ESAÚ
E JACÓ
Machado de Assis
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Editora e Livraria Ltda Publicado em
1904 em livro, Editora H. Garnier. Capa: Bênção Isaac Jacó, de Gerrit Willemsz
Horst. (C.1612 – 1652) – Todos os direitos reservados, protegidos pela lei
9.610/98. – Joaquim Maria
Machado de Assis (1839 — 1908) – ESAÚ E JACÓ, Machado de
Assis. Pará de Minas, MG, Brasil: VirtualBooks Editora, 2017. ISBN: 9781521819555 – CDD- B869 Literatura brasileira. Romance.
CAPÍTULO PRIMEIRO – COUSAS FUTURAS!
Era a primeira vez que as duas iam ao morro do Castelo.
Começaram de subir pelo lado da Rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro
que nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá pôr
os pés. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um velho inglês,
que aliás andara terras e terras, confiava-me há muitos anos em Londres que de
Londres só conhecia bem o seu clube, e era o que lhe bastava da metrópole e do
mundo Natividade e Perpétua conheciam outras partes, além de Botafogo, mas o
morro do Castelo, por mais que ouvissem falar dele e da cabocla que lá reinava
em 1871, era-lhes tão estranho e remoto como o clube. O íngreme, o desigual, o
mal calçado da ladeira mortificavam os pés às duas pobres donas. Não obstante, continuavam
a subir, como se fosse penitência, devagarinho, cara no chão, véu para baixo. A
manhã trazia certo movimento; mulheres, homens, crianças que desciam ou subiam,
lavadeiras e soldados, algum empregado, algum lojista, algum padre, todos
olhavam espantados para elas, que aliás vestiam com grande simplicidade; mas há
um donaire que se não perde, e não era vulgar naquelas alturas. A mesma
lentidão do andar, comparada à rapidez das outras pessoas, fazia desconfiar que
era a primeira vez que ali iam. Uma crioula perguntou a um sargento: “Você
quer ver que elas vão à cabocla?” E ambos pararam a distância, tomados
daquele invencível desejo de conhecer a vida alheia, que é muita vez toda a
necessidade humana.
Com efeito, as duas senhoras buscavam disfarçadamente o
número da casa da cabocla, até que deram com ele. A casa era como as outras,
trepada no morro. Subia-se por uma escadinha, estreita, sombria, adequada à
aventura. Quiseram entrar depressa, mas esbarraram com dois sujeitos que vinham
saindo, e coseram-se ao portal. Um deles perguntou-lhes familiarmente se iam
consultar a adivinha.
—Perdem o seu tempo, concluiu furioso, e hão de ouvir muito
disparate…
—É mentira dele, emendou o outro rindo; a cabocla sabe
muito bem onde tem o nariz.
Hesitaram um pouco; mas, logo depois advertiram que as
palavras do primeiro eram sinal certo da vidência e da franqueza da adivinha;
nem todos teriam a mesma sorte alegre. A dos meninos de Natividade podia ser
miserável, e então… Enquanto cogitavam passou fora um carteiro, que as fez
subir mais depressa, para escapar a outros olhos. Tinham fé, mas tinham também
vexame da opinião, como um devoto que se benzesse às escondidas.
Velho caboclo, pai da adivinha, conduziu as senhoras à
sala. Esta era simples, as paredes nuas, nada que lembrasse mistério ou incutis
se pavor, nenhum petrecho simbólico, nenhum bicho empalhado: esqueleto ou
desenho de aleijões. Quando muito um registro da Conceição colado à parede
podia lembrar um mistério, apesar de encardido e roído, mas não metia medo.
Sobre uma cadeira, uma viola.
—Minha filha já vem, disse o velho. As senhoras como se
chamam?
Natividade deu o nome de batismo somente, Maria, como um
véu mais espesso que o que trazia no rosto, e recebeu um cartão, porque a
consulta era só de uma, — com o número 1.012. Não há que pasmar do algarismo; a
freguesia era numerosa, e vinha de muitos meses. Também não há que dizer do
costume, que é velho e velhíssimo. Relê Esquilo, meu amigo, relê as Sumenides,
lá verás a Pítia, chamando os que iam à consulta: “Se há aqui Helenos,
venham, aproximem-se, segundo o uso, na ordem marcada pela sorte”… A
sorte outrora, a numeração agora, tudo é que a verdade se ajuste à prioridade,
e ninguém perca a sua vez de audiência. Natividade guardou o bilhete, e ambas
foram à janela.
A falar verdade, temiam o seu tanto, Perpétua menos que
Natividade. A aventura parecia audaz, e algum perigo possível. Não ponho aqui
os seus gestos: imaginai que eram inquietos e desconcertados. Nenhuma dizia
nada. Natividade confessou depois que tinha um nó na garganta. Felizmente, a
cabocla não se demorou muito; ao cabo de três ou quatro minutos, o pai a trouxe
pela mão, erguendo a cortina do fundo.
—Entra, Bárbara.
Bárbara entrou, enquanto o pai pegou da viola e passou ao
patamar de pedra, à porta da esquerda. Era uma criaturinha leve e breve, saia
bordada, chinelinha no pé. Não se lhe podia negar um corpo airoso. Os cabelos,
apanhados no alto da cabeça por um pedaço de fita enxovalhada, faziam-lhe um
solidéu natural, cuja borla era suprida por um raminho de arruda. Já vai nisto
um pouco de sacerdotisa. O mistério estava nos olhos. Estes eram opacos, não
sempre nem tanto que não fossem também lúcidos e agudos, e neste último estado
eram; igualmente compridos; tão compridos e tão agudos que entravam pela gente
abaixo, revolviam o coração e tornavam cá fora, prontos para nova entrada e
outro revolvimento. Não te minto dizendo que as duas sentiram tal ou qual
fascinação. Bárbara interrogou-as; Natividade disse ao que vinha e entregou-lhe
os retratos dos filhos e os cabelos cortados, por lhe haverem dito que bastava.
—Basta, confirmou Bárbara. Os meninos são seus filhos?
—São.
—Cara de um é cara de outro.
—São gêmeos; nasceram há pouco mais de um ano.
—As senhoras podem sentar-se.
Natividade disse baixinho à outra que “a cabocla era
simpática”, não tão baixo que esta não pudesse ouvir também; e daí pode
ser que ela, receosa da predição, quisesse aquilo mesmo para obter um bom
destino aos filhos. A cabocla foi sentar-se à mesa redonda que estava no centro
da sala, virada para as duas. Pôs os cabelos e os retratos defronte de si.
Olhou alternadamente para eles e para a mãe, fez algumas perguntas a esta, e
ficou a mirar os retratos e os cabelos, boca aberta, sobrancelhas cerradas.
Custa-me dizer que acendeu um cigarro, mas digo, porque é verdade, e o fundo
concorda com o ofício. Fora, o pai roçava os dedos na viola, murmurando uma
cantiga do sertão do Norte:
Menina da saia branca,
Saltadeira de riacho…
Enquanto o fumo do cigarro ia subindo, a cara da adivinha
mudava de expressão, radiante ou sombria, ora interrogativa, ora explicativa.
Bárbara inclinava-se aos retratos, apertava uma madeixa de cabelos em cada mão,
e fitava-as, e cheirava-as, e escutava-as, sem afetação que porventura aches
nesta linha. Tais gestos não se poderiam contar naturalmente. Natividade não
tirava os olhos dela, como se quisesse lê-la por dentro. E não foi sem grande
espanto que lhe ouviu perguntar se os meninos tinham brigado antes de nascer.
—Brigado?
—Brigado, sim, senhora.
—Antes de nascer?
—Sim, senhora, pergunto se não teriam brigado no ventre de
sua mãe; não se lembra?
Natividade, que não tivera a gestação sossegada, respondeu
que efetivamente sentira movimentos extraordinários, repetidos, e dores, e
insônias… Mas então que era? Brigariam por quê? A cabocla não respondeu.
Ergueu-se pouco depois, e andou à volta da mesa, lenta, como sonâmbula, os
olhos abertos e fixos; depois entrou a dividi-los novamente entre a mãe e os
retratos. Agitava-se agora mais, respirando grosso. Toda ela, cara e braços.
ombros e pernas, toda era pouca para arrancar a palavra ao Destino. Enfim,
parou, sentou-se exausta, até que se ergueu de salto e foi ter com as duas, tão
radiante, os olhos tão vivos e cálidos, que a mãe ficou pendente deles, e não
se pôde ter que lhe não pegasse das mãos e lhe perguntasse ansiosa:
—Então? Diga, posso ouvir tudo.
Bárbara, cheia de alma e riso, deu um respiro de gosto. A
primeira palavra parece que lhe chegou à boca, mas recolheu-se ao coração,
virgem dos lábios dela e de alheios ouvidos. Natividade instou pela resposta,
que lhe dissesse tudo, sem falta…
—Cousas futuras! murmurou finalmente a cabocla.
—Mas, cousas feias?
—Oh! não! não! Cousas bonitas, cousas futuras!
—Mas isso não basta: diga-me o resto. Esta senhora é minha
irmã e de segredo, mas se é preciso sair, ela sai; eu fico, diga-me a mim só…
Serão felizes?
—Sim.
—Serão grandes?
—Serão grandes, Oh! grandes! Deus há de dar-lhes muitos
benefícios. Eles hão de subir, subir, subir… Brigaram no ventre de sua veio
busca mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. É! só
o que lhe digo. Quanto à qualidade da glória, cousas futuras! Lá dentro, a voz
do caboclo velho ainda uma vez continuava a cantiga do sertão:
Trepa-me neste coqueiro,
Bota-me os cocos abaixo.
E a filha, não tendo mais que dizer, ou não sabendo que
explicar, dava aos quadris o gesto da toada, que o velho repetia lá dentro:
Menina da saia branca,
Saltadeira de riacho,
Trepa-me neste
coqueiro,
Bota-me os cocos
abaixo,
Quebra coco, sinhá,
Lá no cocá,
Se te dá na cabeça,
Há de rachá;
Muito hei de me ri,
Muito hei de gostá,
Lelê, coco, naiá.
CAPÍTULO II – MELHOR DE DESCER QUE DE SUBIR
Todos os oráculos têm o falar dobrado, mas entendem-se.
Natividade acabou entendendo a cabocla, apesar de lhe não ouvir mas nada;
bastou saber que as cousas futuras seriam bonitas, e os filhos grandes e
gloriosos para ficar alegre e tirar da bolsa uma nota de cinquenta mil-réis.
Era cinco vezes o preço do costume, e valia tanto ou mais que as ricas dádivas
de Creso à Pítia. Arrecadou os retratos e os cabelos, e as duas saíram,
enquanto a cabocla ia para os fundos à espera de outros. Já havia alguns
fregueses à porta, com os números de ordem, e elas desceram rapidamente,
escondendo a cara.
Perpétua compartia as alegrias da irmã, as pedras também, o
muro do lado do mar, as camisas penduradas às janelas, as cascas de banana no
chão. Os mesmos sapatos de um irmão das almas, que ia a dobrar a esquina da Rua
da Misericórdia para a de S. José, Fale ciam rir de alegria, quando realmente
gemiam de cansaço. Natividade estava tão fora de si que, ao ouvir-lhe pedir:
“Para a missa das almas!” tirou da bolsa uma nota de dois mil-réis,
nova em folha, e deitou-a à bacia. A irmã chamou-lhe a atenção para o engano,
mas não era engano, era para as almas do purgatório.
E seguiram lépidas para o coupé, que as esperava no espaço
que fica entre a igreja de S. José e a Câmara dos Deputados. Não tinham querido
que o carro as levasse até ao princípio da ladeira, para que o cocheiro e o
lacaio não desconfiassem da consulta. Toda a gente falava lava então da cabocla
do Castelo, era o assunto da cidade; atribuíam-lhe um poder infinito, uma série
de milagres, sortes, achados casamentos. Se as descobrissem, estavam perdidas
embora muita gente boa lá fosse. Ao vê-las dando a esmola ao irmão das almas, o
lacaio trepou à almofada e o cocheiro tocou os cavalos, a carruagem veio
buscá-las, e guiou para Botafogo.
CAPÍTULO III – A
ESMOLA DA FELICIDADE
—Deus lhe acrescente, minha senhora devota! exclamou o
irmão das almas ao ver a nota cair em cima de dois níqueis de tostão e alguns
vinténs antigos. Deus lhe dê todas as felicidades do céu e da terra, e as almas
do purgatório peçam a Maria Santíssima que recomende a senhora dona a seu bendito
filho!
Quando a sorte ri, toda a natureza ri também, e o coração
ri como tudo o mais. Tal foi a explicação que, por outras palavras menos
especulativas, deu o irmão das almas aos dois mil-réis. A suspeita de ser a
nota falsa não chegou a tomar pé no cérebro deste: foi alucinação rápida.
Compreendeu que as damas eram felizes, e, tendo o uso de pensar alto, disse
piscando o olho, enquanto elas entravam no carro:
—Aquelas duas viram passarinho verde, com certeza.
Sem rodeios, supôs que as duas senhoras vinham de alguma
aventura amorosa, e deduziu isto de três fatos, que sou obrigado a enfileirar
aqui para não deixar este homem sob a suspeita de caluniador gratuito. O
primeiro foi a alegria delas, o segundo o valor da esmola. o terceiro o carro
que as esperava a um canto, como se elas quisessem esconder do cocheiro o ponto
dos namorados. Não concluas tu que ele tivesse sido cocheiro algum dia. e
andasse a conduzir moças antes de servir às almas. Também não creias que fosse
outrora rico e adúltero, aberto de mãos, quando vinha de dizer adeus às suas
amigas. Ni cet excès d’honneur, ni cette
indignité. Era um pobre-diabo sem mais ofício que a devoção. Demais, não
teria tido tempo; contava apenas vinte e sete anos.
Cumprimentou as senhoras, quando o carro passou. Depois
ficou a olhar para a nota tão fresca, tão valiosa, nota que almas nunca viram
sair das mãos dele. Foi subindo a Rua de S. José. Já não tinha ânimo de pedir;
a nota fazia-se ouro, e a ideia de ser falsa voltou-lhe ao cérebro, e agora
mais frequente, até que se lhe pegou por alguns instantes. Se fosse falsa…
“Para a missa das almas!” gemeu à porta de uma quitanda e deram-lhe
um vintém, — um vintém sujo e triste ao pé da nota tão novinha que parecia sair
do prelo. Seguia-se um corredor de sobrado. Entrou, subiu, pediu, deram-lhe
dois vinténs, o dobro da outra moeda no valor e no azinhavre.
E a nota sempre limpa, uns dois mil-réis que pareciam
vinte. Não era falsa. No corredor pegou dela, mirou-a bem; era verdadeira De
repente, ouviu abrir a cancela em cima, e uns passos rápidos Ele, mais rápido,
amarrotou a nota e meteu-a na algibeira das calças: ficaram só os vinténs
azinhavrados e tristes, o óbolo da viúva. Saiu. foi à primeira oficina, à
primeira loja, ao primeiro corredor, pedindo longa e lastimosamente:
—Para a missa das almas!
Na igreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao
sacristão ouviu uma voz débil como de almas remotas que lhe perguntavam se os
dois mil-réis… Os dois mil-réis, dizia outra voz menos débil eram
naturalmente dele, que, em primeiro lugar, também tinha alma, e, em segundo
lugar, não recebera nunca tão grande esmola. Quem quer dar tanto vai à igreja
ou compra uma vela, não põe assim uma nota na bacia das esmolas pequenas.
Se minto, não é de intenção. Em verdade, as palavras não
saíram assim articuladas e claras, nem as débeis, nem as menos débeis; todas
faziam uma zoeira aos ouvidos da consciência. Traduzi-as em língua falada, a
fim de ser entendido das pessoas que me leem; não sei como se poderia
transcrever para o papel um rumor surdo e outro menos surdo, um atrás de outro
e todos confusos para o fim, até que o segundo ficou só: “não tirou a nota
a ninguém… a dona é que a pôs na bacia por sua mão… também ele era
alma”… A porta da sacristia que dava para a rua, ao deixar cair o
reposteiro azul-escuro debruado de amarelo, não ouviu mais nada. Viu um mendigo
que lhe estendia o chapéu roto e sebento, meteu vagarosamente a mão no bolso do
colete, também roto, e aventou uma moedinha de cobre que deitou ao chapéu do
mendigo, rápido, às escondidas, como quer o Evangelho. Eram dois vinténs,
ficavam-lhe mil novecentos e noventa e oito réis. E o mendigo, como ele saísse
depressa, mandou-lhe atrás estas palavras de agradecimento, parecidas com as
suas:
—Deus lhe acrescente, meu senhor, e lhe dê…
CAPÍTULO IV – A MISSA DO COUPÉ
Natividade ia pensando na cabocla do Castelo, na predição
da grandeza e na notícia da briga. Tornava a lembrar-se que, de fato, a
gestação não fora sossegada; mas só lhe ficava a sorte da glória e da grandeza.
A briga lá ia, se a houve, o futuro, sim, esse é que era o principal ou tudo.
Não deu pela Praia de Santa Luzia. No Largo da Lapa interrogou a irmã sobre o
que pensava da adivinha. Perpétua respondeu que bem, que acreditava, e ambas
concordaram que ela parecia falar dos próprios filhos, tal era o entusiasmo.
Perpétua ainda a repreendeu pelos cinquenta mil-réis dados em paga; bastavam
vinte.
—Não faz mal. Cousas futuras!
—Que cousas serão?
—Não sei; futuras.
Mergulharam outra vez no silêncio. Ao entrar no Catete,
Natividade recordou a manhã em que ali passou, naquele mesmo coupé, e confiou
ao marido o estado de gravidez. Voltavam de uma missa de defunto, na igreja de
S. Domingos…
“Na igreja de S. Domingos diz-se hoje uma missa por
alma de João de Melo, falecido em Maricá”. Tal foi o anúncio que ainda
agora podes ler em algumas folhas de 1869. Não me ficou o dia. o mês foi
agosto. O anúncio está certo, foi aquilo mesmo, sem mais nada, nem o nome da
pessoa ou pessoas que mandaram dizer a missa, nem hora, nem convite. Não se
disse sequer que o defunto era escrivão, ofício que só perdeu com a morte.
Enfim, parece que até lhe tiraram um nome; ele era, se estou bem informado,
João de Melo e Barros.
Não se sabendo quem mandava dizer a missa, ninguém lá foi.
A igreja escolhida deu ainda menos relevo ao ato; não era vistosa, nem buscada,
mas velhota, sem galas nem gente, metida ao canto de um pequeno largo, adequada
à missa recôndita e anônima.
As oito horas parou um coupé à porta; o lacaio desceu,
abriu a portinhola, desbarretou-se e perfilou-se. Saiu um senhor e deu a mão a
uma senhora, a senhora saiu e tomou o braço ao senhor, atravessaram o pedacinho
de largo e entraram na igreja. Na sacristia era tudo espanto. A alma que a tais
sítios atraíra um carro de luxo, cavalos de raça, e duas pessoas tão finas não
seria como as outras almas ali sufragadas. A missa foi ouvida sem pêsames nem
lágrimas. Quando acabou, o senhor foi à sacristia dar as espórtulas. O
sacristão, agasalhando na algibeira a nota de dez-mil-réis que recebeu, achou
que ela provava a sublimidade do defunto; mas que defunto era esse? O mesmo
pensaria a caixa das almas, se pensasse, quando a luva da senhora deixou cair
dentro uma pratinha de cinco tostões. Já então havia na igreja meia dúzia de
crianças maltrapilhas, e fora, alguma gente às portas e no largo, esperando. O
senhor, chegando à porta, relanceou os olhos, ainda que vagamente, e viu que
era objeto de curiosidade. A senhora trazia os seus no chão. E os dois entravam
no carro, com o mesmo gesto, o lacaio bateu a portinhola e partiram.
A gente local não falou de outra cousa naquele e nos dias
seguintes. Sacristão e vizinhos relembravam o coupé, com orgulho. Era a missa
do coupé. As outras missas vieram vindo, todas a pé, algumas de sapato roto, não
raras descalças, capinhas velhas, morins estragados, missas de chita ao
domingo, missas de tamancos. Tudo voltou ao costume, mas a missa do coupé viveu
na memória por muitos meses. Afinal não se falou mais nela; esqueceu como um
baile.
Pois o coupé era este mesmo. A missa foi mandada dizer por
aquele senhor, cujo nome é Santos, e o defunto era seu parente, ainda que
pobre. Também ele foi pobre, também ele nasceu em Maricá. Vindo para o Rio de
Janeiro, por ocasião da febre das ações (1855), dizem que revelou grandes
qualidades para ganhar dinheiro depressa. Ganhou logo muito, e fê-lo perder a
outros. Casou em 1859 com esta Natividade, que ia então nos vinte anos e não
tinha dinheiro, mas era bela e amava apaixonadamente. A Fortuna os abençoou com
a riqueza. Anos depois tinham eles uma casa nobre, carruagem, cavalos e
relações novas e distintas. Dos dois parentes pobres de Natividade morreu o pai
em 1866, restava-lhe uma irmã. Santos tinha alguns em Maricá, a quem nunca
mandou dinheiro, fosse mesquinhez, fosse habilidade. Mesquinhez não creio, ele
gastava largo e dava muitas esmolas. Habilidade seria; tirava-lhes o gosto de
vir cá pedir-lhe mais.
Não lhe valeu isto com João de Melo, que um dia apareceu
aqui, a pedir-lhe emprego. Queria ser. como ele, diretor de banco. Santos
arranjou-lhe depressa um lugar de escrivão no cível em Maricá, e despachou-o
com os melhores conselhos deste mundo.
João de Melo retirou-se com a escrivania, e dizem que uma
grande paixão também. Natividade era a mais bela mulher daquele tempo. No fim,
com os seus cabelos quase sexagenários, fazia crer na tradição. João de Melo
ficou alucinado quando a viu, ela conheceu isso, e portou-se bem. Não lhe
fechou o rosto, é verdade, e era mais bela assim que zangada; também não lhe
fechou os olhos que eram negros e cálidos. Só lhe fechou o coração, um coração
que devia amar como nenhum outro, foi a conclusão de João de Melo uma noite em
que a viu ir decotada a um baile. Teve ímpeto de pegar dela, descer, voar,
perderem-se…
Em vez disso, uma escrivania e Maricá; era um abismo. Caiu
nele; três dias depois saiu do Rio de Janeiro para não voltar. A princípio
escreveu muitas cartas ao parente, com a esperança de que ela as lesse também,
e compreendesse que algumas palavras eram para si.
Mas Santos não lhe deu resposta, e o tempo e a ausência
acabaram por fazer de João de Melo um excelente escrivão. Morreu de uma
pneumonia.
Que o motivo da pratinha de Natividade deitada à caixa das
almas fosse pagar a adoração do defunto não digo que sim, nem que não; faltam-me
pormenores. Mas pode ser que sim, porque esta senhora era não menos grata que
honesta. Quanto às larguezas do marido, não esqueças que o parente era defunto,
e o defunto um parente menos.
CAPÍTULO V – HÁ CONTRADIÇÕES EXPLICÁVEIS
Não me peças a causa de tanto encolhimento no anúncio e na
missa, e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Há contradições
explicáveis. Um bom autor, que inventasse a sua história, ou prezasse a lógica
aparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a pé ou em caleça de praça
ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as cousas se passaram, e refiro-as
tais quais. Quando muito, explico-as, com a condição de que tal costume não
pegue. Explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar. O
melhor é ler com atenção.
Quanto à contradição de que se trata aqui, é de ver que
naquele recanto de um larguinho modesto, nenhum conhecido daria com eles, ao
passo que eles gozariam o assombro local; tal foi a reflexão de Santos, se pode
dar semelhante nome a um movimento interior que leva a gente a fazer antes uma
cousa que outra. Resta a missa; a missa em si mesma bastava que fosse sabida no
céu e em Maricá. Propriamente vestiram-se para o céu. O luxo do casal temperava
a pobreza da oração; era uma espécie de homenagem ao finado. Se a alma de João
de Melo os visse de cima, alegrar-se-ia do apuro em que eles foram rezar por um
pobre escrivão. Não sou eu que o digo; Santos é que o pensou.
CAPÍTULO VI – MATERNIDADE
A princípio, vieram calados. Quando muito, Natividade
queixou-se da igreja, que lhe sujara o vestido.
—Venho cheia
de pulgas, continuou ela; por que não fomos a S. Francisco de Paula ou à
Glória, que estão mais perto, e são limpas?
Santos trocou as mãos à conversa, e falou das ruas mal
calçadas, que faziam dar solavancos ao carro. Com certeza, quebravam-lhe as
molas.
Natividade não replicou, mergulhou no silêncio, como
naquele outro capítulo, vinte meses depois, quando tornava do Castelo com a
irmã. Os olhos não tinham a nota de deslumbramento que trariam então; iam
parados e sombrios, como de manhã e na véspera. Santos, que já reparara nisso,
perguntou-lhe o que é que tinha; ela não sei se lhe respondeu de palavra; se
alguma disse, foi tão breve e surda que inteiramente se perdeu. Talvez não
passasse de um simples gesto de olhos, um suspiro, ou cousa assim. Fosse o que
fosse, quando o coupé chegou ao meio do Catete, os dois levavam as mãos presas,
e a expressão do rosto era de abençoados. Não davam sequer pela gente das ruas;
não davam talvez por si mesmos.
Leitor, não é muito que percebas a causa daquela expressão;
destes dedos abotoados. Já lá ficou dita atrás, quando era melhor deixar que a
adivinhasses; mas provavelmente não a adivinharias. não que tenhas o
entendimento curto ou escuro, mas porque o homem na varia do homem, e tu talvez
ficasses com igual expressão, simplesmente por saber que ias dançar sábado.
Santos não dançava; preferia o voltarete, como distração. A causa era virtuosa,
como sabes; Natividade estava grávida, acabava de o dizer ao marido.
Aos trinta anos não era cedo nem tarde; era imprevisto.
Santos sentiu mais que ela o prazer da vida nova. Eis aí vinha a realidade do
sonho de dez anos, uma criatura tirada da coxa de Abraão, como diziam aqueles
bons judeus, que a gente queimou mais tarde, e agora empresta generosamente o
seu dinheiro às companhias e às nações. Levam juro por ele; mas os hebraísmos
são dados de graça. Aquele é desses. Santos, que só conhecia a parte do
empréstimo, sentia inconscientemente a do hebraísmo, e deleitava-se com ele. A
emoção atava-lhe a língua; os olhos que estendia à esposa e a cobriam eram de
patriarca; o sorriso parecia chover luz sobre a pessoa amadas abençoada e
formosa entre as formosas.
Natividade não foi logo, logo, assim; a pouco e pouco é que
veio sendo vencida e tinha já a expressão da esperança e da Maternidade. Nos
primeiros dias, os sintomas desconcertaram a nossa amiga. É duro dizê-lo, mas é
verdade. Lá se iam bailes e festas, lá ia a liberdade e a folga. Natividade
andava já na alta roda do tempo; acabou de entrar por ela, com tal arte que
parecia haver ali nascido. Carteava-se com grandes damas, era familiar de
muitas, tuteava algumas. Nem tinha só esta casa de Botafogo, mas também outra
em Petrópolis; nem só carro, mas também camarote no Teatro Lírico, não contando
os bailes do Cassino Fluminense, os das amigas e os seus; todo o repertório, em
suma, da vi da elegante. Era nomeada nas gazetas. pertencia àquela dúzia de
nomes planetários que figuram no meio da plebe de estrelas. O marido era
capitalista e diretor de um banco.
No meio disso, a que vinha agora uma criança deformá-la por
meses, obrigá-la a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o
resto? Tal foi a primeira sensação da mãe, e o primeiro ímpeto foi esmagar o
gérmen. Criou raiva ao marido. A segunda sensação foi melhor. A maternidade,
chegando ao meio-dia, era como uma aurora nova e fresca. Natividade viu a
figura do filho ou filha brincando na relva da chácara ou no regaço da aia, com
três anos de idade, e este quadro daria aos trinta e quatro anos que teria
então um aspecto de vinte e poucos…
Foi o que a reconciliou com o marido. Não exagero; também
não quero mal a esta senhora. Algumas teriam medo, a maior parte amor. A
conclusão é que, por uma ou por outra porta, amor ou vaidade. o que o embrião
quer é entrar na vida. César ou João Fernandes, tudo é viver, assegurar a
dinastia e sair do mundo o mais tarde que puder.
O casal ia calado. Ao desembocar na Praia de Botafogo, a
enseada trouxe o gosto de costume. A casa descobria-se a distância, magnífica;
Santos deleitou-se de a ver, mirou-se nela, cresceu com ela. subiu por ela. A
estatueta de Narciso, no meio do jardim, sorriu à entrada deles, a areia fez-se
relva, duas andorinhas cruzaram por cima do repuxo, figurando no ar a alegria
de ambos. A mesma cerimônia d descida. Santos ainda parou alguns instantes para
ver o coupé dar a volta, sair e tornar à cocheira; depois seguiu a mulher que
entrava no saguão.
CAPÍTULO VII – GESTAÇÃO
Em cima, esperava por eles Perpétua, aquela irmã de
Natividade, que a acompanhou ao Castelo, e lá ficou no carro, onde as deixei
para narrar os antecedentes dos meninos.
—Então? Houve muita gente?
—Não, ninguém, pulgas.
Perpétua também não entendera a escolha da igreja. Quanto à
concorrência, sempre lhe pareceu que seria pouca ou nenhuma; mas o cunhado
vinha entrando, e ela calou o resto. Era pessoa circunspecta, que não se perdia
por um dito ou gesto descuidado. Entretanto, foi lhe impossível calar o
espanto, quando viu o cunhado entrar e dar à mulher um abraço longo e terno,
abrochado por um beijo.
—Que é isso? exclamou espantada.
Sem reparar no vexame da mulher, Santos deu um abraço à
cunhada, e ia dar-lhe um beijo também, se ela não recuasse a tempo e com força.
—Mas que é isso? Você tirou a sorte grande de Espanha?
—Não, cousa melhor, gente nova.
Santos conservara alguns gestos e modos de dizer dos
primeiros anos, tais que o leitor não chamará propriamente familiares, também
não é preciso chamar-lhes nada. Perpétua, afeita a eles, acabou sorrindo e
dando-lhe parabéns. Já então Natividade os deixara para se ir despir. Santos,
meio arrependido da expansão, fez-se sério e conversou da missa e da igreja.
Concordou que esta era decrépita e metida a um canto, mas alegou razões
espirituais. Que a oração era sempre oração, onde quer que a alma falasse a
Deus. Que a missa, a rigor, não precisava estritamente de altar; o rito e o
padre bastavam ao sacrifício. Talvez essas razões não fossem propriamente dele,
mas ouvidas a alguém, decoradas sem esforço e repetidas com convicção. A
cunhada opinou de cabeça que sim. Depois falaram do parente morto e concordaram
piamente que era um asno; — não disseram este nome, mas a totalidade das
apreciações vinha a dar nele, acrescentado de honesto e honestíssimo.
—Era uma pérola, concluiu Santos.
Foi a última palavra da necrologia; paz aos mortos. Dali em
diante, vingou a soberania da criança que alvorecia. Não alteraram os hábitos,
nos primeiros tempos, e as visitas e os bailes continuaram como dantes, até que
pouco a pouco, Natividade se fechou totalmente em casa. As amigas iam vê-la. Os
amigos iam visitá-los ou jogar cartas com o marido.
Natividade queria um filho, Santos uma filha, e cada um
pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer.
Então ela ficava com a filha, e vestia-lhe as melhores rendas e cambraias,
enquanto ele enfiava uma beca no jovem advogado, dava-lhe um lugar no
parlamento, outro no ministério. Também lhe ensinava a enriquecer depressa; e
ajudá-lo-ia começando por uma caderneta na Caixa Econômica, desde o dia em que
nascesse até os vinte e um anos. Alguma vez, às noites, se estavam sós, Santos
pegava de um lápis e desenhava a figura do filho, com bigodes, — ou então
riscava uma menina vaporosa.
—Deixa, Agostinho, disse-lhe a mulher uma noite; você
sempre há de ser criança.
E pouco depois, deu por si a desenhar de palavra a figura
do filho ou filha, e ambos escolhiam a cor dos olhos, os cabelos, a tez, a
estatura. Vês que também ela era criança. A maternidade tem dessas
incoerências, a felicidade também, e por fim a esperança, que é a meninice do
mundo.
A perfeição seria nascer um casal. Assim os desejos do pai
e da mãe ficariam satisfeitos. Santos pensou em fazer sobre isso uma consulta
espírita. Começava a ser iniciado nessa religião, e tinha a fé noviça e firme.
Mas a mulher opôs-se; a consultar alguém, antes a cabocla do Castelo, a
adivinha célebre do tempo, que descobria as cousas perdidas e predizia as
futuras. Entretanto, recusava também, por desnecessário. A que vinha consultar
sobre uma dúvida, que dali a meses estaria esclarecida? Santos achou, em
relação à cabocla, que seria imitar as crendices da gente reles; mas a cunhada
acudiu que não, e citou um caso recente de pessoa distinta, um juiz municipal,
cuja nomeação foi anunciada pela cabocla.
—Talvez o ministro da Justiça goste da cabocla, explicou
Santos.
As duas riram da graça, e assim se fechou uma vez o
capítulo da adivinha, para se abrir mais tarde. Por agora é deixar que o feto
se desenvolva, a criança se agite e se atire, como impaciente de nascer. Em
verdade, a mãe padeceu muito durante a gestação, e principalmente nas últimas
semanas. Cuidava trazer um general que iniciava a campanha da vida, a não ser
um casal que aprendia a desamar de véspera.
CAPÍTULO VIII – NEM CASAL, NEM GENERAL
Nem casal, nem general. No dia sete de abril de 1870 veio à
luz um par de varões tão iguais, que antes pareciam a sombra um do outro, se
não era simplesmente a impressão do olho, que via dobrado.
Tudo esperavam, menos os dois gêmeos, e nem por ser o
espanto grande, foi menor o amor. Entende-se isto sem ser preciso insistir,
assim como se entende que a mãe desse aos dois filhos aquele pão inteiro e
dividido do poeta; eu acrescento que o pai fazia a mesma cousa. Viveu os primeiros
tempos a contemplar os meninos, a compará-los, a medi-los, a pesá-los. Tinham o
mesmo peso e cresciam por igual medida. A mudança ia-se fazendo por um só teor.
O rosto comprido, cabelos castanhos, dedos finos e tais que, cruzados os da mão
direita de um com os da esquerda de outro, não se podia saber que eram de duas
pessoas. Viriam a ter gênio diferente, mas por ora eram os mesmos estranhões.
Começaram a sorrir no mesmo dia. O mesmo dia os viu batizar.
Antes do parto tinham combinado em dar o nome do pai ou da
mãe, segundo fosse o sexo da criança. Sendo um par de rapazes, e não havendo a
forma masculina do nome materno, não quis o pai que figurasse só o dele, e
meteram-se a catar outros. A mãe propunha franceses ou ingleses, conforme os
romances que lia. Algumas novelas russas em moda sugeriram nomes eslavos. O pai
aceitava uns e outros, mas consultava a terceiros, e não acertava com opinião
definitiva. Geralmente, os consultados trariam outro nome, que não era aceito
em casa. Também veio a antiga onomástica lusitana, mas sem melhor fortuna. Um
dia. estando Perpétua à missa, rezou o Credo, advertiu nas palavras:
“…os santos apóstolos S. Pedro e S. Paulo”, e mal pôde acabar a
oração. Tinha descoberto os nomes; eram simples e gêmeos. Os pais concordaram
com ela e a pendência acabou.
A alegria de Perpétua foi quase tamanha como a do pai e da
mãe, se não maior. Maior não foi, nem tão profunda, mas foi grande, ainda que
rápida. O achado dos nomes valia quase que pela feitura das crianças. Viúva,
sem filhos, não se julgava incapaz de os ter, e era alguma cousa nomeá-los.
Contava mais cinco ou seis anos que a irmã. Casara com um tenente de artilharia
que morreu capitão na guerra do Paraguai. Era mais baixa que alta, e era gorda,
ao contrário de Natividade que, sem ser magra, não tinha as mesmas carnes, e
era alta e reta. Ambas vendiam saúde.
—Pedro e Paulo, disse Perpétua à irmã e ao cunhado, quando
rezei estes dois nomes, senti uma cousa no coração…
—Você será madrinha de um, disse a irmã.
Os pequenos, que se distinguiam por uma fita de cor,
passaram a receber medalhas de ouro, uma com a imagem de S. Pedro, outra com a
de S. Paulo. A confusão não cedeu logo, mas tarde, lento e pouco, ficando tal
semelhança que os advertidos se enganavam muita vez ou sempre. A mãe é que não
precisou de grandes sinais externos para saber quem eram aqueles dois pedaços
de si mesma. As amas, apesar de os distinguirem entre si, não deixavam de
querer mal uma à outra, pelo motivo da semelhança dos “seus filhos de
criação”. Cada uma afirmava que o seu era mais bonito. Natividade
concordava com ambas.
Pedro seria médico, Paulo advogado; tal foi a primeira
escolha das profissões. Mas logo depois trocaram de carreira. Também pensaram
em dar um deles à engenharia. A marinha sorria à mãe, pela distinção particular
da escola. Tinha só o inconveniente da primeira viagem remota; mas Natividade
pensou em meter empenhos com o ministro. Santos falava em fazer um deles
banqueiro, ou ambos. Assim passavam as horas vadias. Íntimos da casa entravam nos
cálculos. Houve quem os fizesse ministros, desembargadores, bispos, cardeais…
—Não peço tanto, dizia o pai.
Natividade não dizia nada ao pé de estranhos, apenas
sorria, como se tratasse de folguedo de São João, um lançar de dados e ler no
livro de sortes a quadra correspondente ao número. Não importa; lá dentro de si
cobiçava algum brilhante destino aos filhos. Cria deveras, esperava, rezava às
noites, pedia ao céu que os fizesse grandes homens.
Uma das amas, parece que a de Pedro, sabendo daquelas ânsias
e conversas, perguntou a Natividade por que é que não ia consultar a cabocla do
Castelo. Afirmou que ela adivinhava tudo, o que era e o que viria a ser;
conhecia o número da sorte grande, não dizia qual era nem comprava bilhete para
não roubar os escolhidos de Nosso Senhor. Parece que era mandada de Deus.
A outra ama confirmou as notícias e acrescentou novas.
Conhecia pessoas que tinham perdido e achado joias e escravos. A polícia mesma,
quando não acabava de apanhar um criminoso, ia ao Castelo falar à cabocla e
descia sabendo; por isso é que não a botava para fora, como os invejosos
andavam a pedir. Muita gente não embarcava sem subir primeiro ao morro. A
cabocla explicava sonhos e pensamentos, curava de quebranto…
Ao jantar, Natividade repetiu ao marido a lembrança das
amas. Santos encolhia os ombros. Depois examinou rindo a sabedoria da cabocla;
principalmente a sorte grande era incrível que, conhecendo o número, não
comprasse bilhete. Natividade achou que era o mais difícil de explicar, mas
podia ser invenção do povo. On ne prete
qu’aux riches, acrescentou rindo. O marido, que estivera na véspera com um
desembargador, repetiu as palavras dele que “enquanto a polícia não
pusesse cobro ao escândalo…” O desembargador não concluíra. Santos
concluiu com um gesto vago.
—Mas você é espírita, ponderou a mulher.
—Perdão, não confundamos, replicou ele com gravidade.
Sim, podia consentir numa consulta espírita; já pensara
nela Algum espírito podia dizer-lhe a verdade em vez de uma adivinha de
farsa… Natividade defendeu a cabocla. Pessoas da sociedade falavam dela a
sério. Não queria confessar ainda que tinha fé, mas tinha. Recusando ir
outrora, foi naturalmente a insuficiência do motivo que lhe deu a força
negativa. Que importava saber o sexo do filho? Conhecer o destino dos dois era
mais imperioso e útil. Velhas ideias que lhe incutiram em criança vinham agora
emergindo do cérebro e descendo ao coração. Imaginava ir com os pequenos ao
morro do Castelo, a título de passeio… Para quê? Para confirmá-la na esperança
de que seriam grandes homens. Não lhe passara pela cabeça a predição contrária.
Talvez a leitora, no mesmo caso, ficasse aguardando o destino; mas a leitora,
além de não crer (nem todos creem) pode ser que não conte mais de vinte a vinte
e dois anos de idade, e terá a paciência de esperar. Natividade, de si para si,
confessava os trinta e um, e temia não ver a grandeza dos filhos. Podia ser que
a visse, pois também se morre velha, e alguma vez de velhice, mas acaso teria o
mesmo gosto?
Ao serão, a matéria da palestra foi a cabocla do Castelo,
por iniciativa de Santos, que repetia as opiniões da véspera e do jantar. Das
visitas algumas contavam o que ouviam dela. Natividade não dormiu aquela noite
sem obter do marido que a deixasse ir com a irmã à cabocla. Não se perdia nada,
bastava levar os retratos dos meninos e um pouco dos cabelos. As amas não
saberiam nada da aventura.
No dia aprazado meteram-se as duas no carro, entre sete e
oito horas com pretexto de passeio, e lá se foram para a Rua da Misericórdia.
Sabes já que ali se apearam, entre a igreja de S. José e a Câmara dos
Deputados, e subiram aquela até à Rua do Carmo, onde esta pega com a ladeira do
Castelo. Indo a subir, hesitaram, mas a mãe era mãe, e já agora faltava pouco
para ouvir o destino. Viste que subiram, que desceram, deram os dois mil réis
às almas, entraram no carro e voltaram para Botafogo.
CAPÍTULO IX – VISTA DE PALÁCIO
No catete, o coupé e uma vitória cruzaram-se e pararam a um
tempo. Um homem saltou da vitória e caminhou para o coupé. Era o marido de
Natividade, que ia agora para o escritório, um pouco mais tarde que de costume,
por haver esperado a volta da mulher. Ia pensando nela e nos negócios da praça,
nos meninos e na Lei Rio Branco, então discutida na Câmara dos Deputados; o banco
era credor da lavoura. Também pensava na cabocla do Castelo e no que teria dito
à mulher…
Ao passar pelo palácio Nova Friburgo, levantou os olhos
para ele com o desejo do costume, uma cobiça de possuí-lo, sem prever os altos
destinos que o palácio viria a ter na República; mas quem então previa nada?
Quem prevê cousa nenhuma? Para Santos a questão era só possuí-lo, dar ali
grandes festas únicas, celebradas nas gazetas, narradas na cidade entre amigos
e inimigos, cheios de admiração, de rancor ou de inveja. Não pensava nas
saudades que as matronas futuras contariam às suas netas, menos ainda nos
livros de crônicas, escritos e impressos neste outro século. Santos não tinha a
imaginação da posteridade. Via o presente e suas maravilhas.
Já lhe não bastava o que era. A casa de Botafogo, posto que
bela, não era um palácio, e depois, não estava tão exposta como aqui no Catete,
passagem obrigada de toda a gente, que olharia para as grandes janelas, as
grandes portas, as grandes águias no alto, de asas abertas. Quem viesse pelo
lado do mar, veria as costas do palácio, os jardins e os lagos… Oh! gozo
infinito! Santos imaginava os bronzes, mármores, luzes, flores, danças,
carruagens, músicas, ceias… Tudo isso foi pensado depressa, porque a vitória,
embora não corresse (os cavalos tinham ordem de moderar a andadura), todavia,
não atrasava as rodas para que os sonhos de Santos acabassem. Assim foi que,
antes de chegar à Praia da Glória, a vitória avistou o coupé da família, e as
duas carruagens pararam, a curta distância uma da outra, como ficou dito.
CAPÍTULO X – O JURAMENTO
Também ficou dito que o marido saiu da vitória e caminhou
para o coupé, onde a mulher e a cunhada, adivinhando que ele vinha ter com
elas, sorriam de antemão.
—Não lhe digas nada, aconselhou Perpétua.
A cabeça de Santos apareceu logo, com as suíças curtas, o
cabelo rente, o bigode rapado. Era homem simpático. Quieto, não ficava mal. A
agitação com que chegou, parou e falou, tirou-lhe a gravidade com que ia no
carro, as mãos postas sobre o castão de ouro da bengala, e a bengala entre os
joelhos.
—Então? então? perguntou.
—Logo digo.
—Mas que foi?
—Logo.
—Bem ou mal? Dize só se bem.
—Bem. Cousas futuras.
—Si pessoa séria?
—Séria, sim: até logo. repetiu Natividade estendendo-lhe os
dedos.
Mas o marido não podia despegar-se do coupé; queria saber
ali mesmo tudo, as perguntas e as respostas, a gente que lá estava à espera, e
se era o mesmo destino para os dois, ou se cada um tinha o seu. Nada disso foi
escrito como aqui vai, devagar, para que a ruim letra do autor não faça mal à
sua prosa. Não, senhor; as palavras de Santos saíram de atropelo, umas sobre
outras, embrulhadas, sem princípio ou sem fim. A bela esposa tinha já as
orelhas tão afeitas ao falar do marido, mormente em lances de emoção ou curiosidade,
que entendia tudo, e ia dizendo que não. A cabeça e o dedo sublinhavam a
negativa. Santos não teve remédio e despediu-se.
Em caminho, advertiu que, não crendo na cabocla, era ocioso
instar pela predição. Era mais; era dar razão à mulher. Prometeu não indagar
nada quando voltasse. Não prometeu esquecer, e daí a teima com que pensou
muitas vezes no oráculo. De resto, elas lhe diriam tudo sem que ele perguntasse
nada, e esta certeza trouxe a paz do dia.
Não concluas daqui que os fregueses do banco padecessem
alguma desatenção aos seus negócios. Tudo correu bem, como se ele não tivesse
mulher nem filhos ou não houvesse Castelo nem cabocla Não era só a mão que
fazia o seu ofício, assinando; a boca ia falando, mandando, chamando e rindo,
se era preciso. Não obstante! a ânsia existia e as figuras passavam e
repassavam diante dele; no intervalo de duas letras, Santos resolvia uma cousa
ou outra, se não eram ambas a um tempo. Entrando no carro, à tarde, agarrou-se
inteiramente ao oráculo. Trazia as mãos sobre o castão, a bengala entre os
joelhos, como de manhã, mas vinha pensando no destino dos filhos.
Quando chegou a casa, viu Natividade a contemplar os
meninos, ambos nos berços, as amas ao pé, um pouco admiradas da insistência com
que ela os procurava desde manhã. Não era só fitá-los, ou perder os olhos no
espaço e no tempo; era beijá-los também e apertá-los ao coração. Esqueceu-me
dizer que, de manhã, Perpétua mudou primeiro de roupa que a irmã e foi achá-la
diante dos berços, vestida como viera do Castelo.
—Logo vi que você estava com os grandes homens, disse ela.
—Estou, mas não sei em que é que eles serão grandes.
—Seja em que for, vamos almoçar.
Ao almoço e durante o dia. falaram muita vez da cabocla e
da predição. Agora, ao ver entrar o marido, Natividade leu-lhe a dissimulação
nos olhos. Quis calar e esperar, mas estava tão ansiosa de lhe dizer tudo, e
era tão boa, que resolveu o contrário. Unicamente não teve o tempo de
cumpri-lo; antes mesmo de começar, já ele acabava de perguntar o que era. Natividade
referiu a subida, a consulta, a resposta e o resto; descreveu a cabocla e o
pai.
—Mas então grandes destinos!
—Cousas futuras, repetiu ela.
—Seguramente futuras. Só a pergunta da briga é que não
entendo. Brigar por quê? E brigar como? E teriam deveras brigado?
Natividade recordou os seus padecimentos do tempo da
gestação, confessando que não falou mais deles para o não afligir; naturalmente
é o que a outra adivinhou que fosse briga.
—Mas briga por quê?
—Isso não sei, nem creio que fosse nada mau.
—Vou consultar…
—Consultar a quem?
—Uma pessoa.
—Já sei, o seu amigo Plácido.
—Se fosse só amigo não consultava, mas ele é o meu chefe e
mestre, tem uma vista clara e comprida, dada pelo céu… Consulto só por
hipótese, não digo os nossos nomes…
—Não! Não!? Não!
—Só por hipótese.
—Não, Agostinho, não fale disto. Não interrogue ninguém a
meu respeito, ouviu? Ande, prometa que não falará disto a ninguém, espíritas
nem amigos. O melhor é calar. Basta saber que terão sorte feliz. Grandes
homens, cousas futuras… Jure, Agostinho.
—Mas você não foi em pessoa à cabocla?
—Não me conhece, nem de nome; viu-me uma vez, não me
tornará a ver. Ande, jure!
—Você é esquisita. Vá lá, prometo. Que tem que falasse,
assim, por acaso?
—Não quero. Jure!
—Pois isto é cousa de juramento?
—Sem isso, não confio, disse ela sorrindo.
—Juro.
—Jure por Deus Nosso Senhor!
—Juro por Deus Nosso Senhor!
CAPÍTULO XI – UM CASO ÚNICO!
Santos cria na santidade do juramento; por isso, resistiu,
mas enfim cedeu e jurou. Entretanto, o pensamento não lhe saiu mais da briga
uterina dos filhos. Quis esquecê-la. Jogou essa noite, como de costume; na
seguinte, foi ao teatro; na outra a uma visita; e tornou ao voltarete do
costume, e a briga sempre com ele. Era um mistério. Talvez fosse um caso único…
único! Um caso único! A singularidade do caso fê-lo agarrar-se mais à ideia, ou
a ideia a ele, não posso explicar melhor este fenômeno íntimo, passado lá onde
não entra olho de homem, nem bastam reflexões ou conjeturas. Nem por isso durou
muito tempo. No primeiro domingo, Santos pegou em si, e foi à casa do doutor
Plácido, Rua do Senador Vergueiro, uma casa baixa, de três janelas, com muito
terreno para o lado do mar. Creio que já não exista. datava do tempo em que a
rua era o Caminho Velho, para diferençar do Caminho Novo.
Perdoa estas minúcias. A ação podia ir sem elas, mas eu
quero que saibas que casa era, e que rua, e mais digo que ali havia uma espécie
de clube, templo ou que quer que era espírita. Plácido fazia de sacerdote e
presidente a um tempo. Era um velho de grandes barbas. olho azul e brilhante,
enfiado em larga camisola de seda. Põe-lhe uma vara na mão, e fica um mágico,
mas, em verdade, as barbas e a camisola não as trazia por lhe darem tal
aspecto. Ao contrário de Santos, que teria trocado dez vezes a cara, se não
fora a oposição da mulher Plácido usava as barbas inteiras desde moço e a
camisola há dez anos.
—Venha, venha, disse ele, ande ajudar-me a converter o
nosso amigo Aires; há meia hora que procuro incutir-lhe as verdades eternas,
mas ele resiste.
—Não, não, não resisto, acudiu um homem de cerca de
quarenta anos, estendendo a mão ao recém-chegado.
CAPÍTULO XII – ESSE AIRES
Esse Aires que aí aparece conserva ainda agora algumas das
virtudes daquele tempo, e quase nenhum vício. Não atribuas tal estado a
qualquer propósito. Nem creias que vai nisto um pouco de homenagem à modéstia
da pessoa. Não, senhor, é verdade pura e natural efeito. Apesar dos quarenta
anos, ou quarenta e dois, e talvez por isso mesmo, era um belo tipo de homem.
Diplomata de carreira, chegara dias antes do Pacífico, com uma licença de seis
meses.
Não me demoro em descrevê-lo. Imagina só que trazia o calo
do ofício, o sorriso aprovador, a fala brande a cautelosa, o ar da ocasião, a
expressão adequada, tudo tão bem distribuído que era um gosto ouvi-lo e vê-lo.
Talvez a pele da cara rapada estivesse prestes a mostrar os primeiros sinais do
tempo. Ainda assim o bigode, que era moço na cor e no apuro com que acabava em
ponta fina e rija, daria um ar de frescura ao rosto, quando o meio século
chegasse. O mesmo faria o cabelo, vagamente grisalho, apartado ao centro. No
alto da cabeça havia um início de calva. Na botoeira uma flor eterna.
Tempo houve, — foi por ocasião da anterior licença, sendo
ele apenas secretário de legação, — tempo houve em que também ele gostou de
Natividade. Não foi propriamente paixão; não era homem disso. Gostou dela, como
de outras joias e raridades, mas tão depressa viu que não era aceito, trocou de
conversação. Não era frouxidão ou frieza. Gostava assaz de mulheres e ainda
mais se eram bonitas A questão para ele é que nem as queria à força, nem curava
de as persuadir. Não era general para escala à vista, nem para assédios
demorados; contentava-se de simples passeios militares, — longos ou breves, conforme
o tempo fosse claro ou turvo. Em suma, extremamente cordato.
Coincidência interessante: foi por esse tempo que Santos
pensou em casá-lo com a cunhada, recentemente viúva. Esta parece que queria.
Natividade opôs-se, nunca se soube por quê. Não eram ciúmes; invejas não creio
que fossem. O simples desejo de o não ver entrar na família pela porta lateral
é apenas uma figura, que vale qualquer das primeiras hipóteses negadas. O
desgosto de cedê-lo a outra, ou tê-los felizes ao pé de si, não podia ser. posto
que o coração seja o abismo dos abismos. Suponhamos que era com o fim de o
punir por havê-la amado.
Pode ser; em todo caso, o maior obstáculo viria dele mesmo.
Posto que viúvo, Aires não foi propriamente casado. Não amava o casamento.
Casou por necessidade do ofício; cuidou que era melhor ser diplomata casado que
solteiro, e pediu a primeira moça que lhe pareceu adequada ao seu destino.
Enganou-se: a diferença de temperamento e de espírito era tal que ele, ainda
vivendo com a mulher, era como se vivesse só. Não se afligiu com a perda; tinha
o feitio do solteirão.
Era cordato, repito, embora esta palavra não exprima
exatamente o que quero dizer. Tinha o coração disposto a aceitar tudo, não por
inclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia. Para conhecer esta
aversão, bastava tê-lo visto entrar, antes, em visita ao casal Santos. Pessoas
de fora e da família conversavam da cabocla do Castelo.
—Chega a propósito, conselheiro, disse Perpétua. Que pensa
o senhor da cabocla do Castelo?
Aires não pensava nada, mas percebeu que os outros pensavam
alguma cousa, e fez um gesto de dois sexos. Como insistissem, não escolheu
nenhuma das duas opiniões, achou outra, média, que contentou a ambos os lados,
cousa rara em opiniões médias. Sabes que o destino delas é serem de
desdenhadas. Mas este Aires, — José da Costa Marcondes Aires, — tinha que nas
controvérsias uma opinião dúbia ou média pode trazer a oportunidade de uma
pílula, e compunha as suas de tal jeito, que o enfermo, se não sarava, não
morria, e é o mais que fazem pílulas. Não lhe queiras mal por isso; a droga
amarga engole-se com açúcar. Aires opinou com pausa, delicadeza, circunlóquios,
limpando o monóculo ao lenço de seda, pingando as palavras a graves e obscuras,
fitando os olhos no ar, como quem busca uma lembrança, e achava a lembrança, e
arredondava com ela o parecer. Um dos ouvintes aceitou-o logo, outro divergiu
um pouco e acabou de acordo, assim terceiro, e quarto, e a sala toda.
Não cuides que não era sincero, era-o. Quando não acertava
de ter a mesma opinião, e valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava também
guardar por escrito as descobertas, observações, reflexões críticas e anedotas,
tendo para isso uma série de cadernos, a que dava o nome de Memorial. Naquela
noite escreveu estas linhas: “Noite em casa da família Santos, sem
voltarete. Falou-se na cabocla do Castelo. Desconfio que Natividade ou a irmã
quer consultá-la; não será decerto a meu respeito.
Natividade e um Padre Guedes que lá estava, gordo e maduro
eram as únicas pessoas interessantes da noite. O resto insípido, mas insípido
por necessidade, não podendo ser outra cousa mais que insípido. Quando o padre
e Natividade me deixavam entregue à insipidez dos outros, eu tentava fugir-lhe
pela memória, recordando sensações, revivendo quadros, viagens, pessoas. Foi
assim que pensei na Capponi, a quem vi hoje pelas costas, na Rua da Quitanda.
Conheci-a aqui no finado Hotel de D. Pedro, lá vão anos. Era dançarina; eu
mesmo já a tinha visto dançar em Veneza. Pobre Capponi! Andando o pé esquerdo saía-lhe
do sapato e mostrava no calcanhar da meia um buraquinho de saudade.
Afinal tornei à eterna insipidez dos outros. Não acabo de
crer como é que esta senhora, aliás tão fina, pode organizar noites como a de
hoje. Não é que os outros não buscassem ser interessantes, e, se intenções
valessem, nenhum livro os valeria; mas não o eram. por mais que tentassem.
Enfim, lá vão; esperemos outras noites que tragam melhores sujeitos sem esforço
algum. O que o berço dá só a cova o tira, diz um velho adágio nosso. Eu posso,
truncando um verso ao meu Dante, escrever de tais insípidos:
Dico, que quando l’anima mal nata…
CAPÍTULO XIII – A EPÍGRAFE
Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe
quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de
completar as pessoas da narração com as ideias que deixarem, mas ainda um par
de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou
totalmente escuro.
Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha
história colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade
espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trabalhos.
Se aceitas a comparação, distinguirás o rei e a dama, o
bispo e o cavalo, sem que o cavalo possa fazer de torre, nem a torre de peão.
Há ainda. a diferença da cor, branca e preta, mas esta não tira o poder da
marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a partida, e assim vai
o mundo. Talvez conviesse pôr aqui, de quando em quando, como nas publicações
do jogo, um diagrama das posições belas ou difíceis. Não havendo tabuleiro, é
um grande auxílio este processo para acompanhar os lances, mas também pode ser
que tenhas visão bastante para reproduzir na memória as situações diversas.
Creio que sim. Fora com diagramas! Tudo irá como se realmente visses jogar a
partida entre pessoa e pessoa, ou mais claramente, entre Deus e o Diabo.
CAPÍTULO XIV – A LIÇÃO DO DISCÍPULO
—Fique, fique, conselheiro, disse Santos apertando a mão ao
diplomata. Aprenda as verdades eternas.
—Verdades
eternas pedem horas eternas, ponderou este, consultando o relógio.
Um tal Aires não era fácil de convencer. Plácido falou-lhe
de leis científicas para excluir qualquer mácula de seita, e Santos foi com
ele. Toda a terminologia espírita saiu fora, e mais os casos, fenômenos,
mistérios, testemunhos, atestados verbais e escritos… Santos acudiu com um
exemplo: dois espíritos podiam tornar juntos a este mundo; e, se brigassem
antes de nascer?
—Antes de nascer, crianças não brigam, replicou Aires,
temperando o sentido afirmativo com a entonação dubitativa.
—Então nega
que dois espíritos? …Essa cá me fica, conselheiro! Pois que impede que dois
espíritos?…
Aires viu o abismo da controvérsia, e forrou-se à vertigem
por uma concessão, dizendo:
—Esaú e Jacó brigaram no seio materno, isso é verdade.
Conhece-se a causa do conflito. Quanto a outros, dado que briguem também, tudo
está em saber a causa do conflito, e não a sabendo, porque a Providência a
esconde da notícia humana… Se fosse uma causa espiritual, por exemplo…
—Por exemplo?
—Por exemplo, se as duas crianças quiserem ajoelhar-se ao
mesmo tempo para adorar o Criador. Aí está um caso de conflito, mas de conflito
espiritual, cujos processos escapam à sagacidade humana. Também poderia ser um
motivo temporal. Suponhamos a necessidade de se acotovelarem para ficar melhor
acomodados; é uma hipótese que a ciência aceitaria; isto. não sei… Há ainda o
caso de quererem ambos a primogenitura.
—Para quê? perguntou Plácido.
—Conquanto este privilégio esteja hoje limitado às famílias
régias, à câmara dos lords e não sei se mais, tem todavia um valor simbólico. O
simples gosto de nascer primeiro, sem outra vantagem social ou política, pode
dar-se por instinto, principalmente se as crianças se destinarem a galgar os
altos deste mundo.
Santos afiou o ouvido neste ponto, lembrando-se das
“cousas futuras”. Aires disse ainda algumas palavras bonitas, e
acrescentou outras feias, admitindo que a briga podia ser. prenuncio de graves
conflitos na terra; mas logo temperou esse conceito com este outro:
—Não importa; não esqueçamos o que dizia um antigo, que
“a guerra é a mãe de todas as cousas”. Na minha opinião, Empédocles,
referindo-se à guerra, não o fez só no sentido técnico. O amor, que é a
primeira das artes da paz, pode-se dizer que é um duelo, não de morte, mas de
vida, — concluiu Aires sorrindo leve, como falava baixo, e despediu-se.
CAPÍTULO XV – TESTE DAVID CUM SIBYLLA
—E Então? disse Santos. Não é que o conselheiro, em vez de
aprender, ensina-nos? Eu acho que ele deu algumas razões boas.
—Quando menos, plausíveis, completou mestre Plácido.
—Foi pena que se despedisse, continuou Santos, mas
felizmente o meu caso é com o senhor. Venho consultá-lo, e as suas luzes são as
verdadeiras do mundo.
Plácido agradeceu sorrindo. Não era novo o elogio, ao
contrário;
mas ele estava tão acostumado a ouvi-lo que o sorriso era
já agora um sestro. Não podia deixar de pagar com essa moeda aos seus
discípulos.
—Trata-se…
—Trata-se disto. Aquela história que eu formulei é um fato
real; sucedeu com os meus filhos.
—Como?
—É o que me parece, e vim justamente para que me explique.
Nunca lhe falei por temer que achasse absurdo, mas tenho pensado, e suspeito
que tal briga se deu, e que é um caso extraordinário.
Santos expôs então a consulta, gravemente, com um gesto
particular que tinha de arregalar os olhos para arregalar a novidade. Não
esqueceu nem escondeu nada; contou a própria ida da mulher ao Castelo, com
desdém, é verdade, mas ponto por ponto. Plácido ouvia atento, perguntando,
voltando atrás, e acabou por meditar alguns minutos. Enfim, declarou que o
fenômeno, caso se houvesse dado, era raro, se não único, mas possível. Já o
fato de se chamarem Pedro e Paulo indicava alguma rivalidade, porque esses dois
apóstolos brigaram também.
—Perdão, mas o batismo…
—Foi posterior, sei, mas os nomes podem ter sido
predestinados, tanto mais que a escolha dos nomes veio, como o senhor me disse,
por inspiração à tia dos meninos.
—Justamente.
—D. Perpétua é muito devota.
—Muito.
—Creio que os próprios espíritos de S. Pedro e S. Paulo
houvessem escolhido aquela senhora para inspirar os nomes que estão no Credo;
advirta que ela reza muitas vezes o Credo, mas foi naquela ocasião que se
lembrou deles.
—Exato, exato!
O doutor foi à estante e tirou uma Bíblia, encadernada em
couro, com grandes fechos de metal. Abriu a Epístola de S. Paulo aos Gálatas, e
leu a passagem do capítulo II, versículo 11, em que o após tolo conta que, indo
a Antioquia, onde estava S. Pedro, “resistiu-lhe na cara”.
Santos leu e teve uma ideia. As ideias querem-se
festejadas, quando são belas, e examinadas, quando novas; a dele era a um tempo
nova e bela. Deslumbrado, ergueu a mão e deu uma palmada na folha, bradando:
—Sem contar que este número onze do versículo, composto de
dois algarismos iguais, 1 e 1, é um número gêmeo, não lhe parece?
—Justamente. E mais: o capítulo é o segundo, isto é, dois,
que é o próprio número dos irmãos gêmeos.
Mistério engendra mistério. Havia mais de um elo íntimo,
substancial, escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos gêmeos,
números gêmeos, tudo eram águas de mistério que eles agora rasgavam, nadando e
bracejando com força. Santos foi mais ao fundo; não seriam os dois meninos os
próprios espíritos de S. Pedro e de S. Paulo, que renasciam agora, e ele, pai
dos dois apóstolos?… A fé transfigura; Santos tinha um ar quase divino,
trepou em si mesmo, e os olhos, ordinariamente sem expressão, pareciam entornar
a chama da vida. Pai de apóstolos! E que apóstolos! Plácido esteve quase, quase
a crer também, achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do
infinito se perdiam, mas logo lhe acudia que es espíritos de S. Pedro e S.
Paulo tinham chegado à perfeição; não tornariam cá. Não importa; seriam outros,
grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser brilhantes; tinha razão a
cabocla, sem saber o que dizia.
—Deixe às senhoras as suas crenças da meninice, concluiu;
se elas têm fé na tal mulher do Castelo, e acham que é um veículo de verdade,
não as desminta por hora. Diga-lhes que eu estou de acordo com o seu oráculo.
Teste David cum Sibylla.
—Digo, digo! escreva a frase.
Plácido foi à secretária, escreveu o verso, e deu-lhe o
papel, mas já então Santos advertira que mostrá-lo à mulher era confessar a
consulta espírita, e naturalmente o perjúrio. Referiu ao amigo os escrúpulos de
Natividade e pediu que calassem tudo.
—Estando com ela, não lhe diga o que se passou entre nós.
Saiu logo depois, arrependido da indiscrição, mas
deslumbrado da revelação. Ia cheio de números da Escritura, de Pedro e Paulo,
de Esaú e Jacó. O ar da rua não espanou a poeira do mistério; ao contrário, o
céu azul, a praia sossegada, os montes verdes como que o cercavam e cobriam de
um véu mais transparente e infinito. A rixa dos meninos, fato raro ou único,
era uma distinção divina. Contrariamente à esposa, que cuidava somente da
grandeza futura dos filhos, Santos pensava no conflito passado.
Entrou em casa, correu aos pequenos, e acarinhou-os com tão
estranha expressão, que a mãe desconfiou alguma cousa, e quis saber o que era.
—Não é nada, respondeu ele rindo.
—É! alguma cousa, anda, acaba.
—Que há de ser?
—Seja o que for, Agostinho, acaba.
Santos pediu-lhe que se não zangasse, e contou tudo, a
sorte, a rixa, a Escritura, os apóstolos, o símbolo, tudo tão espalhadamente,
que ela mal pôde entender, mas entendeu ao final, e replicou com os dentes
cerrados:
—Ah! você! você!
—Perdoa, amiguinha, estava tão ansioso de saber a
verdade… E nota que eu creio na cabocla, e o doutor também; ele até me
escreveu isto em latim, concluiu tirando e lendo o papelinho: Teste David cum
Sibylla.
CAPÍTULO XVI – PATERNALISMO
Daí A pouco, Santos pegou na mão da mulher, que a deixou ir
à toa, sem apertar a dele; ambos fitavam os meninos, tendo esquecido a zanga
para só ficarem pais.
Já não era espiritismo, nem outra religião nova; era a mais
velha de todas, fundada por Adão e Eva, à qual chama, se queres, paternalismo.
Rezavam sem palavras, persignavam-se sem dedos, uma espécie de cerimônia quieta
e muda, que abrangia o passado e o futuro. Qual deles era o padre, qual o
sacristão, não sei, nem é preciso. A missa é que era a mesma, e o evangelho
começava como o de S. João (emendado): “No princípio era o amor, e o amor
se fez carne”. Mas venhamos aos nossos gêmeos.
CAPÍTULO XVII – TUDO O QUE RESTRINJO
Os gêmeos, não tendo que fazer, iam mamando. Nesse ofício
portavam-se sem rivalidade, a não ser quando as amas estavam às boas, e eles
mamavam ao pé um do outro; cada qual então parecia querer mostrar que mamava
mais e melhor, passeando os dedos pelo seio amigo, e chupando com alma. Elas, à
sua partes tinham glória dos peitos e os comparavam entre si; os pequenos,
fartos, soltavam afinal os bicos e riam para elas.
Se não fosse a necessidade de pôr os meninos em pé ,
crescidos e homens, espraiava este capítulo. Realmente, o espetáculo, posto que
comum, era belo. Os peraltas nutriam-se ao contrário dos pais, sem as artes do
cozinheiro, nem a vista das comidas e bebidas, todas postas em cristais e
porcelanas para emendar ou colorir a dura necessidade de comer. A eles nem se
lhes via a comida; a boca ligada ao peito não deixava aparecer o leite. A
natureza mostrava-se satisfeita pelo riso ou pelo sono. Quando era o sono, cada
uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa. Este cotejo
dar-me-ia três ou quatro páginas sólidas.
Uma página bastava para os chocalhos que embelezavam os
pequenos, como se fosse a própria música do céu. Eles sorriam, estendiam as
mãos, alguma vez zangavam-se com as negaças, mas tanto que lhos davam,
calavam-se, e se não podiam tocar não se zangavam por isso. A propósito de
chocalhos, diria que esses instrumentos não deixam memória de si; alguém que os
veja em mãos de crianças, se parecer que lhe lembram os seus, que logo no
engano, e adverte que a recordação há de ser mais recente, alguma arenga do ano
passado, se não foi a vaca de leite da véspera.
A operação de desmamar, podia fazer-se em meia linha, mas
as lástimas das amas, as despedidas, as bichas de ouro que a mãe deu a cada uma
delas, como um presente final, tudo isso exigia uma boa página ou mais. Poucas
linhas bastariam para as amas-secas, por quanto não diria se eram altas nem
baixas, feias ou bonitas. Eram mansas, zelosas do ofício, amigas dos pequenos,
e logo uma da outra Cavalinhos de pau, bandeirolas, teatros de bonecos,
barretinas e tambores, toda a quinquilharia da infância ocuparia muito mais que
o lugar de seus nomes.
Tudo isso restrinjo só para não enfadar a leitora curiosa
de ver os meus meninos homens e acabados. Vamos vê-los, querida. Com pouco,
estão crescidos e fortes. Depois, entrego-os a si mesmos; eles que abram a
ferro ou língua, ou simples cotovelos, o caminho da vida e do mundo.
CAPÍTULO XVIII – DE COMO VIERAM CRESCENDO
Hei-los que vêm crescendo. A semelhança, sem os confundir
já, continuava a ser grande. Os mesmos olhos claros e atentos, a mesma boca
cheia de graça, as mãos finas, e uma cor viva nas faces que as fazia crer
pintadas de sangue. Eram sadios; excetuada a crise dos dentes, não tiveram
moléstia alguma, porque eu não conto uma ou outra indigestão de doces, que os
pais lhes davam, ou eles tiravam às escondidas. Eram ambos gulosos, Pedro mais
que Paulo, e Paulo mais que ninguém.
Aos sete anos eram duas obras-primas, ou antes uma só em
dois volumes, como quiseres. Em verdade, não havia por toda aquela praia, nem
por Flamengos ou Glórias, Cajus e outras redondezas, não havia uma, quanto mais
duas crianças tão graciosas. Nota que eram também robustos. Pedro com um murro
derrubava Paulo; em compensação, Paulo com um pontapé deitava Pedro ao chão.
Corriam muito na chácara por aposta. Alguma vez quiseram trepar às árvores, mas
a mãe não consentia; não era bonito. Contentavam-se de espiar cá de baixo a
fruta.
Paulo era mais agressivo, Pedro mais dissimulado, e, como
ambos acabavam por comer a fruta das árvores, era um moleque que a ia buscar
acima, fosse a cascudo de um ou com promessa de outro. A promessa não se
cumpria nunca; o cascudo, por ser antecipado, cumpria-se sempre, e às vezes com
repetição depois do serviço. Não digo com isto que um e outro dos gêmeos não
soubessem agredir e dissimular; a diferença é que cada um sabia melhor o seu
gosto, cousa tão óbvia que custa escrever.
Obedeciam aos pais sem grande esforço, posto fossem
teimosos. Nem mentiam mais que outros meninos da cidade. Ao cabo, a mentira é
alguma vez meia virtude. Assim é que, quando eles disseram não ter visto furtar
um relógio da mãe, presente do pai, quando eram noivos, mentiram
conscientemente, porque a criada que o tirou foi apanhada por eles em plena
ação de furto. Mas era tão amiga deles! e com tais lágrimas lhes pediu que não
dissessem a ninguém, que os gêmeos negaram absolutamente ter visto nada.
Contavam sete anos. Aos nove, quando já a moça ia longe, é que descobriram, não
sei a que propósito, o caso escondido. A mãe quis saber por que é que eles
calaram outrora; não souberam explicar-se, mas é claro que o silêncio de 1878
foi obra da afeição e da Piedade, e daí a meia virtude, porque é alguma cousa
pagar amor com amor. Quanto à revelação de 1880 só se pode explicar pela
distância do tempo. Já não estava presente a boa Miquelina; talvez já estivesse
morta. Demais, veio tão naturalmente a referência…
—Mas, por que é que vocês até agora não me disseram?
teimava a mãe.
Não sabendo mais que razão dessem, um deles, creio que
Pedro, resolveu acusar o irmão:
—Foi ele, mamãe!
—Eu? redarguiu Paulo. Foi ele, mamãe, ele é que não disse
nada.
—Foi você!
—Foi você! Não minta!
—Mentiroso é ele!
Cresceram um para o outro. Natividade acudiu prestemente,
não tanto que impedisse a troca dos primeiros murros. Segurou-lhe os braços a
tempo de evitar outros, e, em vez de os castigar ou ameaçar, beijou-os com
tamanha ternura que eles não acharam melhor ocasião de lhe pedir doce. Tiveram
doce; tiveram também um passeio, à tarde, no carrinho do pai.
Na volta estavam amigos ou reconciliados.
Contaram à mãe o passeio, a gente da rua, as outras crianças que olhavam para
eles com inveja, uma que metia o dedo na boca, outra no nariz, e as moças que
estavam às janelas, algumas que os acharam bonitos. Neste último ponto
divergiam, porque cada um deles tomava para si só as admirações, mas a mãe
interveio:
—Foi para
ambos. Vocês são tão parecidos, que não podia senão para ambos. E sabem por que
é que as moças elogiaram vocês? Foi por ver que iam amigos, chegadinhos um ao
outro. Meninos bonitos não brigam, ainda menos sendo irmãos. Quero vê-los
quietos e amigos, brincando juntos sem rusga nem nada. Estão entendendo?
Pedro respondeu que sim; Paulo esperou que a mãe repetisse
a pergunta, e deu igual resposta. Enfim, porque esta mandasse, abraçaram-se,
mas foi um abraçar sem gosto, sem força, quase sem braços; encostaram-se um ao
outro, estenderam as mãos às costas do irmão, e deixaram-nas cair.
De noite, na alcova, cada um deles concluiu para si que
devia os obséquios daquela tarde, o doce, os beijos e o carro, à briga que
tiveram, e que outra briga podia render tanto ou mais. Sem palavras, como um
romance ao piano, resolveram ir à cara um do outro, na primeira ocasião. Isto
que devia ser um laço armado à ternura da mãe, trouxe ao coração de ambos uma
sensação particular, que não era só consolo e desforra do soco recebido naquele
dia. mas também satisfação de um desejo íntimo, profundo, necessário. Sem ódio,
disseram ainda algumas palavras de cama a cama, riram de uma ou outra lembrança
da rua, até que o sono entrou com os seus pés de lã e bico calado, e tomou
conta da alcova inteira.
CAPÍTULO XIX – APENAS DUAS. — QUARENTA ANOS. TERCEIRA CAUSA
Um dos meus propósitos neste livro é não lhe pôr lágrimas.
Entretanto, não posso calar as duas que rebentaram certa vez dos olhos de
Natividade depois de uma rixa dos pequenos. Apenas duas, e foram morrer-lhe aos
cantos da boca. Tão depressa as verteu como as engoliu, renovando às avessas e
por palavras mudas o fecho daquelas histórias de crianças: “entrou por uma
porta, saiu por outra, manda el-rei nosso senhor que nos conte outra”. E a
segunda criança contava segunda história, a terceira, a quarta quarta, até que
vinha o fastio ou o sono. Pessoas que datam do tempo em que se contavam tais
histórias afirmam que as crianças não punham naquela fórmula nenhuma fé
monárquica, fosse absoluta, fosse constitucional; era um modo de ligar o seu
Decameron delas, herdado do velho reino português, quando os reis mandavam o
que queriam, e a nação dizia que era muito bem.
Engolidas as duas lágrimas, Natividade riu da própria
fraqueza. Não se chamou tola, porque esses desabafos raramente se usam, ainda
em particular; mas no secreto do coração, lá muito ao fundo, onde não penetra
olho de homem, creio que sentiu alguma cousa parecida com isso. Não tendo prova
clara, limito-me a defender a nossa dama.
Em verdade, qualquer outra viveria a tremer pela sorte dos
filhos, uma vez que houvera a rixa anterior e interior. Agora as lutas eram
mais frequentes, as mãos cada vez mais aptas, e tudo fazia recear que eles
acabassem estripando-se um ao outro… Mas aqui surgia a ideia da grandeza e da
prosperidade, — cousas futuras! — e esta esperança era como um lenço que
enxugasse os olhos da bela senhora. As Sibilas não terão dito só do mal, nem os
Profetas, mas ainda do bem, e principalmente dele.
Com esse lenço verde enxugou ela os olhos, e teria outros
lenços, se aquele ficasse roto ou enxovalhado; um, por exemplo, não verde como
a esperança, mas azul, como a alma dela. Ainda lhes não disse que a alma de
Natividade era azul. Aí fica. Um azul celeste, claro e transparente, que alguma
vez se embruscava, raro tempestuava, e nunca a noite escurecia.
Não, leitor, não me esqueceu a idade da nossa amiga; lembra-me
como se fosse hoje. Chegou assim aos quarenta anos. Não importa; o céu é mais
velho e não trocou de cor. Uma vez que lhe não atribuas ao azul da alma nenhuma
significação romântica, estás na conta. Quando muito, no dia em que perfez
aquela idade, a nossa dona sentiu um calafrio. Que passara? Nada, um dia mais
que na véspera, algumas horas apenas. Toda uma questão de número, menos que
número, o nome do número, esta palavra quarenta, es o mal único. Daí a
melancolia com que ela disse ao marido, agradecendo o mimo do aniversário:
“Estou velha, Agostinho!” Santos quis esganá-la brincando.
Pois faria mal se a esganasse. Natividade ainda tinha as
formas do tempo anterior à concepção, a mesma flexibilidade, a mesma graça
miúda e viva. Conservava o donaire dos trinta. A costureira punha em relevo
todos os pensamentos restantes da figura, e ainda lhe emprestava alguns do seu
bolsinho. A cintura teimava em não querer engrossar, e os quadris e o colo eram
do mesmo estofador antigo.
Há dessas regiões em que o verão se confunde com o outono,
como se dá na nossa terra, onde as duas estações só diferem pela temperatura.
Nela nem pela temperatura. Maio tinha o calor de janeiro. Ela, aos quarenta
anos, era a mesma senhora verde, com a mesmíssima alma azul.
Esta cor vinha-lhe do pai e do avo, mas o pai morreu cedo,
antes do avô, que chegara aos oitenta e quatro. Nessa idade cria sincera mente
que todas as delícias deste mundo, desde o café de manhã até os sonos
sossegados, haviam sido inventados somente para ele O melhor cozinheiro da
terra nascera na China para o único fim de deixar família, pátria, língua,
religião, tudo, e vir assar-lhe as costeletas e fazer-lhe o chá. As estrelas
davam às suas noites um aspecto esplêndido, o luar também, e a chuva, se
chovia, era para que ele descansasse do sol. Lá está agora no cemitério de S.
Francisco Xavier; se alguém pudesse ouvir a voz dos mortos, dentro das
sepulturas, ouviria a ele, bradando que é tempo de fechar a porta ao cemitério,
e não deixar entrar ninguém, uma vez que ele já lá descansa para todo sempre.
Morreu azul; se chegasse aos cem anos, não teria outra cor.
Ora, se a natureza queria poupar esta senhora, a riqueza
dava a mão à natureza, e de uma e de outra saía a mais bela cor que alma de
gente pode ter. Tudo concorria assim para lhe secarem os olhos depressa, como
vimos atrás. Se ela bebeu aquelas duas lágrimas solitárias, pudera ter bebido
outras pela idade adiante, e isto é ainda uma prova daquele matiz espiritual;
mostrará assim que as tem poucas, e engole-as para poupá-las.
Mas há ainda uma terceira causa que dava a esta senhora o
sentimento da cor azul, causa tão particular que merecia ir em capítulo seu,
mas não vai, por economia. Era a isenção, era o ter atravessado a vida intacta
e pura.
O Cabo das Tormentas converteu-se em Cabo da Boa Esperança,
e ela venceu a primeira e a segunda mocidade, sem que os ventos lhe derribassem
a nau, nem as ondas a engolissem. Não negaria que alguma lufada mais rija
pudera levar-lhe a vela do traquete, como no caso de João de Melo, ou ainda
pior, no de Aires, mas foram bocejos de Adamastor.
Consertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado
de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da índia. Agora lembrava-se da viagem
próspera. Honrava-se dos ventos inúteis e perdidos. A memória trazia-lhe o
sabor do perigo passado. Es aqui a terra encoberta, os dois filhos nados,
criados e amados da fortuna.
CAPÍTULO XX – A JOIA
Os quarenta e um anos não lhe trouxeram arrepio. Já estava
acostumada à casa dos quarenta. Sentiu, sim, um grande espanto; acordou e não
viu o presente do costume, a “surpresa” do marido ao pé da cama. Não
a achou no toucador, abriu gavetas, espiou, nada. Creu que o marido esquecera a
data e ficou triste; era a primeira vez! Desceu olhando; nada. No gabinete
estava o marido, calado, metido consigo, a ler jornais, mal lhe estendeu a mão.
Os rapazes, apesar de ser domingo, estudavam a um canto; vieram dar-lhe o beijo
do costume e tornaram aos livros. A mãe ainda relanceou os olhos pelo gabinete,
a ver se achava algum mimo, um painel, um vestido, foi tudo vão. Embaixo de uma
das folhas do dia que estava na cadeira fronteira à do marido podia ser que…
Nada. Então sentou-se, e, abrindo a folha, ia dizendo consigo: “Será
possível que não se lembre do dia de hoje? Será possível?” Os olhos
entraram a ler à toa, saltando as notícias, tornando atrás…
Defronte o marido espreitava a mulher, sem absolutamente
importar-lhe o que parecia ler. Assim se passaram alguns minutos. De repente,
Santos viu uma expressão nova no rosto de Natividade; os olhos dela pareciam
crescer, a boca entreabriu-se, a cabeça erguesse, a dele também, ambos deixaram
a cadeira, deram dois passos e caíram nos braços um do outro, como dois
namorados desesperados de amor. Um, dois, três, muitos beijos. Pedro e Paulo,
espantados, estavam ao canto, de pé. O pai, quando pôde falar, disse-lhes:
—Venham beijar a mão da Senhora Baronesa de Santos.
Não entenderam logo. Natividade não sabia que fizesse; dava
a mão aos filhos, ao marido, e tornava ao jornal para ler e reler que do
despacho imperial da véspera o Sr. Agostinho José dos Santos fora agraciado com
o título de Barão de Santos. Compreendeu tudo. O presente do dia era aquele; o
ourives desta vez foi o imperador.
—Vão, vão, agora podem ir brincar, disse o pai aos filhos.
E os rapazes saíram a espalhar a notícia pela casa. Os
criados ficaram felizes com a mudança dos amos. Os próprios escravos pareciam
receber uma parcela da liberdade e condecoravam-se com ela: “Nhã
Baronesa!” exclamavam saltando. E João puxava Maria, batendo castanholas
com os dedos: “Gente, quem é esta crioula? Sou escrava de Nhã
Baronesa!”
Mas o imperador não foi o único ourives. Santos tirou do
bolso uma caixinha, com um broche em que a coroa nova rutilava de brilhantes.
Natividade agradeceu-lhe a joia e consentiu em pô-la, para que o marido a
visse. Santos sentia-se autor da joia, inventor da forma e das pedras; mas
deixou logo que ela a tirasse e guardasse, e pegou das gazetas, para lhe
mostrar que em todas vinha a notícia, algumas com adjetivo, conceituado aqui,
ali distinto, etc.
Quando Perpétua entrou no gabinete, achou-os andando de um
lado para outro, com os braços passados pela cintura, conversando, calando,
mirando os pés. Também ela deu e recebeu abraços.
Toda a casa estava alegre. Na chácara as árvores pareciam
mais verdes que nunca, os botões do jardim explicavam as folhas, e o sol cobria
a terra de uma claridade infinita. O céu, para colaborar com o resto, ficou
azul o dia inteiro. Logo cedo entraram a vir cartões e cartas de parabéns. Mais
tarde visitas. Homens do foro, homens do comércio, homens de sociedade muitas
senhoras, algumas titulares também, vieram ou mandaram. Devedores de Santos
acudiram depressa, outros preferiram continuar o esquecimento. Nomes houve que
eles só puderam reconhecer à força de grande pesquisa e muito almanaque.
CAPÍTULO XXI – UM PONTO ESCURO
Sei que há um ponto escuro no capítulo que passou; escrevo
este para esclarecê-lo.
Quando a esposa inquiriu dos antecedentes e
circunstâncias do despacho, Santos deu as explicações pedidas. Nem todas seriam
estritamente exatas; o tempo é um rato roedor das cousas, que as diminui ou
altera no sentido de lhes dar outro aspecto. Demais, a matéria era tão propícia
ao alvoroço que facilmente traria confusão à memória. Há, nos mais graves
acontecimentos, muitos pormenores que se perdem, outros que a imaginação
inventa para suprir os perdidos, e nem por isso a história morre.
Resta saber (é o ponto escuro) como é que Santos pôde calar
por longos dias um negócio tão importante para ele e para a esposa.
Em verdade, esteve mais de uma vez a dizer por palavra ou
por gesto, se achasse algum, aquele segredo de poucos; mas, sempre havia uma
força maior que lhe tapava a boca. Ao que parece, foi a expectação de uma
alegria nova e inesperada que lhe deu a alma de pacientar. Naquela cena do
gabinete tudo foi composto de antemão, o silêncio, a indiferença, os filhos que
ele pôs ali, estudando ao domingo, só para efeito daquela frase: “Venham
beijar a mão da Senhora Baronesa de Santos!”
CAPÍTULO XXII – AGORA UM SALTO
Que os dois gêmeos participassem da lua-de-mel nobiliária
dos pais não é cousa que se precise escrever. O amor que lhes tinham bastava a
explicá-lo, mas acresce que, havendo o título produzido em outros meninos dois
sentimentos opostos, um de estima, outro de inveja, Pedro e Paulo concluíram
ter recebido com ele um mérito especial. Quando, mais tarde, Paulo adotou a
opinião republicana nunca envolveu aquela distinção da família na condenação
das instituições. Os estados de alma que daqui nasceram davam matéria a um
capítulo especial, se eu não preferisse agora um salto, e ir a 1886. O salto é
grande, mas o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor,
um pássaro, uma dama. um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada
em cima de invisível é a mais subtil obra deste mundo, e acaso do outro.
CAPÍTULO XXIII – QUANDO TIVEREM BARBAS
Naquele ano, uma noite de agosto, como estivessem algumas
pessoas na casa de Botafogo, sucedeu que uma delas, não sei se homem ou mulher,
perguntou aos dois irmãos que idade tinham.
Paulo respondeu:
—Nasci no aniversário do dia em que Pedro I caiu do trono.
E Pedro:
—Nasci no aniversário do dia em que Sua Majestade subiu ao
trono.
As respostas foram simultâneas, não sucessivas, tanto que a
pessoa pediu-lhes que falasse cada um por sua vez. A mãe explicou:
—Nasceram no dia 7 de abril de 1870.
Pedro repetiu vagarosamente:
—Nasci no dia em que Sua Majestade subiu ao trono.
E Paulo, em seguida:
—Nasci no dia em que Pedro caiu do trono.
Natividade repreendeu a Paulo a sua resposta subversiva.
Paulo explicou-se, Pedro contestou a explicação e deu outra, e a sala viraria
clube, se a mãe não os acomodasse por esta maneira:
—Isto hão de ser grupos de colégio; vocês não estão em idade
de falar em política. Quando tiverem barbas.
As barbas não queriam vir, por mais que eles chamassem o
buço com os dedos, mas as opiniões políticas e outras vinham e cresciam. Não
eram propriamente opiniões, não tinham raízes grandes nem pequenas. Eram (mal
comparando) gravatas de cor particular, que eles atavam ao pescoço, à espera
que a cor cansasse e viesse outra. Naturalmente cada um tinha a sua. Também se
pode crer que a de cada um era, mais ou menos, adequada à pessoa. Como recebiam
as mesmas aprovações e distinções nos exames, faltava-lhes matéria a invejas;
e, se a ambição os dividisse algum dia. não era por ora águia nem condor, ou
sequer filhote; quando muito, um ovo. No colégio de Pedro II todos lhe queriam
bem. As barbas é que não queriam vir.
Que é que se lhes há de fazer quando as barbas não querem
vir? Esperar que venham por seu pé, que apareçam, que cresçam, que
embranqueçam, como é seu costume delas, salvo as que não embranquecem nunca, ou
só em parte e temporariamente. Tudo isto é sabido e banal, mas dá ensejo a
dizer de duas barbas do último gênero, célebres naquele tempo, e ora totalmente
esquecidas. Não tendo outro lugar em que fale delas, aproveito este capítulo, e
o leitor que volte a página, se prefere ir atrás da história. Eu ficarei
durante algumas linhas, recordando as duas barbas mortas, sem as entender
agora, como não as entendemos então, as mais inexplicáveis barbas do mundo.
A primeira daquelas barbas era de um amigo de Pedro, um
capucho, um italiano, frei***. Podia escrever-lhe o nome, — ninguém mais o
conheceria, — mas prefiro esse sinal trino, número de mistério, expresso por
estrelas, que são os olhos do céu. Trata-se de um frade. Pedro não lhe conheceu
a barba preta, mas já grisalha, longa e basta, adornando uma cabeça máscula e
formosa. A boca era risonha, os olhos rútilos. Ria por ela e por eles, tão
docemente que metia a gente no coração. Tinha o peito largo, as espáduas
fortes. O pé nu, atado à sandália, mostrava aguentar um corpo de Hércules. Tudo
isso meigo e espiritual, como uma página evangélica. A fé era viva, a afeição
segura, a paciência infinita.
Frei*** despediu-se um dia de Pedro. Ia ao interior, Minas,
Rio de Janeiro, S. Paulo, — creio que ao Paraná também, — viagem espiritual,
como a de outros confrades, e lá ficou por um semestre ou mais. Quando voltou
trouxe-nos a todos grande alegria e maior espanto. A barba estava negra, não
sei se tanto ou mais que dantes, mas negríssima e brilhantíssima. Não explicou
a mudança, nem ninguém lhe perguntou por ela; podia ser milagre ou capricho da
natureza; também podia ser correção de homem, posto que o último caso fosse
mais difícil de crer que o primeiro. Durou nove meses esta cor; feita outra
viagem por trinta dias, a barba apareceu de prata ou de neve, como vos parecer mais
branca.
Quanto à segunda de tais barbas, foi ainda mais espantosa.
Não era de frade, mas de maltrapilho, um sujeito de vivia de dívidas, e na
mocidade corrigira um velho rifão da nossa língua por esta maneira: “Paga
o que deves, vê o que te não fica”. Chegou aos Cinquenta anos sem
dinheiro, sem emprego, sem amigos. A roupa teria a mesma idade, os sapatos não
menor que ela.
A barba ó que não chegou aos cinquenta; ele pintava-a de
negro e mal, provavelmente por não ser a tinta de primeira qualidade e não
possuir espelho. Andava só, descia ou subia muita vez a mesma rua. Um dia
dobrou a esquina da Vida e caiu na praça da Morte, com as barbas enxovalhadas,
por não haver quem lhas pintasse na Santa Casa.
Or, bene, para falar como o meu capucho, por que é que este
e o maltrapilho voltaram do grisalho ao negro? A leitora que adivinhe, se pode:
dou-lhe vinte capítulos para alcançá-lo. Talvez eu, por essas alturas, lobrigue
alguma explicação, mas por ora não sei nem aventuro nada. Vá que malignos
atribuam a frei*** alguma paixão profana; ainda assim não se compreende que ele
se descobrisse por aquele modo. Quanto ao maltrapilho, a que damas queria ele
agra dar, a ponto de trocar algumas vezes o pão pela tinta?
Que um e outro cedessem ao desejo de prender a mocidade
fugitiva, pode ser. O frade, lido na Escritura, sabendo que Israel chorou pelas
cebolas do Egito, teria também chorado, e as suas lágrimas caíram negras. Pode
ser, repito. Este desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos
queixos; mas ao tempo dá Deus habeas corpus.
CAPÍTULO XXIV – ROBESPIERRE E LUÍS XVI
Tanto cresceram as opiniões de Pedro e Paulo que, um dia.
chegaram a incorporar-se em alguma cousa. Iam descendo pela Rua da Carioca.
Havia ali uma loja de vidraceiro, com espelhos de vário tamanho, e, mais que
espelhos, também tinha retratos velhos e gravuras baratas, com e sem caixilho.
Pararam alguns instantes, olhando à toa. Logo depois, Pedro viu pendurado um
retrato de Luís XVI, entrou e comprou-o por oitocentos réis; era uma simples
gravura atada ao mostrador por um barbante. Paulo quis ter igual fortuna,
adequada às suas opiniões, e descobriu um Robespierre. Como o lojista pedisse
por este mil e duzentos, Pedro exaltou-se um pouco.
—Então o senhor vende mais barato um rei, e um rei mártir?
—Há de perdoar, mas é que esta outra gravura custou-me mais
caro, redarguiu o velho lojista. Nós vendemos conforme o preço da compra. Veja;
está mais nova.
—Lá isso, não, acudiu Paulo. São do mesmo tempo; mas é que
este vale mais que aquele.
—Ouvi dizer que também era rei…
—Qual rei! responderam os dois.
—Ou quis sê-lo não sei bem…
Que eu de histórias, apenas conheço a dos mouros que
aprendi na minha terra com a avó, alguns bocados em verso. E ele ainda há
mouras lindas; por exemplo, esta; apesar do nome, creio que era moura, ou ainda
é, se vive… Mal lhe saiba ao marido! E foi a um canto e trouxe um retrato de
Madame de Stael, com o famoso turbante na cabeça. (O efeito da beleza! Os
rapazes esqueceram por um instante as opiniões políticas e ficaram a olhar
longamente a figura de Corina. O lojista, apesar dos seus setenta anos, tinha
os olhos babados. Cuidou de sublinhar as formas, a cabeça, a boca um tanto
grossa, mas expressiva, e dizia que não era caro. Como nenhum quisesse
comprá-la, talvez por ser só uma, disse-lhes que ainda tinha outra, mas esse
era “uma pouca-vergonha”, frase que os deuses lhe perdoariam, quando
soubessem que ele não quis mais que abrir o apetite aos fregueses. E foi a um
armário, tirou de lá, e trouxe uma Diana, nua como vivia cá embaixo, outrora
nos matos. Nem por isso a vendeu. Teve de contentar-se com os retratos
políticos.
Quis ainda ver se colhia algum dinheiro, vendendo-lhes um
retrato de Pedro I, encaixilhado, que pendia da parede; mas, Pedro recusou por
não ter dinheiro disponível, e Paulo disse que não daria um vintém pela
“cara de traidores”. Antes não dissesse nada! O lojista, tão depressa
lhe ouviu a resposta como despiu as formas obsequiosas, vestiu outras
indignadas, c bradou que sim, senhor, que o moço tinha razão.
—Tem muita razão. Foi um traidor, mau filho, mau irmão, mau
tudo. Fez todo o mal que pôde a este mundo; e no Inferno, onde está, se a
religião não mente, deve ainda fazer mal ao Diabo. Este moço falou há pouco em
rei mártir, — continuou mostrando-lhes um retrato de D. Miguel de Bragança,
meio perfil, sobrecasaca, mão ao peito, — este é que foi um verdadeiro mártir
daquele, que lhe roubou o trono, que não era seu, para dá-lo a quem não
pertencia; e foi morrer à míngua o meu pobre rei e senhor, dizem que na
Alemanha, ou não sei onde. Ah! malhados! Ah! filhos do Diabo! Os senhores não
podem imaginar o que era aquela canalha de liberais.
Liberais! Liberais do alheio!
—E tudo a mesma farinha, reflexionou Paulo.
—Eu não sei se eles eram de farinha, sei que levaram muita
pancada. Venceram, mas apanharam deveras. Meu pobre rei!
Pedro quis responder ao remoque do irmão; e propôs comprar
o retrato de Pedro I. Quando o lojista tornou a si, começou a negociar a venda,
mas não puderam entender-se no preço; Pedro dava os mesmos oitocentos réis do
outro, o lojista pedia dois mil-réis. Nota, va-lhe que estava encaixilhado, e
Luís XVI não, além disto, era mais novo. E vinha à porta, a buscar melhor luz,
chamava-lhe a atenção para o rosto, os olhos principalmente, que bela expressão
que tinham!
E o manto imperial.
—Que lhe custa dar dois mil-réis?
—Dou-lhe dez tostões: serve?
—Não serve. Mais que isso me custou ele.
—Pois então…
—Veja sempre. Pois isto não vale até três mil-réis? O papel
não está encardido; a gravura é fina.
—Dez tostões, já disse.
—Não, senhor. Olhe, por dez tostões leve este de D. Miguel;
o papel está bem conservado, e, com pouco dinheiro, manda-lhe pôr um caixilho.
Vá; dez tostões.
—Se eu já estou arrependido… Dez tostões pelo imperador.
—Ah! isso não! Custou-me mil e setecentos, há três semanas
ganho uns trezentos réis, quase nada. Ganho menos com o Senhor D. Miguel, mas
também concordo que é menos procurado. Este de D. Pedro I, se passar amanhã,
talvez já o não ache. Vá, sim?
—Eu passo depois.
Paulo já ia andando e mirando Robespierre; Pedro
alcançou-o.
—Olhe, leve por sete tostões o senhor D. Miguel.
Pedro abanou a cabeça.
—Seis tostões serve?
Pedro, ao lado do irmão, desenrolara a sua gravura. O velho
lojista quis ainda bradar: “Cinco tostões!” mas iam já longe, e
ficava mal negociar assim.
CAPÍTULO XXV – D. MIGUEL
“Assim como assim, ficou pensando o velho, não há de
ser enrolado e guardado que o hei de vender, vou mandá-lo encaixilhar
põem-se-lhe aqui umas tabuinhas velhas…”
D. Miguel voltou para ele os olhos turvos de tristeza e
reproche; assim lhe pareceu ao vidraceiro, mas podia ter sido ilusão. Em todo
caso, pareceu também que os olhos tornavam ao seu lugar, fitando à direita, ao
longe… Para onde? Para onde há justiça eterna, cuidou naturalmente o dono.
Como estivesse a contemplá-lo, à porta, parou um homem, entrou, e olhou com
interesse para o retrato. O lojista reparou na expressão; podia ser algum
miguelista, mas também podia ser um colecionador…
—Quanto pede o senhor por isto?
—Isto? Há de perdoar; quer saber quanto peço pelo meu rico
Senhor D. Miguel? Não peço muito, está um tanto encardido, mas ainda se lhe
aprecia bem a figura. Que soberba que ela é! Não é caro; dou-lhe pelo custo; se
estivesse encaixilhado, valeria uns quatro mil-réis. Leve-o por três.
O freguês tirou tranquilamente o dinheiro do bolso,
enquanto o velho enrolava o retrato, e, trocados um por outro, despediram-se
corteses e satisfeitos; o lojista, depois de ir até à porta, tornou à cadeira
do costume. Talvez pensasse no mal a que escapara, se vendesse o retrato por
dez tostões. Em todo caso, ficou a olhar para fora, para longe, para onde há
justiça eterna… Três mil-réis!
CAPÍTULO XXVI – A LUTA DOS RETRATOS
Quase que não é preciso dizer o destino dos retratos do rei
e o convencional. Cada um dos pequenos pregou o seu à cabeceira da cama. Pouco
durou esta situação, porque ambos faziam pirraças às pobres gravuras, que não
tinham culpa de nada. Eram orelhas de burro, nomes feios, desenhos de animais,
até que um dia Paulo rasgou a de Pedro, e Pedro a de Paulo. Naturalmente,
vingaram-se a murro, a mãe ouviu rumor e subiu apressada. Conteve os filhos,
mas já os achou arranhados e recolheu-se triste. Nunca mais acabaria aquela
maldição de rivalidade? Fez esta pergunta calada, atirada à cama, a cara metida
no travesseiro, que desta vez ficou seco, mas a alma chorou.
Natividade confiava na educação, mas a educação, por mais
que ela a apurasse, apenas quebrava as arestas ao caráter dos pequenos, o
essencial ficava; as paixões embrionárias trabalhavam por viver, crescer,
romper, tais quais ela sentira os dois no próprio seio, durante a gestação… E
recordava a crise de então, acabando por maldizer da cabocla do Castelo.
Realmente, a cabocla devia ter calado; o mal calado não se muda, mas não se
sabe. Agora, pode ser que isto de não calar confirme a opinião de que a Cabocla
era mandada por Deus para dizer a verdade aos homens. E afinal o que é que ela
disse a Natividade? Não fez mais que uma pergunta misteriosa; a predição é que
foi luminosa e clara… E outra vez as palavras do Castelo ressoaram aos
ouvidos da mãe, e a imaginação fez o resto. Cousas futuras! Hei-los grandes e
sublimes. Algumas brigas em pequenos, que importa? Natividade sorriu,
ergueu-se, foi à porta, deu com o filho Pedro, que vinha explicar-se.
—Mamãe, Paulo é mau. Se mamãe ouvisse os horrores que ele
solta pela boca fora, mamãe morria de medo. Custa-me muito não ir à cara dele;
ainda lhe não tirei um olho…
—Meu filho, não fales assim, é teu irmão.
—Pois que não se meta comigo, não me aborreça. Que
blasfêmias que ele dizia! Como eu rezava por alma de Luís XVI, ele para
machucar-me bem, rezava a Robespierre; compôs uma ladainha chamando santo ao
outro e cantarolava baixinho para que papai nem mamãe ouvissem. Eu sempre lhe
dei alguns cascudos…
—Aí está!
—Mas é que ele é que me dava primeiro, porque eu punha
orelhas de burro em Robespierre… Então, eu havia de apanhar calado?
—Nem calado, nem falando.
—Então, como? Apanhar sempre, não é?
—Não, senhor; não quero pancadas; o melhor é que esqueçam
tudo e se queiram bem. Você não vê como seus pais se querem? As brigas acabaram
de todo. Não quero ouvir rusgas nem queixas. Afinal que têm vocês com um
sujeito mau que morreu há tantos anos?
—É o que eu digo, mas ele não se emenda.
—Há de emendar-se. os estudos fazem esquecer criancices.
Você também quando for médico tem muito que brigar com as moléstias e a
morte — é melhor que andar dando pancada
em seu irmão… Que e lá isso? Não quero arremessos, Pedro! Sossegue, ouça-me.
—Mamãe é sempre contra mim.
—Não sou contra nenhum, sou por ambos, ambos são meus
filhos. E demais gêmeos. Anda cá, Pedro. Não penses que eu desaprovo as tuas
opiniões políticas. Até gosto e são as minhas, são as nossas. Paulo há de
tê-las também. Na idade dele aceita-se quanta tolice há, mas o tempo corrige.
Olha, Pedro, a minha esperança é que vocês sejam grandes homens, mas com a
condição de serem também grandes amigos.
—Estou pronto a ser grande homem, assentiu Pedro com
ingenuidade, quase com resignação.
—E grande amigo também.
—Se ele for, serei.
—Grandes homens! exclamou Natividade, dando-lhe dois
abraços, um para ele, outro para o irmão quando viesse.
Mas Paulo veio logo, e recebeu o abraço inteiro e de
verdade. Vinha também queixar-se, e sempre resmungou alguma cousa, mas a mãe
não quis ouvi-lo, e falou outra vez a linguagem das grandezas. Paulo consentiu
também em ser grande.
—Você será médico, disse Natividade a Pedro, e você
advogado. Quero ver quem faz as melhores curas, e ganha as piores demandas.
—Eu, disseram ambos a um tempo.
—Patetas! Cada um terá a sua carreira especial, a sua
ciência diferente. Já estão curados do nariz? Já; não há mais sangue. Agora o
primeiro que ferir seu irmão será degradado.
Foi um recurso hábil separá-los; um ficava no Rio,
estudando Medicina, outro ia para São Paulo, estudar Direito. O tempo faria o
resto, não contando que cada um casava e iria com a mulher para o seu lado. Era
a paz perpétua; mais tarde viria a perpétua amizade.
CAPÍTULO XXVII – DE UMA REFLEXÃO INTEMPESTIVA
Eis aqui entra uma reflexão da leitora: “mas se duas
velhas gravuras os levam a murro e sangue, contentar-se-ão eles com a sua
esposa? Não quererão a mesma e única mulher?”
O que a senhora deseja, amiga minha, é chegar já ao
capítulo do amor ou dos amores, que é o seu interesse particular nos livros.
Daí a habilidade da pergunta, como se dissesse: “Olhe que o senhor ainda
nos não mostrou a dama ou damas que têm de ser amadas ou pleiteadas por estes
dois jovens inimigos. Já estou cansada de saber que os rapazes não se dão ou se
dão mal; é a segunda ou terceira vez que assisto às blandícias da mãe ou aos
seus ralhos amigos. Vamos depressa ao amor, às duas, se não é uma só a
pessoa…”
Francamente eu não gosto de gente que venha adivinhando e
compondo um livro que está sendo escrito com método. A insistência da leitora
em falar de uma só mulher chega a ser impertinente. Suponha que eles deveras
gostem de uma só pessoa; não Parecerá que eu conto o que a leitora me lembrou,
quando a verdade é que eu apenas escrevo o que sucedeu e pode ser confirmado
por dezenas de testemunhas? Não. senhora minha, não pus a pena na mão, à
espreita do que me vissem sugerindo. Se quer compor o livro, aqui tem a pena,
aqui tem papel, aqui tem um admirador; mas, se quer ler somente, deixe-se estar
quieta, vá de linha em linha; dou-lhe que boceje entre dois capítulos. mas
espere o resto. tenha confiança no relator destas aventuras.
CAPÍTULO XXVIII – O RESTO É CERTO
Sim, houve uma pessoa, mais moça que eles, um a dois anos,
que os agrilhou, à força de costume ou de natureza, se não foi de ambas as
cousas. Antes dessa, pode ser que houvesse outras e mais velhas que eles, mas
de tais: não rezam as notas que servem a este livro. Se brigaram por elas, não
ficou memória disso, mas é possível, dado que tivessem tido as mesmas
preferências; no caso contrário também, como sucedia aos cavaleiros que
defendiam a sua dama.
Conjeturas tudo. Era natural que, assim bonitos, iguais,
elegantes dados à vida e ao passeio, à conversação e à dança, finalmente
herdeiros, era natural que mais de uma menina gostasse deles. As que os viam
passar a cavalo, praia fora ou rua acima, ficavam namoradas daquela ordem
perfeita de aspecto e de movimento. Os próprios cavalos eram iguaizinhos, quase
gêmeos, e batiam as patas com o mesmo ritmo, a mesma força, e a mesma graça.
Não creias que o gesto da cauda e das crinas fosse simultâneo nos dois animais;
não é verdade e pode fazer duvidar do resto. Pois o resto é certo.
CAPÍTULO XXIX – A PESSOA MAIS MOÇA
A pessoa mais moça não entra já neste capítulo por uma
razão valiosa, que é a conveniência de apresentar primeiro os pais. Não é que
se não possa vê-la bem sem eles — pode-se, os três são diversos, acaso
contrários, e, por mais especial que a acheis, não é preciso que os pais
estejam presentes. Nem sempre os filhos reproduzem os pais. Camões afirmou que
de certo pai só se podia esperar tal filho, e a ciência confirma esta regra
poética. Pela minha parte creio na ciência como na poesia, mas há exceções,
amigo. Sucede, às vezes, que a natureza faz outra cousa, e nem por isso as
plantas deixam de crescer e as estrelas de luzir. O que se deve crer sem erro é
que Deus é Deus; e, se alguma rapariga árabe me estiver lendo, ponha-lhe Alá!
Todas as línguas vão dar ao Céu.
CAPÍTULO XXX – A GENTE BATISTA
A gente Batista conheceu a gente Santos em não sei que
fazenda da Província do Rio. Não foi Maricá, embora ali tivesse nascido o pai
dos gêmeos, seria em qualquer outro município. Fosse qual fosse, ali é que se
conheceram as duas famílias, e como morassem próximas em Botafogo, a
assiduidade e a simpatia vieram ajudando o caso fortuito.
Batista, o pai da donzela, era homem de quarenta e tantos
anos, advogado do cível, ex-presidente de província e membro do Partido
Conservador. A ida à fazenda tivera por objeto exatamente uma conferência
política para fins eleitorais, mas tão estéril que ele tornou de lá sem, ao
menos, um ramo de esperança. Apesar de ter amigos no governo, não alcançara
nada, nem deputação nem presidência. Interrompera a carreira desde que foi
exonerado daquele cargo “a pedido”, disse o decreto, mas as queixas
do exonerado fariam crer outra cousa. De fato, perdera as eleições, e atribuía
a esse desastre político a demissão do cargo.
—Não sei o que é que ele queria que eu fizesse mais, dizia
Batista falando do ministro. Cerquei igrejas; nenhum amigo pediu polícia que eu
não mandasse; processei talvez umas vinte pessoas. Outras foram para a cadeia
sem processo. Havia de enforcar gente? Ainda assim houve duas mortes no
Ribeirão das Moças.
O final era excessivo, porque as mortes não foram obra
dele; quando muito, ele mandou abafar o inquérito, se pode chamar inquérito a
uma simples conversação sobre a ferocidade dos dois defuntos. Em suma, as
eleições foram incruentas.
Batista dizia que por causa das eleições perdera a
presidência, mas corria outra versão, um negócio de águas, concessão feita a um
espanhol, a pedido do irmão da esposa do presidente. O pedido era verdadeiro, a
imputação de sócio é que era falsa. Não importa; tanto bastou para que a folha
da oposição dissesse que houve naquilo um bom “arranjo de família”,
acrescentando que, como era de águas, devia ser negócio limpo. A folha da
administração retorquiu que, se águas havia, não eram bastantes para lavar o
sujo do carvão deixado pela última presidência liberal, um fornecimento de
palácio. Não era exato — a folha da oposição reviveu o processo antigo e
mostrou que a defesa fora cabal. Podia parar aqui, mas continuou que,
“como agora estávamos em Espanha”, o presidente emendou o poeta
espanhol, autor daquele epitáfio:
Cunados y juntos:
Es cierto que están
difuntos;
e emendou-o por não ser obrigado a matar ninguém, antes deu
vida a si e aos seus dizendo pela nossa língua:
Cunhados e cunhadíssimos;
E certo que são vivíssimos!
Batista acudiu depressa ao mal, declarando sem efeito a
concessão, mas isso mesmo serviu à oposição para novos arremessos: “Temos
a confissão do réu!” foi o título do primeiro artigo que rendeu à folha da
oposição o ato do presidente. Os correspondentes tinham já escrito para o Rio
de Janeiro falando da concessão, e o governo acabou por demitir o seu delegado.
Em verdade, só os políticos cuidaram do negócio. D. Cláudia apenas aludia à
campanha da imprensa, que foi violentíssima.
—Não valia a pena sair daqui, disse Natividade.
—Lá isso não, baronesa!
E D. Cláudia afirmou que valia. Sofre-se, mas paciência.
Era tão bom chegar à província! Tudo anunciado, as visitas a bordo, o
desembarque, a posse, os cumprimentos… Ver a magistratura, o funcionalismo, a
oficialidade, muito calva, muito cabelo branco, a flor da terra, enfim, com as
suas cortesias longas e demoradas, todas em ângulo ou em curva, e os louvores
impressos. As mesmas descomposturas da oposição eram agradáveis. Ouvir chamar
tirano ao marido, que ela sabia ter um coração de pomba, ia bem à alma dela. A
sede de sangue que se lhe atribuía, ele que nem bebia vinho, o guante de ferro
de um homem que era uma luva de pelica, a imoralidade, a desfaçatez, a falta de
brio, todos os nomes injustos, mas fortes, que ela gostava de ler, como
verdades eternas, onde iam eles agora?
A folha da oposição era a primeira que D. Cláudia lia em
palácio. Sentia-se vergastada também e tinha nisso uma grande volúpia, como se
fosse na própria pele, almoçava melhor. Onde iam os látegos daquele tempo?
Agora mal podia ler o nome dele impresso no fim de algumas razões do foro, ou
então na lista das pessoas que iam visitar o imperador.
—Nem sempre, explicou D. Cláudia; Batista é muito acanhado;
vai de longe em longe a S. Cristóvão, para não parecer que se faz lembrado,
como se isto fosse crime; ao contrário, não ir nunca é que pode parecer arrufo.
Note que o imperador nunca deixou de recebe-lo com muita benevolência, e a mim
também. Nunca esqueceu o meu nome. Já deixei de lá ir dois anos, e quando
apareci, perguntou-me logo: “Como vai, D. Cláudia?”
Afora essas saudades do poder, D. Cláudia era uma criatura
feliz. A viveza das palavras e das maneiras, os olhos que pareciam não ver nada
à força de não pararem nunca, e o sorriso benévolo, e a admiração constante,
tudo nela era ajustado a curar as melancolias alheias. Quando beijava ou mirava
as amigas era como se as quisesse comer vivas, comer de amor, não de ódio,
metê-las em si, muito em si, no mais fundo de si.
Batista não tinha as mesmas expansões. Era alto, e o ar
sossegado dava um bom aspecto de governo.
Só lhe faltava ação, mas a mulher podia inspirar-lha, nunca
deixou de consultá-la nas crises da presidência. Agora mesmo, se lhe desse
ouvidos, já teria ido pedir alguma cousa ao governo, mas neste ponto era firme,
de uma firmeza que nascia da fraqueza: “Hão de chamar-me, deixa
estar”, dizia ele a D. Cláudia, quando apareceu alguma vaga de governo
provincial. Certo é que ele sentia a necessidade de tornar à vida ativa. Nele a
política era menos uma opinião que uma sarna; precisava coçar-se a miúdo e com
força.
CAPÍTULO XXXI – FLORA
Tal era aquele casal de políticos. Um filho, se eles
tivessem um filho varão, podia ser a fusão das suas qualidades opostas, e
talvez um homem de Estado. Mas o Céu negou-lhes essa consolação dinástica.
Tinham uma filha única, que era tudo o contrário deles. Nem
a paixão de D. Cláudia, nem o aspecto governamental de Batista distinguia a
alma ou a figura da jovem Flora. Quem a conhecesse por esses dias, poderia
compará-la a um vaso quebradiço ou à flor de uma só manhã, e teria matéria para
uma doce elegia. Já então possuía os olhos grandes e claros, menos sabedores,
mas dotados de um mover particular, que não era o espalhado da mãe, nem o
apagado do pai, antes mavioso e pensativo, tão cheio de graça que faria amável
a cara de um avarento. Põe-lhe o nariz aquilino, rasga-lhe a boca meio risonha,
formando tudo um rosto comprido, alisa-lhe os cabelos ruivos, e aí tens a moça
Flora.
Nasceu em agosto de 1871. A mãe, que datava por
ministérios, nunca negou a idade da filha:
—Flora nasceu no ministério Rio Branco, e foi sempre tão
fácil de aprender, que já no ministério Sinimbu sabia ler e escrever
correntemente.
Era retraída e modesta, avessa a festas públicas, e
dificilmente consentiu em aprender a dançar. Gostava de música, e mais do piano
que do canto. Ao piano, entregue a si mesma, era capaz de não comer um dia
inteiro. Há aí o seu tanto de exagerado, mas a hipérbole é deste mundo, e as
orelhas da gente andam já tão entupidas que só à força de muita retórica se
pode meter por elas um sopro de verdade.
Até aqui nada há que extraordinariamente distinga esta moça
das outras, suas contemporâneas, desde que a modéstia vai com a graça, e em certa
idade é tão natural o devaneio como a travessura. Flora, aos quinze anos,
dava-lhe para se meter consigo. Aires, que a conheceu por esse tempo, em casa
de Natividade. acreditava que a moça viria a ser uma inexplicável.
—Como diz? inquiriu a mãe.
—Verdadeiramente, não digo nada, emendou Aires; mas, se me
permite dizer alguma cousa, direi que esta moça resume as raras prendas de sua
mãe.
—Mas eu não sou inexplicável, replicou D. Cláudia sorrindo.
—Ao contrário, minha senhora. Tudo está, porém, na definição
que dermos a esta palavra. Talvez não haja nenhuma certa. Suponhamos uma
criatura para quem não exista perfeição na terra, e julgue que a mais bela alma
não passa de um ponto de vista; se tudo muda com o ponto de vista, a
perfeição…
—A perfeição é copas, insinuou Santos.
Era um convite ao voltarete. Aires não teve ânimo de
aceitar, tão inquieta lhe pareceu Flora, com os olhos nele, interrogativos,
curiosos de saber por que é que ela era ou viria a ser inexplicável. Além
disso, preferia a conversação das mulheres. É dele esta frase do Memorial:
“Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no homem, agrava”.
Não foi preciso aceitar nem recusar o convite de Santos;
chegaram dois habituados do jogo, e com eles Batista, que estava na saleta
próxima, Santos foi ao recreio de todas as noites. Um daqueles era o velho
Plácido, doutor em espiritismo; o segundo era um corretor da praça, chamado
Lopes, que amava as cartas pelas cartas, e sentia menos perder dinheiro que
partidas. Lá se foram ao voltarete, enquanto Aires ficava no salão, a ouvir a
um canto as damas, sem que os olhos de Flora se despegassem dele.
CAPÍTULO XXXII – O APOSENTADO
Já então este ex-ministro estava aposentado. Regressou ao
Rio de Janeiro, depois de um último olhar às cousas vistas, para aqui viver o
resto dos seus dias. Podia fazê-lo em qualquer cidade, era homem de todos os
climas, mas tinha particular amor à sua terra, e porventura estava cansado de
outras. Não atribuía a estas tantas calamidades. A febre amarela, por exemplo,
à força de a desmentir lá fora, perdeu-lhe a fé, e cá dentro, quando via
publicados alguns casos, estava já corrompido por aquele credo que atribui
todas as moléstias a uma variedade de nomes. Talvez porque era homem sadio.
Não mudara inteiramente; era o mesmo ou quase. Encalveceu
mais, é certo, terá menos carnes, algumas rugas; ao cabo, uma velhice rija de
sessenta anos. Os bigodes continuam a trazer as pontas finas e agudas. O passo
é firme, o gesto grave, com aquele toque de galanteria, que nunca perdeu. Na
botoeira, a mesma flor eterna.
Também a cidade não lhe pareceu que houvesse mudado muito.
Achou algum movimento mais, alguma ópera menos, cabeças brancas, pessoas
defuntas; mas a velha cidade era a mesma. A própria casa dele no Catete estava
bem conservada. Aires despediu o inquilino, tão polidamente como se recebesse o
ministro dos negócios estrangeiros, e meteu-se nela a si e a um criado, por
mais que a irmã teimasse em levá-lo para, Andaraí.
—Não, mana Rita, deixe-me ficar no meu canto.
—Mas eu sou a sua última parenta, disse ela.
—De sangue e de coração, isso é, concordou ele; pode
acrescentar que a melhor de todas e a mais pia. Onde estão aqueles cabelos?…
Não precisa baixar os olhos. Você os cortou para meter no caixão de seu finado
marido. Os que aí estão embranqueceram; mas os que lá ficaram eram pretos, e
mais de uma viúva os teria guardado todos para as segundas núpcias.
Rita gostou de ouvir aquela referência. Outrora, não; pouco
depois de viúva, tinha vexame de um ato tão sincero; achava-se quase ridícula.
Que valia cortar os cabelos por haver perdido o melhor dos maridos? Mas,
andando o tempo, entrou a ver que fizera bem, a aprovar que lho dissessem, e,
na intimidade, a lembrá-lo. Agora serviu a alusão para replicar:
—Pois se eu sou isso, por estranhos?
—Que estranhos? Não vou viver com ninguém. Viverei com o
Catete, o Largo do Machado, a Praia de Botafogo e a do Flamengo, não falo das
pessoas que lá moram, mas das ruas, das casas, dos chafarizes e das lojas. Há
lá cousas esquisitas, mas sei eu se venho achar em Andaraí uma casa de pernas
para o ar, por exemplo? Contentemo-nos do que sabemos. Lá os meus pés andam por
si. Há ali cousas petrificadas e pessoas imortais, como aquele Custódio da
confeitaria, lembra-se?
—Lembra-me, a Confeitaria do Império.
—Há quarenta anos que a estabeleceu; era ainda no tempo em
que os carros pagavam imposto de passagem. Pois o diabo está velho, mas não
acaba; ainda me há de enterrar. Parece rapaz; aparece-me lá todas as semanas.
—Você também parece rapaz.
—Não brinque, mana; eu estou acabado. Sou um velho gamenho,
pode ser; mas não é por agradar a moças, é porque me ficou este jeito… E a
propósito, por que não vai você morar comigo?
—Ah! é para saber que também eu gosto de estar comigo. Irei
lá de vez em quando, mas já não saio daqui, senão para o cemitério.
Ajustaram visitar um ao outro, Aires viria jantar às
quintas-feiras. D. Rita ainda lhe falou dos casos de moléstia dele, ao que
Aires replicou que não adoecia nunca, mas se adoecesse viria para Andaraí; o
coração dela era o melhor dos hospitais. Talvez que em todas essas recusas
houvesse também a necessidade de fugir à contradição, porque a irmã sabia
inventar ocasiões de dissidência. Naquele mesmo dia (era ao almoço) ele achou o
café delicioso, mas a irmã disse que era ruim, obrigando-o a um grande esforço
para tornar atrás e achá-lo detestável.
A princípio, Aires cumpriu a solidão, separou-se da
sociedade, meteu-se em casa, não aparecia a ninguém ou a raros e de longe em
longe. Em verdade estava cansado de homens e de mulheres, de festas e de
vigílias. Fez um programa. Como era dado a letras clássicas achou no Padre
Bernardes esta tradução daquele salmo: “Alonguei-me fugindo e morei na
soedade”. Foi a sua divisa. Santos, se lha dessem, fá-la-ia esculpir, à
entrada do salão, para regalo dos seus numerosos amigos. Aires deixou-a estar
em si. Alguma vez gostava de a recitar calado, parte pelo sentido, parte pela
linguagem velha: “Alonguei-me fugindo e morei na soedade.”
Assim foi a princípio. As quintas-feiras ia jantar com a irmã.
As noites passeava pelas praias, ou pelas ruas do bairro. O mais do tempo era
gasto em ler e reler, compor o Memorial ou rever o composto, para relembrar as
cousas passadas. Estas eram muitas e de feição diversa, desde a alegria até a
melancolia, enterramentos e recepções diplomáticas, uma braçada de folhas
secas, que lhe pareciam verdes agora. Alguma vez as pessoas eram designadas por
um X ou ***, e ele não acertava logo quem fossem, mas era um recreio
procurá-las, achá-las e completá-las.
Mandou fazer um armário envidraçado, onde meteu as
relíquias da vida, retratos velhos, mimos de governos e de particulares, um
leque, uma luva, uma fita e outras memórias femininas, medalhas e medalhões,
camafeus, pedaços de ruínas gregas e romanas, uma infinidade de cousas que não
nomeio, para não encher papel. As cartas não estavam lá, viviam dentro de uma
mala, catalogadas por letras, por cidades, por línguas, por sexos. Quinze ou
vinte davam para outros tantos capítulos e seriam lidas com interesse e
curiosidade. Um bilhete, por exemplo, um bilhete encardido e sem data, moço
como os bilhetes velhos, assinado por iniciais, um M e um P que ele traduzia
com saudades. Não vale a pena dizer o nome.
CAPÍTULO XXXIII – A SOLIDÃO TAMBÉM CANSA
Mas tudo cansa, até a solidão. Aires entrou a sentir uma
ponta de aborrecimento; bocejava, cochilava, tinha sede de gente viva,
estranha, qualquer que fosse, alegre ou triste. Metia-se por bairros
excêntricos, trepava aos morros, ia às igrejas velhas, às ruas novas, à
Copacabana e à Tijuca. O mar ali, aqui o mato e a vista acordavam nele uma
infinidade de ecos, que pareciam as próprias vozes antigas.
Tudo isso escrevia, às noites, para se fortalecer no
propósito da vida solitária. Mas não há propósito contra a necessidade.
A gente estranha tinha a vantagem de lhe tirar a solidão,
sem lhe dar a conversação. As visitas de rigor que ele fazia eram poucas,
breves e apenas faladas. E tudo isso foram os primeiros passos. A pouco e pouco
sentiu o sabor dos costumes velhos, a nostalgia das salas, a saudade do riso, e
não tardou que o aposentado da diplomacia fosse reintegrado no emprego da
recreação. A solidão, tanto no texto bíblico como na tradução do padre, era
arcaica. Aires trocou-lhe uma palavra e o sentido: “Alonguei-me fugindo, e
morei entre a gente”.
Assim se foi o programa da vida nova. Não é que ele já a
não entendesse nem amasse, ou que a não praticasse ainda alguma vez, a espaços,
como se faz uso de um remédio que obriga a ficar na cama ou na alcova; mas,
sarava depressa e tornava ao ar livre. Queria ver a outra gente, ouvi-la,
cheirá-la, gostá-la, apalpá-la, aplicar todos os sentidos a um mundo que podia
matar o tempo, o imortal tempo.
CAPÍTULO XXXIV – INEXPLICÁVEL
Assim o deixamos, há apenas dois capítulos, a um canto da
sala da gente Santos, em conversação com as senhoras. Hás de lembrar-te que
Flora não despegava os olhos dele, ansiosa de saber por que é que a achava
inexplicável. A palavra rasgava-lhe o cérebro, ferindo sem penetrar.
Inexplicável que era? Que se não explica, sabia; mas que se não explica por
quê? Quis perguntá-lo ao conselheiro, mas não achou ocasião, e ele saiu cedo. A
primeira vez, porém, que Aires foi a S. Clemente, Flora pediu-lhe familiarmente
o obséquio de uma definição mais desenvolvida. Aires sorriu e pegou na mão da
mocinha, que estava de pé.
Foi só o tempo de inventar esta resposta:
—Inexplicável é o nome que podemos dar aos artistas que
pintam sem acabar de pintar. Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta,
pouca tinta, nova tinta, e nunca lhes parece que a árvore é árvore, nem a
choupana. Se trata então de gente, adeus. Por mais que os olhos da figura
falem, sempre esses pintores cuidam que eles não dizem nada. E retocam com
tanta paciência, que alguns morrem entre dois olhos, outros matam-se de
desespero.
Flora achou a explicação obscura; e tu, amiga minha
leitora, se acaso és mais velha e mais fina que ela, pode ser que a não aches
mais clara. Ele é que não acrescentou nada, para não ficar incluído entre os
artistas daquela espécie. Bateu paternalmente na palma da mão de Flora, e
perguntou pelos estudos. Os estudos iam bem; como é que não iriam bem os
estudos? E sentando-se ao pé dele, a mocinha confessou que tinha ideia
justamente de aprender desenho e pintura, mas se havia de pôr tinta de mais ou
de menos, e acabar não pintando nada, melhor seria ficar só na música. A música
ia bem com ela, o francês também, e o inglês.
—Pois só a música, o inglês e o francês, concordou Aires.
—Mas o senhor promete que não me achará inexplicável?
perguntou ela com doçura.
Antes que ele respondesse, entraram na sala os dois gêmeos.
Flora esqueceu um assunto por outro, e o velho pelos rapazes. Aires não se
demorou mais que o tempo de a ver rir com eles, e sentir em si alguma cousa
parecida com remorsos. Remorsos de envelhecer, creio.
CAPÍTULO XXXV – EM VOLTA DA MOÇA
Já então os dois gêmeos cursavam um a Faculdade de Direito,
em S. Paulo; outro a Escola de Medicina, no Rio. Não tardaria muito que saíssem
formados e prontos, um para defender o direito e o torto da gente, outro para
ajudá-la a viver e a morrer. Todos os contrastes estão no homem.
Não era tanta a política que os fizesse esquecer Flora, nem
tanta Flora que os fizesse esquecer a política. Também não eram tais as duas
que prejudicassem estudos e recreios. Estavam na idade em que tudo se combina
sem quebra de essência de cada cousa. Lá que viessem a amar a pequena com igual
força é o que se podia admitir desde já, sem ser preciso que ela os atraísse de
vontade. Ao contrário, Flora ria com ambos, sem rejeitar nem aceitar
especialmente nenhum; pode ser até que nem percebesse nada. Paulo vivia mais
tempo ausente. Quando tornava pelas férias, como que a achava mais cheia de
graça. Era então que Pedro multiplicava as suas finezas para se não deixar
vencer do irmão, que vinha pródigo delas. E Flora recebia-as todas com o mesmo
rosto amigo.
Note-se — e este ponto deve ser tirado à luz, — note-se que
os dois gêmeos continuavam a ser parecidos e eram cada vez mais esbeltos.
Talvez perdessem estando juntos, porque a semelhança diminuía em cada um deles
a feição pessoal. Demais, Flora simulava às vezes confundi-los, para rir com
ambos. E dizia a Pedro:
—Dr. Paulo!
E dizia a Paulo:
—Dr. Pedro!
Em vão eles mudavam da esquerda para a direita e da direita
para a esquerda. Flora mudava os nomes também, e os três acabavam rindo. A
familiaridade desculpava a ação e crescia com ela. Paulo gostava mais de
conversa que de piano; Flora conversava. Pedro ia mais com o piano que com a
conversa; Flora tocava. Ou então fazia ambas as cousas, e tocava falando,
soltava a rédea aos dedos e à língua.
Tais artes, postas ao serviço de tais graças, eram
realmente de acender os gêmeos, e foi o que sucedeu pouco a pouco. A mãe dela
cuido que percebeu alguma cousa; mas a princípio não lhe deu grande cuidado.
Também ela foi menina e moça, também se dividiu a si sem se dar nada a ninguém.
Pode ser até que, a seu parecer, fosse um exercício necessário aos olhos do
espírito e da cara. A questão é que estes se não corrompessem, nem se deixassem
ir atrás de cantigas, como diz o povo, que assim exprime os feitiços de Orfeu.
Ao contrário, Flora é que fazia de Orfeu, ela é que era a cantiga.
Oportunamente, escolheria a um deles, pensava a mãe.
A intimidade tinha intervalos grandes, além das ausências
obrigadas de Paulo. Apesar de não sair, Pedro não a buscava sempre, nem ela ia
muita vez à casa da praia. Não se viam dias e dias. Que pensassem um no outro,
é possível; mas não possuo o menor documento disto. A verdade é que Pedro tinha
os seus companheiros de escola, os namoros de rua e de aventura, os partidos de
teatro, os passeios à Tijuca e outros arrabaldes. Ao demais, os dois gêmeos
estavam ainda no ponto de falar dela nas cartas, louvá-la, descrevê-la, dizer
mil cousas doces, sem ciúme.
CAPÍTULO XXXVI – A DISCÓRDIA NÃO É TÃO FEIA COMO SE PINTA
A discórdia não é tão feia como se pinta, meu amigo. Nem
feia, nem estéril. Conta só os livros que tem produzido, desde Homero até cá,
sem excluir… Sem excluir qual? Ia dizer que este, mas a Modéstia acena-me de
longe que pare aqui. Paro aqui; e viva a Modéstia, que mal suporta a letra
capital que lhe ponho, a letra e os vivas, mas há de ir com ela e com eles.
Viva a Modéstia, e excluamos este livro; fiquem só os grandes livros épicos e
trágicos, a que a Discórdia deu vida, e digam-me se tamanhos efeitos não provam
a grandeza da causa. Não, a discórdia não é tão feia como se pinta.
Teimo nisto para que as almas sensíveis não comecem de
tremer pela moça ou pelos rapazes. Não há mister tremer, tanto mais que a discórdia
dos dois começou por um simples acordo, naquela noite. Costeavam a praia,
calados, pensando só, até que ambos, como se falassem para si, soltaram esta
frase única:
—Está ficando bem bonita.
E voltando-se um para outro:
—Quem?
Ambos sorriram; acharam pico ao simultâneo da reflexão e da
pergunta. Sei que este fenômeno é tal qual o do capítulo XXV, quando eles
disseram da idade, mas não me culpem a mim; eram gêmeos, podiam ter o falar
gêmeo. O principal é que não se amofinaram; não era ainda amor o que sentiam.
Cada um expôs a sua opinião acerca das graças da pequena, o gesto, a voz, os
olhos e as mãos, tudo com tão boa sombra, que excluía a ideia de rivalidade.
Quando muito, divergiam na escolha da melhor prenda, que para Pedro eram os
olhos, e para Paulo a figura; mas como acabavam achando um total harmônico, era
visto que não brigavam por isso. Nenhum deles atribuía ao outro a cousa vaga ou
o que quer que era que principiavam a sentir, e mais pareciam estetas que
enamorados. Aliás, a mesma política os deixou em paz essa noite: não brigaram
por ela. Não é que não sentissem alguma cousa oposta, à vista da praia e do
céu, que estavam deliciosos. Lua cheia, água quieta, vozes confusas e esparsas,
algum tílburi a passo ou a trote, segundo ia vazio ou com gente. Tal ou qual
brisa fresca.
A imaginação os levou então ao futuro, a um futuro
brilhante com ele é em tal idade. Botafogo teria um papel histórico, uma
enseada imperial para Pedro, uma Veneza republicana para Paulo sem doge, nem
conselho dos dez, ou então um doge com outro título, um simples presidente, que
se casaria em nome do povo com este pequenino Adriático. Talvez o doge fosse
ele mesmo. Esta possibilidade, apesar dos anos verdes, enfunou a alma do moço.
Paulo viu-se à testa de uma república, em que o antigo e o moderno, o futuro e
o passado se mesclassem, uma Roma nova, uma Convenção Nacional, a República
Francesa e os Estados Unidos da América.
Pedro, à sua parte, construía a meio caminho como um
palácio para a representação nacional, outro para o imperador, e via-se a si
mesmo ministro e presidente do conselho. Falava, dominava o tumulto e as
opiniões, arrancava um voto à Câmara dos Deputados ou então expedia um decreto
de dissolução. É uma minúcia, mas merece inseri-la aqui: Pedro, sonhando com o
governo, pensava especialmente nos decretos de dissolução. Via-se em casa, com
o ato assinado, referendado, copiado, mandado aos jornais e às Câmaras, lido
pelos secretários, arquivado na secretaria, e os deputados saindo cabisbaixos,
alguns resmungando, outros irados. Só ele estava tranquilo, no gabinete,
recebendo os amigos que iam cumprimentá-lo e pedir os recados para a província.
Tais eram as grandes pinceladas da imaginação dos dois. As
estrelas recebiam no céu todos os pensamentos dos rapazes, a lua seguia quieta
e a vaga da praia estirava-se com a preguiça do costume. Voltaram a si ao pé de
casa. Tal ou qual impulso quis levá-los a discutir acerca do tempo e da noite,
da temperatura e da enseada. Algum murmúrio vago pode ser que lhes fizesse
mover os beiços e começar a quebrar o silêncio, mas o silêncio era tão augusto
que concordaram em respeitá-lo. E logo acharam de si para si que a lua era
esplêndida, a enseada bela e a temperatura divina.
CAPÍTULO XXXVII – DESACORDO NO ACORDO
Não esqueça dizer que, em 1888, uma questão grave e
gravíssima os fez concordar também, ainda que por diversa razão. A data explica
o fato: foi a emancipação dos escravos. Estavam então longe um do outro, mas a
opinião uniu-os.
A diferença única entre eles dizia respeito à significação
da reforma, que para Pedro era um ato de justiça, e para Paulo era o início da
revolução. Ele mesmo o disse, concluindo um discurso em S. Paulo, no dia 20 de
maio: “A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o
preto, resta emancipar o branco”.
Natividade ficou atônita quando leu isto; pegou da pena e
escreveu uma carta longa e maternal. Paulo respondeu com trinta mil expressões
de ternura, declarando no fim que tudo lhe poderia sacrificar, inclusive a vida
e até a honra; as opiniões é que não. “Não, mamãe; as opiniões é que
não”.
carta.
—As opiniões é que não. repetiu Natividade acabando de ler
a carta.
Natividade não acabava de entender os sentimentos do filho,
ela que sacrificara as opiniões aos princípios, como no caso de Aires, e
continuou a viver sem mácula. Como então não sacrificar?… Não achava
explicação. Relia a frase da carta e a do discurso; tinha medo de o ver perder
a carreira política, se era a política que o faria grande homem.
“Emancipado o preto, resta emancipar o branco”, era uma ameaça ao
imperador e ao império.
Não atinou… Nem sempre as mães atinam. Não atinou que a
frase do discurso não era propriamente do filho; não era de ninguém. Alguém a
proferiu um dia. em discurso ou conversa, em gazeta ou em viagem de terra ou de
mar. Outrem a repetiu, até que muita gente a fez sua. Era nova, era enérgica,
era expressiva, ficou sendo patrimônio comum.
Há frases assim felizes. Nascem modestamente, como a gente
pobre; quando menos pensam, estão governando o mundo, à semelhança das ideias.
As próprias ideias nem sempre conservam o nome do pai; muitas aparecem órfãs,
nascidas de nada e de ninguém. Cada um pega delas, verte-as como pode, e vai
levá-las à feira, onde todos as têm por suas.
CAPÍTULO XXXVIII – CHEGADA A PROPÓSITO
Quando, às duas horas da tarde do dia seguinte, Natividade
se meteu no bonde, para ir a não sei que compras na Rua do Ouvidor, levava a
frase consigo. A vista da enseada não a distraiu, nem a gente que passava, nem
os incidentes da rua, nada; a frase ia diante e dentro dela, com o seu aspecto
e tom de ameaça. No Catete, alguém entrou de salto, sem fazer parar o veículo.
Adivinha que era o conselheiro; adivinha também que, posto o pé no estribo, e
vendo logo adiante a nossa amiga, caminhou para lá rápido e aceitou a ponta do
banco que ela lhe ofereceu. Depois dos primeiros cumprimentos:
—Pareceu-me vê-la olhar assustada, disse Aires.
—Naturalmente, não imaginei que fosse capaz deste ato de
ginástica.
—Questão de costume. As pernas saltam por si mesmas. Um
dia. deixam-me cair, as rodas passam por cima…
—Fosse como fosse, chegou a propósito.
—Chego sempre a propósito. Já lhe ouvi isso, uma vez, há
muitos anos, ou foi a sua irmã… Ora, espere, não me esqueceu o motivo; creio
que falavam da cabocla do Castelo. Não se lembra de uma tal ou qual cabocla que
morava no Castelo, e adivinhava a sorte da gente? Eu estava aqui de licença, e
ouvi dizer cousas do arco-da-velha. Como sempre tive fé em Sibilas, acreditei
na cabocla. Que fim levou ela?
Natividade olhou para ele, como receando se teria
adivinhado então a consulta que ela fez à cabocla. Pareceu-lhe que não, sorriu
e chamou-lhe incrédulo. Aires negou que fosse incrédulo; ao contrário, sendo
tolerante, professava virtualmente todas as crenças deste mundo. E concluiu:
—Mas, enfim, por que é que chego a propósito?
Ou o passado, ou a pessoa, com as suas maneiras discretas e
espírito repousado, ou tudo isso junto, dava a este homem, relativamente a esta
senhora, uma confiança que ela não achava agora em ninguém ou acharia em
poucos. Falou-lhe de uma confidência, um papel que não mostraria ao marido.
—Quero um conselho, conselheiro; e demais, para que
incomodar a meu marido? Quando muito, contarei o negócio a mana Perpétua. Acho
melhor não dizer nada a Agostinho.
Aires concordou que não valia a pena aborrecê-lo, se era
caso disso, e esperou. Natividade, sem falar da cabocla, contou primeiro a
rivalidade dos filhos, já manifesta em política, e tratando especialmente de
Paulo, repetiu-lhe a frase da carta e perguntou o que cumpria fazer mais útil.
Aires entendeu que eram ardores da mocidade. Que não teimasse; teimando, ele
mudaria de palavras, mas não de sentimentos.
—Então crê que Paulo será sempre isto?
—Sempre, não digo; também não digo o contrário. Baronesa, a
senhora exige respostas definitivas, mas diga-me o que é que há definitivo
neste mundo, a não ser o voltarete de seu marido? Esse mesmo falha. Há quantos
dias não sei o que é uma licença? É verdade que não tenho aparecido. E depois,
o prazer da conversação paga bem o das cartas. Aposto que os homens casados que
lá vão são de outro parecer?
—Talvez.
—Só os solteirões podem avaliar as ideias das mulheres. Um
viúvo sem filhos, como eu, vale por um solteirão; minto, aos sessenta anos,
como eu, vale por dois ou três. Quanto ao jovem Paulo. não pense mais no
discurso. Também eu discursei em rapaz.
—Já cuidei em casá-los.
—Casar é bom, assentiu Aires.
—Não digo casar já, mas daqui a dois ou três anos. Talvez
faça antes uma viagem com eles. Que lhe parece? Vamos lá, não me responda
repetindo o que eu digo. Quero o seu pensamento verdadeiro. Acha que uma
viagem?…
—Acho que uma viagem…
—Acabe.
—As viagens fazem bem, mormente na idade deles. Formam-se
para o ano, não é? Pois então! Antes de começar qualquer carreira. casados ou
não, é útil ver outras terras… Mas que necessidade tem a senhora de ir com
eles?
—As mães…
—Mas eu também (desculpe interrompê-la) mas eu também sou
seu filho. Não acha que o costume, o bom rosto, a graça, a afeição e todas as
prendas grisalhas que a adornam compõem uma espécie de maternidade? Eu
confesso-lhe que ficaria órfão.
—Pois venha conosco.
—Ah! baronesa, para mim já não há mundo que valha um
bilhete de passagem. Vi tudo por várias línguas. Agora o mundo começa aqui no
cais da Glória ou na Rua do Ouvidor e acaba no cemitério de S. João Batista.
Ouço que há uns mares tenebrosos para os lados da Ponta do Caju, mas eu sou um
velho incrédulo, como a senhora dizia há pouco, e não aceito essas notícias sem
prova cabal e visual, e para ir averiguá-las, faliam-me pernas.
—Sempre gracioso! Não as vi treparem agora? Sua irmã
disse-me outro dia que o senhor anda como aos trinta anos.
—Rita exagera. Mas, voltando à viagem, a senhora ainda não
comprou os bilhetes?
—Não.
—Não os encomendou sequer?
—Também não.
—Então, pensemos em outra cousa. Cada dia traz a sua
ocupação, quanto mais as semanas e os meses. Pensemos em outra cousa. e deixe
lá o Paulo pedir a república.
Natividade achou consigo que ele tinha razão; depois,
pensou em outra cousa, e esta foi a ideia do princípio. Não disse logo o que
era — preferiu conversar alguns minutos. Não era difícil com este sujeito. Uma
das suas qualidades era falar com mulheres, sem descair na banalidade nem subir
às nuvens; tinha um modo particular, que não sei se estava na ideia, se no
gesto, se na palavra. Não é que falasse mal de ninguém, e aliás seria uma
distração. Quero crer que não dissesse mal por indiferença ou cautela;
provisoriamente, ponhamos caridade.
—Mas, a senhora ainda me não disse o que queria de mim,
além do conselho. Ou não quer mais nada?
—Custa-me pedir-lhe.
—Peça sempre.
—Sabe que os meus dois gêmeos não combinam em nada, ou só
em pouco, por mais esforços que eu tenha feito para os trazer a certa harmonia.
Agostinho não me ajuda; tem outros cuidados. Eu mesma já não me sinto com
forças, e então pensei que um amigo, um homem moderado, um homem de sociedade,
hábil, fino, cauteloso, inteligente, instruído…
—Eu, em suma?
—Adivinhou.
—Não adivinhei; é o meu retrato em pessoa. Mas então que lhe
parece que possa fazer?
Pode corrigi-los por boas maneiras; fazê-los unidos, ainda
quando discordem, e que discordem pouco ou nada. Não imagina; parece até
propósito. Não discordam da cor da Lua, por exemplo, mas aos onze anos Pedro
descobriu que as sombras da Lua eram nuvens, e Paulo que eram falhas da nossa
vista, e atracaram-se; eu é que os separei. Imagine em política…
—Imagine em amores, diga logo; mas não é propriamente para
esse caso…
—Oh! não!
—Para os outros é igualmente inútil, mas eu nasci para
servir, ainda inutilmente. Baronesa, o seu pedido equivale a nomear-me aio ou
preceptor… Não faça gestos; não me dou por diminuído Contanto que me pague os
ordenados… E não se assuste; peço pouco, pague-me em palavras; as suas
palavras são de ouro. Já lhe disse que toda a minha ação é inútil.
—Por quê?
—É! inútil.
—Uma pessoa de autoridade, como o senhor, pode muito,
contanto que os ame, porque eles são bons, creia. Conhece-os bem?
—Pouco.
—Conheça-os mais e verá.
Aires concordou rindo. Para Natividade valia por uma
tentativa nova. Confiava na ação do conselheiro, e para dizer tudo… Não sei
se diga… Digo. Natividade contava com a antiga inclinação do velho diplomata.
As cãs não lhe tirariam o desejo de a servir. Não sei quem me lê nesta ocasião.
Se é homem, talvez não entenda logo, mas se é mulher creio que entenderá. Se
ninguém entender paciência; basta saber que ele prometeu o que ela quis, e
também prometeu calar-se; foi a condição que a outra lhe pôs. Tudo isso polido,
sincero e incrédulo.
CAPÍTULO XXXIX – UM GATUNO
Chegaram ao Largo da Carioca, apearam-se e despediram-se;
ela entrou pela Rua Gonçalves Dias, ele enfiou pela da Carioca. No meio desta,
Aires encontrou um magote de gente parada, logo depois andando em direção ao
largo. Aires quis arrepiar caminho, não de medo, mas de horror. Tinha horror à
multidão. Viu que a gente era pouca, cinquenta ou sessenta pessoas, e ouviu que
bradava contra a prisão de um homem. Entrou num corredor, à espera que o magote
passasse. Duas praças de polícia traziam o preso pelo braço. De quando em
quando, este resistia, e então era preciso arrastá-lo ou forçá-lo por outro
método. Tratava-se, ao que parece, do furto de uma carteira.
—Não furtei nada! — bradava o preso detendo o passo. É
falso! Larguem-me! sou um cidadão livre! Protesto! protesto!
—Siga para a estação!
—Não sigo!
—Não siga! bradava a gente anônima. Não siga! não siga!
Uma das praças quis convencer a multidão que era verdade,
que o sujeito furtara uma carteira, e o desassossego pareceu minorar um pouco;
mas, indo a praça a andar com a outra e o preso, — cada uma pegando-lhe um dos
braços, a multidão recomeçou a bradar contra a violência. O preso sentiu-se
animado, e ora lastimoso, ora agressivo, convidava a defesa. Foi então que a
outra praça desembainhou a espada para fazer um claro. A gente voou, não
airosamente, como a andorinha ou a pomba, em busca do ninho ou do alimento,
voou de atropelo, pula aqui, pula ali, pula acolá, para todos os lados. A
espada entrou na bainha, e o preso seguiu com as praças. Mas logo os peitos
tomaram vingança das pernas, e um clamor ingente, largo, desafrontando, encheu
a rua e a alma do preso. A multidão fez-se outra vez compacta e caminhou para a
estação policial. Aires seguiu caminho.
A vozeira morreu pouco a pouco, e Aires entrou na
Secretaria do Império. Não achou o ministro, parece, ou a conferência foi
curta. Certo é que, saindo à praça, encontrou partes do magote que tornavam
comentando a prisão e o ladrão. Não diziam ladrão, mas gatuno, fiando que era
mais doce, e tanto bradavam há pouco contra a ação das praças, como riam agora
das lástimas do preso.
—Ora o sujeito!
Mas então… perguntarás tu. Aires não perguntou nada. Ao
cabo, havia um fundo de justiça naquela manifestação dupla e contraditória; foi
o que ele pensou. Depois, imaginou que a grita da multidão protestante era
filha de um velho instinto de resistência à autoridade. Advertiu que o homem,
uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para
viver; mas não há paraíso que valha o gosto da oposição. Que o homem se
acostume às leis, vá; que incline o colo à força e ao bel-prazer, vá também; é
o que se dá com a planta, quando sopra o vento. Mas que abençoe a força e
cumpra as leis sempre, sempre, sempre, é violar a liberdade primitiva, a
liberdade do velho Adão. Ia assim cogitando o conselheiro Aires.
Não lhe atribuam todas essas ideias. Pensava assim, como se
falasse alto, à mesa ou na sala de alguém. Era um processo de crítica mansa e
delicada, tão convencida em aparência, que algum ouvinte, à cata de ideias,
acabava por lhe apanhar uma ou duas… ia a descer pela Rua Sete de Setembro,
quando a lembrança da vozeria trouxe a de outra, maior e mais remota.
CAPÍTULO XL – RECUERDOS
Essa outra vozeria maior e mais remota não caberia aqui, se
não fosse a necessidade de explicar o gesto repentino com que Aires parou na
calçada. Parou, tornou a si e continuou a andar com os olhos no chão e a alma
em Caracas. Foi em Caracas, onde ele servira na qualidade de adido de legação.
Estava em casa, de palestra com uma atriz da moda, pessoa chistosa e garrida.
De repente, ouviram um clamor grande, vozes tumultuosas, vibrantes,
crescentes…
—Que rumor é este, Carmen? perguntou ele entre duas
carícias.
—Não se assuste, amigo meu; é o governo que cai.
—Mas eu ouço aclamações…
—Então é o governo que sobe. Não se assuste. Amanhã é tempo
de ir cumprimentá-lo.
Aires deixou-se ir rio abaixo daquela memória velha, que
lhe surdia agora do alarido de cinquenta ou sessenta pessoas. Essa espécie de
lembranças tinha mais efeito nele que outras. Recompôs a hora, o lugar e a
pessoa da sevilhana. Cármen era de Sevilha. O ex-rapaz ainda agora recordava a
cantiga popular que lhe ouvia, à despedida depois de retificar as ligas, compor
as saias, e cravar o pente no cabelo, — no momento em que ia deitar a mantilha,
meneando o corpo com graça:
Tienen las sevillanas,
En la mantilla,
Un letrero que disse:
¡Viva Sevilla!
Não posso dar a toada, mas Aires ainda a trazia de cor, e
vinha a repeti-la consigo, vagarosamente, como ia andando. Outrossim, meditava
na ausência de vocação diplomática. A ascensão de um governo, — de um regímen
que fosse, — com as suas ideias novas, os seus homens frescos, leis e
aclamações, valia menos para ele que o riso da jovem comediante. Onde iria ela?
A sombra da moça varreu tudo o mais, a rua, a gente, o gatuno, para ficar só
diante do velho Aires, dando aos quadris e cantarolando a trova andaluza:
Tienen las sevillanas,
En la mantilla…
CAPÍTULO XLI – CASO DO BURRO
Se Aires obedecesse ao seu gosto, e eu a ele, nem ele
continuaria a andar, nem eu começaria este capítulo; ficaríamos no outro, sem
nunca mais acabá-lo. Mas não há na memória que dure, se outro negócio mais
forte puxa pela atenção, e um simples burro fez desaparecer Cármen e a sua
trova.
Foi o caso que uma carroça estava parada, ao pé da Travessa
de S. Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada
no burro da carroça. Vulgar embora, este espetáculo fez parar o nosso Aires,
não menos condoído do asno do homem. A força despendida por este era grande,
porque o asno ruminava se devia ou não sair do lugar; mas, não obstante esta
superioridade, apanhava que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas,
mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação — finalmente o burro
preferiu a marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando.
Nos olhos redondos do animal viu Aires uma expressão
profunda de ironia e paciência. Pareceu-lhe o gesto largo de espírito
invencível. Depois leu neles este monólogo; “Anda, patrão, atulha a
carroça de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé no chão
para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um
nome feio, mas eu não te chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido patrão.
Enquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu domínio não
vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar…”
—Vê-se, quase que se lhe ouve a reflexão, notou Aires
consigo.
Depois riu de si para si, e foi andando. Inventara tanta
cousa no serviço diplomático, que talvez inventasse o monólogo do burro. Assim
foi; não lhe leu nada nos olhos, a não ser a ironia e a paciência, mas não se
pôde ter que lhes não desse uma forma de palavra, com as suas regras de
sintaxe. A própria ironia estava acaso na retina dele. O olho do homem serve de
fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio. Tudo é que o
dono tenha um lampejo de imaginação para ajudar a memória a esquecer Caracas e
Cármen, os seus beijos e experiência política.
CAPÍTULO XLII – UMA HIPÓTESE
Visões e reminiscências iam assim comendo o tempo e o
espaço ao conselheiro, a ponto de lhe fazerem esquecer o pedido de Natividade;
mas não o esqueceu de todo, e as palavras trocadas há pouco surdiam-lhe das
pedras da rua. Considerou que não perdia muito em estudar os rapazes. Chegou a
apanhar uma hipótese, espécie de andorinha, que avoaça entre árvores, abaixo e
acima, pousa aqui, pousa ali, arranca de novo um surto e toda se despeja em
movimentos. Tal foi a hipótese vaga e colorida, a saber, que se os gêmeos
tivessem nascido dele talvez não divergissem tanto nem nada, graças ao
equilíbrio do seu espírito. A alma do velho entrou a ramalhar não sei que
desejos retrospectivos, e a rever essa hipótese, outra Caracas, outra Cármen,
ele pai, estes meninos seus, toda a andorinha que se dispersava num farfalhar
calado de gestos.
CAPÍTULO XLIII – O DISCURSO
Natividade é que não teve distrações de espécie alguma.
Toda ela estava nos filhos, e agora especialmente na carta e no discurso.
Começou por não dar resposta às efusões políticas de Paulo; foi um dos
conselhos do conselheiro. Quando o filho tornou pelas férias tinha esquecido a
carta que escrevera.
O discurso é que ele não esqueceu, mas quem é que esquece
os discursos que faz? Se são bons, a memória os grava em bronze; se ruins,
deixam tal ou qual amargor que dura muito. O melhor dos remédios, no segundo
caso, é supô-los excelentes, e, se a razão não aceita esta imaginação,
consultar pessoas que a aceitem, e crer nelas. A opinião é um velho óleo
incorruptível.
Paulo tinha talento. O discurso daquele dia podia pecar
aqui ou ali por alguma ênfase, e uma ou outra ideia vulgar e exausta. Tinha
talento Paulo. Em suma, o discurso era bom. Santos achou-o excelente, leu-o aos
amigos e resolveu transcrevê-lo nos jornais. Natividade não se opôs, mas
entendia que algumas palavras deviam ser cortadas.
—Cortadas, por quê? perguntou Santos, e ficou esperando a
resposta.
—Pois você não vê, Agostinho; estas palavras têm sentido
republicano, explicou ela relendo a frase que a afligira.
Santos ouviu-as ler, leu-as para si, e não deixou de lhe
achar razão. Entretanto, não havia de as suprimir.
—Pois não se transcreve o discurso.
—Ah! isso não! O discurso é magnífico, e não há de morrer
em S. Paulo; é preciso que a Corte o leia, e as províncias também, e até não se
me daria fazê-lo traduzir em francês. Em francês, pode ser que fique ainda
melhor.
—Mas, Agostinho, isto pode fazer mal à carreira do rapaz; o
imperador pode ser que não goste…
Pedro que assistia desde alguns instantes ao debate,
interveio docemente para dizer que os receios da mãe não tinham base; era bom
pôr a frase toda, e, a rigor, não diferia muito do que os liberais diziam em
1848.
—Um monarquista liberal pode muito bem assinar esse trecho
concluiu ele depois de reter as palavras do irmão.
—Justamente! assentiu o pai.
Natividade, que em tudo via a inimizade dos gêmeos,
suspeitou que o intuito de Pedro fosse justamente comprometer Paulo. Olhou para
ele a ver se lhe descobria essa intenção torcida, mas a cara do filho tinha
então o aspecto do entusiasmo. Pedro lia trechos do discurso, acentuando as
belezas, repetindo as frases mais novas, cantando as mais redondas,
revolvendo-as na boca, tudo com tão boa sombra que a mãe perdeu a suspeita, e a
impressão do discurso foi resolvida. Também se tirou uma edição em folheto, e o
pai mandou encadernar ricamente sete exemplares, que levou aos ministros, e um
ainda mais rico para a Regente.
—Você diga-lhe, aconselhou Natividade, que o nosso Paulo é
liberal ardente…
—Liberal de 1848, completou Santos lembrando as palavras de
Pedro.
Santos cumpriu à risca. A entrega se fez naturalmente, e,
no palácio Isabel, a definição do “liberal de 1848” saiu mais viva
que as outras palavras, ou para diminuir o cheiro revolucionário da frase
condenada pela mulher, ou porque trazia valor histórico.
Quando ele voltou a casa, a primeira cousa que lhe disse
foi que a Regente perguntara por ela, mas apesar de lisonjeada com a lembrança,
Natividade quis saber da impressão que lhe fizera o discurso, se já o lera.
—Parece que foi boa. Disse-me que já havia lido o discurso.
Nem por isso deixei de lhe dizer que os sentimentos de Paulo eram bons; que, se
lhe notávamos certo ardor, compreendíamos sempre que eles eram os de um liberal
de 1848…
—Papai disse isso? perguntou Pedro.
—Por que não, se é verdade? Paulo é o que se pode chamar um
liberal de 1848, repetiu Santos querendo convencer o filho.
CAPÍTULO XLIV – O SALMO
Pelas férias é que Paulo soube da interpretação que o pai
dera à Regente daquele trecho do discurso. Protestou contra ela, em casa; quis
fazê-lo também em público, mas Natividade interveio a tempo. Aires pôs água na
fervura, dizendo ao futuro bacharel:
—Não vale a pena, moço, o que importa é que cada um tenha
as suas ideias e se bata por elas, até que elas vençam. Agora que outros as
interpretem mal é cousa que não deve afligir o autor.
—Afligir, sim, senhor; pode parecer que é assim mesmo…
Vou escrever um artigo a propósito de qualquer cousa, e não deixarei dúvidas…
—Para quê? inquiriu Aires.
—Não quero que suponham…
—Mas quem duvida dos seu sentimentos?
—Podem duvidar.
—Ora, qual! Em todo caso, vá primeiro almoçar comigo um dia
destes… Olhe, vá domingo, e seu irmão Pedro também. Seremos três à mesa, um
almoço de rapazes. Beberemos certo vinho que me deu o ministro da Alemanha…
No domingo foram os dois ao Catete, menos pelo almoço que
pelo anfitrião. Aires era amado dos dois; gostavam de ouvi-lo, de interrogá-lo,
pediam-lhe anedotas políticas de outro tempo, descrição de festas, notícias de
sociedade.
—Vivam os meus dois jovens, disse o conselheiro, vivam os
meus dois jovens que não esqueceram o amigo velho. Papai como está? E mamãe?
—Estão bons, disse Pedro.
Paulo acrescentou que ambos lhe mandavam lembranças.
—E tia Perpétua?
—Também está boa, disse Paulo.
—Sempre com a homeopatia e as suas histórias do Paraguai,
acrescentou Pedro.
Pedro estava alegre, Paulo preocupado. Depois das primeiras
saudações e notícias, Aires notou essa diferença, e achou que era bom para
tirar a monotonia da semelhança — mas, enfim, não queria caras fechadas, e
indagou do estudante de Direito o que é que ele tinha.
—Nada.
—Não pode ser; acho-lhe um ar meio sorumbático. Pois eu
acordei disposto a rir, e desejo que ambos riam comigo.
Paulo rosnou uma palavra que nenhum deles entendeu e sacou
do bolso um maço de folhas de papel. Era um artigo…
—Um artigo?
—Um artigo em que tiro todas as dúvidas a meu respeito, e
peço ao senhor que me ouça, é pequeno. Escrevi-o a noite passada.
Aires propôs ouvi-lo depois do almoço, mas o rapaz pediu
que fosse logo, e Pedro concordou com este alvitre, alegando que, sobre o
almoço, podia perturbar a digestão, como ruim droga que devia ser.
naturalmente. Aires meteu o caso à bulha e aceitou ouvir o artigo.
—É pequeno, sete tiras.
—Letra miúda?
—Não, senhor; assim, assim.
Paulo leu o artigo. Tinha por epígrafe isto de Amós:
“Ouvi esta palavra, vacas gordas que estais no monte de Samaria…”
As vacas gordas eram o pessoal do regímen, explicou Paulo. Não atacava o
imperador, por atenção à mãe, mas com o princípio e o pessoal era violento e
áspero. Aires sentiu-lhe aquilo que, em tempo, se chamou “a bossa da
combatividade”. Quando Paulo acabou, Pedro disse em ar de mofa:
—Conheço tudo isso, são ideias paulistas.
—As tuas são ideias coloniais, replicou Paulo.
Deste introito podiam nascer piores palavras, mas
felizmente um criado chegou à porta anunciando que o almoço estava na mesa.
Aires ergueu-se e disse que à mesa daria a sua opinião.
—Primeiro o almoço, tanto mais que temos um salmão, cousa
especial! Vamos a ele.
Aires queria cumprir deveras o ofício que aceitara de
Natividade. Quem sabe se a ideia de pai espiritual dos gêmeos, pai de desejo
somente, pai que não foi, que teria sido, não lhe dava uma afeição particular e
um dever mais alto que o de simples amigo? Nem é fora de propósito que ele
buscasse somente matéria nova para as páginas nuas de seu Memorial.
Ao almoço, ainda se falou do artigo, Paulo com amor, Pedro
com desdém, Aires sem uma nem outra cousa. O almoço ia fazendo o seu ofício.
Aires estudava os dois rapazes e suas opiniões. Talvez estas não passassem de
uma erupção de pele da idade. E sorria, fazia-os comer e beber, chegou a falar
de moças, mas aqui os rapazes, vexados e respeitosos, não acompanharam o
ex-ministro. A política veio morrendo. Na verdade, Paulo ainda se declarou
capaz de derribar a monarquia com dez homens, e Pedro de extirpar o gérmen
republicano com um decreto. Mas o ex-ministro, sem mais decreto que uma
caçarola, nem mais homens que o seu cozinheiro, envolveu os dois regimes no
mesmo salmão delicioso.
CAPÍTULO XLV – MUSA, CANTA…
No fim do almoço, Aires deu-lhes uma citação de Homero,
aliás duas, uma para cada um, dizendo-lhes que o velho poeta os cantara
separadamente, Paulo no começo da Ilíada:
—”Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu,
cólera funesta aos gregos, que precipitou à estancia de Plutão tantas almas
válidas de heróis, entregues os corpos às aves e aos cães…”
Pedro estava no começo da Odisséia:
—”Musa, canta aquele herói astuto, que errou por
tantos tempos, depois de destruída a santa Ílion…”
Era um modo de definir o caráter de ambos, e nenhum deles
levou a mal a aplicação. Ao contrário, a citação poética valia por um diploma
particular. O fato é que ambos sorriam de fé, de aceitação, de agradecimento,
sem que achassem uma palavra ou sílaba com que desmentissem o adequado dos
versos. Que ele, o conselheiro, depois de os citar em prosa nossa, repetiu-os
no próprio texto grego e os dois gêmeos sentiram-se ainda mais épicos, tão
certo é que traduções não valem originais. O que eles fizeram foi dar um
sentido deprimente ao que era aplicável ao irmão:
—Tem razão, Sr. conselheiro. — disse Paulo, — Pedro é um
velhaco…
—E você é um furioso…
—Em grego, meninos, em grego e em verso, que é melhor que a
nossa língua e a prosa do nosso tempo.
CAPÍTULO XLVI – ENTRE UM ATO E OUTRO
Aqueles almoços repetiram-se, os meses passaram, vieram
férias acabaram-se férias, e Aires penetrava bem os gêmeos. Escrevia-os no
Memorial, onde se lê que a consulta ao velho Plácido dizia respeito aos dois, e
mais a ida à cabocla do Castelo a briga antes de nascer, casos velhos e
obscuros que ele relembrou, ligou e decifrou.
Enquanto os meses passam, fazer de conta que estás no
teatro, entre um ato e outro, conversando. Lá dentro preparam a cena, e os
artistas mudam de roupa. Não vás lá; deixa que a dama, no camarim, ria com os
seus amigos o que chorou cá fora com os espectadores. Quanto ao jardim que se
está fazendo, não te exponhas a vê-lo pelas costas; é pura lona velha sem
pintura, porque só a parte do espectador é que tem verdes e flores. Deixa-te
estar cá fora no camarote desta senhora. Examina-lhe os olhos; têm ainda as
lágrimas que lhe arrancou a dama da peça. Fala-lhe da peça e dos artistas. Que
é obscura. Que não sabem os papéis. Ou então que é tudo sublime. Depois
percorre os camarotes com o binóculo, distribui justiça, chama belas às belas e
feias às feias, e não te esqueças de contar anedotas que desfeiem as belas, e
virtudes que componham as feias. As virtudes devem ser grandes e as anedotas
engraçadas. Também as há banais, mas a mesma banalidade na boca de um bom
narrador faz-se rara e preciosa. E verás como as lágrimas secam inteiramente, e
a realidade substitui a ficção. Falo por imagem; sabes que tudo aqui é verdade
pura e sem choro.
CAPÍTULO XLVII – S. MATEUS, IV, 1-10
Se há muito riso quando um partido sobe, também há muita
lágrima do outro que desce, e do riso e da lágrima se faz o primeiro dia da
situação, como nos Gênesis. Venhamos ao evangelista que serve de título ao
capítulo. Os liberais foram chamados ao poder, que os conservadores tiveram de
deixar. Não é mister dizer que o abatimento de Batista foi enorme.
—Justamente agora que eu tinha esperanças, disse ele à
mulher.
—De quê?
—Ora de quê! de uma presidência. Não disse nada, porque
podiam falhar, mas é quase certo que não. Tive duas conferências, não com
ministros, mas com pessoa influente que sabia, e era negócio de esperar um mês
ou dois…
—Presidência boa?
—Boa.
—Se você tinha trabalhado bem…
—Se tivesse trabalhado bem, podia estar já de posse, mas
vínhamos agora a toque de caixa.
—Isso é verdade, concordou D. Cláudia olhando para o
futuro.
Batista passeava, as mãos nas costas, os olhos no chão, suspirando,
sem prever o tempo em que os conservadores tornariam ao poder. Os liberais
estavam fortes e resolutos. As mesmas ideias pairavam na cabeça de D. Cláudia.
Este casal só não era igual na vontade; as ideias eram muitas vezes tais que,
se aparecessem cá fora, ninguém diria quais eram as dele, nem quais as dela,
pareciam vir de um cérebro único. Naquele momento nenhum achava esperança
imediata ou remota. Uma só ideia vaga… E foi aqui que a vontade de D. Cláudia
fincou os pés no chão e cresceu. Não falo só por imagem;
D. Cláudia levantou-se da cadeira, rápida, e disparou esta
pergunta ao marido:
—Mas, Batista, você o que é que espera mais dos
conservadores?
Batista parou com um ar digno e respondeu com simplicidade:
—Espero que subam.
—Que subam? Espera oito ou dez anos, o fim do século, não
é? E nessa ocasião você sabe se será aproveitado? Quem se lembrará de você?
—Posso fundar um jornal.
—Deixe-se de jornais. E se morrer?
—Morro no meu posto de honra.
D. Cláudia olhou fixa para ele. Os seus olhos miúdos
enterravam-se pelos dele abaixo, como duas verrumas pacientes. Súbito,
levantando as mãos abertas:
—Batista, você nunca foi conservador!
O marido empalideceu e recuou, como se ouvira a própria
ingratidão de um partido. Nunca fora conservador? Mas que era ele então, que
podia ser neste mundo? Que é que lhe dava a estima dos seus chefes? Não lhe
faltava mais nada… D. Cláudia não atendeu a explicações, repetiu-lhe as
palavras, e acrescentou:
—Você estava com eles, como a gente está num baile, onde
não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha.
Batista sorriu leve e rápido; amava as imagens graciosas e
aquela pareceu-lhe graciosíssima, tanto que concordou logo; mas a sua estrela
inspirou-lhe uma refutação pronta.
—Sim, mas a gente não dança com ideias, dança com pernas.
—Dance com que for, a verdade é que todas as suas ideias
iam para os liberais; lembre-se que os dissidentes na província acusavam a você
de apoiar os liberais…
—Era falso; o governo é que me recomendava moderação. Posso
mostrar cartas.
—Qual moderação! Você é liberal.
—Eu liberal?
—Um liberalão, nunca foi outra cousa.
—Pense no que diz, Cláudia. Se alguém a ouvir é capaz de
crer, e daí a espalhar…
—Que tem que espalhe? Espalha a verdade, espalha a justiça,
porque os seus verdadeiros amigos não o hão de deixar na rua agora que tudo se
organiza. Você tem amigos pessoais no ministério, por que é que os não procura?
Batista recuou com horror. Isto de subir as escadas do
poder e dizer-lhe que estava às ordens não era concebível sequer. D. Cláudia
admitiu que não, mas um amigo faria tudo, um amigo íntimo do governo que
dissesse ao Ouro Preto: “Visconde, você por que é que não convida o
Batista? Foi sempre liberal nas ideias. Dê-lhe uma presidência, pequena que
seja, e…
Batista fez um gesto de ombros, outro de mão que se
calasse. A mulher não se calou; foi dizendo as mesmas cousas, agora mais graves
pela insistência e pelo tom. Na alma do marido a catástrofe era já tremenda.
Pensando bem, não recusaria passar o Rubicon; só lhe faltava a força
necessária. Quisera querer. Quisera não ver nada, nem passado, nem presente,
nem futuro, não saber de homens nem de cousas, e obedecer aos dados da sorte,
mas não podia.
E façamos justiça ao homem. Quando ele pensava só na
fidelidade aos amigos sentia-se melhor; a mesma fé existia, o mesmo costume, a
mesma esperança. O mal vinha de olhar para o lado de lá; e era D. Cláudia que
lhe mostrava com o dedo a carreira, a alegria, a vida, a marcha certa e longa,
a presidência, o ministério… Ele torcia os olhos e ficava.
A sós consigo, Batista pensou muita vez na situação pessoal
e política. Apalpava-se moralmente. Cláudia podia ter razão. Que é que havia
nele propriamente conservador, a não ser esse instinto de toda criatura, que a
ajuda a levar este mundo? Viu-se conservador em política, porque o pai o era, o
tio, os amigos da casa, o vigário da paróquia, e ele começou na escola a
execrar os liberais. E depois não era propriamente conservador, mas saquarema
como os liberais eram luzias. Batista agarrava-se agora a estas designações
obsoletas e deprimentes que mudavam o estilo aos partidos; donde vinha que hoje
não havia entre ele o grande abismo de 1842 e 1848. E lembrava-se do Visconde
de Albuquerque ou de outro senador que dizia em discurso não haver nada mais
parecido com um conservador que um liberal, e vice-versa. E evocava exemplos, o
Partido Progressista, Olinda, Nabuco, Zacarias, que foram eles senão
conservadores que compreenderam os tempos novos e tiraram às ideias liberais
aquele sangue das revoluções, para lhes pôr uma cor viva, sim, mas serena. Nem
o mundo era dos emperrados… Neste ponto passou-lhe um frio pela espinha.
Justamente nessa ocasião apareceu Flora. O pai abraçou-a com amor, e
perguntou-lhe se queria ir para alguma província, sendo ele presidente.
—Mas os conservadores não caíram?
—Caíram, sim, mas supõe que…
—Ah! não, papai!
—Não, por quê?
—Não desejo sair do Rio de Janeiro.
Talvez o Rio de Janeiro para ela fosse Botafogo, e
propriamente a casa de Natividade. O pai não apurou as causas da recusa;
supô-las políticas, e achou novas forças para resistir às tentações de D.
Cláudia: “Vai-te, Satanás; porque escrito está: Ao Senhor teu Deus
adorarás, e a ele servirás”. E seguiu-se como na Escritura: “Então o
deixou o Diabo; e eis que chegaram os anos e o serviram”. Os anjos foram
só um, que valia por muitos; e o pai lhe disse beijando-a carinhosamente:
—Muito bem, muito bem, minha filha.
—Não é, papai?
Não, não foi a filha que tolheu a deserção do pai. Ao
contrário. Batista, se tivesse de ceder, cederia à mulher ou ao Diabo,
sinônimos neste capítulo. Não cedeu de fraqueza. Não tinha a força precisa de
trair os amigos, por mais que estes parecessem havê-lo abandonado. Há dessas
virtudes feitas de acanho e timidez, e nem por isso menos lucrativas,
moralmente falando. Não valem só estoicos e mártires. Virtudes meninas também
são virtudes. É certo, porém, que a linguagem dele, em relação aos liberais,
não era já de ódio ou impaciência; chegava à tolerância, roçava pela justiça.
Concordava que a alternação dos partidos era um princípio de necessidade
pública. O que fazia era animar os amigos. Tornariam cedo ao poder. Mas D.
Cláudia opinava o contrário; para ela, os liberais iriam ao fim do século.
Quando muito, admitiu que na primeira entrada não dessem lugar a um converso da
última hora; era preciso esperar um ano ou dois, uma vaga na Câmara, uma
comissão, a vice-presidência do Rio…
CAPÍTULO XLVIII – TERPSÍCORE
Nenhuma dessas cousas preocupava Natividade. Mais depressa
cuidaria do baile da ilha Fiscal, que se realizou em novembro para honrar os
oficiais chilenos. Não é que ainda dançasse, mas sabia-lhe bem ver dançar os
outros, e tinha agora a opinião de que a dança é um prazer dos olhos. Esta
opinião é um dos efeitos daquele mau costume de envelhecer. Não pegues tal
costume, leitora. Há outros também ruins, nenhum pior, este é o péssimo. Deixa
lá dizerem filósofos que a velhice é um estado útil pela experiência e outras
vantagens. Não envelheças, amiga minha, por mais que os anos te convidem a
deixar a primavera; quando muito, aceita o estio. O estio é bom, cálido, as
noites são breves, é certo, mas as madrugadas não trazem neblina, e o céu
aparece logo azul. Assim dançarás sempre.
Bem sei que há gente para quem a dança é um prazer dos olhos.
Nem as bailadeiras são outra cousa mais que mulheres de ofício. Também eu, se é
lícito citar alguém a si mesmo, também eu acho que a dança é antes prazer dos
olhos que dos pés, e a razão não é só dos anos longos e grisalhos, mas também
outra que não digo, por não valer a pena. Ao cabo, não estou contando a minha
vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não seja das pessoas que entram no
livro. Estas é que preciso pôr aqui integralmente com as suas virtudes e
imperfeições, se as têm. Entende-se isto, sem ser preciso notá-lo, mas não se
perde nada em repeti-lo.
Por exemplo, D. Cláudia. Também ela pensava no baile da
ilha Fiscal, sem a menor ideia de dançar, nem a razão estética da outra. Para
ela, o baile da ilha era um fato político, era o baile do ministério, uma festa
liberal, que podia abrir ao marido as portas de alguma presidência. Via-se já
com a família imperial. Ouvia a princesa:
—Como vai, D. Cláudia?
—Perfeitamente bem, Sereníssima senhora.
E Batista conversaria com o imperador, a um canto, diante
dos olhos invejosos que tentariam ouvir o diálogo, à força de os fitarem de
longe. O marido é que… Não sei que diga do marido relativamente ao baile da
ilha. Contava lá ir, mas não se acharia a gosto; pode ser que traduzissem esse
ato por meia conversão. Não é que só fossem liberais ao baile, também iriam
conservadores, e aqui cabia bem o aforismo de D. Cláudia que não é preciso ter
as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha.
Santos é que não precisava de ideias para dançar. Não
dançaria sequer. Em moço dançou muito, quadrilhas, polcas, valsas, a valsa
arrastada e a valsa pulada, como diziam então, sem que eu possa definir melhor
a diferença; presumo que na primeira os pés não saíam do chão, e na segunda não
caíam do ar. Tudo isso até os vinte e cinco anos. Então os negócios pegaram
dele e o meteram naquela outra contradança, em que nem sempre se volta ao mesmo
lugar ou nunca se sai dele. Santos saiu e já sabemos onde está. Ultimamente
teve a fantasia de ser deputado. Natividade abanou a cabeça, por mais que ele
explicasse que não queria ser orador nem ministro, mas tão somente fazer da
Câmara um degrau para o Senado, onde possuía amigos, pessoas de merecimento, e
que era eterno.
—Eterno? interrompeu ela com um sorriso fino e descorado.
—Vitalício, quero dizer.
Natividade teimou que não, que a posição dele era comercial
e bancária. Acrescentou que política era uma cousa e indústria outra. Santos
replicou, citando o Barão de Mauá, que as fundiu ambas. Então a mulher declarou
por um modo seco e duro que aos sessenta anos ninguém começa a ser deputado.
—Mas é de passagem; os senhores são idosos.
—Não, Agostinho, concluiu a baronesa com um gesto
definitivo.
Não conto Aires, que provavelmente dançaria, a despeito dos
anos; também não falo de D. Perpétua, que nem iria lá. Pedro iria, e é natural
que dançasse, e muito, não obstante o afinco e paixão dos seus estudos. Vivia
enfeitiçado pela medicina. No quarto de dormir, além do busto de Hipócrates,
tinha os retratos de algumas sumidades médicas da Europa, muito esqueleto
gravado, muita moléstia pintada, peitos cortados verticalmente para se lhes
verem os vasos, cérebros descobertos, um cancro de língua, alguns aleijões,
cousas todas que a mãe, por seu gosto, mandaria deitar fora, mas era a ciência
do filho, e bastava. Contentava-se de não olhar para os quadros.
Quanto a Flora, ainda verde para os meneios de Terpsícore,
era acanhada ou arrepiada, como dizia a mãe. E isto era o menos; o mais era que
com pouco se enfadaria, e, se não pudesse vir logo para casa, ficaria adoentada
o resto do tempo. Note-se que, estando na ilha, teria o mar em volta, e o mar
era um dos seus encantos; mas, se lhe lembrasse o mar, e se consolasse com a
esperança de o mirar advertiria também que a noite escura tolheria a
consolação. Que multidão de dependências na vida, leitor! Umas cousas nascem de
outras, enroscam-se, desatam-se, confundem-se, perdem-se, e o tempo vai andando
sem se perder a si.
Mas donde viria o tédio a Flora, se viesse? Com Pedro no
baile, não; este era, como sabes, um dos dois que lhe queriam bem. Salvo se ela
queria principalmente ao que estava em S. Paulo. Conclusão duvidosa, pois não é
certo que preferisse um a outro. Se já a vimos falar a ambos com a mesma
simpatia, o que fazia agora a Pedro na ausência de Paulo, e faria a Paulo na
ausência de Pedro, não me faltará leitora que presuma um terceiro… Um
terceiro explicaria tudo, um terceiro que não fosse ao baile, algum estudante
pobre. X sem outro amigo nem mais casaca que o coração verde e quente. Pois nem
esse, leitora curiosa, nem terceiro, nem quarto, nem quinto. ninguém mais. Uma
esquisitona, como lhe chamava a mãe.
Não importa; a esquisitona foi ao baile da ilha Fiscal com
a mãe e o pai. Assim também Natividade, o marido e Pedro, assim Aires assim a
demais gente convidada para a grande festa. Foi uma bela ideia do governo,
leitor. Dentro e fora, do mar e de terra, era como um sonho veneziano; toda
aquela sociedade viveu algumas horas suntuosas, novas para uns, saudosas para
outros e de futuro para todos, — ou, quando menos, para a nossa amiga
Natividade — e para o conservador Batista.
Aquela considerava o destino dos filhos, — cousas futuras!
Pedro bem podia inaugurar, como ministro, o século XX e o terceiro reinado.
Natividade imaginava outro e maior baile naquela mesma ilha. Compunha a
ornamentação, via as pessoas e as danças, toda uma festa magna que entraria na
história. Também ela ali estaria, sentada a um canto, sem lhe dar do peso dos
anos, uma vez que visse a grandeza e a prosperidade dos filhos. Era assim que
enfiara os olhos pelo tempo adiante, descontando no presente a felicidade
futura, caso viesse a morrer antes das profecias. Tinha a mesma sensação que
ora lhe dava aquela cesta de luzes no meio da escuridão tranquila do mar.
A imaginação de Batista era menos longa que a de
Natividade. Quero dizer que ia antes do princípio do século, Deus sabe se antes
do fim do ano. Ao som da música, à vista das galas, ouvia umas feiticeiras
cariocas, que se pareciam com as escocesas; pelo menos, as palavras eram análogas
às que saudaram Macbeth: — “Salve Batista, ex-presidente de
província!” — “Salve, Batista, próximo presidente de província!”
— “Salve, Batista, tu serás ministro um dia!” A linguagem dessas
profecias era liberal, sem sombra de solecismo. Verdade é que ele se arrependia
de as escutar, e forcejava por traduzi-las no velho idioma conservador, mas já
lhe iam faltando dicionários. A primeira palavra ainda trazia o sotaque antigo:
“Salve, Batista, ex-presidente de província!” mas a segunda e a última
eram ambas daquela outra língua liberal, que sempre lhe pareceu língua de
preto. Enfim, a mulher, como lady Macbeth, dizia nos olhos o que esta dizia
pela boca, isto é, que já sentia em si aquelas futurações. O mesmo lhe repetiu
na manhã seguinte, em casa. Batista, com um sorriso disfarçado, descria das
feiticeiras, mas a memória guardava as palavras da ilha: “Salve, Batista,
próximo presidente!” Ao que ele respondia com um suspiro: Não, não, filhas
do Diabo…
Ao contrário do que ficou dito atrás, Flora não se aborreceu
na ilha. Conjeturei mal, emendo-me a tempo. Podia aborrecer-se pelas razões que
lá ficam, e ainda outras que poupei ao leitor apressado; mas, em verdade,
passou bem a noite. A novidade da festa, a vizinhança do mar, os navios
perdidos na sombra, a cidade defronte com os seus lampiões de gás, embaixo e em
cima, na praia e nos outeiros, eis aí aspectos novos que a encantaram durante
aquelas horas rápidas.
Não lhe faltavam pares, nem conversação, nem alegria alheia
e própria. Toda ela compartia da felicidade dos outros. Via, ouvia, sorria,
esquecia-se do resto para se meter consigo. Também invejava a princesa
imperial, que viria a ser imperatriz um dia. com o absoluto poder de despedir
ministros e damas, visitas e requerentes, e ficar só, no mais recôndito do
paço, fartando-se de contemplação ou de música. Era assim que Flora definia o
ofício de governar. Tais ideias passavam e tornavam. De uma vez alguém lhe
disse, como para lhe dar força: “Toda alma livre é imperatriz!”
Não foi outra voz, semelhante à das feiticeiras do pai nem
às que falavam interiormente a Natividade, acerca dos filhos. Não; seria pôr
aqui muitas vozes de mistério, cousa que, além do fastio da repetição, mentiria
à realidade dos fatos. A voz que falou a Flora saiu da boca do velho Aires, que
se fora sentar ao pé dela e lhe perguntara:
—Em que é que está pensando?
—Em nada, respondeu Flora.
Ora, o conselheiro tinha visto no rosto da moça a expressão
de alguma cousa e insistia por ela. Flora disse como pôde a inveja que lhe
metia a vista da princesa, não para brilhar um dia. mas para fugir ao brilho e
ao mando, sempre que quisesse ficar súbdita de si mesma. Foi então que ele lhe
murmurou, como acima:
—Toda alma
livre é imperatriz.
A frase era boa, sonora, parecia conter a maior soma de
verdade que há na terra e nos planetas. Valia por uma página de Plutarco. Se
algum político a ouvisse poderia guardá-la para os seus dias de oposição ao
governo, quando viesse o terceiro reinado. Foi o que ele mesmo escreveu no
Memorial. Com esta nota: “A meiga criatura agradeceu-me estas cinco
palavras”.
CAPÍTULO XLIX – TABULETA VELHA
Toda a gente voltou da ilha com o baile na cabeça, muita
sonhou com ele, alguma dormiu mal ou nada. Aires foi dos que acordaram tarde;
eram onze horas. Ao meio-dia almoçou; depois escreveu no Memorial as impressões
da véspera, notou várias espáduas, fez reparos políticos e acabou com as
palavras que lá ficam no cabo do outro capítulo. Fumou, leu, até que resolveu
ir à Rua do Ouvidor. Como chegasse à vidraça de uma das janelas da frente, viu
à porta da confeitaria uma figura inesperada, o velho Custódio, cheio de
melancolia. Era tão novo o espetáculo que ali se deixou estar por alguns
instantes; foi então que o confeiteiro, levantando os olhos, deu com ele entre
as cortinas, e enquanto Aires voltava para dentro, Custódio atravessou a rua e
entrou-lhe em casa.
—Que suba, disse o conselheiro ao criado.
Custódio foi recebido com a benevolência de outros dias e
um pouco mais de interesse. Aires queria saber o que é que o entristecia.
—Vim para contá-lo a V. Exma.; é a tabuleta.
—Queira V. Ex.ª ver por seus olhos, disse o confeiteiro,
pedindo-lhe o favor de ir janela.
—Não vejo nada.
—Justamente, é isso mesmo. Tanto me aconselharam que
fizesse reformar a tabuleta que afinal consenti, e fi-la tirar por dois
empregados. A vizinhança veio para a rua assistir ao trabalho e parecia rir de
mim. Já tinha falado a um pintor da Rua da Assembleia; não ajustei o preço
porque ele queria ver primeiro a obra. Ontem, à tarde, lá foi um caixeiro, e
sabe V. Exma. o que me mandou dizer o pintor? Que a tábua está velha, e precisa
outra; a madeira não aguenta tinta. Lá fui às carreiras. Não pude convencê-lo
de pintar na mesma madeira; mostrou-me que estava rachada e comida de bichos.
Pois cá de baixo não se via. Teimei que pintasse assim mesmo, respondeu-me que
era artista e não faria obra que se estragasse logo.
—Pois reforme tudo. Pintura nova em madeira velha não vale
nada. Agora verá que dura pelo resto da nossa vida.
—A outra também durava; bastava só avivar as letras.
Era tarde, a ordem fora expedida, a madeira devia estar
comprada serrada e pregada, pintando o fundo para então se desenhar e pintar o
título. Custódio não disse que o artista lhe perguntara pela cor das letras, se
vermelha, se amarela, se verde em cima de branco ou vice-versa, e que ele,
cautelosamente, indagara do preço de cada cor para escolher as mais baratas.
Não interessa saber quais foram.
Quaisquer que fossem as cores, eram tintas novas, tábuas
novas, uma reforma que ele, mais por economia que por afeição, não quisera
fazer; mas a afeição valia muito. Agora que ia trocar de tabuleta sentia perder
algo do corpo, — cousa que outros do mesmo ou diverso ramo de negócio não
compreenderiam, tal gosto acham em renovar as caras e fazer crescer com elas a
nomeada. São naturezas. Aires ia pensando em escrever uma Filosofia das
Tabuletas, na qual poria tais e outras observações, mas nunca deu começo à
obra.
—V. Ex.ª há de me perdoar o incômodo que lhe trouxe, vindo
contar-lhe isto, mas V. Ex.ª é sempre tão bom comigo, fala-me com tanta
amizade, que eu me atrevi… Perdoa-me, sim?
—Sim, homem de Deus.
—Conquanto V. Ex.ª aprove a reforma da tabuleta, sentirá
comigo a separação da outra, a minha amiga velha, que nunca me deixou, que eu,
nas noites de luminárias, por S. Sebastião e outras, fazia aparecer aos olhos
da gente. V. Ex.ª, quando se aposentou, veio achá-la no mesmo lugar em que a
deixou por ocasião de ser nomeado. E tive alma para me separar dela!
—Está bom, lá vai; agora é receber a nova, e verá como
daqui a pouco são amigos.
Custódio saiu recuando, como era o seu costume, e desceu
trôpego as escadas. Diante da confeitaria deteve-se um instante, para ver o
lugar onde estivera a tabuleta velha. Deveras, tinha saudades.
CAPÍTULO L – O TINTEIRO DE EVARISTO
—…Este caso prova que tudo se pode amar muito bem, ainda
um pedaço de madeira velha. Creiam que não era só a despesa, que: ele
naturalmente sentia, eram também saudades. Ninguém se despega assim de um
objeto tão íntimo, que faz parte integral da casa e da pele, porque a tabuleta
não foi sequer arriada um dia. Custódio não teve ocasião de ver se estava
estragada. Vivia ali como as portadas e a parede.
Era ao jantar, em Botafogo. Só quatro pessoas, as duas
irmãs, Santos e Aires. Pedro fora jantar a S. Clemente, com a família Batista.
D. Perpétua aprovou os sentimentos do confeiteiro. Citou, a
propósito, o tinteiro de Evaristo. A irmã sorriu para o marido, e este para a
mulher, como se dissessem: “lá vem ele!” Era um tinteiro que servira
ao famoso jornalista do primeiro reinado e da Regência, obra simples, feita de
barro, igual aos tinteiros que a gente chã comprava nas lojas de papel daquele
e deste tempo. O sogro de D. Perpétua, que lho dera em lembrança, tivera um da
mesma idade, massa e feição.
—Veio assim de mão em mão parar às minhas. Não chega aos
tinteiros do mano Agostinho nem de Natividade, que são luxuosos, mas tem grande
valor para mim.
—Sem dúvida, concordou Aires, valor histórico e político.
—Meu sogro dizia que dele saíram os grandes artigos da
Aurora falar verdade, eu nunca li tais artigos, mas meu sogro era homem de
verdade. Conhecia a vida de Evaristo, por ouvi-la a outros, e fazia-lhe
louvores que não acabavam mais…
Natividade buscou desviar a conversação para o baile da véspera.
Tinham já falado dele, mas não achou outro derivativo. Entretanto, o tinteiro
ainda ficou algum tempo. Não era só uma das lembranças de D. Perpétua, relíquia
de família, era também uma de suas ideias. Prometeu mostrá-lo ao conselheiro.
Ele prometeu vê-lo com muito gosto. Confessou que tinha veneração aos objetos
de uso dos grandes homens. Enfim, o jantar acabou, e eles passaram ao salão.
Aires, falando da enseada:
—Aqui está uma obra, que é mais velha que o tinteiro do
Evaristo e a tabuleta do Custódio, e, não obstante, parece mais moça, não é
verdade, D. Perpétua? A noite é clara e quente; podia ser escura e fria, e o
efeito seria o mesmo. A enseada não difere de si. Talvez os homens venham algum
dia a atulhá-la de terra e pedras para levantar casas em cima, um bairro novo,
com um grande circo destinado a corrida de cavalos. Tudo é possível debaixo do
sol e da lua. A nossa felicidade, barão, é que morreremos antes.
—Não fale em morte, conselheiro.
—A morte é uma hipótese, redarguiu Aires, talvez uma lenda.
Ninguém morre de uma boa digestão, e os seus charutos são deliciosos.
—Estes são novos. Parecem-lhe bons?
—Deliciosos.
Santos estimou ouvir este louvor; achava-lhe uma intenção
direta à sua pessoa, aos seus méritos, ao seu nome, à posição que tinha na
sociedade, à casa, à chácara, ao Banco, aos coletes. Talvez muito; seria um
modo enfático de explicar a força da ligação dele aos charutos. Valiam pela
tabuleta e pelo tinteiro, com a diferença que estes significavam só afeição e
veneração, e aqueles, valendo pelo sabor e pelo preço, tinham a superioridade
do milagre, pela reprodução de todos os dias.
Tais eram as suspeitas que vagavam no cérebro de Aires,
enquanto ele olhava mansamente para o anfitrião. Aires não podia negar a si
mesmo a aversão que este lhe inspirava. Não lhe queria mal, decerto; podia até
querer-lhe bem, se houvesse um muro entre ambos. Era a pessoa, eram as
sensações, os dizeres, os gestos, o riso, a alma toda que lhe fazia mal.
CAPÍTULO LI – AQUI PRESENTE
Perto das nove horas, ou logo depois, chegou Pedro com o
casal Batista e Flora.
—Vimos trazer o seu menino, disse Batista a Natividade.
—Obrigado, doutor, acudiu Santos, mas ele já não está em
idade de se perder por essas ruas, e, se perder, acha-se logo, acrescentou
sorrindo.
Natividade não gostou da graça, tratando-se do filho e ao
pé dela. Era talvez excesso de pudor. Há muito excesso nesse sentido, e o
acertado é perdoá-lo. Há também excessos contrários, condescendências fáceis,
pessoas que entram com prazer na troca de alusões picantes. Também se devem
perdoar. Em suma, o perdão chega ao Céu. Perdoai-vos uns aos outros, é a lei do
Evangelho.
Ele, o rapaz, é que não ouvia nada; interrompeu a conversa
que trazia com Flora, e trocadas algumas palavras, os dois foram reatar o fio a
um canto. Aires reparou na atitude de ambos; ninguém mais lhes prestava
atenção. Ao cabo, a conversa era em voz surda; não os poderiam ouvir. Ela
escutava, ele falava; depois era o contrário, ela é que falava, ele é que
ouvia, tão absortos que pareciam não atender a ninguém, mas atendiam. Possuíam
o sexto sentido dos conspira dores e dos namorados. Que conversassem de amores,
é possível; mas que conspiravam, é certo. Quanto à matéria da conspiração,
podereis sabê-la, depois, brevemente, daqui a um capítulo. O próprio Aires não
descobriu nada, por mais que quisesse fartar os olhos naquele diálogo de
mistérios. Persuadiu-se que não era grave, porque eles sorriam com frequência;
mas podia ser íntimo, escondido, pessoal e acaso estranho. Supõe um fio de anedotas
ou uma história comprida, cousa alheia; ainda assim podia ser deles semente,
porque há estados da alma em que a matéria da narração é nada, o gosto de a
fazer e de a ouvir é que é tudo. Também podia ser isto.
Vede, porém, como a natureza encaminha as cousas mínimas ou
máximas, mormente se a fortuna a ajuda. A conversação tão doce, ao que parecia,
começou por um enfado. A causa foi uma carta de Paulo, escrita ao irmão, e que
este se lembrou de mostrar a Flora, dizendo-lhe que também a mostrara à mãe, e a
mãe se zangara muito.
—Com o senhor?
—Com Paulo.
—Mas que dizia a carta?
Pedro leu-lhe o ponto principal, que era quase toda a
carta; falava da questão militar. Já havia a “questão militar”, um
conflito de generais e ministros, e a linguagem de Paulo era contra os
ministros.
—Mas por que é que o senhor foi mostrar essa carta a sua
mãe?
—Mamãe quis saber o que é que ele me dizia.
—E sua mãe zangou-se, aí está; vai talvez repreendê-lo.
Tanto melhor; Paulo precisa ser emendado; mas, diga-me, por
que é que a senhora defende sempre a meu irmão?
—Para ter o direito de defender também ao senhor.
—Então ele já lhe tem falado mal de mim?
Flora quis dizer que sim, depois que não, afinal calou.
Desconversou, perguntando por que eles se davam mal. Pedro negou que se dessem
mal. Ao contrário, viviam bem. Não teriam as mesmas opiniões, e também podia
ser que tivessem o mesmo gosto… Daqui a dizer que ambos a amavam era uma
vírgula; Pedro pintou o ponto final. Esse astuto era também tímido. Mais tarde,
compreendeu que, calando, andou melhor, e deu a si mesmo o aplauso da escolha;
mas era falso, não escolhera nada. Não digo isto para fazê-lo desmerecer; sim,
porque o medo acerta muitas vezes, e é mister deixar aqui esta reflexão.
Veio a zanga. Flora não replicou mais nada, e, por seu
gosto, não teria jantado, a tal ponto sentia piedade do outro. Felizmente, o
outro era este mesmo, aqui presente, com os olhos presentes, as mãos presentes,
as palavras presentes. Não tardou que a zanga fugisse diante da graça, da
brandura e da adoração. Bem-aventurados os que ficam, porque eles serão
compensados.
CAPÍTULO LII – UM SEGREDO
Eis agora a matéria da conspiração. Na rua, ao virem de S.
Clemente, foi que Pedro, gastado o melhor do tempo com a carta e o jantar, pôde
revelar à moça um segredo:
—Titia disse lá em casa que D. Cláudia lhe contara em
segredo (não diga nada) que seu pai vai ser nomeado presidente de província.
—Não sei nada disso, mas não creio, porque papai é
conservador.
—D. Cláudia disse a titia que ele é liberal, quase radical.
Parece que a presidência é certa; ela pediu segredo, e titia, quando nos
contou, também pediu segredo. Eu também lhe peço que não diga nada, mas é
verdade.
—Verdade como? Papai não vai com liberais; o senhor não
sabe como papai é conservador. Se ele defende os liberais é porque é tolerante.
—Se a província fosse a do Rio de Janeiro, eu gostaria,
porque não era preciso ir morar na Praia Grande, e se ele fosse, a viagem é só
de meia hora, eu podia ir lá todos os dias.
—Era capaz?
—Apostemos.
Flora, depois de um instante:
—Para que, se não há presidência?
—Suponha que há.
—É preciso supor muito, — que há presidência e que a
província é a do Rio. Não, não há nada.
—Então suponha só metade, — que há presidência e que é Mato
Grosso.
Flora teve um calafrio. Sem admitir a nomeação, tremeu ao
nome da província. Pedro lembrou ainda o Amazonas, Pará, Piauí… Era o
infinito, mormente se o pai fizesse boa administração, porque não voltaria tão
cedo. Já agora a moça resistia menos, achava possível e abominável, mas dizia
isto para si, dentro do coração. De repente, Pedro, quase estacando o passo:
—Se ele for, eu peço ao governo o lugar de secretário e vou
também.
A luz intermitente das lojas refletindo no rosto da moça, à
medida que eles iam passando por elas, ajudava a dos lampiões da rua, e
mostrava a emoção daquela promessa. Sentia-se que o coração de Flora devia
estar batendo muito. Em breve, porém, começou ela a pensar em outra cousa.
Natividade não consentiria nunca; depois, um estudante… Não podia ser. Pensou
em algum escândalo. Que ele fugisse, embarcasse, fosse atrás dela…
Tudo isto era visto ou pensado com silêncio. Flora não se
admirava de pensar tanto e tão atrevidamente; era como o peso do corpo, que não
sentia: andava, pensava, como transpirava. Não calculou sequer o tempo que ia
gastando em imaginar e desfazer ideias. Que isto lhe desse mais prazer que
desprazer, é certo. Ao pé dela, Pedro ia naturalmente cuidando, com os olhos
nos pés, e os pés nas nuvens. Não sabia que dissesse no meio de tão longo
silêncio. Entretanto, a solução parecia-lhe única. Já não pensava na
presidência do Rio. Queria-se com ela, no ponto mais remoto do império, sem o
irmão. A esperança de se desterrarem assim de Paulo verdejou na alma de Pedro.
Sim, Paulo não iria também, a mãe não se deixaria ficar desamparada. Que
perdesse um filho, vá; mas ambos…
A quem quer que este final de monólogo pareça egoísta,
peço-lhe pelas almas dos seus parentes e amigos, que estão no céu, peço-lhe que
considere bem as causas. Considere o estado da alma do rapaz, de iniquidades, e
não lhe importa esta imagem. Considere tudo, idade de Pedro, o mal da Terra, o
bem da mesma Terra. Considere mais a vontade do Céu, que vela por todas as
criaturas que se querem, salvo se um só é que quer a outra, porque então o Céu
é um abismo de iniquidades, e não lhe importa esta imagem. Considere tudo,
amigo; deixe-me ir contando só e contando mal o que se passou naquele curto
trânsito entre as duas casas. Quando lá chegaram, falavam de boca.
Em cima, como viste, continuaram a falar, até que o assunto
da presidência voltou. Flora notou então a cautelosa insistência com que Aires
olhava para eles, como se buscasse adivinhar a matéria da conversação. Sentia
que não estivesse ali também, ouvindo e falando. finalmente prometendo fazer
alguma cousa por ela. Aires podia, sim. — era seu amigo e todos o tinham em
grande conta, — podia intervir e destruir o projeto da presidência.
Sem querer nem saber, diria isto mesmo com os olhos ao
velho diplomata. Retirava-os, mas eles iam de si mesmos repetir o monólogo, e
acaso perguntar alguma cousa que Aires não percebia e devia ser interessante.
Pode ser que refletissem a angústia ou o que quer que era que lhe doía dentro.
Pode ser; a verdade é que Aires começou a ficar curioso, e tão depressa Pedro
deixou o lugar para acudir ao chamado da mãe, deixou ele Natividade para ir
falar à moça.
Flora, já de pé, mal teve tempo de trocar duas palavras,
dessas que se não podem interromper sem dor ou prurido, ao menos. Aires
perguntava-lhe se nunca lhe dissera que sabia adivinhar.
—Não, senhor.
—Pois sei; adivinhei agora mesmo que me quer dizer um
segredo.
Flora ficou espantada. Não querendo negar nem confessar,
respondeu-lhe que só adivinhara metade.
—A outra é?
—A outra é pedir-lhe um obséquio de amizade.
—Peça.
—Não, agora não, já nos vamos embora; mamãe e papai estão
fazendo as despedidas. Só se for na rua. Quer vir conosco a S. Clemente?
—Com o maior prazer.
CAPÍTULO LIII – DE CONFIDÊNCIAS
Entenda-se que não. Não era com prazer maior nem menor. Era
imposição de sociedade, desde que Flora o pedira, não sei se discretamente. Que
a isto ligasse tal ou qual desejo de saber algum segredo, não serei eu que o
negue, nem tu, nem ele mesmo. Ao cabo de alguns instantes, Aires ia sentindo
como esta pequena lhe acordava umas vozes mortas, falhadas ou não nascidas,
vozes de pai. Os gêmeos não lhe deram um dia a mesma sensação, senão porque
eram filhos de Natividade. Aqui não era a mãe, era a mesma Flora, o seu gesto,
a sua fala, e porventura a sua fatalidade.
“Mas quer-me parecer que desta vez ela está presa;
escolheu enfim”, pensou Aires.
Flora falou-lhe da presidência, mas não lhe pediu segredo,
como as outras pessoas; confessou-lhe que não queria ir daqui, fosse para onde
fosse, e acabou dizendo que tudo estava nas mãos deles. Só ele podia
despersuadir o pai de aceitar a presidência. Aires achou tão absurdo este
pedido que esteve quase a rir, mas susteve-se bem. A palavra de Flora era grave
e triste. Aires respondeu, com brandura, que não podia nada.
—Pode muito, todos atendem ao seus conselhos.
—Mas eu não dou conselhos a ninguém, acudiu Aires.
conselheiro é um título que o imperador me conferiu, por achar que o merecia,
mas não obriga a dar conselhos; a ele mesmo só lhos darei, se nos pedir.
Imagine agora se eu vou à casa de um homem ou mando chamá-lo à minha para lhe
dizer que não seja presidente de província. Que razão lhe daria?
Não tinha razões a moça; tinha necessidade. Apelou para os
talentos do ex-ministro, que acharia uma razão boa. Nem se precisavam razões,
bastava o falar dele, a arte que Deus lhe dera de agradar a toda a gente, de a
arrastar, de influir, de obter o que quisesse. Aires viu que ela exagerava para
o atrair, e não lhe pareceu mal. Não obstante, contestou tais méritos e
virtudes. Deus não lhe dera arte nenhuma, disse ele, mas a moça ia sempre
afirmando, em tal maneira que Aires suspender a contestação, e fez uma
promessa.
—Vou pensar; amanhã ou depois, se achar algum recurso,
tentarei o negócio.
Era um paliativo. Era também um modo de fazer cessar a
conversação, estando a casa próxima. Não contava com o pai de Flora, que à fina
força lhe quis mostrar, àquela hora, uma novidade, aliás uma velharia, um
documento de valor diplomático. “Venha, suba, cinco minutos apenas,
conselheiro.”
Aires suspirou em segredo, e curvou a cabeça ao Destino.
Não se luta contra ele, dirás tu; o melhor é deixar que pegue pelos cabelos e
nos arraste até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos. Batista nem lhe deu
tempo de refletir; era todo desculpas.
—Cinco minutos e está livre de mim, mas verá que lhe pago o
sacrifício.
O gabinete era pequeno; poucos livros e bons, os móveis
graves, um retrato de Batista com a farda de presidente, um almanaque sobre a
mesa, um mapa na parede, algumas lembranças do governo da província. Enquanto
Aires circulava os olhos, Batista foi buscar o documento. Abriu uma gaveta,
tirou uma pasta, abriu a pasta, tirou o documento, que não estava só, mas com
outros. Conhecia-se logo por ser um papel velho, amarelo, em partes roído. Era
uma carta do Conde de Oeiras, escrita ao ministro de Portugal na Holanda.
—E o dia das antiguidades, pensou Aires; a tabuleta, o
tinteiro, este autógrafo…
—A carta é importante, mas longa, disse Batista, não
podemos lê-la agora. Quer levá-la?
Não lhe deu tempo de responder; pegou de uma sobrecarta
grande e meteu dentro o manuscrito, com esta nota por fora: “Ao meu
excelentíssimo amigo Conselheiro Aires”. Enquanto ele fazia isto, Aires
passava os olhos pela lombada de alguns livros. Entre eles havia dois Relatórios
da presidência de Batista, ricamente encadernados.
—Não me atribua esse luxo, acudiu o ex-presidente — foi um
mimo da secretaria do governo que nunca fez isto a ninguém. Era um pessoal
muito distinto.
E foi à estante e tirou um dos relatórios para ser melhor
visto. Aberto, mostrou a impressão e as vinhetas — lido, podia mostrar o estilo
por um lado, e, por outro, a prosperidade das finanças. Batista limitou-se aos
algarismos totais: despesa, mil duzentos e noventa e quatro contos, setecentos
e noventa mil-réis; receita, mil quinhentos e quarenta e quatro contos,
duzentos e nove mil-réis; saldo, duzentos e quarenta e nove contos,
quatrocentos e dezenove mil-réis. Verbalmente, explicou o saldo, que alcançou
pela modificação de alguns serviços, e por um pequeno aumento de impostos.
Reduziu a dívida provincial, que achou em trezentos e oitenta e quatro contos,
e deixou em trezentos e cinquenta contos. Fez obras novas e consertos
importantes; iniciou uma ponte…
—A encadernação corresponde à matéria, disse Aires para
concluir a visita.
Batista fechou o livro, e redarguiu que já agora não iria
sem lhe resolver uma consulta.
—Tudo às avessas, concluiu; eu de manhã resolvo consultas,
agora à noite sou eu que as faço.
Tal foi o introito, mas do introito ao Credo há sempre um
passo estirado, e o principal da missa para ele estava no Credo. Não achando o
texto do missal, explicou-lhe um sinete, um a pena de ouro, um exemplar do
Código Criminal. O código, posto que velho, valia por trinta novos, não que
tivesse melhor rosto, senão que trazia anotações manuscritas de um grande
jurista, Fulano. Tendo passado longa parte da vida no exterior, o conselheiro
mal conhecera o autor das notas, mas desde que ouviu chamar-lhe grande assumiu
a expressão adequada. Pegou do código com cuidado, leu algumas das notas com
veneração.
Durante esse tempo, Batista ia criando fôlego. Compôs uma
frase para iniciar a consulta, e só esperava que Aires fechasse o livro para
soltá-la; mas o outro ia demorando o exame do código. Podia ser uma pontinha de
malignidade, mas não era. Os olhos de Aires tinham uma faculdade particular,
menos particular do que parece, porque outros a possuirão calados. Vinha a ser
que eles não saíam da página, mas em verdade já lhe prestava menos atenção, o
tempo, a gente, a vida, cousas passadas, surdiam a espiá-lo por detrás do livro
com que tinham vivido, e Aires ia tornando a ver um Rio de Janeiro que não era
este, ou apenas o fazia lembrado. Sem cuides que eram só réus e juízes, era o
passeio, a rua, a festa, velhos patuscos e mortos, rapazes frescos e agora
enferrujados como ele. Batista tossiu. Aires voltou a si e leu alguma das notas
que o outro devia trazer de cor, mas eram tão profundas! Enfim, mirou a
encadernação, achou o livro bem conservado, fechou-o e restituiu-o à
biblioteca.
Batista não perdeu um instante, correu imediato ao assunto,
com medo de o ver pegar em outro livro.
—Confesso-lhe que tenho o temperamento conservador.
—Também eu guardo presentes antigos.
—Não é isso; refiro-me ao temperamento político.
Verdadeiramente há opiniões e temperamentos. Um homem pode muito bem ter o
temperamento oposto às suas ideias. As minhas ideias, se as cotejarmos com os
programas políticos do mundo, são antes liberais e algumas libérrimas. O
sufrágio universal, por exemplo, é para mim a pedra angular de um bom regímen
representativo. Ao contrário, os liberais pediram e fizeram o voto censitário.
Hoje estou mais adiantado que eles; aceito o que está, por ora, mas antes do
fim do século é preciso rever alguns artigos da Constituição, dois ou três.
Aires escondia o espanto… Convidado assim àquela hora…
Uma profissão de fé política… Batista insistia na distinção do temperamento e
das ideias. Alguns amigos velhos, que conheciam esta dualidade moral e mental,
é que teimavam em querer que ele aceitasse uma presidência; ele não queria.
Francamente, que lhe parecia ao conselheiro?
—Francamente, acho que não tem razão.
—Que não tenho razão em quê?
—Em recusar.
—Propriamente, não recusei nada; há um grande trabalho
neste sentido, e o meu desejo, — acrescentou com mais clareza, — é que os bons
amigos sagazes me digam se tal cousa é acertada; não me parece que seja…
—Eu penso que é.
—De maneira que, se o caso fosse com o senhor…
—Comigo não podia ser. Sabe que eu já não sou deste mundo e
politicamente nunca figurei em nada. A diplomacia tem este efeito que separa o
funcionário dos partidos e o deixa tão alheio a eles, que fica impossível de
opinar com verdade, ou, quando menos, com certeza.
—Mas não me disse que acha…
—Acho.
—Que posso aceitar uma presidência, se me oferecerem?
—Pode; uma presidência aceita-se.
—Pois então saiba tudo; é a única pessoa de sociedade com
quem me abro assim francamente. A presidência foi-me oferecida.
—Aceite, aceite.
—Está aceita.
—Já?
—O decreto assina-se sábado.
—Então aceite também os meus parabéns.
—Propriamente, a lembrança não foi do ministério; ao
contrário, o ministério não se resolveu antes de saber se efetivamente fiz uma
eleição contra os liberais, há anos; mas logo que soube que por não os
perseguir é que fui demitido, aceitou a indicação de chefes políticos, e recebi
pouco depois este bilhete.
O bilhete estava no bolso, dentro da carteira. Qualquer
outro, alvoroçado com a nomeação próxima, levaria tempo a achar o bilhete no
meio dos papéis; mas Batista possuía o tacto dos textos. Tirou a carteira,
abriu-a descansado e com os dedos sacou o bilhete do ministro convidando-o a
uma conversação. Na conversação ficou tudo assentado.
CAPÍTULO LIV – ENFIM, SÓ!
Enfim, só! Quando Aires se achou na rua, só, livre, solto,
entregue a si mesmo, sem grilhões nem considerações, respirou largo. Fez um
monólogo, que daí a pouco interrompeu por se lembrar de Flora. Tudo o que ela
não quisera ia acontecer; lá ia o pai a uma presidência, e ela com ele, e a
recente inclinação ao jovem Pedro vinha parar a meio caminho. Entretanto, não
se arrependia do que dissera e ainda menos do que não dissera. Os dados estavam
lançados. Agora era cuidar de outra cousa.
CAPÍTULO LV – “A MULHER É A DESOLAÇÃO DO HOMEM”
Ao despedir-se, fez Aires uma reflexão, que ponho aqui,
para o caso de que algum leitor a tenha feito também. A reflexão foi obra de
espanto, e o espanto nasceu de ver como um homem tão difícil em ceder às
instigações da esposa (Vai-te, Satanás, etc.; capítulo XLVII) deitou tão
facilmente o hábito às urtigas. Não achou explicação nem a acharia, se não
soubesse o que lhe disseram mais tarde, que os primeiros passos da conversão do
homem foram dados pela mulher. “A mulher é a desolação do homem”, dizia
não sei que filósofo socialista, creio que Proudhon. Foi ela, a viúva da
presidência, que por meios vários e secretos, tramou passar a segundas núpcias.
Quando ele soube do namoro, já os banhos estavam corridos; não havia mais que
consentir e casar também.
Ainda assim, custou-lhe muito. O clamor dos seus
aturdia-lhe de antemão os ouvidos, a alma ia cega, tonta, mas a esposa
servia-lhe de guia e amparo, e, com poucas horas, Batista viu claro e ficou
firme.
—Estamos à porta do terceiro reinado, ponderou D. Cláudia, e
certamente o Partido Liberal não deixa tão cedo o poder. Os seus homens são
válidos, a inclinação dos tempos é para o liberalismo, e você mesmo…
—Sim, eu… suspirou Batista.
D. Cláudia não suspirou, cantou vitória; a retivência do
marido era a primeira figura de aquiescência. Não lhe disse isto assim, nu e
cru; também não revelou alegria descomposta; falou sempre a linguagem da razão
fria e da vontade certa. Batista, sentindo-se apoiado. caminhou para o abismo e
deu o salto nas trevas. Não o fez sem graça, nem com ela. Posto que a vontade
que trazia fosse de empréstimo, não lhe faltava desejo a que a vontade da
esposa deu vida e alma. Daí a autoria de que se investiu e acabou confessando.
Tal foi a conclusão de Aires, segundo se lê no Memorial.
Tal será a do leitor, se gosta de concluir. Note que aqui lhe poupei o trabalho
de Aires; não o obriguei a achar por si o que, de outras vezes, é obrigado a
fazer. O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no
cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a
verdade, que estava, ou parecia estar escondida.
CAPÍTULO LVI – O GOLPE
O dia seguinte trouxe à menina Flora a grande novidade.
Sábado seria assinado o decreto, a presidência era no Norte. D. Cláudia não lhe
viu a palidez, nem sentiu as mãos frias, continuou a falar do caso e do futuro,
até que Flora, querendo sentar-se, quase caiu. A mãe acudiu-lhe:
—Que é? Que tens?
Nada mamãe, não é nada.
A mãe fê-la sentar-se.
—Foi uma tonteira, passou.
D. Cláudia deu-lhe a cheirar um pouco de vinagre,
esfregou-lhe os pulsos; Flora sorriu.
—Este sábado? perguntou.
—O decreto? Sim, este sábado. Mas não digas por ora a
ninguém; são segredos de gabinete. É cousa certa; enfim, alguém nos fez
justiça; provavelmente o imperador. Amanhã irás comigo a algumas encomendas.
Fazer uma lista do que precisas.
Flora precisava não ir e só pensava nisso. Uma vez que o
decreto estava prestes a ser assinado, não havia já desaconselhar a nomeação;
restava-lhe a ela ficar. Mas como? Todos os sonhos são próprios ao sono de uma
criança. Não era fácil, mas não seria impossível. Flora cria tudo; não tirava o
pensamento de Aires, e já agora de Natividade também. Os dois podiam fazê-lo,
ou antes os três, se contardes também o barão, e se vier a cunhada deste,
quatro. Juntai aos quatro as cinco estrelas do Cruzeiro, as nove musas, anjos e
arcanjos, virgens e mártires… Juntai-os todos, e todos poderiam fazer esta
simples ação de impedir que Flora fosse para a província. Tais eram as
esperanças vagas, rápidas, que corriam a substituir as tristezas do rosto da
moça, enquanto a mãe, atribuindo o efeito ao vinagre, ajustava a rolha de vidro
ao frasco, e restituía o frasco ao toucador.
—Fazer uma lista do que precisas, repetiu à filha.
—Não, mamãe, eu não preciso nada.
—Precisas, sim, eu sei o que precisas.
CAPÍTULO LVII – DAS ENCOMENDAS
Não escreveria este capítulo, se ele fosse propriamente das
encomendas, mas não é. Tudo são instrumentos nas mãos da Vida. As duas saíram
de casa, uma lépida, a outra melancólica, e lá foram a escolher uma quantidade
de objetos de viagem e de uso pessoal. D. Cláudia pensava nos vestidos da
primeira recepção e de visitas; também ideou o do desembarque. Tinha ordem do
marido para comprar algumas gravatas. Os chapéus, entretanto, foram o principal
artigo da lista. Ao parecer de D. Cláudia, o chapéu da mulher é que dava a nota
verdadeira do gosto, das maneiras e da cultura de uma sociedade. Não valia a
pena aceitar uma presidência para levar chapéus sem graça, dizia ela sem convicção,
porque intimamente pensava que a presidência dá graça a tudo.
Estavam justamente na loja de chapéus, Rua do Ouvidor,
sentadas, os olhos fora e longe, quando a verdadeira matéria deste capítulo
apareceu. Era o gêmeo Paulo, que chegara pelo trem noturno, e sabendo que elas
andavam a compras, viera procurá-las.
—O senhor! exclamaram.
—Cheguei esta manhã.
Flora tinha-se levantado, com o alvoroço que lhe deu a
vista inesperada de Paulo. Ele correu a elas, apertou-lhes as mãos, indagou da
saúde e reconheceu que pareciam vender saúde e alegria. A impressão era exata;
Flora tinha agora uma agitação, que contrastava com o abatimento daquela triste
manhã, e um riso que a fazia alegre.
—Tive sempre notícias das senhoras, que mamãe me dava, e
Pedro também, às vezes. Da senhora, continuou ele falando a D. Cláudia, recebi
duas cartas. Como vai o doutor?
—Bem.
—Ora, enfim, cá estou!
E Paulo dividia os olhos com as duas, mas a melhor parte ia
naturalmente para a filha. Pouco depois era todo e pouco para esta. D. Cláudia
voltara à escolha dos chapéus, e Flora, que até então opinava de cabeça, perdeu
este último gesto. Paulo sentou-se na cadeira que um empregado lhe trouxe, e
ficou a olhar para a moça falavam de cousas mínimas, alheias ou próprias, tudo
o que bastasse para os reter disfarçadamente na contemplação um do outro. Paulo
viera o mesmo que fora, o mesmo que Pedro, sempre com alguma nota particular,
que ela não podia achar claramente, menos ainda definir. Era um mistério, Pedro
teria o seu.
D. Cláudia interrompia-os, de vez em quando, a propósito da
escolha; mas, tudo acaba, até a escolha de chapéus. Foram dali aos vestidos.
Paulo, não sabendo da presidência, estimou esta casualidade para as acompanhar
de loja em loja. Contava anedotas de S. Paulo, sem grande interesse para Flora;
as notícias que ela lhe dava acerca das amigas, eram mais ou menos
dispensáveis. Tudo valia pelos dois interlocutores. A rua ajudava aquela
absorção recíproca; as pessoas que iam ou vinham, damas ou cavalheiros,
parassem ou não, serviam de ponto de partida a alguma digressão. As digressões
entraram a dar as mãos ao silêncio, e os dois seguiam com os olhos espraiados e
a cabeça alta, ele mais que ela, porque uma pontinha de melancolia começava a
espancar do rosto da moça a alegria da hora recente.
Na Rua Gonçalves Dias, indo para o Largo da Carioca, Paulo
viu dois ou três políticos de S. Paulo, republicanos, parece que fazendeiros.
Havendo-os deixado lá, admirou-se de os ver aqui, sem advertir que a última vez
que os vira ia já a alguma distância.
—Conhecem? perguntou às duas.
Não, não os conheciam. Paulo disse-lhes os nomes. A mãe
talvez fizesse alguma pergunta política, mas deu por falta de um objeto,
advertiu que o não comprara, e propôs voltarem atrás. Tudo era aceito por
ambos, com docilidade, apesar do véu de tristeza, que se ia cerrando mais no
rosto da moça.
Aquelas encomendas tinham já um ar de bilhetes de passagem,
não tardava o paquete, iam correr às malas, aos arranjos, às despedidas, ao
camarote de bordo, ao enjoo de mar, e àquele outro de mar e terra, que a
mataria, com certeza, cuidava Flora. Daí o silêncio crescente, que Paulo mal
podia vencer, de quando em quando; e contudo ela estava bem com ele, gostava de
lhe ouvir dizer cousas soltas, algumas novas, outras velhas, recordações
anteriores à partida daqui para S. Paulo.
Assim se deixaram ir, guiados por D. Cláudia, quase
esquecida deles. No meio daquela conversação truncada, mais entretida por ele
que por ela. Paulo sentia ímpetos de lhe perguntar, ao ouvido, na rua, se
pensara nele, ou, ao menos, sonhara com ele algumas noites. Ouvindo que não,
daria expansão à cólera, dizendo-lhe os últimos impropérios; se ela corresse,
correria também, até pegá-la pelas fitas do chapéu ou pela manga do vestido, e,
em vez de a esganar, dançaria com ela uma valsa de Strauss ou uma polca de ***.
Logo depois, ria destes delírios, porque, a despeito da
melancolia da moça, os olhos que ela erguia para ele eram de quem sonhou e
pensou muito na pessoa, e agora cuida de descobrir se é a mesma do sonho e do
pensamento. Assim lhe parecia ao estudante de Direito; pelo que, quando ele
desviava o rosto, era para repetir a experiência e tornar a ver-lhe os olhos
aguçados do mesmo espírito crítico e de livre exame. Quanto ao tempo que os
três gastaram nessa agitação de compras e escolhas, visões e comparações, não
há memória, dele nem necessidade. Tempo é propriamente ofício de relógio, e
nenhum deles consultou o relógio que trazia.
CAPÍTULO LVIII – MATAR SAUDADES
Ora bem, acabas de ver como Flora recebeu o irmão de Pedro,
tal qual recebia o irmão de Paulo. Ambos eram apóstolos. Paulo achava-a agora
mais bonita que alguns meses antes, e disse-lhe nessa mesma tarde em S.
Clemente, com esta palavra familiar e cordial:
—A senhora
enfeitou muito.
Flora julgava a mesma cousa, relativamente ao estudante de
Direito; calou a impressão. Ou a tristeza que trazia, ou qualquer outro
sensação particular, fê-la acanhada, a princípio. Não tardou, porém. que
achasse outra vez o gêmeo no gêmeo, e que ele e ela matassem saudades.
Como é que se matam saudades não é cousa que se explique de
um modo claro. Ele não há ferro nem fogo, corda nem veneno, e todavia as
saudades expiram, para a ressurreição, alguma vez antes do terceiro dia. Há
quem creia que, ainda mortas, são doces, mais que doces. Esse ponto, no nosso
caso, não pode ser ventilado, nem eu quero desenvolvê-lo, como aliás cumpria.
As saudades morreram, não todas, nem logo, logo, mas em
parte e tão vagarosamente que Paulo aceitou o convite de lá jantar. Era o dia
da chegada; Natividade quisera tê-lo consigo à mesa, ao pé de Pedro, para
cimentar a pacificação começada pela distância. Paulo nem se deu ao trabalho de
lá mandar; deixou-se estar com a bela criatura, entre o pai e a mãe que pensava
em outra cousa, próxima no tempo e remota no espaço. Sabendo o que era, Flora
passava do prazer ao tédio, e Paulo não entendia essa alternação de
sentimentos. De quando em quando, vendo a mãe agitada e preocupada, mas com
outra expressão, Paulo interrogava a filha. Em vez de dar uma explicação
qualquer, Flora passou uma vez a mão pelos olhos e ficou alguns instantes sem
os descobrir. A ação do estudante de Direito, devia ser arredar-lhe a mão,
encará-la de perto, mais perto, totalmente perto, e repetir a pergunta por um
modo em que a eloquência do gesto dispensasse a fala. Se tal ideia teve, não
saiu cá fora. Nem ela lhe consentiu mais tempo que o da pergunta:
—Que é que tem?
—Nada, respondeu Flora.
—Tem alguma cousa, insistiu ele querendo pegar-lhe na mão.
Não acabou o gesto. não o começou sequer; abriu e fechou os
dedos apenas, enquanto ela sorria para sacudir tristezas, e deixou-se estar a
matar saudades.
CAPÍTULO LIX – NOITE DE 14
Tudo se explicou à noite, em casa da família Santos. O
ex-presidente de província confessou as esperanças de uma investidura nova; a
esposa afirmou a eminência do ato. Daí a publicidade da notícia, que pouco
antes D. Cláudia só dizia em segredo. Já não havia segredos que calar.
Paulo soube então tudo, e Pedro, que conhecia alguns
preliminares, acabou sabendo o resto. Ambos naturalmente sentiram a separação
próxima. A dor os fez amigos por instantes; é uma das vantagens dessa grande e
nobre sensação. Já me não lembra quem afirmava, ao contrário, que um ódio comum
é o que mais liga duas pessoas. Creio que sim, mas não descreio do meu
postulado, por esta razão que uma cousa não tolhe a outra, e ambas podem ser
verdadeiras.
Demais, a dor não era ainda o desespero. Havia até uma
consolação para os dois gêmeos; é que a moça ficaria longe de ambos. Nenhum
deles teria o gozo exclusivo ao pé da porta. Não há mal que não traga um pouco
de bem, e por isso é que o mal é útil, muita vez indispensável, alguma vez
delicioso. Os dois quiseram falar à amiguinha, em particular, para sondá-la
acerca daquela separação, já agora certa, mas nenhum conseguiu este desejo.
Vigiavam-se, isso sim. Quando lhe falavam, era sempre juntos, e de cousas
familiares e ordinárias. O gesto de Flora não traduzi a o estado da alma; este
podia ser lépido, melancólico, ou indiferente, não vinha cá fora. Em verdade,
ela falava pouco. Os olhos também não diziam muito. Mais de uma vez, Pedro deu
com ela fitando Paulo, e gemeu com a preferência, mas também ele era preferido
depois, e achava compensação; Paulo então é que rangia os dentes,
figuradamente. Natividade, toda entregue à sua recepção, que era a última do
ano, não acompanhou de perto as agitações morais daquele trio. Quando deu por
elas, chegou a senti-las também.
Pouco a pouco, a gente se foi dispersando. Não era muita, e
dominava a nota íntima. Quando a maioria saiu, ficou só a porção mais íntima,
três ou quatro homens a um canto da sala, falando e rindo de ditos e anedotas.
Não conversavam de política, e aliás não faltaria matéria. As moças, pela
segunda ou terceira vez, trocavam as impressões do grande baile recente. Também
falavam de músicas e teatros, das festas próximas de Petrópolis, da gente que
ia naquele ano, e da que só iria em janeiro. Natividade dividia-se com todos,
até que, podendo ficar alguns instantes com Aires, confiara-lhe o seu receio
acerca do amor dos filhos, e ao mesmo tempo o prazer que lhe trazia a esperança
de uma longa separação de Flora. O conselheiro não desdizia do receio, nem da
esperança.
—É uma esperança que o Batista seja nomeado e leve a filha
daqui, disse ela.
—Certamente, mas…
—Mas quê?
—Certamente a levará, mas a senhora pode não conhecer bem
aquela menina.
—Penso que é boa.
—Também eu penso assim. A bondade, porém, não tem nada com
o resto da pessoa. Flora é, como já lhe disse há tempos, uma inexplicável. Agora
é tarde para lhe expor os fundamentos da minha impressão — depois lhe direi.
Note que gosto muito dela; acho-lhe um sabor particular naquele contraste de
uma pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa,
ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita… Vá perdoando estas palavras mal
embrulhadas, e até amanhã, concluiu ele, estendendo-lhe a mão. Amanhã virei
explicá-las.
—Explique-as agora, enquanto os outros parecem rir de algum
dito engraçado.
Efetivamente, os homens riam de algum dito ou trocadilho;
Aires quis falar, mas reteve a língua, e desculpou-se. A explicação era longa e
difícil, e não era urgente, disse ele.
—Eu mesmo não sei se me entendo, baronesa, nem se penso a
verdade; pode ser. Em todo caso, minha boa amiga, até amanhã ou até Petrópolis.
Quando espera subir?
—Lá para o fim do ano.
—Então ainda nos veremos algumas vezes.
—Sim, e se me não vir a mim, quero que veja os meus
rapazes, que os receba e estime. Eles o tem em grande conta; não lhe fazem
senão justiça. Pedro acha que o senhor é o espírito mais fino, e Paulo o mais
rijo da nossa terra…
—Veja como a senhora os educa, ensinando-lhes a pensar
errado, disse Aires sorrindo e fazendo um gesto de agradecimento. Eu rijo?
—O mais rijo e o mais fino.
Os últimos habituados da casa vieram dar boa noite à dona.
Dez minutos depois, Aires despedia-se do casal Santos.
A noite era clara e tranquila. Aires recompôs uma parte do
serão para escrevê-la no Memorial. Poucas linhas, mas interessantes, nas quais
Flora era a principal figura:
Que o Diabo a entenda, se puder, eu, que sou menos que ele,
não acerto de a entender nunca. Ontem parecia querer a um, hoje quis ao outro;
pouco antes das despedidas, queria a ambos. Encontrei outrora desses
sentimentos alternos e simultâneos — eu mesmo fui uma e outra cousa, e sempre
me entendi a mim. Mas aquela menina e moça… A condição dos gêmeos explicará
esta inclinação dupla; pode ser também que alguma qualidade falte a um que
sopre a outro, e vice-versa, e ela, pelo gosto de ambas, não acha de escolher
de vez. É fantástico, sei, menos fantástico é se eles, destinados à inimizade,
acharem nesta mesma criatura um campo estreito de ódio, mas isto os explicaria
a ele, não a ela… seja o que for a nossa organização política é útil; a
presidência de província, arredando Flora daqui, por algum tempo, tira esta
moça da situação em que se acha como a asna de Buridan. Quando voltar, a água
estará bebida e a cevada comida, um decreto ajudará a natureza.
Isto feito, Aires meteu-se na cama, rezou uma ode do seu
Horácio e fechou os olhos. Nem por isso dormiu. Tentou então uma página do seu
Cervantes, outra do seu Erasmo, fechou novamente os olhos, até que dormiu.
Pouco foi; às cinco horas e quarenta minutos estava de pé. Em novembro, sabes
que é dia.
CAPÍTULO LX – MANHÃ DE 15
Quando lhe acontecia o que ficou contado, era costume de
Aires sair cedo, a espairecer. Nem sempre acertava. Desta vez foi ao Passeio
Público. Chegou às sete horas e meia, entrou, subiu ao terraço e olhou para o
mar. O mar estava crespo. Aires começou a passear ao longo do terraço, ouvindo
as ondas, e chegando-se à borda, de quando em quando, para vê-las bater e
recuar. Gostava delas assim; achava-lhes uma espécie de alma forte, que as
movia para meter medo à terra. A água, enroscando-se em si mesma, dava-lhe uma
sensação, mais que de vida, de pessoa também, a que não faltavam nervos nem
músculos, nem a voz que bradava as suas cóleras.
Enfim, cansou e desceu, foi-se ao lago, ao arvoredo, e
passeou à toa, revivendo homens e cousas, até que se sentou em um banco. Notou
que a pouca gente que havia ali não estava sentada, como de costume, olhando à
toa, lendo gazetas ou cochilando a vigília de uma noite sem cama. Estava de pé,
falando entre si, e a outra que entrava ia pegando na conversação sem conhecer
os interlocutores; assim lhe pareceu, ao menos. Ouviu umas palavras soltas,
Deodoro, batalhões, campo, ministério, etc. Algumas, ditas em tom alto, vinham
acaso para ele a ver se lhe espertavam a curiosidade, e se obtinham mais uma
orelha às notícias. Não juro que assim fosse, porque o dia vai longe, e as
pessoas não eram conhecidas. O próprio Aires, se tal cousa suspeitou, não a
disse a ninguém; também não afiou o ouvido para alcançar o resto. Ao contrário,
lembrando-lhe algo particular, escreveu a lápis uma nota na carteira. Tanto
bastou para que os curiosos se dispersassem, não sem algum epíteto de louvor,
uns ao governo, outros ao exército: podia ser amigo de um ou de outro.
Quando Aires saiu do Passeio Público, suspeitava alguma
cousa,
e seguiu até o Largo da Carioca. Poucas palavras e sumidas,
gente parada, caras espantadas, vultos que arrepiavam caminho, mas nenhuma
notícia clara nem completa. Na Rua do Ouvidor, soube que os militares tinham
feito uma revolução, ouviu descrições da marcha e das pessoas, e notícias
desencontradas. Voltou ao largo, onde três tílburis o disputaram; ele entrou no
que lhe ficou mais à mão, e mandou tocar para o Catete. Não perguntou nada ao
cocheiro; este é que lhe disse tudo e o resto. Falou de uma revolução, de dois
ministros mortos, um fugido, os demais presos. O imperador, capturado em
Petrópolis, vinha descendo a serra.
Aires olhava para o cocheiro, cuja palavra saía deliciosa
de novidade. Não lhe era desconhecida esta criatura. Já a vira, sem o tílburi,
na rua ou na sala, à missa ou a bordo, nem sempre homem, alguma vez mulher,
vestida de seda ou de chita. Quis saber mais, mostrou-se interessado e curioso,
e acabou perguntando se realmente houvera o que dizia. O cocheiro contou que
ouvira tudo a um homem que trouxera da Rua dos Inválidos e levara ao Largo da
Glória, por sinal que estava assombrado, não podia falar, pedia-lhe que
corresse, que lhe pagaria o dobro; e pagou.
—Talvez fosse algum implicado no barulho, sugeriu Aires.
—Também pode ser, porque ele levava o chapéu derrubado, e a
princípio pensei que tinha sangue nos dedos, mas reparei e vi que era barro;
com certeza, vinha de descer algum muro. Mas, pensando bem, creio que era
sangue; barro não tem aquela cor. A verdade é que ele pagou o dobro da viagem,
e com razão, porque a cidade não está segura, e a gente corre grande risco
levando pessoas de um lado para outro…
Chegavam justamente à porta de Aires; este mandou parar o
veículo, pagou pela tabela e desceu. Subindo a escada, ia naturalmente pensando
nos acontecimentos possíveis. No alto achou o criado que sabia tudo, e lhe
perguntou se era certo…
—O que é que não é certo, José? É mais que certo.
—Que mataram três ministros?
—Não; há só um ferido.
—Eu ouvi que mais gente também, falaram em dez mortos…
—A morte é um fenômeno igual à vida; talvez os mortos
vivam. Em todo caso, não lhes rezes por almas, porque não és bom católico,
José.
CAPÍTULO LXI – LENDO XENOFONTE
Como é que, tendo ouvido falar da morte de dois e três
ministros, Aires confirmou apenas o ferimento de um, ao retificar a notícia do
criado? Só se pode explicar de dois modos, — ou por um nobre sentimento de
piedade, ou pela opinião de que toda a notícia pública cresce de dois terços,
ao menos. Qualquer que fosse a causa, a versão do ferimento era a única
verdadeira. Pouco depois passava pela Rua do Catete a padiola que levava um
ministro, ferido. Sabendo que os outros estavam vivos e sãos e o imperador era
esperado de Petrópolis, não acreditou na mudança de regímen que ouvira ao cocheiro
de tílburi e ao criado José. Reduziu tudo a um momento que ia acabar com a
simples mudança de pessoal.
“Temos gabinete novo”, pensou consigo.
Almoçou tranquilo, lendo Xenofonte: “Considerava eu um
dia quantas repúblicas têm sido derribadas por cidadãos que desejam outra
espécie de governo, e quantas monarquias e oligarquias são destruídas pela
sublevação dos povos; e de quantos sobem ao poder uns são depressa derribados,
outros, se duram, são admirados por hábeis e felizes…” Sabes a conclusão
do autor, em prol da tese de que o homem é difícil de governar; mas logo depois
a pessoa de Ciro destrói aquela conclusão, mostrando um só homem que regeu
milhões de outros, os quais não só o temiam, mas ainda lutavam por lhe fazer as
vontades. Tudo isto em grego, e com tal pausa que ele chegou ao fim do almoço,
sem chegar ao fim do primeiro capítulo.
CAPÍTULO LXII – “PARE NO D.”
—Mas, S. Ex.ª está almoçando, dizia o criado no patamar da
escada a alguém que pedia para falar ao conselheiro.
Era falso, Aires acabava justamente de almoçar; mas o
criado sabia que o amo gostava de saborear o charuto depois do almoço, sem
interrupção. Agora estava no canapé e ouviu o diálogo do patamar. A pessoa
insistia em dizer uma palavrinha.
—Não pode ser.
—Bem, eu espero; logo que S. Ex.ª acabe…
—O melhor é voltar depois; não mora ali defronte? Pois
volte daqui a uma hora ou duas…
A pessoa era o Custódio e foi para casa, mas o velho
diplomata, sabendo quem era, não esperou que acabasse o charuto; mandou-lhe
dizer que viesse. Custódio saiu, correu; subiu e entrou assombrado.
—Que é isso, Sr. Custódio? disse-lhe Aires. O senhor anda a
fazer revoluções?
—Eu, senhor? Ah! senhor! Se V. Ex.ª soubesse…
—Se soubesse o quê?
Custódio explicou-se. Vá, resumamos a explicação.
Na véspera, tendo de ir abaixo, Custódio foi à Rua da
Assembleia, onde se pintava a tabuleta. Era já tarde; o pintor suspendera o
trabalho. Só algumas das letras ficaram pintadas, — a palavra Confeitaria e a
letra d. A letra o e a palavra Império estavam só debuxadas a giz. Gostou da
tinta e da cor, reconciliou-se com a forma, e apenas perdoou a despesa.
Recomendou pressa. Queria inaugurar a tabuleta no domingo.
Ao acordar de manhã não soube logo do que houvera na
cidade, mas pouco a pouco vieram vindo as notícias, viu passar um batalhão, e
creu que lhe diziam a verdade os que afirmavam a revolução e vagamente a
república. A princípio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a tabuleta. Quando se
lembrou dela, viu que era preciso sustar a pintura. Escreveu às pressas um bilhete
e mandou um caixeiro ao pintor. O bilhete dizia só isto: “Pare no D.”
Com efeito, não era preciso pintar o resto, que seria perdido, nem perder ò
princípio, que podia sair. Sempre haveria palavra que ocupasse o lugar das
letras restantes. “Pade no D”. Quando o portador voltou trouxe a
notícia de que a tabuleta estava pronta.
—Você viu-a pronta?
—Vi, patrão.
—Tinha escrito o nome antigo?
—Tinha, sim, senhor: “Confeitaria do Império”.
Custódio enfiou um casaco de alpaca e voou à Rua da
Assembleia. Lá estava a tabuleta, por sinal que coberta com um pedaço de chita;
alguns rapazes que a tinham visto, ao passar na rua, quiseram rasgá-la; o
pintor, depois de a defender com boas palavras, achou mais eficaz cobri-la.
Levantada a cortina, Custódio leu: “Confeitaria do Império”. Era o
nome antigo, o próprio, o célebre, mas era a destruição agora; não podia
conservar um dia a tabuleta, ainda que fosse em beco escuro, quanto mais na Rua
do Catete…
—O senhor vai despintar tudo isto, disse ele.
—Não entendo. Quer dizer que o senhor paga primeiro a
despesa. Depois, pinto outra cousa.
—Mas que perde o senhor em substituir a última palavra por
outra? A primeira pode ficar, e mesmo o d… Não leu o meu bilhete?
—Chegou tarde.
—E por que pintou, depois de tão graves acontecimentos?
—O senhor tinha pressa, e eu acordei às cinco e meia para
servi-lo. Quando me deram as notícias, a tabuleta estava pronta. Não me disse
que queria pendurá-la domingo? Tive de pôr muito secante na tinta, e além da
tinta, gastei tempo e trabalho.
Custódio quis repudiar a obra, mas o pintor ameaçou de pôr
o número da confeitaria e o nome do dono na tabuleta, e expô-la assim, para que
os revolucionários lhe fossem quebrar as vidraças do Catete. Não teve remédio
senão capitular. Que esperasse: ia pensar na substituição; em todo caso, pedia
algum abate no preço. Alcançou a promessa do abate e voltou a casa. Em caminho,
pensou no que perdia mudando de título, — uma casa tão conhecida, desde anos e
anos! Diabos levassem a revolução! Que nome lhe poria agora? Nisso lembrou-lhe
o vizinho Aires e correu a ouvi-lo.
CAPÍTULO LXIII – TABULETA NOVA
Referi-lo o que lá fica atrás, Custódio confessou tudo o
que perdia no título e na despesa, o mal que lhe trazia a conservação do nome
da casa, a impossibilidade de achar outro, um abismo, um suma. Não sabia que
buscasse; faltava-lhe invenção e paz de espírito. Se pudesse, liquidava a
confeitaria. E afinal que tinha ele com política? Era um simples fabricante e
vendedor de doces, estimado, afreguesado, respeitado, e principalmente
respeitador da ordem pública…
—Mas o que é que há? perguntou Aires.
—A república está proclamada.
—Já há governo?
—Penso que já; mas diga-me V. Ex.a: ouviu alguém acusar-me
jamais de atacar o governo? Ninguém. Entretanto… Uma fatalidade! Venha em meu
socorro. Excelentíssimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está
pronta, o nome todo pintado. — “Confeitaria do Império”, a tinta é
viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer
outro. Eu, se a obra não estivesse acabada, mudava de título, por mais que me
custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V. Ex.a crê que, se ficar
“Império”, venham quebrar-me as vidraças?
—Isso não sei.
—Realmente, não há motivo, é o nome da casa, nome de trinta
anos, ninguém a conhece de outro modo.
—Mas pode pôr “Confeitaria da República”…
—Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se
daqui a um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou
hoje, e perco outra vez o dinheiro.
—Tem razão… Sente-se.
—Estou bem.
—Sente-se e fume um charuto.
Custódio recusou o charuto, não fumava. Aceitou a cadeira.
Estava no gabinete de trabalho, em que algumas curiosidades lhe chamariam a
atenção, se não fosse o atordoamento do espírito. Continuou a implorar o
socorro do vizinho. S. Ex.ª, com a grande inteligência que Deus lhe dera, podia
salvá-lo. Aires propôs-lhe um meio-termo, um título que iria com ambas as
hipóteses, — “Confeitaria do Governo”.
—Tanto serve para um regímen como para outro.
—Não digo que não, e, a não ser a despesa perdida… Há
porém, uma razão contra. V. Ex.ª sabe que nenhum governo deixa de ter oposição.
As oposições, quando descerem à rua, podem implicar comigo, imaginar que as
desafio, e quebrarem-me a tabuleta; entretanto, o que eu procuro é o respeito
de todos.
Aires compreendeu bem que o terror ia com a avareza. Certo,
o vizinho não queria barulhos à porta, nem malquerenças gratuitas, nem ódios de
quem quer que fosse; mas, não o afligia menos a despesa que teria de fazer de
quando em quando, se não achasse um título definitivo, popular e imparcial.
Perdendo o que tinha, já perdia a celebridade, além de perder a pintura e pagar
mais dinheiro. Ninguém lhe compraria uma tabuleta condenada. Já era muito ter o
nome e o título no Almanaque de Laemmert, onde podia lê-lo algum abelhudo e ir
com outros, puni-lo do que estava impresso desde o princípio do ano…
—Isso não, interrompeu Aires; o senhor não há de recolher a
edição de um almanaque.
E depois de alguns instantes:
—Olhe, dou-lhe uma ideia. que pode ser aproveitada, e, se
não a achar boa, tenho outra à mão. e será a última. Mas eu creio que qualquer
delas serve. Deixe a tabuleta pintada como está, e à direita, na ponta, por
baixo do título, mande escrever estas palavras que explicam o título:
“Fundada em 1860”. Não foi em 1860 que abriu a casa?
—Foi, respondeu Custódio.
—Pois…
Custódio refletia. Não se lhe podia ler sim nem não;
atônito, a boca entreaberta, não olhava para o diplomata, nem para o chão nem
para as paredes ou móveis, mas para o ar. Como Aires insistisse, ele acordou a
confessou que a ideia era boa. Realmente, mantinha o título e tirava-lhe o
sedicioso, que crescia com o fresco da pintura. Entretanto, a outra ideia podia
ser igual ou melhor, e quisera comparar as duas.
—A outra ideia não tem a vantagem de pôr a data à fundação
da casa, tem só a de definir o título, que fica sendo o mesmo, de uma maneira
alheia ao regímen. Deixe-lhe estar a palavra império e acrescente-lhe embaixo,
ao centro, estas duas, que não precisam ser graúdas: das leis. Olhe, assim,
concluiu Aires, sentando-se à secretária, e escrevendo em uma tira de papel o
que dizia.
Custódio leu, releu e achou que a ideia era útil; sim, não
lhe parecia má. Só lhe viu um defeito, sendo as letras de baixo menores. podiam
não sólidas lidas tão depressa e claramente como as de cima, e estas é que se
meteriam pelos olhos ao que passasse. Daí a que algum político ou sequer
inimigo pessoal não entendesse logo, e… A primeira ideia, bem considerada,
tinha o mesmo mal, e ainda este outro: pareceria que o confeiteiro, marcando a
data da fundação, fazia timbre em ser antigo. Quem sabe se não era pior que
nada?
—Tudo é pior que nada.
—Procuremos.
Aires achou outro título, o nome da rua, “Confeitaria
do Catete”. sem advertir que havendo outra confeitaria na mesma rua, era
atribuir exclusivamente à do Custódio a designação local. Quando o vizinho lhe
fez tal ponderação, Aires achou-a justa, e gostou de ver a delicadeza de
sentimentos do homem: mas logo depois descobriu que o que fez falar o Custodio
foi a ideia de que esse título ficava comum às duas casas. Muita gente não
atinaria com o título escrito e compraria na primeira que lhe ficasse à mão, de
maneira que só ele faria as despesas da pinturas e ainda por cima perdia a freguesia.
Ao perceber isto, Aires não admirou menos a sagacidade de um homem que em meio
de tantas tribulações. contava os maus frutos de um equívoco. Disse-lhe então
que o melhor seria pagar a despesa feita e não pôr nada, a não ser que
preferisse o seu próprio nome: “Confeitaria do Custódio”. Muita gente
certamente lhe não conhecia a casa por outra designação. Um nome. o Próprio
nome do dono, não tinha significação política ou figuração história, ódio nem
amor, nada que chamasse a atenção dos dois regimes, e conseguintemente que
pusesse em perigo os seus pastéis de Santa Clara. menos ainda a vida do
proprietário e dos empregados. Por que é que não adotava esse alvitre? Gastava
alguma cousa com a troca de uma palavra por outra, Custódio em vez de Império,
mas as revoluções trazem sempre despesas.
—Sim vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um
ou dois dias, a ver em que param as modas, disse Custódio agradecendo.
Curvou-se, recuou e saiu. Aires foi à janela para vê-lo
atravessar a rua. Imaginou que ele levaria da casa do ministro aposentado um
ilustre particular que faria esquecer por instantes a crise da tabuleta. Nem
tudo são despesas na vida, e a glória das relações podia amaciar as agruras
deste mundo. Não acertou desta vez. Custódio atravessou a rua, sem parar nem
olhar para trás, e enfiou pela confeitaria dentro com todo o seu desespero.
CAPÍTULO LXIV – PAZ!
Que, em meio de tão graves sucessos, Aires tivesse bastante
pausa e claridade para imaginar tal descoberta no vizinho, só se pode explicar
pela incredulidade com que recebera as notícias. A própria aflição de Custódio
não lhe dera fé. Vira nascer e morrer muito boato falso. Uma de suas máximas é
que o homem vive para espalhar a primeira invenção de rua, e que tudo se fará
crer a cem pessoas juntas ou separadas. Só às duas horas da tarde, quando
Santos lhe entrou em casa, acreditou na queda do império.
—É! verdade, conselheiro, vi descer as tropas pela Rua do
Ouvidor, ouvi as aclamações à república. As lojas estão fechadas, os bancos
também, e o pior é se não abrem mais, se vamos cair na desordem pública — é uma
calamidade.
Aires quis aquietar-lhe o coração. Nada se mudaria; o
regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele.
Comércio é preciso. Os bancos são indispensáveis. No sábado, ou quando muito na
segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição.
—Não sei, tenho medo, conselheiro.
—Não tenha medo. A baronesa já sabe o que há?
—Quando eu saí de casa, não sabia, mas agora é provável.
—Pois vá tranquilizá-la — naturalmente está aflita.
Santos receava os fuzilamentos; por exemplo, se fuzilassem
o imperador, e com ele as pessoas de sociedade? Recordou que o Terror… Aires
tirou-lhe o Terror da cabeça. As ocasiões fazem as revoluções, disse ele, sem
intenção de rimar, mas gostou que rimasse, para dar forma fixa à ideia. Depois
lembrou a índole branda do povo. O povo mudaria de governo, sem tocar nas
pessoas. Haveria lances de generosidade. Para provar o que dizia referiu um
caso que lhe contara um velho amigo, o Marechal Beaurepaire Rohan. Era no tempo
da Regência. O imperador fora ao Teatro de S. Pedro de Alcântara. No fim do
espetáculo, o amigo, então moço, ouviu grande rumor do lado da igreja de S.
Francisco, e correu a saber o que era. Falou a um homem, que bradava indignado,
e soube dele que o cocheiro do imperador não tirara o chapéu no momento em que
este chegara à porta para entrar no coche; o homem acrescentou: “Eu sou
ré…” Naquele tempo os republicanos por brevidade eram assim chamados.
“Eu sou ré, mas não consinto que faltem ao respeito a este menino!”
Nenhuma feição de Santos mostrou apreciar ou entender
aquele rasgo anônimo. Ao contrário, todo ele parecia entregue ao presente, ao
momento, ao comércio fechado, aos bancos sem operações, ao receio de uma
suspensão total de negócios, durante prazo indeterminado. Cruzava e descruzava
as pernas. Afinal ergueu-se e suspirou.
—Então, parece-lhe?…
—Que descanse.
Santos aceitou o conselho, mas vai muito do aceitar ao
cumprir, e a aparência era mui diversa do coração. O coração batia-lhe. A
cabeça via esboroar-se tudo. Quis despedir-se, mas fez duas ou três investidas
antes de pousar o pé fora do gabinete e caminhar para a escada. Instava pela
certeza. Conquanto tivesse visto e ouvido a república, podia ser… Em todo
caso, a paz é que era necessária, e haveria paz? Aires inclinava-se a crer que
sim, e novamente o convidou a descansar.
—Até logo, concluiu.
—Por que não vai lá jantar conosco?
—Tenho de jantar com um amigo, no Hotel dos Estrangeiros.
Depois, talvez, ou amanhã. Vá, vá tranquilizar a baronesa, e os rapazes. Os
rapazes estarão em paz? Esses brigam, com certeza; vá pô-los em ordem.
—O senhor podia ajudar-me nisso. Vá lá de noite.
—Pode ser; se puder, vou. Amanhã com certeza.
Santos saiu; tinha o carro à espera, entrou e seguiu para
Botafogo. Não levava a paz consigo, não a poderia dar à mulher, nem à cunhada,
nem aos filhos. Quisera chegar a casa, por medo da rua, mas quisera também
ficar na rua, por não saber que palavras nem que conselhos daria aos seus. O
espaço do carro era pequeno e bastante para um homem; mas, enfim, não viveria
ali a tarde inteira. Ao demais, a rua estava quieta. Via gente à porta das
lojas. No Largo do Machado viu outra que ria, alguma calada, havia espanto, mas
não havia propriamente susto.
CAPÍTULO LXV – ENTRE OS FILHOS
Quando Santos chegou a casa, Natividade estava inquieta,
sem notícia exata e definitiva dos acontecimentos. Não sabia da república. Não
sabia do marido nem dos filhos. Aquele saíra antes dos primeiros rumores, estes
iam fazer a mesma cousa, logo que os boatos chegaram. O primeiro gesto da mãe
foi para impedir que os filhos saíssem, mas não pôde, era tarde. Não os podendo
reter, pegou-se com a Virgem Maria, a fim de que os poupasse, e esperou. A irmã
fez o mesmo. Era perto de meio-dia; foi então que os minutos entraram a parecer
séculos.
A ânsia da mãe era naturalmente maior que a da tia.
Natividade via andar o tempo com ferros aos pés. Não havia alvoroço que atasse
um par de asas àquelas horas longas do relógio da casa, nem aos do cinto, o
dela e o da irmã; todos eles coxeavam de ambos os ponteiros. Enfim, ouviu na
areia do jardim as rodas de um carro; era Santos.
Natividade acudiu ao patamar da escada. Santos subiu, e as
mãos de ambos estenderam-se e agarraram-se. Longa vida conjunta acaba por fazer
da ternura uma cousa grave e espiritual. Entretanto, parece que o gesto do
marido não foi original, mas secundário, filho ou imitativo do da mulher. Pode
ser que a corda da sensibilidade fosse menos vibrante na lira dele que na dela,
posto que muitos anos atrás, aquele outro gesto no coupé, quando voltavam da
missa de S. Domingos, lembras-te… Sobre isto escrevi agora algumas linhas,
que não ficariam mal, se as acabasse, mas recuo a tempo, e risco-as. Não vale a
pena ir à cata das palavras riscadas. Menos vale supri-las.
Que nos bastam as quatro mãos apertadas. Natividade
perguntou pelos filhos. Santos opinou que não tivesse medo. Não havia nada:
tudo parecia estar como no dia anterior, as ruas sossegadas, as caras mudas.
Não correria sangue, o comércio ia continuar. Toda a animação de Aires tinha
agora brotado nele, com a mesma verdura e o mesmo estilo.
Os filhos chegaram tarde, cada um por sua vez, e Pedro mais
cedo que Paulo. A melancolia de um ia com a alma da casa, a alegria de outro
destoava desta, mas tais eram uma e outra que, apesar da expansão da segunda,
não houve repressão nem briga. Ao jantar, falaram pouco. Paulo referia os
sucessos amorosamente. Conversara com alguns correligionários e soube do que se
passara à noite e de manhã, a marcha e a reunião dos batalhões no campo as
palavras de Ouro Preto ao Marechal Floriano, a resposta deste, a aclamação da
República. A família ouvia e perguntava, não discutia, e esta moderação
contrastava com a glória de Paulo. O silêncio de Pedro principalmente era como
um desafio. Não sabia Paulo que a própria mãe é que pedira ao irmão com muitos
beijos, motivo que em tal momento, ia com o aperto do coração do rapaz.
O coração de Paulo, ao contrário, era livre, deixava
circular o sangue, como a felicidade. Os sentimentos republicanos, em que os
princípios se incrustavam, viviam ali tão fortes e quentes, que mal deixavam
ver o abatimento de Pedro e o acanhamento da outra gente sua. Ao fim do jantar,
bebeu à República, mas calado, sem ostentação, apenas olhando para o teto, e
levantando o copo um tantinho mais que de costume. Ninguém replicou por outro
gesto ou palavra.
Certamente, o moço Pedro quis dizer alguma frase de piedade
relativamente ao regímen imperial e às pessoas de Bragança, mas a mãe quase que
não tirava os olhos dele, como impondo ou pedindo silêncio. Demais, ele não
cria nada mudado; a despeito de decretos e proclamações, Pedro imaginava que
tudo podia ficar como dantes, alterado apenas o pessoal do governo. Custa
pouco, dizia ele baixinho à mãe, ao deixarem a mesa; é só o imperador falar ao
Deodoro.
Paulo saiu, logo depois do jantar, prometendo vir cedo. A
mãe, receosa de o ver metido em barulhos, não queria que ele saísse; mas outro
receio fê-la consentir, e este era que os dois irmãos brigassem finalmente.
Assim um medo vence a outro, e a gente acaba por dar o que negou. Não é menos
certo que ela raciocinou alguns minutos antes de resolver, do mesmo modo que eu
escrevi uma página antes da que vou escrever agora; mas ambos nós, Natividade e
eu, acabamos por deixar que os atos se praticassem, sem oposição dela, nem
comentário meu.
CAPÍTULO LXVI – O BASTO E A ESPADILHA
Vieram amigos da casa, trazendo notícias e boatos. Variavam
pouco e geralmente não havia opinião segura acerca do resultado. Ninguém sabia
se a vitória do movimento era um bem, se um mal, apenas sabiam que era um fato.
Daí a ingenuidade com que alguém propôs o voltarete do costume, e a boa vontade
de outros em aceitá-lo. Santos, embora declarasse que não jogava, mandou pôr as
cartas e os tentos, mas os outros opinaram que sempre faltava um parceiro, e
sem ele, não havia graça. Quis resistir — não era bonito que no próprio dia em
que o regímen caíra ou ia cair, entregasse o espírito a recreações de
sociedade… Não pensou isto em voz alta nem baixa, mas consigo, e talvez o leu
no rosto da mulher. Acharia um pretexto para resistir, se buscasse algum, mas
amigos e cartas não deixavam buscar nada. Santos acabou aceitando.
Provavelmente era essa mesma a inclinação íntima. Muitas há que precisam ser
atraídas cá fora como um favor ou concessão da pessoa. Enfim, o basto e a
espadilha fizeram naquela noite o seu ofício, como as mariposas e os ratos, os
ventos e as ondas, o lume das estrelas e o sono dos cidadãos.
CAPÍTULO LXVII – A NOITE INTEIRA
Saindo de casa, Paulo foi à de um amigo, e os dois entraram
a buscar outros da mesma idade e igual intimidade. Foram aos jornais, ao
quartel do campo, e passaram algum tempo diante da casa de Deodoro. Gostavam de
ver os soldados, a pé ou a cavalo, pediam licença, falavam-lhes, ofereciam
cigarros. Era a única concessão destes; nenhum lhes contou o que se passara,
nem todos saberiam nada.
Não importa, iam cheios de si. Paulo era o mais entusiasta
e convicto. Aos outros valia só a mocidade, que é um programa, mas o filho de
Santos tinha frescas todas as ideias do novo regímen, e possuía ainda outras
que não via aceitar; bater-se-ia por elas. Trazia até o desejo de achar alguém
na rua, que soltasse um grito, já agora sedicioso, para lhe quebrar a cabeça
com a bengala. Note-se que esquecera ou perdera a bengala. Não deu por falta
dela; se desse, bastavam-lhe os braços e as mãos.
Propôs cantarem a Marselhesa; os outros não quiseram ir tão
longe, não por medo, senão de cansados. Paulo, que resistia mais que eles à
fadiga, lembrou-lhes esperar a aurora.
—Vamos esperá-la do alto de um morro, ou da Praia do
Flamengo; teremos tempo de dormir amanhã.
—Eu não posso, disse um.
Os outros repetiram a recusa, e assentaram de ir para suas
casas. Era perto de duas horas Paulo acompanhou-os a todos, e só depois de ver
o último recolhido foi sozinho para Botafogo.
Quando entrou, deu com a mãe que esperava por ele, inquieta
e arrependida de o haver deixado sair. Paulo não achou desculpa e censurou a
mãe por não dormir, à espera dele. Natividade confessou que não teria sono,
antes de o saber em casa são e salvo. Falavam baixo e pouco; tendo-se beijado
antes, beijaram-se depois e despediram-se.
—Olha, disse Natividade, se achares Pedro acordado não lhe
contes nem lhe perguntes nada; dorme, e amanhã saberemos tudo e o mais que se
passar esta noite.
Paulo entrou no quarto pé ante pé. Era ainda aquele vasto
quarto em que os dois gêmeos brigaram por causa de duas velhas gravuras.
Robespierre e Luís XVI. Agora, havia mais que os retratos, uma revolução de
poucas horas e um governo fresco. Obedecendo ao conselho da mãe, Paulo não quis
saber se Pedro dormia, posto desconfiasse que não. Efetivamente, não. Pedro viu
as cautelas de Paulo, e cumpriu também os conselhos da mãe; fingiu que não via
nada. Até aí os conselhos; mas um pouco de glória fez com que Paulo
cantarolasse entre os dentes, baixinho, para si, a primeira estrofe da
Marselhesa que os amigos tinham recusado fora:
Allons, enfants de la
patrie,
Le jour de gloire est
arrzvé!
Pedro percebeu antes pela toada que pela letra, e concluiu
que a intenção do outro era afligi-lo. Não era, mas podia ser. Vacilou entre a
réplica e o silêncio, até que uma ideia fantástica lhe atravessou o cérebro,
cantarolar, também baixinho, a segunda parte da estrofe: “Entendez-vous dans vos campagnes…“,
que alude às tropas estrangeiras, mas desviada do natural sentido histórico,
para restringi-la às tropas nacionais. Era um desforço vago, a ideia passou
depressa. Pedro contentou-se de simular a indiferença suprema do sono. Paulo
não acabou a estrofe; despiu-se agitado, sem tirar o pensamento da vitória dos
seus sonhos políticos. Não se meteu logo na cama; foi primeiro à do irmão, a
ver se dormia. Pedro respirava tão naturalmente, como se não perdera nada. Teve
ímpeto de acordá-lo, bradar-lhe que perdera tudo, se alguma cousa era a
instituição derribada. Recuou a tempo e foi meter-se entre os lençóis.
Nenhum dormia. Enquanto o sono não chegava, iam pensando
nos acontecimentos do dia. ambos espantados de como foram fáceis e rápidos.
Depois cogitavam no dia seguinte e nos efeitos últeriores. Não admira que não
chegassem à mesma conclusão.
—Como diabo é que eles fizeram isto, sem que ninguém desse
pela cousa? refletia Paulo. Podia ter sido mais turbulento. Conspiração houve,
decerto, mas uma barricada não faria mal. Seja como for, venceu-se a campanha.
O que é preciso é não deixar esfriar o ferro, batê-lo sempre, e renová-lo.
Deodoro é uma bela figura. Dizem que a entrada do marechal no quartel, e a
saída, puxando os batalhões, foram esplêndidas. Talvez fáceis demais; é que o
regímen estava podre e caiu por si…
Enquanto a cabeça de Paulo ia formulando essas ideias, a de
Pedro ia pensando o contrário; chamava o movimento um crime.
—Um crime e um disparate, além de ingratidão; o imperador
devia ter pegado os principais cabeças e mandá-los executar. Infelizmente, as
tropas iam com eles. Mas nem tudo acabou. Isto é fogo de palha; daqui a pouco
está apagado, e o que antes era torna a ser. Eu acharei duzentos rapazes bons e
prontos, e desfaremos esta caranguejola. A aparência é que dá um ar de solidez,
mas isto é nada. Hão de ver que o imperador não sai daqui, e, ainda que não
queira, há de governar; ou governará a filha, e, na falta dela, o neto. Também
ele ficou menino e governou. Amanhã é tempo; por ora tudo são flores. Há ainda
um punhado de homens…
A reticência final dos discursos de ambos quer dizer que as
ideias se iam tornando esgarçadas, nevoentas e repetidas, até que se perderam e
eles dormiram. Durante o sono cessou a revolução e a contrarrevolução, não
houve monarquia nem república, D. Pedro II nem Marechal Deodoro, nada que
cheirasse a política. Um e outro sonharam com a bela enseada de Botafogo, um
céu claro, uma tarde clara e uma só pessoa: Flora.
CAPÍTULO LXVIII – DE MANHÃ!
Floeta abriu os olhos de ambos, e esvaiu-se tão depressa
que eles mal puderam ver a barra do vestido e ouvir uma palavrinha meiga e
remota. Olharam um para o outro, sem rancor aparente. O receio de um e a
esperança de outro deram tréguas. Correram aos jornais. Paulo, meio tonto,
temia alguma traição sobre a madrugada. Pedro tinha uma ideia vaga de
restauração, e contava ler nas folhas um decreto imperial de anistia. Nem
traição nem decreto. A esperança e o receio fugiram deste mundo.
CAPÍTULO LXIX – AO PIANO
Enquanto eles sonhavam com Flora, esta não sonhou com a
república. Teve uma daquelas noites em que a imaginação dorme também, sem olhos
nem ouvidos, ou, quando muito, a retina não deixa ver claro, e as orelhas
confundem o som de um rio com o latir de um cão remoto. Não posso dar melhor
definição, nem ela é precisa; cada um de nós terá tido dessas noites mudas e
apagadas.
Não sonhou sequer com música; e, aliás, tocara antes
algumas das suas páginas queridas. Não as tocou somente por gostar delas, senão
por fugir à consternação dos pais, que era grande. Nenhum destes podia crer que
as instituições tivessem caído, outras nascido, tudo mudado. D. Cláudia ainda
apelava para o dia seguinte e perguntava ao marido se vira bem, e o que é que
vira; ele mordia os beiços, batia na perna, erguia-se, dava alguns passos, e
tornava a narrar os acontecimentos, as notícias coladas às portas dos jornais,
a prisão dos ministros, a situação, tudo extinto, extinto, extinto…
Flora não era avessa à piedade, nem à esperança, como
sabeis; mas não ia com a agitação dos pais, e meteu-se com o seu piano e as
suas músicas. Escolheu não sei que sonata. Tanto bastou para lhe tirar o
presente. A música tinha para ela a vantagem de não ser presente, passado ou
futuro; era uma cousa fora do tempo e do espaço, uma idealidade pura. Quando
parava, sucedia-lhe ouvir alguma frase solta do pai ou da mãe: “…Mas
como foi que…?” — “Tudo às escondidas…” — “Há
sangue?” Às vezes um deles fazia algum gesto, e ela não via o gesto. O
pai, com a alma trôpega, falava muito e incoerente. A mãe trazia outro vigor.
Já lhe sucedia calar por instantes, como se pensasse, ao contrário do marido
que, em se calando, coçava a cabeça, apertava as mãos ou suspirava, quando não
ameaçava o tecto com o punho.
—Lá, lá, dó, ré, sol, ré, ré, lá, ia dizendo o piano da
filha, por essas ou por outras notas, mas eram notas que vibravam para fugir
aos homens e suas dissensões.
Também se pode achar na sonata de Flora uma espécie de
acordo com a hora presente. Não havia governo definitivo. A alma da moca ia com
esse primeiro albor do dia. ou com esse derradeiro crepúsculo da tarde, — como
queiras, — em que nada é tão claro ou tão escuro que convide a deixar a cama ou
acender velas. Quando muito, ia haver um governo provisório. Flora não entendia
de formas nem de nomes A sonata trazia a sensação da falta absoluta de governo,
a anarquia da inocência primitiva naquele recanto do Paraíso que o homem perdeu
por desobediente, e um dia ganhará, quando a perfeição trouxer a ordem eterna e
única. Não haverá então progresso nem regresso, mas estabilidade. O seio de
Abraão agasalhará todas as cousas e pessoas, e a vida será um céu aberto. Era o
que as teclas lhe diziam sem palavras, ré, ré, lá, sol, lá lá, dó…
CAPÍTULO LXX – DE UMA CONCLUSÃO ERRADA
Os sucessos vieram vindo, à medida que as flores iam
nascendo. Destas houve que serviram ao último baile do ano. Outras morreram na
véspera. Poetas de um e outro regímen tiraram imagem do fato para cantarem a
alegria e a melancolia do mundo. A diferença é que a segunda abafava os seus
suspiros, enquanto a primeira levava longe os seus tripúdios. O metal das
trompas dava outro som que o das harpas. As flores é que continuavam a nascer e
morrer, igual e regularmente.
D. Cláudia colheu as rosas do último baile do ano, primeiro
da República, e adornou a filha com elas. Flora obedeceu e aceitou-as. Pai de
família antes de tudo, Batista acompanhou a esposa e a filha ao baile. Também
lá foi Paulo, pela moça e pelo regímen. Se, em conversa com o ex-presidente de
província, disse todo o bem que pensava do Governo Provisório, não lhe ouviu
palavras de acordo nem de contestação. Não entrou mais fundo na confissão do
homem, porque a moca o atraía, e ele gostava mais dela que do pai.
Flora viu uma semelhança entre o baile da ilha Fiscal e
este, apesar de particular e modesto. Este era dado por pessoa que vinha dos
tempos da propaganda e um dos ministros lá esteve, ainda que só meia hora. Daí
a ausência de Pedro, apesar de convidado. Flora sentiu a falta de Pedro, como
sentira a de Paulo na ilha; tal era a semelhança das duas festas. Ambas traziam
a ausência de um gêmeo.
—Por que é que seu irmão não veio? perguntou ela.
Paulo enfiou; depois de alguns instantes:
—Pedro é teimoso, disse. Teimou em recusar o convite. Crê
naturalmente que a monarquia levou a arte de dançar. Não faça caso; é um
lunático.
—Não diga isso.
—Acha também que a dança se foi com o império?
—Não, a prova é que estamos dançando. Não; digo que lhe não
chame nomes feios.
—Parece-lhe então que Pedro é um rapaz de juízo?
—Certamente, como o senhor.
—Mas…
Paulo ia a perguntar-lhe qual deles, tendo ela de jurar por
um ou por outro, lhe mereceria o juramento; mas recuou a tempo. Então ela falou
do calor, e ele achou que sim, que estava quente. Acharia que estava frio, se
ela se queixasse de frio. Flora, se só cedesse à vista, era também capaz de
aceitar todas as opiniões de Paulo, para ir com ele. Em verdade, Paulo tinha
agora um ar brilhante e petulante, olhava por cima, firme em que os seus
escritos de um ano é que haviam feito a República, posto que incompleta, sem
certas ideias que expusera e defendera, e teriam de vir um dia, breve. Tal ia
dizendo à moça, e ela escutava com prazer, sem opinião; era o gosto de o
escutar. Quando a lembrança de Pedro surgia na cabeça da moça, a tristeza
empanava a alegria, mas a alegria vencia de pressa a outra, e assim, acabou o
baile. Então as duas, tristeza e alegria, agasalharam-se no coração de Flora,
como as suas gêmeas que eram.
O baile acabou. O capítulo é que não acaba sem que deixe um
pouco de espaço a quem quiser pensar naquela criatura. Pai nem mãe podiam
entendê-la, os rapazes também não, e provavelmente Santos e Natividade menos
que ninguém. Tu, mestra de amores ou aluna deles, tu, que escutas a diversos,
concluis que ela era Custa pôr o nome do ofício. Se não fosse a obrigação de
contar a história com as próprias palavras, preferia calá-lo, mas tu sabes qual
é ele, e aqui fica. Concluis que Flora era namoradeira, e conclui mal.
Leitora, é melhor negar já isto que esperar pelo tempo.
Flora não conhecia as doçuras do namoro, e menos ainda se podia dizer
namoradeira de ofício. A namoradeira de ofício é a planta das esperanças e
alguma vez das realidades, se a vocação o impõe e a ocasião o permite. Também é
preciso ter em lembrança aquilo de um publicista, filho de Minas e do outro
século, que acabou senador, e escrevia contra os ministros adversários:
“Pitangueira não dá manga”.
Não, Flora não dava para namorados.
A prova disto é que no Estado em que viveu alguns meses de
1891, com o pai e a mãe, para o fim que direi adiante, ninguém alcançou o menor
dos seus olhares amigos ou sequer complacentes. Mais de um rapaz consumiu o
tempo em se fazer visto e atraído dela. Mais de uma gravata, mais de uma
bengala, mais de uma luneta levaram lhe as cores, os gestos e os vidros, sem
obter outra cousa que a atenção cortês e acaso uma palavra sem valor.
Flora só se lembrava dos gêmeos. Se nenhum deles a
esqueceu, ela não os perdeu de memória. Ao contrário, escrevia por todos os cor
reios a Natividade para se fazer lembrada de ambos. As cartas falavam pouco da
terra ou da gente, e não diziam mal nem bem. Usavam muito a palavra saudades,
que cada um dos dois gêmeos lia para si.
Também eles a escreviam nas cartas que mandavam a D.
Cláudia e a Batista, com a mesma intenção duplicada e misteriosa, que ela
entendia muito bem.
Tais eram de longe, ela e eles. A rixa velha, que os
desunia na vida, continuava a desuni-los no amor. Podiam amar cada um a sua
moça, casar com ela e ter os seus filhos, mas preferiam amar a mesma, e não ver
o mundo por outros olhos, nem ouvir melhor verbo, nem diversa música, antes,
durante e depois da comissão do Batista.
CAPÍTULO LXXI – A COMISSÃO
Lá me escapou a palavra. Sim, foi uma comissão dada ao pai,
e da qual não sei nada, nem ela. Negócio reservado. Flora chamava-lhe comissão
do inferno. O pai, sem ir tão fundo, concordava mentalmente com ela —
verbalmente, desmentia a definição.
—Não digas isso, Flora; é comissão de confiança para fins
nobremente políticos.
Creio que sim, mas daí a saber o objeto especial e real, ia
largo espaço. Também não se sabe como foi parar à mãos de Batista aquele recado
do governo. Sabe-se que ele não desprezou a escolha, quando um amigo íntimo
correu a chamá-lo ao palácio do generalíssimo. Viu que era reconhecer nele
muita finura e capacidade de trabalho. Não é menos certo, porém, que a comissão
entrava a aborrecê-lo, posto que na correspondência oficial dissesse exatamente
o contrário. Se tais papéis mostrassem sempre o coração da gente, Batista,
cujas instruções eram, aliás, de concórdia, parecia querer levar a concórdia a
ferro e fogo; mas o estilo não é o homem. O coração de Batista fechava-se, quando
ele escrevia, e deixava ir a mão adiante, com a chave do coração apertada…
“Já é tempo, suspirava o músculo, já é tempo de um lugar de
governador.”
Quanto a D. Cláudia, não queria ver acabada a comissão, que
restituía ao esposo a ação política; faltava-lhe somente uma cousa, oposição.
Nenhum jornal dizia mal dele. Aquele prazer de ler todas as manhãs as
descomposturas dos adversários, lê-las e relê-las com os seus nomes feios, como
látegos de muitas pontas, que lhe rasgavam as carnes e a excitavam ao mesmo
tempo, esse prazer não lhe dava a comissão reservada. Ao contrário, havia uma
espécie de aposta em achar o comissário justo, equitativo e conciliador, digno
de admiração, tipo cívico, caráter sem mácula. Tudo isto ela conheceu outrora,
mas para lhe achar sabor foi sempre preciso que viesse entremeado de ralhos e
calúnias. Sem eles, era água insossa. Também não tinha aquela parte de
cerimônias a que obrigava o sumo cargo, mas não lhe faltavam atenções, e era
alguma cousa.
CAPÍTULO LXXII – O REGRESSO
Quando o Marechal Deodoro dissolveu o congresso nacional,
em 3 de novembro, Batista recordou o tempo dos manifestos liberais, e quis
fazer um. Chegou a principiá-lo, em segredo, empregando as belas frases que
trazia de cor, citações latinas, duas ou três apóstrofes. D. Cláudia reteve-o à
beira do abismo, com razões claras e robustas. Antes de tudo, o golpe de Estado
podia ser um benefício. Serve-se muita vez a liberdade parecendo sufocá-la.
Depois, era o mesmo homem que a havia proclamado que convidava agora a nação a
dizer o que queria, e a emendar a constituição, salvo nas partes essenciais. A
palavra do generalíssimo, como a sua espada, bastava a defender e consumar a
obra principiada. D. Cláudia não tinha estilo próprio, mas sabia comunicar o
calor do discurso ao coração de um homem de boa vontade. Batista, depois de a
escutar e pensar, bateu-lhe no ombro imperativamente:
—Tens razão, filha.
Não rasgou o papel escrito; queria guardá-lo como simples
lembrança, e a prova é que ia escrever uma carta ao Presidente. D. Cláudia
também lhe tirou esta ideia da cabeça. Não havia necessidade de lhe mandar o
seu sufrágio; bastava conservar-se na comissão.
—O governo não está satisfeito com você?
—Está.
—Vendo que você se conserva, conclui que aprova tudo, e
basta.
—Sim, Cláudia, concordou ele após alguns instantes. Ao
contrário, qualquer cousa que escrevesse contra a assembléia sediciosa que o
Presidente acaba de dissolver, pareceria falta de piedade. Paz aos mortos! Tens
razão, filha.
Conservou-se calado, operando, fiel às instruções
recebidas. Vinte dias depois, o Marechal Deodoro passava o governo às mãos do
Marechal Floriano, o congresso era restabelecido e todos os decretos do dia 3
anulados.
Ao saber de tais fatos, Batista pensou morrer. Ficou sem
fala por alguns instantes, e D. Cláudia não achou a menor parcela de ânimo que
lhe desse. Nenhum contara com a marcha rápida dos acontecimentos, uns sobre
outros, com tal atropelo que parecia um bando de gente que fugia. Vinte dias
apenas; vinte dias de força e sossego, esperanças e grande futuro. Um dia mais
e tudo ruiu como casa velha.
Agora é que Batista compreendeu o erro de haver dado
ouvidos à esposa. Se tem acabado e publicado o manifesto no dia 4 ou 5, estaria
com um documento de resistência na mão para reivindicar um posto de honra
qualquer, — ou só estima que fosse. Releu o manifesto; chegou a pensar em
imprimi-lo, embora incompleto. Tinha conceitos bons, como este: “O dia da
opressão é a véspera da liberdade”. Citava a bela Roland caminhando para a
guilhotina: “Ó liberdade, quantos crimes em teu nome!” D. Cláudia
fez-lhe ver que era tarde, e ele concordou.
—Sim, é tarde. Naquele dia é que não era tarde, vinha à
hora própria, para o efeito certo.
Batista amarrotou o papel distraidamente; depois alisou-o e
guardou-o. Em seguida, fez um exame de consciência, profundo e sincero. Não
devia ter cedido — resistência era o melhor; se tem resistido às palavras da
mulher, a situação seria outra. Apalpou-se, achou que sim, que podia muito bem
haver-lhe trancado os ouvidos e passado adiante. Insistiu muito neste ponto. Se
pudesse, faria voltar atrás o tempo, e mostraria como é que a alma escolhe de
si mesma o melhor dos partidos. Não era preciso saber nada do que anteriormente
sucedeu; a consciência dizia-lhe que, em situação idêntica à do dia 3, faria
outra cousa… Oh! com certeza! faria cousa muito diversa, e mudaria o seu
destino.
Um ofício ou telegrama veio arrancar Batista à comissão
política e reservada. A volta para o Rio de Janeiro foi breve e triste, sem os
epítetos que o haviam regalado por alguns meses, nem acompanhamento de amigos.
Só uma pessoa vinha alegre, a filha, que rezara todas as noites pela terminação
daquele exílio.
—Parece que estás contente com o desastre de teu pai,
disse-lhe a mãe já a bordo.
—Não, mamãe; alegro-me de ver que acabou esta canseira.
Papai pode muito bem fazer política no Rio de Janeiro, onde é muito apreciado.
A senhora verá. Eu, se fosse papai, apenas desembarcasse, ia logo ao marechal
explicar tudo, mostrar as instruções e dizer o que tinha feito — dizia mais que
a dispensa veio muito a propósito, a fim de não parecer que ficara amofinado.
Depois pedia-lhe para trabalhar lá mesmo…
D. Cláudia, a despeito do amargor dos tempos, gostou de ver
que a filha pensava e dava conselhos em política. Não advertiu, como fez o
leitor, que a alma do discurso da moça era não sair da capital, fazer aqui
mesmo o seu congresso, que em breve seria uma só assembleia legislativa, como
no Rio Grande do Sul; mas a qual das câmaras, Pedro ou Paulo, caberia esse
único poder político? Eis o que ela mesma não sabia.
Ambos se lhe apresentaram a bordo, logo que o paquete
entrou no porto do Rio de Janeiro. Não foram em duas lanchas, foram na mesma, e
saltaram com tal presteza para a escada, que escaparam de cair ao mar. Talvez
fosse o melhor desfecho do livro. Ainda assim não acaba mal o capítulo, porque
a razão da presteza com que eles saltaram para a escada foi a ambição de ser o
primeiro que cumprimentasse a moça; aposta de amor, que ainda uma vez os
igualou na alma dela. Enfim chegaram, e não consta qual efetivamente a
cumprimentou primeiro; pode ser que ambos.
CAPÍTULO LXXIII – UM ELDORADO
No cais Pharoux esperavam por eles três carruagens, — dois
coupés e um landau, com três belas parelhas de cavalos. A gente Batista ficou
lisonjeada com a fineza da gente Santos, e entrou no landau. Os gêmeos foram
cada um no seu coupé. A primeira carruagem tinha o seu cocheiro e o seu lacaio,
fardados de castanho, botões de metal branco, em que se podiam ver as armas da
casa. Cada uma das outras tinha apenas o cocheiro, com igual libré. E todas
três se puseram a andar, estas atrás daquela, os animais batendo rijo e
compassado, a golpes certos, como se houvessem ensaiado, por longos dias,
aquela recepção. De quando em quando, encontravam outros trens, outras librés,
outras parelhas, a mesma beleza e o mesmo luxo, A capital oferecia ainda aos
recém-chegados um espetáculo magnífico. Vivia-se dos restos daquele
deslumbramento e agitação, epopéia de ouro da cidade e do mundo, porque a
impressão total é que o mundo inteiro era assim mesmo. Certo, não lhe
esqueceste o nome, encilhamento, a grande quadra das empresas e companhias de
toda espécie. Quem não viu aquilo não viu nada. Cascatas de ideias, de
invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se
fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares,
milhares de milhares de milhares de contos de réis. Todos os papéis, aliás
ações, saíam frescos e eternos do prelo. Eram estradas de ferro, bancos,
fábricas, minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, importação,
ensaques, empréstimos, todas as uniões, todas as regiões, tudo o que esses
nomes comportam e mais o que esqueceram. Tudo andava nas ruas e praças, com
estatutos, organizadores e listas. Letras grandes enchiam as folhas públicas,
os títulos sucediam-se, sem que se repetissem, raro morria, e só morria o que
era frouxo, mas a princípio nada era frouxo. Cada ação trazia a vida intensa e
liberal, alguma vez imortal, que se multiplicava daquela outra vida com que a
alma acolhe as religiões novas. Nasciam as ações a preço alto, mais numerosas
que as antigas crias da escravidão, e com dividendos infinitos.
Pessoas do tempo, querendo exagerar a riqueza, dizem que o
dinheiro brotava do chão, mas não é verdade. Quando muito, caía do céu. Cândido
e Cacambo… Ai, pobre Cacambo nosso! Sabes que é o nome daquele índio que
Basílio da Gama cantou no Uruguai. Voltaire pegou dele para o meter no seu
livro, e a ironia do filósofo venceu a doçura do poeta. Pobre José Basílio!
tinhas contra ti o assunto estreito e a língua escusa. O grande homem não te
arrebatou Lindóia, felizmente, mas Cacambo é dele, mais dele que teu, patrício
da minha alma.
Candido e Cacambo, ia eu dizendo, ao entrarem no Eldorado,
conta Voltaire que viram crianças brincando na rua com rodelas de ouro,
esmeralda e rubi; apanharam algumas, e na primeira hospedaria em que comeram
quiseram pagar o jantar com duas delas. Sabes que o dono da casa riu às
bandeiras despregadas, já por quererem pagar-lhe com pedras do calçamento, já
porque ali ninguém pagava o que comia, era o governo que pagava tudo. Foi essa
hilaridade do hospedeiro, com a liberalidade atribuída ao Estado, que fez crer
iguais fenômenos entre nós, mas é tudo mentira.
O que parece ser verdade é que as nossas carruagens
brotavam do chão. As tardes, quando uma centena delas se ia enfileirar no Largo
de S. Francisco de Paula, à espera das pessoas, era um gosto subir a Rua do
Ouvidor, parar e contemplá-las. As parelhas arrancavam os olhos à gente; todas
pareciam descer das rapsódias de Homero, posto fossem corcéis de paz. As
carruagens também. Juno certamente as aparelhara com suas correias de ouro,
freios de ouro, rédeas de ouro, tudo de ouro incorruptível. Mas nem ela nem Minerva
entravam nos veículos de ouro para os fins da guerra contra Ílion. Tudo ali
respirava a paz. Cocheiros e lacaios, barbeados e graves, esperando tesos e
compostos, davam uma bela ideia do ofício. Nenhum aguardava o patrão, deitado
no interior dos carros, com as pernas de fora. A impressão que davam era de uma
disciplina rígida e elegante, aprendida em alta escola e conservada pela
dignidade do indivíduo.
“Casos há, — escrevia o nosso Aires — em que a
impassibilidade do cocheiro na boleia contrasta com a agitação do dono no
interior da carruagem, fazendo crer que é o patrão que, por desfastio, trepou à
boleia e leva o cocheiro a passear.”
CAPÍTULO LXXIV – A ALUSÃO DO TEXTO
Antes de continuar, é preciso dizer que o nosso Aires não
se referia vagamente ou de modo genérico a algumas pessoas, mas a uma só pessoa
particular. Chamava-se então Nóbrega; outrora não se chamava nada, era aquele
simples andador das almas que encontrou Natividade e Perpétua na Rua de S.
José, esquina da Misericórdia. Não esqueceste que a recente mãe deitou uma nota
de dois mil-réis à bacia do andador. A nota era nova e bela; passou da bacia à
algibeira, no fundo de um corredor, não sem algum combate.
Poucos meses depois, Nóbrega abandonou as almas a si
mesmas, e foi a outros purgatórios, para os quais achou outras opas, outras
bacias e finalmente outras notas, esmolas de piedade feliz. Quero dizer que foi
a outras carreiras. Com pouco deixou a cidade, e não se sabe se também o país.
Quando tornou, trazia alguns pares de contos de réis, que a fortuna dobrou,
redobrou e desdobrou. Enfim, alvoreceu a famosa quadra do
“encilhamento”. Esta foi a grande opa, a grande bacia, a grande
esmola, o grande purgatório. Quem já sabia do andador das almas? A antiga roda
perdera-se na obscuridade e na morte. Ele era outro; as feições não eram as
mesmas, senão as que o tempo lhe veio compondo e melhorando.
Se a grande bacia, ou qualquer das outras recebeu notas que
tivessem o destino da primeira, é o que se não sabe, mas é possível. Foi por
esse tempo que Aires o viu de carro, quase a sair pela portinhola fora,
cumprimentando muito, espiando tudo. Como o cocheiro e o lacaio (creio que eram
escoceses) salvassem a dignidade pessoal da casa, Aires fez a observação do fim
do outro capítulo, sem nenhuma intenção geral. Posto não achasse já nenhum
conhecido antigo, Nóbrega tinha medo de tornar ao bairro, onde andara a pedir
para as primeiras almas. Um dia. porém tais foram as saudades dele que pensou
em afrontar o perigo e lá foi. Tinha cócegas de mirar as ruas e as pessoas,
recordava as casas e as lojas, um barbeiro, os sobrados de grade de pau, onde
mereciam tais e tais moças… Quando ia a ceder. teve outra vez medo e enfiou
por outra parte. Só passava de carro; depois quis ver tudo a pé, devagar,
parando, se fosse possível, e revivendo o extinto.
Lá se foi a pé: desceu pela Rua de S. José, dobrou a da
Misericórdia, foi parar à Praia de Santa Luzia, tornou pela Rua de D. Manuel,
enfiou de beco em beco. A princípio olhava de esguelha, rápido. Os olhos no
chão. Aqui via a loja de barbeiro, e o barbeiro era outro. Dos sobrados de
grade de pau debruçaram-se ainda moças, velhas e meninas e nenhuma era a mesma.
Nóbrega foi-se animando e encarando. Talvez esta velha fosse moça, há vinte
anos. a moça talvez mamasse, e dá agora de mamar a outra criança. Nóbrega
acabou parando e andando devagar.
Voltou mais vezes. Só as casas, que eram as mesmas,
pareciam reconhecê-lo, e algumas quase que lhe falavam. Não é poesia. O
ex-andador sentia necessidade de ser conhecido das pedras, ouvir-se admirar
delas, contar-lhes a vida, obrigá-las a comparar o modesto de outrora com o
garrido de hoje, e escutar-lhes as palavras mudas: “Vejam, manas, é ele
mesmo”. Passava por elas, fitava-as, interrogava-as, quase ria, quase as tocava
para sacudi-las com força: “Falem, diabos, falem!”
Não confiaria de homem aquele passado, mas às paredes
mudas, às grades velhas, às portas gretadas, aos lampiões antigos, se os havia
ainda, tudo o que fosse discreto, a tudo quisera dar olhos, ouvidos e boca, uma
boca que só ele escutasse, e que proclamasse a prosperidade daquele velho
andador.
Uma vez, viu a matriz de S. José aberta e entrou. A igreja
era a mesma, aqui estão os altares, aqui está a solidão, aqui está o silêncio.
Persignou-se, mas não orou — olhava só a um lado e outro, andando na direção do
altar-mor. Tinha receio de ver aparecer o sacristão, podia ser o mesmo, e
conhecê-lo. Ouviu passos, recuou depressa e saiu.
Ao subir pela Rua de S. José, encostou-se à parede, para
deixar passar uma carroça. A carroça subiu a calçada, ele refugiou-se num
corredor. O corredor podia ser qualquer; aquele era o próprio em que ele fez a
operação da nota de dois mil-réis de Natividade. Olhou bem, era o mesmo. Ao
fundo estavam os três ou quatro degraus da primeira escada que dobrava à
esquerda e pegava com a grande Sorriu do acaso reviu por um instante aquela
manhã, viu no ar a nota de dois mil-réis. Outras lhe teriam vindo às mãos por
maneiras assim fáceis, mas nunca lhe esqueceu aquela graciosa folha gravada com
tantos símbolos, números, datas e promessas, entregue por uma senhora
desconhecida, sabe Deus se a própria Santa Rita de Cássia. Era a sua particular
devoção. Sem dúvida, trocou a nota e gastou-a, mas as partes dispersas não
foram senão levar a outras notas um convite para a algibeira do dono, e todas
acudiram a mancheias, obedientes e caladas, para que não as ouvissem crescer.
Por mais que ele olhasse pela vida dentro, não achava igual
obséquio do Céu, ou sequer do inferno. Mais tarde, se alguma joia lhe levou os
olhos, não lhe levou as mãos. Tinha aprendido a respeitar o alheio, ou ganhara
com que o comprar. A nota de dois mil réis… Um dia. ousando mais, chamou-lhe
presente de Nosso Senhor.
Não, leitor, não me apanhas em contradição. Eu bem sei que
a princípio o andador das almas atribuiu a nota ao prazer que a dama traria de
alguma aventura. Ainda me lembram as palavras dele: “Aquelas duas viram
passarinho verde!” Mas se agora atribuía a nota à proteção da santa, não
mentia então nem agora. Era difícil atinar com a verdade. A única verdade certa
eram os dois mil-réis. Nem se pode dizer que era a mesma em ambos os tempos.
Então, a nota de dois mil-réis equivalia, pelo menos, a vinte (lembra-te dos
sapatos velhos do homem); agora não subia de uma gorjeta de cocheiro,
Também não há contradição em pôr a santa agora e a namorada
outrora. Era mais natural o contrário, quando era maior a intimidade dele com
igreja. Mas, leitor dos meus pecados, amava-se muito em 1871, como já se amava
em 1861, 1851 e 1841, não menos que em 1881, 1891 e 1901. O século dirá o
resto. E depois, é preciso não esquecer que a opinião do andador das almas
acerca de Natividade foi anterior ao gesto do corredor, quando ele agasalhou a
nota na algibeira. É duvidoso que, depois do gesto, a opinião fosse a mesma.
CAPÍTULO LXXV – PROVÉRBIO ERRADO
Pessoa a quem li confidencialmente o capítulo passado,
escreve-me dizendo que a causa de tudo foi a cabocla do Castelo. Sem as suas
predições grandiosas, a esmola de Natividade seria mínima ou nenhuma, e o gesto
do corredor não se daria por falta de nota. “A ocasião faz o ladrão”,
conclui o meu correspondente.
Não conclui mal. Há todavia alguma injustiça ou
esquecimento, porque as razões do gesto do corredor foram todas pias. Além
disso, o provérbio pode estar errado. Numa das afirmações de Aires, que também
gostava de estudar adágios, é que esse não estava certo.
—Não é a ocasião que faz o ladrão, dizia ele a alguém — o
provérbio está errado. A forma exata deve ser esta: “A ocasião faz o
furto; o ladrão nasce feito”.
CAPÍTULO LXXVI – TALVEZ FOSSE A MESMA!
Nóbrega saiu enfim do corredor, mas foi obrigado a
deter-se, porque uma mulher lhe estendia a mão:
—Meu senhor, uma esmolinha por amor de Deus!
Nóbrega meteu a mão no bolso do colete e pegou um níquel,
entre dois que lá havia, um de tostão, outro de dois. Pegou o primeiro, mas
indo a dar-lhe, mudou de ideia; não deu o níquel; disse à velha que esperasse,
e entrou mais fundo no corredor. De costas para a rua, introduziu a mão na
algibeira das calças e sacou um maço de dinheiro — procurou e achou uma nota de
dois mil-réis, não nova, antes velha, tão velha como a mendiga que a recebeu
espantada, mas tu sabes que o dinheiro não perde com a velhice.
—Tome lá, murmurou ele.
Quando a mendiga voltou do espanto, Nóbrega acabava de
restituir o maço à algibeira e ia a querer sair. O que a mendiga então disse
veio entremeado de lágrimas:
—Meu senhor! Obrigada, meu senhor! Deus lhe pague! A Virgem
Santíssima…
E beijava a nota, e queria beijar a mão que lhe dera a esmola,
mas ele a escondeu, como no Evangelho, murmurando que não, que se fosse embora.
Em verdade, a palavra da mendiga tinha um som quase místico, uma espécie de
melodia do Céu, um coro de anjos e fazia bem fitar-lhe os olhos encarquilhados,
a mão trêmula, segurando a nota. Nóbrega não esperou que ela se fosse, saiu,
desceu a rua, com as bênçãos da mulher atrás de si; dobrou a esquina, a passo
rápido, e aí foi pensando não se sabe em quê.
Atravessou a praça, passou a catedral e a igreja do Carmo,
e chegou ao Carceler, onde entregou as botas a um italiano para que lhe
engraxasse. Mentalmente, olhava para cima ou para baixo, para a direita ou para
esquerda, — em todo caso para longe, — e acabou murmurando esta frase, que
tanto podia referir-se à nota como à mendiga, mas provavelmente era à nota:
—Talvez fosse a mesma.
Nenhum obséquio, por ínfimo que seja, esquece ao
beneficiado. Há exceções. Também há casos em que a memória dos obséquios
aflige, persegue e morde, como os mosquitos; mas não é regra. A regra é guardá-los
na memória, como as joias nos seus escrínios; comparação justa, porque o
obséquio é muita vez alguma joia, que o obsequiado esqueceu de restituir.
CAPÍTULO LXXVII – HOSPEDAGEM
A família Batista foi aposentada em casa de Santos.
Natividade não pôde ir a bordo, e o marido estava ocupado em “lançar uma
companhia”; mandaram recado pelos filhos que a casa de Botafogo tinha já
os quartos preparados. Desde que o carro se pôs a andar, Batista confessou que
ia ficar constrangido por alguns dias.
—Numa casa de pensão era melhor, até que nos despejassem a
de S. Clemente.
—Que queria você? Não havia remédio senão aceitar, ponderou
a mulher.
Flora não disse nada, mas sentia o contrário do pai e da
mãe. Pensar, não pensou — ia tão atordoada com a vista dos rapazes que as
ideias não se enfileiraram naquela forma lógica do pensamento. A própria
sensação não era nítida. Era uma mistura de opressivo e delicioso, de turvo e
claro, uma felicidade truncada, uma aflição consoladora, e o mais que puderes
achar no capítulo das contradições. Eu nada mais lhe ponho. Nem ela saberia
dizer o que sentia. Teve alucinações extraordinárias.
Agora o que é mister dizer é que a ideia da hospedagem cabe
toda aos dois jovens doutores. Que eles eram já doutores, posto não houvessem
ainda encetado a carreira de advogado nem de médico. Viviam do amor da mãe e da
bolsa do pai, inesgotáveis ambos. O pai abanou as orelhas à lembrança, mas os
gêmeos insistiram pelo obséquio, a tal ponto que a mãe, contente de os ver de
acordo, saiu do silêncio e concordou com eles.
A ideia de ter a pequena ao pé de si, por alguns dias, e
discernir qual era o melhor aceito, e o que deveras a amava, pode ser que
também influísse na adoção do voto, mas não afirmo nada a tal respeito. Também
não asseguro que tivesse grande gosto em agasalhar a mãe e o pai de Flora.
Não obstante, o encontro foi cordial de parte a parte. Foi
um abraçar, um beijar, um perguntar, um trocar de mimos que não acabava mais.
Todos estavam mais gordos, outra cor, outro ar. Flora era um encanto para
Natividade e Perpétua — nenhuma destas sabia aonde iria parar aquela moça tão
senhoril, tão esbelta, tão…
—Não digam o resto, interrompeu a moça sorrindo; eu tenho a
mesma opinião.
Santos recebeu-os, à tarde, com a mesma cordialidade, —
talvez menos aparente, mas tudo se desculpa a quem anda com grandes negócios .
—Uma ideia sublime, disse ele ao pai de Flora; a que lancei
hoje foi das melhores, e as ações valem já ouro. Trata-se de lã de carneiro, e
começa pela criação deste mamífero nos campos do Paraná. Em cinco anos
poderemos vestir a América e a Europa. Viu o programa nos jornais?
—Não, não leio jornais daqui desde que embarquei.
—Pois verá!
No dia seguinte, antes de almoçar, mostrou ao hóspede o
programa e os estatutos. As ações eram maços e maços, e Santos ia dizendo o
valor de cada um. Batista somava mal, em regra; daquela vez, pior. Mas os
algarismos cresciam à vista, trepavam uns nos outros, enchiam o espaço, desde o
chão até às janelas, e precipitavam-se por elas abaixo, com um rumor de ouro
que ensurdecia. Batista saiu dali fascinado, e foi repetir tudo à mulher.
CAPÍTULO LXXVIII – VISITA AO MARECHAL
D. Cláudia, quando ele acabou, perguntou-lhe com
simplicidade:
—Você vai hoje ao marechal?
Batista, caindo em si:
—Naturalmente.
Tinham ajustado que ele iria ter com o presidente da
República explicar-lhe a comissão que exercera, toda reservada, e, sem embargo,
imparcial. Diria o espírito de concórdia com que andou e a estima que adquiriu.
Em seguida, falaria da conveniência de um governo que, pela fortaleza e pela
liberdade, excedesse o do generalíssimo; e uma frase final bem estudada.
—Isso na ocasião, disse Batista.
—Não, é melhor levá-la feita. Eu lembrei-me desta:
“Creia V. Exa. que Deus está com os fortes e os bons”.
—Sim, não é má. Você pode acrescentar um gesto que indique
o Céu.
—Isso é que não. Você sabe que eu não dou para gestos, não
sou ator. Eu, sem mexer um pé; inspiro respeito.
D. Cláudia dispensou o gesto; não era essencial. Quis que
ele escrevesse a frase, mas lá estava de cor. Batista tinha boa memória.
Naquele mesmo dia. Batista foi ao Marechal Floriano. Não
disse nada às pessoas da casa; contaria tudo na volta. D. Cláudia também calou,
era por pouco tempo; ficou esperando ansiosa. Esperou duas mortais horas,
chegou a imaginar que lhe tivessem encarcerado o esposo, por intrigas. Não era
devota. mas o medo inspira devoção, e ela rezou consigo. Enfim, chegou Batista.
E a correu a recebê-lo, alvoroçada, pegou-lhe na mão e recolheram-se ao quarto.
Perpétua (vede o que são testemunhos pessoais na história!) exclamou
enternecida: — Parecem dois pombinhos!
Batista contou que a recepção foi melhor do que esperava,
conquanto o marechal não lhe dissesse nada, mas escutou-o com interesse. A
frase? A frase saiu bem, apenas com uma emenda. Não estando certo se ele
preferia bons a fortes, ou se fortes a bons…
—Deviam ser as duas palavras, interrompeu a mulher.
—Sim, mas lembrou-me empregar uma terceira: “Creia V.
Ex.a que Deus está com os dignos!”
Com efeito, a última palavra podia abranger as duas, e
trazia esta vantagem de dar à frase um arranjo pessoal dele.
—Mas o marechal que disse?
—Não disse nada, ouviu-me com atenção obsequiosa e chegou a
sorrir, — um sorriso leve, um sorriso de acordo…
—Ou seria… Quem sabe… Você não andou bem, decerto.
Comigo ele diria alguma cousa. Você expôs tudo, conforme tínhamos combinado?
—Tudo.
—Expôs as razões da comissão, o desempenho, a nossa
moderação?…
—Tudo, Cláudia.
—E o aperto de mão do marechal?
—Não estendeu a mão, a princípio; fez um gesto de cabeça;
eu é que estendi a minha, dizendo: Sempre às ordens de Vossa Ex.a.
—E ele?
—Ele apertou-me a mão.
—Apertou bem?
—Você sabe, não podia ser um apertão de amigo, mas deve ter
sido cordial.
—E nenhuma palavra? Um passe bem, ao menos?
—Não, nem era preciso. Cortejei-o e saí.
D. Cláudia deixou-se estar pensando. A recepção não lhe
pareceu que fosse má, mas podia ser melhor. Com ela, seria muito melhor.
CAPÍTULO LXXIX – FUSÃO, DIFUSÃO, CONFUSÃO…
Atrás falei das alucinações de Flora. Realmente, eram
extraordinárias.
Em caminho, depois do desembarque, não obstante virem os
gêmeos separados e sós, cada um no seu coupé, cismou que os ouvia falar;
primeira parte da alucinação. Segunda parte: as duas vozes confundiam-se, de
tão iguais que eram, e acabaram sendo uma só. Afinal, a imaginação fez dos dois
moços uma pessoa única.
Este fenômeno não creio que possa ser comum. Ao contrário,
não faltará quem absolutamente me não creia, e suponha invenção pura o que é
verdade puríssima. Ora, é de saber que, durante a comissão do pai, Flora ouviu
mais de uma vez as duas vozes que se fundiam na mesma voz e mesma criatura. E
agora, na casa de Botafogo, repetia-se o fenômeno. Quando ouvia os dois, sem os
ver, a imaginação acabava a fusão do ouvido pela da vista, e um só homem lhe
dizia palavras extraordinárias.
Tudo isto não é menos extraordinário, concordo. Se eu
consultasse o meu gosto, nem os dois rapazes fariam um só mancebo, nem a moça
seria uma só donzela. Corrigiria a natureza desdobrando Flora. Não podendo ser
assim, consinto na unificação de Pedro e Paulo. Porquanto, esse efeito de visão
repetia-se ao pé deles, tal qual na ausência, quando ela se deixava esquecer do
lugar, e soltava a rédea a si mesma. Ao piano, à palestra, ao passeio na
chácara, à mesa de jantar, tinha dessas visões repentinas e breves, e das quais
ela mesma sorria, a princípio.
Se alguém quiser explicar este fenômeno pela lei da
hereditariedade supondo que ele era a forma afetiva da variação política da mãe
de Flora, não achará apoio em mim, e creio que em ninguém. São cousas diversas.
Conheceis os motivos de D. Cláudia — a filha teria outros que ela própria não
sabia. O único ponto de semelhança é que, tanto na mãe como na filha, o
fenômeno era agora mais frequente, mas em relação à primeira vinha do atropelo
dos acontecimentos exteriores. Nenhuma revolução se faz como a simples passagem
de uma sala a outra; as mesmas revoluções chamadas de palácio trazem alguma
agitação que fica por certo prazo, até que a água volte ao nível. D. Cláudia cedia
à inquietação dos tempos.
A filha obedeceria a outra causa qualquer, que se não podia
descobrir logo, nem sequer entender. Era um espetáculo misterioso, vago,
obscuro, em que as figuras visíveis se faziam impalpáveis , o dobrado ficava
único, o único desdobrado, uma fusão, uma confusão, uma difusão…
CAPÍTULO LXXX – TRANSFUSÃO, ENFIM
Uma transfusão, tudo o que puder definir melhor, pela
repetição e graduação das formas e dos estados, aquele particular fenômeno,
podes empregá-lo no outro e neste capítulo.
Dito o fenômeno, é preciso dizer também que Flora, a
princípio, achava-lhe graça. Minto; nos primeiros tempos, como estava longe,
não lhe achou nada; depois, sentiu uma espécie de susto ou vertigem, mas logo
que se acostumou a passar de dois a um e de um a dois, pareceu-lhe graciosa a
alternação, e chegava a evocá-la com o propósito de divertir a vista. Afinal
nem isto era preciso, a alternação fazia-se de si mesma. Umas vezes era mais
lenta que outras, alguma instantânea. Não eram tão frequentes que confinassem
com o delírio. Enfim, ela se foi acostumando e deleitando.
Uma ou outra vez, na cama, antes de dormir, repetia-se o
fenômeno, depois de muita resistência da parte dela, que não queria perder o
sono. Mas o sono vinha, e o sonho completava a vigília. Flora passeava então
pelo braço do mesmo garção amado, Paulo se não Pedro, e ambos iam admirar
estrelas e montanhas, ou então o mar, que suspirava ou tempestuava, e as flores
e as ruínas. Não era raro ficarem os dois a sós, diante de uma nesga de céu, claro
de luar, ou todo repregado de estrelas como um pano azul escuro. Era à janela,
supõe; vinha de fora a cantiga dos ventos mansos, um espelho grande, pendente
da parede, reproduzia as figuras dela e dele, confirmando a imaginação dela.
Como era sonho, a imaginação trazia espetáculos desconhecidos, tais e tantos
que mal se podia crer bastasse o espaço de uma noite. E bastava. E sobrava.
Sucedia que Flora acordava de repente, perdia o quadro e o vulto, e
persuadia-se que era tudo ilusão, e raro então dormia. Se era cedo, erguia-se,
andava, cansava-se, até adormecer novamente e sonhar outra cousa.
Outras vezes, a visão ficava sem o sonho, e diante dela uma
só figura esbelta, com a mesma voz namorada, o mesmo gesto súplice. Uma noite,
indo a deitar-lhe os braços sobre os ombros com o fim inconsciente de cruzar os
dedos atrás do pescoço, a realidade, posto que ausente, clamou pelos seus
foros, e o único moço se desdobrou nas duas pessoas semelhantes.
A diferença deu às duas visões de acordada um tal cunho de
fantasmagoria que Flora teve medo e pensou no Diabo.
CAPÍTULO LXXXI – AI, DUAS ALMAS…
Anda, Flora, ajuda-me, citando alguma cousa, verso ou
prosa, que exprima a tua situação. Cita Goethe, amiga minha, cita um verso do
Fausto, adequado:
Ai, duas almas no meu seio moram!
A mãe dos gêmeos, a bela Natividade, podia havê-lo citado
também, antes deles nascerem, quando ela os sentia lutando dentro em Si mesma:
Ai, duas almas no meu seio moram!
Nisto as duas se parecem, — uma os concebeu, outra os
recolheu. Agora, como é que se dá ou se dará a escolha de Flora, nem o próprio
Mefistófeles no-lo explicaria de modo claro e certo. O verso basta:
Ai, duas almas no meu seio moram!
Talvez aquele velho Plácido, que lá deixamos nas primeiras
páginas, chegasse a deslindar estas outras. Doutor em matérias escuras e
complicadas, sabia muito bem o valor dos números, a significação dos gestos não
só visíveis como invisíveis, a estatística da eternidade a divisibilidade do
infinito. Era já morto desde alguns anos. Hás de lembrar-te que ele, consultado
pelo pai de Pedro e Paulo, acerca da hostilidade original dos gêmeos,
explicou-a prontamente. Morreu no seu ofício; expunha a três discípulos novos a
correspondência das letras vogais com os sentidos do homem. quando caiu de
bruços e expirou.
Já então os adversários de Plácido, — que os tinha na
própria seita, — afirmavam haver ele aberrado da doutrina, e, por natural
efeito, enlouquecido. Santos nunca se deixou ir com esses divergentes da casa
comum, que acabaram formando outra igrejinha em outro bairro, onde pregavam que
a correspondência exata não era entre as vogais e os sentidos, mas entre os
sentidos e as vogais. Esta outra fórmula, parecendo mais clara, fez com que
muitos discípulos da primeira hora acompanhassem os da última, e proclamem
agora, como conclusão final, que o homem é um alfabeto de sensações.
Venceram estes, ficando mui poucos fiéis à doutrina do
velho Plácido. Evocado algum tempo depois de morto, confessou ele ainda uma vez
a sua fórmula, como a única das únicas, e excomungou a quantos pregassem o
contrário. Aliás, os dissidentes já o haviam excomungado também, declarando
abominável a sua memória, com aquele ódio rijo, que fortalece alguma vez o
homem contra a frouxidão da piedade.
Talvez o velho Plácido deslindasse o problema em cinco
minutos. Mas para isso era preciso evocá-lo, e o discípulo Santos cuidava agora
de umas liquidações últimas e lucrativas. Não só de fé vive o homem, mas também
de pão e seus compostos e similares.
CAPÍTULO LXXXII – EM S. CLEMENTE
Ao caso de poucas semanas, a família Batista saiu da casa
Santos, e tornou à Rua de S. Clemente. A despedida foi terna, as saudades
começaram antes da separação, mas a afeição, o costume, a estima, — a
necessidade, em suma, de se verem a miúdo compensaram a melancolia, e a gente
Batista levou promessa de que a gente Santos iria vê-la daí a poucos dias.
Os gêmeos cumpriram cedo a promessa. Um deles, parece que
Paulo foi lá nessa mesma noite com recado da mãe para saber se tinham chegado
bem. Disseram-lhe que sim, acrescentando Batista, para abreviar a visita, que
estavam bastante cansados. Os olhos de Flor a desmentiram esta afirmação; mas
dentro em pouco achavam se não menos tristes que alegres. A alegria vinda da
prontidão de Paulo, a tristeza da ausência de Pedro. Quisera-os ambos
naturalmente; mas, como é que as duas sensações se mostravam a um tempo. eis o
que não entenderás bem nem mal. Certamente, os olhos iam diversas vezes para a
porta, e uma vez pareceu à moça ouvir rumor na escada; tudo ilusão. Mas estes
gestos que Paulo não viu, tão contente estava de se haver adiantado ao irmão,
não eram tais que a fizessem esquecer o irmão presente.
Paulo saiu tarde, não só para o fim de aproveitar a
ausência de Pedro, mas ainda porque Flora o fazia demorar, com o intuito de ver
se o outro chegava. Assim que, a mesma dualidade de sensação enchia os olhos da
moça, até a hora da despedida, em que a parte triste foi maior que a alegre,
pois que eram duas ausências, em vez de uma. Conclui o que quiseres, minha
dona; ela recolheu-se para dormir, e reconheceu que, se não dorme com uma
tristeza na alma. muito menos com duas.
CAPÍTULO LXXXIII – A GRANDE NOITE
Há muito remédio contra a insônia. O mais vulgar é contar
de um até mil, dois mil, três mil ou mais, se a insônia não ceder logo. É
remédio que ainda não fez dormir ninguém, ao que parece, mas não importa. Até
agora, todas as aplicações eficazes contra a física vão de par com a noção de
que a tísica é incurável. Convém que os homens afirmem o que não sabem, e, por
ofício, o contrário do que sabem; assim se forma esta outra incurável, a
Esperança.
Flora, incurável também, se não preferes a definição de
inexplicável, que lhe deu Aires, a graciosa Flora teve naquela noite a sua
insônia. Mas foi um tanto culpa sua. Em vez de se deitar quietinha e dormir com
os anjos, achou melhor velar com um dos dois deles, e gastar uma parte da
noite, à janela ou sentada, a recordar e a pensar, a cotejar e a completar,
metida no roupão de linho, com os cabelos atados para dormir.
A princípio pensou no que lá estivera, e evocou todas as
suas graças, realçadas pela virtude particular de a ter ido ver à noite, sem
embargo de se terem visto de manhã. Sentia-se grata. Toda a conversação foi ali
repetida na solidão da alcova, com as entonações diversas, o vário assunto, e
as interrupções frequentes, ora dos outros, ora dela mesma. Ela, em verdade, só
interrompia, para pensar no ausente, — e portanto não fazia mais que converter
o diálogo em monólogo, o qual por sua vez acabava em silêncio e contemplação.
Agora, pensando em Paulo, queria saber por que é que o não
escolhia para noivo. Tinha uma qualidade a mais, a nota aventurosa do caráter,
e esta feição não lhe desprazia. Inexplicável ou não, deixava-se levar pelos
ímpetos do rapaz, que queria trocar o mundo e o tempo por outros mais puros e
felizes. Aquela cabeça, apenas masculina, era destinada a mudar a marcha do
Sol, que andava errado. A Lua também. A Lua pedia um contato mais frequente com
os homens, menos quartos, não descendo o minguante de metade. Visível todas as
noites, sem que isso acarretasse a decadência das estrelas, continuaria
modestamente o ofício do Sol, e faria sonhar os olhos insones ou só cansados de
dormir. Tudo isso cumpriria a alma de Paulo, faminta de perfeição. Era um bom marido,
em suma. Flora cerrou as pálpebras, para vê-lo melhor, e achou-o a seus pés,
com as mãos dela entre as suas, risonho e extático.
—Paulo! meu querido Paulo!
Inclinou-se, para vê-lo de mais perto, e não perdeu o tempo
nem a intenção. Visto assim; era mais belo que simplesmente conversando das
cousas vulgares e passageiras. Enfiou os olhos nos olhos, e achou-se dentro da
alma do rapaz. O que lá viu não soube dizê-lo bem; foi tudo tão novo e radiante
que a pobre retina da moça não podia fitar nada com segurança nem continuidade.
As ideias faiscavam como saindo de um -fogareiro à força de abano, as sensações
batiam-se em duelo, as reminiscências subiam frescas, algumas saudades, e
ambições principalmente, umas ambições de asas largas, que faziam vento só com
agitá-las. Sobre toda essa mescla e confusão chovia ternura, muita ternura…
Flora recolheu os olhos, Paulo estava na mesma postura; mas
do lado da porta, metido na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos
bela, mas um tanto triste. Flora sentiu-se tocada daquela tristeza. Parece que,
se amasse exclusivamente o primeiro, o segundo podia chorar lágrimas de sangue,
sem lhe merecer a menor simpatia. Que o amor, conforme as ninfas antigas e
modernas, não tem piedade. Quando há piedade para outro, dizem elas, é que o
amor ainda não nasceu de verdade, ou já morreu de todo, e assim o coração não
lhe importa vestir essa primeira camisa do afeto. Perdoa a figura; não é nobre,
nem clara, mas a situação não me dá tempo de ir à cata de outra.
Pedro aproximou-se, a passo lento, ajoelhou-se também e
tomou-lhe as mãos que Paulo apertava entre as suas. Paulo ergueu-se e sumiu-se
pela outra porta. O quarto tinha duas. A cama ficava entre elas. Talvez Paulo
fosse bramindo de cólera; ela é que não ouviu nada, tão docemente vivo era o
gesto de Pedro, já agora sem melancolia, e os olhos tão extáticos como os do
irmão. Não eram tais que saíssem, como os deste, às aventuras. Tinham a
quietação de quem não queria mais sol nem lua que esses que andam aí, que se
contenta de ambos, e, se os acha divinos, não cuida de os trocar por novos. Era
a ordem se queres, a estabilidade, o acordo entre si e as cousas, não menos
simpáticos ao coração da moça, ou por trazerem a ideia de perpétua ventura, ou
por darem a sensação de uma alma capaz de resistir.
Nem por isso os olhos de Flora deixaram de penetrar os de
Pedro, até chegar à alma do rapaz. O motivo secreto desta outra entrada podia
ser o escrúpulo de cotejar as duas para julgá-las, se não era somente o desejo
de não parecer menos curiosa de uma que de outra. Ambas as razões são boas, mas
talvez nenhuma fosse verdadeira. O gosto de fitar os olhos de Pedro era tão
natural que não exigia intenção particular nenhuma, e bastava fitá-los para
escorregar e cair dentro da alma namorada. Era gêmea da outra; não lhe viu mais
nem menos que nesta.
Unicamente, — e aqui toco o ponto escabroso do capítulo, —
achou cá alguma cousa indefinível que não sentira lá; em compensação sentiu lá
outra que não se lhe deparou cá. Indefinível, não esqueças. E escabroso porque
nada há pior que falar de sensações sem nome. Crede-me, amigo meu, e tu, não
menos amiga minha, crede-me que eu Preferia contar as rendas do roupão da moça,
os cabelos apanhados atrás, os fios do tapete, as tábuas do teto e por fim os
estalinhos da lamparina que vai morrendo… Seria enfadonho, mas entendia-se.
Sim, a lamparina ia morrendo, mas ainda podia dar luz ao
regresso de Paulo. Quando Flora o viu entrar e ajoelhar-se outra vez, ao pé do
irmão, e ambos dividirem entre si as mãos dela, mansos e cordatos, ficou
longamente atônita. Obra de um credo, como diziam os nossos antigos, quando
havia mais religião que relógios. Voltando a si, puxou as mãos, estendeu-as
depois sobre a cabeça deles, como se lhes apalpasse a diferença, o quid, o algo,
o indefinível. A lamparina ia morrendo… Pedro e Paulo falavam-lhe por
exclamações, por exortações, por súplicas, a que ela respondia mal e
tortamente, não que os não entendesse, mas por não os agravar, ou acaso por não
saber a qual deles diria melhor. A última hipótese tem ar de ser a mais
provável. Em todo caso, é o prélogo do que sucedeu, quando a lamparina chegou
aos últimos arrancos.
Tudo se mistura à meia claridade; tal seria a causa da
fusão dos vultos, que de dois que eram, ficaram sendo um só. Flora, não tendo
visto sair nenhum dos gêmeos, mal podia crer que formassem agora uma só pessoa,
mas acabou crendo, mormente depois que esta única pessoa solitária parecia
completá-la interiormente, melhor que nenhuma das outras em separado. Era muito
fazer e desfazer, mudar e transmudar. Pensou enganar-se, mas não; era uma só
pessoa, feita das duas e de si mesma, que sentia bater nela o coração. Estava
tão cansada de emoções que tentou erguer-se e ir fora, mas não pôde — as pernas
pareciam de chumbo e coladas ao solo. Assim esteve até que a lamparina, ao
canto, morreu de todo. Flora teve um sobressalto na poltrona, e ergueu-se:
—Que é isto?
A lamparina apagou-se. Foi acendê-la. Viu então que estava
sem um nem outro, sem dois nem um só fundido de ambos. Toda a fantasmagoria se
desfizera. A lamparina (agora nova) alumiava o seu quarto de dormir, e a
imaginação criara tudo. Foi o que ela supôs, e o leitor sabe. Flora compreendeu
que era tarde, e um galo confirmou essa opinião, cantando; outros galos fizeram
a mesma cousa.
—Ora, meu
Deus! exclamou a filha de Batista.
Meteu-se na cama, e, se não dormiu logo, também não se
demorou muito; não tardou a estar com os anjos. Sonhou com o canto dos galos,
uma carroça, um lago, uma cena de viagem do mar, um discurso e um artigo. O
artigo era de verdade. A mãe veio acordá-la, às dez horas da manhã,
chamando-lhe dorminhoca, e ali mesmo, na cama, lhe leu uma folha da manhã que
recomendava o marido ao governo. Flora ouviu satisfeita; acabara a grande
noite.
CAPÍTULO LXXXIV – O VELHO SEGREDO
Natividade dormiu tranquila, em Botafogo, mas acordou
pensando nos filhos e na moça de S. Clemente. Viera reparando nos três.
Parecera-lhe antes que Flora não aceitava um nem outro, logo depois que os
aceitava a ambos, e mais tarde um e outro alternadamente. Concluiu que ainda
não sentiria nada particular e decisivo; naturalmente iria com os tempos, a ver
qual destes a merecia deveras. Eles é que pareciam sentir igual inclinação e
igual ciúme. Daí alguma possível catástrofe. A separação não suprimiria tudo —
mas além de que, separadas as famílias, nem tudo seria presente a seus olhos,
as visitas podiam ser menos frequentes e até raras. Tinha assim o que quisera.
Ao demais, ia chegando o tempo de ir para Petrópolis —
propriamente, chegara. Natividade cuidava de subir com os filhos. Sempre
haveria lá no alto damas elegantes, diversões, alegria. Podia ser até que eles
achassem noivas, e bastava uma para um. O que ficasse sem ela teria a liberdade
de desposar Flora. Cálculos de mãe; vieram outros que os modificaram, e outros
que os restauraram. Quem for mãe que lhe atire a primeira pedra.
Nenhuma outra mãe atirou a primeira pedra à nossa amiga.
Quero crer que a razão disto não foi senão a própria discrição de Natividade.
Suspeitas e cálculos iam ficando no coração dela. Calou tudo e esperou.
Ao cabo, Flora cada vez gostava mais de Natividade.
Queria-lhe como se ela fosse sua mãe duplamente mãe, uma vez que não escolhera
ainda nenhum dos filhos. A causa podia ser que as duas índoles se ajustassem melhor
que entre Flora e D. Cláudia. A princípio, sentiu não sei que inveja amiga,
antes desejo, quando via que as formas da outra, embora arruinadas pelo tempo,
ainda conservavam alguma linha da escultura antiga. Pouco a pouco, foi
descobrindo em si mesma o introito de uma beleza, que devia ser longa e fina, e
de uma vida que podia ser grande…
Flora conhecia a predição da cabocla do Castelo,
relativamente aos dois gêmeos. A predição não era já segredo para ninguém.
Santos falara dela em tempo, apenas ocultando a subida de Natividade ao
Castelo; emendou a verdade, dizendo que a cabocla é que viera a Botafogo. O
resto foi revelado em confiança, como ao finado Plácido, e ainda depois de
alguma luta.
Três ou quatro vezes investiu e recuou. Um dia. a língua deu
sete voltas na boca, e o segredo saiu medroso e sussurrado, mas perdeu o medo
pelo gosto de mostrar que os rapazes seriam grandes. Enfim, o segredo foi
esquecendo. Mas Perpétua, por isto ou aquilo, contou-o agora à moça Batista,
que a ouviu incrédula. Que podia saber a cabocla do futuro?
—Sabia, e a prova é que adivinhou outras cousas, que não
posso contar e eram verdadeiras. Você não imagina como o diacho da cabocla via
longe. E tinha uns olhos de espetar o coração.
—Não acredito, D. Perpétua. Pois agora o futuro da gente…
E grandes como?
—Isso não disse por mais que Natividade lhe perguntasse;
disse só que seriam grandes e subiriam muito. Talvez venham a ser ministros de
Estado.
Perpétua parecia haver comprado os olhos à cabocla.
Enfiava-os pela amiga abaixo, até o coração, que aliás não batia com força nem
apressado, mas tão regular como de costume.
Entretanto, não sendo impossível que os dois rapazes
chegassem — aos altos deste mundo, Flora deixou de objetar e aceitou a
predição, sem outra palavra mais que um gesto, — sabes, creio, — um gesto de
boca, fazendo descair os cantos dela, levantando os ombros levemente, e
espalmando as mãos, como se dissesse: Enfim, pode ser.
Perpétua acrescentou que, mudado o regímen, era natural que
Paulo chegasse primeiro à grandeza, — e aqui espetou bem os olhos. Era um modo
de apanhar os sentimentos de Flora, acenando-lhe com a elevação de Paulo, pois
bem podia ser que viesse a amar antes o destino que a pessoa. Não achou nada.
Flora continuou a não se deixar ler. Não lhe atribuas isto
a cálculo, não era cálculo. Seriamente, não pensava em nada acima de si.
CAPÍTULO LXXXV – TRÊS CONSTITUIÇÕES
—Você crê deveras que venhamos a ser grandes homens?
perguntara Pedro a Paulo, antes da queda do império.
—Não sei; você pode vir a ser, quando menos,
primeiro-ministro.
Depois de 15 de novembro, Paulo retorquiu a pergunta, e
Pedro respondeu como o irmão, emendando o resto:
—Não sei; você pode vir a ser presidente da República.
Já lá iam dois anos. Agora pensavam mais em Flora que na
subida. A boa moral pede que ponhamos a cousa pública acima das pessoas, mas os
moços nisto se parecem com velhos e varões de outra idade, que muita vez pensam
mais em si que em todos. Há exceções, nobres algumas, outras nobilíssimas. A
história guarda muitas delas, e os poetas, épicos e trágicos, estão cheios de
casos e modelos de abnegação.
Praticamente, seria exigir muito de Pedro e Paulo que
cuidassem mais da Constituição de 24 de fevereiro que da moça Batista. Pensavam
em ambas, é verdade, e a primeira já dera lugar a alguma troca de palavras
acerbas.
A Constituição, se fosse gente viva e estivesse ao pé
deles, ouviria os ditos mais contrários deste mundo, porque Pedro ia ao ponto
de a achar um poço de iniquidades, e Paulo a própria Minerva nascida da cabeça
de Jove. Falo por metáfora para não descair do estilo. Em verdade, eles
empregavam palavras menos nobres e mais enfáticas, e acabavam trocando as
primeiras entre si.
Na rua, onde o encontro de manifestações políticas era
comum, e as notícias à porta dos jornais frequentes, tudo era ocasião de
debate.
Quando, porém, a imagem de Flora aparecia entre eles por
imaginação, o debate esmorecia, mas as injúrias continuavam e até cresciam, sem
confissão do novo motivo, que era ainda maior que o primeiro. Efetivamente,
eles iam chegando ao ponto em que dariam as duas constituições, a republicana e
a imperial, pelo amor exclusivo da moça, se tanto fosse exigido. Cada um faria
com ela a sua Constituição, melhor que outra qualquer deste mundo.
CAPÍTULO LXXXVI – ANTES QUE ME ESQUEÇA
Uma cousa é preciso dizer antes que me esqueça. Sabes que
os dois gêmeos eram belos e continuavam parecidos; por esse lado não supunham
ter motivo de inveja entre si. Ao contrário, um e outro achavam em si qualquer
cousa que acentuava, se não melhorava, as graças comuns. Não era verdade, mas
não é a verdade que vence, é a convicção. Convence-te de uma ideia, e morrerás
por ela, escreveu Aires por esse tempo no Memorial, e acrescentou: “nem é
outra a grandeza dos sacrifícios, mas se a verdade acerta com a convicção,
então nasce o sublime, e atrás dele o útil…” Não acabou ou não explicou
esta frase.
CAPÍTULO LXXXVII – ENTRE AIRES E FLORA
Aquela citação do velho Aires faz-me lembrar um ponto em
que ele e a moça Flora divergiam ainda mais que na idade. Já contei que ela,
antes da comissão do pai, defendia Pedro e Paulo, conforme estes diziam mal um
do outro. Naturalmente fazia agora a mesma cousa, mas a mudança do regímen
trouxe ocasião de defender também monarquistas e republicanos, segundo ouvia as
opiniões de Paulo ou de Pedro. Espírito de conciliação ou de justiça, aplacava
a ira ou o desdém do interlocutor: “Não diga isso… São patriotas
também… Convém desculpar algum excesso…” Eram só frases, sem ímpeto de
paixão nem estímulo de princípios; e o interlocutor concluía sempre:
—A senhora é boa.
Ora, o costume de Aires era o oposto dessa contradição
benigna. Hás de lembrar-te que ele usava sempre concordar com o interlocutor,
não por desdém da pessoa, mas para não dissentir nem brigar. Tinha observado
que as convicções, quando contrariadas, descompõem o rosto à gente, e não
queria ver a cara dos outros assim, nem dar à sua um aspecto abominável. Se
lucrasse alguma cousa, vá; mas, não lucrando nada, preferia ficar em paz com
Deus e os homens. Daí o arranjo de gestos e frases afirmativas que deixavam os
partidos quietos, e mais quieto a si mesmo.
Um dia como ele estivesse com Flora, falou daquele costume
dela, dizendo-lhe que parecia estudado. Flora negou que o fosse; era inclinação
natural defender os ausentes, que não podiam responder por nada; demais,
aplacava assim um dos gêmeos com que falasse, e depois o outro.
—Também concordo.
—E por que há de o senhor concordar sempre? perguntou ela
sorrindo.
—Posso concordar com a senhora, porque é uma delícia ir com
as suas opiniões, e seria mau gosto rebatê-las, mas, em verdade, não há
cálculo. Com os mais, se concordo, é porque eles só dizem o que eu penso.
—Já o tenho achado em contradição.
—Pode ser. A vida e o mundo não são outra cousa. A senhora
não saberá isto bem, porque é moça, e ingênua, mas creia que a vantagem é toda
sua. A ingenuidade é o melhor livro e a mocidade a melhor escola. Vá
desculpando esta minha pedanteria; alguma vez é um mal necessário.
—Não se
acuse, conselheiro. O senhor sabe que eu não creio nada contra a sua palavra,
nem contra a sua pessoa; a própria contradição que lhe acho é agradável.
—Também concordo.
—Concorda com tudo.
—Olha aqui, Flora; dá licença, conselheiro?
Esqueceu-me dizer que esta conversação era à porta de uma
loja de fazendas e modas, Rua do Ouvidor. Aires ia na direção do Largo de S.
Francisco de Paula e viu a mãe e a filha dentro, sentadas, a escolher um
tecido. Entrou, cumprimentou-as, e veio à porta com a filha. O chamado de D.
Cláudia interrompeu a conversação por alguns instantes. Aires ficou a olhar
para a rua, onde subiam e desciam mulheres de todas as classes, homens de todos
os ofícios, sem contar as pessoas paradas de ambos os lados e no centro. Não
havia burburinho grande, nem sossego puro, um meio-termo.
Talvez algumas pessoas fossem conhecidas de Aires e o
cumprimentassem; mas este tinha a alma tão metida em si mesma que, se falou a
uma ou duas, foi o mais. De quando em quando, voltava a cabeça para dentro,
onde Flora e a mãe faziam a sua consulta. Ouvia as palavras trocadas ainda
agora. Sentia-se curioso de saber se finalmente a moça escolhia a um dos
gêmeos, e qual destes.
Vá tudo; tinha já pesar que não fosse algum posto não lhe
importasse saber se Pedro ou Paulo. Quisera vê-la feliz, se a felicidade era o
casamento, e feliz o marido, sem embargo da exclusão — o excluído seria
consolado. Agora, se era por amor deles, se dela, é o que propriamente se não
pode dizer com verdade. Quando muito, para levantar a ponta do véu, seria preciso
entrar na alma dele, ainda mais fundo que ele mesmo. Lá se descobriria acaso,
entre as ruínas de meio celibato, uma flor descorada e tardia de paternidade,
ou, mais propriamente, de saudade dela…
Flora trouxe novamente a rosa fresca e rubra da primeira
hora. Não falaram mais de contradição, mas da rua, da gente e do dia. Nenhuma
palavra acerca de Pedro ou Paulo.
CAPÍTULO LXXXVIII – NÃO, NÃO, NÃO
Eles, onde quer que estivessem naquele momento, podiam
falar ou não. A verdade é que, se nenhum consentia em deixar a moça, também
nenhum contava obtê-la, por mais que a achassem inclinada. Tinham já combinado
que o rejeitado aceitaria a sorte, e deixaria o campo ao vencedor. Não chegando
a vitória, não sabiam como resolver a batalha. Esperar, seria o mais fácil, se
a paixão não crescesse, mas a paixão crescia.
Talvez não fosse exatamente paixão, se dermos a esta
palavra o sentido de violência, mas, se lhe reconhecermos uma forte inclinação
de amor, um amor adolescente ou pouco mais, era o caso. Pedro e Paulo cederiam
a mão da pequena, se houvessem de consultar só a razão, e mais de uma vez
estiveram a pique de o fazer; raro lampejo, que para logo desaparecia.
A ausência era já insofrível, a presença necessária. Se não
fora o que aconteceu e se contará por essas páginas adiante, haveria matéria
para não acabar mais o livro; era só dizer que sim e que não, e o que estes
pensaram e sentiram, e o que ela sentiu e pensou, até que o editor dissesse:
basta! Seria um livro de moral e de verdade, mas a história começada ficaria
sem fim.
Não, não, não… Força é continuá-la e acabá-la. Comecemos
por dizer o que os dois gêmeos ajustaram entre si, poucos dias depois daquele
sonho ou delírio da moça Flora, à noite, no quarto.
CAPÍTULO LXXXIX – O DRAGÃO
Vejamos o que é que estes ajustaram. Vinham de estar com
Aires no teatro, uma noite, matando o tempo. Conheceis este dragão; toda a
gente lhe tem dado os mais fundos golpes que pode, ele esperneia, expira e
renasce. Assim se fez naquela noite. Não sei que teatro foi, nem que peça, nem
que gênero; fosse o que fosse, a questão era matar o tempo, e os três o
deixaram estirado no chão.
Foram dali a um restaurante. Aires disse-lhes que,
antigamente, em rapaz, acabava a noite com amigos da mesma idade. Era o tempo
de Offenbach e da opereta. Contou anedotas, disse as peças, descreveu as damas
e os partidos, quase deu por si repetindo um trecho, música e palavras. Pedro e
Paulo ouviam com atenção, mas não sentiam nada do que espertava os ecos da alma
do diplomata. Ao contrário, tinham vontade de rir. Que lhes importava a notícia
de um velho café da Rua Uruguaiana, trocado depois em teatro, agora em nada,
uma gente que viveu e brilhou, passou e acabou antes que eles viessem ao mundo?
O mundo começou vinte anos antes daquela noite, e não acabaria mais, como um
viveiro de moços eternos que era.
Aires sorriu, porquanto ele também assim cuidou, aos vinte
e dois anos de idade, e ainda se lembrava do sorriso do pai, já velho, quando
lhe disse algo parecido com isso. Mais tarde, tendo adquirido do tempo a noção
idealista que ora possuía, compreendeu que tal dragão era juntamente vivo e
defunto, e tanto Valia matá-lo como nutri-lo. Não obstante, as recordações eram
doces, e muitas delas viviam ainda frescas, como se viessem da véspera.
A diferença da idade era grande, não podia entrar em
pormenores com eles. Ficou só em lembranças, e cuidou de outra cousa. Pedro e
Paulo, entretanto, receosos de que os adivinhasse e compreendesse o desprezo
que lhes inspiravam as saudades de tempos remotos e estranhos, pediram-lhe
informações, e ele deu as que podia, sem intimidade.
Ao cabo, a conversação valeu mais que este resumo, e a
separação não custou pouco. Paulo ainda lhe pediu Offenbach, Pedro uma
descrição das paradas de 7 de setembro e 2 de dezembro — mas o diplomata achou
meio de saltar ao presente e particularmente a Plora, que louvou como uma bela
criatura. Os olhos de ambos concordaram que era belíssima. Também louvou as
qualidades morais, a finura do espírito, tais dotes que Pedro e Paulo reconheceram
também, e daí a conversação, e por fim o ajuste a que me referi no começo deste
capítulo e pede outro.
CAPÍTULO XC – O AJUSTE
—Quanto a mim, um de vocês gosta dela, senão ambos, disse
Aires. Pedro mordeu os beiços, Paulo consultou o relógio; iam já na rua. Aires
concluiu o que sabia, que sim, que ambos, e não trepidou em dizê-lo,
acrescentando que a moça não era como a República, que um podia defender o
outro atacar; cumpria ganhá-la ou perdê-la de vez. Que fariam eles, dada a
escolha? Ou já estava feita a escolha, e o preterido teimava em a torcer para
si?
Nenhum falou logo, posto que ambos sentissem necessidade de
explicar alguma cousa. Tinham que a escolha não era clara ou decisiva.
Outrossim, que lhes cabia o direito de esperar a preferência, e fariam o diabo
para alcançá-la. Tais e outras ideias vagavam silenciosamente neles, sem sair
cá fora. A razão percebe-se, e devia ser mais de uma, — primeiro, a matéria da
conversação, — depois, a gravidade do interlocutor. Por mais que Aires abrisse as
portas à franqueza dos rapazes, estes eram rapazes e ele velho. Mas o assunto
em si era tão sedutor, o coração, apesar de tudo, tão indiscreto, que não houve
remédio senão falar negando.
—Não me neguem, interrompeu Aires; a gente madura sabe as
manhas da gente nova, e adivinha com facilidade o que ela faz. Nem é preciso
adivinhar; basta ver e ouvir. Vocês gostam dela.
Eles sorriam, mas já agora com tal amargor e acanhamento
que mostravam o desgosto da rivalidade, aliás sabida deles. Tal rivalidade era
também sabida de outros, devia sê-lo de Flora, e a situação lhes parecia agora
mais complicada e fechada que dantes.
Tinham chegado ao Largo da Carioca, era uma hora da noite.
Um vitória da Santos esperava ali os rapazes, a conselho e por ordem da mãe,
que buscava todas as ocasiões e meios de os fazer andar juntos e familiares.
Teimava em emendar a natureza. Levavas muita vez a passeio, ao teatro, a
visitas. Naquela noite, como soubesse que iam ao teatro, mandou aprestar a
vitória que os conduziu para a cidade, e ficou à espera deles.
—Entre, conselheiro, disse Pedro, o carro dá para três: eu
vou no banquinho da frente.
Entraram e partiram.
—Bem, continuou Aires, é certo que vocês gostam dela, e
igualmente certo que ela ainda não escolheu entre os dois. Provavelmente, não
sabe que faça. Um terceiro resolveria a crise, porque vocês se consolariam
depressa; também eu me consolei rapaz. Não havendo terceiro, e não se podendo
prolongar a situação, por que é que vocês não combinam alguma cousa?
—Combinar quê? Perguntou Pedro sorrindo.
—Qualquer cousa. Combinem um modo de cortar este nó górdio.
Cada um que siga a sua vocação. Você, Pedro, tentará primeiro desatá-lo; se ele
não puder, Paulo, você pegue da espada de Alexandre, e dê-lhe o golpe. Fica
tudo feito e acabado. Então o destino, que os espera, com duas belas criaturas,
virá trazê-las pela mão a um e a outro, e tudo se compõe na Terra como no Céu.
Aires disse mais cousas antes de se apear à porta da casa.
Apeado, ainda lhes perguntou:
—Estamos de acordo?
Os dois responderam de cabeça afirmativamente, e, ficando
sós não disseram nada. Que fossem pensando, é natural, e porventura o tempo
lhes pareceu curto entre o Catete e Botafogo. Chegaram a casa, subiram a escada
do jardim, falaram da temperatura, que Pedro achava deliciosa e Paulo
abominável, mas não disseram assim para não irritar um ao outro. A esperança do
ajuste é que os levava à moderação relativa e passageira. Vivam os frutos
pendentes do dia seguinte!
Cá estava o quarto à espera deles, um brinco de arranjo e
graça, de comodidade e repouso. Era a mãe que dava os últimos retoques todos os
dias; ela cuidava das flores que seriam postas nos vasinhos de porcelana, e ela
mesma as ia tirar à noite e pôr fora das janelas para que eles não as
respirassem dormindo. Cá estavam as velas ao pé das duas camas, metidas nos
seus castiçais de prata, um com o nome de Pedro, outro com o de Paulo,
gravados. Tapetinhos de suas mãos, laços dados por ela nos cortinados,
finalmente o retrato dela e o do marido pendurados à parede, entre as duas
camas, naquele mesmo lugar em que estiveram os de Luís XVI e Robespierre,
comprados na Rua da Carioca.
Ao pé de cada um dos castiçais acharam um bilhetinho de
Natividade. Aqui está o que ela dizia. “Algum de vocês quer ir comigo à
missa, amanhã? Faz anos que seu avô morreu, e Perpétua está adoentada.”
Natividade esquecera de lhes falar antes, e, aliás, andava bem sem eles,
mormente de carruagem; mas gostava de os ter consigo.
Pedro e Paulo riram do convite e da forma, e um deles
propôs que, para agradar à mãe, fossem ambos à missa. A aceitação da proposta
veio pronta; já não era harmonia, era uma espécie de diálogo na mesma pessoa. O
céu parecia escrever o tratado de paz que ambos teriam de assinar, ou, se
preferes, a natureza corrigia as índoles, e os dois rixosos começavam a ajustar
o ser e o parecer. Também não juro isto, digo o que se pode crer só pelo
aspecto das cousas.
—Vamos à missa, repetiram.
Seguiu-se um grande silêncio. Cada um ruminava o ajuste e o
modo de o propor. Enfim, de cama a cama, disseram o que lhes parecia melhor,
propuseram, discutiram, emendaram e concluíram sem escritura de tabelião,
apenas por aceitação de palavra. Poucas cláusulas. Confessando que não podiam
assegurar a escolha de Flora, concordaram em esperar por ela durante um prazo
curto; três meses. Dada a escolha, o rejeitado obrigava-se a não tentar mais
nada. Como tivessem a certeza final da escolha, o acordo era fácil; cada um não
faria mais que excluir o outro. Não obstante, se ao fim do prazo, nenhuma
escolha houvesse, cumpria adotar uma cláusula última. A primeira que acudiu foi
deixarem ambos o campo, mas não os seduziu. Lembrou-lhes recorrer à sorte, e
aquele que fosse designado por ela, deixaria o campo ao rival. Assim passou uma
hora de conversação, após a qual cuidaram de dormir.
CAPÍTULO XCI – NEM SÓ A VERDADE SE DEVE ÀS MÃES
As nove horas da manhã seguinte, Natividade estava pronta
para ir à missa que mandava dizer na matriz da Glória; nenhum dos filhos se lhe
apresentou.
—Parece que dormem.
E duas, três, quatro, cinco vezes, foi até à porta do
quarto a ver se ouvia rumor, como resposta ao bilhete que deixara. Nada.
Concluiu que teriam entrado tarde. Só não atinou que dormissem sobre o ajuste,
nem que ajuste era. Uma vez que o fizessem em cama fofa, tudo ia bem. Enfim,
acabou de calçar as luvas, desceu, entrou no carro e foi para a igreja.
A missa era aniversária, como dizia o bilhete. Uso velho; o
pai tinha a sua missa, a mãe outra, os irmãos e parentes outras. Não lhe
esqueciam datas obituárias, como não lhe esqueciam natalícias, quaisquer que
fossem, amigas ou parentas; trazia-as todas de cor. Doce memória! Há pessoas a
que não ajudas, e chegam a brigar consigo e com outros por abandono teu.
Felizes os que tu proteges; esses sabem o que é 24 de março, 10 de agosto, 2 de
abril, 7 e 31 de outubro, 10 de novembro, o ano todo, suas tristezas e alegrias
particulares.
Voltando a casa, viu Natividade os dois filhos no jardim, à
espera dela. Eles correram a abrir-lhe a portinhola do carro, e depois de a
apearem e lhe beijarem a mão, explicaram a falta. Tinha resolvido ambos, mas o
sono…
—O sono e a preguiça, concluiu a mãe rindo.
—Foi só o sono, disse Pedro.
—Acordamos agora mesmo, acabou Paulo.
Disputaram dar-lhe o braço; Natividade os satisfez dando um
braço a cada um. Em casa, ao mudar de roupa Natividade refletiu que, se Flora
lhes tivesse feito algum pedido, eles acordariam cedo, por mais tarde que se
deitassem; a memória serviria de despertador. Passou-lhe uma sombra rápida, mas
depressa se reconciliou com a diferença. Assim que, não foi por ciúme, mas para
os trazer a outras seduções e separá-los da guerra ante a bela Flora, que a mãe
teimou em levar os filhos para Petrópolis. Subiriam na primeira semana de
janeiro. A estação seria excelente; anunciou festas, citou nomes, notou-lhe que
Petrópolis era a cidade da paz. O governo pode mudar cá embaixo e nas
províncias…
—Que províncias, mamãe? atalhou Paulo.
Natividade sorriu e emendou:
—Nos Estados. Vai desculpando os descuidos de tua mãe. Bem
sei que são Estados; não são como as províncias antigas, não esperam que o
presidente lhes vá aqui da Corte…
—Que Corte, baronesa?
Agora os dois riram, mãe e filho. Passado o riso,
Natividade continuou:
—Petrópolis é a cidade da paz; é, como dizia outro dia o
Conselheiro Aires, é a cidade neutra, é a cidade das nações. Se a capital do
Estado fosse ali, não haveria deposição de governo. Petrópolis, — vejam vocês
que o nome, apesar da origem, ficou e ficará, — é de todos. A estação dizem que
vai ser encantadora…
—Eu não sei se posso ir já, disse Paulo.
—Nem eu, acudiu Pedro.
Ainda uma vez estavam de acordo, mas aqui o acordo trazia
provavelmente o divórcio, refletiu a mãe, e o prazer que lhe deram aquelas duas
palavras morreu depressa. Perguntou-lhes que razão tinham para ficar e até
quando. Se estivessem estabelecidos com o seu consultório médico e a sua banca
de advogado, era bem; mas, se nenhum deles começara ainda a carreira, que
fariam cá embaixo, quando ela e o marido…
—Justamente; eu tenho que fazer uns estudos de clínica na
Santa Casa, respondeu Pedro.
Paulo explicou-se. Não ia praticar a advocacia, mas
precisava de consultar certos documentos do século XVIII na Biblioteca
Nacional; ia escrever uma história das terras possuídas.
Nada era verdade, mas nem só a verdade se deve dizer às
mães.
Natividade ponderou que eles podiam fazer tudo entre as
duas barcas de Petrópolis — desciam, almoçavam, trabalhavam, e às quatro horas
subiriam, como a demais gente. Em cima achariam visitas, música, bailes, mil
cousas belas, sem contar as manhãs, a temperatura e os domingos. Eles
defenderam o estudo, como sendo melhor por muitas horas seguidas.
Natividade não teimou. Mais depressa ficaria esperando que
os filhos acabassem os documentos da Biblioteca e a clínica da Santa Casa. Esta
ideia fê-la atentar para a necessidade de ver estabelecidos o jovem médico e o
jovem advogado. Trabalhariam com outros profissionais de reputação e iriam
adiante e acima. Talvez a carreira científica lhes desse a grandeza anunciada
pela cabocla do Castelo, e não a política ou outra. Em tudo se podia
resplandecer e subir. Aqui fez a crítica de si mesma, quando imaginou que
Batista abriria a carreira política de algum deles, sem advertir que o pai de
Flora mal continuaria a própria carreira, aliás obscura. Mas a ideia do mando
tornava a ocupar a cabeça da mãe, e cheios dela os olhos fitavam ora Pedro, ora
Paulo.
Chegaram a acordo. Eles subiriam aos sábados e desceriam às
segundas o mesmo por ocasião de dias santos e festas de gala. Natividade
contava com o costume e as atrações.
Na barca e em Petrópolis era objeto de conversação a
diferença entre os filhos, que só iam lá uma vez por semana, e o pai, que
trazia tantos negócios às costas, e subia todas as tardes. Que fariam eles cá
embaixo, quando alguns olhos podiam atraí-los e agarrá-los lá em cima?
Natividade defendia os gêmeos, dizendo que um ia a Santa Casa e outro à
Biblioteca Nacional, e estudavam muito, às noites. A explicação era aceitável.
mas, além de fazer perder um assunto aos bonitos dentes do verão, podia ser
invenção dos rapazes; naturalmente, iriam às moças.
A verdade é que eles faziam rumor em Petrópolis, durante as
poucas horas que lá passavam. Além do mais, tinham a semelhança e a graça. As
mães diziam bonitas cousas à mãe deles, e indagavam da razão verdadeira que os
prendia à capital, não assim como eu digo, nu e cru, mas com arte fina e
insidiosa, arte perdida, porque a mãe insistia na Biblioteca e na Santa Casa.
Deste jeito, a mentira, já servida em primeira mão, era servida em segunda, e
nem por isso melhor aceita.
CAPÍTULO XCII – SEGREDO ACORDADO
Enfim, que segredo há que se não descubra? Sagacidade, boa
vontade, curiosidade, chama-lhe o que quiseres, há uma força que delta cá para
fora tudo o que as pessoas cuidam de esconder. Os próprios segredos cansam de
calar, — calar ou dormir; fiquemos com este outro verbo, que serve melhor à
imagem. Cansam, e ajudam a seu modo aquilo que imputamos à indiscrição alheia.
Quando eles abrem os olhos, faz-lhes mal a escuridão. Um
raio de sol basta. Então pedem aos deuses (porque os segredos são pagãos) um
quase nada de crepúsculo, aurora ou tarde, posto que a aurora prometa dia.
enquanto a tarde cai outra vez na noite, mas tarde que seja, tudo é respirar
claridade. Que os segredos, amiga minha, também são gente; nascem, vivem e
morrem. Agora o que sucede, quando um olhar de sol penetra na solidão deles, é
que dificilmente sai mais, e geralmente cresce, rasga, alaga, e os traz pela
orelha cá para fora. Vexados da grande luz, eles a princípio andam de ouvido em
ouvido, cochichados, alguma vez escritos em bilhetes, ainda que tão vagamente e
sem nomes, que mal se adivinhará quais sejam. Si o período da infância, que
passa depressa; a mocidade pula por cima da adolescência, e eles aparecem
fortes e derramados, sabidos como gazetas. Enfim, se a velhice chega, e eles
não se vexam dos cabelos brancos, tomam conta do mundo, e acaso conseguem, não
digo esquecer, mas aborrecer; entram na família do próprio sol, que quando
nasce é para todos, segundo dizia uma tabuleta da minha infância.
Tabuletas da minha infância, ai, tabuletas! Quisera acabar
por elas este capítulo, mas o assunto não teria nobreza nem interesse, e ainda
uma vez interromperíamos a nossa história. Fiquemos no segredo divulgado; é
quanto basta. Uma veranista elegante não dissimulou o seu espanto ao saber que
os dois irmãos combinavam num ponto que faria romper os maiores amigos deste
mundo. Um secretário de legação insinuou que podia ser brincadeira dos dois.
—Ou dos três, acrescentou outra veranista.
Iam de passeio à Quitandinha, a cavalo. Aires
acompanhava-os, e não dizia nada. Quando lhe perguntaram se Flora era bonita,
respondeu que sim, e falou da temperatura. A primeira veranista perguntou-lhe
se era capaz de suportar aquela situação. Aires respirou, como quem vem de
longe, e declarou que aos pés de um padre seria obrigado a mentir, tais eram os
seus pecados; mas ali, na estrada, ao ar livre, entre senhoras, confessou que
matara mais de um rival. Que se lembrasse trazia sete mortes às costas, com
várias armas. As senhoras riam — ele falava soturno. Só uma vez escapou de
morrer primeiro, e inventou uma anedota napolitana. Fez a apologia do punhal.
Um que tivera, há muitos anos, o melhor aço do mundo, foi obrigado a dá-lo de
presente a um bandido, seu amigo, quando lhe provou que completara na véspera o
seu vigésimo nono assassinato.
—Aqui está para o trigésimo, disse-lhe entregando a arma.
Poucos dias depois soube que o bandido, com aquele punhal,
matara o marido de uma senhora, e depois a senhora, a quem amava sem ventura.
—Deixei-o com trinta e um crimes de primeira ordem.
As damas continuavam a rir; ele conseguiu assim desviar a
conversação de Flora e seus namorados.
CAPÍTULO XCIII – NÃO ATA NEM DESATA
Enquanto indagavam dela em Petrópolis, a situação moral de
Flora era a mesma, — o mesmo conflito de afinidades, o mesmo equilíbrio de
preferências. Cessado o conflito, roto o equilíbrio, a solução viria de pronto,
e, por mais que doesse a um dos namorados, venceria o outro a menos que
interviesse o punhal da anedota de Aires.
Assim passaram algumas semanas desde a subida de
Natividade. Quando Aires vinha ao Rio de Janeiro, não deixava de ir vê-la a S.
Clemente, onde a achava qual era dantes, salvo um pouco de silêncio em que a
viu metida uma vez. No dia seguinte recebeu uma carta de Flora, pedindo-lhe
desculpa da desatenção, se a houve, e mandando-lhe saudades. “Mamãe pede
que a recomende também ao senhor e à família da baronesa”. Esta
recomendação exprimia o consentimento obtido da mãe para que lhe escrevesse a
carta. Quando ele tornou ao Rio, correu a S. Clemente e Flora pagou-lhe com
alegria grande o silêncio daquela outra manhã. Todavia, não era espontânea nem
constante, tinha seus cochilos de melancolia. Aires voltou ainda algumas vezes
na mesma semana. Flora aparecia-lhe com a alegria costumada, e, para o fim, a
mesma alteração dos últimos dias.
Talvez a causa daquelas síncopes da conversação fosse a
viagem que o espírito da moça fazia à casa da gente Santos. Uma das vezes, o
espírito voltou para dizer estas palavras ao coração: “Quem és tu, que não
atas nem desatas? Melhor é que os deixes de vez. Não será difícil a ação,
porque a lembrança de um acabará por destruir a de outro, e ambas se irão
perder com o vento, que arrasta as folhas velhas e novas, além das partículas
de cousas, tão leves e pequenas, que escapam ao olho humano. Anda, esquece-os;
se os não podes esquecer, faze por não os ver mais; o tempo e a distância farão
o resto”.
Tudo estava acabado. Era só escrever no coração as palavras
do espírito, para que lhe servissem de lembrança. Flora escreveu-as, com a mão
trêmula e a vista turva; logo que acabou, viu que as palavras não combinavam,
as letras contundiam-se, depois iam morrendo, não todas, mas salteadamente, até
que o músculo as lançou de si. No valor e no ímpeto podia comparar o coração ao
gêmeo Paulo; o espírito, pela arte e subtileza, seria o gêmeo Paulo. Foi o que
ela achou no fim de algum tempo, e com isso explicou o inexplicável.
Apesar de tudo, não acabava de entender a situação, e
resolveu acabar com ela ou consigo. Todo esse dia foi inquieto e complicado.
Flora pensou em ir ao teatro para que os gêmeos não a achassem à noite. Iria
cedo, antes da hora da visita. A mãe mandou comprar o camarote, e o pai aprovou
a diversão, quando veio jantar, mas a filha acabou com dor de cabeça, e o
camarote ficou perdido.
—Vou mandá-lo aos jovens Santos, insinuou Batista.
D. Cláudia opôs-se e guardou o camarote. A razão era de
mãe; posto lhe tardasse a escolha e a casamento, ela queria vê-los ali consigo,
falando, rindo, debatendo que fosse, com os olhos pendentes da filha. Batista
não entendeu logo nem depois: mas para não desagradar à esposa, deixou de
obsequiar os rapazes. Uma ocasião tão boa! Não era muito para eles que possuíam
com que despender, e despendiam. o obséquio estava na lembrança e também na
cartinha que lhes escreveria, mandando o camarote. Chegou a redigi-la de
cabeça, apesar de já inútil. A mulher, ao vê-lo calado e sério, cuidou que
fosse zanga e quis fazer as pazes; o marido arredou-a brandamente com a mão.
Redigia a cartinha, punha no texto um gracejo sisudo, dobrava o papel e
lançava-lhe este sobrescrito gêmeo: “Aos jovens apóstolos Pedro e
Paulo”. O trabalho intelectual tornou mais dura a oposição de D. Cláudia.
Uma cartinha tão bonita!
CAPÍTULO XCIV – GESTOS OPOSTOS
Como pode um só teto cobrir tão diversos pensamentos? Assim
é também este céu claro ou brusco, — outro teto vastíssimo que os cobre com o
mesmo zelo da galinha aos seus pintos… Nem esqueça o próprio crânio do homem,
que os cobre igualmente, não só diversos, senão opostos.
Flora, no quarto, não cuidava então de bilhetes nem
camarotes; também não acudia à dor de cabeça, que não tinha. Se falou nela foi
por ser uma razão próxima e aceitável, breve ou longa, conforme a necessidade
da ocasião. Não suponhas que está rezando, embora tenha ali um oratório e um
crucifixo. Não viria pedir a Jesus que lhe livrasse a alma daquela inclinação
desencontrada. Posta à beira da cama, os olhos no chão, pensava naturalmente em
alguma cousa grave, se não era nada, que também agarra os olhos e o pensamento
de uma pessoa. Mordeu os beiços sem raiva; meteu a cabeça entre as mãos, como
se quisesse concertar os cabelos, mas os cabelos estavam e ficavam como dantes.
Quando se levantou era totalmente noite, e acendeu uma
vela. Não queria gás. Queria uma claridade branda que desse pouca vida ao
quarto e aos seus móveis, que deixasse algumas partes na meia escuridade. O
espelho, se fosse a ele, não lhe repetiria a beleza de todos os dias, com a
vela posta em cima de uma papeleira antiga, a distância. Mostrar-lhe-ia a nota
de palidez e de melancolia, é verdade, mas a nossa amiguinha não se sabia
pálida, nem se sentia melancólica. Tinha na tristeza desvairada daquela ocasião
uma pontinha de abatimento.
Como tudo isso se combinava, não sei, nem ela mesma. Ao
contrário, Flora parecia, às vezes, tomada de um espanto, outras de uma
inquietação vaga, e, se buscava o repouso de uma cadeira de balanço, era para o
deixar logo. Ouviu bater oito horas. Daí a pouco, entrariam provavelmente Pedro
e Paulo. Teve lembrança de ir dizer à mãe que a não mandasse chamar; estava de
cama. Esta ideia não durou o que me custa escrevê-la, e aliás já lá vai na
outra linha. Recuou a tempo.
— É um despropósito, disse consigo; basta não aparecer.
Mamãe dirá que estou adoentada, tanto que perdemos o teatro, e, se vier aqui,
digo-lhe que não posso aparecer…
As últimas palavras saíram-lhe de viva voz, para maior
firmeza da resolução. Projetou reclinar-se já na cama; depois achou melhor
fazê-lo quando ouvisse o passo da mãe no corredor. Todas essas alternativas
podiam vir de si mesmas, entretanto, não é impossível que fosse também um modo
de sacudir quaisquer lembranças aborrecíveis. A moça temia ir atrás delas.
CAPÍTULO XCV – O TERCEIRO
Temendo ir atrás delas, que havia de fazer Flora? Abriu uma
das janelas do quarto, que dava para a rua, encostou-se à grade e enfiou os
olhos para baixo e para cima. Viu a noite sem estrelas, pouca gente que
passava, calada ou conversando, algumas salas abertas, com luzes, uma com
piano. Não viu certa figura de homem na calçada oposta, parada, olhando para a
casa de Batista. Nem a viu, nem lhe importaria saber quem fosse. A figura é que
tão depressa a viu como estremeceu e não despegou mais os olhos dela, nem os
pés do chão.
Lembras-te daquela veranista de Petrópolis que atribuiu um
terceiro namorado à nossa amiguinha? “Um dos três”, disse ela. Pois
aqui está o terceiro namorado, e pode ser que ainda apareça outro. Este mundo é
dos namorados. Tudo se pode dispensar nele; dia virá em que se dispensem até os
governos, a anarquia se organizará de si mesma, como nos primeiros dias do
paraíso. Quanto à comida, virá de Boston ou de Nova Iorque um processo para que
a gente se nutra com a simples respiração do ar. Os namorados é que serão
perpétuos.
Aquele era oficial de secretaria. Geralmente os empregados
de secretaria casam cedo. Gouveia era solteiro, andava às moças. Um domingo, à
missa, reparou na filha do ex-presidente, e saiu da igreja tão apaixonado que
não quis outra promoção. Tinha gostado de muitas, acompanhou algumas, esta foi
a primeira que o feriu deveras. Pensava nela dia e noite. A Rua de S. Clemente
era o caminho que o levava e trazia da repartição. Se a via, olhava muito para
ela, detinha-se a distância, à porta de uma casa, ou então fingia acompanhar
com os olhos um carro que passava, e tirava-os do carro para a moça.
Quando amanuense; fizera versos; nomeado oficial, perdeu o
costume, mas um dos efeitos da paixão foi restituir-lhe. Consigo, em casa da
mãe, gastava papel e tinta a metrificar as esperanças. Os versos escorriam da
pena, a rima com eles, e as estrofes vinham seguindo direitas e alinhadas, como
companhias de batalhão — o título seria o coronel, a epígrafe a música, uma vez
que regulava a marcha dos pensamentos. Bastaria essa força à conquista? Gouveia
imprimiu alguns em jornais, com esta dedicatória: A alguém. Nem assim a praça
se rendia.
Uma vez deu-lhe na cabeça mandar uma declaração de amor.
Paixão concebe despropósitos. Escreveu duas cartas, sem o mesmo estilo antes
contrário. A primeira era de poeta — dava-lhe tu, como nos versos, adjetivava
muito, chamava-lhe deusa por alusão ao nome de Flora, e citava Musset e
Casimiro de Abreu. A segunda carta foi um desforço do oficial sobre o
amanuense. Saiu-lhe ao estilo das informações e dos ofícios, grave, respeitoso,
com Excelências. Comparando as duas cartas, não acabou de escolher nenhuma. Não
foi só o texto diverso e contrário, foi principalmente a falta de autorização
que o levou a rasgar as cartas. Flora não o conhecia; quando menos, fugia de o
conhecer. Os olhos dela, se encontravam os dele, retiravam-se logo
indiferentes. Uma só vez cuidou que traziam a intenção de perdoar. Que esse
breve raio de luz lhe desabotoasse as flores da esperança (começo a falar com a
primeira carta) era possível e até certo; tão certo que lhe fez perder o ponto
na repartição. Felizmente, era ótimo empregado; o diretor ampliou o quarto de
hora de tolerância, e atendeu à dor de cabeça, causa de triste insônia.
—Dormi sobre a madrugada, acabou o oficial.
—Assine.
Senão quando, morre-lhe o padrinho ao Gouveia, e em
testamento deixou ao afilhado três contos de réis. Qualquer acharia nisso um
benefício, Gouveia achou dois — o legado e a ocasião de travar relações com o
pai de Flora. Correu a pedir-lhe que aceitasse a procuração de legatário,
ajustando logo os honorários e as despesas. Com pouco, foi procurá-lo à casa, e
para que o advogado desse a notícia do constituinte à família, empregou muitos
ditos subtis e graciosos, contou anedotas do padrinho, expôs conceitos
filosóficos e um programa de marido. Descreveu também a situação
administrativa, a promoção iminente, os louvores recebidos, comissões e
gratificações, tudo o — que o distinguia de outros companheiros. De resto,
ninguém na repartição lhe queria mal. Aqueles mesmos que se creram
prejudicados, acabavam confessando que era justa a preferência dada ao Gouveia.
Não seria tudo exato; ele o cria assim, ao menos, e, se não cria tudo, não
desmentiu nada. Perdeu tempo e trabalho. Flora não soube da conversação.
Nem soube da conversação, nem deu agora pelo vulto, como lá
disse. Também disse que a noite era escura. Acrescento que começou a pingar
fino e a ventar fresco. Gouveia trazia guarda-chuva e ia a abri-lo, mas recuou.
O que se passou na alma dele foi uma luta igual à dos dois textos da carta. O
oficial queria abrigar-se da chuva, o amanuense queria apanhá-la, isto é, o
poeta renascia contra as intempéries, sem medo ao mal, prestes a morrer por sua
dama, como nos tempos da cavalaria. Guarda-chuva era ridículo; poupar-se à
constipação desmentia a adoração. Tal foi a luta e o desfecho; venceu o
amanuense, enquanto a chuva ia pingando grosso, e outra gente passava abrigada
e depressa. Flora entrou e fechou a janela. O amanuense esperou ainda algum
tempo, até que o oficial abriu o guarda-chuva e fez como os outros. Em casa
achou a triste consolação da mãe.
CAPÍTULO XCVI – RETRAIMENTO
Aquela noite acabou sem incidente. Os gêmeos vieram, Flora
não apareceu, e no dia seguinte duas cartinhas perguntavam a D. Cláudia como
passara a filha. A mãe respondeu que bem. Nem por isso Flora os recebeu com a
alegria do costume. Tinha alguma cousa que a fazia falar pouco. Pediram-lhe
música, tocou; foi bom, porque era um meio de se meter consigo. Não respondeu
aos apertos de mão Como eles supunham que fazia até há pouco. Assim foi essa
noite, assim foram as outras. Ora um, ora outro chegava primeiro, imaginando
que a presença do rival é que tolhia a moça; mas a precedência não valia nada.
CAPÍTULO XCVII – UM CRISTO PARTICULAR
Tudo isso lhe custava tanto, que ela acabou pedindo ao seu
Cristo um lugar de governador para o pai, — ou qualquer comissão fora daqui.
Jesus Cristo não distribui os governos deste mundo. O povo é que os entrega a
quem merece, por meio de cédulas fechadas, metidas dentro de uma urna de
madeira, contadas, abertas, lidas, somadas e multiplicadas.
A comissão podia vir, isso sim; a questão era saber se
Jesus Cristo acudirá a todos os que lhe pedem a mesma cousa. Os comissários
seriam infinitamente mais que as comissões. Esta objeção foi logo expelida do
espírito de Flora, porque ela pedia ao seu Cristo, um de marfim velho, deixa da
avó, um Cristo que nunca lhe negou nada, e a quem as outras pessoas não vinham
importunar com súplicas. A própria mãe tinha o seu particular, confidente de
ambições, consolo de desenganos; não recorria ao da filha.
Tal era a fé ingênua da moça.
Certamente, já lhe havia pedido que a livrasse daquela
complicação de sentimentos, que não acabavam de ceder um ao outro, daquela
hesitação cansativa, daquele empuxar para ambos os lados. Não foi ouvida. A
causa seria talvez por não haver dado ao pedido a forma clara que aqui lhe
ponho, com escândalo do leitor. Efetivamente, não era fácil pedir assim por
palavras seguidas, faladas ou só pensadas; Flora não formulou a súplica.
Pôs os olhos na imagem e esqueceu-se de si, para que a
imagem lesse dentro dela o seu desejo. Era demais; requerer o favor do céu e
obrigá-lo a adivinhar o que era… Assim cuidou Flora, e resolveu emendar a
mão. Não chegou lá; não ousou dizer a Jesus o que não dizia a si mesma. Pensava
nos dois, sem confessar a nenhum. Sentia a contradição, sem ousar encará-la por
muito tempo.
CAPÍTULO XCVIII – O MÉDICO AIRES
Um dia pareceu à mãe que a filha andava nervosa.
Interrogou-a e apenas descobriu que Flora padecia de vertigens e esquecimentos.
Foi justamente um dia em que Aires lá apareceu de visita, com recados de
Natividade. A mãe falou-lhe primeiro e confiou-lhe os seus sustos. Pediu-lhe
que a interrogasse também. Aires fez de médico, e, quando a moça apareceu e a
mãe os deixou na sala, cuidou de a interrogar cautelosamente.
Vão propósito, porque ela mesma iniciou a conversação,
queixando-se de dor de cabeça. Aires observou que dor de cabeça era moléstia de
moça bonita, e, tendo confessado que este dito era banal, descobriu-lhe o
motivo. Não queria perder a ocasião de lhe dizer o que toda a gente sabia e
dizia, não só aqui, como em Petrópolis.
—Por que não vai a Petrópolis? concluiu.
— Espero fazer outra viagem mais longa. muito longa…
— Para o outro mundo, aposto?
— Acertou.
— Já tem bilhete de passagem?
— Comprarei no dia do embarque.
— Talvez não ache. Há grande concorrência para aquelas
paragens; melhor é comprar antes, e, se quer, eu me encarrego disso; comprarei
outro para mim, e iremos juntos. A travessia, quando não há conhecidos, deve
ser fastidiosa; às vezes, os próprios conhecidos aborrecem, como sucede neste
mundo. As saudades da vida é que são agradáveis. A gente de bordo é vulgar, mas
o comandante impõe confiança. Não abre a boca, dá as suas ordens por gestos, e
não consta que haja naufragado.
— O senhor está caçoando comigo; eu creio até que estou com
febre.
— Deixe ver.
Flora estendeu-lhe o pulso; ele, com ar profundo:
— Está; febre de quarenta e sete graus, a mão está ardendo,
mas isto mesmo prova que não é nada, porque aquelas viagens fazem-se com as
mãos frias. Há de ser constipação, fale a sua mãe.
— Mamãe não cura.
— Pode curar, há remédios caseiros, em todo caso, peça-lhe,
e ela pode mandar chamar um médico.
— Médico dá tisanas, e eu não gosto de tisanas.
— Nem eu, mas tolero-as. Por que não experimenta a
homeopatia, que não tem gosto, como a alopatia?
— Qual é a que lhe parece melhor?
—A melhor? Só Deus é grande.
Flora sorriu, de um sorriso pálido, e o conselheiro
percebeu algo que não era tristeza de passagem ou de criança. Novamente lhe
falou de Petrópolis, mas não insistiu. Petrópolis era a agravação do momento
atual.
—Petrópolis tem o mal das chuvas, continuou. Eu, se fosse a
senhora, saía desta casa e desta rua; vá para outro bairro, casa amiga, com sua
mãe ou sem ela…
—Para onde? perguntou Flora ansiosa.
E ficou a olhar, esperando. Não tinha casa amiga, ou não se
lembrava, e queria que ele mesmo escolhesse alguma, onde quer que fosse, e
quanto mais longe, melhor. Foi o que ele leu nos olhos parados. É ler muito,
mas os bons diplomatas guardam o talento de saber tudo o que lhes diz um rosto
calado, e até o contrário. Aires fora diplomata excelente, apesar da aventura
de Caracas, se não é que essa mesma lhe aguçou a vocação de descobrir e
encobrir. Toda a diplomacia estar nestes dois verbos parentes.
CAPÍTULO XCIX – A TÍTULO DE ARES NOVOS
—Vou arranjar-lhe uma casa boa, disse ele, à despedida.
Desde que estava em Petrópolis, Aires não ia jantar a
Andaraí, com a irmã, às quintas-feiras, segundo ajustara e consta do capítulo
XXXII. Agora foi lá, e cinco dias depois Flora transferia-se para a casa dela,
a título de ares novos. D. Rita não consentiu que D. Cláudia lhe levasse a
filha, ela mesma a foi buscar a S. Clemente, e Aires acompanhou as três.
A mocidade de Flora na casa de D. Rita foi como uma rosa
nascida ao pé do paredão velho. O paredão remoçou. A simples flor, ainda que
pálida, alegrou o barro gretado e as pedras despidas. D. Rita vivia encantada;
Flora pagava o agasalho da dona da casa com tanta ingenuidade e graça, que esta
acabou por lhe dizer que a roubaria à mãe e ao pai, e foi ainda ocasião de riso
para as duas.
Você me deu um lindo presente com esta moça, escrevia D.
Rita ao irmão; foi uma alma nova, e veio em boa ocasião, porque a minha anda já
caduca. É muito docilzinha, conversa, toca e desenha que faz gosto, tem aqui
tirado riscos de várias cousas, e eu saio com ela para lhe mostrar vistas
apreciáveis. As vezes, apresenta uma cara triste, olha vagamente, e suspira;
mas eu pergunto-lhe se são saudades de S. Clemente, ela sorri e faz um gesto de
indiferença. Não lhe falo dos nervos, para a afligir, mas creio que vai
melhor…
Flora também escreveu ao Conselheiro Aires, e as duas
cartas chegaram à mesma hora a Petrópolis. A de Flora era um agradecimento
grande e cordial, mal entremeado de alguma palavra saudosa; confirmava assim a
carta da outra, posto não a houvesse lido. Aires comparou-as, lendo duas vezes
a da moça para ver se ela escondia mais do que transparecia do papel. Em suma,
confiava no remédio.
“Não os vendo, esquece-os”, pensou ele; “e
na vizinhança houver alguém que pensa em gostar dela, é possível que acabe
casando”.
Respondeu a ambas, na mesma noite, dizendo-lhes que na
quinta-feira iria almoçar com elas. A D. Cláudia escreveu mandando-lhe a carta
da irmã, e foi passar a noite em casa de Natividade, a quem deu a ler as cinco
cartas. Natividade aprovou tudo. Notava só que os filhos não lhe escreviam, e
deviam estar desesperados.
—A Santa Casa cura, e a Biblioteca Nacional também,
retorquiu Aires.
Na quinta-feira, Aires desceu e foi almoçar a Andaraí.
Achou-as como as tinha lido nas cartas. Interrogou-as separadamente para ouvir
por boca as confissões do papel; eram as mesmas. D. Rita parecia ainda mais
encantada. Talvez a causa recente fosse a confidência que fez a moça, na
véspera. Como falassem de cabelos, D. Rita referiu o que também consta do cap.
XXXII, isto é, que cortara os seus para os meter no caixão do marido, quando o
levaram a enterrar. Flora não a deixou acabar; pegou-lhe das mãos e apertou-as
muito.
—Nenhuma outra viúva faria isto, disse ela.
Aqui foi D. Rita que lhe pegou nas mãos, pô-las sobre os
seus ombros, e concluiu o gesto por um abraço. Todas as pessoas louvaram-lhe a
abnegação do ato; esta era a primeira que a achou única. E daí outro abraço
longo, mais longo…
CAPÍTULO C – DUAS CABEÇAS
Tão longo foi o abraço que tomou o resto ao capítulo. Este
começa sem ele nem outro. O mesmo aperto de mão de Aires e Flora, se foi
demorado, também acabou. O almoço fez gastar algum tempo mais que de costume,
porque Aires, além de conversador emérito, não se fartava de ouvir as duas,
principalmente a moça. Achava-lhe um toque de languidez, abatimento ou cousa
próxima, que não encontro no meu vocabulário.
Flora mostrou-lhe os desenhos que fizera, paisagens,
figuras, um pedaço da estrada da Tijuca, um chafariz antigo, um Princípio de
casa. Era uma dessas casas, que alguém começou muitos anos antes, e ninguém
acabou, ficando só duas ou três paredes, ruína sem história. Havia ainda outros
desenhos, uma revoada de pássaros, um vaso à janela. Aires ia folheando, cheio
de curiosidade e paciência — a intenção da obra supria a perfeição, e a
fidelidade devia ser aproximada. Enfim, a moça atou os cordões à pasta. Aires,
parecendo-lhe que ficara um desenho último e escondido, pediu que lho
mostrasse.
—É um esboço, não vale a pena.
—Tudo vale a pena; quero acompanhar as tentativas da artista;
deixe ver.
—Não vale a
pena…
Aires insistiu; ela não pôde recusar mais tempo, abriu a
pasta, e tirou um pedaço de papel grosso em que estavam desenhadas duas cabeças
juntas e iguais. Não teriam a perfeição desejada por ela; não obstante,
dispensavam os nomes. Aires considerou a obra, durante alguns minutos, e duas
ou três vezes levantou os olhos para a autora. Flora já os esperava,
interrogativa; queria ouvir o louvor ou a crítica, mas não ouviu nada. Aires
acabou de observar as duas cabeças, e pousou o desenho entre os papéis.
—Não lhe dizia que era um esboço? perguntou Flora, a ver se
lhe arrancava uma palavra.
Mas o ex-ministro preferiu não dizer nada. Em vez de achar
quase extinta a influência dos gêmeos, vinha dar com ela feita consolação da ausência,
tão viva que bastava a memória, sem presença dos modelos. As duas cabeças
estavam ligadas por um veículo escondido. Flora, vendo continuar o silêncio de
Aires, compreendeu acaso parte do que lhe passava no espírito. Com um gesto
pronto, pegou do desenho e deu-lhe. Não lhe disse nada, menos ainda escreveu
qualquer palavra. Qualquer .que fosse, seria indiscreta.
Demais, era o único desenho a que ela não pôs assinatura.
Deu-lhe como se fora um penhor de arrependimento. Em seguida, atou novamente as
fitas da pasta, enquanto Aires rasgava calado o desenho e metia os pedaços no
bolso. Flora ficou por um instante parada, boca entreaberta mas logo lhe
apertou a mão, agradecida. Não pôde evitar que lhe caíssem duas pequenas
lágrimas, — como outras tantas fitas que lhe atavam para sempre a pasta do
passado.
A imagem não é boa, nem verdadeira; foi a que acudiu ao
conselheiro, andando, ao voltar de Andaraí. Chegou a escrevê-la no Memorial,
depois riscou-a, e escreveu uma reflexão menos definitiva: “Talvez seja uma
lágrima para cada gêmeo”.
“Pode acabar com o tempo, pensou ele indo para a barca
de Petrópolis. Não importa; é um caso embrulhado.”
CAPÍTULO CI – O CASO EMBRULHADO
Também os gêmeos achavam o caso embrulhado. Quando iam a S.
Clemente, tinham notícias da moça, sem que lhes dessem certeza do regresso. O
tempo andava; não tardaria que consultassem a sorte, como dois antigos.
A giro, não contavam as semanas de interrupção, uma vez que
a escolha se não dava, e eles podiam trazer da consulta o contrário da inclinação
definitiva da moça. Reflexão justa, posto que interessada. Cada um deles não
queria mais que prolongar a batalha, esperando vencê-la. Entretanto, não
confiavam um do outro este pensamento gêmeo, como eles. Ambos se iam sentindo
exclusivos, a afeição tinha agora o seu pudor e necessidade de calar. Já não
falavam de Flora.
Nem só de Flora. Crescendo a oposição, recorriam ao
silêncio. Evitavam-se; se podiam, não comiam juntos; se comiam juntos, diziam
pouco ou nada. As vezes, falavam para tirar aos criados qualquer suspeita, mas
não advertiam que falavam mal e forçadamente, e que os criados iam comentar as
palavras e a expressão deles na copa. A satisfação com que estes comunicavam os
seus achados e conclusões é das pousas que adoçam o serviço doméstico,
geralmente rude. Não chegavam, porém, ao ponto de concluir tudo o que os ia
tornando cada vez mais avessos, a ponta de ódio que crescia com a ausência da
mãe. Era mais que Flora, como sabeis; eram as próprias pessoas inconciliáveis.
Um dia houve na copa e na cozinha grande novidade. Pedro, a pretexto de sentir
mais calor que Paulo, mudou de quarto e foi dormir mal em outro não menos
quente que o primeiro.
CAPÍTULO CII – VISÃO PEDE MEIA SOMBRA
Entretanto, a bela moça não os tirava da mesma alcova sua,
por mais que buscasse deveras fugir-lhes. A memória os trazia pela mão, eles
entravam e ficavam. Iam depois embora, ou de si mesmos, ou empurrados por ela.
Quando tornavam, era de surpresa. Um dia. Flora aproveitou a presença para
fazer um desenho igual ao que dera ao conselheiro, mais perfeito agora, muito
mais acabado.
Também cansava. Então saía do quarto e ia para o piano.
Eles iam com ela, sentavam-se aos lados ou ficavam defronte, em pé, e ouviam
com atenção religiosa, ora um noturno, ora uma tarantela. Flora tocava ao sabor
de ambos, sem deliberação; os dedos é que obedeciam à mecânica da alma. Para os
não ver, inclinava a cabeça sobre o teclado; mas o campo da visão os guardava,
se não era a respiração que se fazia sentir defronte ou dos lados. Tal era a
sutileza dos seus sentidos.
Se fechava o piano e descia ao jardim, sucedia muita vez
que os ia achar ali, passeando, e a cumprimentavam com tão boa sombra, que ela
esquecia por instantes a impaciência. Depois, sem que os mandasse, iam embora.
Nos primeiros tempos, Flora tinha medo que a houvessem abandonado de todo, e
chamava-os dentro de si. Ambos tornavam logo, tão dóceis, que ela acabou de se
convencer que a fuga não era fuga, nem eles sentiam desespero, e não os evocou
mais. No jardim era mais rápido o desaparecimento, talvez pela extrema
claridade do lugar. Visão pede meia sombra.
CAPÍTULO CIII – O QUARTO
Sei, sei, três vezes sei que há muitas visões dessas nas
páginas que lá ficam. Ulisses confessa a Alcinoos que lhe é enfadonho contar as
mesmas cousas. Também a mim. Sou, porém, obrigado a elas, porque sem elas a
nossa Flora seria menos Flora, seria outra pessoa que não conheci. Conheci
esta, com as suas obsessões ou como quer que lhes chames.
Nem por isso, nem ainda porque houvesse colhido algum
abatimento e nervos, deixava Flora de enfeitar muito, de se fazer mais linda, e
ter mais de um namorado incógnito, que suspirava por ela. Não faltava quem a
admirasse de passagem, e fosse vê-la, quando menos, no banco verde, à porta do
jardim, ao pé da irmã de Aires. Pode ser que conhecesse algum, Gouveia, por
exemplo; em verdade, era como se os não visse.
Um deles valia mais que todos pela carruagem, — tirada por
uma bela parelha de cavalos, — capitalista do bairro. A casa dele era um
palacete, os móveis feitos na Europa, estilo império, aparelhos de Sèvres e de
prata, tapetes de Esmirna, e uma vasta câmara com dois leitos, um de solteiro,
outro de casados. O segundo esperava a esposa.
“A esposa há de ser esta”, pensou ele um dia. ao
ver Flora.
Era maduro; trazia o rosto batido dos ventos da vida, a
despeito das muitas águas de toucador; ao corpo faltava aprumo, e as maneiras
não tinham graça nem naturalidade. Era o Nóbrega, aquele da nota de dois
mil-réis, nota fecunda, que deitou de si muitas outras mais de dois mil contos
de réis. Para as notas recentes, a avó perdia-se na noite dos tempos. Agora os
tempos eram claros, a manhã doce e pura.
Quando viu a moça, e fez a reflexão que lá fica,
estranhou-se a si próprio. Vira outras damas, e mais de uma com escritos nos
olhos, dizendo-lhe o vazio do coração. Esta era a primeira que veramente lhe
prendeu a vontade e lhe deteve o pensamento. Tornou a vê-la; a gente vizinha
notou porventura a frequência recente do capitalista. Enfim, Nóbrega acabou por
se fazer entrado na casa de D. Rita, com desgosto dos seus habitantes, que
assim se viam esquecidos do anfitrião. Nóbrega, entretanto, dera ordens
bastantes para que fossem todos servidos e agasalhados, como se ele estivesse
presente.
A ausência não lhe faria perder as loas dos amigos. Ao
contrário os servos podiam dar testemunho do que todos eles pensavam do
“grande homem”. Tal era o nome que lhe aplicara o secretário
particular, e pegou. Nóbrega sabia pouca ortografia, nenhuma sintaxe, lições
úteis, decerto, mas que não valiam a moral, e a moral, diziam todos,
acompanhando o secretário, era o seu principal e maior mérito. O fiel escriba
acrescentava que, sendo preciso despir a camisa e dá-la a um mendigo, Nóbrega o
faria, ainda que a camisa fosse bordada.
Agora mesmo, este amor era, ao cabo, um movimento de
caridade. Em pouco tempo, aquele gosto de relance passou a grande paixão, tão
grande que ele não a pôde conter, e resolveu confessá-la. Hesitou-se o faria à
própria moça ou à dona da casa. Não tinha ânimo para uma nem outra. Uma carta
supria tudo, mas a carta pedia língua, calor e respeito. Se, ao menos, o gesto
de Flora lhe dissesse alguma cousa, ainda que pouca, vá, a carta seria então
uma resposta. Mas não lhe dizia nada o gesto da moça. Era só cortês e gracioso;
não ia além dessas duas expressões.
D. Rita percebeu a inclinação de Nóbrega e achou que era a
melhor solução da vida para a hóspede. Todas as incertezas, angústias e
melancolias vinham acabar nos braços de um ricaço, estimado, respeitado, dentro
de um palacete com uma carruagem às ordens… Ela mesma punha em relevo este
prêmio grande da loteria de Espanha.
Enfim, o secretário de Nóbrega redigiu com a melhor
linguagem que possuía uma carta em que o capitalista pedia a D. Rita o favor de
consultar a moça amada.
—Não escreva palavrinhas doces, recomendou ele ao
secretário. Gosto dessa moça com um sentimento de proteção, antes que outra
cousa. Não é carta de namorado. Estilo grave…
—Uma carta seca, concluiu o secretário.
—Totalmente seca, não, emendou Nóbrega, uma carta
lisonjeira, sem esquecer que não sou criança.
Assim se cumpriu. Ia a cumprir-se demais; Nóbrega achou que
o estilo podia ser um tanto ameno; não fazia mal pôr duas ou três palavras
apropriadas ao objeto, beleza, coração, sentimento… Assim se cumpriu
finalmente, e a carta foi levada ao seu destino. D. Rita ficou contentíssima.
Justamente o que ela queria. Tinha o plano feito de concluir, por ato seu, uma
história melancólica, a que daria, por derradeira página, conclusão
deslumbrante. Não pensou em dizê-lo primeiro ao irmão, pela razão de querer que
ele recebesse a notícia completa, tudo feito e acabado. Releu a carta;
dispôs-se a ir logo, mas há pessoas para quem o adágio que diz que “o
melhor da festa é esperar por ela”, resume todo o prazer da vida. D. Rita
tinha essa opinião. Todavia, entendeu que tais cartas não são das que se
guardam largo tempo, nem aliás das que se comunicam sem cautela. Esperou vinte
e quatro horas. Na manhã seguinte, depois de almoçadas, leu a carta à moça. O
natural é que Flora ficasse espantada. Ficou, mas não tardou que risse, de um
riso franco e sonoro, como ainda não rira em Andaraí. D. Rita ficou
espantadíssima. Supunha que, não a pessoa, mas as vantagens e circunstâncias
pleiteassem a favor do candidato. Esquecia os seus cabelos entregues à
sepultura do marido. Deu conselhos à moça, pôs em relevo a posição do
pretendente, o presente e o futuro, a situação esplêndida que lhe dava este
casamento, e por fim as qualidades morais de Nóbrega. A moça escutou calada, e
acabou rindo outra vez.
—A senhora sabe se serei feliz? perguntou.
— Creio que sim; agora, o futuro é que confirmará ou não.
— Esperemos que o futuro chegue, conquanto me pareça muito
demorado. Não nego as qualidades daquele homem, parece bom, e trata-me bem, mas
eu não quero casar, D. Rita.
— Realmente, a idade… Mas nem, ao menos, quer pensar
alguns dias?
— Está pensado.
D. Rita ainda esperou um dia. A resposta negativa, dado que
Flora viesse a mudar de opinião, podia ser uma desgraça para esta. Uso os próprios
termos dela, consigo, grande desgraça, posição esplêndida, sentimento profundo.
D. Rita ia aos extremos, diante daquele rico-homem dos últimos anos do século.
CAPÍTULO CIV – A RESPOSTA
Não querendo dar a resposta nua e crua. D. Rita consultou a
moça, que lhe respondeu simplesmente:
—Diga que não pretendo casar.
Quando Nóbrega recebeu as poucas linhas que D. Rita lhe
mandou, ficou assombrado. Não contava com recusas. Ao contrário, era tão certa
a aceitação que ele tinha já um programa do noivado. Imaginava a moça, os olhos
tímidos, a boca cerrada, o céu que lhe cobriria a linda carinha, a delicadeza
dele, as palavras que lhe diria entrando em casa. Tinha já composto uma
invocação à Mãe Santíssima, para que os fizesse felizes. “Dou-lhe carro, dizia
consigo, joias, muitas joias, as melhores joias do mundo…” Nóbrega não
fazia ideia exata do mundo; era expressão. “Hei de dar-lhe tudo,
sapatinhos de seda, meias de seda, que eu mesmo lhe calçarei…”
Estremecia de cor, ao calçar-lhe as meias. Beijava-lhe os pés e os joelhos.
Tinha imaginado que ela, ao ler a carta, devia ficar tão
pasmada e agradecida, que nos primeiros instantes não pudera responder a D.
Rita; mas logo depois as palavras sairiam do coração às golfadas. “Sim,
senhora, queria, aceitava; não pensara em outra cousa.” Escreveria logo ao
pai e à mãe para lhes pedir licença; eles viriam correndo, incrédulos, mas,
vendo a carta, ouvindo a filha e D. Rita, não duvidariam da verdade, e dariam o
consentimento.
Talvez o pai lhe
fosse dar em pessoa. E nada, nada, nada, absolutamente nada, uma simples
recusa, uma recusa atrevida, por que enfim quem era ela, apesar da beleza? uma
criatura sem vintém, modestamente vestida, sem brincos, nunca lhe vira brincos
às orelhas, duas perolazinhas que fossem.
E por que é que lhe furaram as orelhas, se não tinham
brincos que lhe dar? Considerou que às mais pobres meninas do mundo furam as
orelhas para os brincos que lhes possam cair do céu. E vem esta, e recusa os
mais ricos brincos que o céu ia chover sobre ela…
Ao jantar, os amigos da casa notaram que ele estava
preocupado. De noite, ele e o secretário saíram a pé. Nóbrega buscou em si o
gesto mais frio e indiferente que pôde, quase alegre, e anunciou ao secretário
que Flora não queria casar. Não se descreve a admiração do secretário, em
seguida a consternação, finalmente a indignação. Nóbrega respondia magnânimo:
— Não foi por mal; foi talvez por se julgar abaixo, muito
abaixo da fortuna. Creia que é boa moça. Pode ser também, quem sabe? por ter
sido um mau conselho do coração. Aquela moça é doente.
— Doente?
— Não afirmo; digo que pode ser.
O secretário afirmou.
— Só a doença, disse ele, explicará a ingratidão, porque o
ato é de pura ingratidão.
Aqui tornou a nota da indignação, nota sincera, como as
outras. Nóbrega gostou de ouvi-la; era um compadecimento. No fim, cumpriu a
ideia que trazia ao sair de casa; aumentou-lhe o ordenado. Podia ser a paga da
simpatia; o beneficiado foi mais longe, achou que era o preço do silêncio, e
ninguém soube de nada.
CAPÍTULO CV – A REALIDADE
A moléstia, dada por explicação à recusa do casamento,
passou à realidade daí a dias. Flora adoeceu levemente; D. Rita, para não
alarmar os pais, cuidou de a tratar com remédios caseiros; depois mandou chamar
um médico, o seu médico, e a cara que este fez não foi boa, antes má. D. Rita,
que costumava ler a gravidade das suas moléstias no rosto dele, e sempre as
achava gravíssimas, cuidou de avisar os pais da moça. Os pais vieram logo.
Natividade também desceu de Petrópolis, não de vez; em cima, tinham medo de
algum movimento cá embaixo. Veio a visitar a moça, e, a pedido desta ficou
alguns dias. — Só a senhora pode me curar, disse Flora; não creio nos remédios
que me dão. As suas palavras é que são boas. e os seus carinhos… Mamãe também,
e D. Rita, mas não sei, há uma diferença, uma cousa… Veja; parece-me que até
já rio.
—Já, já; ria mais.
Flora sorriu, ainda que daquele sorriso descorado que
aparece na boca do enfermo, quando a moléstia consente, ou ele força a
seriedade própria da dor. Natividade dizia-lhe palavras de animação; fê-la
prometer que iria convalescer em Petrópolis. A enfermidade começou a ceder. D.
Cláudia aceitou a oferta de D. Rita, e lá ficou aposentada. Natividade ia à
noite para Botafogo e voltava de manhã Aires descia de Petrópolis um dia sim,
um dia não.
Também os gêmeos lá iam saber da enferma. Agora mais que
dantes, sentiam a fortaleza do vínculo que os prendia à moça. Pedro, já médico,
ainda que sem prática, punha mais autoridade nas perguntas, concluía melhor dos
sintomas, mas as esperanças e os receios eram de ambos. Algumas vezes, falavam
mais alto que de costume e de conveniência. A razão, por egoísta que fosse, era
perdoável. Supõe que os cartões de visita falassem; alguns, mais sôfregos,
proclamariam os seus nomes, para que soubessem logo da presença, da cortesia e
da ansiedade. Tal cuidado da parte dos dois era inútil, porque ela sabia deles
e recebia as lembranças que lhe deixavam.
Flora ia assim passando os dias. Queria Natividade sempre
ao pé de si, pela razão que já deu, e por outra que não disse, nem porventura
soube, mas podemos suspeitá-la e imprimir. Estava ali o ventre abençoado que
gerara os dois gêmeos. De instinto, achava nela algo particular. Quanto ao
influxo que exercia nela, por essa ou qualquer outra causa, não a sabia
Natividade; contentava-se em ver que, ainda agora, e em tal crise, Flora não
perdeu a amizade que lhe tinha. Passavam as horas juntas, falando, se não fazia
mal falar, ou então uma com as mãos da outra entre as suas. Quando Flora adormecia,
Natividade ficava a contemplá-la, com o rosto pálido, os olhos fundos, as mãos
quentes, mas sem perder a graça dos dias da saúde. As outras entravam no
quarto, pé ante pé, esticavam os pescoços para vê-la dormir, falavam por gestos
ou tão baixo que só o coração as adivinharia.
Quando pareceu melhorar, Flora pediu um pouco mais de luz e
de céu. Uma das duas janelas foi então escancarada, e a enferma encheu-se de
vida e riso. Não é que a Febre se fosse de todo. Essa bruxa lívida estava ao
canto do quarto, com os olhos espetados nela mas, ou de cansada, ou por
obrigação imposta, cochilava a miúdo, e longamente. Então a enferma sentia só o
calor do Mal, que o médico graduava em trinta e nove ou trinta e nove e meio,
depois de consultar o termômetro. A Febre, ao ver esse gesto, ria sem
escândalo, ria para si.
CAPÍTULO CVI – AMBOS QUAIS?
Ficamos no ponto em que uma das janelas do quarto aumentou
a dose de luz e de céu que Flora pediu, sem embargo da febre, aliás pouca. O
mais que se passou valia a pena de um livro. Não foi logo, logo, gastou longas
horas e alguns dias. Houve tempo bastante para que entre a vida e Flora se
fizesse a reconciliação ou a despedida. Uma e outra podiam ser extensas; também
podiam ser curtas. Conheci um homem que adoeceu velho, se não de velho, e
despendeu no rompimento final um tempo quase infinito. Já pedia a morte, mas
quando via o rosto descarnado da derradeira amiga espiar da porta entreaberta,
voltava o seu para outro lado e engrolava uma cantiga da infância, para enganá-la
e viver.
Flora não recorria a tais cantigas, aliás tão próximas.
Quando via o céu e um pedaço de sol no muro, deleitava-se naturalmente, e uma
vez quis desenhar, mas não lhe consentiram. Se a morte a espiava da porta,
tinha um calefrio, é verdade, e fechava os olhos. Ao abri-los fitava a triste
figura, sem lhe fugir nem chamar por ela.
— Você amanhã está pronta, e de hoje a oito dias, ou antes,
vamos para Petrópolis, disse Natividade disfarçando as lágrimas, mas a voz
fazia o ofício dos olhos.
— Petrópolis? suspirou a doente.
— Lá terá muito que desenhar.
Eram sete horas da manhã. Na véspera, quando os gêmeos
saíram de lá, já tarde, os receios da morte cresciam; mas não bastam receios, é
preciso que a realidade venha atrás deles; daí as esperanças. Também não bastam
esperanças, a realidade é sempre urgente. A madrugada trouxe algum sossego; às
sete horas, depois daquelas palavras de Natividade, Flora pôde dormir.
Quando Pedro e Paulo voltaram a Andaraí, a enferma estava
acordada, e o médico, sem dar grandes esperanças, mandou fazer aplicações, que
declarou enérgicas. Todos tinham sinais de lágrimas. De noite, Aires apareceu
trazendo notícias de agitação na cidade.
—Que é?
—Não sei, uns falam de manifestações ao Marechal Deodoro,
outros de conspiração contra o Marechal Floriano. Há alguma cousa.
Natividade pediu aos filhos que se não metessem em
barulhos; ambos prometeram e cumpriram. Ao ver o aspecto de algumas ruas,
grupos, patrulhas, armas, duas metralhadoras, Itamarati iluminado, tiveram a
curiosidade de saber o que houve e havia; vaga sugestão, que não durou dois
minutos. Correram a meter-se em casa, e a dormir mal a noite. Na manhã seguinte
os criados levaram os jornais com as notícias da véspera.
—Veio algum recado de Andaraí? perguntou um.
—Não, senhor.
Ainda quiseram ler, por alto, alguma cousa. Não puderam;
estavam ansiosos de sair de casa e saber notícias da noite. Posto levassem os
jornais consigo, não leram claramente nem seguidamente. Viram nomes de pessoas
presas, um decreto, movimento de gente e de tropas, tão confuso tudo, que deram
por si na casa de D. Rita, antes de entender o que houvera. Flora ainda vivia.
—Mamãe, a senhora está mais triste hoje que estes dias.
—Não fales tanto, minha filha, acudiu D. Cláudia. Triste
estou sempre que adoeces. Fica boa e verás.
—Fica, fica boa, interveio Natividade. Eu, em moça, tive
uma doença igual que me prostrou por duas semanas, até que me levantei, quando
já ninguém esperava.
—Então já não esperam que me levante?
Natividade quis rir da conclusão tão pronta, com o fim de a
animar. A doente fechou os olhos, abriu-os daí a pouco, e pediu que vissem se
estava com febre. Viram; tinha, tinha muita.
—Abram-me a janela toda.
—Não sei se fará bem, ponderou D. Rita.
—Mal não faz, disse Natividade.
E foi abrir, não toda, mas metade da janela. Flora, posto
que já mui caída, fez esforço e voltou-se para o lado da luz. Nessa posição
ficou sem dar de si; os olhos, a princípio vagos, entraram a parar, até que
ficaram fixos. A gente entrava no quarto devagar, e abafando os passos,
trazendo recados e levando-os; fora, espreitavam o médico.
—Demora-se; já devia cá estar, dizia Batista.
Pedro era médico, propôs-se a ir ver a enferma; Paulo, não
podendo entrar também, ponderou que seria desagradável ao médico assistente;
além disso, faltava-lhe prática. Um e outro queriam assistir ao passamento de
Flora, se tinha de vir. A mãe, que os ouviu, saiu à sala, e, sabendo o que era,
respondeu negativamente. Não podiam entrar; era melhor que fossem chamar o
médico.
—Quem é? perguntou Flora, ao vê-la tornar ao quarto.
—São os meus filhos que queriam entrar ambos.
—Ambos quais? perguntou Flora.
Esta palavra fez crer que era o delírio que começava, se
não é que acabava, porque, em verdade, Flora não proferiu mais nada. Natividade
ia pelo delírio. Aires, quando lhe repetiram o diálogo, rejeitou o delírio.
A morte não tardou.
Veio mais depressa do que se receava agora. Todas e o pai
acudiram a rodear o leito, onde os sinais da agonia se precipitavam. Flora
acabou como uma dessas tardes rápidas, não tanto que não façam ir doendo as
saudades do dia; acabou tão serenamente que a expressão do rosto, quando lhe
fecharam os olhos, era menos de defunta que de escultura. As janelas,
escancaradas, deixavam entrar o sol e o céu.
CAPÍTULO CVII – ESTADO DE SÍTIO
Não há novidade nos enterros. Aquele teve a circunstância
de percorrer as ruas em estado de sítio. Bem pensado, a morte não é outra cousa
mais que uma cessação da liberdade de viver, cessação perpétua, ao passo que o
decreto daquele dia valeu só por 72 horas. Ao cabo de 72 horas, todas as
liberdades seriam restauradas, menos a de reviver. Quem morreu, morreu. Era o
caso de Flora; mas que crime teria cometido aquela moça, além do de viver, e
porventura o de amar, não se sabe a quem, mas amar? Perdoai estas perguntas
obscuras, que se não ajustam, antes se contrariam. A razão é que não recordo
este óbito sem pena, e ainda trago o enterro à vista…
CAPÍTULO CVIII – VELHAS CERIMÔNIAS
Aqui vai a sair o caixão. Todos tiram o chapéu, logo que
ele assoma à porta. Gente que passa, para. Das janelas debruça-se a vizinhança,
em algumas atopeta-se, por serem as famílias maiores que o espaço; às portas,
os criados. Todos os olhos examinam as pessoas que pegam nas alças do caixão,
Batista, Santos, Aires, Pedro, Paulo, Nóbrega.
Este, posto já não frequentasse a casa, mandara saber da
enferma, e foi convidado a carregar o gracioso corpo. No carro, em que levava o
secretário, e era puxado pela mais bela parelha do préstito, quase única,
lembrava Nóbrega ao secretário:
—Não lhe dizia eu que ela era doente? Era muito doente.
—Muito.
Não vou ao ponto de afirmar que teve prazer com a morte de
Flora, só por havê-lo feito acertar na notícia da doença, estando ela
perfeitamente sã. Mas que ninguém fosse seu marido, foi uma espécie de
consolação. Houve mais; supondo que ela o tivesse aceitado e casassem, pensava
agora no esplêndido enterro que lhe faria. Desenhava na imaginação o carro, o
mais rico de todos, os cavalos e as suas plumas negras, o caixão, uma
infinidade de cousas que, à força de compor. cuidava feitas. Depois o túmulo;
mármore, letras de ouro… O secretário, para o arrancar à tristeza, falava dos
objetos da rua.
—V. Ex.ª lembra-se do chafariz que havia aqui há anos?
—Não, resmungava Nóbrega.
Ainda uma vez, não há novidade nos enterros. Daí o provável
tédio dos coveiros, abrindo e fechando covas todos os dias. Não cantam, como os
de Hamlet, que temperam as tristezas do ofício com as trovas do mesmo ofício.
Trazem o caixão da cal e a colher para os convidados, e para si as pás com que
deitam a terra para dentro da cova. O pai e alguns amigos ficaram ao pé da cova
de Flora, a ver cair a terra, a princípio com aquele baque soturno, depois com
aquele vagar cansativo, por mais que os pobres homens se apressem. Enfim, caiu
toda a terra, e eles puseram em cima as grinaldas dos pais e dos amigos:
“A nossa querida filha”; — À nossa santa amiguinha Flora a saudosa
amiga Natividade”; — “A Flora, um amigo velho”, etc. Tudo feito,
vieram saindo; o pai, entre Aires e Santos, que lhe davam o braço, cambaleava.
Ao portão, foram tomando os carros e partindo. Não deram pela falta de Pedro e
Paulo que ficaram ao pé da cova.
CAPÍTULO CIX – AO PÉ DA COVA
Nenhum deles contou o tempo gasto naquele lugar. Sabem só
que foi de silêncio, de contemplação e de saudade. Não digo, para os não vexar
agora, mas é possível que chorassem também. Tinham um lenço na mão, enxugavam
os olhos; depois com os braços caídos, as mãos prendendo o chapéu, olhavam
aparentemente para as flores que cobriam a sepultura, mas na realidade para a
criatura que lá estava embaixo.
Enfim, cuidaram de arrancar-se dali, e despedir-se da
defunta, não se sabe com que palavras, nem se eram as mesmas; o sentido seria
igual. Como estivessem defronte um do outro, acudiu-lhes a ideia de um aperto
de mão por cima da cova. Era uma promessa, um juramento. Juntaram-se e vieram
descendo, calados. Antes de chegar ao portão, reduziram à palavra o gesto das
mãos feito sobre a cova. Que juravam a conciliação perpétua.
— Ela nos separou, disse Pedro; agora, desapareceu,.
Paulo confirmou de cabeça.
—Talvez-morresse para isso mesmo, acrescentou.
Depois, abraçaram-se. Gesto nem palavra traziam ênfase ou
afetação; eram simples e sinceros. A sombra de Flora decerto os viu, ouviu e
inscreveu aquela promessa de reconciliação nas tábuas da eternidade. Ambos, por
um impulso comum, voltaram os olhos para ver ainda uma vez a cova de Flora? mas
a cova ficava longe e encoberta por grandes sepulcros, cruzes, colunas, um
mundo inteiro de gente passada, quase esquecida. O cemitério tinha um ar meio
alegre, com todas aquelas grinaldas de flores, baixos-relevos, bustos, e a cor
branca dos mármores e da cal. Comparado à cova recente, parecia um renascimento
de vida, que ficou deslembrada a um canto da cidade.
Custou-lhes sair do cemitério. Não supunham estar tão
presos à defunta. Cada um deles ouvia a mesma voz, com igual docura e palavras
especiais. Tinham chegado ao portão e o carro veio buscá-los. A cara do
cocheiro era radiosa.
Não se explica esta expressão do cocheiro, senão porque,
inquieto da demora, não cuidando que os dois fregueses ficassem tanto tempo ao
pé da cova, entrara a recear que tivessem aceitado o convite de algum amigo e
voltado para casa. Tinha já resolvido esperar poucos minutos mais, e ir embora;
mas a gorjeta? A gorjeta foi dobrada, como a dor e o amor; digamos, gêmea.
CAPÍTULO CX – QUE VOA
Assim como o carro veio voando do cemitério, assim voará
este capítulo destinado a dizer primeiro que a mãe dos gêmeos conseguiu
levá-los para Petrópolis. Já não alegaram a clínica da Santa Casa nem os
documentos da Biblioteca Nacional. Clínica e documentos repousam agora na cova
no… Não ponho o número, para que algum curioso, se achar este livro na dita
Biblioteca, se dê ao trabalho de investigar e completar o texto. Basta o nome
da defunta, que lá ficou dito e redito.
Voe este capítulo, como o trem de Mauá, serra acima, até à
cidade do repouso, do luxo e da galanteria. Vá Natividade com os filhos, e
Aires com os três. Em cima, à noite, voltando este à casa do barão, pôde ver os
efeitos da paz jurada, a conciliação final. Não sabia nada do pacto dos dois
moços. Pai nem mãe sabiam cousa nenhuma. Foi um segredo guardado no silêncio e
no desejo sincero de comemorar uma criatura que os ligara, morrendo.
Natividade vivia agora enamorada dos filhos. Levava-os a
toda parte, ou guardava-os para si, a fim de os gostar mais deliciosamente, de
os aprovar por atos, de auxiliar a obra corretiva do tempo. Notícias e boatos
do Rio de Janeiro eram objeto de conversação nas casas a que estes iam, sem os
convidar a sair da abstenção voluntária. As recreações pouco a pouco os
tomaram, algum passeio de carro ou a cavalo, e outras diversões os traziam
unidos.
Assim chegaram ao tempo em que a família Santos desceu,
ainda que a contragosto de Natividade. Ela temia que, mais perto do governo, a
discórdia política acabasse com a recente harmonia dos filhos, mas não podia lá
ficar. A outra gente vinha descendo. Santos queria os seus velhos hábitos, e
deu algumas razões boas, que Natividade ouviu depois ao próprio Aires. Podia
ser um encontro de ideias, mas se estas eram boas, deviam ser aceitas.
Natividade confiava ao tempo a perfeição da obra. Cria no
tempo. Eu, em menino, sempre o vi pintado como um velho de barbas brancas e
foice na mão, que me metia medo. Quanto a ti, amigo meu, ou amiga minha,
segundo for o sexo da pessoa que me lê, se não forem duas, e os sexos ambos, —
um casal de noivos, por exemplo, — curiosos de saber como é que Pedro e Paulo
puderam estar no mesmo credo… Não falemos desse mistério… Contenta-te de
saber que eles tinham em mente cumprir o juramento daquele lugar e ocasião. O
tempo trouxe o fim da estação, como nos outros anos, e Petrópolis deixou
Petrópolis.
CAPÍTULO CXI – UM RESUMO DE ESPERANÇAS
“Quando um não quer, dois não brigam” tal é o
velho provérbio que ouvi em rapaz, a melhor idade para ouvir provérbios. Na
idade madura eles devem já fazer parte da bagagem da vida, frutos da
experiência antiga e comum. Eu cria neste; mas não foi ele que me deu a
resolução de não brigar nunca. Foi por achá-lo em mim que lhe dei crédito.
Ainda que não existisse, era a mesma cousa. Quanto ao modo de não querer, não
respondo, não sei. Ninguém me constrangia. Todos os temperamentos iam comigo;
poucas divergências tive, e perdi só uma ou duas amizades, tão pacificamente
aliás, que os amigos perdidos não deixaram de me tirar o chapéu. Um deles
pediu-me perdão no testamento.
No caso dos gêmeos eram ambos que não queriam; parecia-lhes
ouvir uma voz de fora ou do alto que lhes pedia constantemente a paz. Força
maior, portanto, e troca de fórmula: “Se nenhum quer, nenhum briga”.
Naturalmente os atos do governo eram aprovados e
desaprovados, mas a certeza de que podia acender-lhes novamente os ódios fazia
com que as opiniões de Pedro e de Paulo ficassem entre os seus amigos pessoais.
Não pensavam nada à vista um do outro. Divergências de teatro ou de rua, eram
sopitadas logo, por mais que lhes doesse o silêncio. Não doeria tanto a Pedro,
como a Paulo, mas sempre era padecer alguma cousa. Mudando de pensamento,
esqueciam de todo, e o riso da mãe era a paga de ambos.
A carreira diferente ia separá-los depressa, conquanto a
residência comum os trouxesse unidos. Tudo se podia combinar, os interesses do
ofício serviriam a este efeito, as relacões pessoais também, e afinal o uso,
que vale por muito. Vou aqui resumindo, como posso, as esperanças de
Natividade. Outras havia a que chamarei conjugais; os rapazes, porém, não
pareciam inclinados a elas, e a mãe, quem lhe apalpasse o coração sentiria já
um antecipado ciúme das noras.
CAPÍTULO CXII – O PRIMEIRO MÊS
Na véspera do dia em que se completou o primeiro mês da
morte de Flora, Pedro teve uma ideia, que não comunicou ao irmão. Não perderia
nada em fazê-lo, porque Paulo teve a mesma ideia, e também a calou. Dela nasce
este capítulo.
A pretexto de ir visitar um doente, Pedro saiu de casa,
antes das sete horas. Paulo saiu pouco depois, sem pretexto algum. Pia leitora,
adivinhas que ambos foram ao cemitério; não adivinhas, nem é fácil adivinhar
que cada um deles levava uma grinalda. Não digo que fossem das mesmas flores,
não só para respeitar a verdade, senáo também para afastar qualquer ideia
intencional de simetria na ação e no acaso. Uma era de miosótis, outra creio
que de perpétuas. Qual fosse a de um, qual a do outro, não se sabe nem
interessa à narração. Nenhuma tinha letreiro.
Quando Paulo chegou ao cemitério, e viu de longe o irmão,
teve a sensação de pessoa roubada. Cuidava ser único e era último. A presunção,
porém, de que Pedro não levara nada, uma folha sequer, consolou-o da
antecipação da visita. Esperou alguns instantes; advertindo que podia ser
visto, desviou-se do caminho, meteu-se por entre as sepulturas, até ir
colocar-se atrás daquela. Aí esperou cerca de um quarto de hora. Pedro não, se
queria arrancar dali; parecia falar e escutar. Enfim, despediu-se e desceu.
Paulo, vagarosamente, caminhou para a sepultura. Indo a
depositar a grinalda, viu ali outra posta de fresco, e entendendo que era do
irmão, teve ímpeto de ir atrás dele e pedir-lhe contas da lembrança e da
visita. Não lhe leves a mal o ímpeto; passou imediatamente. O que ele fez foi
colocar a coroa que levava no lado correspondente aos pés da defunta, para não
a irmanar com a outra, que estava do lado da cabeça.
Não viu, não adivinhou sequer que Pedro naturalmente
pararia um instante, para voltar a cara e mandar um derradeiro olhar à moça
enterrada. Assim foi, mas quando Pedro deu com o irmão, no mesmo lugar que ele,
os olhos no chão, teve também o seu impulso de ir buscá-lo e trazê-lo daquela
cova sagrada. Preferiu esconder-se e esperar. Os gestos de piedade, quaisquer
que fossem, ele os deu primeiro à querida comum. Foi o primeiro em evocar a
sombra de Flora, falar-lhe, ouvi-la, gemer com ela a separação eterna. Viera
adiante do outro; lembrara-se dela mais cedo.
Assim consolado, podia seguir caminho; Paulo, se saísse
atrás dele, e o visse, entenderia que fizera a sua visita em segundo lugar, e
receberia um golpe grande. Deu alguns passos na direção do portão, estacou,
recuou e novamente se escondeu. Queria ver os gestos dele, ver se rezava, se se
benzia, para desmenti-lo quando lhe ouvisse mofar das cerimônias eclesiásticas.
Logo sentiu que era um erro; não iria confessar a ninguém que o vira rezando ao
pé da cova de Flora. Ao contrário, era capaz de o desmentir, — ou, quando
menos, fazer um gesto de incredulidade…
Enquanto estas imaginações lhe passavam pela cabeça,
desfazendo-se umas às outras, discursando sem palavras, aceitando, repelindo,
esperando, os olhos não se retiravam do irmão, nem este da sepultura. Paulo não
fazia gesto, não mexia os lábios, tinha os braços cruzados. O chapéu na mão.
Não obstante, podia estar rezando. Também podia ficar calado, para a sombra ou
para a memória da defunta. A verdade é que não saiu do lugar. Então Pedro viu
que a conversação, evocação, adoração, o que quer que fosse que atava Paulo à
sepultura, vinha sendo muito mais demorado que as suas orações. Não marcara o
seu tempo, mas evidentemente o de Paulo era já maior. Descontando a
impaciência, que sempre faz crescer os minutos, ainda assim parecia certo que
Paulo gastava mais saudades que ele. Deste modo. ganhava na extensão da visita
o que perdera na chegada ao cemitério. Pedro, à sua vez, achou-se roubado.
Quis sair; mas, uma força, que ele não sabia explicar, não
lhe consentia levantar os pés, nem tirar os olhos do gêmeo. A custo, pôde enfim
trazer a estes e fazê-los andar de volta pelas outras campas, onde leu alguns
epitáfios. Um de 1865 não se podia ler bem se era tributo de amor filial ou
conjugal, maternal ou paternal, por estar já apagado o adjetivo. Tributo era,
tinha a fórmula adotada pelos marmoristas, para poupar estilo aos fregueses.
Notando que o adjetivo estava comido do tempo, Pedro disse consigo que o seu amor
é que era um substantivo perpétuo, não precisando mais nada para se definir.
Pensou outras cousas com que foi disfarçando a humilhação.
Fizera tudo às carreiras. Se se demorasse mais, era o outro que estaria agora à
espreita. O tempo andava, o sol batia no rosto do irmão, e este não arredava
pé. Enfim, deu mostras de deixar a cova, mas foi para rodeá-la, e deter-se em
todos os quatro lados, como se buscasse o melhor lugar de ver ou evocar a
pessoa guardada no fundo.
Tudo feito, Paulo arredou-se, desceu e saiu, levando as
maldições de Pedro. Este teve uma ideia que desprezou logo, e tu farias o
mesmo, amigo leitor; foi tornar à sepultura e emendar ao tempo gasto
anteriormente outro pedaço maior. Desprezada a ideia, vagou alguns minutos, até
que saiu, sem achar sombra de Paulo.
CAPÍTULO CXIII – UMA BEATRIZ PARA DOIS
Flora, se visse os gestos de ambos, é provável que descesse
do céu, e buscasse maneira de os ouvir perpetuamente, uma Beatriz para dois.
Mas não viu ou não lhe pareceu bem descer. Talvez não achasse necessidade de
tornar cá, para servir de madrinha a um duelo que deixara em meio.
Quanto a este, se ia continuar, não era pela mesma injúria.
Não esqueças que foi ao pé daquela mesma campa que os dois fizeram as pazes
eternas, e, posto não lhes desfizesse a campa, é certo que acendeu um pouco da
ira antiga. Dir-me-ás, e com aparência de razão, que, se enterrada ainda os
separava, mais os separaria se ali descesse em espírito! Puro engano amigo. No
começo, ao menos, eles jurariam o que ela mandasse.
CAPÍTULO CXIV – CONSULTÓRIO E BANCA
Meses depois, Pedro abria consultório médico, aonde iam
pessoas doentes, Paulo banca de advogado, que procuravam os carecidos de
justiça. Um prometia saúde, outro ganho de causa, e acertavam muita vez, porque
não lhes faltava talento nem fortuna. Demais, não trabalhavam sós, mas cada
qual com um colega de nomeada e prático.
No meio dos sucessos do tempo, entre os quais avultavam a
rebelião da esquadra e os combates do Sul, a fuzilaria contra a cidade, os
discursos inflamados, prisões, músicas e outros rumores, não lhes faltava campo
em que divergissem. Nem era preciso política. Cresciam agora mais em número as
ocasiões e as matérias. Ainda quando combinassem de acaso e de aparência, era
para discordar logo e de vez, não deliberadamente, mas por não poder ser de
outro modo.
Tinham perdido o acordo, feito pela razão, jurado pelo
amor, em pior ouvir. Cuidaram de evitar tudo o que o lugar e a ocasião faziam
jus à honra da moça defunta e da mãe viva. Mal se podiam ver, mal lutassem para
os separar mais. Desta maneira, a profissão torceu-lhes o caminho e dividiu as
relações de ambos. Natividade apenas daria pela má vontade dos filhos, desde
que os dois pareciam apostados em lhe querer bem, mas dava por ela, e tentava
ligá-los apertadamente e de todo. Santos folgava de se prolongar pela medicina
e pela advocacia dos filhos. Só receava que Paulo, dada a inclinação
partidária, buscasse noiva jacobina. Não ousando dizer-lhe nada a tal respeito,
refugiava-se na religião, e não ouvia missa que lhe não metesse uma oração
particular e secreta para obter a proteção do céu.
CAPÍTULO CXV – TROCA DE OPINIÕES
Senão quando, viu Natividade os primeiros sinais de uma
troca de inclinação, que mais parecia propósito que efeito natural. Entretanto,
era naturalíssimo. Paulo entrou a fazer oposição ao governo, ao passo que Pedro
moderava o tom e o sentido, e acabava aceitando o regímen republicano, objeto
de tantas desavenças.
A aceitação por parte deste não foi rápida nem total; era,
porém, bastante para sentir que não havia entre ele e o novo governo um abismo.
Naturalmente o tempo e a reflexão consumaram este efeito no espírito de Pedro,
a não admitir que também nele vingasse a ambição de um grande destino,
esperança da mãe. Natividade, com efeito, ficou deliciada. Também ela mudara,
se havia que mudar na simples alma materna, para quem todos os regimes valiam
pela glória dos filhos. Pedro, aliás, não se dava todo, restringia alguma cousa
às pessoas e ao sistema, mas aceitava o princípio, e bastava; o resto viria com
a idade, dizia ela.
A oposição de Paulo não era ao princípio, mas à execução.
Não é esta a república dos meus sonhos dizia ele, e dispunha-se a reformá-la em
três tempos, com a fina-flor das instituições humanas, não presentes nem passadas,
mas futuras. Quando falava delas, via-se-lhe a convicção nos lábios e nos
olhos, estes alongados, como alma de profeta. Era outro ensejo de se não
entenderem os dois. D. Cláudia tinha que era cálculo de ambos para se não
juntarem nunca; — opinião que Natividade aceitaria, finalmente, senão fora a de
Aires.
Também este notara a mudança, e estava prestes a aceitar a
explicação, por aquela razão de comodidade que achava em concordar com as
opiniões alheias; não se cansava nem aborrecia. Tanto melhor, se o acordo se
fazia com um simples gesto. Desta vez, porém, valeu a pessoa.
—Não, baronesa, disse ele, não creia em propósitos.
—Mas que pode ser então?
Aires gastou algum tempo na escolha das palavras, a fim de
lhe não saírem pedantescas nem insignificantes; queria dizer o que pensava. As
vezes, falar não custa menos que pensar. Ao fim de três minutos, segredou a
Natividade:
—A razão parece-me ser que o espírito de inquietação reside
em Paulo, e o de conservação em Pedro. Um já se contenta do que está, outro
acha que é pouco e pouquíssimo, e quisera ir ao ponto a que não foram homens.
Em suma, não lhes importam formas de governo, contanto que a sociedade fique
firme ou se atire para diante. Se não concorda comigo, concorde com D. Cláudia.
Aires não tinha aquele triste pecado dos opiniáticos; não
lhe importava ser ou não aceito. Não é a primeira vez que o digo, mas
provavelmente é a última. Em verdade, a mãe dos gêmeos não quis outra
explicação. Nem por isso a discórdia morreria entre eles, que apenas trocavam de
armas para continuar o mesmo duelo. Ouvindo esta conclusão, Aires fez um gesto
afirmativo, e chamou a atenção de Natividade para a cor do céu, que era a
mesma, antes e depois da chuva. Supondo que havia nisto algo simbólico, ela
entrou a procurá-lo, e o mesmo farias tu, leitor, se lá estivesses; mas não
havia nada.
—Tenha confiança, baronesa, prosseguiu ele pouco depois.
Conte com as circunstâncias, que também são fadas. Conte mais com o imprevisto.
O imprevisto é uma espécie de deus avulso, ao qual é preciso dar algumas ações
de graças; pode ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos. Suponha um
déspota, uma corte, uma mensagem. A corte discute a mensagem, a mensagem
canoniza o déspota. Cada cortesão toma a si definir uma das virtudes do déspota,
a mansidão, a piedade, a justiça, a modéstia… Chega a vez da grandeza da
alma; chega também a notícia de que o déspota morreu de apoplexia, que um
cidadão assumiu o poder e a liberdade foi proclamada do alto do trono. A
mensagem é aprovada e copiada. Um amanuense basta para trocar as mãos à
História; tudo é que o nome do novo chefe seja conhecido, e o contrário é
impossível; ninguém trepa ao sólio sem isso, nem a senhora sabe o que é memória
de amanuense. Como nas missas fúnebres, só se troca o nome do encomendado —
Petrus, Paulus…
—Oh! não agoure meus filhos! exclamou Natividade.
CAPÍTULO CXVI – DE REGRESSO
—Então foram eleitos deputados?
—Foram; tomam assento quinta-feira. Se não fossem meus
filhos, diria que os vem achar mais belos do que os deixou, há um ano.
—Diga, diga, baronesa; faça de conta que são meus filhos.
Aires voltava de Europa, aonde fora com promessa de ficar
seis meses apenas. Enganou-se; gastou doze. Natividade é que lhe pôs um ano
para arredondar a ausência, que sentira deveras, como D. Rita. O sangue em uma,
o costume na outra, custou-lhes a suportar a separação. Ele fora a pretexto de
águas, e, por mais que lhe recomendassem as do Brasil, não as quis
experimentar. Não estava acostumado às denominações locais. Tinha esta impressão
que as águas de Carlsbad ou Vichy, sem estes nomes, não curariam tanto. D. Rita
insinuou que ele ia para ver como estavam as moças que deixou, e concluiu:
—Hão de estar tão velhas, como você.
—Quem sabe se mais? O ofício delas é envelhecer, redarguiu
o conselheiro.
Quis rir, mas não pôde ir além da ameaça. Não era a
lembrança da própria velhice, nem da caducidade alheia, era a injustiça da
sorte que lhe tomou a vista interior. As moças ele sabia muito bem que cediam
ao tempo como as cidades e as instituições, e ainda mais depressa que elas. Nem
todas iriam logo cedo, a cumprir a sentença que atribui ao amor dos deuses a
morte prematura das pessoas; mas viu algumas dessas, e agora lhe lembrou a
meiga Flora, que lá se fora com as suas graças finas… Não passou da ameaça de
riso.
Quiseram retê-lo as duas, Santos também, que perdia nele
uma figura certa das suas noites — mas o nosso homem resistiu, embarcou e
partiu. Como escrevia sempre à irmã e aos amigos, dava a causa exata da demora,
e não eram amores, salvo se mentia, mas passara a idade de mentir. Afirmou,
sim, que recuperara algumas forças, e assim o pareceu quando desembarcou, onze
meses depois, no cais Pharoux. Trazia o mesmo ar de velho elegante, fresco e
bem posto.
—Mas estão eleitos?
—Eleitos; tomam assento quinta-feira.
CAPÍTULO CXVII – POSSE DAS CADEIRAS
Quinta-Feira, quando os gêmeos tomaram assento na Câmara,
Natividade e Perpétua foram ver a cerimônia. Pedro ou Paulo arranjou-lhes uma
tribuna. A mãe desejou que Aires fosse também. Quando este ali chegou, já as
achou sentadas, Natividade a fitar com a luneta o presidente e os deputados. Um
destes falava sobre a ata, e ninguém lhe prestava atenção. Aires sentou-se um
pouco mais dentro, e, após alguns minutos, disse a Natividade:
—A senhora escreveu-me que eram candidatos de dois partidos
contrários.
Natividade confirmou a notícia; foram eleitos em oposição
um ao outro. Ambos apoiavam a República, Mas Paulo queria mais do que ela era,
e Pedro achava que era bastante e sobeja. Mostravam-se sinceros, ardentes,
ambiciosos; eram bem aceitos dos amigos, estudiosos, instruídos…
— Amam-se finalmente?
— Amam-se em mim, respondeu ela depois de formular essa
frase na cabeça.
—Pois basta esse terreno amigo.
— Amigo, mas caduco; amanhã posso faltar-lhes.
— Não falta; a senhora tem muitos e muitos anos de vida.
Faça uma viagem à Europa com eles, e verá que regressa ainda mais robusta. Eu
sinto-me duplicado, por mais que me custe à modéstia mas a modéstia perdoa
tudo. E depois, quando os vir encarreirados e grandes homens…
— Por que é que a política os há de separar?
— Sim, podiam ser grandes na ciência, um grande médico, um
grande jurisconsulto…
Natividade não quis confessar que a ciência não bastava. A
glória científica parecia-lhe comparativamente obscura; era calada, de
gabinete, entendida de poucos. Política, não. Quisera só a política, mas que
não brigassem, que se amassem, que subissem de mãos dadas… Assim ia pensando
consigo, enquanto Aires, abrindo mão da ciência, acabou declarando que, sem
amor, não se faria nada.
— Paixão, disse ele, é meio caminho andado.
—A política é a paixão deles; paixão e ambição. Talvez já
pensem na Presidência da República.
— Já?
— Não… isto é, sim; guarde segredo. Interroguei-os
separadamente; confessaram-me que este era o seu sonho imperial. Resta saber o
que fará um, se o outro subir primeiro.
— Derrubá-lo-á, naturalmente.
— Não graceje, conselheiro.
— Não é gracejo, baronesa. A senhora cuida que a política
os desune; francamente, não. A política é um incidente, como a moça Flora foi
outro…
— Ainda se lembram dela.
— Ainda?
— Foram à missa aniversária, e desconfio que foram também
ao cemitério, não juntos, nem à mesma hora. Se foram, é que verdadeiramente
gostavam dela; logo, não foi um incidente.
Sem embargo do que Natividade lhe merecia, Aires não
insistiu na opinião, antes deu mais relevo à dela, como o próprio fato da
visita ao cemitério.
— Não sei se foram, emendou Natividade; desconfio.
— Devem ter ido; eles gostavam realmente da pequena. Também
ela gostava deles; a diferença é que, não alcançando unificá-los, como os via
em si, preferiu fechar os olhos. Não lhe importe o mistério. Há outros mais
escuros.
— Parece que vai entrar a cerimônia, disse Perpétua que
olhava para o recinto.
— Chegue-se para a frente, conselheiro.
A cerimônia era a do costume. Natividade cuidou que ia
vê-los entrar juntos e afirmarem juntos o compromisso regimental. Viriam assim
como os trouxera no ventre e na vida. Contentou-se de os admirar separadamente.
Paulo primeiro, Pedro depois, ambos graves, e ouviu-lhes cá de cima repetir a
fórmula com voz clara e segura. A cerimônia foi curiosa para as galerias,
graças à semelhança dos dois; para a mãe foi comovedora.
—Estão legisladores, disse Aires no fim.
Natividade tinha os olhos gloriosos. Ergueu-se e pediu ao
velho amigo que as acompanhasse à carruagem. No corredor acharam os dois
recentes deputados, que vinham ter com a mãe. Não consta qual deles a beijou
primeiro: não havendo regimento interno nesta outra câmara, pode ser que fossem
ambos a um tempo, metendo-lhes ela a cara entre as bocas, uma face para cada
um. A verdade é que o fizeram com igual ternura. Depois voltaram ao recinto.
CAPÍTULO CXVIII – COUSAS PASSADAS, COUSAS FUTURAS
Indo a entrar na carruagem, Natividade deu com a igreja de S.
José, ao lado, e um pedaço do morro do Castelo, a distância. Estacou.
—Que é? perguntou Aires.
—Nada, respondeu ela entrando e estendendo-lhe a mão. Até
logo?
—Até logo.
A vista da igreja e do morro despertou nela todas as cenas
e palavras que lá ficaram transcritas nos dois ou três primeiros capítulos. Não
esqueceste que foi ao pé da igreja, entre esta e a Câmara, que o coupé esperou
então por ela e pela irmã.
—Você lembra-se, Perpétua? disse Natividade, quando o carro
começou a andar.
—De quê?
—Não se lembra que foi ali que ficou o carro, quando fomos
à cabocla do Castelo?
Perpétua lembrava-se. Natividade advertiu que devia ser ali
perto a ladeira por onde subiram com dificuldade e curiosidade, até à casa da
cabocla, no meio da outra gente, que descia ou subia também. A casa era à
direita, tinha a escada de pedra…
Descansa, amigo, não repito as páginas. Ela é que não podia
deixar de as evocar, nem impedir que viessem de si mesmas. Tudo reaparecia com
a frescura antiga. Não esquecera a figurinha da cabocla, quando o pai a fez
entrar na sala: Entra, Bárbara. A ideia de estar agora madura e longe,
restituída ao Estado, que deixou Província, rica onde nasceu pobre, não acudiu
à nossa amiga. Não, toda ela voltou àquela manhã de 1871. A caboclinha era esta
mesma criatura leve e breve, com os cabelos atados no alto da cabeça, olhando,
falando, dançando… Cousas passadas.
Quando a carruagem ia a dobrar a Praia de Santa Luzia,
ladeando a Santa Casa, Natividade teve ideia, mas só ideia, de voltar e ir ter
à ladeira do Castelo, subir por ela, a ver se achava a adivinha no mesmo lugar.
Contar-lhe-ia que os dois meninos de mama, que ela predisse seriam grandes,
eram já deputados e acabavam de tomar assento na Câmara. Quando cumpririam eles
o seu destino? Viveria o tempo de os ver grandes homens, ainda que muito velha?
A presidência da República não podia ser para dois, mas um
teria a vice-presidência, e se este a achasse pouco, trocariam mais tarde os
cargos. Nem faltavam grandezas. Ainda se lembrava das palavras que ouviu à
cabocla, quando lhe perguntou pela espécie de grandeza que caberia aos filhos.
Cousas futuras! respondeu a Pítia do Norte, com tal voz que nunca lhe esqueceu.
Agora mesmo parece-lhe que a ouve, mas é ilusão. Quando muito, são as rodas do
carro que vão rolando e as patas dos cavalos que batem. Cousas futuras! cousas
futuras!
CAPÍTULO CXIX – QUE ANUNCIA OS SEGUINTES
Todas as histórias, se as cortam em fatias, acabam com um
capítulo último e outro penúltimo, mas nenhum autor os confessa tais; todos preferem
dar-lhes um título próprio. Eu adoto o método oposto; escrevo no alto de cada
um dos capítulos seguintes os seus nomes de remate, e, sem dizer a matéria
particular de nenhum, indico o quilômetro em que estamos da linha. Isto supondo
que a história seja um trem de ferro. A minha não é propriamente isso. Poderia
ser uma canoa, se lhe tivesse posto águas e ventos, mas tu viste que só andamos
por terra, a pé ou de carro, e mais cuidosos da gente que do chão. Não é trem
nem barco; é uma história simples, acontecida e por acontecer; o que poderás
ver nos dois capítulos que faltam e são curtos.
CAPÍTULO CXX – PENÚLTIMO
Este é ainda um óbito. Já lá ficou defunta a jovem Flora,
aqui vai morta a velha Natividade. Chamo-lhe velha, porque li a certidão de batismo;
mas, em verdade, nem os filhos deputados, nem os cabelos brancos davam a esta
senhora o aspecto correspondente à idade. A elegância, que era o seu sexto
sentido, enganava os tempos de tal maneira que ela conservava, não digo a
frescura, mas a graça antiga. Não morreu sem ter uma conferência particular com
os dois filhos, — tão particular, que nem o marido assistiu a ela. Também não
instou por isso. Verdade, verdade, Santos andava a chorar pelos cantos; mal
poderia reter as lágrimas, se ouvisse a mulher fazer aos filhos os seus finais
pedidos. Porquanto, os médicos já a haviam desenganado. Se eu não visse nesses
oficiais da saúde os escrutadores da vida e da morte, podia torcer a pena, e,
contra a predição científica, fazer escapar Natividade. Cometeria uma ação
fácil e reles, além de mentirosa. Não, senhor, ela morreu sem falta, poucas
semanas depois daquela sessão da Câmara. Morreu de tifo.
Tão secreta foi a conferência dela e dos filhos que estes
não quiseram contá-la a ninguém, salvo ao Conselheiro Aires, que a adivinhou em
parte. Paulo e Pedro confessaram a outra parte, pedindo-lhe silêncio.
— Não juraram calar?
— Positivamente, não, disse um.
— Juramos só o que ela nos pediu, explicou o outro.
— Pois então podem contá-lo a mim. Eu serei discreto como
um túmulo.
Aires sabia que os túmulos não são discretos. Se não dizem
nada, é porque diriam sempre a mesma história; daí a fama de discrição.
Não é virtude, é falta de novidade.
Ora, o que a mãe fez, quando eles entraram e fecharam a
porta do quarto, foi pedir-lhes que ficasse cada um do lado da cama e lhe
estendessem a destra. Juntou-as sem força e fechou-as nas suas mãos ardentes.
Depois, com a voz expirante e os olhos acesos apenas de febre, pediu-lhes um
favor grande e único. Eles iam chorando e calando, porventura, adivinhando o
favor.
— Um favor derradeiro, insistiu ela.
— Diga, mamãe.
— Vocês vão ser amigos. Sua mãe padecerá no outro mundo, se
os não vir amigos neste. Peço pouco; a vossa vida custou-me muito, a criação
também, e a minha esperança era vê-los grandes homens. Deus não quer,
paciência. Eu é que quero saber que não deixo dois ingratos. Anda, Pedro, anda,
Paulo, jurem que serão amigos.
Os moços choravam. Se não falavam, é porque a voz não lhes
queria sair da garganta. Quando pôde, saiu trêmula, mas clara e forte:
— Juro, mamãe!
— Juro, mamãe!
— Amigos para todo sempre?
— Sim.
— Não quero outras saudades. Estas somente, a amizade
verdadeira, e que se não quebre nunca mais.
Natividade ainda conservou as mãos deles presas, sentiu-as
trêmulas de comoção, e esteve calada alguns instantes.
— Posso morrer tranquila.
— Não, mamãe não morre, interromperam ambos.
Parece que a mãe quis sorrir a esta palavra de confiança,
mas a boca não respondeu à intenção, antes fez um trejeito que assustou os
filhos. Paulo correu a pedir socorro. Santos entrou desorientado no quarto, a
tempo de ouvir à esposa algumas palavras suspiradas e derradeiras. A agonia
começou logo, e durou algumas horas.
Contadas todas as horas de agonia que tem havido no mundo,
quantos séculos farão? Desses terão sido tenebrosos alguns, outros
melancólicos, muitos desesperados, raros enfadonhos. Enfim, a morte chega, por
muito que se demore, e arranca a pessoa ao pranto ou ao silêncio.
CAPÍTULO CXXI – ÚLTIMO
Castor e Pólux foram os nomes que um deputado pôs aos dois
gêmeos, quando eles tornaram à Câmara, depois da missa do sétimo dia. Tal era a
união que parecia aposta. Entravam juntos, andavam juntos, saíam juntos. Duas
ou três vezes votaram juntos, com grande escândalo dos respectivos amigos
políticos. Tinham sido eleitos para se baterem, e acabavam traindo os
eleitores. Ouviram nomes duros, repreensões acerbas. Quiseram renunciar ao
cargo; Pedro, entretanto, achou um meio conciliatório.
—O nosso dever político é votar com os amigos, disse ele ao
irmão. Votemos com eles. Mamãe só nos pediu concórdia pessoal. Na tribuna, sim,
ninguém nos levará a atacar um ao outro; no debate e no voto podemos e devemos
dissentir.
—Apoiado; mas, se você um dia achar que deve vir para os
meus arraiais, venha. Você nem eu hipotecamos o juízo.
—Apoiado.
Pessoalmente, nem sempre havia este acordo. Os contrastes
não eram raros, nem os ímpetos, mas a lembrança da mãe estava tão fresca, a
morte tão próxima, que eles sopitavam qualquer movimento, por mais que lhes custasse,
e viviam unidos. Na Câmara, o dissentimento político e a fusão pessoa cada vez
os fazia mais admiráveis.
A Câmara terminou os seus trabalhos em dezembro. Quando
tornou em maio seguinte, só Pedro lhe apareceu. Paulo tinha ido a Minas, uns
diziam que a ver noiva, outros que a catar diamantes, mas parece que foi só a
passeio. Pouco depois regressou, entrando na Câmara sozinho, ao contrário do
ano anterior em que os dois irmãos subiam as escadas juntos, quase pegados. O
olho dos amigos não tardou em descobrir que não viviam bem, pouco depois que se
detestavam. Não faltou indiscreto que lhes perguntasse a um e a outro o que
houvera no intervalo das duas sessões; nenhum respondia nada. O presidente da
Câmara, a conselho do leader, nomeou-os para a mesma comissão. Pedro e Paulo,
cada um por sua vez, foram pedir-lhe que os dispensasse.
—São outros, disse o presidente na sala do café.
—Totalmente outros, confirmaram os deputados presentes.
Aires soube daquela conclusão no dia seguinte, por um
deputado, seu amigo, que morava em uma das casas de pensão do Catete. Tinha ido
almoçar com ele, e, em conversação, como o deputado soubesse das relações de
Aires com os dois colegas, contou-lhe o ano anterior e o presente, a mudança
radical e inexplicável. Contou também a opinião da Câmara.
Nada era novidade para o conselheiro, que assistira à
ligação e desligação dos dois gêmeos. Enquanto o outro falava, ele ia
remontando os tempos e a vida deles, recompondo as lutas os contrastes, a
aversão recíproca, apenas disfarçada, apenas interrompida por algum motivo mais
forte, mas persistente no sangue, como necessidade virtual. Não lhe esqueceram
os pedidos da mãe, nem a ambição desta em os ver grandes homens.
—O senhor que se dá com eles diga-me o que é que os fez
mudar, concluiu o amigo.
—Mudar? Não mudaram nada; são os mesmos.
—Os mesmos?
—Sim, são os mesmos.
—Não é possível.
Tinham acabado o almoço. O deputado subiu ao quarto para se
compor de todo. Aires foi esperá-lo à porta da rua. Quando o deputado desceu,
vinha com um achado nos olhos.
—Ora, espere, não será… Quem sabe se não será a herança
da mãe que os mudou? Pode ter sido a herança, questões de inventário…
Aires sabia que não era a herança, mas não quis repetir que
eles eram os mesmos, desde o útero. Preferiu aceitar a hipótese, para evitar
debate, e saiu apalpando a botoeira, onde viçava a mesma flor eterna.
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