ENCARNAÇÃO
José de Alencar
© Copyright 2017, VirtualBooks Editora e Livraria Ltda. -1ª edição
1893 – G. Leuzinger & Filhos – Capa:
foto Jerzy Gorecki – Todos os
direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98. – José Martiniano de Alencar (Messejana, 1 de maio de 1829 — Rio
de Janeiro, 12 de dezembro de 1877) – ENCARNAÇÃO, José de Alencar. Pará de
Minas, MG, Brasil: VirtualBooks Editora,
2021. – ISBN: 9781521908785 – CDD-
B869 Literatura brasileira. Romance.
CAPÍTULO 1
Conheci outrora uma família
que morava em São Clemente.
Havia em sua casa agradáveis
reuniões de que fazia os encantos uma filha, bonita moça de dezoito anos,
corada como a aurora e loura como o sol.
Amália seduzia especialmente
pela graça radiante e pela viçosa e ingênua alegria que manava nos lábios
vermelhos como dos olhos de topázio, e lhe rorejava a lúcida beleza.
Sua risada argentina era a
mais cintilante das volatas que ressoavam entre os rumores festivos da casa,
onde à noite o piano trinava sob os dedos ágeis da melhor discípula do Amaud.
Acontecia-lhe chorar algumas
vezes por causa de um vestido que a modista não lhe fizera a gosto, ou de um
baile muito desejado que se transferia; mas essas lágrimas efêmeras que
saltavam em bagas dos grandes olhos luminosos, iam nas covinhas da boca
transformar-se em cascatas de risos frescos e melodiosos.
Tinha razão de folgar.
Era o carinho dos pais e a
predileta de quantos a conheciam. Muitos dos mais distintos moços da corte a
adoravam.
Ela, porém, preferia a
isenção de menina, e não pensava em escolher um dentre tantos apaixonados, que
a cercavam.
Os pais, que desejavam muito
vê-la casada e feliz, sentiam quando ela recusava algum partido vantajoso.
Mas reconheciam ao mesmo
tempo que formosa, rica e prendada como era, a filha tinha o direito de ser
exigente; e confiavam no futuro.
Outra e bem diversa era a
causa da indiferença da moça.
Amália não acreditava no
amor. A paixão para ela só existia no romance.
Os enlevos de duas almas a
viverem uma da outra não passavam de arroubos de poesia, que davam em comédia
quando os queriam transportar para o mundo real.
Tinha sobre o casamento ideias
mui positivas.
Considerava o estado
conjugal uma simples partilha de vida, de bens, de prazeres e trabalhos.
Estes, não os queria; os
mais, ela os possuía e gozava, mesmo solteira, no seio de sua família.
Era feliz; não compreendia,
portanto, a vantagem de ligar-se para sempre a um estranho, no qual podia
encontrar um insípido companheiro, se não fosse um tirano doméstico.
Estes pensamentos, Amália
não os enunciava, nem os erigia em opiniões. Eram apenas os impulsos íntimos de
sua vontade; obedecendo a eles, não tinha a menor pretensão à excentricidade.
Ao contrário, como sabia do
desejo dos pais, aceitava de boa mente a corte de seus admiradores. Mas estes
bem percebiam que para a travessa e risonha vestal dos salões, o amor não era
mais do que um divertimento de sociedade semelhante à dança ou à música.
Conservando a sua
independência de filha querida e moça da moda, Amália não nutria prejuízos
contra o casamento, que aliás aceitava como uma solução natural para o outono
da mulher.
Ela bem sabia, que depois de
haver gozado da mocidade, no fim de sua esplêndida primavera, teria de pagar o
tributo à sociedade, e como as outras escolher um marido, fazer-se dona de
casa, e rever nos filhos a sua beleza desvanecida.
Ate lá, porem, era e queria
ser flor. Das suas lições de botânica lhe ficara bem viva esta recordação, que
o fruto só desponta quando as pétalas começam a fanar se; se vem antes disso
eiva.
Esta moça pertencia a uma
variedade de mulher, que se pode bem classificar como o gênero rosa. São
elegâncias que só florescem bem no clima ardente do baile, ao sol do gás. A luz
é a alma de sua formosura. Na sombra desfalecem e murcham.
Amália vivia no salão; só o
deixava para repousar. Seu dia era a noite com os lustres por astros. Quando em
toda a cidade não havia divertimento algum que a atraísse, ela passava a noite
em casa; mas com o seu piano, o seu contentamento e a sua graça improvisava uma
festa.
A volubilidade desse gênio
não era, como alguns supunha, efeito de Uma alma fria, indiferente e egoísta
Enganavam-se aqueles que viam na filha do Sr. Veiga uma dessas mocas embotadas
pela vida precoce da sala.
Ao contrário, ou pela severa
educação que recebera, ou por tardio desenvolvimento, Amália conservara-se
criança além do período natural da infância. Aos dezessete anos ainda se
lembrava de suas lindas bonecas, bem guardadas em uma cômoda, onde as
conservava como recordação da meninice; e mais de uma vez aconteceu-lhe no dia
seguinte a um baile representar ao vivo com essas figuras de cera e cetim as
quadrilhas que dançara.
Quando o coração menino
dessa moça elegante e espirituosa pulsou pela primeira vez, já tinha ouvido
tantas vezes declarações e protestos ardentes, que não passavam para ela de uma
linguagem polida e lisonjeira, adotada na sociedade.
Gabar-lhe a beleza, ou
elogiar-lhe o vestido, era a mesma fineza. Quando um dos seus apaixonados
animou-se o primeiro a dizer-lhe com a voz trêmula que a amava, ela o ouviu
calma, sem a menor emoção, como se lhe falassem de música ou de pintura. O que
lhe causou alguma surpresa foi o esforço e turbação do cavalheiro ao proferir aquelas
palavras.
Entretanto, quem observasse
a vida íntima dessa moca conheceria o fundo de sensibilidade e temera que havia
sob aquela aparência frívola e risonha. Não só tinha amor extremoso à família e
dedicação pelas amigos, mas em certos momentos, como se a afogasse uma
exuberância do coração. cobria a mãe de carinhos.
Alguma vez, nas horas de
repouso, quando a imaginação vagueia pelo azul, ela fazia também como todas as
moças o seu romance; com a diferença, porém, que o das outras era esperança de
futuro ardente aspiração d alma; enquanto o seu não passava de sonho fugaz, ou
simples devaneio do espírito.
Um traço singular destas
cismas é que elas faziam contraste ao modo habitual da moca, ao seu gênio Essa
natureza alegre e expansiva, esse coração incrédulo e desdenhoso, quando
fantasiava os seus idílios, reservava sempre para si a melancolia, a abnegação
e o obscuro martírio de uma paixão infeliz.
Seria um pressentimento?
Creio eu que não era senão uma antítese natural da imaginação com o espírito. E
muito frequente encontrarem-se caracteres joviais que têm o sentimento
elegíaco, e, ao contrário, misantropos com uma veia cômica inexaurível.
CAPÍTULO 2
Na chácara contígua à do Sr.
Veiga, pelo lado esquerdo, morava um desses homens que o povo designa com o
nome de esquisitos.
Os amigos o chamavam Carlos;
os estranhos tratavam-no por Sr. Hermano; ele, porém, costumava assinar-se H.
de Aguiar.
Para merecer do vulgo a
qualificação de esquisito, basta as vezes sair da trilha batida; mas o Sr.
Hermano tinha com efeito hábitos e ações que excitavam o reparo e lhe davam
certo cunho de originalidade.
Não se lhe conhecia
profissão; sabia-se entretanto que era abastado, pois além da chácara de sua
residência, possuía apólices e prédios na cidade.
Sua casa vivia
constantemente fechada na frente, e tinha o aspecto de uma morada em vacância
pela ausência do dono. Quem olhava pela grade do portão, sempre trancado, não
descobria outro indicio de habitação a não ser o fumo da chaminé.
Todavia nas raras vezes em
que soava a grossa campa da entrada, aparecia logo um velho criado, todo
vestido de preto, que introduzia a visita com uma cortesia respeitosa mas fria
e taciturna.
O dono da casa costumava ir
à cidade três vezes na semana, para tratar de seus negócios, ou talvez para não
se isolar totalmente do mundo de que já vivia tão apartado. Também saia de
passeio, a pé ou a cavalo pelos arrabaldes.
Certas ocasiões mostrava-se
afável, polido, atencioso e expansivo, retribuindo os cumprimentos que recebia,
e dirigindo-os as pessoas de seu conhecimento. Era então um modelo do homem de
boa sociedade e fina educação.
Outros dias estava de tal
modo concentrado que passava pelas ruas como um incógnito; não falava a
ninguém; não fazia caso das pessoas de maior consideração e a quem acatava. Se
algum amigo vinha-lhe ao encontro, recebia-o sem parar com a mascara muda e
impassível da abstração, e logo o despachava com um aperto de mão automático.
Estas alternativas
sucediam-se por fases; duravam semanas e meses. A fisionomia denunciava logo a
conjunção desse espírito com o mundo. Havia nele, como em todos nós, dois
homens, o íntimo e o social; a diferença é que nele as duas faces revezavam-se,
enquanto que nos outros elas de ordinário são fixas e formam o direito e o
avesso do indivíduo.
Ainda mesmo nos seus dias de
misantropia o semblante do Sr. Hermano era tão modesto e sereno que ninguém via
na sua desatenção orgulho ou falta de civilidade.
Atribuíam estas desigualdades
de caráter ao gênio e não se ofendiam com elas. Em geral os vizinhos e
conhecidos o saudavam sempre cordialmente, embora ele passasse sem olhá-los.
Do que poucos sabiam, e só
alguns amigos se lembravam, era da primeira mocidade de Hermano, quando ele
passava por um dos mais brilhantes cavalheiros dos salões fluminenses. Sua
graça natural, o primor de suas maneiras, e as seduções do seu espírito, o
distinguiam entre todos como um tipo de elegância.
Eram os arrebóis dessa
esplêndida mocidade que ele ainda mostrava nos seus momentos de expansão,
quando desprendia-se da constante preocupação.
Um dia, no meio de seus
triunfos, quando a sua estrela mais brilhava, correu a noticia de que Hermano
estava para casar-se, o que não devia surpreender em sua idade. Foi, porém,
geral a admiração quando se soube que D. Julieta, a moça por quem se apaixonara
a ponto de sacrificar-lhe a liberdade. não era rica nem bonita.
Ninguém esperava que ele,
nas condições de pretender as filhas dos primeiros capitalistas e de escolher
entre as mais aristocráticas belezas da corte, fizesse um casamento tão
desvantajoso.
D. Julieta não frequentava a
alta sociedade; mas algumas pessoas da creme’ a tinham encontrado por vezes em
partidas familiares; e essas compreenderam a repentina que ela tinha inspirado
ao noivo.
Como estátua a moça era um
esboço imperfeito, ainda mesmo com as correções que aplica o molde de um traje
elegante, ou a feliz disposição dos enfeites.
Imagine-se que um cinzel
inspirado idealizava esse esboço e dava às linhas do perfil a harmonia que lhes
negara a natureza. Tal seria, não o retrato de Julieta. mas o tipo que sua
pessoa refletia na imaginação do artista a quem servisse de modelo.
Havia em seu olhar, em sua
voz, em seus movimentos, inflexões maviosas, mas de tão vivo relevo que se
esculpiam como se tomassem corpo. Depois de apagar-se o gesto, sentia-se ainda
a sua doce impressão no vulto a que animara.
O espírito fino, meigo e
gentil de Julieta não tinha expansões brilhantes. Era modesto, e às vezes
tímido. Entretanto o que ela dela por mais simples que fosse, trazia o calor de
uma emoção intima. Sua palavra exalava os perfumes de uma alma em flor.
Ao seu lado e conversando
com ela, um homem de rigor estético poderia esquivar-se ao enlevo que infundia
a suprema distinção dessa moça, e notar em suas feições e em seu talhe a
ausência da beleza plástica.
Mas apartando-se dela e
perdendo-a de vista, raro era o que não levava na fantasia um ideal suave e
gracioso, que ofuscava a imagem das mais radiantes formosuras de salão.
O primeiro encontro de
Hermano com a noiva explica bem a influência que ela devia exercer em sua vida.
Ao sair do teatro lembrou-se
do convite que recebera para uma partida em casa de pessoa de sua amizade, a
quem devia atenções. Dirigiu-se para lá, com a intenção apenas de fazer ato de
presença.
Quando entrou no saguão,
cantava uma senhora a ária da Lúcia de Lammemor. A voz, que não era extensa,
comoveu-o. Parou para escutar; e viu desenhar-se em seu espírito a imagem
esbelta e vaporosa da virgem que o amor enlouquecera.
Terminado o canto, subiu.
Havia na sala muitas senhoras algumas de seu conhecimento, outras que via pela
primeira vez. Notou entre estas uma moça alva, de cabelos negros; era Julieta.
Sem que lho dissessem, por uma rápida intuição adivinhou que fora ela a
intérprete inspirada da música de Donizetti. .
Teve pois uma decepção Ele
imaginara sempre uma Lúcia loura como a filha das nevoentas montanhas da
Escócia; e vinha achar a sua cópia em um tipo tão oposto.
Hermano demorou-se mais do
que tencionara; ficou até o fim da partida. Por mais de uma vez aproximou-se de
Julieta e conversou com ela Quando se recolheu, cantava mentalmente o
Bell’anima, que ouvira executado por Mirati; e pensava que talvez Lúcia apesar
de escocesa, tivesse cabelos pretos como a Maria Stuart de Walter Scott .
Julieta era filha de um
coronel reformado de nosso exercito, que servira por algum tempo em Goiás Na
sua primeira expedição para aquela província acompanhou-o a mulher apesar de
estar mui próxima a dar à luz. A menina nascera em viagem.
Uma escrava que o oficial
trazia, fatigada das jornadas, mal podia acudir à senhora.
Foi pois o furriel Abreu que
serviu de ama-seca a menina, e tal amizade tomou-lhe que não quis mais
separar-se dela. Completando o tempo de serviço obteve baixa e ficou em
companhia do oficial agregado.
Hermano frequentou a casa do
coronel Soares. Pouco mais de mês depois do seu primeiro encontro com Julieta
manifestou-lhe os seus sentimentos, que aliás já eram conhecidos da moça, e
pediu-lhe um consentimento, que tinha razão de esperar.
Ela ficou um momento
pensativa; depois disse com o tom grave de uma convicção profunda.
— O casamento é uma
fatalidade.
Como Hermano interrogava-lhe
o semblante para conhecer o sentido de suas palavras, ela acrescentou:
— Meu marido há de
pertencer-me de corpo e alma, como eu a ele, e para sempre. É assim que entendo
o casamento.
— Penso da mesma maneira.
— Para sempre é eternamente.
— Compreendi todo o seu
pensamento, Julieta. e não imagina o meu júbilo por encontrar tão perfeita
identidade de sentimentos na mulher a quem amo. Sempre acreditei que o
casamento não deve ser uma simples união social, mas a formação da alma
criadora e mãe, da alma perfeita, de que nós não somos senão as parcelas esparsas.
Essa alma uma vez formada, só Deus a pode dividir e mutilar.
O casamento realizou-se
pouco tempo depois; e os noivos foram morar na casa de São Clemente, a qual
tinha sido preparada com esmero para recebê-los.
Abreu acompanhou sua filha
de criação. Ele a tinha recebido em seus braços ao nascer, e contava não
deixá-la senão quando Deus o chamasse.
CAPÍTULO 3
Aquela casa de São Clemente
foi para os noivos o ninho do amor e da felicidade; mas o ninho perene, sem
estações, sem primavera, sem lua-de-mel.
Essa ardente efusão de duas
existências durava desde o primeiro instante, não tinha lapsos nem desmaios.
Hermano aproximava-se dos
trinta anos, e vivera muito nesse tempo. Julieta aos vinte anos não conhecia o
mundo; e seu coração virgem era um manancial de ternura.
Que diálogo inefável entre
aquela inteligência pródiga e essa inocência ávida de saber, rica de afeto?.
O passado de Hermano, desde
a primeira infância até o casamento, Julieta queria vivê-lo, dia por dia, hora
por hora, se fosse possível, para amar seu mando em cada um desses momentos
anteriores a ela.
O presente não lhe bastava.
nem o futuro. Carecia de remontar-se à origem dessa existência que lhe
pertencia, para soldá-la ainda mais intimamente a si, de modo que não lhe fosse
possível marcar a época de sua união. Então o casamento teria sido apenas a
consagração social do vinculo de duas almas gêmeas.
Por seu lado Hermano sentia
também a necessidade de vazar no coração ingênuo e casto da esposa, como em um
crisol, os seus pensamentos, as ideias de que a sociedade o imbuíra, e assim
apurar sua consciência naquela chama celeste.
Sua individualidade,
escoriando-se da liga mundana, apagando os traços de uma mocidade fácil,
identificava-se de mais em mais com o espírito puro e imaculado da moça e
embebia-se nele como o raio do sol que se infunde na seiva da árvore e gera a
flor.
Hermano e sua mulher
frequentavam a sociedade onde os chamavam Iam, porém, aos divertimentos
unicamente para se desobrigarem de um dever de cortesia e posição; ou talvez
para certificarem-se de que nada faltava à sua felicidade.
Depois de uma ou duas horas
passadas no teatro ou nos salões, recolhiam-se pressurosos à sua casa e ao seu
amor.
Duas vezes por mês reuniam
as famílias de sua amizade. Essas longas noites, em que se deviam a seus
convidados, eram uma ausência, uma separação para eles. Tinham o mundo entre
si.
Que saudades não sentiam um
do outro nesses momentos; e com que anelos encontravam-se de novo na sua
querida solidão?.
Amália era então uma criança
de nove anos. No dia do casamento tinha vindo do colégio passar o domingo com a
família. À noite vira a chácara vizinha iluminada e os noivos que chegavam com
grande acompanhamento de carros.
Reparando na elegância e
garbo do par que subia as escadas de pedra alcatifadas de fino tapete, a menina
pensou no dia de seu casamento; e desejou que seu noivo fosse tão lindo como
aquele.
Nos outros domingos que
passava em casa, quando chegava à janela, via os noivos sempre juntos passeando
no jardim, ou sentados em um banco à sombra dos bambus.
Um dia ardeu-lhe a
curiosidade de espiar os aposentos da noiva. O fundo da chácara dava para a
montanha; e o declive fora cortado em socalco com terraços que se sucediam em
degraus.
De uma dessas elevações dominava-se
a casa vizinha especialmente a asa do edifício, que ficava fronteira, a duas
braças apenas de distância.
Foi daí que Amália,
aproveitando uma ocasião em que as janelas estavam abertas, viu o quarto de
dormir e o toucador da noiva, ambos preparados com luxo e primor.
No toucador, sentada junto a
uma mesa de charão Julieta procurava numa caixinha de jóias uns botões para os
seus punhos de cambraia. O mando entrou. Em pé, por detrás da cadeira, colheu
nas mãos o rosto da moça e cobriu-o de beijos.
A travessa que os espiava,
disparou a rir, Julieta corou e quis afastar-se; porem Hermano a reteve e
beijou-a de novo tranquilamente, como para afrontar a malícia da menina com a
castidade de sua carícia.
Pouco tempo depois desta
cena, o Sr. Veiga mudou-se para o Andaraí, por causa da perda de sua sogra, e
alugou a casa de São Clemente, para onde D. Felícia não quis voltar depois do
golpe que ali sofrera.
A existência dos dois noivos
continuou sem alteração; sua felicidade tornou-se com o tempo mais serena e por
isso mesmo mais intensa.
Afinal apareceu uma ligeira
nuvem naquele céu aberto. Estavam casados havia mais de três anos, e não tinham
filho. Começavam a sentir essa falta; era o primeiro desejo não satisfeito.
Engolfados no misticismo do
amor, tão grato às imaginações vivas, eles consolavam-se com uma teoria
psicológica um tanto abstrata, mas original e encantadora.
Hermano dissera uma vez à
mulher:
— Um filho é uma porção de
nós que se destaca para formar outro eu. Nós, Julieta, nos queremos exclusivamente,
e nos possuímos com tanta ânsia, que nenhum quer perder do outro a menor
parcela, ainda mesmo reproduzir o nosso ser.
A mulher aplaudia esta
explicação que ela primeiro balbuciara sem poder exprimi-la; e o egoísmo cheio
de enlevos desse amor inexaurível substituía para o feliz casal o outro penhor
que a sorte lhes negara.
Todo esse encanto, a asa
negra do infortúnio o apagou em um momento. Hermano perdeu a mulher; e a perdeu
justamente quando sua união ia ser abençoada com um filho.
Um aborto levou Julieta.
Suas últimas ao ao foram estas que ela proferiu antes de perder o conhecimento:
— Minha alma não podia
separar-se da tua Hermano.
Desde esse momento o marido
caiu em um letargo profundo que o conservou alheio ao que se passava. Esse
estado que se assemelhava à idiotia, durou por muito tempo.
O Dr. Teixeira, amigo de
infância de Hermano, partindo para a Europa a fim de praticar nos hospitais de
Paris levou consigo o infeliz viúvo, na esperança de que a viagem o arrancasse
àquela estupefação em que o deixara a perda da mulher.
Antes de seis meses Hermano
voltou da Europa com Abreu que o acompanhara; foi morar na casa de São
Clemente, onde tomou-se o homem que era, quando o encontramos cinco anos mais
tarde.
Dias depois de sua chegada
deu-se um incidente que não escapou à curiosidade dos ociosos da vizinhança.
Pararam no portão duas carroças conduzindo caixotes de tamanho descomunal. O
que, porém mais intrigou os espíritos foi a circunstância de arrombar-se uma
parede para introduzir os volumes no interior da casa.
Em cada bairro há um ou mais
parlatórios, que são uns moinhos onde se tritura a matéria-prima para o fabrico
da opinião pública. Outrora era especialidade das boticas; hoje serve uma loja
qualquer. Para ai, para esses pontos, afluem todos os mexericos que os escravos
levam às tabernas, e todos os boatos e murmurações que os noveleiros se
incumbem de propagar.
Muito se falou dos tais
enormes caixões. Na opinião de alguns tinham eles desembarcado na Copacabana e
entrado por contrabando na cidade. Outros, admitindo o contrabando, afirmavam
que passara pela própria Alfândega. Finalmente, choviam as suposições acerca do
arrombamento da parede e da carga misteriosa que se ocultara até dos criados da
casa, com exceção do velho Abreu.
O Sr. Veiga voltou a ocupar
sua antiga casa. Amália teve muitas ocasiões de ver na alameda da chácara
contígua passar o vulto, ainda elegante, mas grave de Hermano.
Não lhe causava, porém, o
aspecto daquele homem a menor impressão A moça, se guardara as recordações da
menina não as tinha presentes ao espírito. Olhando a casa outrora tão brilhante
e admirada por ela, revendo o feliz noivo agora solitário e abatido, nem sequer
notava a diferença dos primeiros tempos.
Sua alegria ainda era um
esplendor sem crepúsculos.
CAPÍTULO 4
Era noite de partida em casa
do Sr. Veiga.
Amália ainda não tinha
perdido a sua jovialidade, e continuava a ser uma das mais gentis princesas da
moda.
Nesse dia vestira-se mais
cedo para ensaiar com uma amiga o dueto que tinham de cantar logo mais. Deixava
ela o piano, quando entraram na safa ainda erma duas pessoas.
Uma, o Sr. Borges, era
íntimo da casa e aparentado com a família. A outra, que Amália não conhecia,
foi lhe apresentada em termos de anúncio:
— O Dr. Henrique Teixeira.
médico muito distinto. ultimamente chegado da Europa; urna notabilidade
oftalmológica.
Borges encontrara o
companheiro no portão de Hermano:
— Por aqui doutor?.
— Vim jantar com um amigo, e
estou à espera de meu tílburi, que mandei voltar às sete horas. Receio que o
cocheiro me logre.
—Ah! é amigo do Sr.
Hermano?.
— Amigo de infância.
Borges convidou o doutor
para a partida do parente; e tais e tão repetidas foram as instâncias, que o
outro acedeu por fim.
Diversos motivos influíram
para aquele convite reiterado. Além do desejo de obsequiar o médico e de
arranjar mais um cavalheiro para a dança, Borges fora movido sobretudo pela
curiosidade de saber particularidades acerca do excêntrico viúvo.
Depois dos cumprimentos e de
algumas ligeiras observações relativas à Europa, Borges dirigiu a conversa para
o assunto que mais lhe interessava.
— É verdade que o Hermano
está sofrendo da cabeça, doutor?.
— Não é exato! acudiu
Henrique Teixeira com vivacidade. Tem a razão tão firme e tão lúcida como
nunca; e o senhor deve saber que ele mostrou sempre muito tino e bom senso. A
prova é que deixando-lhe o pai a livre disposição de sua fortuna, quando não
tinha mais de dezessete anos, não só a conservou, como soube aumentá-la, apesar
de sua vida elegante.
— Sei perfeitamente; mas
tinham-me dito que ele não regula desde que ficou viúvo.
— Com efeito, Carlos sofreu
um abalo terrível com esse golpe. A morte de D. Julieta, que ele ainda não
esqueceu, nem esquecera, causou-lhe uma espécie de paralisia moral. Durante
dois meses não pronunciou uma palavra; vivia mecanicamente; era um autômato
movido por um velho criado, o Abreu, cuja dedicação por ele é a de um pau
extremoso.
— Tenho visto este criado;
se não me engano é quem governa a casa.
— Estava eu resolvido a
passar algum tempo em Paris para dedicar-me aos estudos de minha profissão.
Apressei a partida para levar Carlos comigo e distraí-lo . Nem a vi agem , nem
o turbilhão da vida parisiense produziram o resultado que eu esperei Continuava
indiferente a tudo: nada o interessava; nada prendia-lhe a atenção.
— Então, doutor, sempre
houve alguma coisa?.
— Sem dúvida, mas não
demência. O estado de Carlos era simplesmente uma insensibilidade moral: um
desprendimento do mundo, que o tomava impassível ao movimento social. Vivia em
si e de si, das recordações que enchiam sua alma. Nunca, porém, eu notei no seu
espírito a menor vacilação, e muito menos um desvario. Quanto aos estranhos,
viam nele um homem frio, concentrado, de poucas falas, mas de juízo seguro e
talento refletido.
— O senhor defende seu amigo
com tanto calor que me faz desconfiar da justiça da causa, doutor, disse Amália
a sorrir.
— A crítica é espirituosa,
minha senhora, e eu já a tinha lido em seus lábios antes que eles a
preferissem. Mas eu quero a este amigo, como a um irmão; e dói–me
profundamente essa suspeita de loucura, que alguns malévolos se incumbiram de
espalhar. Felizmente Carlos restabeleceu-se; aquela impassibilidade que me
assustava dissipou-se como por encanto.
— Em Paris? perguntou Borges
com ar de dúvida, apenas de leve dissimulado pela cortesia.
— Em Paris, numa visita que
fizemos ao Louvre Carlos sempre teve gosto e inclinação para as artes;
lembrei-me um dia de mostrar-lhe o museu de pintura e escultura. Deixei-o um
instante para falar a alguém que encontrara na sala; quando o procurei fui
achá-lo diante de um quadro, creio que a Ester ou a Suzana do Veroneso.
Voltou-se; já não era o homem absorto e sombrio que ali entrara: tinha no
semblante e em toda a sua pessoa, a expressão afável dos mais belos dias de sua
vida. Vi em seu olhar uma interrogação e pensando que ela se referia à tela,
improvisei admiração, que não sentia, pois, surpreso e contente daquela
transfiguração, eu nenhuma atenção prestava ao quadro. Não obstante
prodigalizei elogios ao desenho, ao colorido, à criação do grande pintor.
“Não; não é isto!. . disse-me ele. Mas tu não podes compreender a beleza
que este quadro tem para mim”. Eu percebi que ele achara nessa imagem uma
reminiscência de sua Julieta.
— Ora, descobriu-se afina! a
Fênix dos maridos! exclamou Amália com uma risada expansiva dirigindo-se à
amiga. Nenhum poeta até hoje, que eu saída, animou-se a inventar um Penélope
masculino. Estava reservada esta glória ao Dr. Teixeira.
— Antes de mim um poeta, e
dos mais ilustres, criou esse no Frei Luís de Sousa, que a senhora talvez não
conheça, porque é escrito em nossa língua.
—Até o vi representar, o que
deve parecer-lhe ainda mais admirável, depois que os senhores fizeram do Rio de
Janeiro um pequeno Paris de bulevar. Mas esse marido que voltou ao cabo de
vinte anos de exílio, foi o amor da mulher que o trouxe, ou a lembrança da
pátria, a saudade de seu velho Portugal?.
— Não se lembra de seu
desespero por encontrar a mulher unida a outro? É Uma das cenas mais tocantes.
— Esse amor caduco e de
cabelos brancos, pois tinha mais de vinte anos….
— Como o de Penélope,
acrescentou Teixeira em nota.
— Esse fóssil conjuga! é um
monstro ideado por Garrett para complicar a situação das duas metades, que o
aparecimento do primeiro marido veio separar. O drama está nessa separação
realmente incômoda, para quem não gosta de sair de seus hábitos. Assim o
romeiro bem longe de ser o herói, não passa de um pretexto, de um incidente de
um motivo. Faz ai o mesmo oficio de pai cruel que não deixa a filha casar-se
democraticamente com qualquer cidadão da rua.
A chegada de uma senhora a
quem Amália foi receber, cortou a réplica do doutor, que ria da malícia da
moça.
— Mas então o Hermano desde
aquela visita do Louvre restabeleceu-se? perguntou o Borges, que via a conversa
apartar-se do tema.
— Completamente. Daí em
diante foi outro, ou antes, foi o mesmo homem que todos conheceram na época de
seu casamento. Aquele painel tinha operado nele uma verdadeira ressurreição.
Amália que tomara o seu lugar,
interrompeu de novo o médico para insinuar uma observação maliciosa.
— Foi o painel, ou alguma
estátua?.
— Nós estávamos na sala de
pinturas, minha senhora.
— Pergunto se não seria
alguma estátua viva que operou 0 milagre da ressurreição. Alguma Madalena que
passava?.
— Não o conhece!
— Ou talvez o seu amigo seja
como certos escultores que compõem a sua estátua, tirando de cada modelo as
belezas que ele possui e combinando-as entre si.
O doutor Henrique Teixeira
fitou a moça com alguma surpresa. A candura do sorriso que brincava nos lábios
faceiros convenceu-o de que Amália não compreendia o alcance das palavras que
preferia.
O médico chegava da Europa
onde se tinha demorado quatro anos; e não sabia que a invasão do romance
realista que nos vem de Paris tem posto em moda certa gíria de cafés e
bastidores que algumas senhoras vão repetindo como linguagem de bom-tom sem
consciência das enormidades que às vezes escondem tais ditos espirituosos.
O Dr. Teixeira deixou passar
a observação da Amália; e, para não acentuá-la com uma pausa, continuou a
referir a Borges o episódio da viagem de Hermano.
— Pode acreditar no que lhe
digo. Carlos não tem o menor sintoma de perturbação mental. Nesse mesmo dia da
nossa visita ao Louvre emancipou-se da minha solicitude e viveu sobre si.
Depois que voltou ao Rio de Janeiro entretivemos uma correspondência seguida; e
nas suas cartas respirava certo contentamento intimo e sereno, que eu vim
encontrar na sua vida habitual.
— Então é feliz o seu amigo?
perguntou Amália.
— Acredito que sim.
— E o senhor afirmou que ele
não tinha esquecido a mulher e nem a esqueceria nunca?.
— Afirmei, e posso prová-lo,
acudiu Henrique Teixeira picado pelo remoque da moça.
— Há de ser difícil.
— Promete-me guardar reserva
sobre o que lhe contar?.
— Mais do que reserva.
Prometo-lhe não acreditar nem uma palavra do seu romance, o que não me impedirá
de aplaudi-lo, se for interessante como espero.
Nesse momento a sala
enchia-se de convidados; e o piano dava o aviso da primeira quadrilha.
Amália tomando o braço de
seu par, separou-se do doutor com esta palavra, confeita em um sorriso:
— Depois.
CAPÍTULO 5
Em meio da partida, quando
servia-se o chá, Amália com um aceno do leque indicou a Henrique Teixeira uma
cadeira que vagara a seu lado.
— E o nosso folhetim?.
— Refleti, D. Amália; o
melhor é falarmos de outra coisa.
— Confessa, portanto, que
seu amigo é como os outros; mais um exemplar desse compêndio já muito conhecido
que se chama marido.
— Não, senhora, não
confesso; calo-me. Não devo expor à sua zombaria a vida intima do amigo que
mais prezo.
— Esta reflexão, devia tê-la
feito em principio, doutor. Depois de haver-me aguçado a curiosidade, está na
obrigação de satisfazê-la, e é o mais prudente. porque o seu silencio
compromete o seu amigo.
— Em quê?.
— Dá-me o desejo de fazer
acerca dele, e acerca dessa vida intima que não pode ser profanada, as mais
extravagantes suposições.
— Esta razão me decide.
— A outra devia ter a
preferência, por fineza ao menos.
— Qual outra?.
— A de duvidar da minha
discrição.
— Perdão; eu a ofenderia se
acreditasse nela. Seria .
suspeitar de seus dezoito
anos, e fazer brancos ou grisalhos tão belos cabelos louros. — Entretanto há
pouco pedia reserva aos meus belos cabelos louros, observou Amália com um gesto
encantador.
— Sem dúvida. A reserva que
eu lhe pedia era a de contar a história tão enfeitada que já não fosse a mesma
referida por mim.
— Terei esse cuidado; e até
me incumbo de ilustrá-la com retratos. Mas antes de tudo preciso conhecê-la.
— Então quer ouvir?.
— E dispenso o prólogo.
— Voltando da Europa, há
três meses, passei os primeiros dias em casa de Carlos, que me esperava e foi
buscar-me a bordo. Chegamos a São Clemente pela manhã; e depois do banho
clássico, nos reunimos em uma sala, que fazia parte dos aposentos da mulher e
onde esta mais assistia. Notei então que ele, algumas vezes, distraidamente,
voltava-se para o sofá, permanecia por momentos com os olhos fitos na almofada
de veludo a que habitualmente se recostada D. Julieta.
— E suspirava naturalmente
ou enxugava a furto uma lágrima silenciosa que lhe queimava a face? perguntou
Amália com seriedade picante.
— Não; ao contrário,
soma-se.
— Deveras! O seu herói tem
um cunho original. Estou me interessando por ele.
— A sala em que nos
achávamos, e a presença de Carlos, a quem revia depois de anos de ausência,
remontavam o meu pensamento aos primeiros tempos de seu casamento, em que
tantas vezes nos reuníamos ali em família, ele, sua mulher e eu. Parecia-me ver
ainda o talhe elegante de D. Julieta, que nos escutava, atenta, enlevada na voz
do marido, e dando-nos de vez em quando, com uma observação espirituosa, o tema
da conversação E essa evocação entristeceu-me. Entretanto Carlos estava
contente; e no seu semblante respirava a satisfação d’alma. Supus que era o
prazer da minha volta; mas não podia conciliá-lo com as recordações vivas que
se estavam traindo nos seus gestos.
— Essas recordações eram
puramente cacoetes de viúvo.
— Vai ver. Pouco depois o
Abreu chamou-nos para o almoço. Carlos tomou o seu lugar de costume; eu
sentei-me defronte e notei logo que havia um talher em frente à cadeira de
honra, outrora ocupada pela dona da casa. Tínhamos pois uma terceira pessoa;
talvez alguma velha parenta de Carlos.
— E por que não seria alguma
prima moça e bonita, que viesse tentar aquele modelo de constância? Aposto que
adivinhei.
— Não adivinhamos, nem a
senhora, nem eu. O Abreu serviu-nos e eu a convite do dono da casa almocei com
apetite de viajante. Uma coisa me causou reparo Quando Carlos incumbia-se de
trinchar depois de fazer o prato para mim, fazia outro que passava ao Abreu.
Este em vez de advertir o amo da sua distração colocava o prato na cabeceira.
sobre o terceiro talher intacto, e o meu amigo tirava para si nova porção; depois
o criado mudava todos os três talheres.
— Ah, percebo Um eclipse
matinal da estrela.
— Ao jantar reproduziram-se
todas estas circunstâncias que referi. A cadeira continuou vazia, sem a menor
observação do dono da casa, e o talher de estada foi ainda servido duas ou três
vezes. Cresceu porem a minha surpresa, quando na ocasião de tomarmos café,
Carlos continuando a conversa, preferiu o nome da mulher, mas de modo que
parecia indicar a sua presença.
Amália deu uma risada.
— Não é romance, então. É Um
conto fantástico!….
— Estou referindo fatos de
vida real. A senhora dar-lhes-a o titulo que for mais do seu agrado.
— Bem; vamos ao resto. Eu
gosto mais deste gênero. Tem sua novidade.
— Como lhe disse passei
algum tempo na companhia de Carlos; e do que observei depois, assim de umas
revelações a custo obtidas do Abreu, compreendi o que a principio me pareceu
estranho.
— Ou por outra, compreendeu
o incompreensível.
— Para aquele marido a
mulher que ele amou estremecidamente ainda habita a casa, que ela enchia de sua
graça e de sua ternura. Ele á sente perto de si, a seu lado, nas horas em que
trocavam suas mútuas expansões, e nos lugares que ela preferia.
— É poético e sublime não
pode negar.
— Os aposentos particulares
de D. Julieta estão da mesma forma como ela os deixou. Não há ali a menor
mudança; os mesmos trastes os mesmos objetos, e cada um como ela os colocara.
Ninguém a i penetra senão Carlos e o Abreu. Esse criado velho adorava a menina,
que ele trouxe nos braços desde o dia de seu nascimento. Também para ele, a
dona da casa ainda vive, e governa o interior.
— Temos, pois, aqui na
vizinhança Um hospital de doidos! atalhou Amália.
—Não me entendeu.
— Ora, seriamente, doutor, o
Sr. comprometeu-se a si e ao seu sexo. Obrigou-se a apresentar um modelo de fidelidade
conjugal e só o pode encontrar como enfermidade. Confesse: a constância de seu
amigo é apenas uma mania, e o Sr. não foi sincero quando, há pouco, pretendeu
convencer ao Borges.
—Tão sincero como agora.
Carlos não tem o menor eclipse na sua razão calma e forte.
— Mas como se chama essa
alucinação?.
— É uma superstição a que
estão sujeitos todos os que vivem pelo espírito.
— Não sabia.
—Só não as têm os
materialistas, aqueles para quem Deus é um absurdo, a pátria e a família uma
comandita; gente que reduz a inteligência a um pouco de fósforo, e a virtude a
uma convenção. Esses vivem fisicamente; são corpos que se transformam. Nós,
porém, que nos remontamos à nossa origem divina, todos temos nossas abusões.
— Eu não as tenho.
— Tem, afirmo-lhe. Mas as
suas abusões são risonhas e brilhantes; chamam-se esperanças. As suas orações
também… Quantas vezes não acreditou a senhora, que Deus, o criador do
infinito, comovido por sua prece, alterava as leis do universo para enxugar-lhe
uma lágrima, ou dar-lhe um sorriso? O que é isto senão uma superstição?.
— Bem diversa da que tem seu
amigo.
— A senhora nunca perdeu uma
pessoa a quem amasse. Aqueles que já sofreram esse golpe, quando visitam o túmulo
que encerra as cinzas do ente querido, acreditaram que ali está alguma coisa
deles, a sua sombra, a sua alma quando ali não há senão pó P o mesmo que
acontece a Carlos, com Uma diferença: nos outros são os vestígios materiais, é
o despojo mortal, que produz aquele efeito; nele é o espírito Unicamente. O que
ele sente, o que vê, é a alma da mulher.
— Chega a vê-la? disse
Amália cuja ironia nada perdoava.
— Com os olhos d’alma. O
como nada é e nada era para ele. Desde o momento em que D. Julieta morreu, ele
a abandonou como um objeto indiferente, e não teve o menor desejo de vê-la.
Isto observei eu.
— Em todo caso, doutor, para
fazer-lhe a vontade, convenho em que seu amigo será um homem de muito juízo,
mas não aqui neste mundo; no da lua talvez.
— Devo dizer-lhe que a
principio também inquietou–me aquele estado; busquei um pretexto para tocar
nesse ponto delicado. Carlos compreendeu-me logo e respondeu com franqueza:
“É verdade, há ocasiões em que sinto Julieta perto de mim, e em que vivo
com ela como outrora. E a sua alma que me acompanha ou é a minha lembrança que
a tem sempre viva e presente ao meu espírito? Seja o que for, isso me consola e
me restitui a felicidade que perdi. Que necessidade tenho eu de investigar este
mistério ou dissipar esta ilusão? Não há maior mistério e maior ilusão do que a
vida; e nos vivemos sem conhecer, nem a nossa origem, nem a realidade de nossa
existência”. Eis as palavras que ele me disse, e com a maior simplicidade
e placidez de animo. A razão e a ciência não teriam outra linguagem; e quer a
senhora que eu qualifique.
CAPÍTULO 6
No dia seguinte à partida,
pelo fim da tarde, a família Veiga achava-se reunida como de costume na
varanda, que ficava à esquerda, no centro do edifício.
Tinham-se levantado da mesa
de jantar e tomavam café gozando da fresca.
D. Felícia conversava com o
marido acerca do Dr. Henrique Teixeira. Tinha ela notado o interesse e atenção
que a filha mostrara ao médico, a quem vira na véspera pela primeira vez, assim
como a rápida intimidade que se estabelecera entre ambos.
Talvez que esse impulso da
moça tão volúvel e caprichosa sempre com os outros, e ainda mais com os seus
apaixonados, fosse o indicio de uma inclinação nascente. O Sr Veiga acolhia
pressuroso essa esperança, felicitando-se com a mulher pela realização do seu
mais ardente desejo e, como homem positivo, pensava já nos meios práticos de
efetuar o negócio:
—Amanhã mesmo vou tirar
informações, disse ele, e acrescentou logo: por cautela! Mas estou convencido
de que hão de ser das melhores. Pareceu-me homem sério.
Enquanto os pais, à meia
voz, se ocupavam do seu futuro, Amália percorria a varanda, repetindo de
memória, samezzo, a sua parte do dueto, cantado na véspera. Avivava assim a
recordação dos aplausos que a tinham saudado nos trechos mais lindos; e ao
mesmo tempo apreciava severamente a sua execução, para corrigi-la e dar-lhe
maior realce.
Aproximava-se às vezes do
balaústre onde colocara a taça de porcelana e molhava no café já frio os
lábios, que ela sugava depois com um gesto gracioso para continuar os seus
exercícios de vocalização.
Em uma dessas ocasiões seus
olhos caíram sobre a casa vizinha, que muitas outras vezes lhe tinha da mesma
forma interceptado a vista, sem que excitasse o menor reparo de sua parte. Era
um edifício como qualquer de tantos que povoavam a rua por todos os lados.
Nesse momento, porem, seu
espírito recebeu uma expressão mais definida. Lembrou-se de que era aquela a
habitação desse Carlos, de quem na véspera lhe falara com tanta amizade e calor
o Henrique Teixeira.
Todas as particularidades de
sua conversação com o médico com acudiram à mente. Esquecendo o dueto, repassou
de memória as que ouvira acerca do viúvo e então, como já não estava dominada
do sestro de motejar e meter a ridículo tudo quanto era sentimental,
compenetrou-se mais das observações do doutor e dos fatos por ele referidos.
Quando absorta nestes
pensamentos olhava o edifício meio oculto pelos bambus e avermelhado pelo
arrebol, viu Hermano que passava entre as árvores, e aproximava-se do banco
favorito.
A moça, disfarçando a sua
curiosidade, recolheu o airoso busto na penumbra da coluna, para observar o
solitário passeador, que se sentara a pequena distancia do muro da chácara, em
lugar onde ela o via perfeitamente por entre a folhagem.
Impressionada pela narração
de Teixeira, examinou a fisionomia, e notou que ela não tinha nesse momento a
expressão de recolhimento e abstração própria do homem que está só. O seu olhar
não era de contemplação; animava-o o raio do espírito em comunicação com outro
espírito não era o olhar que vê, mas o olhar que fala, que transmite a
impressão em vez de recebê-la.
Uma vez Hermano ergueu-se;
foi até a platibanda, colheu uma flor um lírio, e tomando a seu lugar,
conservou-o na mão com o gesto expressivo de quem o mostrasse a outrem sentado
à sua direita.
Então operou-se em Amália Um
fenômeno psicológico estranho para ela que vivia unicamente no presente, porém
em si mui natural e frequente. Assim como na tela de Um transparente as figuras
assomam de repente quando as colocam a contraluz da mesma forma na memória da
moça desenharam-se cenas da infância esquecidas por tantos anos.
Pareceu-lhe que via como
outrora os dois noivos sentados no mesmo banco à sombra dos bambus. Uma tarde
Hermano tinha colhido a mais linda flor do lírio e a apresentara à mulher
dizendo-lhe:
— É a tua imagem.
— Então guarda-a, respondeu
a mulher; e inclinando-se sobre a flor, bafejou-a com o hálito. Dei-lhe Um
pouco de minha alma.
A travessa menina debruçada
sobre o moro ouvira esse rápido diálogo, de cujas palavras agora se recordava
como se as estivesse escutando. Hermano tinha guardado a flor, que ele aspirava
com delícia, sorrindo à mulher.
Lá estava ele ainda, com a
flor, o gesto e o sorriso que ela vira cinco anos antes; só faltava a noiva.
Então Amália revolveu debalde a memória na esperança de achar aquela imagem que
se esvanecera tentou recompor com os traços fugitivos de suas recordações
aquela meiga figura, mas não o conseguiu.
No vislumbre de suas
reminiscências aparecia Um vulto formoso e elegante; mas ela não podia
distinguir-lhe as feições; e isso a contrariava. Sentia Um desejo de rever
aquela moça, de conhecê-la agora que era moça também. Talvez viessem a ser
amigas; com certeza o seriam; e que prazer não lhe daria a sua intimidade!
Estas vagas aspirações,
Amália não as cogitou; despontavam em seu espírito de envolta com as
recordações do passado, e apagavam-se logo.
Amália tinha muitas vezes
lido em romances Uns lirismos de amor semelhantes àquele bafejo da flor; e
sabia que nos bailes e na vida real eles eram frequentemente copiados e até
exagerados pelos noivos.
Todo esse formulário poético
do namoro, ela o achava sumamente ridículo; e sempre que o apanhava em
flagrante, o havia aplaudido com uma risada gostosa, como um lance de comédia.
Entretanto agora que o terno
sentimento pela mulher devia parecer-lhe ainda mais extravagante, pela
circunstância de não ser já senão uma mímica, bem longe de excitar-lhe o riso,
ao contrário a tinha comovido.
Assim devia ser. O gesto de
Hermano por mais excêntrico e singular que fosse, aparecia-lhe através da morte
cuja sombra o envolvia. Não era uma fineza banal de namorados, nem uma afetação
vã. Havia naquele diálogo mudo a comunicação de duas almas cujo elo o túmulo
não tinha partido.
Quando o viúvo afastou-se na
direção da casa, Amália sorriu-se; mas de si, de uma idéia de menina.
Lembrou se do desejo que
tivera outrora de achar um noivo como aquele, que a adorasse, como ele adorava
a mulher, e lhe desse muitas joias, muitas fitas, muitas galantarias.
Tinham corrido os anos. Ela
ficara moça e era bonita; alguns diziam muito bonita, e ela concordava com
estes. Seria mais bonita do que a outra, que ela invejava? Não sabia, e tinha
Uma certa curiosidade de verificar esta circunstância.
Não lhe faltavam noivos; ela
poderia ter escolhido um entre muitos tão elegantes como esse, talvez mais
sedutores. Entretanto os desdenhara a todos; e não sentia o menor entusiasmo
pelo casamento.
De que provinha isto?.
Nessa noite Amália foi com a
família ao teatro. Enquanto se vestia e durante o espetáculo, seu espírito
algumas vezes se desprendia das impressões do momento para insistir naquela
interrogação.
Até então nunca se
preocupava com o motivo de sua isenção. Era uma questão de gosto. Uns apreciam
a música mais do que a pintura; há quem não pode suportar o burburinho da
cidade, entretanto que outros detestam a monotonia campestre.
Ela preferia a vida de
solteira, por ser mais livre, mais divertida e mais tranquila.
Ao recolher-se, avistando a
casa vizinha, voltaram-lhe de tropel todos os pensamentos, que a cena da tarde
lhe tinha sugerido. Mas apenas esvoaçaram um instante pela fantasia, e
submergiram-se no repouso de um sono forte e calmo, o sono da saúde e da
mocidade.
Pela manhã, ao acordar,
dissipado o primeiro torpor que deixa a longa síncope da vida moral, a moça
encontrou em seu espírito a explicação com que não atinava na véspera.
Até então não conhecia senão
a aparência do casamento, essa face material, que se vê de fora, e compõe a sua
fisionomia social. Agora compreendia que essa união era mais do que um modo de
vida; mais do que um hábito e uma conveniência. Era, devia ser, um destino.
Aquele marido, não só fiel à
memória de sua mulher mas unido a ela como no primeiro dia de seu amor; essa
afeição alheia ao mundo e indiferente às vicissitudes da vida, fora uma
revelação para Amália.
Entretanto esta revolução,
que subitamente se tinha operado em suas ideias, produziu efeito oposto ao que
talvez se devesse esperar. Bem longe de conciliá-la com o casamento, ao
contrário, acabou de afastá-la.
Se até então ela evitava
essa ligação como um transtorno à sua mocidade e uma contrariedade à sua
índole, atualmente a considerava como um perigo, e um grande perigo.
Unir-se a outro homem, que
não fosse o marido esperado, não seria falhar a seu destino. sacrificar a
existência inteira e condenar-se ao eterno suplício de um cativeiro cheio de
humilhações?
CAPÍTULO 7
Desde aquele dia, que se
pode chamar de sua conversão, Amália ocupou-se com a casa vizinha, que dantes
não lhe merecia a menor atenção.
Agradava-lhe a chácara, o
edifício, as árvores. Achava-lhes alguma coisa de particular, embora não
tivessem realmente de notável senão a solidão e o silêncio que os cercavam.
Acompanhava os movimentos da
habitação Ligava aos mais casuais e ordinários alguma significação. Uma janela
que se abria, um rumor qualquer, eram como o gesto ou a palavra do edifício,
que para ela tinha uma vida, uma história, uma individualidade.
Por Hermano, Amália sentia
um indefinível respeito. Parecia-lhe que via nele pela primeira vez um homem.
bem diverso da gente que povoava as salas e ruas. Nesse habitava uma alma: e
era uma alma superior ao mundo, que tinha o seu mundo em si.
Ela, que dias antes ria do
espiritualismo de Henrique Teixeira, a propósito do amigo, enlevou-se depois
numa ideologia ainda mais abstrata; e achava simples, naturais, evidentes, os
fatos que sua imaginação fantasiava.
Julgara a princípio uma
demência, essa ilusão em que vivia Hermano. Entretanto que exagerava agora
aquele fenômeno moral, e atribula uma intenção misteriosa aos menores
incidentes.
Por quem Amália, porém, mais
se interessava era pela pessoa que já não existia: pela mulher que Hermano
amava. Ela a considerava já como uma irmã sua evocava a sua imagem, falava-lhe
e ficava contente de vê-la feliz por ter inspirado ao marido aquele amor
indelével.
Avivava-se-lhe o pesar de
não a ter conhecido e de não lembrar-se de suas feições Desejava tanto
contemplar-lhe a beleza, ainda que fosse de memória! Hermano possuía
necessariamente um retrato fiel de sua Julieta. Que não daria ela para vê-lo?.
Essa mulher que havia
merecido um amor tão puro completamente desprendido dos interesses e misérias
sociais; que expressão, que encanto especial, que magia celeste possuía a sua
beleza?.
Às vezes Amália tinha uma
vaga reminiscência da alvura deslumbrante de sua tez; do brilho sereno dos
olhos; da suave inflexão do talhe.
E insensivelmente
comparava-se a esse modelo; e sorria-se com desvanecimento, porque achava em si
uns traços de semelhança.
A sociedade começou a
mostrar-se à moça por um novo aspecto.
As futilidades brilhantes
que dantes a alegravam e que ela chamava as flores da vida, tornaram-se para
seu espírito mais calmo, flores do vento, rosas efêmeras e sem perfumes; e foi
assim que a pouco e pouco se isolou do mundo. Sentia um tédio indefinível pelos
divertimentos, e só achava prazer na solidão.
O Sr. Veiga havia colhido
acerca de Henrique Teixeira boas informações. Era médico de talento e podia
contar com um brilhante futuro, se não lhe faltasse a qualidade preciosa de
saber-se apresentar.
Essa qualidade não é tão
comum como se pensa; o que se encontra a cada passo e em todas as profissões é
o abuso dela, o vicio muito conhecido com o nome de charlatanismo. Não se
trata, porem. desse grosseiro arremedo, que está ao alcance de qualquer sujeito
desembaraçado, ainda mesmo ignorante e medíocre.
Os processos e fórmulas do
charlatanismo já se aperfeiçoaram de tal modo, que os adeptos não carecem mais
de gênio inventivo; tudo está feito, desde o anúncio ate à celebridade
artificial.
Aquele que precisa do
petrecho completo, médico, advogado ou artista, não tem mais do que pagar.
O que faltava a Henrique
Teixeira não era pois essa fancaria a que o seu caráter não se prestava; era
sim a verdadeira e fina arte social que ensina o homem a pôr em relevo o seu
merecimento e atenuar os seus defeitos, sem hipocrisia, unicamente pela simples
reserva e discrição.
Os painéis dos melhores
mestres carecem de uma posição favorável para mostrarem todas as suas belezas;
colocados contra a luz ou de esguelha desmerecem completamente e confundem-se
com qualquer pintura. Assim são os homens na sociedade A atitude é tudo: quase
sempre decide de uma carreira.
O Sr. Veiga era homem
prático e muito conhecedor do seu mundo. Apreciou pois no justo valor a
observação do amigo que lhe prestava esta informação; mas também sabia ele que
a riqueza supre perfeitamente na sociedade a virtude, o talento, o saber, e até
a afeição.
O marido de Amália com
duzentos contos de réis de dote, e o dobro em perspectiva, não precisava de
apresentar-se; estava apresentado pela fortuna. Tinha um pedestal; todos o
haviam de ver. Nenhuma necessidade teria ele de insinuar-se de agradar por suas
maneiras quando podia impor-se. Que melhor anúncio e mais pomposo elogio do que
um lindo carro tirado por formosa parelha de cavalos do Cabo, a percorrer as
ruas da cidade e a excitar a atenção pública?.
Em conclusão, o Sr. Veiga
calculou que o Dr. Henrique Teixeira lhe convinha para genro especialmente pela
circunstância mui importante de mostrar Amália por ele uma inclinação decidida.
Depois da noite da
apresentação o médico fizera à família a visita de rigor; e nessa ocasião ainda
Amália o acolhera com a maior afabilidade, insistindo para que não faltasse às
partidas. Além disso D. Felícia, que se incumbira de sondar as disposições da
filha não teve necessidade de usar de sua diplomacia. A moça, espontaneamente e
sem reticências, manifestou a impressão agradável que o médico deixara em seu
animo.
À vista disto não restava
senão entabular a negociação que o Sr. Veiga queria terminar logo e de pronto
com a decisão que punha em suas transações. D. Felícia, porém, foi de opinião
que se deixasse as coisas seguirem o seu curso natural, facilitando-se apenas o
seu casamento.
Este último alvitre
prevaleceu. O Sr. Veiga pagou a visita ao Dr. Henrique Teixeira, e convidou-o
para o jantar de família, combinação lembrada pela mulher para introduzir na
intimidade da casa o suposto pretendente que não era realmente senão um
pretendido.
O doutor foi assíduo às
partidas Amália continuou a distingui-lo com uma atenção especial,
deleitando-se na sua conversa. Falavam acerca de Hermano; a moça interrogava
amiúde e ouvia com avidez.
Não precisou o médico de
grande perspicácia para conhecer que esse interesse tão vivo da moça denunciava
uma afeição nascente, mas profunda. Hermano ainda ignorava naturalmente; mas
quando viesse a conhecê-la poderia ele partilhá-la?.
Henrique era um tanto
fisiologista. Ele acreditava que a natureza amante e apaixonada de Hermano
carecia de uma forte expressão de afeto; e por isso revivia Julieta, para
adorá-la. Desde, porém, que outra mulher o impressionasse, ele transportaria
aquela adoração para o novo ídolo e continuaria neste o mesmo amor romanesco.
E que mulher estava mais nas
condições de causar essa impressão viva do que Amália, cuja beleza luminosa e
esplêndida raiava dentro d alma como uma aurora de amor?.
O médico afagava esta
esperança. Ele compreendia a necessidade de subtrair o amigo à constante
preocupação que lhe consumia parte da vida. Esse estado em todo caso não era
natural; cumpria que cessasse. Para isso o primeiro passo era aproximar Hermano
da mulher, que c podia salvar.
Entretanto, parecendo a D.
Felícia muito lenta a marcha dos acontecimentos, consultá-lo resolveu ela
provocar uma explicação. Mandou chamar o médico para consultá-lo sobre a saúde
da filha, cuja mudança já a inquietava.
Expôs o desejo que ela e o
marido tinham de ver Amália casada Descreveu o tipo do noivo que preferiam; e
apesar de sua modéstia Teixeira foi obrigado a rever-se naquele retrato físico
e moral, como em um espelho do melhor aço. Finalmente rematou dando ela uma consulta
matrimonial ao médico, em vez da consulta profissional que devia pedir a este.
— Amália gosta de alguém,
doutor. Tenho a certeza.
— É natural D. Felícia, e
até muito provável.
— E o Sr. sabe quem é?.
— Não devia entrar em
assunto tão delicado; mas a sua confiança minha senhora, a estima que consagro
a toda a sua família, e o deseje de concorrer para a felicidade de duas pessoas
que tanto merecem impõe-me esse dever.
Henrique revelou o segredo
de Amália. D. Felícia caiu das nuvens Não podia crer. Apenas retirou-se o
médico, ela dirigiu-se ao aposente da filha.
Amália, de pé junto à
janela, com a fronte apoiada na aba da porta, tinha os olhos presos na casa
vizinha; e tão absorta nessa observação, que a mãe aproximou-se e ficou muito
tempo a fitá-la, sem que ela percebesse.
D Felícia não duvidava mais.
Teixeira tinha razão. Amália amava Hermano e era um amor veemente que se lia em
seu formoso semblante como em uma página aberta.
— Queres casar com ele?
perguntou a senhora afetuosamente.
Amália estremecera a essa
voz. Com as faces inflamadas pelo pejo e os olhos em pranto, atirou-se nos
braços da mãe e escondeu o rosto no seio dela.
D. Felícia acariciou-a com
ternura e repetiu a pergunta que a moça escutara da primeira vez.
— Casar?… Com quem?…
interrogou ela atônita.
— Com ele! com o Hermano.
Uma palavra prorrompeu do
seio da moca, como a explosão d sua alma.
— Nunca!
E desprendeu-se dos braços
da mãe, com uma violenta expressa de pavor.
Amália passava pelo mesmo
espanto que teria se sua mãe lhe e acabasse de propor para marido um homem
casado.
CAPÍTULO 8
A primeira abertura de D.
Felícia com Henrique Teixeira estabeleceu entre ambos uma confidencia constante
sobre o delicado assunto do casamento de Amália.
Ambos empenhavam-se na
realização desse projeto do qual esperava cada um a ventura da pessoa que lhe
era tão cara. Se a graça e os dotes da moça tinham cativado a simpatia do
doutor, que já a estimava como outra Julieta também D. Felícia seduzida pelo
entusiasmo do amigo, queria a Hermano como a um filho e apreciava o seu caráter
leal e generoso.
Logo no dia seguinte, aflita
com o modo por que Amália recebera a idéia do casamento, e o terror de que se
possuíra, a mãe comunicara ao médico esse fato tanto mais inexplicável, quanto
a filha traia nos seus menores gestos um amor irresistível por Hermano.
Henrique Teixeira
compreendeu logo o sentimento de Amália. Essa moça, outrora tão positiva,
pairava agora no mundo da fantasia. Desde que Julieta vivia para o mando, e o
acompanhava ainda e sempre, esse marido não era para a moca um viúvo, e o seu
casamento com outra mulher seria um crime um adultério.
Não pareceu prudente ao
médico explicar a D. Felícia o que influíra realmente no animo da filha, e
evitou de tocar em qualquer particularidade da viuvez do amigo para não
assustar a senhora. Atribuiu o espanto e emoção da moça à repugnância que ela
mostrara sempre pelo casamento, e de que anteriormente fora informado.
D. Felícia aceitou esta
razão, porque não descobria outra; e combinou com Teixeira os meios de destruir
aquela prevenção Deviam começar por estabelecer relações entre os dois
apaixonados. A senhora os chamava assim, na convicção em que estava de que
Hermano não podia deixar de ter por Amália um amor ainda mais veemente do que
soubera inspirar à filha.
O doutor incumbiu-se de
apresentar Hermano em casa do Sr. Veiga. Essa tarefa não era tão fácil como
parecia: ele tinha de lutar com uma das regras invariáveis a que o amigo
submetera a sua existência, desde a viuvez.
Quando não se achava nos
seus dias negros, dominado pela obsessão que era talvez uma recaída do letargo
causado pela morte da mulher, Hermano frequentava a sociedade, e concorria aos
divertimentos como no seu tempo de casado. Encontrando nos bailes alguma amiga
de Julieta dançava com ela e a festejava. Não tinha os sestros do viúvo. Não se
enternecia, nem suspirava falando do golpe que sofrera; ao contrário mostrava
um doce regozijo ao avivar recordações de sua felicidade.
Mas também repelia toda
inovação.
A sua vida parara no momento
em que Julieta morrera, deixando-o o, e portanto mutilando-lhe o ser. O que ele
fazia depois disso não era mais viver; e sim reviver o passado, remontar o
curso dessa existência dupla, que absorvera sua individualidade.
Não tinha relações nem amizades
que não fossem daquele tempo. Se o acaso o punha em contato com outras pessoas,
tratava-as sempre como estranhas, e não guardava lembrança desses nomes nem
dessas fisionomias desconhecidas.
Não visitava família que não
tivesse frequentado com a mulher.
Henrique portanto contava
que o primeiro impulso do amigo seria recusa formal de acompanhá-lo à casa do
Sr. Veiga; e cogitava pretextos para induzi-lo e demover-se uma vez da sua
inabalável resolução.
Em suas conversas acerca de
Hermano, Amália tinha pedido ao doutor que lhe fizesse o retrato de Julieta; e
nessa ocasião lhe dissera que outrora, bem menina, a tinha visto muitas vezes,
mas não se podia lembrar da fisionomia.
Henrique também não se
lembrava senão dos cabelos negros e da alvura da tez; do mais não reparara ele
senão na graça que envolvia e iluminava toda a pessoa de Julieta. De sorte que
Amália nada colheu além do que sabia.
Sobre estas circunstâncias
que a moça lhe referira de sua meninice, o médico propôs-se a bordar um conto
que despertasse a curiosidade de Hermano. Falou-lhe da vizinha que se lembrava
muito de D. Julieta e imaginou entre ambas uma semelhança, que não o podia
comprometer na sua opinião. Amália era uma beleza deslumbrante que ofuscava a
outra.
Hermano, não mostrou o menor
desejo de conhecer a moca: quando Teixeira o convidou para acompanhá-lo à casa
do Sr. Veiga ele respondeu simplesmente:
— Não o conheço.
— Mas ele te visitou quando
mudou-se para tua vizinhança Disse-me a senhora.
— Não sei.
O doutor compreendeu que só
havia um meio de arrancar o amigo àquela vida abstrata. era perturbar o seu
recolhimento, quebrar os seu hábitos, agitar-lhe o espírito. Antes de fazê-lo
hesitou. Tinha ele certeza de dar felicidade a Hermano? Não seria cruel
dissipar-lhe a doce ilusão em que vivia para lançá-lo em uma triste realidade?.
Era caso de refletir.
O pavor que produzira em
Amália a idéia de casar-se com Hermano, deixou em seu espírito uma impressão
profunda, que só mais tarde se foi desvanecendo.
A chácara vizinha excitava
nela um sentimento de repulsão; desviava os olhos daquela direção; passava os
dias fora para fugir a essa vista que a incomodava. Foi para o Andaraí estar
uma semana com tia.
A ausência acalmou a sua
agitação. Voltando a casa, D. Felícia acabou de tranquiliza-la. Disse-lhe que
tivera aquela idéia, por desconfiar que Hermano lhe agradava, mas desde que ela
rejeitava o partido não devia pensar mais nisso; pois nunca se casaria senão de
sua livro vontade e com um homem que escolhesse.
— Mas ele, mamãe, soube de
seu desejo? perguntou Amália inquieta.
— Não; foi só lembrança
minha. Ele não deu nenhum passo.
— Se nem me conhece!
Esta conversa dissipou o
susto da moça. Aquele interesse que ele havia tomado pela constância do viúvo,
tomou-se inocente como dantes. Ela podia sem receio, e sem vexame, abandonar-se
de novo ao impulsos desse capricho.
Voltou pois à contemplação e
devaneio, em que se esquecia a observar os movimentos da habitação vizinha.
Uma tarde, Hermano não veio
como de costume sentar-se no banco dos bambus. Ela impacientou-se com a demora;
lastimou Julieta por aquela primeira inconstância; e afigurou-se-lhe ver a
esposa desdenhada suspirando na sua tristeza e abandono.
Pouco tempo depois Hermano
saia à chácara acompanhado de Teixeira, e dirigiu-se para o sítio habitual.
Advertindo, porém, que na estava só arredou-se e foi sentar-se longe com o
amigo.
Amália adivinhou então a
causa da ausência que a afligira. Perdoo a Hermano em nome de Julieta;
condoeu-se da contrariedade que ei devia sofrer naquele momento; e irritou-se
contra o Teixeira que vier disputar o amigo ao amor da mulher e obrigá-lo a
parecer ingrato.
À noite fechada Amália via
através da folhagem brilhar a luz do gás nas janelas que ela sabia serem as dos
antigos aposentos de Julieta; nessa ocasião murmurava:
— Está junto dela.
Recordava-se então da vez em
que os vira ali outrora. dos beijo que Hermano dera na mulher, e do rubor da
noiva quando percebe que alguém os espiava, e que na de sua ternura. momentos
repreendia-se por aquela travessura de criança, de que se envergonhava.
Henrique Teixeira lhe
dissera que esses aposentos ainda estavam como Julieta os deixara. Que vontade
não tinha de os ver de novo, e agora que podia melhor apreciá-los! Ás vezes
dirigia-se para o terraço donde antigamente espreitava os noivos. Mas a
delicadeza de seus sentimentos a retinha. Repugnava-lhe espiar a casa alheia, e
abaixar-se a essa curiosidade leviana.
Notou, porém, que as rótulas
estavam constantemente fechadas; portanto ela podia sem indiscrição
aproximar-se dessas janelas. Para quê? Para estar mais perto, para ter uma
esperança vaga e ilusória de ver aquilo que fugia de olhar.
Em uma noite cálida e
abafada, a moça recostada à leiva de grama, fatigava, como de costume, os seus
belos olhos em distinguir umas sombras fugitivas e confusas que se agitavam por
dentro das venezianas.
As rótulas estavam apenas
cerradas, o que ela notou pela estreita faixa de luz que indicava o interstício
das duas abas não ajustadas. A principio teve escrúpulo; mas como era
impossível enxergar por aquela fresta deixou-se ficar.
Instantes depois a moça caiu
de bruços sobre o respaldo de grama, sufocando nos lábios o grito doloroso que
lhe estalara no seio.
CAPÍTULO 9
Soprava a viração da noite.
O primeiro luto. cortando o
ambiente cálido e estagnado e derramando no ar uma onda de frescura, rugitou
pela folhagem das mangueiras.
Com a rajada, as rótulas se
tinham afastado de modo a mostrar no quadro da janela o interior do aposento.
No centro havia uma mesa de
charão com um vaso de rosas, colhidas naquela tarde. Amália vira quando Hermano
as cortara da haste e pensou então que eram uma oferenda do mando à esposa
querida. Naturalmente iam ornar o seu toucador.
Junto do vaso estava aberta
uma caixa de carvalho com preparos e utensílios de flores artificiais; e na
beira da mesa uma peanhazinha de bronze que mantinha direita na sua haste de
arame uma rosa de pano ainda por acabar.
Hermano sentado ao lado com
um livro aberto lia a meia voz; e embora o sussurro de suas palavras se
perdesse nos rumores da noite, podia Amália mesmo de longe ver-lhe o movimento
dos lábios.
Mas não foi nada disto o que
feriu a alma da moça, quando a veneziana aberta patenteou-lhe aquela cena.
Em face de Hermano e também
sentada como ele Amália viu. cheia de espanto, uma mulher. Era moça e de rara
formosura. Na posição que tomara, o seu talhe moldado por um vestido simples e
justo, de azul à princesa, desenvolvia-se com um garbo indefinível.
A madeixa de cabelos negros
sombreava o níveo fulgor do semblante, cujo delicado perfil pareceu a Amália
ser talhado em um jaspe macio e diáfano, tão suave era o tom dessa carnação.
Descansava sobre a mesa um
dos braços, cuja perfeição estética aparecia no esvazado da manga, e tinha a
fronte ao de leve reclinada para a espádua, como uma flor que se realça para
haurir a luz e os orvalhos do céu.
Amália compreendeu essa
expressão de êxtase.
Pensou que a moça
interrompera o seu trabalho de florista para embeber-se no encanto de ouvir as
palavras de Hermano, o qual também abaixara o livro para contemplá-la e
encher-se de sua beleza.
Do primeiro relance Amália
não viu senão naquele aposento, que pertencia a Julieta: não sentiu senão o
golpe de tão indigna profanação; e foi este sentimento que lhe despedaçou a
alma em um grito de dor, e atirou-a convulsa e fulminada sobre o cômoro de
grama.
A cólera a reanimou.
Ergueu-se e foi então que viu tudo Seu olhar repassado de ódio correu todas as
linhas daquela estátua harmoniosa como o faria o severo buril de um escultor; e
não achou uma aspereza. um lisim. Ela poderia notar naquela fisionomia a
fixidez de expressão, que a amortecia; mas era precisamente essa elação do
amor, a maior sedução da rival de Julieta, a sua beleza ideal e celeste.
Um criado velho, o Abreu,
entrara no aposento. Arranjou os objetos que estavam sobre a mesa; colocou ali
uma salva com serviço de chá para duas pessoas; e reparando nas rótulas abertas
pelo vento, fechou-as com o trinco.
Amália não viu mais nada
senão a luz coada entre as lâminas das venezianas.
Não se imagina a indignação
que sublevou sua alma, quando refletiu naquele acontecimento.
Se um homem amado por ela,
depois de ter-lhe jurado fidelidade, a enganasse vilmente, não o puniria com o
desprezo, que tinha por Hermano nesse momento.
Era uma traição torpe e
infame a que havia cometido esse marido. Não lhe bastara esquecer a mulher,
faltar ao seu juramento Fez mais: insultou a sua memória, cobrindo com o véu de
uma constância exemplar outro amor, que ele próprio se envergonhava de mostrar
ao mundo.
Amália identificava-se com a
esposa traída; supunha Julieta rediviva em si e erguendo-se implacável para
castigar o pérfido marido.
Mas como? Morrendo outra
vez; porem morrendo eternamente para ele; rompendo a cadeia que os unia, e
abandonando-o a essa infeliz, como um sobejo da traição.
Nos dias que seguiram esta
cena, Amália foi má. Sua alma se tinha saturado de fel; os sentimentos
afetuosos eram recalcados por um despeito violento.
Anunciara-se a estreia de
uma companhia italiana no Teatro Lírico.
Amália assistiu à
representação. Queria vingar Julieta cobrindo de desprezo a todos os homens,
especialmente os homens que fingiam o amor. Desejava sobretudo encontrar
Henrique Teixeira para exprobrar-lhe a indignidade do amigo.
Os cantores eram medíocres
fossem embora insignes Amália não lhes prestaria atenção naquela noite. Abriu o
binóculo, e correu-o pelos camarotes, não para apreciar os trajes como
costumava, mas para os criticar e às donas também; para dar alvo a seu pungente
sarcasmo.
Em um camarote fronteiro
descobriu Hermano e perturbou-se.
Que vinha fazer aquele homem
ao espetáculo? Antes, devia este fato surpreendê-la; agora não; era tão
natural!
A mulher que em uma das
noites passadas ela vira no aposento da esposa traída a rival de Julieta, com
certeza estava no teatro; e o indigno amante só viera para acompanhá-la, e
gozar da admiração produzida por sua beleza.
Amália notou que Hermano,
apesar de estar só no camarote, deixara o lugar fronteiro à cena, e sentara-se
no outro voltado para o fundo da sala. Parecia escutar atentamente a ópera; mas
olhava com insistência para a segunda ordem.
Acompanhando a direção desse
olhar, Amália fitou um camarote diagonal ao seu. Havia ali uma mulher vestida
com muito luxo.
A sala de gorgorão verde com
rendas finíssimas atufava-se por entre as grades.
Estava de costas. A moca não
podia enxergar-lhe o rosto, que se retraia com o movimento do corpo ao
voltar-se. Descobria, porem. uma madeixa de cabelos negros; e descansando sobre
o acolchoado de veludo escarlate um braço alvo e torneado mesmo molde do outro,
que vira na mesa de charão.
Esta observação irritou a
indignação de Amália. Antes de terminar o espetáculo ela deu-se por incomodada
e realmente estava. Quando já se retiravam, apareceu Henrique Teixeira; a moça
não lhe deu atenção. A vontade que tinha de lançar-lhe em rosto a traição do
amigo cedera a outro sentimento , ao pudor Agora tinha vergonha de conhecer
essa intriga vil e de ocupar-se com ela.
Quando se esmerada na
cantoria, Amália tomara o hábito de recordar os trechos de ópera que ouvia no
teatro. Assim fixava as suas observações de véspera; imitava as belezas, e
corrigia o seu método.
Por isso ao acordar
lembrou-se do piano já tão esquecido; e depois do almoço dirigiu-se à sala. Se
ao recolher-se perguntassem que ópera se tinha cantado, ela com certeza não
poderia responder Agora, porém, recordava-se perfeitamente; fora a Lúcia de
Donizetti. A música ficara-lhe no ouvido.
Abriu a partitura e cantou a
parte de soprano. Disse admiravelmente o delicioso allegro da fonte; mas na grande ária da loucura excedeu-se. Não era
o delírio da noiva escocesa que a inspirava: era o desespero de Julieta, a dor
da esposa traída.
Estava aberta uma das
janelas. e o sol entrando pela sala, chamejava nos espelhos e cristais. A
claridade impacientou Amália estava triste, e achava insuportável essa alegria
do céu que vinha importuná-la.
Ergueu-se para fechar a
janela, onde a esperava uma surpresa.
Hermano, de pé, à sombra de
uma árvore, escutava o canto, em profundo recolhimento. Sua fisionomia denotava
que ainda depois de ter cessado a voz, ele ouvia dentro d alma o eco, e
esperava o seu retorno.
Tinha na mão um jornal e
estava sem chapéu, como quem fora surpreendido em casa, a meio da leitura, e
viera pressuroso, não lhe importando sair de cabeça descoberta.
Quando Amália recobrava-se
da emoção, Hermano erguia a fronte; pela primeira vez o olhar doce, profundo e
exuberante desse homem encontrou o seu; e subjugou-a.
Ela estremeceu como se
recebesse um insulto; e arrebatadamente num assomo de cólera, bateu a janela.
O que ela sentia era não ser
homem para nesse mesmo instante precipitar-se do sobrado, saltar o muro, e
açoitar as faces daquele insolente.
CAPÍTULO 10
O gênio faceiro e jovial de
Amália mudou completamente. A moça tornou-se pensativa: tinha longas horas de
cisma e melancolia, ela que dantes não sabia senão rir e brincar.
Algumas vezes já se
esquivava de frequentar a sociedade, que então fora para ela uma necessidade
Inventava pretextos para recusar os convites: e ficava em casa solitária,
distraída, vagas contemplações.
Passava noites inteiras,
recostada à sua janela com os olhos fitos, o seio palpitante, tão alheia de si
que não ouvia a voz da mãe a chamá-la, e tão presente aos seus pensamentos que
estremecia e sobressaltava-se a cada instante sem causa aparente.
Outras vezes saía ao jardim,
e vagava pelos passeios talhados na relva, a desfolhar as flores que sua mão
distraída ia colhendo, e a arrular palavras submissas que, pela cadência da voz
melodiosa pareciam trechos de poesia.
Amália admirava outrora as
estrelas como umas joias mimosas de que Deus havia recamado o seu manto azul ou
como umas violetas do céu a luzir por entre as sombras da noite. Era bonito;
mas ela preferia um adereço de brilhantes sobre um vestido de cetim ou uma
grinalda de miósotis.
Agora um místico sentimento
a atraia para essas flores de luz , gostava de conversar com elas. Pensava que
talvez tivessem um coração irmão do seu.
Quem sabe se não eram os
anjos da guarda que velavam sobre as almas exiladas na terra?.
Ela própria achava ridículas
estas abusões, quando repassava na mente as cismas da véspera mas isto não
impedia que de novo se embalasse naquela e noutras fantasias, em seus momentos
de devaneio.
Toda a sua pessoa
ressentia-se da revolução que lhe transformava o gênio.
Os movimentos sempre tão
vivos e cintilantes tornaram-se frouxos e lentos. Sua beleza já não irradiava
como no tempo feliz; agora embebia-se em uma sombra diáfana, que velava o matiz
da cútis aveludada.
Ao piano, a sua execução não
perdera em correção e limpidez; mas ou tocasse ou cantasse, havia na música, se
esta era triste, uma repercussão íntima e profunda. Sentia-se palpitar a dor
nas teclas como na voz.
De repente, sem motivo, e
sem consciência, enchiam-se-lhe os olhos d’áqua. As lágrimas doutros tempos
eram orvalhos para as boninas de seu gentil sorriso; estas de agora comam
lentamente e deixavam nas faces um brilho lívido.
A família assustou-se com
esta mudança. Às perguntas inquietas da mãe, Amália respondia que andava
aborrecida; e entretanto recusava as distrações que lhe ofereciam. .
Afinal, tendo perscrutado
debalde a causa da súbita transformação da filha, D. Felícia a atribuiu a uma
cessas moléstias nervosas a que são muito sujeitas as moças fluminenses, pela
falta de educação higiênica.
Resolveu então a família
passar algum tempo fora da corte. Foram para Petrópolis.
Nos primeiros dias, Amália
recobrou a sua antiga alegria; e voltou à vida agitada e folgazã. Os passeios
de carro descoberto, as apostas a cavalo, e as partidas campestres,
reanimaram-lhe o gosto da sociedade e a restituíram ao seu natural.
A moça conseguiu durante
alguns dias atordoar-se e submergir as suas recordações num turbilhão de
prazeres ruidosos, mas que não lhe davam senão a alegria artificial do momento.
Ao cabo de alguns dias
cansou A tristeza que tinha espancado à força de movimento e agitação, voltou e
mais intensa. Com esta vieram as saudades da casa de São Clemente. A moça
lembrou-se da sua doce solidão; e desejou-a, como nunca havia desejado os
divertimentos.
Fizeram-lhe a vontade.
Recolheram-se à corte depois de um mês de ausência Por diversas vezes quiseram
levá-la para a Tijuca ou para Juiz de Fora; mas ela resistiu sempre e com
energia; foi preciso ceder.
A família então uma viagem à
Europa, como único meio que lhe restava para salvar a filha querida. Quando os
pais comunicaram essa intenção à moça, ela recebeu o anuncio com espanto;
depois foi se habituando à idéia, e, em vez de a repelir, já por fim a acolhia
favoravelmente, e dizia à mãe, num ingênuo assomo de ternura.
— Não se aflija tanto,
mamãe, eu lhe prometo ficar boa com a nossa viagem à Europa.
O Sr. Veiga, pai de Amália,
começou a dispor os seus negócios. Contava partir no futuro mês de março, por
ser já fim de ano, e não convir, na opinião dos médicos, nem à filha nem a ele,
uma transição brusca do nosso verão para o inverno europeu.
D Felícia depositava grandes
esperanças nessa viagem; mas sua convicção era que só o casamento podia
restituir a Amália a saúde e a felicidade perdidas.
Desde que voltara de
Petrópolis, Amália trazia no fundo d’alma uma esperança, que não se animava a
afagar, mas que se derramava por sua mágoa como uma gota de bálsamo. Talvez que
tudo quanto vira naquela noite não fosse mais do que um momento de loucura, uma
alucinação passageira do marido de Julieta.
Hermano seduzido por aquela
mulher fatal esquecera o seu juramento; mas passada a primeira fascinação, o
remorso o tinha pungido; e ele sem dúvida repelira de si com horror a culpada.
Amália ia pois achá-lo restituído ao amor puro e legítimo da esposa.
Com efeito o marido de
Julieta, quando não saia e ficava em casa a sós, passava as tardes no sino
habitual, junto aos bambus; submerso no mesmo profundo recolhimento, que Amália
observara da primeira vez.
A casa continuava solitária,
tranquila, silenciosa, como um retiro; mas à noite ainda aparecia nas janelas
de Julieta o clarão sinistro, que batia nos olhos de Amália como o facho
lúgubre de um sacrilégio.
Que se estava passando dentro
daquele aposento, enquanto ela com os olhos cravados na veneziana feria sua
alma de encontro às réstias de luz, que se enfiavam pelas rótulas?.
Não poder arrancar esse
obstáculo, que lhe ocultava o interior! Já não tinha escrúpulos, já não
considerava essa curiosidade uma indiscrição. Ali não era Amália quem estava,
mas Julieta na pessoa dela; Julieta que tinha o direito de defender contra uma
intrusa a santidade de seu amor e o recato de sua câmara nupcial.
Esta ansiedade, e as
decepções que daí lhe provinham a todo instante, aumentaram a tristeza de
Amália; pelo que o Sr. Veiga cedendo às instâncias da mulher, decidiu a viagem
à Europa.
A moça, a quem a idéia de
uma separação assustara, compreendeu todavia a necessidade de arrancar-se à
fatal dominação que sobre ela exercia aquele homem, a quem não amava, e nem
poderia amar nunca.
Ela senta que faltavam-lhe
as forças para conter os impulsos de sua alma; e conhecia o poder da
irresistível atração que a prendia ali, e que a trouxera de Petrópolis aonde’ se
tinha refugiado.
Era preciso pois interpor o
oceano e afastar-se para longe, onde a maligna influência que a tiranizava não
pudesse chegar.
Afinal o acaso favoreceu a
curiosidade da moça Por esquecimento ficara aberta uma janela, não do toucador,
mas da sala próxima. Foi o Abreu, ao escurecer, quando andara ali a espanar,
contando fechá-la mais tarde.
Amália alvoroçou-se com esta
circunstância; logo conheceu que nada adiantava. Era-lhe impossível distinguir
coisa alguma na escuridão da sala. Já ia se retirar, quando renasceu-lhe a
esperança.
A lua assomara sobre o dorso
do Corcovado; a sua claridade alva e doce como a luz coada por um globo de
cristal diáfano estampou-se nessa face da casa.
À medida que o astro
elevava-se no horizonte, essa faixa de luar cortada pela cornija do teto,
desdobrava-se sobre a parede.
Amália seguia com ansiedade
o perfil luminoso, impaciente de que penetrasse no aposento e o esclarecesse.
A princípio nada pode
distinguir porque as réstias mutilavam os objetos, deixando uma parte na
sombra.
Chegou, porém, o momento em
que viu. A sala fora inundada pelo luar e o interior aparecia como uma cena de
teatro, iluminada pela eletricidade.
A moça não teve a mesma
súbita comoção que da outra vez. Então ela nada suspeitava, e o fato se havia
apresentado a seus olhos de repente em toda a sua realidade. Agora, além de já
temer a repetição do golpe, fora a pouco e pouco, reunindo os traços,
lobrigando os vultos indecisos, que ela vira afinal desenhar-se o painel.
Lá estava a mesma mulher da
outra noite, não sentada como da primeira vez mas reclinada em uma
conversadeira acolchoada de cetim azul, e ainda mais encantadora.
Tinha adormecido, com a
cabeça pousada na curva do braço, e o corpo meio voltado. O roupão de fina
cambraia, fechado na gola e nos punhos envolvia o seu talhe, moldando os
contornos graciosos, que não se podiam ver, mas palpavam-se com os olhos.
Amália admirava com toda a
violência do ódio, que lhe inspirava semelhante criatura. Envergonhava-se de
ser bonita também como ela; e ao mesmo tempo senta não ter uma formosura ainda
mais esplêndida para humilhá-la.
Um instante depois Amália
recuou precipitadamente, cobrindo o rosto com as mãos. Hermano que tinha
entrado no aposento, achava-se de pé junto à conversadeira.
As faces da moça abrasaram-se
do pejo que sentiu.. Revoltou-se contra a audácia daquele homem; e a
indiferença dessa mulher que dormia quando um olhar indiscreto devassava o seu
recato.
Tinha medo de ver; e uma
irresistível tentação de olhar. Voltou as costas para a janela; mas não teve
coragem de afastar-se. Entretanto Hermano aproximara–se silenciosamente da
conversadeira, sentara-se ao lado e ficou imóvel, como se receasse levantar o
menor rumor no aposento.
Esta cena exacerbou a cólera
de Amália e o seu escândalo pela traição de Hermano. Nasceu-lhe um desejo
veemente de vingar Julieta. Se ela pudesse subtrair o marido pérfido à sedução
da amante; arrastá-lo a seus pés humilde e submisso; exprobrar-lhe o seu
perjúrio; e restituí-lo arrependido ao amor da esposa!…
Que não daria ela em troca
desse poder? Que satisfação não teria de infligir o justo castigo a esse
crime?.
Mas bem compreendia, no seu
despeito, que não tinha sobre Hermano a menor ação. Ela, uma das belezas mais
festejadas da corte, rainha nos salões, e dos mais brilhantes vassalos; querida
e adorada por tantos admiradores, que todas as tardes faziam uma légua de carro
ou a cavalo, só para a verem ao longe e de passagem; ela, Amália, não merecia a
atenção daquele excêntrico, seu vizinho, que poderia se quisesse olhá-la a todo
momento, comodamente, sem o menor sacrifício.
Talvez nem a conhecesse, e
não soubesse que ela habitava ao lado de sua casa… Mas não; da vez em que o
surpreendera ouvindo-a cantar; curiosidade que a tinha irritado a ponto de bater-lhe
a janela.
Agora arrependia-se do seu
arrebatamento. Devia ter-se contido naquele momento, e servir-se dessa
impressão produzida por sua voz para atrair esse homem, fasciná-lo também com a
sua beleza, dominá-lo, e então esmagá-lo com todo o seu desprezo.
Fora mal inspirada. Hermano
ofendido com a desfeita que sofrera, não se arriscaria a nova repulsa.
Entretanto por que não havia ela de tentar o meio que lhe restava para reatar o
primeiro e único movimento desse homem para ela?.
No dia seguinte, depois do
almoço, Amália sentou-se ao piano; abriu a partitura da Lucia; e hesitou por
algum tempo As portas das janelas estavam abertas; foi cerrá-las e pela fresta
lançou um olhar à chácara vizinha. Estava erma e tranquila.
Então a moça decidiu-se, e
cantou com emoção que nunca tivera em suas estreias de sala. Também nunca ela
cantou melhor, com mais alma e paixão.
Terminando, ergueu-se
precipitadamente. Arfava-lhe o seio, menos do esforço que fizera, do que do
anelo de uma esperança que a agitava. Sentia que esse momento podia decidir de
seu destino.
Calcando com a mão esquerda
as pulsações do coração. caminhou para a janela, pálida e trêmula, e procurou
com os olhos o lugar onde Hermano a escutara da outra vez.
Não havia ninguém.
CAPÍTULO 11
A noite apareceu Henrique
Teixeira, que andava um tanto arredio.
O médico desistira do seu
plano de trazer Hermano às partidas do Sr. Veiga, desde que D. Felícia tinha
abandonado a idéia do casamento. Continuou, porém, a frequentar a casa com a
mesma assiduidade. Foi só quando percebeu certa repulsão de Amália para ele,
que se retirou.
causa dessa repulsão não a
podia precisar; mas suspeitou que se referia a Hermano, Seda porque fora ele
quem envolvera o amigo na existência da moça; ou era ao contrário porque não
tivera força de aproximá-lo dela?.
A verdadeira causa, nós a
sabemos.
Era a indignação que Amália
sentira contra o esposo infiel e que ressaltava sobre o amigo, como sobre tudo
o mais que lhe pertencia.
— Já tive o prazer de
ouvi-la hoje, disse o doutor apertando a mão de Amália.
— Passou por aqui?.
— Estive na sua vizinhança.
Amália entendeu a alusão.
— Ah! exclamou com
indiferença.
Quando a moça começou a
cantar naquela manhã Teixeira estava em casa de Hermano e conversavam os dois
no gabinete. As primeiras notas este levantou-se; esqueceu a presença do amigo
e saindo à chácara aproximou-se da casa vizinha, resguardando-se com a folhagem
do arvoredo.
Teixeira que o acompanhara,
sentou-se junto dele e escutou. Aquela vivacidade do amigo, tão alheio a tudo
que não se prendia à sua antiga existência, e a emoção com que ele ouvia a
Amália, o surpreenderam, Interrogou as suas recordações. Julieta cantava essa
ária, o que explicava tudo.
Terminado o canto, Hermano
voltou e gabinete a conversa, sem a menor alusão ao incidente. Henrique de seu
lado também absteve-se de qualquer observação, e mui de propósito.
Deixando o amigo, lembrou-se
o doutor de fazer à noite uma visita à família Veiga; e no primeiro ensejo
referiu a Amália todas as circunstâncias do que ele chamava um triunfo.
— Um triunfo artístico bem
entendido, acrescentou sorrindo.
— Os outros não são para
mim, observou Amália em um tom de modéstia desdenhosa, que tornava ambígua sua
frase.
A moça conteve e dissimulou
a alegria produzida pela confidência do doutor. Agora sabia que Hermano a tinha
ouvido e que sua voz atraia aquele homem indiferente ao mundo. Esta certeza
encheu-a de confiança.
Desde esse dia não cantou
mais a Lucia. As vezes ensaiava uns prelúdios, como quem se preparasse, e de
chofre passava a outra peça, que executava primorosamente.
Compreende-se bem o que
devia ser Amália nesses dias, convencida como estava de que o seu encanto, o
seu condão, estava na voz. Todos os esplendores de sua formosura, todas as
seduções de sua pessoa, toda sua graça e gentileza, ela os transportou para a
música e idealizou em arpejos e melodias.
Quem já lhe tivesse admirado
a beleza a reconheceria nesse canto inspirado que era como uma transfusão de
sua radiante imagem. Seus lábios somam num trinado, com a mesma garridice com
que desabrochavam a sua rubra flor.
A moça já não duvidara de
seu império. Ela senta em torno de si, a envolvê-la incessante a admiração de
Hermano. A cada momento via ou adivinhava na espessura das árvores, na penumbra
de uma janela, o olhar que a buscava com ansiedade e a seguia infatigável.
Entretanto mostrava-se
despercebida dessa contem-plação. Se aparecia à varanda ou passeava no jardim,
não dava o menor sinal de ocupar-se com a casa vizinha que antes a absorvia tão
completamente. Saia agora mais vezes para ter o gosto de ver-se acompanhada de
longe e respeitosamente; ou para tornar mais desejada a sua presença.
Amália não tinha cultivado a
arte de fazer-se amar que se chama faceirice; mas parece que é esse um dom
natural da mulher. São as asas da borboleta, que nascem na estação própria,
quando é tempo de voar.
As partidas do Sr. Veiga
tinham continuado; menos brilhantes do que outrora, porque Amália já não as
animava com sua alegria e espírito; mas sempre concorridas. D Felícia insista
nessas recepções, com a esperança de distrair a filha.
Uma noite, Amália, que
mostrava certa volubilidade nervosa, dirigia amiúdo os olhos para a porta, como
se esperasse alguém. Eram oito horas. Henrique Teixeira entrou, acompanhado por
um cavalheiro alto e elegante.
A moça estremeceu
reconhecendo Hermano; entretanto tinha um pressentimento mais do que isso, a
certeza dessa visita. Ninguém lhe dissera coisa alguma; mas ela percebeu por
certos antecedentes que o fato ia realizar-se enfim.
Hermano apresentou-se ele
próprio a Amália, como um admirador de sua bela voz que o tinha por muitas
vezes arrebatado.
— Já me ouviu cantar? Onde?
perguntou Amália simulando ironicamente uma surpresa.
— Não me conhece então?
interrogou o cavalheiro por sua vez, pousando no semblante da moça um olhar
comovido.
— Se nunca o vi! .. observou
a moça com a mesma estranheza.
— Nunca?.
Ela cerrou as pálpebras
corando; quando as ergueu de novo todo o segredo de sua alma estava nos seus
olhos límpidos e no meigo sorriso que veio à flor dos lábios.
Depois disso falaram sobre
mil rugas dessas que servem às conversas de sala. Eles bem sentiam a
insignificância de suas palavras; mas achavam prazer nessa troca de futilidades
que os retinha juntos, e dava-lhes pretexto para comunicarem-se pelo olhar e
pelo gesto.
O mesmo aconteceu nas outras
noites. Quem os visse tão presos um do outro, tão entretidos na sua conversa,
pensaria talvez que tratavam de coisas importantes, quando efetivamente não se
ocupavam senão de trivialidades já muito repetidas.
Nessa fase da existência de
Amália e Hermano, nada há de novo e de particular. Foi o que tem sido sempre e
há de ser eternamente a aurora do amor Quem não conhece essas doces alvoradas
do coração, que espancam todas as sombras e nos transformam a vida em um
esplendor?.
Hermano, não se lembrava
mais do homem que fora; nem tinha consciência de outra vida, senão essa que lhe
trouxera Amália. Quanto à moça, os seus primeiros terrores, a indignação que
sentira, o segredo que surpreendera; tudo se dissipara como por encanto.
Ignorava o passado. A viuvez de Hermano, as relações dele com a desconhecida;
ela não sabia mais disso; não sabia senão que amava.
Como se havia operado esse
milagre? Ninguém o poderia explicar, nem eles mesmos que não tinham consciência
da revolução profunda consumada em sua vida no espaço de alguns dias apenas.
Mais de três anos foram
vizinhos, avistando-se frequentemente, sem que se preocupassem um do outro. De
repente algumas palavras de uma conversa, algumas notas de uma ária, decidirem
de seu mútuo destino…
D. Felícia enchera-se de
esperanças e julgou-se dispensada do sacrifício da viagem à Europa, à qual só
extremos de mãe a obrigariam. A prudente senhora sempre entendera que, de todas
as mudanças de clima, a mais proveitosa para uma menina depois dos dezoito anos
era essa que ela faz da casa paterna para o domicilio conjugal.
— Qual Vichy!… dizia aos
médicos Não há como água da pia.
Entretanto os dias comam; e
o acontecimento esperado não se realizava. Debalde a senhora chamava
constantemente a conversa para o assunto da viagem, e insistia na proximidade
da partida, lembrando as mágoas da separação.
Os dois apaixonados,
absorvidos consigo não a escutavam Para eles não havia nem passado, nem futuro.
A vida resumia-se no presente; e o presente era aquela íntima efusão em que se
isolavam dos outros, em um canto da sala.
Uma vez, porem. D. Felícia
interrompeu a confidência de todas as noites para interpelar diretamente a
filha.
— Amália, teu pai amanhã vai
escolher os camarotes. Não queres ir com ele?.
— Tão cedo! observou o
Borges. Ainda faltam dois meses.
— O Sr. Veiga quer
prevenir-se com antecedência para obter os melhores lugares.
— Mamãe não vai? perguntou
Amália.
— Eu não; só de falar em
vapor já estou enjoada.
— Irei com papai. A que
horas?.
— Depois do almoço.
— Às dez horas, disse a moça
enviando a Hermano em um olhar essa indicação.
Ele compreendeu.
— Então sempre se resolve a
deixar o seu Rio de Janeiro?.
— Mamãe vai.
— Mas a senhora podia ficar.
— Com quem? perguntou ela
surpresa.
— Com seu marido.
Amália enrubesceu.
— Posso falar a seu pai?.
A moça ergueu-se perturbada
e aproximou-se da mãe para dizer-lhe ao ouvido:
— O Sr. Hermano pergunta se
pode falar a papai.
D. Felícia voltou-se para o
seu hóspede, e disse-lhe com um sorriso: — Pode; ele está no gabinete.
CAPÍTULO 12
Guiado pelo aceno de D
Felícia, Hermano dirigia-se ao gabinete do Sr. Veiga, que tinha por costume
fazer diariamente a sua caixa particular antes do chá.
Ninguém ouvira na sala o
breve diálogo dos dois namorados; e menos a pergunta que Amália transmitira à
mãe, calando aliás a verdadeira intenção que Hermano lhe havia dado. Mas as
pessoas presentes suspeitavam que se tratava do pedido formal de um casamento,
que todas já previam.
Quanto a D. Felícia, tinha
certeza do fato. A confusão da filha e o alvoroço que se traia na voz e nas
palpitações do seio, revelavam bem o sentido da pergunta de Hermano e a
significação do seu ato.
Amália, para esquivar-se à
curiosidade geral que lhe interrogava a atitude e a expressão da fisionomia,
fora sentar-se ao piano; e tocava com um brio nervoso. para dissimular na
agitação do exercício musical e na excitação da fadiga os sobressaltos
involuntários bem como os rubores que lhe abrasavam as faces e o colo.
Pelo seu gosto se teria
retirado da sala; mas Hermano devia ressentir-se dessa ausência, e ela mesma
não podia privar-se da sua presença pelo resto da noite. Sair para voltar
depois da decisão era expor-se ainda mais ao reparo.
Durou meia hora a
expectativa.
Ouviu-se abrir a porta do
gabinete e todos os olhos volveram-se para o corredor, com exceção dos de
Amália que se abaixaram a pretexto de decifrar uma frase.
Ela não viu nada, nem ali,
nem no papel, nem em torno; tinha uma névoa nos olhos. Ouviu, porém, uma voz
comovida pronunciar seu nome e sentiu que lhe apertavam a mão.
Quando recobrou-se desse
soçobro e ergueu-se correndo a sala com o olhar, Hermano partia.
Voltara ele do gabinete
grave e sombrio; despedira-se de Amália e da dona da casa com um aperto de mão,
cortejara as outras pessoas e retirou-se sem uma explicação daquele
procedimento estranho.
Fora tal a surpresa, que
ninguém, nem D. Felícia, tivera a presença de espírito necessária para fazer a
menor observação. Não havia para este fato senão uma interpretação: e foi a que
todos lhe deram imediatamente, apesar de a considerarem inadmissível. Hermano
tinha sofrido uma repulsa do Sr. Veiga.
Mas como era isso possível,
sabia-se do desejo que tinha o capitalista de casar a filha; e dos avanços que
a família fazia ao pretendente, e tão a contento da moça?.
D. Felícia foi ao encontro
do marido que entrava na sala e perguntou-lhe a meia voz, com sofreguidão, o
que se havia passado com Hermano.
— Nada, respondeu o Sr.
Veiga mais admirado do tom do que da pergunta. Ofereceu-me recomendações para a
Europa e prometeu dar-me algumas informações úteis para a viagem.
— Só? perguntou a senhora.
— Só.
O pasmo foi geral. D.
Felícia não se pôde conter.
— Não se precisa das suas
informações; ele que as guarde e nos livre de sua presença.
O Borges encartou a sua
mofina:
— Eu sempre o tive por
maluco.
O Sr. Veiga dissera a
verdade. Quando Hermano estava no gabinete, o capitalista estava no meio de uma
adição.
Para não perder o trabalho
começado, e usando já da liberdade de futuro sogro; pediu ao hóspede o favor de
esperar um instante, dois minutos, enquanto fechava a conta.
Mal sabia ele que estes dois
minutos iam decidir da felicidade da filha.
Hermano esperou, com a
emoção que assalta todo homem de caráter ao tomar grande responsabilidade. Não
era a primeira vez que tinha essa emoção. Lembrou-se do momento em que pedira a
mão de Julieta. O passado, que parecia morto, ressurgiu e apoderou-se dele.
Ficou estupefato, vendo-se
ali naquela casa e encontrando-se nessa última fase de sua existência, que ele
se espantava de ter vivido. Parecia-lhe sonho esse período. Não compreendia
como ele, o marido de Julieta, acreditara que pudesse nunca substitui-la por
outra mulher.
O capitalista concluiu a sua
conta e voltou-se para a visita. Trocaram algumas palavras sobre o calor que
tinha feito durante o dia, e calaram -se.
— Está próxima a sua viagem
à Europa? disse Hermano depois de uma pausa.
— E verdade! Daqui a dois
meses.
— Sabe que já fiz esta
viagem? Posso dar-lhe algumas informações úteis.
Hermano falou um quarto de
hora sobre Paris e Londres sem consciência do que dizia; o Sr Veiga ainda
absorvido nas suas parcelas de caixa não lhe prestou a menor atenção; e assim
terminaram a entrevista.
Os convidados compreenderam
a conveniência de retirarem-se mais cedo; o que, porem os decidiu a usar dessa
atenção foi o desejo de espalharem logo, naquela mesma noite, a noticia do
rompimento, pois outra coisa não era o que se acabava de pensar.
O Teixeira que chegara
tarde, quis atenuar o procedimento do amigo, e teve com D. Felícia longa
explicação.
Parece que tocou nas
excentricidades do viúvo atribuindo a elas a sua hesitação, o que a senhora
moralizou com esta exclamação:
— Então bem diz o Borges. E
um maluco e foi uma felicidade que eu o descobrisse, antes de dar-lhe minha
filha.
Amália tinha-se recolhido. A
mãe foi achá-la pensativa:
— Tu sabes quanto desejo
ver-te casada, Amália; mas antes fiques toda a vida solteira, do que teres a
desgraça de aturar um doido.
— A sua doidice, mamãe,
também eu a tenho. Ele ama!….
— A ti? perguntou D. Felícia
com ironia.
— A mim também; mas não me
ama bastante para fazer-me sua mulher.
— Não te faltam maridos.
Amália, durante as suas
breves relações com Hermano, costumava à tarde sentar-se no jardim, em um
caramanchão que ficava perto da grade, mas oculto pelas trepadeiras. Ali
viam-se de passagem, conversavam um instante, e separavam-se para de novo
reunirem-se à noite na sala.
Passados os primeiros dias
depois do rompimento, a moça tornou a esse hábito, talvez na esperança de que
ele facilitasse a aproximação de Hermano. Ela adivinhara a razão que havia
determinado a súbita mudança do amante; mas queria ouvi-la de seus lábios.
Com efeito uma tarde, ao
escurecer, ouviu o rangido da areia sob os passos de alguém que se aproximava;
não ergueu os olhos do livro, mas pressentiu que era ele; e não se enganava.
— Não venho pedir-lhe
perdão. Não o mereço; e a senhora não pode e não deve conceder. Desejo, porém
que saiba a causa do meu procedimento, para que não duvide um instante de si e
do respeito e admiração que me inspirou Quer ouvir-me?.
— Fale, murmurou a moça
comovida.
— No momento de ligar para
sempre o seu ao meu destino, hesitei; apoderou-se de mim um grande tenor. Tive
medo de fazer a sua infelicidade.
— Por quê?.
Hermano concentrou-se um
momento.
— Quem possui a sua beleza e
a sua alma, tem o direito de ser amado exclusivamente, sem reservas e sem
partilhas. A senhora não pode ser a simples companheira do homem a quem se
unir. P preciso que esse homem lhe pertença, que viva inteiramente de sua
afeição, que se consagre todo à sua felicidade. Se ele tivesse uma idéia, uma
preocupação, uma reminiscência, que o disputasse ao seu amor cometeria uma
infidelidade; e a senhora havia de exprobrar-lhe o tê-la enganado. Podia eu,
conhecendo-a como a conheço, sacrificar o seu futuro, que deve ser tão
brilhante?.
Amália pousou os seus belos
olhos no semblante de Hermano.
— Tem razão, disse ela
docemente. O meu amor não basta para encher tão completamente a sua vida, que
não haja lugar nela para outra afeição. Desde que o passado ainda vive em sua
alma, o que iria eu fazer senão perturbar a tranquilidade de seu espírito e
profanar as suas recordações? É melhor assim; guardaremos pura e sem ressaibo a
lembrança desses poucos dias que vivemos juntos.
Ela ergueu-se, estendendo a
mão ao amante.
— Adeus, Hermano.
— Amália!… Talvez.— Não
façamos do nosso amor um galanteio de sala. Já esqueceu Julieta e poderia
esquecê-la nunca?.
Hermano não respondeu.
— Bem vê que é impossível.
A moça afastou-se lentamente
Hermano entrou na sua chácara, e sentou-se no primeiro banco A lua vinha
assomando no horizonte.
Ouviram-se prelúdios de
piano; e uma nota melancólica e suavíssima cortou o silêncio da noite.
Era a voz de Amália que
soluçava o Addio del passato da
Traviata.
CAPÍTULO 13
Amália, durante a longa vigília
daquela noite, se compenetrara bem da situação, em que a tinham colocado os
acontecimentos.
A proximidade do homem que
amava, e a quem não podia pertencer; a facilidade de vê-lo a cada instante
involuntariamente, ou a casa onde habitava; essa certeza de sua presença, ali,
a alguns passos dela, era um suplício cruel.
Cumpria quebrar de uma vez
esse elo material, já que não podiam unir-se pelos vínculos d’alma.
Amália lembrou-se a
principio de passar fora da corte algumas semanas que faltavam para a viagem;
mas pareceu-lhe melhor apressar de uma vez a partida para a Europa.
Com esta idéia, ergueu-se
pela manhã, e saindo do seu quarto, encaminhou-se ao gabinete do pai resolvida
a fazer-lhe o pedido. Foi, porem na sala de jantar que o encontrou em companhia
da mãe.
Veiga abraçou a filha muito
risonho; e prendendo-lhe a loura cabeça no peito, pôs-lhe diante dos olhos uma
carta aberta, na qual a moça reconheceu a letra de Hermano.
Antes que ela se recobrasse
da surpresa e pudesse ler a carta, D. Felícia lhe comunicara sofregamente o
assunto.
Era um pedido de casamento,
no qual Hermano manifestava o desejo de obter pessoalmente de Amália o seu
consentimento.
— Pode vir? perguntou o pai
à filha depois que esta acabou de ler a carta.
—Ainda não, respondeu Amália
agitada.
— Quando? disse D Felícia.
— Quero pensar, mamãe.
A senhora, para quem Hermano
agora era o homem mais sensato do mundo, fez à filha mui judiciosas observações
acerca da conveniência de apressar a decisão: e não se esqueceu de citar em seu
abono o conhecido anexim que dá por transtornado o casamento adiado.
Amália persistiu não
obstante. e com uma razão que desarmou a mãe.
— Se é preciso que responda
imediatamente, mamãe, recuso P porque desejo aceitar, que peço a liberdade de
refletir. Para dispor de minha vida inteira, não são muitos alguns dias.
— Pois bem, Amália, pensa à
tua vontade; mas lembra-te de que a viagem está próxima. É verdade que pode-se
adiar, até mesmo porque o tempo não anda bom. tem havido tantos temporais. Que
diz, Sr. Veiga?.
O capitalista que lia os
jornais, levantou os óculos para observar:
— Mas o câmbio é ótimo. A ir
não devemos perder esta ocasião.
Amália hesitou durante
alguns dias. Ela tinha naquela carta, lida tantas vezes, e guardada consigo, a
prova cabal, além de muitas outras, do amor que Hermano lhe consagrava. Mas
podia ela confiar a sua sorte desse amor?.
Hermano era uma alma nobre,
um caráter leal, incapaz de iludi-la Não duvidava dele; mas duvidava de si.
Receava não ter força para dominar e possuir esse coração generoso, arrancá-lo
ao passado em que se havia sepultado, e ressuscitá-lo à felicidade.
Ela acreditava que o marido
de Julieta ainda amava a primeira mulher e vivia de sua lembrança.
Mas esse afeto de além
túmulo não podia encher-lhe a existência; e por isso aquela alma rica de paixão
e mocidade se desprendia da sua idolatria para buscar no mundo uma expansão, um
sentimento de que se nutrisse.
Nesse impulso, Hermano se
lançara na realidade, fascinado pela beleza da desconhecida; mas, em breve a
ilusão desvanecera-se. O homem regenerado pelo amor casto de Julieta não podia
corromper-se numa lição impura. Passada a alucinação, tornara ao seu culto.
— Foi então que ele,
desesperado pela recordação da mulher, e crendo em mim outra Julieta, começou a
amar-me, pensava Amália; e talvez esse amor o tenha salvado, dando-lhe forças
para reabilitar-se. Sem ele, sem um afeto que o obrigue e o ampare, não se
deixará dominar ainda pela beleza fatal daquela mulher, ou de outra como ela? E
poderá reerguer-se da nova queda?.
A moça decidiu então na
generosidade de seu amor votar-se à guarda e arrimo desse homem infeliz pela
exuberância de sua alma.
— Mas, se o amor que
inspirei, e que ele sinceramente acredita sentir por mim, não for mais do que
um capricho efêmero um reflexo apenas da paixão que tem por Julieta? Quando
dissipar-se o encanto me perdoará ele ter profanado o culto da esposa e rompido
para sempre o elo que o prendia à primeira e única mulher amada? Não terei eu
sacrificado a minha vida, não para dar-lhe a felicidade, mas para fazer a sua
desgraça?.
Era esse o grande problema
do seu destino.. Amália bem o compreendia; e sem deliberação para resolver por
si, deixava isso ao tempo esperando uma inspiração do céu. Entretanto passavam
os dias aproximava-se a época da viagem; e talvez fosse esta o melhor e o único
desenlace.
Toda essa hesitação, bastou
um olhar para dissipá-la. Amália indo com a mãe à cidade, encontrou Hermano e
não pôde resistir ao gesto de doce resignação com que ele a saudou.
É o meu destino, pensou a
moça. O meu e o seu.
Respondeu ao cumprimento,
parando para falar-lhe; e na despedida, ao apertar-lhe a mão disse:
—Até à noite.
Ao escurecer, quando Hermano
chegou Amália o esperava no jardim. Antes que ele preferisse qualquer palavra,
a moça, espontaneamente e como se continuasse um diálogo não interrompido,
entregou-lhe a mão dizendo:
— Com uma condição.
— Qual?.
— Se até o último instante
eu perceber o menor sinal de arrependimento ou mesmo de hesitação, fica-me o
direito de restituir-lhe a liberdade.
— Duvida de meu amor,
Amália? Depois de ter-lhe dado a maior prova? tornou Hermano magoado. Que
conceito lhe mereço então?.
— Não! acudiu a maca
vivamente. Não duvido; nem do seu amor nem da sua lealdade, Hermano P o
interesse pela sua felicidade que me inquieta.
A noite as visitas receberam
com a noticia do malogro da viagem à Europa, a participação ainda confidencial
do próximo casamento de Amália com Hermano.
A certeza dessa união,
esperada pelas pessoas que frequentavam a família Veiga, foi bem recebida;
todos felicitaram cordialmente os noivos. O Borges, porem. embora se mostrasse
dos mais pressurosos em aplaudir, ia pelos vários grupos de convidados
insinuando um veremos significativo.
O Teixeira que o ouviu,
incomodou-se; e receou talvez o agouro daquela dúvida. Entretanto ele acabava
de conversar com o amigo; e embora na sua qualidade de médico calcasse na
cicatriz dessa alma para conhecer se doía-se ainda do golpe, não descobriu
perplexidade no espírito de Hermano. A sua resolução era firme e calma; tinha
sido friamente meditada, não provinha de um assomo de momento.
No dia seguinte começaram os
preparos do casamento, que por parte de Amália já estavam adiantados. Desde a
apresentação de Hermano em sua casa D. Felícia. vira nele o marido que tanto
desejava para a filha e por isso a pretexto de arranjos de viagem, o que ela
tinha encomendado às costureiras e modistas era um rico enxoval de noiva, já
quase pronto.
Por parte do noivo também
não havia muito que fazer. A casa estava pronta; e não faltava senão a pintura,
pois ainda conservava a primitiva que recebera por ocasião do primeiro
casamento. Isso e a substituição dos móveis era negócio para um mês.
Amália acompanhou de longe e
com indiferença esses pormenores domésticos, que têm geralmente um especial
encanto para os noivos, como primícias que são da vida conjugal, e flores de
uma primavera casta e serena.
A moça tinha outra
preocupação mais séria que absorvia a sua solicitude. Observava o noivo e estudava
a sua alma, atenta ao menor sintoma de desfalecimento que porventura se
manifestasse na sua resolução O que ela temia sobretudo era um erro fatal.
— Se depois de unidos para
sempre a sua alma separar-se de mim, eu serei um obstáculo, um tormento para
sua existência. Longe, nunca mais deixará de amar-me; entretanto como meu
marido, pode até odiar-me.
Esta reflexão íntima revela
o que se passava em Amália. O seu tempo de noiva, que para as outras é o idílio
suave de um amor partilhado, para ela foi todo cheio de inquietações, de sustos
e de graves pensamentos.
Ela velava sobre o seu
futuro guardando-se para mais tarde gozar sem receios de sua felicidade, se
Deus a abençoasse.
Poucos dias antes da época
marcada para o casamento, D. Felícia. a pedido do noivo fez com a filha uma
visita à casa que já se achava preparada. Nessa ocasião Amália foi assaltada
por uma idéia que ainda não lhe tinha ocorrido, e que a fez estremecer.
A mãe falara do seu toucador
e quarto de dormir. Estas palavras desenharam em seu espírito pela primeira vez
a realidade doméstica de sua futura posição naquela casa. Ela vinha substituir
outra mulher que ali fora dona e senhora antes dela.
Seus aposentos seriam os
mesmos aposentos de Julieta, fechados desde a morte desta e respeitados durante
cinco anos como um santuário?.
E teria ela, Amália, a
coragem de profaná-los como o fizera uma dessas mulheres, que não conhecem a
santidade da família?.
CAPÍTULO 14
Depois de pequena demora na
sala, Hermano convidou as senhoras para verem o interior da casa.
— Em primeiro lugar o
toucador, disse D. Felícia. que pretendia aferir a ventura da filha pelo luxo
desse aposento especial.
Amália que passara adiante
dirigia-se para o lado do edifício em que ela sabia desde muito achar-se a sala
que servia de toucador a Julieta. Hermano, porém, adiantou-se com visível
precipitação e tomou-lhe a passagem.
— Por aqui, Amália, disse
ele um tanto perturbado e indicando com o gesto a direção oposta.
Ai estavam efetivamente os
aposentos da noiva, onde a arte reunira todas as comodidades domésticas sob a
forma mais graciosa, dando à riqueza dos móveis os realces da elegância.
Enquanto D. Felícia.
regozijava-se com esse luxo, que esperava encontrar, e distribuía os seus
elogios a cada peça, Amália observava silenciosamente, estudando com uma
prevenção que não podia vencer, o aspecto e arranjo do aposento que lhe estava
destinado.
A primeira circunstância que
provocou sua atenção, foi o contraste saliente deste toucador com o outro, o
anterior, que ela vira a primeira vez quando menina, e tornara a ver
ultimamente…
Apesar de corresponder
exatamente a repartição das duas asas do edifício e de terem portanto as salas
o mesmo plano e as mesmas dimensões, tão opostas eram no adereço e arranjo que
denunciavam o propósito de torná-los o mais diferentes que fosse possível.
O antagonismo manifestava-se
em tudo, na pintura, na tapeçaria, nos ornatos, nos móveis. As cores desdiziam
inteiramente. O primeiro toucador era azul e branco; este rosa e ouro. Os
trastes daquele, de erable; os deste,
de ébano. A colocação dos objetos inversa.
Quando D. Felícia. passou ao
quarto de dormir. a filha disfarçou para não entrar; mas de relance percebeu
que ali havia dominado o mesmo intuito.
Para Amália esta antítese
foi uma cifra do pensamento recôndito de Hermano; e ela embalde perscrutou-lhe
na fisionomia o verdadeiro sentido. O noivo satisfeito e contente com os
elogios de D. Felícia. e com o interesse que a moça tomava por seu toucador,
não revelava no semblante a menor preocupação.
Todavia Amália persistiu em
descobrir um desígnio naquela circunstância que podia ser casual. O susto que
sentira a princípio, com a idéia de ocupar os mesmos aposentos de Julieta, acabava
de transformar-se em uma fria suspeita é que transpassava-lhe o coração.
Pensativa, reservada, seguiu
a mãe durante a visita minuciosa, que fez ao resto da casa. Hermano, ocupado em
mostrar à senhora os vários objetos do trem doméstico, não teve ensejo de
reparar na frieza da noiva Se alguma vez achou-a recolhida e silenciosa,
atribuiu sua timidez ao recato natural da menina, ante esse prólogo da vida
conjugal, que se desdobra aos seus olhos de virgem noiva.
Nesse dia, quando Amália só
e em liberdade, pôde coligir suas impressões e refletir sobre o incidente da
visita, a suspeita que se aninhara em seu espírito cresceu, e tornou-se em
certeza. A alma de Hermano estava escrita naquele símbolo, que ela a princípio
não pudera decifrar.
Julieta ainda tinha naquela
casa um templo onde era adorada ainda ela dominava e possuía tão completamente
o coração do marido que este, apaixonado por outra mulher a quem ia ligar-se
eternamente e na véspera dessa união, não podia banir de si o passado e
divorciar se do primeiro amor.
Era por isso, era para
conjurar as recordações implacáveis que surgiam a cada instante; para iludir-se
emprestando uma virgindade artificial a emoções já outrora sentidas, que
Hermano recorrera calculadamente àquela diversidade dos objetos que deviam
cercá-lo na fase nova de sua vida.
Tinha feito como o pintor
que obrigado a repetir um quadro histórico, buscasse na divergência das cores e
na mudança das posições, uma novidade que faltava ao assunto; e sem a qual a
monotonia lhe matada a inspiração.
Amália recordava-se de uma
observação anterior. pintava-se a casa, notou que a asa direita do edifício
continuava fechada; mas não deu a isso nenhuma importância, distraída como
andava com outros cuidados. Agora tinha a explicação. Essa parte da casa, que
fora particularmente habitada por Julieta, ficara intata. Era uma relíquia.
— É preciso romper este
casamento! disse então Amália consigo.
Tomada a resolução, ela
espreitou o ensejo de levá-la a efeito de modo que poupasse a suscetibilidade
de Hermano. Quando estava só fortalecia-se no seu intento; mas quando chegava o
noivo e ela o via tão feliz e tão regenerado por seu amor, não tinha ânimo de
precipitá-lo daquele faqueiro transporte, que também a arrebatava.
Uma vez o amante
exprobrou-lhe a esquivança que ela mostrava acerca desses projetos de futuro,
os quais não passam muitas vezes de fantasias, mas são para os noivos como uma
antecipação da felicidade conjugal.
— Quer saber a razão? disse
Amália.
— Não é preciso que o diga.
Se me amasse como eu a amo, achada o mesmo prazer nestas futilidades.
A moça respondeu-lhe com uma
expressão grave e um olhar repassado de tristeza:
— Se não o amasse, como o
amo, achada decerto prazer em falar nessas esperanças e promessas de uma
ventura que é o meu sonho. Mas ao contrário elas me entristecem.
— Por quê, Amália? perguntou
ele surpreso e inquieto.
—Tenho um pressentimento.
— Não diga isto!
— Não serei sua mulher,
Hermano.
O amante adivinhou a razão
dessa dúvida que afligia o espírito da moça; e respondeu-lhe com uma queixa:
—Mostrei-lhe acaso, Amália,
o menor indicio de arrependimento e hesitação para que retire o consentimento
que me deu?.
— Não o retiro; dei-lhe a
mão; ela pertence-lhe.
— Mas então quem se oporá à
nossa felicidade?.
— Não sei; mas tenho medo
que ela não se realize.
— Faltam tão poucos dias!
— Até à hora, ninguém sabe o
que pode acontecer.
Hermano esforçou-se por
dissuadir Amália daquela idéia, e com tanta efusão falou-lhe de seu amor, que
ela deixou-se convencer, e creu enfim na possibilidade de ser feliz.
Se a moça cogitasse em um
meio de fascinar o seu amante, de o prender ainda mais a si, não poderia
escolher melhor do que este receio sincero por ela manifestado Desde aquele
diálogo Hermano redobrou de extremos; e se já havia resumido sua existência em
Amália, não viveu mais senão das horas que passava junto dela.
Ao chegar interrogava
ansiosamente o semblante da moça receoso de ler nele a sua condenação. Depois
de retirar-se, inventava pretextos para voltar uma e mais vezes, como para
certificar-se de que nenhum acidente ameaçava de novo a sua felicidade.
Esse tempo foi para ele um
continuo sobressalto e para Amália o mavioso enlevo de sentir-se amada com
todas as emoções e todas as energias dessa alma opulenta. As dúvidas e receios
de seu espírito dissiparam-se completamente. Tinha agora a confiança de seu
poder, e a convicção de que Hermano lhe pertencia, e a ela unicamente.
E não advertiu que essa
impulsão era talvez o efeito de um anelo estremecido pelo temor, e ao qual
talvez sucedesse uma reação violenta.
No dia marcado celebrou-se o
casamento. Não sábado, dia tão impropriamente pelo uso para esse ato solene. É
com efeito difícil atinar com a relação que possa haver entre a véspera do
repouso e o instante em que principia para o homem a grave responsabilidade de
família Saturno devorando os filhos é um mau signo para a fecundidade do
matrimônio.
Amália estava deslumbrante
com seu traje de noiva. Os esplendores de sua beleza ardente tomavam através
dos cândidos véus uns tons suavíssimos.
Hermano era o mesmo
cavalheiro fino e elegante, que seus amigos tinham conhecido dez anos antes Se
a flor da primeira mocidade passara, a fisionomia, como o porte, ganhara em
distinção e naturalidade.
O Sr. Veiga festejou o
casamento da filha com um baile suntuoso. As duas horas começou uma dessas
intermináveis quadrilhas que servem de remate ordinário a semelhantes reuniões
dançantes.
A alegria era geral; e os
noivos foram dos que mais se divertiram. Ambos eles renasciam para a vida
brilhante dos salões da qual se tinham por algum tempo afastado; ela durante a
sua tristeza, ele durante a sua viuvez.
Já o nascente bruxuleava,
quando o baile formou-se em procissão para acompanhar os noivos à casa.
CAPÍTULO 15
Voltando de reconduzir os
seus hóspedes, Hermano aproximou-se do sofá onde Amália sentara-se.
— Estou caindo de sono,
disse a moca conchegando-se com um gesto gracioso na longa capa de caxemira que
lhe cobria as espáduas, e as vestes de noiva.
— Por que não se recolhe?
perguntou o mando.
Ela hesitou um instante; mas
afinal erguendo-se com um faceiro assomo para romper o casto enleio,
dirigiou-se ao toucador e ali achou sua criada.
Às pressas açodadamente,
como costumava quando recolhia-se tarde e fatigada dos divertimentos, trocou as
sedas e atavios por um alvo e fresco roupão de cambraia com fitas escarlates,
delicioso traje no qual ela parecia vestida de sua candidez e de seu pudor.
Sentou-se então no divã.
Estava tão fatigada! Tinha
dançado como uma menina de colégio que vai ao seu primeiro baile. Não sentia o
cansaço do corpo somente; o espírito também havia sofrido as emoções daquela
noite e dos dias anteriores. Era feliz, tão feliz, que sua alma carecia de
repouso.
Reclinou a cabeça no recosto
do divã, e insensivelmente o seu lindo talhe descaiu lânguido. As pálpebras
cerravam-se a seu pesar: mas ela fazia um esforço para abri-las. Tinha um vago
susto de abandonar-se ao sono ali, sozinha; e também vexame de que Hermano
viesse encontrá-la a dormir.
O marido entrou no toucador
e chegando uma cadeira sentou-se defronte cautelosamente, para não perturbar o
repouso da noiva. Ela não o sentira entrar; mas abrindo os olhos viu-o em face
a contemplá-la com enlevo.
Sorriu-se, e dando-lhe a mão
que ele guardou entre as suas, adormeceu como uma criança. A presença de
Hermano inspirou-lhe nesse momento a mesma confiança, que outrora o afago
materno; o amor a ninou.
Hermano demorou-se algum
tempo a admirar a graça de Amália assim adormecida Involuntariamente seu
pensamento enleando-se nas reminiscências o transportou ao passado, à noite de
seu primeiro casamento.
De repente, tornando daquele
recordo ao presente volveu o olhar em tomo e ficou atônito de ver ali em face
dele a mulher que pouco antes admirava, a esposa a quem se ligara havia poucas
horas.
Ergueu-se pálido, desmudado,
espavorido, e afastou-se.
No dia seguinte, eram dez
horas da manhã quando um raio de sol brilhante e alegre entrou pelo aposento de
Amália como para festejá-la. Durante a noite, a moça acordara, e tonta do sono,
buscara no próximo aposento o leito, onde refugiou-se.
Pela manhã a mucama abriu a
janela do toucador; e uma réstia de sol batendo no espelho refrangera
acariciando o rosto mimoso da moça pousado em um ninho de rendas.
Ela abriu os olhos e saltou
da cama, alegre como um passarinho.
— Sinhá quer tomar alguma
coisa? perguntou-lhe a mucama.
— Eu quero almoçar, que
estou com muita fome.
— Mando pôr na mesa?.
— Não; aqui mesmo, no
toucador.
Amália teve então uma idéia
que lhe sorriu Sentou-se à sua secretária, um mimo de marcenaria, e escreveu a
seguinte canta em papel que ali achou, com o seu monograma:
“D. Amália Veiga de
Aguiar tem a honra de convidar seu marido Carlos Hermano de Aguiar para almoçar
em sua companhia, hoje, às onze horas, no seu toucador. O ménu fica por conta
do convidado.”.
A moça fechou o seu convite
e mandou-o entregar a Hermano de quem senta a falta perto de si. Ela não o
censurava pela ausência; mas parecia-lhe que ele devia ter-se apressado em
saudá-la logo pela manhã, e sobretudo nesse primeiro dia em que dormira na sua
casa.
Hermano acudiu pressuroso ao
convite; e os dois noivos almoçaram jovialmente perto de uma janela, que dava
para o jardim, ouvindo cantar os passarinhos e aspirando a fragrância das
flores que o vento, soprando nas roseiras esparzia sobre a mesa.
O resto do dia passaram
nesse mesmo devaneio amoroso lendo recitando versos, recordando a breve
história de sua afeição, e estremecendo ainda dos incidentes que os ameaçavam
tantas vezes de uma separação eterna.
No meio destes lirismos, Amália
escreveu à mãe uma carta cheia de ternuras; e D. Felícia veio fazer à filha uma
rápida visita que a encheu de júbilo por ver seu contentamento.
O jantar foi a reprodução do
almoço. Comeram ali mesmo no toucador em uma mesa volante, servidos pela mucama.
Amália achava encanto nessa solidão a dois, em que nenhum olhar estranho e
indiscreto vinha perturbar a sua casta felicidade.
No fim do crepúsculo, quando
as sombras se condensavam entre as árvores, saíram os noivos à chácara para
espairecer. Sem intenção e sem consciência, Amália dirigira o passeio
justamente para aquele banco onde outrora Julieta sentava-se todas as tardes
com o mando.
Hermano a princípio a tinha
acompanhado sem observação, mas visivelmente contrariado, o que a noiva não
percebeu por ter volvido os olhos para a casa paterna. Quando, porém, a moça ia
sentar-se no banco, ele irrefletidamente impediu-lhe o movimento com o braço, e
obrigou-a a afastar-se.
— Não se sente ai, Amália.
Amália, surpresa por aquele
gesto, que não era um abraço, reconheceu o sito e adivinhou a razão da
repugnância do narco. Sua alma confrangeu-se. O erro, o erro fatal, que ela
tanto receou, estava consumado.
Calou-se, porém, e seguiu
silenciosamente o marido que para que a ocorrência, falava-lhe com volubilidade
dos planos que tinha para embelezamento da chácara, a fim de que Amália achasse
ai todos os encantos, quando, fatigada da sociedade se deixasse ficar no seu
retiro para repousar.
Notando afinal a mudez e
esquivança da moça compreendeu que a impressão fora profunda; e para
serenar-lhe o espírito renovou os protestos tantas vezes de que ela era sua
felicidade, sua vida, sua alma.
— Iludiu-se, Hermano, e eu
também. A sua felicidade, se alguém lha pode dar neste mundo, não sou eu; e
Deus sabe que sacrifícios eu não fada para merecer esta graça!
Amália proferiu estas
palavras com uma tristeza maviosa e afastou-se para que o mando, apesar do
escuro, não lhe visse as lágrimas.
— Não tem razão, Amália. Se
eu me lembrasse de oferecer-lhe uma flor, já usada por outra senhora, não a
rejeitada ofendida? E me condenara, se eu procurasse antes para dar-lhe uma
destas violetas, abertas agora mesmo com o sereno da noite, cheias de perfume e
colhidas por mim em sua intenção? Pois assim deve ser também com as flores
d’alma. Eu não pude nascer no dia em que a conheci, para que minha vida
começasse com o meu amor. Quero, porém, despir-me do homem que fui, porque esse
não lhe pertence. e portanto não existe mais.
— Então é por mim? perguntou
a moça com surpresa.
— Pois duvidava?!
Amália sorriu. A nuvem se
tinha desvanecido: seu céu de amor estava outra vez límpido e sereno.
Entretanto quando, ao
recolher. ficou só como na véspera, pensou consigo que se Hermano a amasse,
tanto quanto ela o amava não teria lembrança para quanto não fosse o seu amor.
A filha não esquecia perto dele a mãe de quem nunca se apartara até aquele dia?
Por que não esquecia ele também uma pessoa finada desde cinco anos?.
Achava alguma razão nas
palavras do marido. mas dispensara de bom grado aquela delicadeza Desejada
antes ser querida por Hermano com tanto anelo e transporte que tudo para ele
fosse novo nessa casa, nesses sítios, cheios do passado.
Apreciava a pureza das
flores d’alma recém-abertas ao seu influxo; mas também pensava que em uma alma
completamente regenerada pelo amor, já não devia de haver flores murchas e
fanadas, como eram essas recordações que pungiam o mando.
Os três primeiros dias
depois do casamento, Amália e Hermano os passaram no mesmo delicioso a sós
Comiam no retiro do toucador, não como casados da véspera, mas como namorados
em partida campestre, às ocultas.
Esse cunho de improviso e de
folia era o que mais encantava Amália. Ela que sempre fora menina e travessa
queria descontar agora os dias de tristeza. A solenidade da vida conjugal e a
serenidade da posição de dona de casa, assustavam a seu gênio faceiro. Assim
esquivando-se a pretexto de recato e acanhamento. retardava o momento de
assumir suas graves funções.
Chegou porém, o dia.
A mesa estava servida para o
almoço. Amália tomou a cabeceira e o marido sentou-se ao lado.
— Onde está Abreu? perguntou
o dono da casa Chame-o!
A voz de Hermano tinha uma
severidade desusada Nunca Amália ouvirá aquele timbre Ela fitou o semblante do
marido, e notou a expressão áspera de sua fisionomia e o olhar imperativo com
que ele recebeu o velho criado.
Abreu aproximou-se da mesa
com o passo passo dos soldados; dobrou a cerviz por um movimento de engonço, e
perfilou-se.
Quando Hermano passou-lhe o
prato destinado a Amália ele o conservou na mão imóvel. Foi preciso que o amo
lhe desse ordem terminante:
— Para a senhora!
Então sem voltar-se,
estendeu o braço e pôs o prato na cabeceira. Nem então, nem depois, durante
todo o almoço, o seu olhar, que ele tinha sempre levantado, buscou a dona da
casa.
Não a queria ver, e não a
viu.
CAPÍTULO 16
Tinham decorrido do quinze
dias depois do casamento.
Amália já não podia esconder
a sua tristeza. As apreensões, que a haviam assaltado antes, ai estavam
realizadas. Sacrificara-se para fazer a felicidade do homem a quem amava, z
essa união ia tomar-se um suplício cruel para ambos.
Nos primeiros dias, a moça
enlevada pelos lirismos do coração virgem, sentiu-se feliz. Em sua inocência,
não desejava mais do que possuía. As efusões de Hermano, sua palavra comovida,
seu olhar temo e faqueiro sorriso bastavam para encher-lhe a alma e
transbordar.
Havia, porem, nesse afeto
uma timidez que ela não podia definir. Ainda não recebera uma só carícia;
quando solteira tomada tais demonstrações como desacato Mas agora o seu titulo
de esposa as santificava. Parecia-lhe que seu mando devia ter o mesmo direito
que seu pai, de beijar-lhe a face e estreitá-la ao peito.
Talvez Hermano se acanhasse,
e não tivesse animo de tomar essa liberdade. Compreendia o seu enleio pela
comoção, que tinha ela também, só de pensar nisso. Mais tarde vida a
intimidade.
Então o espírito da moça
lançava-se no vago, ansioso de perscrutar o desconhecido; e coligindo em suas
recordações idéias outrora incompreensíveis, rasteava um pensamento que a fazia
enrubescer Não sabia nada; não suspeitava; mas pressentiu.
Julgou-se humilhada, não
somente em sua beleza, mas em sua dignidade de senhora.
Ao mesmo tempo outras
circunstâncias concorriam para agravar a sua posição já melindrosa Hermano que
a princípio se mostrava cheio de atenções e somente ocupado dela, agora tinha
frequentas distrações, sobretudo na mesa.
Seus olhos a evitavam ainda
mesmo quando lhe dirigia a palavra. Ficava por muito tempo calado e absorto. Às
vezes no meio daquela concentração, fitava a mulher, observava-lhe as feições
com estranheza, e no seu semblante pintava-se a surpresa Desviava então a
vista, e de novo caia na sua abstração.
Uma manhã, Amália mandou
mudar a disposição da mesa colocando seu talher na outra cabeceira, para não
ter o sol de face. Veio o marido que tomou maquinalmente o seu lugar costumado.
Pouco depois reparando na alteração, lançou à moça um olhar de espanto; e saiu
precipitadamente da sala onde não voltou esse dia, dando-se por incomodado.
Amália adivinhou que era o
lugar de Julieta na mesa. Hermano não querendo que ela o ocupasse, lhe havia
destinado outro. Daí a sua contrariedade. Não obstante a impressão que lhe
causou o fato, a moça procurou disfarçar, e convidou o mando para jantarem
nessa tarde à sombra das mangueiras.
O Abreu por seu lado
continuava para ela, o mesmo homem de pau do primeiro dia. Em quinze dias,
ainda não lhe e tinha dirigido um olhar, nem uma palavra. Com a sua máscara
impassível isolava-se dela inteiramente.
Durante a viuvez de Hermano,
foi o velho quem governou a casa, onde por seu intermédio as ordens de Julieta
eram ainda executadas, como no dia em que ela as dera. Os outros criados
obedeciam-lhe como a um chefe; e tinham-lhe senão mais respeito, decerto que
mais temor do que ao amo. Era este que os pagava; mas era aquele que os alugava
e os despedia.
A presença da nova dona da
casa não alterou esse regime. Era preciso que alguém mandasse, e o ex-furriel
levado pela hábito ia determinando o serviço como dantes. Assim, quando Amália
quis ensaiar a sua autoridade doméstica achou uma resistência muda mas tenaz.
Se mandava mudar um traste,
ou fazer alguma leve alteração no arranjo da casa, ninguém lhe opunha a menor
observação. Mas no outro dia as coisas voltavam ao estado anterior. Indagada a
razão os criados respondiam repetindo a palavra de Abreu P a ordem”. Isso
queria dizer que assim se havia feito por vontade de Julieta.
Amália retraiu-se para evitar
conflitos que a obrigavam a um ato de rigor. Muito a afligida se a sua união
com Hermano desse causa à expulsão do velho criado, que era já um amigo da
casa. Ela tinha bom coração; e lembrava-se de que o Abreu fazia aquelas coisas
pelo muito amor à sua filha de criação.
Todavia, quando pensava na
sua posição, não podia dissimular que era naquela casa uma intrusa, que estava
ocupando o lugar de outra não só nos atos da vida domestica, mas também no
coração do mando. A cada instante a realidade fazia-se, para mostrar-lhe que
era demais ali.
D. Felícia. não tardou em
aperceber-se da tristeza da filha e interrogou-a. Nada colheu. Amália guardou o
seu segredo. Não queria afligir a mãe; e ainda menos expor Hermano a uma
censura ou queixa que talvez ainda mais o separasse dela.
Uma noite, porém, a
inquietação materna venceu o delicado escrúpulo da sogra, e D. Felícia. tomando
à parte Hermano, perguntou-lhe o que tinha Amália.
— Nada. Ela queixou-se?.
— Não, e é o que mais me
aflige. Pois ainda não reparou na mudança que ela tem feito nestes últimos
dias?.
A senhora mostrou-lhe de
longe a moça que nesse momento sentada de perfil e pensativa era a mais bela
estátua de melancolia, que um artista poderia imaginar. O mando ficou a olha-la
compassivo.
— Eu lhe dei, Hermano, para
fazê-la feliz.
— E é o meu ardente desejo;
e se bastasse o meu amor!….
A entrada do Sr. Veiga pôs
termo a esse diálogo. D. Felícia. aproximou-se da filha e tentou ainda
surpreender a causa daquela mágoa. Desta vez não fez nenhuma pergunta direta;
indagou disfarçadamente de mil coisas a ver se descobria algum arrufo. A moça,
porém, não manifestava a mais leve sombra de ressentimento…
Eram dez horas.
Amália estava só e pensava
no seu destino quando Hermano veio, como costumava, sentar-se perto dela.
Conversaram algum tempo.
— Anda triste, Amália? disse
por fim o marido.
— E não tenho razão,
Hermano?.
Ele tomou a mão da mulher, e
atraindo-a a si reclinou-se para beijar-lhe o rosto. Amália, cheia de rubores e
júbilos. palpitante de emoção, abandonou-se ao doce impulso; mas de repente,
faltando-lhe o apoio, o talhe descaiu sobre o recosto. .
Hermano soltara-lhe as mãos,
no momento em que seus lábios iam tocá-la; e erguera-se pálido, hirto, com a
visão pasmada, como se um espectro surgisse a seus olhos.
— Perdão! murmurou com a voz
abafada.
Esta súplica, porém, Amália
conheceu que não se dirigia a ela, pois o olhar do marido passava por ama de
sua cabeça e fitava-se além.
Afinal dominando-se,
sentou-se de novo, reportando à mulher aquela mesma exclamação com a V02 mais
livre.
Amália sob a influência
daquele estranho pavor, emudecera. O marido não se animou a quebrar esse
doloroso silêncio. Depois de um instante de perplexidade, murmurou umas
palavras de despedida, levantou-se e saiu do toucador.
O primeiro sentimento de
Amália depois da surpresa que lhe causara esse fato foi a revolta contra o
império que exercia a lembrança de Julieta no ânimo do marido, e a fraqueza
desse homem que se deixara subjugar àquele ponto.
A mulher, ou antes, a sombra
que sala do seu túmulo para disputar-lhe o marido, ela a odiava. Que direito
mais tinha Julieta sobre Hermano? Deus não os havia separado, levando-a deste
mundo e deixando-o, a ele, livre de amar e escolher outra esposa?.
Esse marido lhe pertencia
agora; e ninguém lho podia roubar. Tinha-lhe jurado fidelidade; e só ela podia
dar-lhe a ventura. Essas recordações que afligiam incessantemente o espírito de
Hermano, eram uma vingança de Julieta. Essa mulher nunca tinha amado
sinceramente o esposo; pois não sabia sacrificar-lhe o egoísmo de sua afeição.
A este assomo, ou talvez
delírio de sua imaginação exaltada pela ideias fantásticas do mando, sucedeu,
como era natural, o desanimo, o abatimento, a prostração do como e do espírito.
Vergou ao jugo da fatalidade
que a oprimia; e compreendeu que só havia para aquela situação insolúvel uma
saída. Era a separação.
Cumpra romper quanto antes o
laço que não era mais vínculo de união, e sim a algema de um .
Mas como? Que razão daria a
seus pais e ao mundo para aquele ato de tamanha gravidade e escândalo! De si
não se preocupava. O que não queria era lançar qualquer mácula sobre o marido,
a quem amava, e sujeitá-lo à reprovação geral.
Falada a Hermano logo no dia
seguinte, e combinaram o melhor meio.
Separar-se-iam como dois
irmãos queridos que o destino aparta e longe, lembrando-se um do outro
revivendo os dias felizes que haviam precedido o seu casamento se amariam
eternamente.
Mais tarde, talvez!….
Essa meiga esperança veio
afagar o seu pensamento, cerrou-lhe as pálpebras e trouxe-lhe um sono plácido,
depois de tão violentas emoções.
CAPÍTULO 17
Era tarde quando Amália
acordou Deitada ainda e envolta nas alvuras de suas roupas de linho, entrou a
olhar amorosamente os objetos que a cercavam, os móveis, as decorações da
parede, as árvores do jardim que ensombravam as janelas.
Tinha saudades deste sonhado
ninho de seu amor, onde, se não havia achado a ventura, fruira tão doces
momentos de enlevo conversando com seu Hermano.
E agora era preciso e com
eles as ilusões de uma de que lhe fugira quando a supunha segura. Sua esperança
despedia-se de todos estes companheiros de solidão, que lhe haviam sorriso nos
primeiros dias.
Hermano desde muito cedo
andava na chácara. Ao entrar em casa viu a mulher sentada na sala, a cismar.
Ela revolvia as dolorosas impressões da véspera, para fortalecer-se em sua
primeira resolução.
Vendo o mando que parara
indeciso, enviou-lhe o seu melancólico e resignado sorriso.
Hermano aproximou-se então e
disse-lhe impetuosamente com uma voz sufocada:
— Sou um miserável, Amália;
sacrifiqueia-a indignamente. Amei com paixão, jurei fazer a sua felicidade, que
era a minha, uni o meu ar, seu destino: e eu não me pertencia, não era livre,
não podia dispor de mim! Sou um miserável!.. Trai a minha primeira mulher, e à
segunda enganei!….
— Não me enganou, Hermano;
afaste semelhante idéia. Eu sabia o que se passava em seu espírito e previ o
que veio acontecer. Se alguém errou, fui eu que me iludi numa esperança falaz,
mas tão grata. que ainda me deixaria enlevar por ela se fosse possível.
— Sabia, Amália?… Mas por
que não me repeliu? E eu, cego que estava, roubei-lhe a felicidade, a
existência inteira!
— Tinha esse direito. Ela
lhe pertencia.
Hermano afastou-se
arrebatadamente com um gesto de desespero Amália foi a ele com o pensamento de
acalmar essa agitação e de convencê-lo da necessidade de uma separação que
aplacada os seus escrúpulos, e pouparia a ela novos e cruéis martírios.
O marido, porém, voltara
para dizer-lhe:
— Não se aflija, Amália!..
Cometi uma perfídia, mas não passou de uma alucinação!… A minha honra e a
minha lealdade não me abandonaram ainda e espero em Deus que não me hão de
desamparar nua cá. Juro restituir-lhe intata a sua liberdade que eu tive a
desgraça de comprometer. Resigne-se por alguns dias a este constrangimento. Ele
cessará, deixando-a outra vez senhora de si.
— É sobre isto mesmo que
desejava falar-lhe, Hermano. Refleti, penso que uma separação é necessária para
o sossego de ambos. De vemos porém fazê-la de modo que não nos fique mal. O
meio é que eu não sei. Se fosse possível!… Lembrei-me que na Europa, com a
viagens, ninguém suspeitada, nem mesmo mamãe.
— Oh! ninguém suspeitará! .
Terei o cuidado de ocultar! Tomarão por um incidente um acaso!
Hermano, preferindo estas
palavras com um tom equívoco e um sorriso pungente, deixou a moça entregue a
suas tristes reflexões.
A princípio ela não penetrou
o verdadeiro sentido daquela resposta do mando. Pensou que ele se referia
apenas ao pretexto da separação prometendo achar um que poupasse desgosto à
família e não desse azar à maledicência.
Mas aquele estranho sorriso,
e a qualificação de acidente dada pelo marido ao fato que devia desligá-los,
lançou em seu espírito uma dúvida cruel. Que pretendia ele fazer então,
simuladamente, para que os outro o atribuíssem a uma casualidade?….
Amália ergueu-se, trêmula de
horror. Adivinhara! Hermano tinha resolvido matar-se. Era essa a significação
daquele juramento que fizer de restituir-lhe a liberdade Para não expor a
reputação dela, de sua esposa, é que prometia levar a efeito o plano sinistro
de modo que ninguém desconfiasse do suicídio.
Ansiosa buscou o marido; mas
este se havia recolhido ao gabinete onde ela não animou a entrar.
Imagine-se o que devia
sofrer, pensando que naquele mesmo instante em que tremia atenta ao menor
rumor, ele, Hermano, talvez carregava o revólver, armava-o e… despedaçava a
cabeça com um tiro!
Nessa aflição foi ate a
porta do gabinete para escutar, e volveu mais tranquila lembrando-se de que o
marido lhe falara em uma demora de alguns dias. Tornou, porém, assaltada de
novos terrores, e chegou a bater.
Hermano abriu. Encontrando
Amália, saiu. fechou vivamente a porta sobre si, e dirigiu-se com a moça para a
sala próxima. Sua expressão era calma e natural; ninguém diria que ele ocultava
um desígnio funesto.
Essa placidez aquietou a
agitação da moça que para não toldar novamente o animo do marido absteve-se de
revelar o seu terror. Hermano como se nada houvesse ocorrido entre ambos,
passou a conversar acerca de coisas indiferentes, lembrando à mulher vários
divertimentos, que ela recusou.
Na continuação da conversa,
Amália confiada nessa tranquilidade, e querendo de uma vez acabar com a sua
inquietação, perguntou ao marido de que meio se tinha lembrado para realizar a
separação.
— O meio? disse ele. Só há
um, Amália.
— Qual?.
— A morte.
— Então, é verdade, quer matar-se?
exclamou a moça com desespero, e travando das mãos do marido, como para retê-lo
junto a si.
— Já sou um morto Metade do
meu ser há cinco anos desceu à sepultura. A outra metade que ficou neste mundo,
para expiação de suas culpas, não teria perturbado a sua felicidade, se
estivesse reunida àquela e restituída ao pó.
— Mas eu não quero que
morra, Hermano! Deu-me sua vida; ela me pertence; a mim também.
— Não a podia dar, Amália!
Não lhe confessei já que sou indigno, que a enganei?.
— Pois bem! Esta união é
nula; não existe. Mas a culpa é toda minha: carregarei com ela. Direi a minha
mãe que arrependi-me, que não tinha propensão para o casamento, que não sei
fazer a felicidade de meu marido… Direi o que for preciso, contanto que viva,
Hermano!
— Para quê, Amália, se a
amo, e não posso e não devo amá-la! respondeu o marido.
— Também eu o amo; mas não
penso em matar-me!
Hermano sorriu:
— Não preciso matar-me;
basta morrer.
— Jura-me que não atentará
contra sua vida?.
— Já disse, Amália. Não
careço do suicídio. Para que soprar a luz, se ela apaga-se por si?.
·— Mas dê-me sempre esse
juramento para sossegar o meu coração.
— Juro.
— Por ela?… Por Julieta?.
— Sim.
Estas cenas abalaram
profundamente o espírito de Amália. que abandonou a idéia de separar-se do
mando, naquelas circunstâncias, deixando-o sob a influência de tão sinistros
pensamentos. Apesar da confiança de Hermano, o juramento deste não lhe
dissipara as apreensões. Não suspeitava um ardil; mas temia uma fatalidade.
Até ali, o recato tão
natural em uma noiva, e ainda aumentado pela reserva do mando, lhe tolhia a
liberdade na própria casa em que devia ser dona. Nunca se animara a penetrar no
aposento de Hermano nem se lembrara disso.
Agora, porém, sua posição.
Tinha o dever de guardar e defender a vida do marido; e para isso carecia de
toda sua vigilância e solicitude. Era mais que tempo de assumir a sua
autoridade doméstica sem a qual não poderia isentar-se da grave
responsabilidade de esposa.
Assim, quando no dia
seguinte Hermano foi à cidade, ela depois de haver obtido dele a promessa de
voltar cedo e de o ter acompanhado com os olhos até perdê-lo de vista, saiu da
janela resolvida a ensaiar o seu papel de dona de casa.
Abreu, conforme o costume,
acabava de arranjar o aposento do amo, e ia sair fechando a porta para guardar
a chave no bolso, quando Amália entrou. Passado o seu espanto, o velho
decidiu-se a ficar de guarda à moça, que se sentara em uma cadeira de balanço.
Esse intento, porém,
frustrou-se.
— Pode retirar-se, Abreu, disse
a senhora com um tom brando, mas firme.
O ex-furriel estremeceu,
como se outrora o seu capitão lhe desse uma ordem contrária ao detalhe;’ e
ficou imóvel.
— Não ouviu?.
Aquela interrogação e o
olhar que a acompanhara, expulsaram o criado do gabinete. Ficando só, Amália
fechou-se por dentro e começou a sua investigação.. Temia que o marido tivesse
armas ocultas ou veneno. O que achou foram algumas chaves de aço, dourado,
enfiadas em um aro de prata.
Adivinhou de que aposentos
eram estas chaves, e abrindo com uma delas a porta de comunicação, passou ao
toucador de Julieta. As janelas cerradas deixavam o interior em um tênue
crepúsculo.
Ao dar o primeiro passo,
Amália recuou e presa de súbita vertigem, cairia, se as mãos não agarrassem
convulsivamente as cortinas da poda.
Instantes depois,
recolhendo-se precipitadamente ao seu quarto a moça caia de joelhos, banhada em
lágrimas e murmurando:
— Louco!.. Louco, meu
Deus!….
CAPÍTULO 18
Entrando no toucador de
Julieta, escassamente alumiado pela claridade que filtrava entre as laminas das
rótulas, Amália tinha visto, ali sentada junto à mesa de charão, tal como lhe
aparecera três meses antes a desconhecida.
Fora o abalo dessa visão que
lhe causara a vertigem. Tomando a si, ainda a viu no mesmo lugar, impassível.
Encheu-se de indignação e adiantou-se para expulsar de sua casa aquela indigna.
Apesar do estrépito dos
móveis arrastados, a desconhecida permaneça imóvel.
Amália travou-lhe do pulso,
e achou-o gelado. Era então um cadáver que tinha diante dos olhos? Não; apesar
do horror que a invadiu, pôde afina conhecer a verdade.
Era uma figura de cera.
Atônita com esta descoberta,
a moça lembrou-se da vez que avistara a desconhecida recostada no sofá; e
correndo ao quarto de dormir lá encontrou-a no mesmo lugar, coberta com um véu
de seda.
Era outra figura de cera
representando a mesma mulher com a única diferença da posição. Não podendo
imprimir movimento à estátua, o artista o tinha suprido com a mudança da
atitude e do gesto.
Qual era, porém, essa mulher
assim reproduzida? Amália não duvidava um instante que fosse Julieta, embora as
figuras não no espírito a lembrança vaga que tinha da primeira esposa de
Hermano.
Mas o retrato de Julieta ali
estava, suspenso à parede do toucador, em um grande quadro a óleo, que
representava a moca em corpo inteiro. Pela data via-se que fora tirado um ano
depois de seu casamento.
Entre a estátua e o retrato
havia muita afinidade de expressão; mas nos traços e contornos das feições, a
diferença era sensível. Poderiam ser duas irmãs; não eram, porem, a mesma
pessoa.
Hermano amara então outra
mulher depois de Julieta? Amália repelia essa conjetura, que repugnava com o
culto do mando pela esposa a quem primeiro se ligara.
A caixa de carvalho com
preparos de flores artificiais, tinha embutido na tampa o nome de Julieta. O
lenço e as roupas das figuras de cera estavam marcadas com três iniciais J. S.
A.; e da mesma forma o livro que Hermano lia à noite, um volume de Spirite de
Teófilo Gautier.
A perturbação que a
descoberta de tais particularidades lançou no espírito de Amália, cresceu com a
leitura salteada de alguns trechos daquela obra fantástica. Uma luz sinistra,
como a do relâmpago, feriu c seu pensamento; compreendia enfim!
O amor de Hermano era uma
demência. Não fora uma mulher que ele havia adorado, e adorava ainda; mas um
fantasma, um ente de sua imaginação. Esse ideal, ele tinha encarnado em
Julieta, desde o primeiro momento em que a vira.
Por que misteriosa relação
se havia operado essa transfusão, ninguém o poderia explicar, senão por uma
afinidade moral.
Morta Julieta, o ideal se
tornara outra vez fantasia ou sonho, até que pela mesma ignora afinidade se
encarnara de novo na imagem de painel do Veroneso, Ester ou Suzana, como
dissera o Teixeira, referindo a visita ao Louvre.
Estas figuras, pensava
Amália, são a cópia daquela imagem, a que Hermano dera o nome de Julieta por
ser o da primeira encarnação viva de seu ideal. Mas elas não tinham nada de
comum com a morta senão essa misteriosa relação, que transparecia em uns longes
da fisionomia .
Julieta não era formosa; e
toda a sua graça estava unicamente m expressão. A mulher reproduzida em cera
era uma beleza estatuária que ofuscava inteiramente o retrato. Como pois tinha
Hermano identificado essas duas imagens tão diversas?.
Este fenômeno só podia
explicar-se por um modo. Hermano não idolatrava a forma, embora a admirasse
quando ela realizava a sua imaginação . O que ele amava era uma larva, um
espírito, um duende de beleza imaterial, que transportara a principio para uma
mulher, depois para urna imagem e afinal para uma estátua.
Estes pensamentos
trabalhavam na mente de Amália, quando recolhida a seu toucador, e atirada em
uma poltrona baixa, ela cogitava sobre a cruel revelação que se fizera em sua
consciência.
—Achou em mim alguma coisa
que recordou Julieta ou antes t seu ideal. Foi minha voz cantando a ária da
Lucia que o atraiu; mas falta-me esse encanto, essa fascinação misteriosa que
um momento supôs encontrar.
Lançando um olhar ao
espelho, onde se refletiam as suas forma esplêndidas, ela suspirou:
— De que vale minha beleza?
Ele não a vê, não a percebe. Julieta não era bonita: seu retrato está muito
parecido; agora recordo-me bem dela, de quando passeava no jardim. Entretanto
ele a amou. Eu podia ser feia e muito feia; que também me amaria se eu fosse a
mulher que ele criou sua imaginação.
Mas por que não seda ela sua
mulher?.
Seu amor cheio de abnegação
inspirou-lhe então uma resolução generosa. Sua existência, que já não tinha
sedução nem fim ela a dedicada à felicidade do homem a quem amava. Adivinhara o
segredo dessa criação ideal da mente enferma de Hermano, e a realizaria em si.
Deus lhe daria forças para
operar essa nova encarnação. Dominando então o espírito do mando, o restituiria
à razão, ao mundo, ao verdadeiro amor; e seriam felizes.
Para isso era preciso, ela
bem o compreendia, fazer um sacrifício de sua personalidade; sacrifício
doloroso para as almas superiores, que têm uma individualidade, e que não podem
a exemplo das outras almas de estalão, despir o seu eu, e receber como a cera o
molde da vulgaridade.
Ser outro, negar-se a si
mesmo, suprimir-se moralmente, não se pode imaginar mais terrível suplício para
uma consciência altiva; e foi a este que Amália se condenou no intento de
salvar o marido ou perder-se com ele.
Decerto, naquela moça
travessa, risonha, incrédula e leviana, que antes enchia de sua alegria as
salas e os divertimentos, ninguém pensara encontrar um ano depois a mulher
dominada pela paixão mais sublime, e capaz de um heroísmo de amor raro na vida
ordinária.
Semelhante aberração não era
senão aparente. Ai nesse contraste manifestava-se o efeito de uma evolução
psicológica muito natural. A insensibilidade de Amália fora apenas a infância
prolongada de uma alma extremosa que só muito tarde conheceu a paixão.
Em vez de gastar-se nos
ensaios precoces de amor, com que as meninas antecipam a adolescência,
exaltando os perfumes de sua flor, Amália preservara o coração dessa babugem e
quando amou foi com todas as energias e arrojos da mulher.
Este romance de Amália, a
incompreensível encarnação do delírio de um cérebro enfermo, essa admirável
intuição, é que me propus contar; e agora sinto que não o conseguirei.
Como descrever a paciente
eliminação de uma ama a despojar-se de sua individualidade para infundir em si
o ser imaginário, filho de uma alucinação?.
Hermano voltara da cidade
Encontrando-se com ele à hora do jantar, Amália notou a sua expressão esquiva e
o olhar suspeitoso que lhe perscrutava a fisionomia. O Abreu sem dúvida contara
que ela estivera no gabinete; e o marido receava-se dos efeitos dessa
investigação.
O modo expansivo e natural
com que o tratou a mulher, foi dissipando as suspeitas de Hermano, que por
vezes mostrou um contentamento sincero.
Quando se levantaram da
mesa, Amália, disse ao marido com meiguice:
— Eu tinha tanta vontade de
conhecer Julieta!
Hermano disfarçou por
delicadeza; mas insistindo a mulher e reiterando perguntas sobre as feições de
Julieta, ele foi ao gabinete donde voltou com uma fotografia colorida. Era a
mesma imagem do retrato a óleo.
— Como e bonita! exclamou
Amália com um entusiasmo que o seu amor a obrigava a simular.
— Isso é apenas a sombra de
sua beleza. Falta-lhe o olhar, o gesto, a voz.
— De que cor eram os olhos?.
— A cor… Não sei: mas o
olhar ainda o sinto: era como o seu agora, Amália.
A moça corou e as pálpebras
rosadas vendaram os seus belos olhos cheios de luz.
Continuaram a conversar
acerca de Julieta.
Mais tarde Hermano ficou
distraído, absorto. Amália sabia agora o motivo Eram os sintomas da alucinação
que, em certa horas e ocasiões, desvairava o espírito do marido.
A moça foi sentar-se ao
piano e abriu a ária do Fausto Hermano lhe dissera um momento antes que era uma
das peças favoritas de Julieta.
Ela cantou: e o marido que
já se tinha retirado, veio sentar-se outra vez a seu lado, e ficou ali preso a
sua voz.
À última nota ele estremeceu
e partiu. Esse canto era de Julieta que o chamava.
CAPÍTULO 19
Cala a tarde.
Amália e Hermano sentados no
jardim, contemplavam em silêncio as esplêndidas decorações, que os arrebóis
desfraldavam no horizonte sobre as encostas da montanha.
A moça afinal curvou a
fronte e cerrando a meio os cílios para concentrar-se disse ao marido:
— Ainda havia neste mundo
uma felicidade para mim, Hermano: e essa não lhe custaria o menor sacrifício.
O olhar do mando
interrogou-a: ela respondeu com a voz súplice;.
— Não me pode dar o seu
amor; bem o sei, e não o exijo; mas a sua amizade, sua confiança, por que
motivo a recusa a quem não tem outro pensamento senão a sua felicidade? Não lhe
mereço nem esta prova de estima?.
Hermano quis interrompê-la:
ela não consentiu:
— Não poderíamos viver como
dois irmãos que se querem, e se amparam mutuamente nas suas tristezas e
infortúnios? Por que há de ter segredos para mim que nada lhe oculto do que se
passa em minha alma? Cuida que tenho ciúmes de Julieta? Engana-se.
Vendo pintar-se a dúvida no
semblante do marido, Amália apressou-se em desvanecê-la:
— Quer uma prova? Estive
ontem no toucador de Julieta e, entretanto, quando voltou da cidade, ainda
achou-me nesta casa, onde me conservo. Se eu não o amasse e a ela também, com
amor de irmã, sofreria essa preferência, que era uma humilhação cruel para a
esposa?.
Desde esse momento, Hermano
não teve mais segredos para Amália; e esta, durante as suas longas confidências
pôde ler nas recordações do marido como nas páginas de um livro inédito, toda a
história do homem a quem se unira.
Hermano contou-lhe uma e
muitas vezes as menores circunstâncias de sua vida com Julieta. As impressões
nessa alma opulenta eram profundas. A efígie da mulher amada ficara ali fundida
como uma estátua ideal.
Amália passava as horas nos
aposentos, que tinham pertencido, e ainda pertenciam, à sua rival Ai coligia
todos os traços, todos os vestígios, deixados pela pessoa que os habitara e com
esses indícios esforçava-se em recompor a mulher que ela não conhecera, e que
mal vira de longe com olhos de criança.
Ao cabo de uma semana, sabia
os gostos de Julieta, os seus perfumes prediletos, os moldes de que ela mais
gostava, as cores de seu agrado, as músicas favoritas; todas essas simpatias
que formam a originalidade de um caráter.
Amália tinha o mesmo corpo
de Julieta com alguma diferença das formas que nela eram mais ricas e
harmoniosas. Vencendo a repugnância que a principio sentira, a moca chegou a
trajar-se completamente com as roupas e enfeites da morta.
Pensava acaso que esses
objetos lhe transmitiriam pelo contato alguma coisa da pessoa a quem haviam
servido? Ou buscava apenas criar uma semelhança que favorecesse a ilusão de
Hermano?.
Ela própria não sabia que
tenção era a sua. Não calculava: cedia à influência de um desejo intenso.
Queria ser a mulher que Hermano amava, como Julieta fora antes dela.
Nos livros que achou na
pequena estante do toucador, também Amália colheu muitas idéias, de que se
apropriou para imitar o misticismo do original que ela se propunha copiar.
Um dia disse a Hermano:
— Eu acredito que Julieta me
quer bem. Quando estou aqui, no seu quarto, tenho um contentamento, como se
estivesse em sua companhia. As vezes parece que ela me abraça.
Outro dia, no meio de uns
idealismos romanescos, teve esta inspiração:
— O amor uniu a alma de
Julieta à sua, Hermano. Por que não poderá Unir da mesma forma a alma dela à
minha, que também o ama?.
A transformação de Amália já
era tão perfeita, que enganava Hermano e até o Abreu, sobretudo quando ela
disfarçava com uma renda preta os seus lindos cabelos louros, ou mesmo tingia
com algum cosmético.
O velho criado habituou-se a
ver nela a imagem de Julieta, e desde então envolveu-a na afeição que votara à
sua filha de criação. Estimou a, como se estima um retrato de pessoa a quem se
quer.
Quanto a Hermano, tinha
momentos de completa ilusão, em que supunha se transportado aos tempos de seu
primeiro casamento. Apagava-se então de sua memória todo o tempo que vivera
depois da morte de Julieta e ele era feliz como se ainda tivesse a seu lado a
mulher a quem amava.
De repente, porém, uma
circunstância qualquer, um incidente mínimo, que Amália não percebia, talvez um
volver dos olhos, uma inflexão de gesto, o contato das mãos, rompia o encanto;
e ele recuava como o homem que vê abrir-se por diante um abismo.
Fugia então; e ia abrigar-se
daquela sedução no quarto de Julieta perto da estátua, que para ele
representava o despojo material da alma de sua primeira mulher.
Amália recomeçava então com
a mesma energia e perseverança aquela indução paciente, que terminava em
decepção. Crescia-lhe a esperança, porque a sua fascinação aumentava a cada
instante ela não podia duvidar. Hermano resistia ainda mas chegaria o momento,
em que se deixaria vencer, e então ele lhe pertenceria e seriam felizes.
Se adivinhasse o efeito que
essa luta produzia no animo do marido, e o extremo a que o arrastava, ela
decerto a abandonaria, cheia de horror.
Com efeito Hermano, quando
libertava-se da fascinação que Amália exercia sobre ele, enchia-se de pavor
pelo perigo que o ameaçara. Estivera a ponto de cometer esse crime que era para
ele o mais indigno por ser o roubo da honra e da vida.
Via-se já réu de um
adultério infame!
Ter enganado a moça a quem
se unira em segundas núpcias sacrificando a sua felicidade, que ele não podia
dar-lhe, era já uma vilania de que se envergonhava, e da qual decidira
resgatar-se com a morte. Que nome teria essa indignidade, se a agravasse com a
mácula da virgem pura e ingênua que se confiava de sua lealdade?.
Era preciso, ele o senha,
pôr um termo a esta situação, e salvar-se de um perjúrio atroz que o condenaria
à eterna separação de Julieta Mas tinha de esperar não podia dispor de sua vida
antes de oito dias.
Quanto lhe custou a passar
esta ultima semana!
Na ocasião em que cegamente
apaixonado por Amália, decidiu pedi-la em casamento, Hermano refletiu sobre o
destino que devia dar às relíquias da primeira mulher Não podia guardá-las como
tinha feito até ali, porque seria isto uma infidelidade à esposa atual: não se
animava, porém, a abandonar e como que expelir de si essas imagens e objetos,
tão impregnados de sua vida, que faziam parte dela. Seria mutilar-se
moralmente.
Tomou uma resolução que
pudesse conciliar tais escrúpulos Reuniu naqueles dois aposentos de Julieta
tudo que lhe pertencera e fechou-os como se fossem a sepultura onde jazia a
alma da primeira mulher. Quanto à outra sepultura, onde jaziam as cinzas, dessa
não se lembrava, nem a conhecia: era um pouco de pó.
Depois, quando na própria
noite do casamento o indefinível terror de um adultério fantástico apoderou-se
de seu espírito enfermo, ele refugiou-se nos aposentos de Julieta, encerrou-se
ali naquele túmulo, onde encontrava o sossego e a ressurreição do passado.
Agora, porém, já não tinha
esse refúgio já não podia transpor os umbrais da eternidade para encontrar-se
com Julieta e amá-la. Até ali, nesse mesmo santuário, onde guardara todas as
relíquias da morta, ate ali o perseguia a formosa imagem de Amália.
Sentia a tépida fragrância
que a moça deixara na sua passagem, e que derramava um sopro de vida nesses
objetos frios e abandonados. O toque de outras mãos animara aquela solidão e as
mesmas estátuas de cera pareciam influir-se de outra alma mais ardente, mais
apaixonada do que a de Julieta.
Assim, quando Hermano corria
a abrigar-se ai da sedução de uma Amália parecida com Julieta, ele já não
encontrava a mulher de outros tempos, mas sim uma nova Julieta semelhante a
Amália e mais formosa que a primeira.
Quantas vezes não voltou
buscando essa visão encantadora! Mas já não a via; Amália tinha-se feito
Julieta aquela esplêndida beleza de outrora se eclipsara.
Se em um desses momentos, a
formosa criatura se mostrasse qual era, em seu fulgor, Hermano teria sucumbido:
e talvez aquela insana obsessão que o afligia se dissipasse para sempre.
Mas a coincidência não se
deu; e afinal chegou a época em que Hermano julgou-se livre de dispor de sua
vida. Só faltava a ocasião esta não tardou.
Havia um baile no dia
seguinte. Amália a principio repugnou ir, por fim cedeu às instâncias do
marido. Seu traje era copiado de um que achara no guarda-roupa de Julieta, um
vestido de tule com sombra e laivos escarlates.
Estava encantadora, mas
senha-se inquieta e nervosa. Durante a dança não tirava os olhos de Hermano, e
a cada instante chamava-o para perto de si.
De repente perdeu-o de
vista. Acabada a quadrilha, ansiosa perguntou por ele a D. Felícia.
— Ah!… Esqueceu a carteira
e um amigo convidou-o a jogar. Foi a casa não tarda Pediu-me que te prevenisse.
D. Felícia voltando à
conversa que interrompera para dizer rapidamente estas palavras, não viu a
palidez da filha.
Amália dominou o tenor que a
invadira, dirigiu-se ao toucador, envolveu-se na capa e desceu as escadas
apressadamente. No patamar encontrou o lacaio e mandou chegar o carro.
— Para casa! Depressa!… disse
abrando-se sobre as almofadas do cupê.
Depois, enquanto os cavalos
trotavam pela calçada da Glória, ela travando as mãos convulsivamente,
murmurava:
— Chegarei a tempo, meu
Deus?.
CAPÍTULO 20
Amália tinha razão de
assustar-se.
Hermano deixara o baile,
decidido a realizar a sua idéia fatal. Contava que o pretexto do esquecimento
da carteira lhe daria Uma hora de liberdade, e tanto bastava para consumar o
plano medonho que havia concebido.
Ele prometera à mulher e a
si mesmo jurara, dar à sua morte aparências de acidente, de desastre casual.
Escolhera o incêndio. Sempre fora sectário da cremação. O corpo abandonado da
alma era para ele matéria em corrupção: o fogo a purificava e consumindo
imediatamente a forma humana, evitava a sua profanação, pois outro nome não têm
certas cerimônias fúnebres.
Mas o seguro de sua casa não
estava findo; e a consciência não lhe permitia fraudar os seguradores com a
indenização que teriam de pagar a seus herdeiros pelo dano do incêndio Por isso
foi obrigado a adiar o seu projeto. O termo da apólice tinha expirado na
véspera estava livre enfim.
Ao sair do baile, tomou um
tílburi que o levou a casa. O portão estava cerrado apenas, e o Abreu, que
fumava sentado na escada, veio ao seu encontro, admirado de não ver a senhora.
— Esqueci a minha carteira e
vim buscá-la para pagar uma divida de jogo mas sinto-me tão fatigado que não
tenho animo de voltar ao baile vou escrever um bilhete à senhora.
Deste modo afastou o velho
criado cuja vigilância temia que pudesse frustrar o plano. No bilhete que por
ele enviara à mulher, depois de escusar-se de ter saído do baile e de não ir
buscá-la, rematava com estas palavras.
“Agora, Amália, é que
eu conheço quanto a amo: pois esta curta ausência de alguns instantes parece-me
uma separação eterna.
Ficando só Hermano
trancou-se no toucador de Julieta. Depois de fechar as portas e janelas abriu
os bicos de gás, e sentou-se em face da figura de cera. O aposento era apenas
esclarecido pela vela do castiçal colocado sobre a mesa.
Acreditava aquele visionário
que era bastante a vontade de reunir-se a Julieta para que sua alma deixasse
este mundo e se restituísse à sua metade. Nessa convicção, havia jurado a
Amália não matar-se; e tinha consciência de respeitar o seu juramento.
Quando o gás que se exalava
dos bicos abertos, se fosse condensando no aposento quase hermeticamente
fechado, e afinal se inflamasse à luz da vela produzindo uma explosão, o
incêndio o acharia morto já, e não serviria senão para destruir o seu despojo e
as relíquias de Julieta, que não devia abandonar à alheia profanação.
Ele e tudo quanto amara não
seriam mais do que cinzas, dispersas pelo vento; e no dia seguinte ninguém
suspeitaria da verdade. Um incêndio é fato comezinho e tão frequente!
Em cima da mesa estava uma
fotografia em ponto grande, cuja moldura inclinada em estante mostrava Um lindo
retrato. Amália o havia tirado poucos dias antes; e naquela tarde,
aproveitando-se de uma ausência do marido, o colocara ali para fazer-lhe uma
surpresa.
Esse retrato não era a
imagem fiel da beleza radiante de Amália, mas a cópia da transformação que
sofrera a moça depois de seu casamento, e especialmente nos últimos dias. Assim
como o louro brilhante de seus cabelos se ofuscara na sombra de uma renda
preta, também os fulgores dos grandes olhos, e o sorriso cheio de graça, eram
amortecidos por uma doce melancolia. Parecia que um véu de timidez apagara-lhe
a formosura cintilante.
A luz da vela dava de chapa
sobre a fotografia. Hermano olhou e viu pela primeira vez o retrato. Reconheceu
o vulto, a atitude, o gesto, as roupas as joias e uns matizes indefiníveis que
só ele talvez percebesse. Era Julieta: mas através da sombra de Julieta, ao
longe, como uma estrela imersa no azul surgia a imagem luminosa de Amália.
Foi então que esse cérebro
já tão exaltado precipitou-se na derradeira e mais violenta das alucinações que
o tinham abalado. As duas mulheres que Hermano havia amado neste mundo,
erguiam-se em sua alma, como duas soberanas em campo de batalha, para
disputarem o seu despojo.
Quando já a consciência da
realidade o ia abandonando, ouviu rumor na casa e teve Um rápido momento lúcido
para recear que o viessem perturbar na consumação de sua idéia sinistra.
Ergueu-se e saiu fora, lembrando-se de fechar a porta, para que não se
escapasse o gás, já condensado no aposento.
Foi mesmo às escuras trancar
a comunicação para o fundo da casa onde estavam os criados, e livre do receio,
caiu de novo no delírio, que o havia acometido, e no qual se apagaram os
últimos lumes da razão.
Nos raptos da imaginação,
viu outra vez as duas esposas, a quem havia jurado fidelidade. Às vezes, elas
se aproximavam, perto, muito perto, uniam-se estreitamente, e fundiam-se numa
só massa vaporosa, donde surgia afinal essa mulher dúplice, essa Julieta-Amália,
que estava pintada no retrato.
Pouco depois a imagem da
esposa gêmea também por sua vez apagava-se em uma sombra indecisa, da qual se
destacavam as duas moças, cada uma no seu tipo distinto Julieta com a esquisita
elegância, que vestia de uma graça divina a sua figura apenas regular e Amália
com a deslumbrante beleza, que materializava a sua alma, vazando-a em formas
esplêndidas.
Em face uma da outra Amália
triunfava. Ela era a aurora: e sua rival o crepúsculo suave e encantador. Assim
Julieta timidamente, envolta no seu perfume de modéstia, afastava-se: e a
sombra gentil e melancólica ia-se desvanecendo até esvair-se no fulgor que
derramava a formosura da rival.
Foi então que Hermano sentiu
uma dor agudíssima, como se lhe arrancassem vivo o coração. Arrojou-se com todo
o ímpeto de seu amor para chamar a esposa, que se separava dele pela
eternidade. Era ela a primeira amada, e nesse momento a única. A ela devia
pertencer exclusivamente por isso iam unir-se outra vez: a morte que os tinha
apartado não tardaria em ligá-los de novo, revertendo-os um ao outro.
— Julieta! exclamou ele em
um grito de ânsia.
A esposa o tinha ouvido ali.
Ali estava ela a seu lado. A luz desaparecera e os seus raios se haviam
transformado em estrelas. Foi ao trêmulo dessa luz celeste que ele divisou a
sombra amada. Ela trazia o seu traje favorito de baile, o mesmo com que a viu
da primeira vez.
Julieta lhe cingira o colo
com o braço e ele sentia o doce contato do talhe gentil na sua espádua e no seu
flanco. Depois a voz terna e queixosa da esposa murmurou-lhe ao ouvido como um
arpejo:
— Ingrato!….
— Perdão, Julieta, perdão!
confesso que Amália me fascinou: mas o que eu amei nela foi unicamente a tua
lembrança, a tua alma que às vezes eu ouvia em seus lábios, e via em seus olhos.
O que era ela, e só ela, a sua beleza, essa eu a admirava mas enchia-me de
terror. Resistia à tentação, refugiando-me em teu amor: e se tu não me
amparasses, teria sucumbido! Salvei-me, preservei minha alma ela está pura como
a deixaste, e vai reunir-se à tua pela eternidade. Eis o momento. Recebe-me em
teu seio; não me deixes mais um instante neste mundo, pois aqui mesmo, perto de
ti, próximo a infundir-me no teu ser, eu a vejo, eu a sinto, a ela, a Amália: e
tenho medo que venha arrebatar-me de b e separar-nos para sempre.
A voz de Julieta
murmurava-lhe então ao ouvido:
— Não tenhas este receio,
meu Hermano. Queres saber por que tu vês Amália, em mim, em tua Julieta? É
porque ela te ama como eu te amei, com igual paixão. Ela e eu não somos senão a
mesma e única mulher que tu sonhaste. Podes dar-te a ela: é como se te desses
novamente a mim. Vi que estavas triste e só no mundo; que a minha lembrança não
te bastava; e então revivi em Amália, transmiti-lhe minh’ alma para que fosse
tua esposa; para que tu me adorasses em uma imagem viva, que te retribuísse, e
não em uma estátua de cera.
— Embora; estou cansado de
viver; quero reunir-me a ti, em espírito, desprendendo-me dessa materialidade
impura, que pode subjugar a alma, e arrasta-la ao crime. Amália é minha esposa
perante os homens; e desde que nela está a alma de minha Julieta, ela é também
minha esposa perante Deus; poderei pertencer-lhe legitimamente, porque te
pertenceria a ti: mas essa poderosa sedução de sua beleza, se eu a sofresse de
outra mulher?.. Não passaria de novo pelo martírio que me atormentou?… Melhor
é nos reunirmos no céu recolhe a alma que deste a Amália, e leva-nos com ela.
A voz melodiosa suspirou
outra vez:
— Queres morrer, meu
Hermano? Queres deixar o mundo? Pois bem, dá-me tua alma: deixa-me absorvê-la
na minha, e confundi-las que não formem senão uma só. Então abandonaremos a
terra e iremos esconder-nos no seio de Deus, que nos criou.
Então Hermano sentiu uns
lábios que se embebiam nos seus e hauriam-lhe a vida. Esse beijo ideal foi como
a inalação do espírito que animara o seu corpo e que absorvido por Julieta, o
desamparou. Desde esse momento ele não foi mais do que uma múmia.
E assim, como um corpo ermo
de vontade e pensamento, seguiu Julieta, ou melhor diria, a alma gêmea em que
se tinham condensado a sua e a da esposa. Atravessaram uma série de anos eram
os de sua existência, cujo curso haviam remontado, e agora de novo repassam.
Todas as fases de sua história, ele as reviveu com uma mulher que não era nem
Julieta, nem Amália mas as duas vazadas em um só molde.
O passado e o presente se
travavam e confundiam. O seu primeiro casamento que fora de manhã, e o segundo
que celebrara à noite as noivas, de tipos diversos; aqueles dois toucadores, um
azul e branco, e outro rosa e ouro; todas essas coisas se haviam identificado.
A mulher que ele amara tinha
a beleza de Amália e a alma de Julieta. Com essa mulher percorreu toda a sua
vida até aquele momento em que resolvera deixar o mundo para consumar o
consórcio da eternidade.
Uma nuvem branca e nítida
vendava-lhe o céu. Ali estava um objeto cuja forma não distinguia; parecia-lhe
o corpo, depurando a alma e preparando-a para a bem-aventurança.
Ele estava só; junto dele
não havia outro corpo, mas uma essência divina, em que se imergia; um
resplendor que se condensava em formas voluptuosas para envolvê-lo de luz. As
chamas dessa luz o abrasavam, mas com uma lava doce e inebriante, que lhe
acrisolava o ser. Enfim ele sentiu que sua alma desprendendo-se das cinzas,
remontava ao céu.
Nesse momento D. Felícia que
voltava do baile com o marido soltou um grito de terror vendo o grande clarão
que avermelhava o horizonte.
Um incêndio violento
devorava a casa de Hermano.
CAPÍTULO 21
Cinco anos permaneceram em
abandono as ruínas da casa incendiada. Um ilhéu que alugara a horta para
negócio, tratava da chácara.
Já se tinha desvanecido a
lembrança do sinistro, quando uma manhã, cerca de onze horas, parou ao portão
uma vitória descoberta, conduzindo pessoas com o aspecto muito conhecido de
viajantes que desembarcam.
O assento principal era
ocupado por uma senhora de rara formosura, trajada com elegância, e por um
homem de parecer distinto, ainda moço apesar dos fios de prata que matizavam os
seus cabelos negros.
Em frente a eles ficava uma
gentil menina de quatro anos, na qual reproduzia-se como em uma miniatura a
beleza da senhora, porém, com certo contraste de fisionomia Tinha as feições da
mãe, os mesmos traços, a mesma expressão; mas os cabelos e os olhos eram
castanhos, e não louros.
Um criado velho, que vinha
ao lado do cocheiro saltara do carro e abrira o portão, enquanto o cavalheiro
apeava-se com a família.
— Espera-nos aqui, Abreu,
disse a senhora entregando a filha ao criado, e não deixe Julieta apanhar sol.
Tomando então o braço do
marido, seguiu pelo passeio gramado da chácara na direção das ruínas que
apareciam por entre as árvores e Indicavam o lugar onde fora a casa.
O incêndio desmoronando o
teto e consumindo todo o madeiramento, deixara em pé as paredes do edifício de
modo que de fora via-se como um esqueleto a antiga habitação com seus aposentos
e divisões.
— Lembras-te, Hermano?
perguntou a senhora fitando no marido seus grandes olhos cheios de luz.
— De tudo, Amália, respondeu
simplesmente o marido.
Como para confirmar a sua
asseveração, Hermano começou a recordar as reminiscências dos dias que ali
vivera com Amália, apontando os menores incidentes e os lugares da casa em que
tinham ocorrido.
Amália respirou do soçobro
em que trazia a alma e que debalde tentava abafar. A casa, que a memória de
Julieta enchia antigamente, agora não era mais povoada senão de sua lembrança.
Daí passaram à chácara e
percorreram os sítios, em que tão viva era para Hermano a presença de sua
primeira mulher. Essas recordações primitivas tinham sido apagadas pelas outras
recordações mais recentes de seu amor por Amália.
Outrora o passado surgia com
tanto vigor na vida desse homem que anulava o presente. Agora era o presente
que reagia de modo a substituir-se ao passado. Hermano não se lembrava de ter
amado nunca outra mulher senão a sua Amália e identificava tão completamente as
duas esposas, que Julieta já não era para ele senão um primeiro nome daquela a
quem se unira para sempre.
Afinal sentaram-se para
descansar, em um sombrio formado pela copa de uma mangueira frondosa, donde
pendiam ramas de maracujá.
Hermano recolheu-se, como
para penetrar mais profundamente em suas recordações, e murmurou:
— Não me lembro do incêndio!
Amália conchegou se, e
apoiando o rosto na espádua do marido começou a sussurrar-lhe ao ouvido,
cobrindo a face com a mão para esconder o rubor:
— Tu me deixaste no baile…
Eu tive um pressentimento cruel e corri… Felizmente ainda encontrei-te;
estavas na sala em pé. Foi talvez o rumor de meus passos que te perturbou Eu
prendi-te nos meus braços com receio que me fugisses. Tu me contaste tudo
Querias morrer para não ser infiel a Julieta e tinhas preparado o incêndio que
devia consumir o teu corpo, e a imagem daquela que h amavas. Eu também devia
morrer, e consumir-me contigo. Foi então que nossos lábios se tocaram. Tu me
pertencias. e eu salvei-te para o meu amor. Era preciso arrancar-te desta casa;
quando partimos, sem que nos vissem deixei nela o incêndio que a devorou Depois
partimos para a Europa e….
— E eu renasci para a
felicidade, disse Hermano, cingindo a loura cabeça da moça e pousando-lhe um
beijo na face.
— Esta manhã, vendo ao
longe, de bordo do vapor a praia de Botafogo, tive medo, e por isso trouxe-te
aqui apenas desembarcamos. Se estes lugares ainda conservassem para ti alguma
sombra do passado, partiríamos hoje mesmo para Montevidéu, para qualquer parte
do mundo, onde a tua felicidade não corresse perigo Mas estou tranquila podemos
reconstruir a nossa casa e viver aqui, onde nasceu o nosso amor.
— De tudo isto só uma coisa
não compreendo. disse Hermano.
— O que? perguntou Amália
assustada.
— Fica tranquila; a
alucinação passou; tenho a razão inteiramente livre. O que não compreendo é
como sendo tu e Julieta tão diferentes uma da outra, têm aos meus olhos uma
semelhança tão grande, que parecem a mesma.
Nesse momento as folhas
rumorejaram.
A menina que estava
impaciente pela mãe, iludira a vigilância do velho criado e correra para Amália
cujo vestido descobrira através da folhagem.
— Olha! disse a moça
apresentando ao marido o rostinho gracioso da filha.
— É verdade!
***
José Martiniano de Alencar (1º de maio de 1829 – 12 de dezembro de 1877) foi um
advogado, político, orador, romancista e dramaturgo brasileiro. É considerado
um dos mais famosos e influentes romancistas românticos brasileiros do século
XIX e um dos maiores expoentes da tradição literária conhecida como
“indianismo”. Às vezes, ele assinava suas obras com o pseudônimo de Erasmo.
Foi patrono da 23ª cadeira da Academia Brasileira de
Letras.
José Martiniano de Alencar nasceu em Messejana,
Fortaleza, Ceará, em 1º de maio de 1829, filho do político José Martiniano
Pereira de Alencar e sua prima Ana Josefina de Alencar. Sua família era um clã
rico e influente no Nordeste do Brasil, sendo sua avó a famosa proprietária de
terras Bárbara Pereira de Alencar, heroína da Revolução Pernambucana.
Mudando-se para São Paulo em 1844, formou-se em Direito pela Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo em 1850 e iniciou sua carreira jurídica no
Rio de Janeiro. A convite do amigo Francisco Otaviano tornou-se colaborador do
jornal Correio Mercantil. Também escreveu muitas crônicas para o Diário
do Rio de Janeiro e o Jornal do Commercio. Alencar compilaria todas
as crônicas que escreveu para esses jornais em 1874, com o nome de Ao Correr
da Pena.
Foi no Diário do Rio de Janeiro, no ano de 1856,
que Alencar ganhou notoriedade, escrevendo as Cartas sobre A Confederação
dos Tamoios, sob o pseudônimo de Ig. Neles, critica amargamente o
poema homônimo de Gonçalves de Magalhães. Até o imperador brasileiro Pedro II,
que muito estimava Magalhães, participou dessa polêmica, ainda que sob
pseudônimo. Ainda em 1856, escreveu e publicou sob a forma de folhetim
seu primeiro romance, Cinco Minutos, que foi aclamado pela crítica.
No ano seguinte, seu romance inovador, O Guarani,
foi lançado; seria adaptado para uma famosa ópera do compositor brasileiro
Antônio Carlos Gomes 13 anos depois. O Guarani seria o primeiro romance
do que é informalmente chamado de “Trilogia Indianista” de Alencar –
uma série de três romances de Alencar que enfocava os fundamentos da nação
brasileira, seus povos indígenas e sua cultura. Os outros dois romances, Iracema
e Ubirajara, seriam publicados em 1865 e 1874, respectivamente. Embora
chamados de trilogia, os três livros não estão relacionados em seus enredos.
Alencar era filiado ao Partido Conservador do Brasil,
sendo eleito deputado geral pelo Ceará. Foi Ministro da Justiça brasileiro de
1868 a 1870, tendo se oposto à abolição da escravatura. [1] Ele
também planejava ser senador, mas Pedro II nunca o nomeou, sob o pretexto de
Alencar ser muito jovem; com seus sentimentos feridos, ele abandonaria a
política mais tarde.
Teve grande amizade com o também famoso escritor Machado
de Assis, que em 1866 escreveu um artigo elogiando seu romance Iracema ,
publicado no ano anterior, comparando suas obras indianistas às de Gonçalves
Dias, dizendo que “Alencar estava na prosa o que Dias foi na poesia “.
Quando Assis fundou a Academia Brasileira de Letras, em 1897, escolheu Alencar
como patrono de sua cadeira.
Em 1864 ele se casou com Georgina Augusta Cochrane, filha
de um excêntrico aristocrata britânico. Teriam seis filhos – Augusto (que seria
ministro das Relações Exteriores do Brasil em 1919, e também embaixador do Brasil
nos Estados Unidos de 1920 a 1924), Clarisse, Ceci, Elisa, Mário (que seria
jornalista e escritor, e membro da Academia Brasileira de Letras) e Adélia.
(Fica implícito que Mário de Alencar era na verdade filho ilegítimo de Machado
de Assis, fato que inspirou Assis a escrever seu famoso romance Dom Casmurro).
Alencar morreu no Rio de Janeiro em 1877, vítima de
tuberculose. Um teatro de Fortaleza, o Teatro José de Alencar, foi batizado em
sua homenagem. Suas obras foram marcadas pela influência de sua fé católica
romana.
OBRAS
Romances
Cinco Minutos ( 1856 )
A Viuvinha ( 1857 )
O Guarani ( 1857 )
Lucíola ( 1862 )
Diva ( 1864 )
Iracema ( 1865 )
As Minas de Prata ( 1865 – 1866 )
O Gaúcho ( 1870 )
A Pata da Gazela ( 1870 )
O Tronco do Ipê ( 1871 )
A Guerra dos Mascates ( 1871 – 1873 )
Til ( 1871 )
Sonhos d’Ouro ( 1872 )
Alfarrábios ( 1873 )
Ubirajara ( 1874 )
O Sertanejo ( 1875 )
Senhora ( 1875 )
Encarnação ( 1893 – póstuma)
Teatro
O Crédito ( 1857 )
Verso e Reverso ( 1857 )
O Demônio Familiar ( 1857 )
Asas de um Anjo ( 1858 )
Mãe ( 1860 )
A Expiação ( 1867 )
O Jesuíta ( 1875 )
Chronicles
Ao Correr da Pena ( 1874 )
Autobiografia
Como e Por Que Sou Romancista ( 1873 )
Críticos e polêmicas [
Cartas sobre A Confederação dos Tamoios ( 1856 )
Cartas Políticas de Erasmo ( 1865 – 1866 )
Sistema Representativo ( 1866 )
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Como escrever no estilo de ERNEST HEMINGWAY
Ernest Hemingway; romancista, contista, jornalista e esportista americano. Seu estilo econômico e discreto de escrever – que ele chamou de teoria do iceberg – teve uma forte influência na ficção do século 20 e até hoje. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1954. Muitas de suas obras são consideradas clássicas da literatura norte-americana:
‘O Sol Também se Levanta’
‘Adeus às Armas’
‘Por Quem os Sinos Dobram’
‘O Velho e o Mar’
Neste livro você terá o contato com as técnicas de redação Ernest Hemingway.
Interpretação de seus textos e sua escrita criativa. Criação e crítica literária de sua obra.
Composição e conhecerá a criatividade literária de Hemingway.