela se afaste?

-Quer
teu esposo que chegues mais perto, para que sua voz e seus olhos penetrem mais
dentro de tua alma.

A
formosa selvagem desfez-se em risos, como se desfaz a flor do fruto que
desponta, e foi debruçar-se na espádua do guerreiro.

-Iracema
te escuta.

-Estes
campos são alegres, e mais serão quando Iracema neles habitar. Que diz teu
coração?

-O
coração da esposa está sempre alegre junto de seu senhor e guerreiro.

O
cristão, seguindo pela margem do rio, escolheu um lugar para levantar a cabana.
Poti cortou esteios dos troncos da carnaúba; a filha de Araquém ligava os
leques da palmeira para vestir o teto e as paredes; Martim cavou a terra com a
espada e fabricou a porta das fasquias da taquara.

Quando
veio a noite, os dois esposos armaram a rede em sua nova cabana; e o amigo no
copiar que olhava para o nascente.






XXII –




Poti
saudou o amigo e falou assim:

-«Antes
que o pai de Jacaúna e Poti, o valente guerreiro Jatobá, mandasse sobre todos
os guerreiros pitiguaras, o grande tacape da nação estava na destra de
Batuireté, o maior chefe, pai
de Jatobá. Foi ele que veio pelas praias do mar até o rio do jaguar, e expulsou
os tabajaras para dentro das terras, marcando a cada tribo seu lugar; depois
entrou pelo sertão até a serra que tomou seu nome.

Quando
suas estrelas eram muitas, e
tantas que seu camucim já não cabia as castanhas que marcavam o número, o corpo
vergou para a terra, o braço endureceu como o galho do ubiratã que não verga,
seus olhos se escureceram».

Chamou
então o guerreiro Jatobá e
disse: -Filho, toma o tacape da nação pitiguara. Tupã não quer que Batuireté o
leve mais à guerra, pois tirou a força de seu corpo, o movimento do seu braço e
a luz de seus olhos. Mas Tupã foi bom para ele, pois lhe deu um filho como o
guerreiro Jatobá.

Jatobá
empunhou o tacape dos pitiguaras. Batuireté tomou o bordão de sua velhice e
caminhou. Foi atravessando os vastos sertões, até os campos viçosos onde correm
as águas que vêm das bandas da noite. Quando o velho guerreiro arrastava o
passo pelas margens, e a sombra de seus olhos não lhe deixava que visse mais os
frutos nas árvores ou os pássaros no ar, ele dizia em sua tristeza: -Ah! Meus
tempos passados!

«A
gente que o ouvia chorava a ruína do grande chefe; e desde então passando por
aqueles lugares repetia suas palavras; donde veio chamar-se o rio e os campos,
Quixeramobim.

Batuireté
veio pelo caminho das garças até
aquela serra que tu vês longe, onde primeiro habitou. Lá no píncaro o velho
guerreiro fez seu ninho alto como o gavião, para encher o resto de seus dias,
conversando com Tupã. Seu filho já dorme embaixo da terra, e ele ainda na outra
lua cismava na porta de sua cabana, esperando a noite que traz o grande sono.
Todos os chefes pitiguaras, quando acordam à voz da guerra, vão pedir ao velho
que lhes ensine a vencer, porque nenhum outro guerreiro jamais soube como ele
combater. Assim as tribos não o chamam mais pelo nome, senão o grande sabedor
da guerra, Maranguab.

O
chefe Poti vai à serra ver seu grande avô; mas antes que o dia morra, ele
estará de volta na cabana de seu irmão. Tens tu outra vontade?»

-O
guerreiro branco te acompanha. Ele quer abraçar o grande chefe dos pitiguaras,
avô de seu irmão, e dizer ao velho que renasce em seu neto.

Martim
chamou Iracema; e partiram ambos guiados pelo pitiguara para a serra do
Maranguab, que se levantava no horizonte. Foram seguindo o curso do rio até
onde nele entrava o ribeiro de Pirapora.

A
cabana do velho guerreiro estava junto das formosas cascatas, onde salta o
peixe no meio dos borbotões de espuma. As águas ali são frescas e macias, como
a brisa do mar, que passa entre as palmas dos coqueiros, nas horas da calma.

Batuireté
estava sentado sobre uma das lapas da cascata; e o sol ardente caía sobre sua
cabeça nua de cabelos e cheia de rugas como o jenipapo. Assim dorme o jaburu na
borda do lago.

-Poti
é chegado à cabana do grande Maranguab, pai de Jatobá, e trouxe seu irmão
branco para ver o maior guerreiro das nações.

O
velho soabriu as pesadas pálpebras, e passou do neto ao estrangeiro um olhar
baço. Depois o peito arquejou e os lábios murmuraram:

-Tupã
quis que estes olhos vissem antes de se apagarem o gavião branco junto da narceja.

O
abaeté derrubou a fronte aos peitos, e não falou mais, nem mais se moveu.

Poti
e Martim julgaram que ele dormia e se afastaram com respeito para não perturbar
o repouso de quem tanto obrara na longa vida. Iracema, que se banhava na
próxima cachoeira, veio-lhes ao encontro, trazendo na folha da taioba favos de
mel puríssimo.

Discorreram
os amigos pelas floridas encostas até que as sombras da montanha se estenderam
pelo vale. Tornaram então ao lugar onde tinham deixado o Maranguab.

O
velho ainda lá estava na mesma atitude, com a cabeça derrubada ao peito e os
joelhos encostados à fronte. As formigas subiam pelo seu corpo; e os tuins
adejavam em torno e pousavam-lhe na calva.

Poti
pôs a mão no crânio do velho e conheceu que era finado; morrera de velhice.
Então o chefe pitiguara entoou o canto da morte; e depois foi à cabana buscar o
camucim, que transbordava com as castanhas do caju. Martim contou cinco vezes
cinco mãos.

Entretanto
Iracema colhia na floresta a andiroba, de que foi ungido o corpo do velho no
camucim, onde a mão piedosa do neto o encerrou. O vaso fúnebre ficou suspenso
ao teto da cabana.

Depois
que plantou urtiga em frente à porta, para defender contra os animais a oca abandonada,
Poti despediu-se triste daqueles lugares, e tornou com seus companheiros à
borda do mar.






XXIII –




Quatro
luas tinham alumiado o céu depois que Iracema deixara os campos do Ipu; e três
depois que ela habitava nas praias do mar a cabana de seu esposo.

A
alegria morava em sua alma. A filha dos sertões era feliz, como a andorinha que
abandona o ninho de seus pais e emigra para fabricar novo ninho no país onde
começa a estação das flores. Também Iracema achara nas praias do mar um ninho
do amor, nova pátria para o coração.

Ela
discorria as amenas campinas, como o colibri borboleteando entre as flores da
acácia. A luz da manhã já a encontrava suspensa ao ombro do esposo e sorrindo,
como a enrediça, que entrelaça o tronco e todas as manhãs o coroa de nova
grinalda.

Martim
partia para a caça com Poti. Ela separava-se então dele, para mais sentir o
desejo de tornar a ele.

Perto
havia uma formosa lagoa no meio da verde campina. Para lá volvia a selvagem o
ligeiro passo. Era a hora do banho da manhã; atirava-se à água, e nadava com as
garças brancas e as vermelhas jaçanãs.

Os
guerreiros pitiguaras, que apareciam por aquelas paragens, chamavam a essa
lagoa da beleza, porque nela se banhava Iracema, a mais bela filha da raça de
Tupã.

E
desde esse tempo as mães vinham de longe mergulhar suas filhas nas águas da
Porangaba, que tinham a virtude
de tornar as virgens formosas e amadas pelos guerreiros.

Depois
do banho, Iracema discorria até as faldas da serra do Maranguab, onde nascia o
ribeiro das marrecas. Ali cresciam na frescura e sombra as frutas mais
saborosas de todo o país; delas fazia copiosa provisão, e esperava se embalando
nas ramas do maracujá, que Martim tornasse da caça.

Outras
vezes não era a Jereraú que
a levava sua vontade, mas do oposto lado, junto da lagoa da Sapiranga, cujas águas diziam que inflamavam os
olhos. À cerca daí havia um bosque frondoso de muritis, que formavam no meio do
tabuleiro uma grande ilha de formosas palmeiras.

Iracema
gostava do muritiapuá, onde o
vento suspirava docemente; ali espolpava ela o vermelho coco, para fabricar a
bebida refrigerante, adoçada com o mel da abelha, que os guerreiros amavam
durante a maior calma do dia.

Uma
manhã Poti guiou Martim à caça. Caminharam para uma serra, que se levanta ao
lado da outra do Maranguab, sua irmã. O alto cabeço se curva à semelhança do
bico adunco da arara; pelo que os guerreiros a chamaram Aratanha. Eles subiram pela encosta da Guaiúba por onde as águas descem para o
vale, e foram até o córrego habitado pelas pacas.


havia sol no bico da arara quando os caçadores desceram de Pacatuba ao tabuleiro. De longe viram
Iracema, que viera esperá-los à margem de sua lagoa da Porangaba. Caminhava
para eles com o passo altivo da garça que passeia à beira d’água: por cima da
carioba trazia uma cintura das flores da maniva, que era o símbolo da
fecundidade. Colar das mesmas cingia-lhe o colo e ornava os rijos seios
palpitantes.

Travou
da mão do esposo, e a impôs no regaço:

-Teu
sangue já vive no seio de Iracema. Ela será mãe de teu filho!

-Filho,
dizes tu! -exclamou o cristão em júbilo.

Ajoelhou
ali e, cingindo-a com os braços, beijou o ventre fecundo da esposa.

Quando
ergueu-se, Poti falou:

«A
felicidade do mancebo é a esposa e o amigo; a primeira dá alegria; o segundo dá
força: o guerreiro sem a esposa é como a árvore sem folhas nem flores; nunca
ela verá o fruto. O guerreiro sem amigo é como a árvore solitária no meio do
campo que o vento embalança: o fruto dela nunca amadura. A felicidade do varão
é a prole, que nasce dele e faz seu orgulho; cada guerreiro que sai de suas
veias é mais um galho que leva seu nome às nuvens, como a grimpa do cedro.
Amado de Tupã é o guerreiro que tem uma esposa, um amigo e muitos filhos; ele
nada mais deseja senão a morte gloriosa.»

Martim
uniu o peito ao peito de Poti:

-O
coração do esposo e do amigo falou por tua boca. O guerreiro branco é feliz,
chefe dos pitiguaras, senhores das praias do mar; e a felicidade nasceu para
ele na terra das palmeiras, onde recende a baunilha, e foi gerada do sangue de
tua raça, que tem no rosto a cor do sol. O guerreiro branco não quer mais outra
pátria, senão a pátria de seu filho e de seu coração.

Ao
romper d’alva Poti partiu para colher as sementes de crajuru que dão a mais
bela tinta vermelha, e a casca do angico de onde sai a cor negra mais lustrosa.
De caminho sua flecha certeira abateu o pato selvagem que plainava nos ares: e
ele arrancou das asas as longas penas. Subindo ao Mocoribe, rugiu a inúbia. A
refega que vinha do mar levou longe o rouco som. O búzio dos pescadores do
Trairi e a trombeta dos caçadores do Soipé responderam.

Martim
banhou-se n’água do rio, e passeou na praia para secar o corpo ao vento e ao
sol. Ao seu lado ia Iracema, que apanhava o âmbar amarelo, que o mar arrojava.
Todas as noites a esposa perfumava seu corpo e a alva rede, para que o amor do
guerreiro se deleitasse nela.

Voltou
Poti.






XXIV –




Foi
costume da raça, filha de Tupã, que o guerreiro trouxesse no corpo as cores de
sua nação.

Traçavam
em princípio negras riscas sobre o corpo, à semelhança do pêlo do coati, de onde procedeu o nome dessa arte da
pintura guerreira. Depois variaram as cores, e muitos guerreiros costumavam escrever
os emblemas de seus feitos.

O
estrangeiro, tendo adotado a pátria da esposa e do amigo, devia passar por
aquela cerimônia, para tornar-se um guerreiro vermelho, filho de Tupã. Nessa
intenção fora Poti se prover dos objetos necessários.

Iracema
preparou as tintas. O chefe, embebendo as ramas da pluma, traçou pelo corpo os
riscos vermelhos e pretos, que ornavam a grande nação pitiguara. Depois pintou
na fronte uma flecha e disse:

-Assim
como a seta traspassa o duro tronco, assim o olhar do guerreiro penetra n’alma
dos povos.

No
braço um gavião.

-Assim
como o anajê cai das nuvens, assim cai o braço do guerreiro sobre o inimigo.

No
pé esquerdo a raiz do coqueiro.

-Assim
como a pequena raiz agarra na terra o alto coqueiro, o pé firme do guerreiro
sustenta seu corpo.

No
pé direito pintou uma asa:

-Assim
como a asa do majoí rompe os ares, o pé veloz do guerreiro não tem igual na
corrida.

Iracema
tomou a rama da pena e pintou uma folha com uma abelha sobre: sua voz ressoou
entre sorrisos:

-Assim
como a abelha fabrica mel no coração negro do jacarandá, a doçura está no peito
do mais valente guerreiro.

Martim
abriu os braços e os lábios para receber corpo e alma da esposa.

-Meu
irmão é um grande guerreiro da nação pitiguara; ele precisa de um nome na
língua de sua nação.

-O
nome de teu irmão está em seu corpo, onde o pôs tua mão.

-Coatiabo! exclamou Iracema.

-Tu
disseste; eu sou o guerreiro pintado; o guerreiro da esposa e do amigo.

Poti
deu a seu irmão o arco e o tacape, que são as armas nobres do guerreiro.
Iracema havia tecido para ele o cocar e a araçóia, ornatos dos chefes ilustres.

A
filha de Araquém foi buscar à cabana as iguarias do festim e os vinhos de
jenipapo e mandioca. Os guerreiros beberam copiosamente e trançaram as danças
alegres. Durante que volviam em torno dos fogos da alegria, ressoavam as
canções.

Poti
cantava:

-Como
a cobra que tem duas cabeças em um só corpo, assim é a amizade de Coatiabo e
Poti.

Acudiu
Iracema:

-Como
a ostra que não deixa o rochedo, ainda depois de morta, assim é Iracema junto a
seu esposo.

Os
guerreiros disseram:

-Como
o jatobá na floresta, assim é o guerreiro Coatiabo entre o irmão e a esposa:
seus ramos abraçam os ramos do ubiratã, e sua sombra protege a relva humilde.

Os
fogos da alegria arderam até que veio a manhã; e com eles durou o festim dos
guerreiros.






XXV –




A
alegria ainda morou na cabana, todo o tempo que as espigas de milho levaram a
amarelecer.

Uma
alvorada, caminhava o cristão pela borda do mar. Sua alma estava cansada.

O
colibri sacia-se de mel e
perfume; depois adormece em seu branco ninho de cotão, até que volta no outro
ano a lua das flores. Como o colibri, a alma do guerreiro também satura-se de
felicidade, e carece de sono e repouso.

A
caça e as excursões pelas montanhas em companhia do amigo, as carícias da terna
esposa que o esperavam na volta, o doce carbeto no copiar da cabana, já não
acordavam nele as emoções de outrora. Seu coração ressonava.

Iracema
brincava pela praia: os olhos dele retiravam-se dela para se estenderem pela
imensidade dos mares.

Viram
umas asas brancas, que adejavam pelos campos azuis. Conheceu o cristão que era
uma grande igara de muitas velas, como construíam seus irmãos; e a saudade da
pátria apertou em seu seio.

Alto
ia o Sol; e o guerreiro na praia seguia com os olhos as asas brancas que
fugiam. Debalde a esposa o chamou à cabana, debalde ofereceu a seus olhos, as
graças dela e os frutos melhores do campo. Não se moveu o guerreiro, senão
quando a vela sumiu-se no horizonte.

Poti
voltou da serra, onde pela vez primeira fora só. Tinha deixado a serenidade na
fronte de seu irmão e achava ali a tristeza. Martim saiu-lhe ao encontro:

-A
igara grande do branco tapuia passou no mar. Os olhos de teu irmão a viram voar
para as margens do Mearim, onde estão os aliados dos tupinambás, inimigos de
tua e minha raça.

-Poti
é senhor de mil arcos; se é teu desejo, ele te acompanhará com seus guerreiros
às margens do Mearim para vencer o tapuitinga e seu amigo, o traidor tupinambá.

-Quando
for tempo teu irmão te dirá.

Os
guerreiros entraram na cabana, onde estava Iracema. A maviosa canção nesse dia
tinha emudecido nos lábios da esposa. Ela tecia suspirando a franja da rede
materna, mais larga e espessa que a rede do himeneu.

Poti,
que a viu tão ocupada, falou:

-Quando
a sabiá canta é o tempo do amor; quando emudece, fabrica o ninho para sua
prole; é o tempo do trabalho.

-Meu
irmão fala como a rã quando anuncia a chuva; mas a sabiá que faz seu ninho, não
sabe se dormirá nele.

A
voz de Iracema gemia. Seu olhar buscou o esposo. Martim pensava: as palavras de
Iracema passaram por ele, como a brisa pela face lisa da rocha, sem eco nem
rumores.

O
Sol brilhava sempre sobre as praias do mar, e as areias refletiam os raios
ardentes; mas nem a luz que vinha do céu, nem a luz que ia da terra espancaram
a sombra n’alma do cristão. Cada vez o crepúsculo era maior em sua fronte.

Chegou
das margens do Acarú um guerreiro pitiguara, mandado por Jacaúna a seu irmão
Poti. Ele veio seguindo o rastro dos viajantes até o Trairi, onde os pescadores
o guiaram à cabana.

Poti
estava só no copiar; ergueu-se e abaixou a fronte para escutar com respeito e
gravidade as palavras que lhe mandava seu irmão pela boca do mensageiro:

-O
tapuitinga, que estava no Mearim, veio pelas matas até o princípio da Ibiapaba,
onde fez aliança com Irapuã, para combater a nação pitiguara. Eles vão descer
da serra às margens do rio em que bebem as garças, e onde tu levantaste a taba
de teus guerreiros. Jacaúna te chama para defender os campos de nossos pais:
teu povo carece de seu maior guerreiro.

-Volta
às margens do Acaraú, e teu pé não descanse enquanto não pisar o chão da cabana
de Jacaúna. Quando aí estiveres, dize ao grande chefe: -«Teu irmão é chegado à
taba de seus guerreiros.»- E tu não mentirás.

O
mensageiro partiu.

Poti
vestiu suas armas e caminhou para a várzea, guiado pelo passo de Coatiabo. Ele
o encontrou muito além, vagando entre os canaviais que bordam as margens de
Jacareí.

-O
branco tapuia está na Ibiapaba para ajudar os tabajaras a combater contra
Jacaúna. Teu irmão corre a defender a terra de seus filhos, e a taba onde dorme
os camucins de seus pais. Ele saberá vencer depressa para voltar à tua
presença.

-Teu
irmão parte contigo. Nada separa dois guerreiros amigos quando troa a inúbia da
guerra.

-Tu
és grande, como o mar, e bom como o céu.

Os
dois amigos abraçaram-se; e seguiram com o rosto para as bandas do nascente.






XXVI –




Caminhando,
caminhando, chegaram os guerreiros à margem de um lago que havia nos
tabuleiros.

O
cristão parou de repente e voltou o rosto para as bandas do mar: a tristeza
saiu de seu coração e subiu à fronte.

-Meu
irmão, disse o chefe, teu pé criou raiz na terra do amor; fica: Poti voltará
breve.

-Teu
irmão te acompanha; ele disse, e sua palavra é como a seta de teu arco; quando
soa, é chegada.

-Queres
tu que Iracema te acompanhe às margens do Acaraú?

-Nós
vamos combater seus irmãos. A taba dos pitiguaras não terá para ela mais que tristeza
e dor. A filha dos tabajaras deve ficar.

-Que
esperas tu então?

-Teu
irmão se aflige porque a filha dos tabajaras pode ficar triste e abandonar a
cabana, sem esperar pela sua volta. Antes de partir ele queria sossegar o
espírito da esposa.

Poti
refletiu:

-As
lágrimas da mulher amolecem o coração do guerreiro, como o orvalho da manhã
amolece a terra.

-Meu
irmão é um grande sabedor. O esposo deve partir sem ver Iracema.

O
cristão avançou. Poti mandou-lhe que esperasse; da aljava de setas que Iracema
emplumara de penas vermelhas e pretas, e suspendera aos ombros do esposo, tirou
uma.

O
chefe pitiguara vibrou o arco; a seta atravessou um goiamum que discorria pelas
margens do lago, e só parou onde a pluma não a deixou mais entrar.

Fincou
o guerreiro no chão a flecha, com a presa atravessada, e tornou para Coatiabo:

-Tu
podes partir agora. Iracema seguirá teu rastro; chegando aqui, verá tua seta, e
obedecerá à tua vontade.

Martim
sorriu; e quebrando um ramo do maracujá, a flor da lembrança, o entrelaçou na
haste da seta, e partiu enfim seguido por Poti.

Breve
desapareceram os dois guerreiros entre as árvores. O calor do Sol já tinha
secado seus passos na beira do lago. Iracema inquieta veio pela várzea seguindo
o rastro do esposo até o tabuleiro. As sombras doces vestiam os campos quando
ela chegou à beira do lago.

Seus
olhos viram a seta do esposo fincada no chão, o goiamum trespassado, o ramo
partido, e encheram-se de pranto.

-Ele
manda que Iracema ande para trás, como o goiamum, e guarde sua lembrança, como
o maracujá guarda sua flor todo o tempo, até morrer.

A
filha dos tabajaras retraiu os passos lentamente, sem volver o corpo, nem tirar
os olhos da seta de seu esposo, e tornou à cabana. Aí sentada à soleira, com a
fronte nos joelhos esperou, até que o sono acalentou a dor em seu peito.

Apenas
alvorou o dia, ela moveu o passo rápido a lagoa, e chegou à margem. A flecha lá
estava como na véspera: o esposo não tinha voltado.

Desde
então à hora do banho, em vez de buscar a lagoa da beleza, onde outrora tanto
gostara de nadar, caminhava para aquela, que vira seu esposo abandoná-la.
Sentava junto à flecha, até que descia a noite; então se recolhia à cabana.

Tão
rápida partia de manhã, como lenta voltava à tarde. Os mesmos guerreiros que a
tinham visto alegre nas águas da Porangaba, agora encontrando-a triste e só,
como a garça viúva, na margem do rio, chamavam aquele sítio da Mocejana, a abandonada.

Uma
vez que a formosa filha de Araquém se lamentava à beira da lagoa da Mocejana,
uma voz estridente gritou seu nome do alto da carnaúba:

-Iracema!…
Iracema!…

Ergueu
ela os olhos e viu entre as folhas da palmeira sua linda jandaia, que batia as
asas e arrufava as penas com o prazer de vê-la.

A
lembrança da pátria, apagada pelo amor, ressurgiu em seu pensamento. Viu os
formosos campos do Ipu; as encostas da serra onde nascera, a cabana de Araquém;
e teve saudades; mas ainda naquele instante, não se arrependeu de os ter
abandonado.

Seu
lábio gazeou em canto. A jandaia, abrindo as asas, esvoaçou-lhe em torno e
pousou no ombro. Alongando fagueira o colo, com o negro bico alisou-lhe os
cabelos e beliscou a boca vermelha como uma pitanga.

Iracema
lembrou-se que tinha sido ingrata para a jandaia esquecendo-a no tempo da
felicidade; e agora ela vinha para a consolar no tempo da desventura.

Nesta
tarde não voltou só à cabana. Durante o dia seus dedos ágeis teceram o formoso
uru de palha que forrou da felpa macia da monguba para agasalhar sua companheira e
amiga.

Na
seguinte alvorada foi a voz da jandaia que a despertou. A linda ave não deixou
mais sua senhora; ou porque depois da longa ausência não se fartasse de a ver,
ou porque adivinhasse que ela tinha necessidade de quem a acompanhasse em sua
triste solidão.






XXVII –




Uma
tarde Iracema viu de longe dois guerreiros que avançavam pelas praias do mar.
Seu coração palpitou mais apressado.

Instante
depois ela esquecia nos braços do esposo tantos dias de saudade e abandono, que
passara na solitária cabana. Outra vez sua graça encheu os olhos do cristão; a
alegria voltou a habitar em sua alma.

Como
a seca várzea, com a vinda do nevoeiro, reverdece e matiza-se de flores, a
formosa filha do sertão com a volta do esposo reanimou-se; e sua beleza esmaltou-se
de meigos e ternos sorrisos.

Martim
e seu irmão haviam chegado à taba de Jacaúna, quando soava a inúbia; eles
guiaram ao combate os mil arcos de Poti. Ainda dessa vez os tabajaras, apesar
da aliança dos brancos tapuias do Mearim, foram levados de vencida pelos
valentes pitiguaras.

Nunca
tão disputada vitória e tão renhida pugna se pelejou nos campos que regam o
Acaraú e o Camucim; o valor era igual de parte a parte, e nenhum dos dois povos
fora vencido, se o deus da guerra não tivesse decidido dar estas plagas à raça
do guerreiro branco, aliada dos pitiguaras.

Logo
após a vitória o cristão tornara às praias do mar, onde construíra sua cabana.
De novo sentiu em sua alma a sede do amor; e tremia de pensar que Iracema
houvesse partido, deixando ermo aquele sítio tão povoado outrora pela
felicidade.

O
cristão amou outra vez a filha do sertão, como da primeira vez, quando parece
que o tempo não poderá exaurir o coração. Mas breves sóis bastaram para murchar
aquelas flores de um coração exilado da pátria.

O
imbu, filho da serra, se nasceu
na várzea porque o vento ou as aves trouxeram a semente, vingou, achando boa
terra e fresca sombra; talvez um dia copou a verde folhagem e enflorou. Mas
basta um sopro do mar, para tudo murchar. As folhas lastram o chão; as flores,
leva-as a brisa.

Como
o imbu na várzea era o coração do guerreiro branco na terra selvagem. A amizade
e o amor o acompanharam e sustiveram algum tempo; mas agora longe de sua casa e
de seus irmãos, sentiu-se em um ermo. O amigo e a esposa não chegavam mais à
sua existência, cheia de grandes e nobres ambições.

Passava
os já tão breves, agora longos sóis, na praia, ouvindo gemer o vento e soluçar
as ondas. Os olhos, engolfados na imensidade do horizonte, buscavam, mas
embalde, discenir do azul diáfano a alvura de uma vela perdida nos mares.

À
distância curta da cabana, se elevava à borda do oceano um alto morro de areia;
pela semelhança com a cabeça do crocodilo o chamavam os pescadores Jacarecanga. Do seio das brancas areias escaldadas
pelo ardente sol, manava uma água fresca e pura; assim destila a dor lágrimas
doces de alívio e consolo.

A
esse monte subia o cristão; e lá ficava cismando em seu destino. Às vezes lhe
vem à mente a idéia de tornar à sua terra e aos seus; mas ele sabe que Iracema
o acompanhará; e essa lembrança lhe remorde o coração. Cada passo mais que
afaste dos campos nativos a filha dos tabajaras, agora que não tem o ninho de
seu coração para abrigar-se, é uma porção da vida que lhe rouba.

Poti
conhece que Martim deseja estar só, e afasta-se discreto. O guerreiro sabe o
que aflige a alma do seu irmão; e tudo espera do tempo, porque só o tempo
endurece o coração do guerreiro, como o cerne do jacarandá.

Iracema
também foge dos olhos do esposo, porque já percebeu que esses olhos tão amados
se turbam com a vista dela, e em vez de se encherem de sua beleza como outrora,
a despedem de si. Mas os olhos dela não se cansam de acompanhar à parte e de
longe o guerreiro senhor, que os fez cativos.

Ai
dela!… Sentiu já o golpe no coração e como a copaíba ferida no âmago, destila
lágrimas em fio.






XXVIII –




Uma
vez o cristão ouviu dentro em sua alma o soluço de Iracema: seus olhos buscaram
em torno e não a viram.

A
filha de Araquém estava além, entre as verdes moitas de ubaia, sentada na
relva. O pranto desfiava de seu belo semblante; e as gotas que rolavam a uma e
uma caíam sobre o regaço, onde já palpitava e crescia o filho do amor. Assim
caem as folhas da árvore viçosa antes que amadureça o fruto.

-O
que espreme as lágrimas do coração de Iracema?

-Chora
o cajueiro quando fica tronco seco e triste. Iracema perdeu sua felicidade,
depois que te separaste dela.

-Não
estou eu junto a ti?

-Teu
corpo está aqui; mas tua alma voa à terra de teus pais, e busca a virgem
branca, que te espera.

Martim
doeu-se. Os grandes olhos negros que a indiana pousara nele o tinham ferido no
âmago.

-O
guerreiro branco é teu esposo: ele te pertence.

A
formosa tabajara sorriu em sua tristeza:

-Quanto
tempo há que retiraste de Iracema teu espírito? Antes teu passo te guiava para
as frescas serras e os alegres tabuleiros; teu pé gostava de pisar a terra da
felicidade e seguir o rastro da esposa. Agora só buscas as praias ardentes,
porque o mar que lá murmura vem dos campos em que nasceste; e o morro das
areias, porque do alto se avista a igara que passa.


a ânsia de combater o tupinambá que volve o passo do guerreiro para as bordas
do mar, respondeu o cristão.

Iracema
continuou:

-Teu
lábio secou para a esposa, como a cana quando ardem os grandes sóis; perde o
grato mel e as folhas murchas não podem mais brincar quando passa a brisa.
Agora só falas ao vento da praia para que ele leve tua voz à cabana de teus
pais.

-A
voz do guerreiro branco chama seus irmãos para defender a cabana de Iracema e a
terra de seu filho, quando o inimigo vier.

A
esposa meneou a cabeça:

-Quando
tu passas no tabuleiro, teus olhos fogem do fruto do jenipapo e buscam a flor
do espinheiro; a fruta é saborosa, mas tem a cor dos tabajaras; a flor tem a
alvura das faces da virgem branca. Se cantam as aves, teu ouvido não gosta já
de escutar o canto mavioso da graúna; mas tua alma se abre para o grito do
japim, porque ele tem as penas
douradas como os cabelos daquela que tu amas!

-A
tristeza escurece a vista de Iracema e amarga seu lábio. Mas a alegria há de
voltar à alma da esposa, como volta à árvore a verde rama.

-Quando
teu filho deixar o seio de Iracema, ela morrerá, como o abati depois que deu
seu fruto. Então o guerreiro branco não terá mais quem o prenda na terra
estrangeira.

-Tua
voz queima, filha de Araquém, como o sopro que vem dos sertões do Icó, no tempo
dos grandes calores. Queres tu abandonar teu esposo?

-Vêem
teus olhos lá o formoso jacarandá, que vai subindo às nuvens; a seus pés ainda
está a seca raiz da murta frondosa, que todos os invernos se cobria de rama e
bagos vermelhos, para abraçar o tronco irmão. Se ela não morresse, o jacarandá
não teria sol para crescer àquela altura. Iracema é a folha escura que faz sombra em tua alma; deve
cair, para que a alegria alumie teu seio.

O
cristão cingiu o talhe da formosa indiana e a estreitou ao peito. Seu lábio
levou ao lábio da esposa um beijo, mas áspero e amargo.






XIX –




Poti
voltou do banho.

Segue
na areia o rastro de Coatiabo, e sobe ao alto da Jacarecanga. Aí encontra o
guerreiro em pé no cabeço do monte, com os olhos alongados e os braços
estendidos para os largos mares.

Volve
o pitiguara as vistas e descobre uma grande igara, que vem sulcando os verdes
mares, impelida pelo vento:


a grande igara dos irmãos de meu irmão que vem buscá-lo!

O
cristão suspirou:

-São
os guerreiros brancos inimigos de minha raça, que buscam as praias da valente
nação pitiguara, para a guerra da vingança: eles foram derrotados com os
tabajaras nas margens do Camucim; agora vêm com seus amigos os tupinambás pelo caminho do mar.

-Meu
irmão é um grande chefe. Que pensa ele que deve fazer seu irmão Poti?

-Chama
os caçadores de Soipé e os pescadores do Trairi. Nós iremos ao seu encontro.

Poti
acordou a voz da inúbia; e os dois guerreiros partiram ambos para o Mocoribe.
Pouco além viram os guerreiros de Jaguaraçu e Camoropim que corriam ao grito de
guerra. O irmão de Jacaúna os avisou da vinda do inimigo.

O
grande maracatim corre nas ondas, ao longo da terra que se dilata até às
margens do Parnaíba. A lua começava a crescer quando ele deixou as águas do
Mearim; ventos contrários o tinham arrastado para os altos-mares, muito além de
seu destino.

Os
guerreiros pitiguaras, para não espantar o inimigo, se ocultam entre os
cajueiros; e vão seguindo pela praia a grande igara: durante o dia avultam as
brancas velas; de noite os fogos atravessam a negrura do mar, como vaga-lumes
perdidos na mata.

Muitos
sóis caminharam assim. Passam além do Camucim, e afinal pisam as lindas
ribeiras da enseada dos papagaios.

Poti
manda um guerreiro ao grande Jacaúna e se prepara para o combate. Martim, que
subiu ao morro de areia, conhece que o maracatim vem recolher no seio da terra; e
avisa seu irmão.

O
Sol já nasceu; os guerreiros guaraciabas e os tupinambás, seus amigos, correm
sobre as ondas nas ligeiras pirogas e pojam na praia. Formam o grande arco, e
avançam como o cardume do peixe quando corta a correnteza do rio.

No
centro estão os guerreiros do fogo, que trazem o raio; nas assas os guerreiros
do Mearim, que brandem o tacape.

Mas
nação alguma jamais vibrou o arco certeiro como a grande nação pitiguara; e
Poti é o maior chefe, de quantos chefes empunharam a inúbia guerreira. Ao seu
lado caminha o irmão, tão grande chefe como ele, e sabedor das manhas da raça
branca dos cabelos do sol.

Durante
a noite os pitiguaras fincam na praia a forte caiçara de espinho, e levantam contra ela
um muro de areia, onde o raio esfria e se apaga. Aí esperam o inimigo. Martim
manda que outros guerreiros subam à copa dos mais altos coqueiros; ali
defendidos pelas largas palmas, esperam o momento do combate.

A
seta de Poti foi a primeira que partiu, e o chefe dos guaraciabas o primeiro
herói que mordeu o pó da terra estrangeira. Rugem os trovões na destra dos
guerreiros brancos; mas os raios que desferem mergulham-se na areia, ou se
perdem nos ares.

As
setas dos pitiguaras já caem do céu, já voam da terra, e se embebem todas no
seio do inimigo. Cada guerreiro tomba crivado de muitas flechas, como a presa
que as piranhas disputam nas águas do lago.

Os
inimigos embarcam outra vez nas pirogas, e voltam ao maracatim em busca dos
grandes e pesados trovões, que um homem só nem dois podem manejar.

Quando
voltam, o chefe dos pescadores, que corre nas águas do mar como o veloz
camoropim, de que tomou o nome, se arroja nas ondas, e mergulha. Ainda a espuma
não se apagara, e já a piroga inimiga se afundou, parecendo que a tragara uma
baleia.

Veio
a noite, que trouxe o repouso.

Ao
romper d’alva, o maracatim fugia no horizonte para as margens do Mearim.
Jacaúna chegou, não mais para o combate e sim para o festim da vitória.

Nessa
hora em que o canto guerreiro dos pitiguaras celebrava a derrota dos
guaraciabas, o primeiro filho que o sangue da raça branca gerara nessa terra da
liberdade via a luz nos campos da Porangaba.






XXX –




Iracema
cuidou que o seio rompia-se; e buscou a margem do rio, onde crescia o coqueiro.

Estreitou-se
com a haste da palmeira. A dor lacerou suas entranhas; porém logo o choro infantil
inundou todo o seu ser de júbilo.

A
jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o tenro filho nos braços e com ele
arrojou-se às águas límpidas do rio. Depois suspendeu-o à teta mimosa; seus
olhos então o envolviam de tristeza e amor.

-Tu
és Moacir, o nascido de meu
sofrimento.

A
ará, pousada no olho do coqueiro, repetiu Moacir; e desde então a ave amiga em
seu canto unia ao nome da mãe, o nome do filho.

O
inocente dormia; Iracema suspirava:

-A
jati fabrica o mel no tronco cheiroso do sassafrás; toda a lua das flores voa
de ramo em ramo, colhendo o suco para encher os favos; mas ela não prova sua
doçura, porque a irara devora em uma noite toda a colmeia. Tua mãe também,
filho de minha angústia, não beberá em teus lábios o mel do sorriso.

A
jovem mãe passou aos ombros a larga faixa de
macio algodão, que fabricara para trazer o filho sempre unido ao flanco; e
seguiu pela areia o rastro do esposo, que há três sóis partira. Ela caminhava
docemente para não despertar a criancinha, adormecida como o passarinho sob a
asa materna.

Quando
chegou junto ao grande morro das areias, viu que o rastro de Martim e Poti
seguia ao longo da praia; e adivinhou que eles eram partidos para a guerra. Seu
coração suspirou; mas seus olhos secos buscaram o semblante do filho.

Volve
o rosto para o Mocoribe:

-Tu
és o morro da alegria; mas para Iracema tu não tens senão tristeza.

Tornando,
a recente mãe pousou a criança sempre dormida na rede de seu pai, viúva e
solitária em meio da cabana; ela deitou-se ao chão, na esteira onde repousava,
desde que os braços do esposo se não tinham mais aberto para recebê-la.

A
luz da manhã estrava pela cabana, e Iracema viu entrar com ela a sombra de um
guerreiro.

Caubi
estava em pé na porta.

A
esposa de Martim ergueu-se de um ímpeto e saltou avante para proteger o filho.
Seu irmão levantou da rede a ela uns olhos tristes, e falou com a voz ainda
mais triste:

-Não
foi a vingança que arrancou o guerreiro Caubi aos campos dos tabajaras; ele já
perdoou. Foi a vontade de ver Iracema, que trouxe consigo toda sua alegria.

-Então
bem-vindo seja o guerreiro Caubi na cabana de seu irmão, respondeu a esposa
abraçando-o.

-O
nascido de teu seio dorme nesta rede; os olhos de Caubi gostariam de vê-lo.

Iracema
abriu a franja de penas; e mostrou o lindo semblante da criança. Caubi depois
que o contemplou por muito tempo, entre risos, disse:

-Ele
chupou tua alma.

E
beijou nos olhos da jovem mãe, a imagem da criança, que não se animava tocar
com receio de ofender:

A
voz trêmula da filha ressoou:

-Ainda
vive Araquém sobre a terra?

-Pena
ainda; depois que tu o deixaste sua cabeça vergou para o peito e não se ergueu
mais.

-Dize-lhe
que Iracema é morta já, para que ele se console.

A
irmã de Caubi preparou a refeição para o guerreiro, e armou no copiar a rede da
hospitalidade para que ele repousasse das fadigas da jornada. Quando o viajante
satisfez o apetite, ergueu-se com estas palavras:

-Diz
onde está teu esposo e meu irmão, para que o guerreiro Caubi lhe dê o abraço da
amizade.

Os
lábios suspirosos da mísera esposa se moveram como as pétalas do cacto que um
sopro amarrota, e ficaram mudos. Mas as lágrimas debulharam dos olhos, e caíram
em bagas.

O
rosto de Caubi anuviou-se:

-Teu
irmão pensava que a tristeza ficara nos campos que abandonaste: porque contigo
trouxeste todo o riso dos que te amavam!

Iracema
secou os olhos:

-O
esposo de Iracema partiu com o guerreiro Poti para as praias do Acaraú. Antes
que três sóis tenham alumiado a terra ele voltará, e com ele a alegria à alma
da esposa.

-O
guerreiro Caubi o espera para saber o que ele fez do sorriso que morava em teus
lábios.

A
voz do tabajara enrouquecera; seu passo inquieto volveu a esmo pela cabana.






XXXI –




Iracema
cantava docemente, embalando a rede para acalentar o filho.

A
areia da praia crepitou sob o pé forte e rijo do guerreiro tabajara, que vinha
das bordas do mar depois da abundante pesca.

A
jovem mãe cruzou as franjas da rede, para que as moscas não inquietassem o
filho acalentado, e foi ao encontro do irmão:

-Caubi
vai tornar às montanhas dos tabajaras! disse ela com brandura.

O
guerreiro anuviou-se:

-Tu
despedes teu irmão da cabana para que ele não veja a tristeza que a enche.

-Araquém
teve muitos filhos em sua mocidade; uns a guerra levou e morreram como
valentes; outros escolheram uma esposa, e geraram por sua vez numerosa prole:
filhos de sua velhice, Araquém só teve dois. Iracema é para ele como a rola que
o caçador tirou do ninho. Só resta o guerreiro Caubi ao velho pajé, para suster
seu corpo vergado, e guiar seu passo trêmulo.

-Caubi
partirá quando a sombra deixar o rosto de Iracema.

-Como
vive estrela da noite, vive Iracema em sua tristeza. Só os olhos do esposo
podem apagar a sombra em seu rosto. Parte, para que eles não se turvem com tua
vista.

-Teu
irmão parte para agradar tua vontade; mas ele voltará todas as vezes que o
cajueiro florescer para sentir em seu coração o filho de teu ventre.

Entrou
na cabana. Iracema tirou da rede a criança; e ambos, mãe e filho, palpitaram
sobre o peito do guerreiro tabajara. Depois, Caubi passou a porta, e sumiu-se
entre as árvores.

Iracema,
arrastando o passo trêmulo, o acompanhou de longe até que o perdeu de vista na
orla da mata. Aí parou: quando o grito da jandaia de envolta com o choro
infantil a chamou à cabana, a areia fria onde esteve sentada guardou o segredo
do pranto que embebera.

A
jovem mãe suspendeu o filho à teta; mas a boca infantil não emudeceu. O leite
escasso não apojava o peito.

O
sangue da infeliz diluía-se todo nas lágrimas incessantes que não estancavam
dos olhos; nenhum chegava aos seios, onde se forma o primeiro licor da vida.

Ela
dissolveu a alva carimã e
preparou ao fogo o mingau para nutrir o filho. Quando o sol dourou a crista dos
montes, partiu pa-ra a mata, levando ao colo a criança adormecida.

Na
espessura do bosque está o leito da irara ausente; os tenros cachorrinhos
grunhem enrolando-se uns sobre os outros. A formosa tabajara aproxima-se de
manso. Prepara para o filho um berço da macia rama do maracujá; e senta-se
perto.

Põe
no regaço um por um os filhos da irara; e lhes abandona os seios mimosos, cuja
teta rubra como a pitanga ungiu do mel da abelha. Os cachorrinhos famintos
precipitam gulosos e sugam os peitos avaros de leite.

Iracema
curte dor, como nunca sentiu; parece que lhe exaurem a vida, mas os seios
vão-se intumescendo; apojaram afinal, e o leite, ainda rubro do sangue, de que
se formou, esguicha.

A
feliz mãe arroja de si os cachorrinhos, e cheia de júbilo mata a fome ao filho.
Ele é agora duas vezes filho de sua dor, nascido dela e também nutrido.

A
filha de Araquém sentiu afinal que suas veias se estancavam; e contudo o lábio
amargo de tristeza recusava o alimento que devia restaurar-lhe as forças. O
gemido e o suspiro tinham crestado com o sorriso o sabor em sua boca formosa.






XXXII –




Descamba
o Sol.

Japi
sai do mato e corre para a porta da cabana.

Iracema,
sentada com o filho no colo, banha-se nos raios do Sol e sente o frio
arrepiar-lhe o corpo. Vendo o animal, fiel mensageiro do esposo, a esperança
reanimou seu coração; quis erguer-se para ir ao encontro de seu guerreiro
senhor, mas os membros débeis se recusaram à sua vontade.

Caiu
desfalecida contra o esteio. Japi lambia-lhe a mão desfalecida e pulava
travesso para fazer sorrir a criança, soltando uns doces latidos de prazer. Por
vezes, afastava-se para correr até a orla da mata, e latir chamando o senhor;
logo, tornava à cabana para festejar a mãe e o filho.

Por
esse tempo pisava Martim os campos amarelos do Tauape; seu irmão Poti, o inseparável,
caminhava a seu lado.

Oito
luas havia que ele deixara as praias da Jacarecanga. Depois de vencidos os
guaraciabas na baía dos papagaios, o guerreiro cristão quis partir para as
margens do Mearim, onde habitava o bárbaro aliado dos tupinambás.

Poti
e seus guerreiros o acompanharam. Depois que transpuseram o braço corrente do
mar que vem da serra de Tanatinga e banha as várzeas onde se pesca o piau, viram enfim as praias do Mearim, e a
velha taba do bárbaro
tapuia.

A
raça dos cabelos do sol cada vez ganhava mais a amizade dos tupinambás: crescia
o número dos guerreiros brancos, que já tinham levantado na ilha a grande
itaoca, para despedir o raio.

Quando
Martim viu o que desejava, tornou aos campos da Porangaba, que ele agora
trilha. Já ouve o ronco do mar nas praias do Mocoribe; já lhe bafeja o rosto o
sopro vivo das vagas do oceano.

Quanto
mais seu passo o aproxima da cabana, mais lento se torna e pesado. Tem medo de
chegar; e sente que sua alma vai sofrer, quando os olhos tristes e magoados da
esposa entrarem nela.


muito que a palavra desertou seu lábio seco; o amigo respeita este silêncio,
que ele bem entende. É o silêncio do rio quando passa nos lugares profundos e
sombrios.

Tanto
que os dois guerreiros tocaram as margens do rio, ouviram o latir do cão, que
os chamava, e o grito da ará, que se lamentava. Estavam mui próximos à cabana,
apenas oculta por uma língua de mato. O cristão parou calcando a mão no peito
para sofrear o coração, que saltava como o poraquê.

-O
latido de Japi é de alegria, disse o chefe.

-Porque
chegou; mas a voz da jandaia é de tristeza. Achará o guerreiro ausente a paz no
seio da esposa solitária, ou terá a saudade matado em suas entranhas o fruto do
amor?

O
cristão moveu o passo vacilante. De repente, entre os ramos das árvores, seus
olhos viram, sentada à porta da cabana, Iracema com o filho no regaço e o cão a
brincar. Seu coração o arrastou de um ímpeto, e toda a alma lhe estalou nos
lábios:

-Iracema!…

A
triste esposa e mãe soabriu os olhos, ouvindo a voz amada. Com esforço grande,
pôde erguer o filho nos braços e apresentá-lo ao pai, que o olhava extático em
seu amor.

-Recebe
o filho de teu sangue. Chegastes a tempo; meus seios ingratos já não tinham
alimento para dar-lhe!

Pousando
a criança nos braços paternos, a desventurada mãe desfaleceu como a jetica se
lhe arrancam o bulbo. O esposo viu então como a dor tinha murchado seu belo
corpo; mas a formosura ainda morava nela, como o perfume na flor caída do
manacá.

Iracema
não se ergueu mais da rede onde a pousaram os aflitos braços de Martim. O terno
esposo, em que o amor renascera com o júbilo paterno, a cercou de carícias que
encheram sua alma de alegria, mas não a puderam tornar à vida: o estame de sua
flor se rompera.

-Enterra
o corpo de tua esposa ao pé do coqueiro que tu amaste. Quando o vento do mar
soprar nas folhas, Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos.

O
lábio emudeceu para sempre; o último lampejo despediu-se dos olhos baços.

Poti
amparou o irmão em sua grande dor. Martim sentiu quanto um amigo verdadeiro é
precioso na desventura: é como o outeiro que abriga do vendaval o tronco forte
e robusto do ubiratã, quando o broca o cupim.

O
camucim recebeu o corpo de Iracema, embebido de resinas odoríferas; e foi
enterrado ao pé do coqueiro, à borda do rio. Martim quebrou um ramo de murta, a
folha da tristeza, e deitou-o no jazigo de sua esposa.

A
jandaia pousada no olho da palmeira repetia tristemente:

-Iracema!

Desde
então os guerreiros pitiguaras, que passavam perto da cabana abandonada e
ouviam ressoar a voz plangente da ave amiga, se afastavam, com a alma cheia de
tristeza, do coqueiro onde cantava a jandaia.

E
foi assim que um dia veio a chamar-se Ceará o rio onde crescia o coqueiro, e os
campos onde serpeja o rio.






XXXIII –




O
cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará,
levando no frágil barco o filho e o cão fiel. A jandaia não quis deixar a terra
onde repousava sua amiga e senhora.

O
primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a
predestinação de uma raça?

Poti
com seus guerreiros esperava na margem do rio. O cristão lhe prometera voltar.
Todas as manhãs subia ao morro das areias e volvia os olhos ao mar a ver se
branqueava ao longe a vela amiga.

Afinal
volta Martim de novo às terras, que foram de sua felicidade, e são agora de
amarga saudade. Quando seu pé sentiu o calor das brancas areias, derramou-se
por todo seu ser um fogo ardente, que lhe requeimou o coração: era o fogo das
recordações acesas.

A
chama só aplacou quando ele tocou a terra onde dormia sua esposa; porque nesse
instante seu coração transudou, como o tronco do jataí nos ardentes calores, e
refrescou sua pena de lágrimas abundantes.

Muitos
guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar com ele a mairi
dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua religião, de negras vestes, para
plantar a cruz na terra selvagem.

Poti
foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; não sofria ele que nada
mais o separasse de seu irmão branco; por isso quis tivessem ambos um só deus,
como tinham um só coração.

Ele
recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a quem ia
servir, e sobre os dois o seu, na língua dos novos irmãos. Sua fama cresceu, e
ainda hoje é o orgulho da terra, onde ele viu a luz primeiro.

A
mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. A
palavra do Deus verdadeiro germinou na terra selvagem; e o bronze sagrado
ressoou nos vales onde rugia o maracá.

Jacaúna
veio habitar nos campos da Porangaba para estar perto de seu amigo branco;
Camarão assentou a taba de seus guerreiros nas margens da Mocejana.

Tempo
depois, quando veio Albuquerque,
o grande chefe dos guerreiros brancos, Martim e Camarão partiram para as
margens do Mearim a castigar o feroz tupinambá e expulsar o branco tapuia.

Era
sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde fora tão feliz,
e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara.

Muitas
vezes ia sentar-se naquelas doces areias, para cismar e acalentar no peito a
agra saudade.

As
jandaias cantavam ainda no olho do coqueiro; mas não repetiam já o mavioso nome
de Iracema.

Tudo
passa sobre a terra.





Descrição: ArribaDescrição: Abajo

Carta a o Dr. Jaguaribe

Eis-me
de novo, conforme o prometido.


leu o livro e as notas que o acompanham; conversemos pois.

Conversemos
sem cerimônia, em toda familiaridade, como se cada um estivesse recostado em
sua rede, ao vaivém do lânguido balanço, que convida à doce prática.

Se
algum leitor curioso se puser à escuta, deixá-lo. Não havemos por isso de mudar
o tom rasteiro da intimidade pela frase garrida das salas.

Sem
mais.


de recordar-se você de uma noite que entrando em minha casa, quatro anos a esta
parte, achou-me rabiscando um livro. Era isso em uma quadra importante, pois
que uma nova legislatura, filha de nova lei, fazia sua primeira sessão; e o
país tinha os olhos nela, de quem esperava iniciativa generosa para melhor
situação.


estava eu meio descrido das cousas, e mais dos homens; e por isso buscava na
literatura diversão à tristeza que me infundia o estado da pátria entorpecida
pela indiferença. Cuidava eu porém que você, político de antiga e melhor
têmpera, pouco se preocupava com as cousas literárias, não por menos preço, sim
por vocação.

A
conversa que tivemos então revelou meu engano; achei um cultor e amigo da
literatura amena; e juntos lemos alguns trechos da obra, que tinha, e ainda não
as perdeu, pretensões a um poema.

É,
como viu e como então lhe esbocei a largos traços, uma heróide que tem por
assunto as tradições dos indígenas brasileiros e seus costumes. Nunca me
lembrara eu de dedicar-me a esse gênero de literatura, de que me abstive
sempre, passados que foram os primeiros e fugaces arroubos da juventude.
Suporta-se uma prosa medíocre, e estima-se pelo quilate da idéia; mas o verso
medíocre é a pior triaga que se possa impingir ao pio leitor.

Cometi
a imprudência quando escrevia algumas cartas sobre a Confederação dos tamoios
dizer: «As tradições dos indígenas dão matéria para um grande poema que talvez
um dia alguém apresente sem ruído nem aparato, como modesto fruto de suas
vigílias.»

Tanto
bastou para que supusessem que o escritor se referia a si, e tinha já o poema
em mão; várias pessoas perguntaram-me por ele. Meteu-me isto em brios
literários; sem calcular das forças mínimas para empresa tão grande, que
assoberbou dois ilustres poetas, tracei o plano da obra, e a comecei com tal
vigor que levei quase de um fôlego ao quarto canto.

Esse
fôlego susteve-se cerca de cinco meses, mas amorteceu; e vou lhe confessar o
motivo.

Desde
cedo, quando começaram os primeiros pruridos literários, uma espécie de
instinto me impelia a imaginação para a raça selvagem e indígena. Digo
instinto, porque não tinha eu então estudos bastantes para apreciar devidamente
a nacionalidade de uma literatura; era simples prazer que me deleitava na
leitura das crônicas e memórias antigas.

Mais
tarde, discernindo melhor as cousas, lia as produções que se publicavam sobre o
tema indígena; não realizavam elas a poesia nacional, tal como me aparecia no
estudo da vida selvagem dos autóctones brasileiros. Muitas pecavam pelo abuso
dos termos indígenas acumulados uns sobre outros, o que não só quebrava a
harmonia da língua portuguesa, como perturbava a inteligência do texto. Outras
eram primorosas no estilo e ricas de belas imagens; porém certa rudez ingênua
de pensamento e expressão, que devia ser a linguagem dos indígenas, não se
encontrava ali.

Gonçalves
Dias é o poeta nacional por excelência; ninguém lhe disputa na opulência da
imaginação, no fino lavor do verso, no conhecimento da natureza brasileira e
dos costumes selvagens. Em suas poesias americanas aproveitou muitas das mais
lindas tradições dos indígenas; e em seu poema não concluído dos Timbiras,
propôs-se a descrever a epopéia brasileira.

Entretanto,
os selvagens de seu poema falam uma linguagem clássica, o que lhe foi censurado
por outro poeta de grande estro, o Dr. Bernardo Guimarães; eles exprimem idéias
próprias do homem civilizado, e que não é verossímil tivessem no estado da
natureza.

Sem
dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as idéias, embora
rudes e grosseiras, dos índios; mas nessa tradução está a grande dificuldade; é
preciso que a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da
língua bárbara; e não represente as imagens e pensamentos indígenas senão por
termos e frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem.

O
conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da
literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas do
selvagem, os modos de seu pensamento, as tendências de seu espírito, e até as
menores particularidades de sua vida.

É
nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro; é dela que há de sair o
verdadeiro poema nacional, tal como eu o imagino.

Cometendo
portanto o grande arrojo, aproveitei o ensejo de realizar as idéias que me
vagueavam no espírito, e não eram ainda plano fixo; a reflexão consolidou-as e
robusteceu.

Na
parte escrita da obra foram elas vazadas em grande cópia. Se a investigação
laboriosa das belezas nativas feita sobre imperfeitos e espúrios dicionários
exauria o espírito; a satisfação de cultivar essas flores agrestes da poesia
brasileira, deleitava. Um dia porém fatigado da constante e aturada meditação
ou análise para descobrir a etimologia de algum vocábulo, assaltou-me um
receio.

Todo
este ímprobo trabalho que às vezes custava uma só palavra, me seria levado à
conta? Saberiam que esse escrópulo d’ouro fino tinha sido desentranhado da
profunda camada, onde dorme uma raça extinta? Ou pensariam que fora achado na
superfície e trazido ao vento da fácil inspiração?

E
sobre esse, logo outro receio.

A
imagem ou pensamento com tanta fadiga esmerilhados seriam apreciados em seu
justo valor pela maioria dos leitores? Não os julgariam inferiores a qualquer
das imagens em voga, usadas na literatura moderna?

Ocorre-me
um exemplo tirado deste livro. Guia, chamavam os indígenas, senhor do caminho,
piguara. A beleza da expressão selvagem em sua tradução literal e etimológica
me parece bem saliente. Não diziam sabedor do caminho, embora tivessem termo
próprio, coaub, porque essa frase não exprimia a energia de seu pensamento. O
caminho no estado selvagem não existe; não é cousa de saber. O caminho faz-se
na ocasião da marcha através da floresta ou do campo, e em certa direção;
aquele que o tem e o dá, é realmente senhor do caminho.

Não
é bonito? Não está aí uma jóia da poesia nacional?

Pois
talvez haja quem prefira a expressão rei do caminho, embora os brasis não
tivessem rei, nem idéia de tal instituição. Outros se inclinaram à palavra
guia, como mais simples e natural em português, embora não corresponda ao
pensamento do selvagem.

Ora,
escrever um poema que devia alongar-se para correr o risco de não ser
entendido, e quando entendido não apreciado, era para desanimar o mais robusto
talento, quanto mais a minha mediocridade. Que fazer? Encher o livro de grifos
que o tornariam mais confuso e de notas que ninguém lê? Publicar a obra
parcialmente para que os entendidos proferissem o veredicto literário? Dar
leitura dela a um círculo escolhido, que emitisse juízo ilustrado?

Todos
estes meios tinham seu inconveniente, e todos foram repelidos: o primeiro
afeava o livro; o segundo o truncava em pedaços; o terceiro não lhe
aproveitaria pela cerimoniosa benevolência dos censores. O que pareceu melhor e
mais acertado foi desviar o espírito dessa obra e dar-lhe novos rumos.

Mas
não se abandona assim um livro começado, por pior que ele seja; aí nessas
páginas cheias de rasuras e borrões dorme a larva do pensamento, que pode ser
ninfa de asas douradas, se a inspiração fecundar o grosseiro casulo. Nas
diversas pausas de suas preocupações o espírito volvia pois ao álbum, onde
estão ainda incubados e estarão cerca de dois mil versos heróicos.

Conforme
a benevolência ou severidade de minha consciência, às vezes os acho bonitos e
dignos de verem a luz; outras me parecem vulgares, monótonos, e somenos a
quanta prosa charra tenho eu estendido sobre o papel. Se o amor de pai abranda
afinal esse rigor, não desvanece porém nunca o receio de «perder inutilmente
meu tempo a fazer versos para caboclos».

Em
um desses volveres do espírito à obra começada, lembrou-me da experiência in
anima prosaica. O verso pela sua dignidade e nobreza não comporta certa
flexibilidade de expressão que, entretanto, não vai mal à prosa a mais elevada.
A elasticidade da frase permitiria então que se empregassem com mais clareza as
imagens indígenas, de modo a não passarem desapercebidas. Por outro lado
conhecer-se-ia o efeito que havia de ter o verso pelo efeito que tivesse a
prosa.

O
assunto para a experiência, de antemão estava achado. Quando em 1848 revi nossa
terra natal, tive a idéia de aproveitar suas lendas e tradições em alguma obra
literária. Já em S. Paulo tinha começado uma biografia do Camarão. A mocidade
dele, a amizade heróica que o ligava a Soares Moreno, a bravura e lealdade de
Jacaúna, aliado dos portugueses, e suas guerras contra o célebre Mel Redondo;
aí estava o tema. Faltava-lhe o perfume que derrama sobre as paixões do homem a
beleza da mulher.

Sabe
você agora o outro motivo que eu tinha de lhe endereçar o livro; precisava
dizer todas estas cousas, contar o como e por que escrevi Iracema. E com quem
melhor conversaria sobre isso do que com uma testemunha de meu trabalho, a
única, das poucas, que respira agora as auras cearenses?

Este
livro é pois um ensaio ou antes amostra. Verá realizadas nele minhas idéias a
respeito da literatura nacional; e achará aí poesia inteiramente brasileira,
haurida na língua dos selvagens. A etimologia dos nomes das diversas
localidades e certos modos de dizer tirados da composição das palavras são de
cunho original.

Compreende
você que não podia eu derramar em abundância essa riqueza no livrinho agora
publicado, porque elas ficariam desfloradas na obra de maior vulto, a qual só
teria a novidade da fábula. Entretanto há aí de sobra para dar matéria à
crítica, e servir de base ao juízo dos entendidos.

Se
o público ledor gostar dessa forma literária, que me parece ter algum atrativo
e novidade, então se fará um esforço para levar ao cabo o começado poema,
embora o verso pareça na época atual ter perdido sua influência e prestígio. Se
porém o livro for acoimado de cediço e tedioso, ou se Iracema encontrar a usual
indiferença, que vai acolhendo o bom e o mau com a mesma complacência, quando
não é o silêncio desdenhoso e ingrato; então o autor se desenganará de mais
esse gênero de literatura, como já se desenganou do teatro; e os versos como as
comédias passarão para a gaveta dos papéis velhos, relíquias autobiográficas.

Depois
de concluído o livro e quando o reli já apurado na estampa, conheci que me
tinham escapado senões que poderia corrigir se não fosse a pressa com que o fiz
editar: noto algum excesso de comparações, certa semelhança entre algumas
imagens, e talvez desalinho no estilo dos últimos capítulos que desmerecem dos
primeiros. Também me parece devia conservar aos nomes das localidades sua atual
versão, embora corrompida.

Se
a obra tiver segunda edição será escoimada destes e de outros defeitos que lhe
descubram os entendidos.

Agosto
1865.

J. DE ALENCAR

 

_____________________________



GLOSSÁRIO

 

Argumento
Histórico – Em 160, Pero Coelho, homem nobre da Paraíba, partiu como
capitão-mor de descoberta, levando uma força de 80 colonos e 800 índios. Chegou
à foz do Jaguaribe e aí fundou o povoado que teve o nome de Nova Lisboa.

Foi
esse o primeiro estabelecimento colonial do Ceará.

Como
Pero Coelho se visse abandonado dos sócios, mandaram-lhe João Soromenho com
socorros. Esse oficial, autorizado a fazer cativos para indenização das
despesas, não respeitou os próprios índios do Jaguaribe, amigos dos
portugueses.

Tal
foi a causa da ruína do nascente povoado. Retiraram-se os colonos, pelas
hostilidades dos indígenas; e Pero Coelho ficou ao desamparo, obrigado a voltar
à Paraíba por terra, com sua mulher e filhos pequenos.

Na
primeira expedição foi do Rio Grande do Norte um moço de nome Martim Soares
Moreno, que se ligou de amizade com Jacaúna, chefe dos índios do litoral, e seu
irmão Poti. Em 1608 por ordem de D. Diogo Meneses voltou a dar princípio à
regular colonização daquela capitania: o que levou a efeito fundando o presídio
de Nossa Senhora do Amparo em 1611.

Jacaúna,
que habitava as margens do Acaracu, veio estabelecer-se com sua tribo nas
proximidades do recente povoado, para o proteger contra os índios do interior e
os franceses que infestavam a costa.

Poti
recebeu no batismo o nome de Antônio Felipe Camarão, que ilustrou na guerra
holandesa. Seus serviços foram remunerados com o foro de fidalgo, a comenda de
Cristo e o cargo de capitão-mor dos índios.

Martim
Soares Moreno chegou a mestre-de-campo e foi um dos excelentes cabos
portugueses que libertaram o Brasil da invasão holandesa. O Ceará deve honrar
sua memória como a de um varão prestante e seu verdadeiro fundador, pois que o
primeiro povoado à foz do rio Jaguaribe foi apenas uma tentativa frustrada.

Este
é o argumento histórico da lenda; em notas especiais se indicarão alguns outros
subsídios recebidos dos cronistas do tempo.


uma questão histórica relativa a este assunto; falo da pátria do Camarão, que
um escritor pernambucano quis pôr em dúvida, tirando a glória ao Ceará para a
dar à sua província.

Este
ponto, aliás somente contestado nos tempos modernos pelo Sr. comendador Melo em
suas Biografias, me parece suficientemente elucidado já, depois da erudita
carta do Sr. Basílio Quaresma Torreão, publicada no Mercantil nº 26 de 26 de
janeiro de 1860, 2ª página.

Entretanto
farei sempre uma observação.

Em
primeiro lugar, a tradição oral é uma fonte importante da História, e às vezes
a mais pura e verdadeira. Ora, na província de Ceará, em Sobral, não só
referiam-se entre gente do povo notícias do Camarão, como existia uma velha
mulher que se dizia dele sobrinha. Essa tradição foi colhida por diversos
escritores, entre eles o conspícuo autor da Corografia Brasílica.

O
autor do Valeroso Lucideno é dos antigos o único que positivamente afirma ser
Camarão filho de Pernambuco; mas além de encontrar essa asserção a versão de
outros escritores de nota, acresce que Berredo explica perfeitamente o dito
daquele escritor, quando fala da expedição de Pero Coelho de Souza a Jaguaribe,
sítio naquele tempo e também no de hoje da jurisdição de Pernambuco.

Outro
ponto é necessário esclarecer para que não me censurem de infiel à verdade
histórica. É a nação de Jacaúna e Camarão que alguns pretendem ter sido a
tabajara.


nisso manifesto engano.

Em
todas as crônicas se fala das tribos de Jacaúna e Camarão como habitantes do
litoral, e tanto que auxiliam a fundação do Ceará, como já haviam auxiliado a
da Nova Lisboa em Jaguaribe. Ora, a nação que habitava o litoral entre o
Parnaíba e o Jaguaribe ou Rio-Grande era a dos pitiguaras, como atesta Gabriel
Soares. Os tabajaras habitavam a serra de Ibiapaba, e portanto o interior.

Como
chefes dos tabajaras são mencionados Mel Redondo no Ceará e Grão Deabo em
Piauí. Esses chefes foram sempre inimigos irreconciliáveis e rancorosos dos
portugueses, e aliados dos franceses do Maranhão que penetraram até Ibiapaba.
Jacaúna e Camarão são conhecidos por sua aliança firme com os portugueses.

Mas
o que solve a questão é o seguinte texto. Lê-se nas Memórias diárias da guerra
brasílica do conde de Pernambuco: – 1634, janeiro, 18: «Pelo bom procedimento
com que havia servido A. F. Camarão o fez El-rei capitão-mor de todos os índios
não somente de sua nação, que era Pitiguar, nas das outras residentes em várias
aldeias. »

Esta
autoridade, além de contemporânea, testemunhal, não pode ser recusada,
especialmente quando se exprime tão positiva e intencionalmente a respeito do
ponto duvidoso.

Onde
canta a jandaia – Diz a tradição que Ceará significa na língua indígena – canto
de jandaia.

Aires
do Casal, Corografia Brasílica, refere essa tradição. O senador Pompeu em seu
excelente dicionário topográfico, menciona uma opinião, nova para mim, que
pretende vir Siará da palavra suia -caça, em virtude da abundância de caça que
se encontrava nas margens do rio. Essa etimologia é forçada. Para designar quantidade,
usava a língua tupi da desinência iba; a desinência ára junta aos verbos
designa o sujeito que exercita a ação atual; junta aos nomes o que tem
atualmente o objeto; ex.: Coatiara – o que pinta; Juçara – o que tem espinhos.

Ceará
é o nome composto de cemo – cantar forte, clamar, e ará – pequena arara ou
periquito. Essa é a etimologia verdadeira; não só conforme com tradição, mas
com as regras da língua.

 

Iracema – Em
guarani significa lábios de mel – de ira, mel e tembe -lábios. Tembe na
composição altera-se em ceme, como na palavra ceme-iba.

 

Jirau – Na
jangada é uma espécie de estrado onde acomodam os passageiros; e às vezes o
cobrem de palha. Em geral é qualquer estiva elevada do solo e suspensa em
forquilhas.

 

Rugitar – É um
verbo de minha composição para o qual peço vênia. Filinto Elísio criou ruidar
de ruído.

 

Graúna – É o
pássaro conhecido de cor negra luzidia. Seu nome vem por corrupção de guira –
pássaro, e una, abreviação de pixuna – preto.

 

Jati – Pequena
abelha que fabrica delicioso mel.

 

Ipu – Chamam
ainda hoje no Ceará certa qualidade de terra muito fértil, que forma grandes
coroas ou ilhas no meio dos tabuleiros e sertões, e é de preferência procurada
para a cultura. Daí se deriva o nome dessa comarca da província.

 

Tabajara –
Senhor das aldeias, de taba – aldeia, e jara – senhor. Essa nação dominava o
interior da província, especialmente a serra de Ibiapaba.

 

Oiticica –
Árvore frondosa, apreciada pela deliciosa frescura que derrama sua sombra.

 

Gará – Ave
paludal, muito conhecida pelo nome de guará. Penso eu que esse nome anda
corrompido de sua verdadeira origem, que é ig – água, e ará – arara: arara
d´água. Também assim chamada pela bela cor vermelha.

 

Ará –
Periquito. Os indígenas como aumentativo usavam repetir a última sílaba da
palavra e às vezes toda a palavra, como murémuré. Muré -frauta, muremuré –
grande frauta. Arárá vinha a ser, pois, o aumentativo de ará, e significaria a
espécie maior do gênero.  

 

Uru – Cestinho
que servia de cofre às selvagens para guardar seus objetos de mais preço e
estimação.

 

Crautá –
Bromélia vulgar, de que se tiram fibras tão ou mais finas que as do linho.

 

Juçara –
Palmeira de grandes espinhos, das quais servem-se ainda hoje para dividir os
fios de renda.

 

Uiraçaba –
Aljava, de uira – seta, e a desinência çaba – coisa própria.

 

Quebrar a
flecha – Era entre os indígenas a maneira simbólica de estabelecer a paz entre
as diversas tribos, ou mesmo entre dois guerreiros inimigos. Desde já
advertimos que não se estranhe a maneira por que o estrangeiro se exprime
falando com os selvagens; ao seu perfeito conhecimento dos usos e língua dos
indígenas, e sobretudo a ter-se conformado com eles ao ponto de deixar os
trajos europeus e pintar-se, deveu Martim Soares Moreno a influência que
adquiriu entre os índios do Ceará.

 

Ibiapaba –
Grande serra que se prolonga ao norte da província e a extrema com Piauí.
Significa terra aparada. O Dr. Martius em seu Glossário lhe atribui outra
etimologia. Iby – terra, e pabe – tudo. A primeira porém tem a autoridade de
Vieira.

 

Igaçaba – De ig
– água, e a desinência çaba – coisa própria. Vaso, pote.

 

Vieste – A
saudação usual da hospitalidade era esta: -Ere ioubê -tu vieste? – Pa-aiotu –
vim, sim. – Auge-be -bem dito. Veja-se Lery, pág. 286.

 

Jaguaribe – O
maior rio da província; tirou o nome da quantidade de onças que povoavam suas
margens. Jaguar – onça, iba – desinência para exprimir cópia, abundância.

 

Martim – Da
origem latina de seu nome, procedente de Marte, deduz o estrangeiro a
significação que lhe dá.

 

Pitiguaras –
Grande nação de índios que habitava o litoral da província e estendia-se desde
o Parnaíba até o Rio Grande do Norte. A ortografia do nome anda mui viciada nas
diferentes versões, pelo que se tornou difícil conhecer a etimologia. Iby
significava terra; iby-tira veio a significar serra, ou terra alta. Aos vales
chamavam os indígenas iby-tira-cua – cintura das montanhas. A desinência jara
-senhor, acrescentada, formou a palavra Ibiticuara, que por corrução deu
Pitiguara – senhores dos vales.

 

Mau espírito da
floresta – Os indígenas chamavam a esses espíritos caa-pora; habitantes da
mata, donde por corrupção veio a palavra caipora, introduzida na língua
portuguesa em sentido figurado.

 

As mais belas
mulheres – Este costume da hospitalidade americana é atestado pelos cronistas.
A ele se atribui o belo rasgo de virtude de Anchieta, que, para fortalecer a
sua castidade, compunha nas praias de Iperoig o poema da Virgindade de Maria,
cujos versos escrevia nas areias úmidas, para melhor os polir.

 

Jurema – Árvore
meã, de folhagem espessa; dá um fruto excessivamente amargo, de cheiro acre, do
qual juntamente com as folhas e outros ingredientes preparavam os selvagens uma
bebida, que tinha o efeito do haxixe, de produzir sonhos tão vivos e intensos,
que a pessoa fruía neles melhor do que na realidade. A fabricação desse licor
era um segredo, explorado pelos pajés, em proveito de sua influência. Jurema é
composto de ju – espinho, e rema – cheiro desagradável.

 

Irapuã – De ira
-mel, e apuam – redondo; é o nome dado a uma abelha virulenta e brava, por
causa da forma redonda de sua colmeia. Por corrupção reduziu-se esse nome
atualmente a arapuá. O guerreiro de que se trata aqui é o célebre Mel Redondo,
assim chamado pelos cronistas do tempo que traduziram seu nome ao pé da letra.
Mel Redondo, chefe dos tabajaras da serra de Ibiapaba, foi encarniçado inimigo
dos portugueses e amigo dos franceses.

 

Aracaru – O
nome do rio é Acaracu -de acará – garça, co – buraco, toca, ninho e y – som
dúbio entre i e u, que os portugueses ora exprimiam de um, ora de outro modo,
significando água. Rio do ninho das garças é, pois, a tradução de Acaracu; e
rio das garças a de Acaraú. Usou-se aqui da liberdade horaciana para evitar em
uma obra literária, obra de gosto e artística, um som áspero e ingrato. De
resto quem sabe se o nome primitivo não foi realmente Acaraú, que se alterou
como tantos outros, pela introdução da consoante?

 

Boicininga – É
a cobra cascavel, de boia – cobra, e cininga – chocalho.

 

Oitibó – É uma
ave noturna, espécie de coruja.

 

Espíritos das
trevas – A esses espíritos chamavam os selvagens curupira, meninos maus, de
curumim – menino, e pira – mau.

 

Boré – Frauta
de bambu, o mesmo que muré.

 

Ocara – Praça
circular que ficava no centro da taba, cercada pela estacada, e para a qual
abriam todas as casas. Composto de oca – casa, e a desinência ara – que tem;
aquilo que tem a casa, ou onde a casa está.

 

Potiguara –
Comedor de camarão; de poty e uara. Nome (potiguara) que por desprezo davam os
inimigos aos pitiguaras, que habitavam as praias e viviam em grande parte da
pesca. Este nome dão alguns escritores aos pitiguaras, porque o receberam de
seus inimigos.

 

Pocema – Grande
alarido que faziam os selvagens nas ocasiões solenes, como em começo de
batalha, ou nas expansões da alegria; é palavra adotada já na língua portuguesa
e inserida no dicionário de Morais. Vem de po – mão, e cemo – clamar: clamor
das mãos, porque os selvagens acompanhavam o vozear com o bater das palmas e
das armas.

 

Andira –
Morcego; é em alusão a seu nome que Irapuã dirige logo palavras de desprezo ao
velho guerreiro.

 

Aracati –
Significa este nome bom tempo – de ara e catu. Os selvagens do sertão assim
chamavam as brisas do mar que sopram regularmente ao cair da tarde e, correndo
pelo vale do Jaguaribe, se derramam pelo interior e refrigeram da calma
abrasadora do verão. Daí resultou chamar-se Aracati o lugar de onde vinha a
monção. Ainda hoje no Icó o nome é conservado à brisa da tarde, que sopra do
mar.

 

Aflar – Sobre
este verbo que introduzi na língua portuguesa do latim afflo, já escrevi o que
entendi em nota de uma segunda edição da Diva, que brevemente há de vir à luz.

 

Anhanga – Davam
os indígenas este nome ao espírito do mal; compõe-se de anho – só, e angá –
alma. Espírito só, privado de corpo, fantasma.

 

Camucim – Vaso
onde encerravam os indígenas os corpos dos mortos e lhes servia de túmulo;
outros dizem camotim, e talvez com melhor ortografia, porque, se não me engano,
o nome é corrupção da frase – buraco, ambira – defunto, anhotim – enterrar;
buraco para enterrar o defunto: c´ am´ otim. O nome dava-se também a qualquer
pote.

 

Andiroba –
Árvore que dá um azeite amargo.

 

Cabelos do sol
– Em tupi guaraciaba. Assim, chamavam os indígenas aos europeus que tinham os
cabelos louros.

 

Moquém – Do
verbo mocáem – assar na labareda. Era a maneira por que os indígenas
conservavam a caça para não apodrecer, quando a levavam em viagem. Nas cabanas
a tinham no fumeiro.

 

Senhor do
caminho – Assim chamaram os indígenas ao guia, de py – caminho, e guara –
senhor.

 

O dia vai ficar
triste – Os tupis chamavam a tarde caruca, segundo o dicionário. Segundo Lery,
che caruc acy significa «estou triste». Qual destes era o sentido figurado da
palavra? Tiraram a imagem da tristeza, da sombra da tarde, ou imagem do
crepúsculo, do torvamento do espírito?

 

Jurupari –
Demônio; de juru – boca, e apara – torto, aleijado. O boca torta.

 

Ubaia – Fruta
conhecida da espécie eugênia. Significa fruta saudável; de uba – fruta, e aia –
saudável.

 

Jandaia – Este
nome que anda escrito por diversas maneiras, nhendaia, nhandaia, e em todas
alterado, é apenas um adjetivo qualificativo do substantivo ará. Deriva-se ele
das palavras nheng – falar, antan – duro, forte, áspero, e ara – desinência
verbal que exprime o agente: nh´ ant´ ara; substituído o t por d e o r por i,
tornou-se nhandaia, donde jandaia, que se traduzirá por periquito grasnador. Do
canto desta ave, como se viu, é que vem o nome de Ceará, segundo a etimologia
que lhe dá a tradição.

 

Inhuma – Ave
noturna palamedea. A espécie de que se fala aqui é a Palamedea chavaria, que
canta regularmente à meia-noite. A ortografia melhor creio ser anhuma, talvez
de anho – só, e anum – ave agoureira conhecida. Significaria então anum
solitário, assim chamado pela tal ou qual semelhança do grito desagradável.

 

Inúbia –
Trombeta de guerra. Os indígenas, segundo Lery, as tinham tão grandes que
mediam muitos palmos no diâmetro de abertura.

 

Guará – Cão
selvagem, lobo brasileiro. Provém esta palavra do verbo u – comer, do qual se
forma com o relativo g e a desinência ara o verbal g-u-ára – comedor. A sílaba
final longa é a partícula propositiva ã que serve para dar força à palavra.

G-u-ára-á
-realmente comedor, voraz.

 

Jibóia – Cobra
conhecida; de gi – machado, e boia – cobra. O nome foi tirado da maneira por
que a serpente lança o bote, semelhante ao golpe do machado; pode traduzir-se
bem: cobra de arremesso.

 

Sucuri – A
serpente gigante que habita nos grandes rios e engole um boi. De suu – animal,
e cury ou curu – roncador. Animal roncador, porque de feito o ronco da sucuri é
medonho.

 

Se é que tens
sangue e não mel – Alusão que faz o velho Andira ao nome de Irapuã, o qual,
como se disse, significa mel redondo.

 

Ouve seu trovão
– Todo esse episódio do rugido da terra é uma astúcia, como usavam os pajés e
os sacerdotes de toda a nação selvagem para se imporem à imaginação do povo. A
cabana estava assentada sobre um rochedo, onde havia uma galeria subterrânea
que comunicava com a várzea por estreita abertura; Araquém tivera o cuidado de
tapar com grandes pedras as duas aberturas, para ocultar a gruta dos
guerreiros. Nessa ocasião a fenda inferior estava aberta, e o pajé o sabia;
abrindo a fenda superior, o ar encanou-se pelo antro espiral com estridor
medonho, e de que pode dar uma ideia o sussurro dos caramujos. – O fato é,
pois, natural; a aparência, sim, é maravilhosa.

 

Abati n´água
  arroz; Iracema serve-se da imagem do
arroz que só viça no alagado, para exprimir sua alegria.

 

Ubiratã –
Pau-ferro; de ubira – pau, e antan – duro.

 

Maracajá – Gato
selvagem.

 

Caititus –
Porco-do-mato, espécie de javali brasileiro. De caeté – mato grande e virgem, e
suu – caça, mudado o s em t na composição pela eufonia da língua. Caça do mato
virgem.

 

Jaguar – Vimos
que guará significa voraz. Jaguar tem inquestionavelmente a mesma etimologia; é
o verbal guara e o pronome já – nós. Jaguar era, pois, para os indígenas, todos
os animais que os devoravam. Jaguareté – o grande devorador.

 

Anajê – Gavião.

 

Estrela morta –
A estrela polar, por causa da sua imobilidade; orientavam-se por ela os
selvagens durante a noite.

 

Acauã – Ave
inimiga das cobras; de caa – pau, e uan, do verbo u – que come pau.

 

Saí – Lindo
pássaro, azul.

 

À cintura da
virgem – Os indígenas chamavam a amante possuída aguaçaba; de aba – homem, cua
– cintura, çaba – coisa própria; a mulher que o homem cinge, ou traz à cintura.
Fica, pois, claro o pensamento de Iracema.

 

Carioba –
Camisa de algodão; de cary – branco, e oba – roupa. Tinha também a araçóia, de
arara e oba – vestido de penas de arara.

 

Jaci – A Lua.
De já – pronome nós, e cy – mãe. A Lua exprimia o mês para os selvagens; e seu
nascimento era sempre por eles festejado.

 

Jogos da
alegria – Chamavam os selvagens tory – os fachos ou fogos; e toryba – a
alegria, a festa, a grande cópia de fachos.

 

Bucã –
Significa uma espécie de grelha que os selvagens faziam para assar a caça, daí
vem o verbo francês boucaner. A palavra é da língua tupi.

 

Abaeté – Varão
abalizado; de aba – homem, e eté – forte, egrégio.

 

Mocoribe –
Morro de areia na enseada do mesmo nome, a uma légua do Fortaleza; diz-se hoje
Mucuripe. Vem de corib -alegrar, e mo, partícula ou abreviatura do verbo
monhang -fazer, que se junta aos verbos neutros e mesmo ativos para dar-lhes
significação passiva; ex.: caneon -afligir-se, mocaneon -fazer alguém aflito.

 

Jacaúna –
Jacarandá-preto, de jaca – abreviação de jacarandá, e una – preto. Este Jacaúna
é o célebre chefe, amigo de Martim Soares Moreno.

 

Cuandu –
Porco-espinho.

 

Seu colar de
guerra – O colar que os selvagens faziam dos dentes dos inimigos vencidos era
um brasão e troféu de valentia.

 

Japi –
Significa nosso pé; do pronome já – nós, py – pé.

 

Ibiapina – De
iby – terra, e apino – tosquiar.

 

Jatobá – Grande
árvore real. O lugar da cena é o sítio da hoje Vila Viçosa, onde diz a tradição
ter nascido Camarão.

 

Meruoca – De
meru – mosca, e oca – casa. Serra junto de Sobral, fértil em mantimentos.

 

Uruburetama –
Pátria ou ninho de urubus: serra bastante alta.

 

Mundaú – Rio
muito tortuoso que nasce na serra de Uruburetama. Mundé – cilada, e hu – rio.

 

Potengi – Rio
que rega a cidade de Natal, donde era filho Soares Moreno.

 

As saborosas
traíras – É o rio Trairi, trinta léguas ao norte da capital. De traíra – peixe,
e y – rio. Hoje é povoação e distrito de paz.

 

Soipé – País da
caça. De sôo – caça, e ipé – lugar onde. Diz-se hoje Suipé, rio e povoação
pertencente a freguesia e termo da Fortaleza, situada à margem dos alagados
chamados Jaguaruçu, na embocadura do rio.

 

Pacoti – Rio
das pacobas. Nasce na serra de Baturité e lança-se no oceano duas léguas ao
norte de Aquirás.

 

Iguapé –
Enseada distante duas léguas de Aquirás. De ig – água, cua – cintura, e ipé –
onde.

 

Rio, que forma
um braço do mar – É o Parnaíba, rio do Piauí. Vem de pará – mar, nhanhe –
correr, e hyba – braço; braço corrente do mar. Geralmente se diz que pará
significa rio e paraná mar; é inteiramente o contrário.

 

Brancos tapuias
– Em tupi – tapuitinga. Nome que os pitiguaras davam aos franceses para
diferençá-los dos tupinambás. Tapuia significa bárbaro, inimigo. De taba – aldeia,
e puir – fugir: os fugidos da aldeia.

 

Mairi – Cidade.
Talvez provenha o nome de mair – estrangeiro, e fosse aplicado aos povoados dos
brancos em oposição às tabas dos índios.

 

Batuireté –
Narceja ilustre; de batuira e eté. Apelido que tomara o chefe pitiguara, e que
na linguagem figurada valia tanto como valente nadador. É o nome de uma serra
fertilíssima e da comarca que ela ocupa.

 

Suas estrelas
eram muitas – Contavam os indígenas os anos pelo nascimento das plêiades no
Oriente; e também costumavam guardar uma castanha de caju, de cada estação da
fruta, para marcar a idade.

 

Jatobá – Árvore
frondosa, talvez de jetahy, oba – folha, e a, aumentativo; jetaí de grande
copa. É o nome de um rio e de uma serra em Santa Quitéria.

 

Quixeramobim –
Segundo o Dr. Martius traduz-se por essa exclamação de saudade. Compõe-se de
Qui – ah!, xere – meus, amôbinhê – outros tempos.

 

Caminhos das
graças – Em tupi Acarape, povoação na freguesia de Baturité a nove léguas da
capital.

 

Maranguab – A
serra de Maranguape, distante cinco léguas da capital, e notável pela sua
fertilidade e formosura. O nome indígena compõe-se de maran – guerrear, e coaub
– sabedor; maran talvez seja abreviação de maramonhang – fazer guerra, se não
é, como eu penso, o substantivo simples guerra, de que se fez o verbo composto.
O Dr. Martius traz etimologia diversa. Mara – árvore, angai – de nenhuma
maneira, guabe – comer. Esta etimologia nem me parece própria ao objeto, que é
uma serra, nem conforme com os preceitos da língua.

 

Pirapora – Rio
de Maranguape, notável pela frescura de suas águas e excelência dos banhos
chamados de Pirapora, no lugar das cachoeiras. Provém o nome de Pira – peixe,
pore – salto; salto do peixe.

 

Gavião branco –
Batuireté chama assim o guerreiro branco, ao passo que trata o neto por
narceja; ele profetiza nesse paralelo a destruição de sua raça pela raça
branca.

 

Porangaba –
Significa beleza. É uma lagoa distante da cidade uma légua em sítio aprazível.
Hoje a chamam Arronches; em suas margens está a decadente povoação do mesmo
nome.

 

Jereraú – Rio
das marrecas; de jerere ou irerê – marreca, e hu – água. Este lugar ainda hoje
é notável pela excelência de frutas, com especialidade as belas laranjas
conhecidas por laranjas de Jereraú.

 

Sapiranga –
Lagoa no sítio Alagadiço Novo, a cerca de duas léguas da capital. O nome
indígena significa olhos vermelhos, de ceça – olhos, e piranga – vermelhos. Esse
mesmo nome dão usualmente no Norte a certa oftalmia.

 

Muritiapuá – De
muriti – nome da palmeira mais vulgarmente conhecida por buriti, e apuã – ilha.
Lugarejo no mesmo sítio referido.

 

Aratanha – De
arara – ave, e tanha – bico. Serra mui fértil e cultivada, em continuação da de
Maranguape.

 

Guaiúba – De
goaia – vale, y – água, jur – vir, be – por onde: por onde vêm as águas do
vale. Rio que nasce na serra da Aratanha e corta a povoação do mesmo nome a
seis léguas da capital.

 

Pacatuba – De
paca e tuba, leito ou couto das pacas. Recente, mas importante povoação, em um
belo vale da serra da Aratanha.

 

Âmbar – As
praias do Ceará eram nesse tempo abundantes de âmbar que o mar arrojava.
Chamavam-lhe os indígenas pira repoti – esterco de peixe.

 

Coati – pintar.
A História menciona esse fato de Martim Soares Moreno se ter coatiado quando
vivia entre os selvagens do Ceará.

 

Coatiabo – A
desinência abo significa o objeto que sofreu a ação do verbo, e talvez provenha
de aba – gente, criatura.

 

Colibri – Desse
letargo do colibri no inverno fala Simão de Vasconcelos.

 

Carbeto –
Espécie de serão que faziam os índios à noite em uma cabana maior, onde todos
se reuniam para conversar. Leia-se Ives d´Evreux, Viagem ao Norte do Brasil.

 

Mecejana –
Lagoa e povoação a duas léguas da capital. O verbo cejar significa – abandonar;
a desinência ana indica a pessoa que exercita a ação do verbo. Cejana significa
o que abandona. Junta à partícula mo do verbo monhang – fazer, vem a palavra a
significar o que fez abandonar ou que foi lugar e ocasião de abandonar.

 

Monguba –
Árvore que dá um fruto cheio de cotão, semelhante ao da sumaúma, com a
diferença de ser negro. Daí veio o nome de uma parte da serra de Maranguape,
onde tem estabelecimento rural o tenente-coronel João Franklin de Alencar.

 

Imbu – Fruta da
serra do Araripe que não tem no litoral. É saborosa e semelhante ao cajá.

 

Jacarecanga –
Morro de areia na praia do Ceará afamado pela fonte de água fresca puríssima.
Vem o nome de jacaré – crocodilo, e acanga – cabeça.

 

Japim – Pássaro
cor-de-ouro com encontros pretos e conhecido vulgarmente pelo nome de sofrê.

 

Folha escura –
A murta, que os indígenas chamavam capixuna, de caa – rama, folhagem, e pixuna
– escuro. Daí vem a figura de que usa Iracema para exprimir a tristeza que ela
produz no esposo.

 

Tupinambás –
Nação formidável, ramo primitivo da grande raça tupi. Depois de uma resistência
heróica, não podendo expulsar os portugueses da Bahia, emigraram até o
Maranhão, onde fizeram aliança com os franceses, que já então infestavam
aquelas paragens. O nome que eles se davam significa -gente parente dos tupis,
de tupi – anama – aba.

 

Enseada dos
papagaios – É a baía da Jericoacoara, de jeru – papagaio, cua – várzea, coara –
buraco ou seio: enseada da várzea dos papagaios. É um dos bons portos do Ceará.

 

Maracatim –
Grande barco que levava na proa – tim – um maracá. Aos barcos menores ou canoas
chamavam igara, de ig – água, e jara – senhor; senhora d´água.

 

Caiçara – De
cai – pau queimado e a desinência çara, cousa que tem, ou se faz; o que se faz
de pau queimado. Era uma forte estacada de pau-a-pique.

 

Moacir – Filho
do sofrimento: de moaci – dor, e ira – desinência que significa – saído de.

 

Larga faixa – É
o que chamam vulgarmente tipóia; rejeitou-se o termo próprio do texto, por
andar degradado no estilo chulo.

 

Chupou tua alma
– Criança em tupi é pitanga, de piter – chupar, e anga – alma; chupa alma.
Seria porque as crianças atraem e deleitam aos que as vêem? Ou porque absorvem
uma porção d’alma dos pais? Caubi fala nesse último sentido.

 

Carimã – Uma
conhecida preparação de mandioca. Caric – correr, mani – mandioca: mandioca
escorrida.

 

Tauape – Lugar
do barro amarelo: de tauá e ipé. Fica no caminho de Maranguape.

 

Piau – Peixe
que deu o nome ao rio Piauí.

 

Velha taba –
Tradução de Tapui-tapera. Assim chamava-se um dos estabelecimentos dos
tupinambás no Maranhão.

 

Itaoca – Casa
de pedra, fortaleza.

 

Manacá – Linda
flor. Veja-se o que diz a respeito o Sr. Gonçalves Dias em seu dicionário.

 

Cupim – Inseto
conhecido. O nome compõe-se de co – buraco, e pim – ferrão.

 

Albuquerque –
Jerônimo de Albuquerque, chefe da expedição ao Maranhão em 1612.

 

 

© Copyright
2021, VirtualBooks Editora.

Publicamos seu
livro a partir de 20 exemplares e-books nos formatos: e-pub ou PDF.

Whatsapp +55 37
99173-353

e-mail:
capasvb@gmail.com

http://www.virtualbooks.com.br

 

*

Clube do Livro
VirtualBooks

Caso queira
divulgar o seu livro: capa, sinopse e seu e-mail. É grátis!

https://bit.ly/3rtVVIC

*

 


 Grátis o e-book: NOTAS DO SUBTERRÂNEO, Fiódor Dostoiévski

Edição em Inglês e Português

Para o filósofo alemão Walter Kaufmann, esta obra faz de Dostoiévski o principal precursor do existencialismo. Apresenta-se como um excerto das memórias de um empregado civil aposentado que vive em São Petersburgo.

“Penso até que a melhor definição do homem seja: um bípede ingrato”.

Para baixar grátis: https://bit.ly/3pxFAQM

 

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima