Ler online: MACUNAÍMA, Mário de Andrade

 

 


MACUNAÍMA 

o herói sem nenhum caráter

 

Mário de Andrade

 

© Copyright 2017, VIRTUALBOOKS EDITORA E
LIVRARIA LTDA. 1ª edição  1928
Capa: Carmem Cândido Rodrigues
Carlotinha •  Goiânia – GO/BrasilTodos os direitos reservados e protegidos pela
lei no 9.610, de 19/02/1998.  Mario Raul Morais de Andrade (São
Paulo, 9 de outubro de 1893 — São Paulo, 25 de fevereiro de 1945)
MACUNAÍMA, Mário de Andrade. Pará de Minas, MG:
VirtualBooks  Editora,  Publicação 2017. Nossa edição impressa: 14×20
cm. 162p.   Literatura brasileira. Rapsódia.
Brasil. Título. 978-ISBN 65-5606-157-3 CDD-
B869

 

 

 

I

Macunaíma

 

No fundo do mato-virgem
nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da
noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo
do Uraricoera, que a índia, tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é
que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de
sarapantar. De primeiro: passou mais de seis anos não falando. Sio inci­tavam a
falar exclamava: — Ai! que preguiça!. . . e não dizia mais nada.” Ficava
no canto da ma­loca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos
outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na
força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado
mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaí­ma dandava pra ganhar vintém. E também
espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o
tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa
dos  guaimuns diz-que habitando a
água-doce por lá. No mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer
festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos
machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos, e freqüentava com aplica­ção
a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas
da tribo.

Quando era pra dormir
trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe
estava por debaixo do berço, o herói mijava quen­te na velha, espantando os
mosquitos bem. Então
adormecia sonhando
palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.

Nas conversas das mulheres
no pino do dia o as­sunto eram sempre as peraltagens do herói. As mulhe­res se
riam muito simpatizadas, falando que “espinho que pinica, de pequeno já
traz ponta”, e numa pagelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o
herói era inteligente.

Nem bem teve seis anos deram
água num choca­lho pra ele e Macunaíma principiou falando como to­dos. E pediu
pra mãe que largasse da mandioca ra­lando na cevadeira e levasse ele passear no
mato. A mãe não quis porque não podia largar da mandioca não. Macunaíma
choramingou dia inteiro. De noite conti­nuou chorando. No outro dia esperou com
o olho es­querdo dormindo que a mãe principiasse o trabalho. Então pediu pra
ela que largasse de tecer o paneiro de guarumá-membeca e levasse ele no mato
passear. A mãe não quis porque não podia largar o paneiro não. E pediu pra
nora, companheira de Jiguê que levasse o menino. A companheira de Jiguê era bem
moça e cha­mava Sofará. Foi se aproximando ressabiada porém desta vez Macunaíma
ficou muito quieto sem botar a mão na graça de ninguém. A moça carregou o piá
nas costas e foi até o pé de aninga na beira do rio. A água parará pra inventar
um ponteio de gozo nas folhas do javari. O longe estava bonito com muitos
biguás e biguatingas avoando na estrada do furo. A moça botou Macunaíma na
praia porém ele principiou choramin­gando, que tinha muita formiga!… e pediu
pra So­fará que o levasse até o derrame do morro lá dentro do mato, a moça fez.
Mas assim que deitou o curu­mim nas tiriricas, tajás e trapoerabas da
serrapilheira, ele botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo. Andaram por
lá muito.

Quando voltaram pra maloca a
moça parecia mui­to fatigada de tanto carregar piá nas costas. Era que o herói
tinha brincado muito com ela. Nem bem ela deitou Macunaíma na rede, Jiguê já
chegava de pes­car de puçá e a companheira não trabalhara nada. Ji­guê
enquizlou e depois de catar os carrapatos deu nela muito. Sofará agüentou a
sova sem falar um isto.

Jiguê não desconfiou de nada
e começou trançan­do corda com fibra de curauá. Não vê que encontrara rasto
fresco de anta e queria pegar o bicho na arma­dilha. Macunaíma pediu um pedaço
de curauá pro ma­no porém Jiguê falou que aquilo não era brinquedo de criança.
Macunaíma principiou chorando outra vez e a noite ficou bem difícil de passar
pra todos.

No outro dia Jiguê levantou
cedo pra fazer arma-ilha e enxergando o menino tristinho falou:

— Bom-dia, coraçãozinho dos
outros.

Porém Macunaíma fechou-se em
copas carrancudo.

— Não quer falar comigo, é?

— Estou de mal.

— Por causa?

Então Macunaíma pediu fibra
de curauá. Jiguê olhou pra ele com ódio e mandou a companheira arranjar fio pro
menino, a moça fez. Macunaíma agradeceu e foi pedir pro pai-de-terreiro que
trançasse uma corda para ele e assoprasse bem nela fumaça de petum.

Quando tudo estava pronto
Macunaíma pediu pra mãe que deixasse o cachiri fermentando e levasse ele no
mato passear. A velha não podia por causa do tra­balho mas a companheira de
Jiguê mui sonsa falou pra sogra que “estava às ordens”. E foi no mato
com o piá nas costas.

Quando o botou nos carurus e
sororocas da serra­pilheira, o pequeno foi crescendo foi crescendo e virou
príncipe lindo. Falou pra Sofará esperar um bocadinho que já voltava pra
brincarem e foi no bebedouro da anta armar um laço. Nem bem voltaram do
passeio, tardinha, Jiguê já chegava também de prender a ar­madilha no rasto da
anta. A companheira não traba­lhara nada. Jiguê ficou fulo e antes de catar os
carrapatos bateu nela muito. Mas Sofará agüentou a coca com paciência.

No outro dia a arraiada inda
estava acabando de trepar nas árvores, Macunaíma acordou todos, fazendo um bué
medonho, que fossem! que fossem no bebedou­ro buscar a bicha que ele caçara!…
Porém ninguém não acreditou e todos principiaram o trabalho do dia.

Macunaíma ficou muito
contrariado e pediu pra Sofará que desse uma chegadinha no bebedouro só pra
ver. A moça fez e voltou falando pra todos que de fato estava no laço uma anta
muito grande já morta. Toda a tribo foi buscar a bicha, matutando na inteli­gência
do curumim. Quando Jiguê chegou com a cor­da de curauá vazia, encontrou todos
tratando da caça, ajudou. E quando foi pra repartir não deu nem um pedaço de
carne pra Macunaíma, só tripas. O herói jurou vingança.

No outro dia pediu pra Sofará
que levasse ele pas­sear e ficaram no mato até a bôca-da-noite. Nem bem o
menino tocou no folhiço e virou num príncipe fogoso. Brincaram. Depois de
brincarem três feitas, correram mato fora fazendo festinhas um pro outro.
Depois das festinhas de cotucar, fizeram a das cócegas, depois se enterraram na
areia, depois se queimaram com fogo de palha, isso foram muitas festinhas.
Macunaíma pe­gou num tronco de copaíba e se escondeu por detrás, da piranheira.
Quando Sofará veio correndo, ele deu com o pau na cabeça dela. Fez uma brecha
que a mo­ça caiu torcendo de riso aos pés dele. Puxou-o por uma perna.
Macunaíma gemia de gosto se agarrando no tronco gigante. Então a moça abocanhou
o dedão do pé dele e engoliu. Macunaíma chorando de alegria tatuou o corpo dela
com o sangue do pé. Depois retesou os músculos, se erguendo num trapézio de
cipó e aos pulos atingiu num átimo o galho mais alto da piranheira. Sofará
trepava atrás. O ramo fininho ver­gou oscilando com o peso do príncipe. Quando
a moça chegou também no tope eles brincaram outra vez ba­lanceando no céu.
Depois de brincarem Macunaíma quis fazer uma festa em Sofará. Dobrou o corpo
todo na violência dum puxão mas não pôde continuar, ga­lho quebrou e ambos
despencaram aos emboléus até se esborracharem no chão. Quando o herói voltou da
sapituca procurou a moça em redor, não estava. Ia se erguendo pra buscá-la
porém do galho baixo em riba dele furou o silêncio o miado temível da
suçuarana. O herói se estatelou de medo e fechou os olhos pra ser comido sem
ver. Então se escutou um risinho e Ma­cunaíma tomou com uma gusparada no peito,
era a moça. Macunaíma principiou atirando pedras nela e quando feria, Sofará
gritava de excitação tatuando o corpo dele em baixo com o sangue espirrado.
Afinal uma pedra lascou o canto da boca da moça e moeu três dentes. Ela pulou
do galho e juque! tombou sen­tada na barriga do herói que a envolveu com o
corpo todo, uivando de prazer. E brincaram mais outra vez.

Já a estrela Papacéia
brilhava no céu quando a moça voltou parecendo muito fatigada de tanto car­regar
piá nas costas. Porém Jiguê desconfiado se­guira os dois no mato, enxergara a
transformação e o resto. Jiguê era muito bobo. Teve raiva. Pegou num
rabo-de-tatu e chegou-o com vontade na bunda do he­rói. O berreiro foi tão imenso
que encurtou o tamanhão da noite e muitos pássaros caíram de susto no chão e se
transformaram em pedra.

Quando Jiguê não pôde mais
surrar, Macunaíma correu até a capoeira, mastigou raiz de cardeiro e vol­tou
são. Jiguê levou Sofará pro pai dela e dormiu fol­gado na rede.

 

II

MAIORIDADE

 

Jiguê era muito bobo e no
outro dia apareceu pu­xando pela mão uma cunha. Era a companheira nova dele e
chamava Iriqui. Ela trazia sempre um ratão vivo escondido na maçaroca dos
cabelos e faceirava muito. Pintava a cara com araraúba e jenipapo e todas as
manhãs passava coquinho de assai nos beiços que ficavam totalmente roxos.
Depois esfregava limão-de-caiena por cima e os beiços viravam totalmente en­carnados.
Então Iriqui se envolvia num manto de al­godão listrado com preto de acariúba e
verde de tatajuba e aromava os cabelos com essência de umiri, era linda.

Ora depois de todos comerem
a anta de Macunaíma a fome bateu no mocambo. Caça, ninguém não pegava caça
mais, nem algum tatu-galinha aparecia! e por causa de Maanape ter matado um
boto pra come­rem, o sapo cunauru chamado Maraguigana pai do boto fitou
enfezado. Mandou a enchente e o milharal apodreceu. Comeram tudo, até a crueira
dura se aca­bou e o fogaréu de noite e dia não moqueava nada não, era só pra
remediar a friagem que caiu. Não havia pra gente assar nele nem uma isca de
jobá.

Então Macunaíma quis se
divertir um pouco. Fa­lou prós manos que inda tinha muita piaba muito je­ju
muito matrinchão e jatuaranas, todos esses peixes do rio, fossem bater timbó!
Maanape disse:

— Não se encontra mais
timbó. Macunaíma disfarçando secundou:

— Junto daquela grota onde
tem dinheiro enter­rado enxerguei um despotismo de timbó.

— Então venha com a gente
pra mostrar onde que é.

Foram. A margem estava
traiçoeira e nem se acha­va bem o que era terra o que era rio entre as
mamoranas copadas. Maanape e Jiguê procuravam procura­vam enlameados até os
dentes, degringolando juque! nos barreiros ocultos pela inundação. E pulavam se
livrando dos buracos, aos berros, com as mãos pra trás por causa dos candirus
safadinhos querendo entrar por eles. Macunaíma ria por dentro vendo as micagens
dos manos campeando timbó. Fingia campear também mas não dava passo não, bem
enxutinho no firme. Quan­do os manos passavam perto dele, se agachava e gemia
de fadiga.

— Deixe de trabucar assim,
piá!

Então Macunaíma sentou numa
barranca do rio e batendo com os pés n’água espantou os mosquitos. E eram
muitos mosquitos, piuns maruins arurus tatuquiras muriçocas meruanhas mariguis
borrachudos vare­jas, toda essa mosquitada.

Quando foi de tardezinha os
manos vieram buscar Macunaíma tiriricas por não terem topado com ne­nhum pé de
timbó. O herói teve medo e disfarçou:

— Acharam?

— Que achamos nada!

— Pois foi aqui mesmo que
enxerguei timbó. Tim­bó já foi gente um dia que nem nós… Presenciou que
andavam campeando ele e sorveteu. Timbó foi gente um dia que nem nós…

Os manos se admiraram da
inteligência do menino e voltaram os três pra maloca.

Macunaíma estava muito
contrariado por causa da fome. No outro dia falou pra velha:

— Mãe, quem que leva nossa
casa pra outra ban­da do rio lá no teso, quem que leva? Fecha os olhos um
bocadinho, velha, e pergunta assim.

A velha fez. Macunaíma pediu
pra ela ficar mais tempo com os olhos fechados e carregou tejupar marom­bas
flechas piquás sapiquás corotes urupemas redes, todos esses trens pra um aberto
do mato lá no teso do outro lado do rio. Quando a velha abriu os olhos estava
tudo lá e tinha caça peixes, bananeiras dando, tinha comida por demais. Então
foi cortar banana.

— Inda que mal lhe pergunte,
mãe, porque a se­nhora arranca tanta pacova assim!

— Levar pra vosso mano Jiguê
com a linda Iriqui e pra vosso mano Maanape que estão padecendo fome.

Macunaíma ficou muito
contrariado. Maginou maginou e disse pra velha:

— Mãe, quem que leva nossa
casa pra outra ban­da do rio no banhado, quem que leva? Pergunta assim!

A velha fez. Macunaíma pediu
pra ela ficar com os olhos fechados e levou todos os carregos, tudo, pro lugar
em que estavam de já-hoje no mondongo imundado. Quando a velha abriu os olhos
tudo estava no lu­gar de dantes, vizinhando com os tejupares de mano Maanape e
de mano Jiguê com a linda Iriqui. E todos ficaram roncando de fome outra vez.

Então a velha teve uma raiva
malvada. Carregou o herói na cintura e partiu. Atravessou o mato e che­gou no
capoeirão chamado Cafundó do Judas. Andou légua e meia nele, nem se enxergava
mato mais, era um coberto plano apenas movimentado com o pulinho dos cajueiros.
Nem guaxe animava a solidão. A velha botou o curumim no campo onde ele podia
crescer mais não e falou:

— Agora vossa mãe vai
embora. Tu ficas perdido no coberto e podes crescer mais não.

E desapareceu. Macunaíma
assuntou o deserto e sentiu que ia chorar. Mas não tinha ninguém por ali, não
chorou não. Criou coragem e botou pé na estrada, tremelicando com as perninhas
de arco. Vagamundou de déu em déu semana, até que topou com o Currupira
inoqueando carne, acompanhado do cachorro dele Papamel. E o Currupira vive no
grelo do tucunzeiro e pe­de fumo pra gente. Macunaíma falou:

— Meu avô, dá caça pra mim
comer?

— Sim, Currupira fez.

Cortou carne da perna
moqueou e deu pro meni­no, perguntando:

— O que você está fazendo na
capoeira, rapaiz!

— Passeando.

— Não diga!

— Pois é, passeando…

Então contou o castigo da
mãe por causa dele ter sido malévolo prós manos. E contando o transporte da
casa de novo pra deixa onde não tinha caça deu uma grande gargalhada. O
Currupira olhou pra ele e res­mungou:

— Tu não é mais curumi,
rapaiz, tu não é mais curumi não … Gente grande que faiz isso…

Macunaíma agradeceu e pediu
pro Currupira en­sinar o caminho pro mocambo dos Tapanhumas. O Currupira estava
querendo mas era comer o herói, en­sinou falso:

— Tu vai por aqui,
menino-home, vai por aqui, passa pela frente daquele pau, quebra a mão
esquerda, vira e volta por debaixo dos meus uaiariquinizês.

Macunaíma foi fazer a volta
porém chegado na frente do pau, cocou a perninha e murmurou:

— Ai! que preguiça!… e
seguiu direito.

O Currupira esperou
bastante porém curumim não chegava… Pois então o monstro amontou no viado,
que é o cavalo dele, fincou o pé redondo na virilha do corredor e lá se foi
gritando:

— Carne de minha perna!
carne de minha perna! Lá de dentro da barriga do herói a carne respon­deu:

— Que foi?

Macunaíma apertou o passo e
entrou correndo na caatinga porém o Currupira corria mais que ele e o menino
isso vinha que vinha acochado pelo outro.

— Carne de minha perna!
carne de minha perna! A carne secundava:

— Que foi?

O piá estava desesperado.
Era dia do casamento da raposa e a velha Vei, a Sol, relampeava nas gotinhas de
chuva debulhando luz feito milho. Macunaí­ma chegou perto duma poça, bebeu água
de lama e vo­mitou a carne.

— Carne de minha perna!
carne de minha perna! que o Currupira vinha gritando.

— Que foi? secundou a carne
já na poça. Macunaíma ganhou os bredos por outro lado e es­capou.

Légua e meia adiante por
detrás dum formigueiro escutou uma voz cantando assim:

“Acuti pita
canhém…” lentamente.

Foi lá e topou com a cotia
farinhando mandioca num tipiti de j achara.

— Minha vó, dá aipim pra mim
comer?

— Sim, cotia fez. Deu aipim
pro menino, pergun­tando:

— Quê que você está fazendo
na caatinga, meu neto?

— Passeando.

— Ah o quê!

— Passeando, então!

Contou como enganara o
Currupira e deu uma grande gargalhada. A cotia olhou pra ele e resmungou:

— Culumi faz isso não, meu
neto, culumi faz isso não. .. Vou te igualar o corpo com o bestunto.

Então pegou na gamela cheia
de caldo envenenado de aipim e jogou a lavagem no piá. Macunaíma fastou
sarapantado mas só conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou.
O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortificando e
ficou do tamanho dum home taludo. Porém a ca­beça não molhada ficou pra sempre
rombuda e com carinha enjoativa de piá.

Macunaíma agradeceu o feito
e frechou cantando pro mocambo nativo. A noite vinha bezourenta enfian­do as
formigas na terra e tirando os mosquitos d’água. Fazia um calor de ninho no ar.
A velha tapanhumas escutou a voz do filho no longe cinzado e se espantou:
Macunaíma apareceu de cara amarrada e falou pra ela:

— Mãe, sonhei que caiu meu
dente.

— Isso é morte de parente,
comentou a velha.

— Bem que sei. A senhora
vive mais uma Sol só. Isso mesmo porque me pariu.

No outro dia os manos foram
pescar e caçar, a ve­lha foi no roçado e Macunaíma ficou só com a compa­nheira
de Jiguê. Então ele virou na formiga quenquém e mordeu Iriqui pra fazer festa
nela. Mas a moça ati­rou a quenquém longe. Então Macunaíma virou num pé de
urucum. A linda Iriqui riu, colheu as sementes se faceirou toda pintando a cara
e os distintivos, Fi­cou lindíssima. Então Macunaíma, de gostoso, virou gente
outra feita e morou com a companheira de Jiguê.

Quando os manos voltaram da
caça Jiguê perce­beu a troca logo, porém Maanape falou pra ele que agora
Macunaíma estava homem pra sempre e troncudo. Maanape era feiticeiro. Jiguê viu
que a maloca estava cheia de alimentos, tinha pacova tinha milho tinha
macaxeira, tinha alua e cachiri, tinha maparás e camorins pescados,
maracujá-michira ata abio sapota sapotilha, tinha passoca de viado e carne
fresca de cutiara, todos esses comes e bebes bons… Jiguê conferiu que não
pagava a pena brigar com o mano e deixou a lin­da Iriqui pra ele. Deu um
suspiro catou os carrapatos e dormiu folgado na rede.

No outro dia Macunaíma
depois de brincar cedinho com a linda Iriqui, saiu pra dar uma voltinha. Atra­vessou
o reino encantado da Pedra Bonita em Pernam­buco e quando estava chegando na
cidade de Santarém topou com uma viada parida.

— Essa eu caço! ele fez. E
perseguiu a viada. Es­ta escapuliu fácil mas o herói pôde pegar o filhinho dela
que nem não andava quase, se escondeu por de­trás duma carapanaúba e cotucando
o viadinho fez ele berrar. A viada ficou feito louca, esbugalhou os olhos parou
turtuveou e veio vindo veio vindo parou ali mes­mo defronte chorando de amor.
Então o herói flechou a viada parida. Ela caiu esperneou um bocado e ficou rija
estirada no chão. O herói cantou vitória. Chegou perto da viada olhou que mais
olhou e deu um grito, desmaiando. Tinha sido uma peça do Anhanga… Não era
viada não, era a própria mãe tapanhumas que Macunaíma flechara e estava morta
ali, toda arranha­da com os espinhos das titaras e mandacarus dó mato.

Quando o herói voltou da
sapituca foi chamar os manos e os três chorando muito passaram a noite de
guarda bebendo oloniti e comendo carimã com peixe. Madrugadinha pousaram o
corpo da velha numa rede e foram enterrá-la por debaixo duma pedra no lugar
chamado Pai da Tocandeira. Maanape que era um catimbozeiro de marca maior, foi
que gravou o epitáfio. E era assim:

 

 

 

Jejuaram o tempo que o
preceito mandava e Macunaíma gastou o jejum se lamentando heroicamente. A
barriga da morta foi inchando foi inchando e no fim das chuvas tinha virado num
cerro macio. Então Macunaíma deu a mão pra Iriqui, Iriqui deu a mão pra
Maanape, Maanape deu a mão pra Jiguê e os quatro partiram por esse mundo.

 

 

III

Ci, MÃE DO MATO

 

Uma feita os quatro iam
seguindo por um cami­nho no mato e estavam penando muito de sede, longe dos
igapós e das lagoas. Não tinha nem mesmo umbu no bairro e Vei, a Sol,
esfiapando por entre a folhagem guascava sem parada o lombo dos andarengos. Sua­vam
como numa pagelança em que todos tivessem besuntado o corpo com azeite de
piquiá, marchavam. De repente Macunaíma parou riscando a noite do silêncio com
um gesto imenso de alerta. Os outros estacaram. Não se escutava nada porém
Macunaíma sussurrou:

— Tem coisa.

Deixaram a linda Iriqui se
enfeitando sentada nas raízes duma samaúma e avançaram cautelosos. Já Vei
estava farta de tanto guascar o lombo dos três manos quando légua e meia
adiante Macunaíma escoteiro to­pou com uma cunha dormindo. Era Ci, Mãe do Mala
Logo viu pelo peito destro seco dela, que a moça fazia parte dessa tribo de
mulheres sozinhas parando lá nas praias da lagoa Espelho da Lua, coada pela
Nhamundá. A cunha era linda com o corpo chupado pelos vícios, colorido com
genipapo.

O herói se atirou por cima
dela pra brincar. Ci não queria. Fez lança de flecha tridente enquanto Ma­cunaíma
puxava da pageú. Foi um pega tremendo e por debaixo da copada reboavam os
berros dos briguentos diminuindo de medo os corpos dos passarinhos. O herói
apanhava. Recebera já um murro de fazer sangue no nariz e um lapo fundo de
txara no rabo. A icamiaba não tinha nem um arranhãozinho e cada gesto que fazia
era mais sangue no corpo do herói soltando

berros formidandos que
diminuíam de medo os corpos dos passarinhos. Afinal se vendo nas amarelas
porque não podia mesmo com a icamiaba, o herói deitou fu­gindo chamando pelos
manos:

— Me acudam que sinão eu
mato! me acudam que sinão eu mato!

Os manos vieram e agarraram
Ci. Maanape tran­çou os braços dela por detrás enquanto Jiguê com a murucu lhe
dava uma porrada no coco. E a icamiaba caiu sem auxílio nas samambaias da
serrapilheira. Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se aproximou e brincou com a
Mãe do Mato. Vieram então muitas jandaias, muitas araras vermelhas tuins
coricas periquitos, mui­tos papagaios saudar Macunaíma, o novo Imperador do
Mato-Virgem.

E os três manos seguiram com
a companheira no­va. Atravessaram a cidade das Flores evitaram o rio das
Amarguras passando por debaixo do salto da Feli­cidade, tomaram a estrada dos
Prazeres e chegaram no capão de Meu Bem que fica nos cerros da Venezuela. Foi
de lá que Macunaíma imperou sobre os matos mis­teriosos, enquanto Ci comandava
nos assaltos as mu­lheres empunhando txaras de três pontas.

O herói vivia sossegado.
Passava os dias marupiara na rede matando formigas taiocas, chupitando golinhos
estalados de pajuari e quando agarrava cantando companhado pelos sons gotejantes
do cotcho, os ma­tos reboavam com doçura adormecendo as cobras os carrapatos os
mosquitos as formigas e os deuses ruins.

De noite Ci chegava
recendendo resina de pau, sangrando das brigas e trepava na rede que ela mesmo
tecera com fios de cabelo. Os dois brincavam e depois ficavam rindo um pro
outro.

Ficavam rindo longo tempo,
bem juntos. Ci aro­mava tanto que Macunaíma tinha tonteiras de moleza.

— Puxa como você cheira,
benzinho!

que ele murmurava gozado. E
escancarava as narinas mais. Vinha uma tonteira tão macota que o sono
principiava pingando das pálpebras dele. Porém a Mãe do Mato inda não estava
satisfeita não e com um jeito de rede que enlaçava os dois convidava o
companheiro para mais brinquedo. Morto de soneira, infernizado, Macunaíma
brincava para não desmentir a fama só porém quando Ci queria rir com ele de
satisfação:

— Ai! que preguiça!…

que o herói suspirava
enfarado. E dando as costas para ela adormecia bem. Mas Ci queria brincar inda
mais… Convidava convidava… O herói ferrado no sono. Então a Mãe do Mato
pegava na txara e cotucava o companheiro. Macunaíma se acordava dando grandes
gargalhadas estorcegando de cócegas.

— Faz isso não, oferecida!

— Faço!

— Deixa a gente dormir, meu
bem…

— Vamos brincar.

— Ai! que preguiça!…

E brincavam mais outra vez

Porém nos dias de muito
pajuari bebido, Ci encontra o Imperador do Mato-Virgem largado por aí num porre
mãe. Iam brincar e o herói esquecia no meio.

— Então, herói!

— Então o quê!

— Você não continua?

— Continua o quê!

— Pois, meus pecados, a
gente está brincando e vai você pára no meio!

— Ai! que preguiça…

Macunaíma mal esboçava de
tão chumbado. E procurando um macio nos cabelos da companheira adormecia feliz.

Então pra animá-lo, Ci
empregava o estratagema sublime. Buscava no mato a folhagem de fogo da urtiga e
sapecava com ela uma coça coçadeira no chuí do herói e na nalachítchi dela.
Isso Macunaíma ficava que ficava um lião querendo. Ci também. E os dois
brincavam que mais brincavam num deboche de ardor prodigioso.

Mas era nas noites de
insônia que o gozo inventava mais. Quando todas as estrelas incendiadas derrama­vam
sobre a Terra um óleo calorento que ninguém não suportava de tão quente, corria
pelo mato uma pre­sença de incêndio. Nem a passarinhada agüentava no ninho.
Mexia inquieta o pescoço, voava pro galho em frente e no milagre mais enorme
deste mundo inven­tava de sopetão uma alvorada preta, cantacantando que não
tinha fim. A bulha era tremenda o cheiro pode­roso e o calor inda mais.

Macunaíma dava um safanão na
rede atirando Ci longe. Ela acordava feito fúria e crescia pra cima dele.
Brincavam assim. E agora despertados inteiramente pelo gozo inventavam artes
novas de brincar.

 Nem bem seis meses passaram e a Mãe do Mato
pariu um filho encarnado. Isso, vieram famosas mu­latas da Bahia, do Recife, do
Rio Grande do Norte e da Paraíba, e deram pra Mãe do Mato um laçarote ru­bro
cor de mal, porque agora ela era mestra do cordão encarnado em todos os
Pastoris de Natal. Depois foram-se embora com prazer e alegria, bailando que
mais bailando, seguidas de futebóleres águias pequenos xo­dós seresteiros, toda
essa rapaziada dorê. Macunaíma ficou de repouso o mês de preceito porém se
recusou a jejuar. O pecurrucho tinha cabeça chata e Macunaí­ma inda a achatava
mais batendo nela todos os dias e falando pro guri:

— Meu filho, cresce depressa
pra você ir pra São Paulo ganhar muito dinheiro.

Todas as icamiabas queriam
bem o menino encarnado e no primeiro banho dele puseram todas as jóias da tribo
pra que o pequeno fosse rico sempre. Mandaram buscar na Bolívia uma tesoura e
enfiaram ela aberta debaixo do cabeceiro porque sinão Tutu Marambá
vinha, chupava o umbigo do piá e o dedão do pé de Ci. Tutu Marambá veio, topou
com a tesoura e se en­ganou: chupou o olho dela e foi-se embora satisfeito. Todos
agora só matutavam no pecurrucho. Mandaram buscar pra ele em São Paulo os
famosos sapatinhos de lã tricotados por dona Ana Francisca de Almeida Lei­te
Morais e em Pernambuco as rendas “Rosa dos Al­pes”, “Flor de
Guabiroba” e “Por ti padeço” tecidas pelas mãos de dona Joaquina
Leitão mais conhecida pelo nome de Quinquina Cacunda. Filtravam o milhor
tamarindo das irmãs Louro Vieira, de Óbidos, pro me­nino engolir no refresco o
remedinho pra lombriga. Vi­da feliz, era bom!… Mas uma feita jucurutu pousou na
maloca do imperador e soltou o regougo agourento. Macunaíma tremeu assustado
espantou os mosquitos e caiu no pajuari por demais pra ver si espantava o medo
também. Bebeu e dormiu noite inteira. Então chegou a Cobra Preta e tanto que
chupou o único peito vivo de Ci que não deixou nem o apojo. E como Jiguê não
conseguira moçar nenhuma das icamiabas o curumim sem ama chupou o peito da mãe
no outro dia, chupou mais, deu um suspiro envenenado e morreu.

Botaram o anjinho numa
igaçaba esculpida com forma de jaboti e prós boitatás não comerem os olhos do
morto o enterraram mesmo no centro da taba com muitos cantos muita dança e
muito pajuari.

Terminada a função a
companheira de Macunaíma toda enfeitada ainda, tirou do colar uma muiraquitã
famosa, deu-a pro companheiro e subiu pro céu por um cipó. É lá que Ci vive
agora nos trinques pas­seando, liberta das formigas, toda enfeitada ainda, to­da
enfeitada de luz, virada numa estrela. É a Beta do Centauro.

No outro dia quando
Macunaíma foi visitar o tú­mulo do filho viu que nascera do corpo uma
plantinha. Trataram dela com muito cuidado e foi o guaraná. Com as frutinhas
piladas dessa planta é que a gente cura muita doença e se refresca durante os
calorões de Vei, a Sol.

 

 

IV

BOIÚNA LUNA

 

No outro dia bem cedo o
herói padecendo sauda­des de Ci a companheira pra sempre inesquecível, fu­rou o
beiço inferior e fez da muiraquitã um tembetá. Sentiu que ia chorar. Chamou
depressa os manos, se despediu das icamiabas e partiu.

Gauderiaram gauderiaram por
todos aqueles ma­tos sobre os quais Macunaíma imperava agora. Por to­da a parte
ele recebia homenagens e era sempre acom­panhado pelo séquito de araras
vermelhas e jandaias. Nas noites de amargura ele trepava num açaizeiro de
frutas roxas como a alma dele e contemplava no céu a figura faceira de Ci.
“Marvada!” que ele gemia… Então ficava muito sofrendo, muito! e
invocava os deu­ses bons cantando cânticos de longa duração.. .

Rudá, Rudá!…

Tu que secas as chuvas,

Faz com que os ventos do
oceano

Desembestem por minha terra

Pra que as nuvens vão-se
embora

E a minha marvada brilhe

Limpinha e firme no céu!. .
.

Faz com que amansem

Todas as águas dos rios

Pra que eu me banhando neles

Possa brincar com a marvada

Refletida no espelho das
águas!…

 

Assim. Então descia e
chorava encostado no om­bro de Maanape. Jiguê soluçando de pena animava o togo
da caieira pra que o herói não sentisse frio. Maanape engulia as lágrimas,
invocando o Acutipuru o Murucututu o Ducucu, todos esses donos do sono em
acalantos assim:

Acutipuru,

Empresta vosso sono

Pra Macunaíma

Que é muito manhoso!…

Catava os carrapatos do
herói e o acalmava balan­ceando o corpo. O herói acalmava acalmava e ador­mecia
bem.

No outro dia os três
estradeiros recomeçavam a ca­minhada através dos matos misteriosos. E Macunaíma
era sempre seguido pelo séquito de araras vermelhas e jandaias.

Caminhando caminhando, uma
feita em que a arraiada principiava enxotando a escureza da noite, es­cutaram
longe um lamento de moça. Foram ver. An­daram légua e meia e encontraram uma
cascata cho­rando sem parada. Macunaíma perguntou pra cascata:

— Que é isso!

— Chouriço!

— Conta o que é.

E a cascata contou o que
tinha sucedido pra ela.

— Não vê que chamo Naipi e
sou filha do tuxaua Mexô-Mexoitiqui nome que na minha fala quer dizer
Engatinha-Engatinha. Eu era uma boniteza de cunhatã e todos os tuxauas vizinhos
desejavam dormir na mi­nha rede e provar meu corpo mais molengo que embirossu.
Porém quando algum vinha eu dava dentadas e pontapés por amor de experimentar a
força dele. E todos não agüentavam e partiam sorumbáticos.

Minha tribo era escrava da
boiúna Capei que mo­rava num covão em companhia das saúvas. Sempre no tempo em
que os ipês de beira-rio se amarelavam de
flores
a boiúna vinha na taba escolher a cunha virgem que ia dormir com ela na socava
cheia de esqueletos.

Quando meu corpo chorou
sangue pedindo força de homem pra servir, a suinara cantou manhãzinha nas
jarinas de meu tejupá, veio Capei e me escolheu. Os ipês de beira-rio
relampeavam de amarelo e todas as flores caíram nos ombros soluçando do moço
Titçatê guerreiro de meu pai. A tristura talqualmente correição de sacassaia
viera na taba e devorara até o si­lêncio.

Quando o pajé velho tirou a
noite do buraco outra vez, Titçatê ajuntou as florzinhas perto dele e veio com
elas pra rede da minha última noite livre. Então mor­di Titçatê.

O sangue espirrou na munheca
mordida porém o moço não fez caso não, gemeu de raiva amando, me encheu a boca
de flores que não pude mais morder. Titçatê pulou na rede e Naipi serviu
Titçatê.

Depois que brincamos feito
doidos entre sangue es­correndo e as florzinhas de ipê, meu vencedor me car­regou
no ombro me jogou na ipeigara abicada num es­conderijo de aturiás e flechou pro
largo rio Zangado, fugindo da boiúna.

No outro dia quando o pajé
velho guardou a noite no buraco outra vez, Capei foi me buscar e encontrou a
rede sangrando vazia. Deu um urro e deitou corren­do em busca nossa. Vinha
vindo vinha vindo, a gente escutava o urro dela perto, mais perto pertinho e
afi­nal as águas do rio Zangado empinaram com o corpo da boiúna ali.

Titçatê não podia mais remar
desfalecido, sangran­do sempre com a mordida na munheca. Por isso que não
pudemos fugir. Capei me prendeu, me revirou, fez a sorte do ovo em mim, deu
certo e a boiúna viu que eu já servira Titçatê.

Quis acabar com o mundo de
raiva tamanha, não sei… me virou nesta pedra e atirou Titçatê na praia do
rio, transformado numa planta. É aquela uma que está lá, lá em baixo, lá! É
aquele mururê tão lindo que se enxerga, bracejando n’água pra mim. As flores ro­xas
dele são os pingos de sangue da mordida, que meu frio de cascata regelou.

Capei mora em baixo de mim,
examinando sempre si fui mesmo brincada pelo moço. Fui sim e passarei chorando
nesta pedra até o fim do que não tem fim, mágoas de não servir mais o meu guerreiro
T’çatê… Parou. O choro pingava nos joelhos de Macunaíma e ele soluçou
tremido.

— Si… si… si a boiúna
aparecesse eu… eu matava ela!

Então se escutou um urro
guaçu e Capei veio sain­do d’água. E Capei era a boiúna. Macunaíma ergueu o
busto relumeando de heroísmo e avançou pro mons­tro. Capei escancarou a goela e
soltou uma nuvem de apiacás. Macunaíma bateu que mais bateu vencendo os
marimbondos. O monstro atirou uma guascada tirlintando com os guizos do rabo,
porém nesse momento uma formiga tracuá mordeu o calcanhar do herói. Ele agachou
distraído com a dor e o rabo passou por cima dele indo bater na cara de Capei.
Então ela urrou mais e deu um bote na coxa de Macunaíma. Ele só fez um
afastadinho com o corpo, agarrou num rochedo e juque! decepou a cabeça da
bicha.

O corpo dela se estorceu na
corrente enquanto a cabeça com aqueles olhões docinhos vinha beijar vencida os
pés do vingador. O herói teve medo e jogou no viado mato dentro acompanhado
pelos manos.

— Vem cá, siriri, vem cá!
que a cabeça gritava.

Eles chispavam mais.
Correram légua e meia e

olharam para trás. A cabeça
de Capei vinha rolando

sempre em busca deles.
Correram mais e quando não podiam de fadiga treparam num bacuparizeiro ribeiri­nho
pra ver si a cabeça continuava pra diante. Mas cabeça parou por debaixo do pau
e pediu bacuparis. Macunaíma sacudiu a árvore. A cabeça catou as frutas do
chão, comeu e pediu mais. Jiguê sacudiu bacuparis dentro d’água porém a cabeça
falou que lá não ia não. Então Maanape atirou com toda a força uma fruta lon­ge
e enquanto a cabeça ia buscá-la os manos desceram do pau e se rasparam.
Correndo correndo, légua e meia adiante deram com a casa onde morava o bacha­rel
de Cananéia. O coroca estava na porta sentado e lia manuscritos profundos.
Macunaíma falou pra ele:

— Como vai, bacharel?

— Menos mal, ignoto viajor.

— Tomando a fresca, não?

— C’est vrai, como dizem os
franceses.

— Bem, té-logo bacharel,
estou meio afobado…

E chisparam outra vez.
Atravessaram os sambaquis do Caputera e do Morrete num respiro. Logo adiante
havia um rancho teatino. Entraram e fecha­ram a borta bem. Então Macunaíma pôs
reparo que perdera o tembetá. Ficou desesperado porque era a única lembrança
que guardava de Ci. Ia saindo pra campear a pedra porém os manos não deixaram.
Não durou muito a cabeça chegou. Juque! bateu.

— Que há?

— Abra a porta pra mim
entrar!

Porém jacaré abriu? nem
eles! e a cabeça não pôde entrar. Macunaíma não sabia que a cabeça ficara
escrava dele e não vinha pra fazer mal não. A cabeça esperou muito porém vendo
que não abriam mesmo matutou no que ia ser. Si fosse ser água os outros bebiam,
si fosse mosquito flitavam, si fosse trem de ferro descarrilava, si fosse rio
punham no mapa… Resolveu: “Vou ser Lua”. Gritou:

— Abram a porta, gente, que
quero umas coisas! Macunaíma espiou pela fresta e avisou Jiguê já abrindo:

— Está solta!

Jiguê tornou a fechar a
porta. Por isso que exis­te a expressão “Tá solto!” indicando que a
gente não faz mesmo o que nos pedem.

Quando Capei viu que não
abriam a porta princi­piou se lamentando muito e perguntou pra iandu
caranguejeira si ajudava a subida pro céu.

— Meu fio Sol derrete,
secundou a aranha tatamanha.

Então a cabeça pediu prós
xexéus se ajuntarem e ficou noite escura.

— Meu fio ninguém não
enxerga de noite, disse a aranha tatamanha.

A cabeça foi buscar um cuitê
de friagem nos An­des e falou:

— Despeja uma gota cada
légua e meia, fio branqueia de geada. Podemos ir.

— Pois então vamos.

A iandu principiou fazendo
fio no chão. Com o primeiro ventinho que brisou por ali o fio leviano se ergueu
no céu. Então a aranha tatamanha subiu por ele e da ponta lá em riba derramou
um bocado de gea­da. E enquanto a iandu caranguejeira fazia mais fio de lá pra
riba, o de baixo branqueava todo. A cabeça gritou:

— Adeus, meu povo, que vou
pro céu!

E lá foi comendo fie
sobessubindo pro campo vas­to do céu. Os manos abriram a porta e espiaram. Ca­pei
sempre subindo.

— Você vai mesmo pro céu,
cabeça?

— Uum, ela fez não podendo
mais abrir a boca. Quando foi ali pela hora antes da madrugada a

boiúna Capei chegou no céu.
Estava gorducha de tanto fio comido e muito pálida do esforço. Todo o suor dela
caía sobre a Terra em gotinhas de orvalho novo. Por causa do fio geado é que
Capei é tão fria. Dantes Ca­pei foi a boiúna mas agora é a cabeça da Lua lá no
campo vasto do céu. Desde essa feita as caranguejeiras preferem fazer fio de
noite.

No outro dia os manos deram
um campo até a bei­ra do rio mas campearam, campearam em vão, nada de
muiraquitã. Perguntaram pra todos os seres, aperemas sagüis tatus-mulitas tejus
mussuãs da terra e das árvores, tapiucabas chabós matinta-pereras pinica-paus e
aracuãs do ar, pra ave japiim e seu compadre marimbondo, pra baratinha
casadeira, pro pássaro que grita “Taam!” e sua companheira que
responde “Taim!”, pra lagartixa que anda de pique com o ratão, prós
tambaquis tucunarés piracurus curimatás do rio, os pecaís tapicurus e iererês
da praia, todos esses entes vivos mas ninguém não vira nada, ninguém não sabia
de nada. E os manos bateram pé na estrada outra vez, varando os domínios
imperiais. O silêncio era feio e o desespero também. De vez em quando Macunaíma
para­va pensando na marvada… Que desejo batia nele! Parava tempo. Chorava
muito tempo. As lágrimas escorregando pelas faces infantis, do herói iam lhe
batizar a peitaria cabeluda. Então ele suspirava sacudindo a cabecinha:

— Qual, manos! Amor primeiro
não tem compa­nheiro, não!…

Continuava a caminhar. E por
toda a parte recebia homenagens e era sempre seguido pelo séquito sarapintado
de jandaias e araras vermelhas.

Uma feita em que deitara
numa sombra enquanto esperava os manos pescando, o Negrinho do Pastoreio pra
quem Macunaíma rezava diariamente, se apiedou do panema e resolveu ajudá-lo.
Mandou o passarinho uira­puru. Quando sinão quando o herói escutou um tatalar
inquieto e o passarinho uirapuru pousou no joelho dele. Macunaíma fez um gesto
de caceteação e enxotou o pas­sarinho uirapuru. Nem bem minuto passado escutou
de novo a bulha e o passarinho pousou na barriga dele. Macunaíma nem se amolou
mais. Então o passarinho uirapuru agarrou cantando com doçura e o herói en­tendeu
tudo o que ele cantava. E era que Macunaíma estava desinfeliz porque perdera a
muiraquitã na praia do rio quando subia no bacupari. Porém agora, cantava o
lamento do uirapuru, nunca mais que Macunaíma ha­via de ser marupiara não,
porque uma traça já engulira a muiraquitã e o mariscador que apanhara a
tartaruga tinha vendido a pedra verde pra um regatão peruano se chamando
Venceslau Pietro Pietra. O dono do talismã enriquecera e parava fazendeiro e
baludo lá em São Paulo, a cidade macota lambida pelo igarapé Tietê.

Dito isto o passarinho
uirapuru executou uma le­tra no ar e desapareceu. Quando os manos chegaram da
pesca Macunaíma falou pra eles:

— Ia andando por um caminho
negaceando um catingueiro e vai, presenciei um friúme no costado. Bo­tei a mão
e saiu uma lacraia mansa que me falou toda a verdade.

Então Macunaíma contou o
paradeiro da muira­quitã e disse prós manos que estava disposto a ir em São
Paulo procurar esse tal Venceslau Pietro Pietra e retomar o tembetá roubado.

— … ei cascavel faça ninho
si eu não topo com a muiraquitã! Si vocês venham comigo muito que bem, si não,
homem, antes só do que mal acompanhado! Mas eu tenho opinião de sapo e quando
encasqueto uma coisa agüento firme no toco. Hei de ir só pra tirar a prosa do
passarinho uirapuru, minto! da lacraia.

Depois que discursou
Macunaíma deu uma grande gargalhada imaginando na peça que pregava no pas­sarinho.
Maanape e Jiguê resolveram ir com ele, mes­mo porque o herói carecia de proteção.

 

V

PIAIMÃ

 

No outro dia Macunaíma pulou
cedo na ubá e deu uma chegada até a foz do rio Negro pra deixar a cons­ciência
na ilha de Marapatá. Deixou-a bem na ponta dum mandacaru de dez metros, pra não
ser comida pelas saúvas. Voltou pro lugar onde os manos espera­vam e no pino do
dia os três rumaram pra margem es­querda da Sol.

Muitos casos sucederam nessa
viagem por caatin­gas rios corredeiras, gerais, corgos, corredores de tabatinga
matos-virgens e milagres do sertão. Macunaíma vinha com os dois manos pra São
Paulo. Foi o Ara­guaia que facilitou-lhes a viagem. Por tantas conquis­tas e
tantos feitos passados o herói não ajuntara um vintém só mas os tesouros
herdados da icamiaba estre­la estavam escondidas nas grunhas do Roraima lá. Des­ses
tesouros Macunaíma apartou pra viagem nada me­nos de quarenta vezes quarenta
milhões de bagos de cacau, a moeda tradicional. Calculou com eles um di­lúvio
de embarcações. E ficou lindo trepando pelo Ara­guaia aquele poder de igaras,
duma em uma duzentas em ajojo que-nem flecha na pele do rio. Na frente
Macunaíma vinha de pé, carrancudo, procurando no longe a cidade. Matutava
roendo os dedos.” agora cobertos de berrugas de tanto apontarem Ci
estrela. Os manos remavam espantando os mosquitos a cada arranco dos remos repercutindo
nas duzentas igaras ligadas, despejava uma batelada de bagos na pele do rio,
deixando uma esteira de chocolate onde os camuatás pirapitingas dourados
piracanjubas uarus-uarás e bacus se regalavam.

Uma feita a Sol cobrira os
três manos duma escaminha de suor e Macunaíma se lembrou de tomar ba­nho. Porém
no rio era impossível por causa das pira­nhas tão vorazes que de quando em
quando na luta pra pegar um naco de irmã espedaçada, pulavam aos cachos pra
fora d’água metro e mais. Então Macunaí­ma enxergou numa lapa bem no meio do
rio uma cova cheia d’água. E a cova era que-nem a marca dum pé-gigante.
Abicaram. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na
cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada porque aquele buraco na
lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de
Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco louro
e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz
mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas.

Nem bem Jiguê percebeu o
milagre, se atirou na marca do pezão do Sumé. Porém a água já estava mui­to
suja da negrura do herói e por mais que Jiguê es­fregasse feito maluco atirando
água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo. Macunaíma
teve dó e consolou:

— Olhe, mano Jiguê, branco
você ficou não, po­rém pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz.

Maanape então é que foi se
lavar, mas Jiguê esborrifara toda a água encantada pra fora da cova. Ti­nha só
um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos.
Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas. Só que as palmas das
mãos e dos pés dele são vermelhas por te­rem se limpado na água santa.
Macunaíma teve dó e consolou:

— Não se avexe, mano
Maanape, não se avexe não, mais sofreu nosso tio Judas!

E estava lindíssima na Sol
da lapa os três manos um louro um vermelho outro negro, de pé bem erguidos e
nus. Todos os seres do mato espiavam assombrados. O jacarèuna o jacarètinga, o
jacaré-açu o jacaré-ururau de papo amarelo, todos esses jacarés botaram os
olhos de rochedo pra fora d’água. Nos ramos das igàzeiras das aningas das
mamoranas das embaúbas dos catauaris de beira-rio o macaco-prego o
macaco-de-cheiro o guariba o bugio o cuatá o barrigudo o coxiú o cairara, todos
os quarenta macacos doBrasil,
todos, espiavam babando de inveja. E os sabiás,o sabiàcia o sabiàpoca o
sabiàúna o sabiàpiranga o sabiàgonga que quando come não me dá, o
sabiá-barranco o sabiá-tropeiro o sabiá-laranjeira o sabiá-gute todos esses
ficaram pas­mos e esqueceram de acabar o trinado, vozeando vozeando com
eloqüência. Macunaíma teve ódio. Bo­tou as mãos nas ancas e gritou pra
natureza:

— Nunca viu não!

Então os seres naturais
debandavam vivendo e os três manos seguiram caminho outra vez.

Porém entrando nas terras do
igarapé Tietê adonde o burbon vogava e a moeda tradicional não era mais cacau,
em vez, chamava arame contos contecos milreis borós tostão duzentorréis
quinhentorreis, cinqüenta paus, noventa bagarotes, e pelegas cobres xenxéns ca­raminguás
selos bicos-de-coruja massuni bolada calcáreo gimbra siridó bicha e pataracos,
assim, adonde até liga pra meia ninguém comprava nem por vinte mil cacaus.
Macunaíma ficou muito contrariado. Ter de trabucar, ele, herói. . . Murmurou
desolado:

— Ai! que preguiça!. . .

Resolveu abandonar a
empresa, voltando prós pa­gos de que era imperador. Porém Maanape falou assim:

— Deixa de ser aruá, mano!
Por morrer um carangueijo o mangue não bota luto! que diacho! desani­ma não que
arranjo as coisas!

Quando chegaram em São
Paulo, ensacou um pou­co do tesouro pra comerem e barganhando o resto na Bolsa
apurou perto de oitenta contos de réis. Maanape era feiticeiro. Oitenta contos
não valia muito mas o herói refletiu bem e falou prós manos:

— Paciência. A gente se
arruma com isso mesmo, quem quer cavalo sem tacha anda de a-pé.. . Com esses
cobres é que Macunaíma viveu. E foi numa bôca-da-noite frio que os manos topa­ram
com a cidade macota de São Paulo esparramada a beira-rio do igarapé Tietê.
Primeiro foi a gritaria da papagaiada imperial se despedindo do herói. E lá se
foi o bando sarapintado volvendo prós matos do norte. Os manos entraram num
cerrado cheio de inajás ouricuris ubussus bacabas mucajás miritis tucumãs tra­zendo
no curuatá uma penachada de fumo em vez de palmas e cocos. Todas as estrelas
tinham descido do céu branco de tão molhado de garoa e banzavam pela cidade.
Macunaíma lembrou de procurar Ci Êh! dessa ele nunca poderia esquecer não,
porque a rede feiticeira que ela armara prós brinquedos, fora tecida com os pró­prios
cabelos dela e isso torna a tecedeira inesquecível. Macunaíma campeou campeou
mas as estradas e ter­reiros estavam apinhados de cunhas tão brancas tão
alvinhas, tão!… Macunaíma gemia. Roçava nas cunhas murmurejando com doçura:
“Mani! Mani! filhinhas da mandioca…” perdido de gosto e tanta
formosura. Afinal escolheu três. Brincou com elas na rede estra­nha plantada no
chão, numa maloca mais alta que a Paranaguara. Depois, por causa daquela rede
ser dura, dormiu de atravessado sobre os corpos das cunhas. E a noite custou
pra ele quatrocentos bagarotes. —

A inteligência do herói
estava muito perturbada. Acordou com os berros da bicharia lá em baixo nas
ruas, disparando entre as malocas temíveis. E aquele diacho de sagüi-açu que o
carregara pro alto do tapiri tama­nho em que dormira. . . Quê mundo de bichos!
quê des­propósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos
atalhos nas socavas nas cordas dos mor­ros furados por grotões donde gentama
saía muito branquinha branquíssima, de certo a filharada da mandio­ca!… Á
inteligência do herói estava muito perturba­da. As cunhas rindo tinham ensinado
pra ele que o sagüi-açu não era sagüim não, chamava elevador e era uma máquina.
De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos
esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campai­nhas apitos buzinas e
tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes
hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máqui­nas. Os tamanduás os boitatás
as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes
anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas
postes chaminés. . . Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói
aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel
escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou-o um respeito
cheio de inveja por essa deusa de deveras forçuda, Tupã famanado que os filhos
da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que a Mãe-D’água, em bulhas de
sarapantar.

Então resolveu ir brincar
com a Máquina pra ser também imperador dos filhos da mandioca. Mas as três
cunhas deram muitas risadas e falaram que isso de deuses era gorda mentira
antiga, que não tinha deus não e que com a máquina ninguém não brinca porque
ela mata. A máquina não era deus não, nem possuía os distintivos femininos de
que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade
com fogo com água com vento com., fumo, os homens aproveitando as forças da
natureza. Porém jacaré acredi­tou? nem o herói! Se levantou na cama e com um
ges­to, esse sim! bem guaçu de desdém, tó! batendo o antebraço esquerdo dentro
do outro dobrado, mexeu com energia a munheca direita pras três cunhas e
partiu. Nesse instante, falam, ele inventou o gesto famanado de ofensa: a
pacova.

E foi morar numa pensão com
os manos. Estava com a boca cheia de sapinhos por causa daquela pri­meira noite
de amor paulistano. Gemia com as dores e não havia meios de sarar até que
Maanape roubou uma chave de sacrário e deu pra Macunaíma chupar. O herói chupou
chupou e sarou bem. Maanape era fei­ticeiro.

Macunaíma passou então uma
semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da
mandioca com a Máquina. A Máquina era 
que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina…
Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força
da máquina sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de explicar as
infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no
terraço dum arranha-céu com os manos, Macunaíma concluiu:

— Os filhos da mandioca não
ganham da má­quina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate.

Não concluiu mais nada
porque inda não estava acostumado com discursos porém palpitava pra ele mui­to
embrulhadamente muito! que a máquina devia de ser um deus de que os homens não
eram verdadeira­mente donos só porque não tinham feito dela uma Iara explicável
mas apenas uma realidade do mundo. De toda essa embrulhada o pensamento dele
sacou bem clarinha uma luz: Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que
eram homens. Macunaíma deu uma grande gargalhada. Percebeu que estava livre
outra vez eteve uma
satisfa mãe. Virou Jiguê na máquina te­lefone, ligou prós cabarés encomendando
lagosta e francesas.

No outro dia estava tão
fatigado da farra que a saudade bateu nele. Se lembrou da muiraquitã. Resol­veu
agir logo porque primeira pancada é que mata cobra.

Venceslau Pietro Pietra
morava num tejupar ma­ravilhoso rodeado de mato no fim da rua Maranhão olhando
pra noruega do Pacaembu. Macunaíma falou pra Maanape que ia dar uma chegadinha
até lá por amor de conhecer Venceslau Pietro Pietra. Maanape fez um discurso
mostrando as inconveniências de ir lá porque a regatão andava com o calcanhar
pra frente e si Deus o assinalou alguma lhe achou. De certo um manuari
malevo… Quem sabe si o gigante Piaimã comedor de gente!… Macunaíma não quis
saber.

— Pois vou assim mesmo. Onde
me conhecem honras me dão onde não me conhecem me darão ou não!

Então Maanape acompanhou o
mano.

Por detrás do tejupar do
regatão vivia a árvore Dzalaúra-Iegue que dá todas as frutas, cajus cajás
cajàmangas mangas abacaxis abacates jaboticabas graviolas sapotis pupunhas
pitangas guajiru cheirando sovaco de preta, todas essas frutas e é mui alta. Os
dois manos estavam com fome. Fizeram um zaiacúti com folhagem cortada pelas
saúvas, esconderijo no galho mais baixo da árvore pra flecharem a caça
devorando as frutas. Maanape falou pra Macunaíma:

— Olha, si algum pássaro
cantar não secunda não, mano, sinão adeus minhas encomendas!

O herói mexeu a cabeça que
sim. Maanape atirava m a sarabatana e Macunaíma recolhia por detrás do zaiacúti
a caça caindo. Caça caía com estrondo e Macunaíma aparava os macucos macacos
micos mutuns jacus jaós tucanos, todas essas caças. Porém o estron­do tirou
Venceslau Pietro Pietra do farniente e ele veio saber o que era aquilo. E
Venceslau Pietro Pietra era o gigante Piaimã comedor de gente. Chegou na porta
da casa e cantou feito pássaro:

— Ogoró! ogoró! ogoró!

parecendo muito longe.
Macunaíma secundou logo:

— Ogoró! ogoró! ogoró!

Maanape sabia do perigo e
murmurou:

— Esconde, mano!

O herói escondeu por detrás
do zaiacúti entre a caça morta e as formigas. Então gigante veio.

— Quem que secundou? Maanape
respondeu:

— Sei não.

— Quem que secundou?

— Sei não.

Treze vezes. Daí o gigante
falou:

— Foi gente. Me mostra quem
era. Maanape jo^ou um macuco morto. Piaimã engo­liu o macuco e falou:

— Foi gente. Me mostra quem
era. Maanape jogou um macaco morto. Piaimã engo­liu-o e continuou:

— Foi gente. Me mostra quem
era.

Então enxergou o dedo
mindinho do herói escon­dido e atirou uma baníni na direção. Se ouviu um grito
gemido comprido, juuuque! e Macunaíma agachou com a flecha enterrada no
coração. O gigante falou pra Maanape:

— Atira a gente que eu
cacei! Maanape atirou guaribas jaós mutuns mutum-de-vargem mutum-de-fava
mutuporanga urus urumutum, todas essas caças porém Piaimã engolia e tornava a
pe­dir a gente que ele flechara. Maanape não queria dar o herói e jogava as
caças. Levaram muito tempo assim e Macunaíma já tinha morrido. A final Piaimã
deu um berro medonho:

— Maanape, meu neto, deixa
de conversa! Atira a gente que eu cacei que sinão te mato, velho safadinho!

Maanape não queria jogar o
mano mesmo, pegou desesperado em seis caças duma vez um macuco um macaco um
jacu uma jacutinga uma picota e uma pia-coça e atirou no chão gritando:

— Toma seis!

Piaimã ficou danado. Agarrou
quatro paus do mato, uma acapurana um angelim um apió e um carará, e veio com
eles pra cima de Maanape:

— Sai do caminho, por
queira! jacaré não tem pescoço, formiga não tem caroço! comigo é só quatro paus
na ponta da unha, jogador de caça falsa!

Então Maanape ficou com
muito medo e jogou, truque! o herói no chão. Foi assim que Maanape com Piaimã
inventaram o jogo sublime do truco.

Piaimã sossegou.

— Este mesmo.

Agarrou o defunto por uma
perna e foi puxando. Entrou na casa. Maanape desceu da árvore desespe­rado.
Quando ia pra seguir atrás do defunto mano to­pou com a formiguinha sarara
chamada Cambgique. A sarara perguntou:

— O que você faz por aqui,
parceiro!

— Vou atrás do gigante que
matou meu mano.

— Vou também.

Então Cambgique sugou todo
sangue do herói, esparramado no chão e nos ramos e sugando sempre
as gotas do caminho foi monstrando o rasto pra Maanape.

Entraram na casa
atravessaram o hol e a sala-de-jantar, passaram pela copa saíram no terraço do
lado e pararam na frente do porão. Maanape acendeu uma tocha de jutaí e puderam
descer a escadinha negra. Bem na porta da adega restejava a última gota de san­gue.
A porta estava fechada. Maanape cocou o nariz e perguntou pra Cambgique:

— E agora!

Então veio por debaixo da
porta o carrapato Zlezlegue e perguntou pra Maanape:

— Agora o quê, parceiro?

— Vou atrás do gigante que
matou meu mano. Zlezlegue falou:

— Está bom. Então fecha o
olho, parceiro. Maanape fechou.

— Abre o olho, perceiro.

Maanape abriu e o carrapato Zlezlegue
tinha vi­rado numa chave yale. Maanape ergueu a chave do chão e abriu a
porta. Zlezlegue virou carrapato outra vez e ensinou:

— Com as garrafas bem de
cima você convence Piaimã.

E desapareceu. Maanape tirou
dez garrafas, abriu e veio vindo uma aroma perfeito. Era o cauim famoso chamado
quiânti. Então Maanape entrou na outra sala da adega. O gigante estava aí com a
companheira, uma caapora velha sempre cachimbando que se cha­mava Ceiuci e era
muito gulosa. Maanape deu as gar­rafas pra Venceslau Pietro Pietra, um naco de
fumo do Acará pra caapora e o casal esqueceram que havia mundo.

O herói picado em vinte
vezes trinta torresminhos bubuiava na polenta fervendo. Maanape catou os
pedacinhos e os ossos e estendeu tudo. no cimento pra re­frescar. Quando
esfriaram a sarara Cambgique derra­mou por cima o sangue sugado. Então Maanape
em­brulhou todos os pedacinhos sangrando em folhas de bananeira, jogou o
embrulho num sapiquá e tocou pra pensão.

Lá chegado botou o cesto de
pé assoprou fumo nele e Macunaíma veio saindo meio pamonha ainda, muito
desmerecido, do meio das folhas. Maanape deu gua­raná pro mano e ele ficou
taludo outra vez. Espantou os mosquitos e perguntou:

— O que foi que sucedeu pra
mim?

— Mas, meus cuidados, não
falei pra você não secundar cantiga de passarinho! falei sim, pois então!…

No outro dia Macunaíma
acordou com escarlatina e levou todo o tempo da febre imaginando que carecia da
máquina garrucha pra matar Venceslau Pietro Pie­tra. Nem bem sarou foi na casa
dos Ingleses pedir uma smith-wêsson. Os Ingleses falaram:

— As garruchas inda estão
muito verdolengas po­rém vamos a ver si tem alguma têmpora.

Então foram em baixo da
árvore garrucheira. Os Ingleses falaram:

— Você fica esperando aqui.
Se despencar algu­ma garrucha então pegue. Mas não deixa ela cair no chão não!

— Feito.

Os Ingleses sacudiram sacudiram
a árvore e caiu uma garrucha têmpora. Os Ingleses falaram:

— Essa está boa.

Macunaíma agradeceu e foi-se
embora. Queria que os outros acreditassem que ele falava o inglês porém não
falava nem sweetheart não, os manos é que fala­vam. Maanape também desejava
garrucha balas e uís­que. Macunaíma aconselhou:

— Você não fala inglês, bem,
mano Maanape, vai lá e a volta é cruel. É capaz de pedir garrucha e darem
conserva. Deixa que eu vou.

E foi falar outra vez com os
Ingleses. Debaixo da árvore garrucheira os Ingleses sacolejaram sacolejaram os
ramos porém não caiu nem uma garrucha não. En­tão foram debaixo da árvore
baleira, os Ingleses sacudiram e despencou um desperdício de balas que
Macunaíma deixou cair no chão depois catou. — Agora uísque, falou.

Foram debaixo da árvore
uisqueira, os Ingleses sa­cudiram e despencaram duas caixas que Macunaíma pegou
no ar. Agradeceu prós Ingleses e voltou pra pen­são. Lá chegado escondeu as
caixas debaixo da cama e foi falar com o mano:

— Falei inglês com eles,
mano, porém não tinha nem garrucha nem uísque por causa que passou uma
correiçao de formiga oncinha e comeu tudo. As balas trago aqui. Agora dou minha
garrucha pra você e quando alguém bulir comigo você atira.

Então virou Jiguê na máquina
telefone, ligou pro gigante e xingou a mãe dele.

 

VI

A FRANCESA E O GIGANTE

 

Maanape gostava muito de
café e Jiguê muito de dormir. Macunaíma queria erguer um papiri prós três
morarem porém jamais que papiri se acabava. Os puchirões goravam sempre porque
Jiguê passava o dia dormindo e Maanape bebendo café. O herói teve raiva. Pegou
numa colher, virou-a num bichinho e falou:

— Agora você fica sovertida
no pó de café. Quan­do mano Maanape vier beber, morda a língua dele!

Então pegando num cabeceiro
de algodão, virou-o numa tatorana branca e falou:

— Agora você fica sovertida
na maqueira. Quando mano Jiguê vier dormir, chupe o sangue dele!

Maanape já vinha entrando na
pensão pra beber café outra vez. O bichinho picou a língua dele. Ai! Maanape
fez. Macunaíma bem sonso falou:

— Está doendo, mano? Quando
bichinho me pica não dói não.

Maanape teve raiva. Atirou o
bichinho muito pra longe falando:

— Sai, praga!

Então Jiguê entrou na pensão
pra tirar um corte. O marandová branquinho tanto chupou o sangue dele que até
virou rosado.

— Ai! que Jiguê gritou. E
Macunaíma:

— Está doendo, mano? Ora
veja só! Quando ta­torana me chupa até gosto.

Jiguê teve raiva e atirou a
tatorana longe falando:

— Sai, praga!

E então os três manos foram
continuar a constru­ção do papiri. Maanape e Jiguê ficaram dum lado e Macunaíma
do outro pegava os tijolos que os manos atiravam. Maanape e Jiguê estavam
tiriricas e dese­jando se vingar do mano. O herói não maliciava nada. Vai,
Jiguê pegou num tijolo, porém pra não machucar muito virou-o numa bola de couro
duríssima. Passou a bola pra Maanape qüe estava mais na frente e Maanape com um
pontapé mandou ela bater em Macunaíma. Esborrachou todo o nariz do herói.

— Ui! que o herói fez.

Os manos bem sonsos
gritaram:

— Uai! está doendo, mano!
Pois quando bola bate na gente nem não dói!

Macunaíma teve raiva e
atirando a bola com o pé bem pra longe falou:

— Sai, peste!

Veio onde estavam os manos:

— Não faço mais papiri,
pronto!

E virou tijolos pedras
telhas ferragens numa nu­vem de içás que tomou São Paulo por três dias.

O bichinho caiu em Campinas.
A tatorana caiu por aí. A bola caiu no campo. E foi assim que Maanape inventou
o bicho-do-café, Jiguê a largarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas.

No outro dia, com o
pensamento sempre na marvada, o herói percebeu que xetrara mesmo duma vez e
nunca mais que podia aparecer na rua Maranhão por­que agora Venceslau Pietro
Pietra já o conhecia bem. Imaginou e ali pelas quinze horas teve uma idéia. Re­solveu
enganar o gigante. Enfiou um membi na goela, virou Jiguê na máquina telefone e
telefonou pra Ven­ceslau Pietro Pietra que uma francesa queria falar com ele a
respeito da máquina negócios. O outro secundou que sim e que viesse agorinha já
porque a velha Ceiuci tinha saído com as duas filhas e podiam negociar mais
folgado.

Então Macunaíma emprestou da
patroa da pensão uns pares de bonitezas, a máquina ruge, a máquina
meia-de-sêda, a máquina combinação com cheiro de cascasacaca, a máquina cinta
aromada com capim cheiroso, a máquina decoletê úmida e patchuli, a má­quina
mitenes, todas essas bonitezas, dependurou dois mangarás nos peitos e se vestiu
assim. Pra completar inda barreou com azul de pau campeche os olhinhos de piá
que se tornaram lânguidos. Era tanta coisa que ficou pesado mas virou numa
francesa tão linda que se defumou com jurema e alfinetou um raminho de pi­nhão
paraguaio no patriotismo pra evitar quebranto. E foi no palácio de Venceslau
Pietro Pietra. E Ven­ceslau Pietro Pietra era o gigante Piaimã comedor de
gente.

Saindo da pensão Macunaíma
topou com um bei­ja-flor com rabo de tesoura. Não gostou da cagüira não e
pensou abandonar o randevu porém como pro­messa é dívida fez um esconjuro e
seguiu.

Lá chegado encontrou o
gigante no portão, espe­rando. Depois de muitos salamaleques Piaimã tirou os
carrapatos da francesa e levou-a pra uma alcova lindís­sima com esteios de
acaricoara e tesouras de itaúba. O assoalho era um xadrez de munirapiranga e
pau-cetim. A alcova estava mobiliada com as famosas redes brancas do Maranhão.
Bem no centro havia uma mesa de jacarandá esculpido arranjada com louça
branco-encarnada de Breves e cerâmica de Belém, disposta sobre um toalha de
rendas tecidas com fibra de bananeira. Numas bacias enormes originárias das
cavernas do rio Cunani fumegava tacacá com tucupi, sopa feita com um paulista
vindo dos frigoríficos da Continental, uma jacarezada e polenta. Os vinhos eram
um Puro de Ica subidor vindo de Iquitos, um Porto imitação, de Minas, uma
caiçuma de oitenta anos, champanha de São Paulo bem gelada e um extrato de
jenipapo famanado e ruim como três dias- de chuva. E inda havia dispostos com
arte enfeitadeira e muitos recortados de papel, os es­plêndidos bombons Falchi
e biscoitos do Rio Grande empilhados em cuias dum preto brilhante de cumaté com
desenhos esculpidos a canivete, provindas de Monte Alegre.

A francesa sente i numa rede
e fazendo gestos graciosos principiou mastigando. Estava com muita fome e comeu
bem. Depois tomou um copo de Puro pra rebater e resolveu entrar no assunto de
chapéu-de-sol aberto. Foi logo perguntando si o gigante era ver­dade que
possuía uma muiraquitã com forma de jacaré. O gigante foi lá dentro e voltou
com um caramujo na mão. E puxou pra fora dele uma pedra verde. Era a  muiraquitã! Macunaíma sentiu um frio por
dentro de tanta comoção e percebeu que ia chorar. Mas disfar­çou bem
perguntando si o gigante não queria vender a pedra. Porém Venceslau Pietro
Pietra piscou faceiro dizendo que vendida não dava a pedra não. Então a
francesa pediu suplicando pra levar a pedra de empres­tado pra casa. Venceslau
Pietro Pietra mais uma vez piscou faceiro falando que de emprestado não dava a
pedra também não:

— Você imagina então que vou
cedendo assim com duas risadas, francesa? Qual!

— Mas eu estou querendo
tanto a pedra!…

— Vá querendo!

— Pois tanto se me dá como
se me dava, regatão!

— Regatão uma ova, francesa!
Dobre a língua! Colecionador é que é!

Foi lá dentro e voltou
carregando um grajaú tama­nho feito de embira e cheinho de pedra. Tinha
turquesas esmeraldas berilos seixos polidos, ferragem com for­ma de agulha,
crisólita pingo-d’água tinideira esmeril lapinha ovo-de-pomba osso-de-cavalo
machados facões flechas de pedra lascada, grigris rochedos elefantes pe­trificados,
colunas gregas, deuses egípcios, budas javaneses, obeliscos mesas mexicanas,
ouro guianense, pe­dras ornitomorfas de Iguape, opalas do igarapé Alegre, rubis
e granadas do rio Gurupi, itamotingas do rio das Garças, itacolumitos,
turmalinas de Vupabuçu, blocos de titânio do rio Piriá, bauxitas do ribeirão do
Macaco, fósseis calcáreos de Pirabas, pérolas de Cametá, o ro­chedo tamanho que
Oaque o Pai do Tucano atirou com a sarabatana lá do alto daquela montanha, um
litóglifo de Calamare, tinha todas essas pedras no grajaú.

Então Piaimã contou pra
francesa que ele era um colecionador célebre, colecionava pedras. E a francesa
era Macunaíma, o herói. Piaimã confessou que a jóia da coleção era mesmo a
muiraquitã com forma de ja­caré comprada por mil contos da imperatriz das
icamiabas lá nas praias da lagoa Jaciuruá. E tudo era mentira do gigante. Vai,
ele sentou na rede mui rente da francesa, muito! e falou murmuriando que com
ele era oito ou oitenta, não vendia não emprestava a pedra mas porém era capaz
de dar… “Confrome…” O gi­gante estava mas era querendo brincar
com a francesa. Quando por causa do jeito de Piaimã o herói entendeu o que
significava o tal de “conforme”, ficou muito inquieto. Matutou:
“Será que o gigante imagina que sou francesa mesmo!… Cai fora, peruano
senvergonha”! E saiu correndo pelo jardim. O gigante correu atrás. A francesa
pulou numa moita pra se esconder porém estava uma pretinha lá. Macunaíma
cochilou Pra ela:

— Caterina, sai daí sim?

Caterina nem gesto.
Macunaíma já meio impinimado com ela, cochichou:

— Caterina, sai daí que
sinão te bato!

A mulatinha ali. Então
Macunaíma deu um bruto dum tapa na peste e ficou com a mão grudada nela.

— Caterina, me larga minha
mão e vai-te embora que te dou mais tapa, Caterina!

Caterina era mas uma boneca
de cera de carnaúba posta ali pelo gigante. Ficou bem quieta. Macunaíma deu
outro tapa com a mão livre e ficou mais preso.

— Caterina, Caterina! me
larga minhas mãos e vaite embora pixaim! sinão te dou um pontapé!

Deu o pontapé e ficou mais
preso ainda. Afinal o herói ficou inteirinho grudado na Catita. Então chegou
Piaimã com um cesto. Tirou a francesa da armadilha e berrou pro cesto:

— Abra a boca, cesto, abra a
vossa grande boca! O cesto abriu a boca e o gigante despejou o herói nele. O
cesto fechou a boca outra vez, Piaimã carre­gou-o e voltou. A francesa em vez
de bolsa estava armada com o mênie que serve pra guardar as frechinhas da
sarabatana. O gigante deixou o cesto encos­tado na porta de entrada e afundou
casa a dentro pra guardar o mênie entre as pedras da coleção. Porém o mênie era
de pano cheirando piche de caça. O gigante desconfiou daquilo e perguntou:

— Vossa mãe é tão cheirosa e
gordinha que nem você, criatura?

E revirou os olhos de gosto.
Ele estava maliciando que o mênie era filhinho da francesa. E a francesa era
Macunaíma o herói. Lá do cesto ele escutou a pergunta e principiou ficando excessivamente
inquieto. “Pois então será mesmo que esse tal de Venceslau imagina que
passei por debaixo de algum arco-da-velha pra ter mundado a natureza? te
esconjuro, credo!” Então assoprou raiz de cumacá em pó que bambeia cordas,
bambeou o amarrilho do cesto e pulou pra fora. Ia saindo quando topou com o
jaguará do gi­gante, que chamava Xaréu, nome de peixe pra não ficar hidrófobo.
O herói teve medo e desembestou numa chispada mãe parque adentro. O cachorro
correu atrás. Correram. Passaram Já rente à Ponta do Calabouço, tomaram rumo de
Guajará Mirim e voltaram pra leste. Em Itamaracá Macunaíma passou um pouco
folgado e teve tempo de comer uma dúzia de manga-jasmim que nasceu do corpo de
dona Sancha, dizem. Rumaram pra sudoeste e nas alturas de Barbacena o fugitivo
avistou uma vaca no alto duma ladeira cal­çada com pedras pontudas. Lembrou de
tomar leite. Subiu esperto pela capistrana pra não cansar porém a vaca era de
raça Guzerá muito brava. Escondeu o leitinho pobre. Mas Macunaíma fez uma
oração assim:

 

Valei-me Nossa Senhora,

Santo Antônio de Nazaré,

A vaca mansa dá leite,

A braba dá si quisé!

 

A vaca achou graça, deu
leite e o herói chispou pro sul. Atravessando o Paraná já de volta dos pam­pas
bem que ele queria trepar numa daquelas árvores porém os latidos estavam na
cola dele e o herói isso vinha que vinha acochado pelo jaguara. Gritava:

— Sai, pau!

E desviava de cada
castanheira, de cada pau-d’arco, de cada cumpro bom de trepar. Adiante da
cidade de Serra no Espírito Santo quase arrebentou a cabeça numa pedra com
muitas pinturas esculpidas que não se entendia. De certo era dinheiro
enterrado… Porém Macunaíma estava com pressa e frechou pras barrancas da ilha
do Bananal. Enfim enxergou um for­migueiro de trinta metros abrindo um olho no
rés do chão bem na frente. Barafustou subindo pelo buraco a dentro e se
encolheu no alto. O jaguara ficou acuando ali.

Então o gigante veio e topou
com o jaguara acuando o formigueiro. Bem na entrada a francesa perdera uma
correntinha de prata. “Meu tesouro está aqui” murmurou o gigante.
Então o jaguara desapa­receu. Piaimã arrancou da terra com raiz e tudo uma
palmeira inajá e nem deixou sinal no chão. Cortou o grelo do pau e enfiou-o
pelo buraco por amor de fazer a francesa sair. Porém jacaré saiu? nem ela!
Abriu as pernas e o herói ficou como se diz empalado na inajá. Vendo que a
francesa não saía mesmo, Piaimã foi buscar pimenta. Trouxe uma correição das
formi­gas anaquilãs que é pimenta de gigante, botou-as no buraco, elas ferraram
no herói. Mas nem assim mesmo a francesa saiu. Piaimã jurou vingança. Pinchou
fora as anaquilãs e gritou pra Macunaíma:

— Agora que te agarro mesmo
porque vou buscar a jararaca Elite!

Quando ouviu isso o herói
gelou. Com a jararaca ninguém não pode não. Gritou pro gigante:

— Espera um bocado, gigante,
que já saio. Porém pra ganhar tempo tirou os mangarás do

peito e botou na boca do
buraco falando:

— Primeiro bota isso pra
fora, faz favor. Piaimã estava tão furibundo que atirou os manga­rás longe.
Macunaíma presenciou a raiva do gigante.

Tirou a máquina decoletê,
pôs ela na boca do bu­raco, falando outra vez:

— Bota isso pra fora, faz
favor.

Piaimã inda atirou o vestido
mais longe. Então Macunaíma botou a máquina cinta, depois a máquina

sapatos e foi fazendo assim
com todas as roupas. O gi­gante isso já estava fumando de tão danado. Jogava
tudo longe sem nem olhar o que era. Então bem de mansinho o herói pôs o
sim-sinhô dele na boca do buraco e falou:

— Agora me bote fora só mais
esta cabaça fedo­renta.

Piaimã cego de raiva agarrou
no sim-sinhô sem ver o que era e atirou sim-sinhô com herói e tudo légua e meia
adiante. E ficou esperando pra sempre enquanto o herói lá longe ganhava os
mororós.

Chegou na pensão tomando a
bênção de cachorro e chamando gato de tio, só vendo! suando esfolado com fogo
nos olhos, botando os bofes pela boca. Descansou um pedaço e como estava arado
de fome bateu uma fri­tada de sururu de Maceió, um pato seco de Marajó mo­lhando
a janta com mocororó. Descansou.

Macunaíma estava muito
contrariado. Venceslau Pietro Pietra era um colecionador célebre e ele não.
Suava de inveja e afinal resolveu imitar o gigante. Porém não achava graça em
colecionar pedra não por­que já tinha uma imundície delas na terra dele pelos
espigões, nos manadeiros nas corredeiras nas seladas e gupiaras altas. E todas
essas pedras já tinham sido vespas formigas mosquitos carrapatos animais
passari­nhos gentes e cunhas e cunhatãs e até as graças das cunhas e das
cunhatãs… Praquê mais pedra que é tão pesado de carregar!… Estendeu os
braços com moleza e murmurou:

— Ai! que preguiça!…

Matutou matutou e resolveu.
Fazia uma coleção de palavras-feias de que gostava tanto.

Se aplicou. Num átimo reuniu
milietas delas em todas as falas vivas e até nas línguas grega e latina que
estava estudando um bocado. A coleção italiana era completa, com palavras pra
todas as horas do dia, todos os dias do ano, todas as circunstâncias da vida e
senti­mentos humanos. Cada bocagem! Mas a jóia da co­leção era uma frase
indiana que nem se fala.

 

 

VII

MACUMBA

 

 

Macunaíma estava muito
contrariado. Não con­seguia reaver a muiraquitã e isso dava ódio. O milhor era
matar Piaimã… Então saiu da cidade e foi no mato Fulano experimentar força.
Campeou légua e meia e afinal enxergou uma peroba sem fim. Enfiou o braço na
sapopemba e deu um puxão pra ver si arran­cava o pau mas só o vento sacudia a
folhagem na altura porém. “Inda não tenho bastante força não”,
Macunaí­ma, refletiu. Agarrou num dente de ratinho chamado crô, fez uma bruta
incisão na perna, de preceito pra quem é frouxo e voltou sangrando pra pensão.
Estava desconsolado de não ter força ainda e vinha numa dis­tração tamanha que
deu uma topada.

Então de tanta dor o herói
viu no alto as estrelas c entre elas enxergou Capei minguadinha cercada de
névoa. “Quando mingua a Luna não comeces coisa al­guma” suspirou. E
continuou consolado.

No outro dia o tempo estava
inteiramente frio e o herói resolveu se vingar de Venceslau Pietro Pietra dando
uma sova nele pra esquentar. Porém por causa de não ter força tinha mas era
muito medo do gigante. Pois então resolveu tomar um trem e ir no Rio de Ja­neiro
se socorrer e Exu diabo em cuja honra se rea­lizava uma macumba no outro dia.

Era junho e o tempo estava
inteiramente frio. A macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata,
feiticeira como não tinha outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao violão.
Às vinte horas Macunaíma chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão
de pinga obrigatório. Já tinha muita gente lá, gente direita, gente pobre,
advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos, todas essas
gentes e a função ia principiando. Macunaíma tirou os sapatos e as meias como
os outros e enfiou no pes­coço a milonga feita de cera de vespa tatucaba e raiz
seca de assacu. Entrou na sala cheia e afastando a mosquitada foi de quatro
saudar a candomblèzeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. Tia
Ciata era uma negra velha com um século no sofri­mento, javevó e galguincha com
a cabeleira branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita. Ninguém
mais não enxergava olhos nela, era só ossos duma compridez já sonolenta
pendependendo, pro chão de terra.

Vai, um rapaz filho de
Ochum, falavam, filho de Nossa Senhora da Conceição cuja macumba era em
dezembro, distribuiu uma vela acesa pra cada um dos marinheiros marcineiros
jornalistas ricaços gamelas fêmeas empregados-públicos, muitos
empregados-públicos! todas essas gentes e apagou o bico de gás alumiando a
saleta.

Então a macumba principiou
de deveras se fa­zendo um çairê pra saudar os santos. E era assim: Na ponta
vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadistas
de profissão, se chamando Olelê Rui Barbosa. Tabaque mexiamexia acertado num
ritmo que manejou toda a procissão. E as velas jogaram nas paredes de papel com
florzinhas, sombras tremendo vagarentas feito assombração. Atrás do ogã vinha
tia Ciata quase sem mexer, só beiços puxando a reza monótona. E então seguiam
advogados taifeiros curandeiros poetas o herói gatunos portugas senadores,
todas essas gentes dançando e cantando a resposta da reza. E era assim:

— Va-mo sa-ra-vá!…

Tia Ciata cantava o nome do
santo que tinham de saudar:
v. .. .

— Ôh Olorung!

E a gente secundando:

— Va-mo sa-ra-vá!…

Tia Ciata continuava:

— Ô Boto Tucuchi!

E a gente secundando:

— Va-mo sa-ra-vá!…

Docinho numa reza mui
monótona.

— Ô Iemanjá! Anamburucu! e
Ochum! três Mães-d’água!

— Va-mo sa-ra-vá!…

Assim. E quando a tia Ciata
parava gritando com gesto imenso:

— Sai Exu!

porque Exu era o diabo-coxo,
um capiroto malé­volo, mas bom porém pra fazer malvadezas, era um tormento na
sala uivando:

— Uuum!… uuum!… Exu!
Nosso padre Exu…!

E o nome do diabo reboava
com estrondo dimi­nuindo o tamanhão da noite fora. O çairê continuava:

— Ôh Rei Nagô!

— Va-mo sa-ra-vá!… Docinho
na reza monótona.

— Ôh Baru!

— Va-mo sa-ra-vá!…

Quando sinão quando tia
Ciata parava gritando com gesto imenso:

— Sai Exu!

porque Exu era o pé-de-pato,
um jananaíra malé­volo. E de novo era o tormento na sala uivando:

— Uuuum!… Exu! Nosso padre
Exu!…

E o nome do diabo reboava
com estrondo encur­tando o tamanho da noite.

— Ôh Oxalá!

— Va-mo sa-ra-vá!…

Era assim. Saudaram todos os
santos da pagelança, o Boto Branco que dá os amores Xangô, Omulu, Iroco
Ochosse, a Boiúna Mãe feroz, Obatalá que dá força pra brincar muito, todos
esses santos e o çairê se acabou. Tia Ciata sentou na tripeça num canto e toda
aquela gente suando, médicos padeiros engenhei­ros rábulas polícias criadas
focas assassinos, Macunaíma, todos vieram botar as velas no chão rodeando a
tripeça. As velas jogaram no teto a sombra da mãe-de-santo imóvel. Já quase
todos tinham tirado algumas roupas e o respiro ficara chiado por causa do
cheiro de mistura budum coty pitium e o suor de todos. Então veio a vez de
beber. E foi lá que Macunaíma provou pela primeira vez o cachiri temível cujo
nome é ca­chaça. Provou estalando com a língua feliz e deu uma grande
gargalhada.

Depois da bebida, entre
bebidas, seguiram as rezas de invocação. Todos estavam inquietos ardentes dese­jando
que um santo viesse na macumba daquela noite. Fazia já tempo que nenhum não
vinha por mais que os outros pedissem. Porque a macumba da tia Ciata não era
que-nem essas macumbas falsas não, em que sem­pre o pai-de-terreiro fingia vir
Xangô Ochosse qualquer, pra contentar os macumbeiros. Era uma macumba sé­ria e
quando santo aparecia, aparecia de deveras sem nenhuma falsidade. Tia Ciata não
permitia dessas des­moralizações no zungu dela e fazia mais de doze meses que
Ogum nem Exu não apareciam no Mangue. Todos desejavam que Ogum viesse. Macunaíma
queria Exu só pra se vingar de Venceslau Pietro Pietra.

Entre golinhos de abrideira,
uns de joelhos outros de quatro, todas essas gentes seminuas rezavam em torno
da feiticeira pedindo a aparição dum santo. À meia-noite foram lá dentro comer
o bode cuja cabeça e patas já estavam lá no pegi, na frente da imagem de Exu
que era um tacuru de formiga com três conchas fazendo olhos e boca. O bode fora
morto em honra do diabo e salgado com pó de chifre e esporão de galo-de-briga.
A mãe-de-santo puxou a comilança com respeito e três pelossinais de
atravessado. Toda a gente ven­dedores bibliófilos pés-rapados acadêmicos
banqueiros, todas essas gentes dançando em volta da mesa can­tavam:

Bamba querê

Sai Aruê

Mongi gongo

Sai Orobô,

Êh!…

 

ôh mungunzá

Bom acaçá

Vancê nhamanja

De pai Guenguê,

Êh!…

 

E conversando pagodeando
devoraram o bode con­sagrado e cada qual buscando o garrafão de pinga dele
porque ninguém não podia beber no de outro, todos beberam muita caninha, muita!
Macunaíma dava gran­des gargalhadas e de repente derrubou vinho na mesa. Era
sinal de alegrão pra ele e todos imaginavam que o herói era o predestinado
daquela noite santa. Não era não.

Nem bem reza recomeçou se
viu pular no meio da saleta uma fêmea obrigando todos a silêncio com o ge­mido
meio choro e puxar canto novo. Foi um tremor em todos e as velas jogaram a
sombra de cunha que nem monstro retorcido procanto do teto, era Exu! Ogã
pelejava batendo tabaque pra perceber os ritmos doidos do canto novo, canto
livre, de notas afobadas cheio de saltos difíceis, êxtase maluco baixinho
tremendo de fú­ria. E a polaca muito pintada na cara, com as alças da
combinação arrebentadas estremecia no centro da saleta, já com as gorduras
quasi inteiramente nuas. Os peitos dela balangavam batendo nos ombros na cara e
depois na barriga, juque! com estrondo. E a ruiva can­tando cantando. Afinal a
espuminha rolou dos beiços desmanchados, ela deu um grito que diminuiu o
tamanhão da noite mais, caiu no santo e ficou dura.

Passou um tempo de silêncio
sagrado. Então tia Ciata se levantou da tripeça que uma mazombinha subs­tituiu
no sufragante por um banco novo nunca sen­tado, agora pertencendo pra outra. A
mãe-de-terreiro veio vindo veio vindo. Ogã vinha com ela. Todos os outros
estavam de pé se achatando nas paredes. Só tia Ciata veio vindo veio vindo e
chegou junto do corpo duro da polaca no centro da saleta ali. A feiticeira
tirou a roupa ficou nua, só com os colares os braceletes os brincos de contas
de prata pingando nos ossos. Foi tirando da cuia que Ogã pegava, o sangue
coalhado do bode comido e esfregando a pasta na cabeça da balalaó. Mas quando
derramou o efém verdento em riba, a dura se estorceu gemida e o cheiro iodado
embebedou o ambiente. Então a mãe-de-santo entoou a reza sagrada de Exu,
melopéia monótona.

Quando acabou, a fêmea abriu
os olhos, principiou se movendo bem diferente de já-hoje e não era mais fêmea
era o cavalo do santo, era Exu. Era Exu, o romãozinho que viera ali com todos
pra macumbar.

O par de nuas executava um
jongo improvisado e festeiro que ritmavam os estralos dos ossos da tia, os
juques dos peitos da gorda e o ogã com batidos chatos. Todos estavam nus também
e se esperava a escolha do Filho de Exu pelo grande Cão presente. Jongo temí­vel.  Macunaíma fremia de esperança querendo o cariapemba
pra pedir uma tunda em Venceslau Pietro Pietra. Não se sabe o que deu nele de
sopetão, entrou gingando no meio da sala derrubou Exu e caiu por cima brincando
com vitória. E a consagração do Filho de Exu novo era celebrada por licenças de
todos e todos se urarizaram em honra do filho novo do icá.

Terminada a cerimônia o
diabo foi conduzido pra tripeça, principiando a adoração. Os ladrões os sena­dores
os jecas os negros as senhoras os futebóleres, todos, vinham se rojando por
debaixo do pó alaranjando a saleta e depois de batida a cabeça com o lado
esquerdo no chão, beijavam os joelhos beijavam todo o corpo do uamoti. A polaca
vermelha tremendo rija pigando espuminha da boca em que todos molhavam o
mata-piolho pra se benzerem de atravessado, gemia uns roncos regougados meio
choro meio gozo e não era polaca mais, era Exu, o jurupari mais macanudo
daquela religião.

Depois que todos beijaram
adoraram e se benzeram muito, foi a hora dos pedidos e promessas. Um carni­ceiro
pediu pra todos comprarem a carne doente dele e Exu consentiu. Um fazendeiro
pediu pra não ter mais saúva nem maleita no sítio dele e Exu se riu falando que
isso não consentia não. Um namorista pediu pra pequena dele conseguir o lugar
de professora municipal pra casarem e Exu consentiu. Um médico fez um dis­curso
pedindo pra escrever com muita elegância a fala portuguesa e Exu não consentiu.
Assim. Afinal veio a vez de Macunaíma o filho novo do fute. E Macunaí­ma falou:

— Venho pedir pra meu pai
por causa que estou muito contrariado.

— Como se chama? perguntou
Exu.

— Macunaíma, o herói.

— Uhum… o maioral
resmungou, nome princi­piado por Ma tem má-sina…

Mas recebeu com carinho o
herói e prometeu tudo o que ele pedisse porque Macunaíma era filho. E o he­rói
pediu que Exu fizesse sofrer Venceslau Pietro Pie­tra que era o gigante Piaimã
comedor de gente.

Então foi horroroso o que se
passou. Exu pegou três pauzinhos de erva-cidreira benta por padre após­tata,
jogou pro alto, fez encruzilhada, mandando o eu de Venceslau Pietro Pietra vir
dentro dele Exu pra apa­nhar. Esperou um momento, o eu do gigante veio, en­trou
dentro da fêmea, e Exu mandou o filho dar a sova no eu que estava encarnado no
corpo polaco. O herói pegou uma tranca e chegou-a em Exu com vontade. Deu que
mais deu. Exu gritava:

— Me espanca devagar

Que isto dói dói dói!

Também tenho família

E isto dói dói dói!

 

Enfim roxo de pancada
sangrando pelo nariz pela boca pelos ouvidos caiu desmaiando no chão. E era
horroroso… Macunaíma ordenou que o eu do gigante fosse tomar um banho salgado
e fervendo e o corpo de Exu fumegou molhando o terreno. E Macunaíma ordenou que
o eu do gigante fosse pisando vidro atra­vés dum mato de urtiga e
agarra-compadre até as grunhas da serra dos Andes pleno inverno e o corpo de
Exu sangrou com lapos de vidro, unhadas de espinho e queimaduras de urtiga,
ofegando de fadiga e tre­mendo de tanto frio. Era horroroso. E Macunaíma
ordenou que o eu de Venceslau Pietro Pietra recebesse o guampaço dum marruá, o
coice dum bagual, a dentada dum jacaré e os ferrões de quarenta vezes qua­renta
mil formigas-de-fogo e o corpo de Exu retorceu sangrando empolando na terra,
com uma carreira de dentes numa perna, com quarenta vezes quarenta mil
ferroadas de formiga na pele já invisível, com a testa quebrada pelo casco dum
bagual e um furo de aspa aguda na barriga. A saleta se encheu dum cheiro into­lerável.
E Exu gemia:

 

— Me chifra devagar

Que isto dói dói dói!

Também tenho família

E isto dói dói dói!

 

Macunaíma ordenou muito
tempo muitas coisas assim e tudo o eu de Venceslau Pietro Pietra agüentou pelo
corpo de Exu. Afinal a vingança do herói não pôde inventar mais nada, parou. A
fêmea só respirava levinho largada no chão de terra. Teve um silêncio fatigado.
E era horroroso.

Lá no palácio da rua
Maranhão em São Paulo ti­nha um correcorre sem parada. Vinham médicos veio a
Assistência todos estavam desesperados. Venceslau Pietro Pietra sangrava todo
urrando. Mostrava uma chifrada na barriga, quebrou a testa que parecia coice de
potro, queimado enregelado mordido e todo cheio das manchas e galos duma
tremendérrima sova de pau.

Na macumba continuava o
silêncio de horror. Tia Ciata veio maneira e principiou rezando a reza maior do
diabo. Era a reza sacrílega entre todas, que se er­rando uma palavra dá morte,
a reza do Padre Nosso Exu, e era assim:

— Padre Exu achado nosso que
vós estais no trezeno inferno da esquerda de baixo, nóis te queremo muito, nóis
tudo!

— Quereremos! quereremos!

— … O pai nosso Exu de
cada dia nos dai hoje, seja feita vossa vontade assim também no terreiro da
sanzala que pertence pro nosso padre Exu, por todo o sempre que assim seja,
amém!…

Glória pra pátria gêge de
Exu!

— Glória pro fio de Exu!
Macunaíma agradeceu. A tia acabou:

— Chico-t-era um príncipe
gege que virou nosso padre Exu dos século seculóro pra sempre que assim seja,
amém.

— Pra sempre que assim seja,
amém!

Exu ia sarando sarando, tudo
foi desaparecendo por encanto quando a caninha circulou e o corpo da polaca
virou são outra vez. Se escutou uma bulha tamanha e tomou o espaço um cheiro de
breu queimado enquanto a fêmea deitava pela boca um anel de azeviche. Então
voltou do desmaio vermelha gorda só que mui fatigada e agora estava só a polaca
ali, Exu tinha ido embora.

E pra acabar todos fizeram a
festa juntos comen­do bom presunto e dançando um samba de arromba em que todas
essas gentes se alegraram com muitas pân­degas liberdosas. Então tudo acabou se
fazendo a vida real. E os macumbeiros, Macunaíma, Jaime Ovalle, Dodô, Manu
Bandeira, Blaise Cendrars, Ascenso Fer­reira, Raul Bopp, Antônio Bento, todos
esses macum­beiros saíram na madrugada.

 

 

VIII

VEI, A SOL

 

 

Macunaíma ia seguindo e
topou com a árvore Volomã bem alta. Num galho estava um pitiguari que nem bem
enxergou o herói, se desgoelou cantando — “Olha no caminho quem vem! Olha
no caminho quem vem!” Macunaíma olhou pra cima com intenção de agradecer
mas Volomã estava cheinha de fruta. O he­rói vinha dando horas de tanta fome e
a barriga dele empacou espiando aquelas sapotas sapotilhas sapotis bacuris
abricôs mucajás miritis guabijus melancias ariticuns, todas essas frutas.

— Volomã, me dá uma fruta,
Macunaíma pediu. O pau não quis dar. Então o herói gritou duas vezes:

— Boiôiô, boiôiô! quizama
quizu!

Caíram todas as frutas e ele
comeu bem. Volomã ficou com ódio. Pegou o herói pelos pés e atirou-o pra além
da baía de Guanabara numa ilhota deserta, ha­bitada antigamente pela ninfa
Alamoa que veio com os Holandeses. Macunaíma pendia tanto de fadiga que pe­gou
no sono durante o pulo. Caiu dormindo em baixo duma palmeirinha guairô muito
aromada onde um uru­bu estava encarapitado.

Ora o pássaro careceu de
fazer necessidades, fez e o herói ficou escorrendo sujeira de urubu. Já era de
madrugadinha e o. tempo estava inteiramente frio. Ma­cunaíma acordou tremendo,
todo enlambuzado. Assim mesmo examinou bem a pedra mirim da ilhota pra ver si
não havia alguma cova com dinheiro enterrado. Não havia não. Nem a correntinha
encantada de prata que indica pro escolhido, tesouro de Holandês. Havia só as
formigas jaquitaguas ruivinhas.

Então passou Caiuanogue, a
estrêla-da-manhã. Macunaíma já meio enjoado de tanto viver pediu pra ela que o
carregasse pro céu. Caiuanogue foi se che­gando porém o herói fedia muito.

— Vá tomar banho! ela fez. E
foi-se embora. Assim nasceu a expressão “Vá tomar banho!” que os
Brasileiros empregam se referindo a certos imigran­tes europeus.

Vinha passando Capei, a Lua.
Macunaíma gritou pra ela:

— Sua bênção, dindinha Lua!

— Uhum… que ela secundou.

Então ele pediu pra Lua que
o carregasse pra ilha de Marajó. Capei veio chegando porém Macunaíma estava
mesmo fedendo por demais.

— Vá tomar banho! ela fez. E
foi-se embora. E a expressão se fixou definitivamente. Macunaíma gritou pra
Capei que pelo menos desse um foguinho pra ele aquecer.

— Peça no vizinho! ela fez
apontando pra Sol que já vinha lá no longe remando pelo paraná guaçu. E foi-se
embora.

Macunaíma tremia que mais
tremia e o urubu sem­pre fazendo necessidade em riba dele. Era por causa da
pedra ser muito pequetitinha. Vei vinha chegando vermelha e toda molhada de
suor. E Vei era a Sol. Foi muito bom pra Macunaíma porque lá em casa ele sem­pre
dera presentinhos de bô-lo-de-aipim pra Sol lamber secando.

Vei tomou Macunaíma na
jangada que tinha uma vela cor-de-ferrugem pintada com muruci e fez as três
filhas limparem o herói, catarem os carrapatos e exa­minarem si as unhas dele
estavam limpas. E Macunaí­ma ficou alinhado outra vez. Porém por causa dela es­tar
velha vermelha e tão suando o herói não malíciava que a coroca era mesmo a Sol,
a boa da Sol poncho dos probres. Por isso pediu pra ela que chamasse Vei com
seu calor porque ele estava lavadinho bem mas tre­mendo de tanto frio. Vei era
a Sol mesmo e andava matinando fazer Macunaíma genro dela. Só que ainda não
podia aquentar ninguém não, porque era cedo por demais, não tinha força. Pra
distrair a espera assobiou dum jeito e as três filhas dela fizeram muitos
cafunés e cosquinhas no corpo todo do herói.

Ele dava risadas chatas, se
espremendo de cóce­gas e gostando muito. Quando elas paravam pedia mais
estorcendo já de antegozo. Vei pôs reparo na senvergonhice do herói, teve
raiva. Foi ficando sem vontade de tirar fogo do corpo e esquentar ninguém.
Então as cunhatãs agarraram na mãe, amarraram bem ela e Macunaíma dando muitos
munhecaços na barriga da bruaca saiu que saiu um fogaréu por detrás e todos se
aquentaram.

Principiou um calorão que
tomou a jangada, se alastrou nas águas e dourou a face limpa do ar. Ma­cunaíma
deitado na jangada lagarteava numa quebreira azul. E o silêncio alargando
tudo…

— Ai… que preguiça…

O herói suspirou. Se ouvia o
murmurejo da onda, só. Veio um enfaro feliz subindo pelo corpo de Ma­cunaíma,
era bom… A cunhatã mais moça batia o urucungo que a mãe trouxera da África.
Era vasto o paraná e não tinha uma nuvem na gupiara elevada do céu. Macunaíma
cruzou as munhecas no alto por de­trás fazendo um cabeceiro com as mãos e
enquanto a filha-da-luz mais velha afastava os mosquitos borrachudos em
quantidade, a terceira chinoca com as pontas das trancas fazia estremecer de
gosto a barriga do he­rói. E era se rindo em plena felicidade, parando pra
gozar de estrofe em estrofe que ele cantava assim:

Quando eu morrer não me
chores,

Deixo a vida sem sodade;

— Mandu sarará,

 

Tive pro pai o desterro,

Por mãe a infelicidade,

— Mandu sarará,

 

Papai chegou e me disse:

— Não hás de ter um amor!

— Mandu sarará,

 

Mamãe veio e me botou

Um colar feito de dor,

— Mandu sarará,

 

Que o tatu prepare a cova

Dos seus dentes desdentados,

— Mandu sarará,

 

Para o mais desinfeliz

De todos os desgraçados,

— Mandu sarará…

 

Era bom… O corpo dele
relumeava de ouro cinzando nos cristaizinhos do sal e por causa do cheiro da
maresia, por causa do remo pachorrento de Vei, e com a barriga assim
mexemexendo com cosquinhas de mu­lher, ah!… Macunaíma gozou do nosso gozo,
ah!… “Puxavante! que filha-duma?… de gostosura, gente!” exclamou.
E cerrando os olhos malandros, com a boca rindo num riso moleque safado de vida
boa o herói gostou gostou e adormeceu.

Quando a jacumã de Vei não
embalou mais o sono dele Macunaíma acordou. Lá no longe se perce­bia mais que
tudo um arranhacéu cor-de-rosa. A jan­gada estava abicada na caiçara da maloca
sublime do Rio de Janeiro.

Ali mesmo na beira d’água
tinha um cerradão comprido cheinho da árvore pau-brasil e com palácios de cor
nos dois lados. E o cerradão era a avenida Rio Branco. Aí que mora Vei a Sol
com suas três filhas de luz. Vei queria que Macunaíma ficasse genro dela por­que
afinal das contas ele era um herói e tinha dado tanto bôlo-de-aipim pra ela
chupar secando, falou:

— Meu genro: você carece de
casar com uma das minhas filhas. O dote que dou pra ti é Oropa França e Bahia.
Mas porém você tem de ser fiel e não andar assim brincando com as outras cunhas
por aí.

Macunaíma agradeceu e
prometeu que sim juran­do pela memória da mãe dele. Então Vei saiu com as três
filhas pra fazer o dia no cerradão, ordenando mais uma vez que Macunaíma não
saísse da jangada pra não andar brincando com as outras cunhas por aí. Macunaí­ma
tornou a prometer, jurando outra vez pela mãe.

Nem bem Vei com as três
filhas entraram no cer­radão que Macunaíma ficou cheio de vontade de ir brincar
com uma cunha. Acendeu um cigarro e a von­tade foi subindo. Lá por debaixo das
árvores passavam muitas cunhas cunhe cunhe se mexemexendo com ta­lento e
formosura.

— Pois que fogo devore tudo!
Macunaíma excla­mou. Não sou frouxo agora pra mulher me fazer mal!

E uma luz vasta brilhou no
cérebro dele. Se er­gueu na jangada e com os braços oscilando por cima da
pátria decretou solene:

— POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA,
OS MALES DO BRASIL SÃO!

Pulou da jangada no
sufragante, foi fazer conti­nência diante da imagem de Santo Antônio que era ca­pitão
de regimento e depois deu em cima de todas as cunhas por aí. Logo topou com uma
que fora varina lá na terrinha do compadre chegadinho-chegadinho e inda cheirava
no-mais! um fartum bem de peixe. Macunaí­ma piscou pra ela e os dois vieram na
jangada brincar. Fizeram. Bastante eles brincaram. Agora estão se rindo um pro
outro.

Quando Vei com suas três
filhas chegaram do dia e era a bôca-da-noite as moças que vinham na frente
encontraram Macunaíma e a Portuguesa brincando mais. Então as três filhas de
luz se zangaram:

— Então é assim que se faz,
herói! Pois nossa mãe Vei não falou pra você não sair da jangada e não ir
brincar com as outras cunhas por aí?!

— Estava muito tristinho! o
herói fez.

— Não tem que tristinho nem
mane tristinho, he­rói! Agora que você vai tomar um pito de nossa mãe Vei!

E viraram muito zangadas pra
velha:

— Veja, nossa mãe Vei, o que
vosso genro fez! Nem bem a gente foi no cerradão que ele escapuliu, deu em cima
duma boa, trouxe ela na vossa jangada e brin­caram até mais não! Agora estão se
rindo um pro outro!

Então a Sol se queimou e
ralhou assim: Ara ara, ara, meus cuidados! Pois não falei pra você não dar em
cima de nenhuma cunha não!… Fa­lei sim! E inda por cima você brinca com ela
na jan­gada minha e agora estão se rindo um pro outro!

— Estava muito tristinho!
Macunaíma repetiu.

— Pois si você tivesse me
obedecido casava com uma das minhas filhas e havia de ser sempre moço e
bonitão. Agora você fica pouco tempo moço talqualmente os outros homens e
depois vai ficando mocetudo e sem graça nenhuma.

Macunaíma sentiu vontade de
chorar. Suspirou.

— Si eu subesse…

— O “si eu
subesse” é santo que nunca não valeu

pra ninguém, meus cuidados!
Você o que é mas é mui­to safadinho, isso sim! Não te dou mais nenhuma das
minhas filhas não!

Daí Macunaíma pisou nos
calos também:

— Pois nem eu queria nenhuma
das três, sabe! Três, diabo fez!

Então Vei com as três filhas
foram pedir pouso num hotel e deixaram Macunaíma dormir com a Portuga jangada.

Quando foi ali pela hora
antes da madrugada, veio a Sol com as moças pra darem o passeio na baía e en­contraram
Macunaíma com a Portuguesa inda pegados no sono. Vei acordou os dois e fez
presente da pedra Vató pra Macunaíma. E a pedra Vató dá fogo quando a gente
quer. E lá se foi a Sol com as três filhas de luz.

Macunaíma inda passou esse
dia brincando com a varina pela cidade. Quando foi de-noite eles estavam
dormindo num banco do Flamengo quando chegou uma assombração medonha. Era
Mianiquê-Teibê que vinha pra enguilir o herói. Respirava com os dedos, escutava
pelo umbigo e tinha os olhos no lugar das mamicas. A boca era duas bocas e
estavam escondidas na dobra interior dos dedos dos pés. Macunaíma acordou com o
cheiro da assombração e jogou no viado Flamengo fora. Então Mianiquê-Teibê
comeu a varina e se foi.

No outro dia Macunaíma não
achou mais graça na capital da República. Trocou a pedra Vató por um retrato no
jornal e voltou pra taba do igarapé Tietê.

 

IX

CARTA PRAS ICAMIABAS

 

 

Às mui queridas súbditas
nossas, Senhoras Ama­zonas.

Trinta de Maio de Mil
Novecentos e Vinte e Seis, São Paulo.

Senhoras:

Não pouco vos surpreenderá,
por certo, o endereço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto,
iniciar estas linhas de saudades e muito amor, com de­sagradável nova. É bem
verdade que na boa cidade de São Paulo — a maior do universo, no dizer de seus
pro­lixos habitantes — não sois conhecidas por “icamiabas”, voz
espúria, sinão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós, se afirma, cavalgardes
ginetes belígeros e virdes da Hélade clássica; e assim sois chamadas. Muito nos
pesou a nós, Imperator vosso, tais dislates da erudição porém heis de convir
conosco que, assim, ficais mais heróicas e mais conspícuas, tocadas por essa
platina respeitável da tradição e da pureza antiga.

Mas não devemos
esperdiçarmos vosso tempo fero, e muito menos conturbarmos vosso entendimento,
com notícias de mau calibre; passemos pois, imediato, ao relato dos nossos
feitos por cá.

Nem cinco sóis eram passados
que de vós nos par­tíramos, quando a mais temerosa desdita pesou sobre Nós. Por
uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que
ou trem grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologias esdrú­xulas,
ortografam muyrakitan e até mesmo muraquéitã, não sorriais! Haveis de saber que
este vocábulo, tão familiar às vossas trompas de Eustáquio, é quase
desconhecido por aqui. Por estas paragens mui civis, os guerreiros chamam-se
polícias, grilos, guardas-cívicas, boxistas, legalistas, masorqueiros, etc;
sendo que alguns desses termos são neologismos absurdos — ba­gaço nefando com
que os desleixados e petimetres cons­purcam o bom falar lusitano. Mas não nos
sobra já va­gar para discretearmos “sub tegmine fagi”, sobre a lín­gua
portuguesa, também chamada lusitana. O que vos interessará mais, por sem
dúvida, é saberdes que os guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para o
enlace epitalâmico; mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por
pequeninas e voláteis folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro — o
“curriculum vitae” da Civilização, a que hoje fazemos ponto de hon­ra
em pertencermos. Assim a palavra muiraquitã, que fere já os ouvidos latinos do
vosso Imperador, é desco­nhecida dos guerreiros, e de todos em geral que por
estas partes respiram. Apenas alguns “sujeitos de im­portância em virtude
e letras”, como já dizia o bom velhinho e clássico frei Luís de Sousa,
citado pelo dou­tor Rui Barbosa, ainda sobre as muiraquitãs projetam as suas
luzes, para aquilatá-las de medíocre valia, ori­ginárias da Ásia, e não de
vossos dedos, violentos no polir.

Estávamos ainda abatido por
termos perdido a nos­sa muiraquitã, em forma de sáurio, quando talvez por algum
influxo metapsíquico, ou, qui lo sá, provocado por algum libido saudoso, como
explica o sábio tudesco, doutor Sigmundo Freud (lede Fróide), se nos depa­rou
em sonho um arcanjo maravilhoso. Por ele sou­bemos que o talismã perdido estava
nas diletas mãos do doutor Venceslau Pietro Pietra, súbdito do Vice-Reinado do
Peru, e de origem francamente florentina, como os Cavalcântis de Pernambuco. E
como o doutor demorasse na ilustre cidade anchietana, sem demora nos partimos
para cá, em busca do velocino roubado.

As nossas relações actuais
com o doutor Venceslau são as mais lisonjeiras possíveis; e sem dúvida mui para
breve recebereis a grata nova de que hemos reavido o talismã: e por ela vos
pediremos alvíçaras.

Porque, súbditas dilectas, é
incontestável que Nós, Imperator vosso, nos achamos em precária condição. O
tesouro que daí trouxemos, foi-nos de mister conver­tê-lo na moeda corrente do
país; e tal conversão muito nos há dificultado o mantenimento, devido às
oscilações do Câmbio e à baixa do cacau.

Sabereis mais que as donas
de cá não se derribam a pauladas, nem brincam por brincar, gratuitamente’,
senão que a chuvas do vil metal, repuxos brasonados de champagne, e uns
monstros comestíveis, a que, vul­garmente, dão o nome de lagostas. E quê
monstros en­cantados, senhoras Amazonas!!! Duma carapaça poli­da e sobrosada,
feita a modo de casco de nau, saem braços, tentáculos e cauda remígeros, de
muitos feitios; de modo que o pesado engenho, deposto num prato de porcelana de
Sêvres, se nos antoja qual velejante trirreme a bordeisjar água de Nilo, trazendo
no bojo o corpo inestimável de Cleópatra.

Ponde tento na acentuação
deste vocábulo, senho­ras Amazonas, pois muito nos pesara não preferísseis
conosco, essa pronúncia, condizente com a lição dos clássicos, à pronúncia
Cleópatra, dicção mais moderna; e que alguns vocabulistas levianamente
subscrevem, sem que se apercebam de que é ganga desprezível, que nos trazem,
com o enxurro de França, os galiparlas de má morte.

Pois é com esse dedicado
monstro, vencedor dos mais delicados véus paladinos, que as donas de cá tom­bam
nos leitos nupciais. Assim haveis de compreender de que alvíçaras falamos;
porque as lagostas são carís­simas, caríssimas súbditas, e algumas hemos nós
adquiridas por sessenta contos e mais; o que, convertido em nossa moeda
tradicional, alcança a vultosa soma de oitenta milhões de bagos de cacau… Bem
podereis conceber, pois, quanto hemos já gasto; e que já estamos carecido do
vil metal, para brincar com tais difíceis do­nas. Bem quiséramos impormos à
nossa ardida chama uma abstinência, penosa embora, para vos pouparmos despesas;
porém que ânimo forte não cedera ante os encantos e galanteios de tão
agradáveis pastoras!

Andam elas vestidas de
rutilantes jóias e panos fi­níssimos, que lhes acentuam o donaire do porte, e
mal encobrem as graças, que, a de nenhuma outra cedem pelo formoso do torneado
e pelo tom. São sempre alvíssimas as donas de cá; e tais e tantas habilidades
de­monstram, no brincar, que enumerá-las, aqui seria fàstiendo porventura; e,
certamente, quebraria os manda­mentos de discreção, que em relação de Imperator
para súbditas se requer. Que beldades! Que elegância! Que cachet! Que degagé
flamífero, ignívomo, devorador!! Só pensamos nelas, muito embora não nos
descuidemos, relapso, da nossa muiraquitã.

Nós, nos parece ilustres
Amazonas, que assaz ganharíeis em aprenderdes com elas, as condescendências, os
brincos e passes do Amor. Deixaríeis então a vossa orgulhosa e solitária Lei,
por mais amáveis mesteres, em que o Beijo sublima, as Volúpias encandecem, e se
demonstra gloriosa, “urbi et orbe”, a subtil força do Odor di Femina,
como escrevem os italianos.

E já que nos detivemos neste
delicado assunto, não no abandonaremos sem mais alguns reparos, que vos poderão
ser úteis. As donas de São Paulo, sobre serem mui formosas e sábias, não se
contentam com os dons e excelência que a Natura lhes concedeu; assaz se preo­cupam
elas de si mesmas; e não puderam acabarem consigo, que não mandassem vir de
todas as partes do globo, tudo o que de mais sublimado e gentil acrisolou a
ciência fescenina, digo, feminina das civilizações avitas. Assim é que chamaram
mestras da velha Europa, e sobretudo de França, e com elas aprenderam a pas­sarem
o tempo de maneira bem diversa da vossa. Ora se alimpam, e gastam horas nesse
delicado mester, ora encantam os convívios teatrais da sociedade, ora não fazem
coisa alguma; e nesses trabalhos passam elas o dia tão entretecidas e afanosas
que, em chegando a noute, mal lhes sobra vagar para brincarem e presto se
entregam nos braços de Orfeu, como se diz. Mas heis de saber, senhoras minhas,
que por cá dia e noute divergem singularmente do vosso horário belígero; o dia
começa quando para vós é o pino dele, e a noute, quando estais no quarto sono
vosso, que, por derradeiro, é o mais reparador.

Tudo isso as donas paulistanas
aprenderam com as mestras de França; e mais o polimento das unhas e cres­cimento
delas, bem como aliás “horjesco referens”, das demais partes córneas
dos seus companheiros legais. Deixai passe esta flórida ironia!

E muito há que vos diga
ainda sobre o jeito com que cortam as comas, de tal maneira gracioso e viril,
que mais se assemelham elas a efebos e Antinous, de perversa memória, que a
matronas de tão directa progênie latina. Todavia, convireis conosco, no
desacerto de longas trancas por cá, si atenderdes ao que mais atrás ficou dito;
pois que os doutores de São Paulo não derribam as suas requestadas pela força,
senão que a troco de oiro e de iocustas, as ditas comas são de somenos,
acrescendo ainda que assim se amainam os ma­les, que tais comas acarretam, de
serem moradia e pas­to habitual de insectos mui daninho como entre vós se dá.

Pois não contentes de terem
aprendido de França, as subtilezas e passes da galanteria à Luís XV, as do­nas
paulistanas importam das regiões mais inóspitas c que lhes acrescente ao sabor,
tais como pezinhos nipônicos, rubis da Índia, desenvolturas norteamericanas; e
muitas outras sabedorias e tesoiros internacionais.

Já agora vos falaremos
ainda, bem que por alto, dum nitente armento de senhoras, originárias da Polô­nia,
que aqui demoram e imperam generosamente. São elas mui alentadas no porte e
mais numerosas que as areias do mar oceano. Como vós, senhoras Amazonas, tais
damas formam um gineceu; estando os homens que em suas casas delas habitam,
reduzidos escravos e con­denados ao vil ofício de servirem. E por isso não se
lhes chamam homens, sinão que à voz espúria de garçons respondem; e são assaz
polidos e silentes, e sempre do mesmo indumento gravebundo trajam.

Vivem essas damas
encasteladas num mesmo lo­cal, a que chamam por cá de quarteirão, e mesmo de
pensões ou “zona estragada”; sobrelevando notar que a derradeira
destas expressões não caberia, por indina nesta notícia sobre as coisas de São
Paulo, não fora o nosso anseio de sermos exacto e conhecedor. Porém si, como
vós, formam essas queridas senhoras um clã de mulheres, muito de vós se apartam
do físico, no gênero de vida e nas ideais. Assim vos diremas que vivem à noute,
e se não dão aos afazeres de Marte nem quei­mam o destro seio, mas a Mercúrio
cortejam tão so­mente; e quanto aos seios, deixam-nos envolverem, à feição de
gigantescos e flácidos pomos, que, si lhes não acrescentam ao donaire, servem
para numerosos e ár­duos trabalhos de excelente virtude e prodigiosa excitação.

Ainda lhes difere o físico,
tanto ou quanto mons­truoso, bem que de amável monstruosidade, por terem

elas o cérebro nas partes pudendas, e como tão bem se
diz em linguagem madrigalesca, o coração nas mãos. Falam numerosas e mui
rápidas línguas; são via­jadas e educadíssimas; sempre todas obedientes por
igual, embora.ricamente díspares entre si, quais loiras, quais morenas, quais
fôsse-maigres, quais rotundas; e de tal sorte abundantes no número e
diversidade, que muito nos preocupa a razão, o serem todas e tantas, ori­ginais
dum país somente. Acresce ainda que a todas se lhes dão o excitante, embora
injusto, epíteto de “fran­cesas”. A nossa desconfiança é que essas
damas não se originaram todas da Polônia, porém que faltam à ver­dade, e são
iberas, itálicas, germânicas, turcas, argenti­nas, peruanas, e de todas as
outras partes férteis de um e outro hemisfério.

Muito estimaríamos que
compartilhásseis da nossa desconfiança, senhoras Amazonas; e que convidásseis
também algumas dessas damas para demorarem nas vossas terras e Império nosso,
por que aprendais com elas um moderno e mais rendoso gênero de vida, que muito
fará avultar os tesoiros do vosso Imperador. E mesmo, si não quiserdes largar
mão da vossa solitária Lei, sempre a existência de algumas centenas dessas da­mas
entre vós, muito nos facilitará o “modus in rebus”, quando for no
nosso retorno ao Império do Mato Vir­gem, cujo este nome, aliás, proporíamos se
mudasse para Império da Mata Virgem, mais condizente com a lição dos clássicos.

Todavia para terminar
negócio tão principal, hemos por bem advertir-vos dum perigo que essa impor­tação
acarretara, si não aceitásseis alguns doutores pos­santes nos limites do
Estado, enquanto dele estivermos apartado. Com serem essas damas mui fogosas e
livres; bem pudera pesar-lhes em demasia o seqüestro incon­seqüente em que
viveis, e, por não perderem elas as
ciências e
segredos que lhes dão o pão, bem poderiam ir ao extremo de utilizarem-se das
bestas feras, dos bogios, dos tapires e dos solertes candirus. E muito mais
ainda nos pesaria à consciência e sentimento nobre do dever; que vós, súbditas
nossas, aprendásseis com elas certas abusões, tal como foi com as companheiras
da gentil declamadora Safo na ilha rósea de Lesbos — vícios esses que não
suportam crítica à luz das possi­bilidades humanas, e muito menos o escalpelo
da rígida e sã moral.

Como vedes, assaz hemos
aproveitada esta demora na ilustre terra bandeirante, e si não descuidamos do
nosso talismã, por certo que não poupamos esforços nem vil metal, por
aprendermos as coisas mais principais desta eviterna civilização latina, por
que iniciemos quando for do nosso retorno ao Mato Virgem, uma sé­rie de
milhoramentos, que, muito nos facilitarão a exis­tência, e mais espalhem nossa
prosápia de nação culta entre as mais cultas do Universo. E por isso agora vos
diremos algo sobre esta nobre cidade, pois que preten­demos construir uma igual
nos vossos domínios e Im­pério nosso.

É São Paulo construída sobre
sete colinas, à fei­ção tradicional de Roma, a cidade cesárea,
“capita” da Latinidade de que provimos; e beija-lhes os pés a grácil
e inquieta linfa do Tietê. As águas são magníficas, os ares tão amenos quanto
os de Aquisgrana ou de Anver-res, e a área tão a eles igual em salubridade e
abundân­cia, que bem se pudera afirmar, ao modo fino dos cro­nistas, que de
três AAA se gera espontaneamente a fauna urbana.

Cidade é belíssima, e grato
o seu convívio. Toda cortada de ruas habilmente estreitas e tomadas por es­tátuas
e lampiões graciosíssimos e de rara escultura; tudo diminuindo com astúcia o
espaço de forma tal,
que nessas artérias não
cabe a população. Assim se obtém o efeito dum grande acúmulo de gentes, cuja
estimativa pode ser aumentada à vontade, o que é pro­pício às eleições que são
invenção dos inimitáveis mi­neiros; ao mesmo tempo que os edis dispõem de largo
assunto com que ganhem dias honrados e a admiração de todos, com surtos de
eloqüência do mais puro es­tilo e sublimado lavor.

As ditas artérias são todas
recamadas de ricocheteantes papeizinhos e velívolas cascas de fruitos; e em
principal duma finíssima poeira, e mui dançarina, em que se despargem
diariamente mil e uma espécimens de vorazes macróbios, que dizimam a população.
Por essa forma resolveram, os nossos maiores, o problema da circulação; pois
que tais insectos devoram as mes­quinhas vidas da ralé; e impedem o acúmulo de
deso­cupados e operários; e assim se conservam sempre as gentes em número
igual. E não contentes com essa poeira ser erguida pelo andar dos
pedestrianistas e por urrantes máquinas a que chamam “automóveis” e
“eléctricos”, (empregam alguns a palavra Bond, voz espúria, vinda
certamente do inglês) contrataram os diligentes edis, uns antropóides, monstros
hipocentáureos azulegos e monótonos, a que congloba o título de Limpeza
Pública; que “per amica silencia lunae”, quando cessa o movimento e o
pó descansa inócuo, saem das suas mansões, e, com os rabos girantes a modo de
vassouras cilíndricas, puxadas por muares, soerguem do asfalto a poeira e tiram
os insetos do sono, e os concitam à actividade com largos gestos e grita formidanda.
Estes afazeres nocturnos são discretamente conduzidos por pequeninas luzes,
dispostas de longe em longe, de ma­neira a permanecer quase total a escuridade,
não per­turbem elas os trabalhos de malfeitores e ladrões.

A cópia destes se nos
afigura realmente excessiva; e temos que são a única usança que não se coaduna
com nosso temperamento, ordeiro e pacífico de seu na­tural. Porém, longe de nós
qualquer reproche aos admi­nistradores de São Paulo, pois sabemos muito bem que
aos valerosos Paulistas, são aprazíveis tais malfeitores e suas artes. São os
Paulistas gente ardida e avalentoada, e muito afeita às agruras da guerra.
Vivem em combates singulares e colectivos, todos armados da ca­beça aos pés;
assim assaz numerosos são os distúrbios por cá, em que, não raro, tombam na
arena da luta, centenas de milhares de heróis, chamados bandeirantes. – Pelo
mesmo motivo São Paulo, está dotada de mui aguerrida e vultosa Polícia, que
habita palácios bran­cos de custosa engenharia. A essa Polícia compete ain­da
equilibrar os excessos da riqueza pública, por se não desvalorizar o oiro
incontável da Nação; e tal diligên­cia emprega nesse afã, que, por todos os
lados devora os dinheiros nacionais, quer em paradas e roupagens luzidas, quer
em ginásticas da recomendável Eugênia, que inda não tivemos o prazer de
conhecermos; quer finalmente atacando os incautos burgueses que regres­sam do
seu teatro, do seu cinema, ou “dão a sua volta de automóvel pelos vergéis
amenos que circundam a ca­pital. A essa Polícia ainda lhe compete divertir a
classe das criadinhas paulistanas; e para seu lustre se diga que o faz com
jornaleiro préstimo, em parques, cons­truídos “ad hoc”, tais como o
parque de Dom Pedro Se­gundo e o Jardim da Luz. E quando o numerário des­sa
Polícia avulta, são os seus homens enviados para as rechãs longínquas e menos
férteis da pátria, para se­rem devorados por súcias de gigantes antropófagos,
que infestam a nossa geografia, na inglória tarefa de ruir por terra Governos
honestos; e de pleno gosto e assentimento geral da população, como se
descrimina das urnas e dos ágapes governamentais. Esses masorqueiros pegam nos
polícias, assam-nos e comem-nos ao jeito alemão; e as ossadas caídas na terra
maninha são exce­lente adubo de futuros cafezais.

Assim tão bem organizados
vivem e prosperam os Paulistas na mais perfeita ordem e progresso; e lhes não é
escasso o tempo para construírem generosos hos­pitais, atraindo para cá todos
os leprosos sulamericanos, Mineiros, Paraibanos, Peruanos, Bolivianos,
Chilenos, Paraguaios, que, antes de ir morarem nesses lindíssimos leprosários,
e serem servidos por donas de duvidosa e decadente beldade — sempre donas! —
animam as es­tradas do Estado e as ruas da capital, em garridas co­mitivas
eqüestres ou em maratonas soberbas que são o orgulho de nossa raça desportiva,
em cujo conspeito pul­sa o sangue das heróicas bigas e quadrigas latinas!

Porém, senhoras minhas! Inda
tanto nos sobra, por este grandioso país, de doenças e insectos por cui­dar!
… Tudo vai num descalabro sem comedimento, e estamos corroídos pelo morbo e
pelos miriápodes! Em breve seremos novamente uma colônia da Inglaterra ou da
América do Norte!… Por isso e para eterna lem­brança destes Paulistas, que
são a única gente útil do país, e por isso chamados de Locomotivas, nos demos
ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se en­cerram os segredos de
tanta desgraça:

 

“POUCA SAÚDE E MUITA
SAÚVA, OS MALES DO BRASIL SÃO.”

 

Este dístico é que houvemos
por bem escrevermos no livro de Visitantes Ilustres do Instituto Butantã, quando
foi da nossa visita a esse estabelecimento famo­so na Europa.

Moram os Paulistanos em
Palácios alterosos de cin­qüenta, cem e mais andares, a que, nas épocas da
procreação, invadem umas nuvens de mosquitos pernilongos, de vária espécie,
muito ao gosto dos nativos, mor­dendo os homens e as senhoras com tanta
propriedade nos seus distintivos, que não precisam eles e elas das cáusticas
urtigas para as massagens da excitação, tal como entre os selvícolas é de uso.
Os pernilongos se encarregam dessa faina; e obram tais milagres que, nos
bairros miseráveis, surge anualmente uma incontável multidão de rapazes e
raparigas bulhentos, a que cha­mamos ‘italianinhos”; destinados a
alimentarem as fá­bricas dos áureos potentados, e a servirem, escravos, o
descanso aromático dos Cresos.

Estes e outros
multimilionários é que ergueram em torno da urbs as doze mil fábricas de seda,
e no recesso dela os famosos Cafés maiores do mundo, todos de obra de talha em
jacarandá folhado de oiro, com embutidos de salsas tartarugas.

E o Palácio do Governo é
todo de oiro, à feição dos da Rainha do Adriático; e, em carruagens de prata,
for­radas de peles finíssimas, o Presidente, que mantém muitas esposas,
passeia, ao cair das tardes, sorrindo com vagar.

De outras c muitas grandezas
vos poderíamos ilus­trar, senhoras Amazonas, não fora perlongar demasia­do esta
epístola; todavia, com afirmar-vos que esta é, por sem dúvida, a mais bela
cidade terráquea, muito hemos feito em favor destes homens de prol. Mas
cair-nos-iam as faces, si ocultáramos no silêncio, uma curio­sidade original
deste povo. Ora sabereis que a sua ri­queza de expressão intelectual é tão
prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra. Assim chegado a estas
plagas hospitalares, nos demos ao trabalho de bem nos inteirarmos da etnologia
da terra, e dentre muita surpresa e assombro que se nos deparou, por cer­to não
foi das menores tal originalidade lingüística. Nas conversas utilizam-se os
paulistanos dum linguajar bár­baro e multifário, crasso de feição e impuro na
vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu sabor e força nas apóstrofes, e
também nas vozes do brincar. Destas e daquelas nos inteiramos, solícito; e nos
será grata em­presa vo-las ensinarmos aí chegado. Mas si de tal des­prezível
língua se utilizam na conversação os naturais desta terra, logo que tomam da
pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu,
exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum
panegirista, meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua
de Ca­mões! De tal originalidade e riqueza vos há-de ser grato ter ciência, e
mais ainda vos espantareis com saberdes, que à grande e quase total maioria,
nem essas duas lín­guas bastam, senão que se enriquecem do mais lídimo italiano,
por mais musical e gracioso, e que por todos os recantos da urbs é versado. De
tudo nos inteiramos satisfatoriamente, graças aos deuses; e muitas horas hemos
ganho, discretando sobre o z do termo Brazil e a questão do pronome
“se”. Outrossim, hemos adquiri­do muitos livros bilíngües, chamados
“burros”, e o di­cionário Pequeno Larousse; e já estamos em condições
de citarmos no original latino muitas frases célebres dos filósofos e os
testículos da Bíblia.

Enfim, senhoras Amazonas,
heis de saber ainda que a estes progressos e luzida civilização, hão elevado
esta grande cidade os seus maiores, também chamados de políticos. Com este
apelativo se designa uma raça refinadíssima de doutores, tão desconhecidos de
vós, que os diríeis monstros. Monstros são na verdade mas na grandiosidade
incomparável da audácia, da sapiência, da honestidade e da moral; e embora algo
com os ho­mens se pareçam, originam-se eles dos reais uirauaçus e muito pouco
têm de humanos. Obedecem todos a um imperador, chamado Papai Grande na gíria
familiar, e que demora na oceânica cidade do Rio de Janeiro — a mais bela do
mundo, na opinião de todos os es­trangeiros, e que por meus olhos verifiquei.

Finalmente, senhoras
Amazonas e muito amadas súbditas, assaz hemos sofrido e curtido árduos e cons­tantes
pesares, depois que os deveres da nossa posição, nos apartaram do Império do
Mato Virgem. Por cá tu­do são delícias e venturas, porém nenhum gozo tere­mos e
nenhum descanso, enquanto não rehouvermos o perdido talismã. Hemos por bem
repetir entretanto que as nossas relações com o doutor Venceslau são as
milhores possíveis; que as negociações estão entaboladas e perfeitamente
encaminhadas; e bem poderíeis enviar de antemão as alvíçaras que enunciamos
atrás. Com pouco o vosso abstêmio Imperador se contenta; si não puderdes enviar
duzentas igaras cheias de bagos de ca­cau, mandai, cem, ou menos cinqüenta!

Recebei a bênção do vosso
Imperador e mais saúde e fraternidade. Acatai com respeito e obediência estas
mal traçadas linhas; e, principalmente, não vos esque­çais das alvíçaras e das
polonesas, de que muito hemos mister.

Ci guarde a Vossas Excias.

 

Macunaíma,

Imperator.

 

X

PAUÍ-PÓDOLE

 

 

Venceslau Pietro Pietra
ficara muito doente com a sova e estava todo envolvido em rama de algodão.
Passou meses na rede. Macunaíma não podia nem dar passo pra conseguir a
muiraquitã agora guardada den­tro do caramujo por debaixo do corpo do gigante.
Ima­ginou botar formiga cupim no chinelo do outro porque isso traz morte,
dizem, porém Piaimã tinha pé pra trás e não usava chinelo. Macunaíma estava
muito contra­riado com aquele chove-não-molha e passava o dia na rede
mastigando beiju membeca entre codórios longos de restilo. Nesse tempo veio
pedir pousada na pensão o índio Antônio, santo famoso com a companheira dele,
Mãe de Deus. Foi visitar Macunaíma, fez discurso e ba­tizou o herói diante do
deus que havia de vir e tinha forma nem bem de peixe nem bem de anta. Foi assim
que Macunaíma entrou pra religião Caraimonhaga que estava fazendo furor no
sertão da Bahia.

Macunaíma aproveitava a
espera se aperfeiçoando nas duas línguas da terra, o brasileiro falado e o por­tuguês
escrito. Já sabia nome de tudo. Uma feita era dia da Flor, festa inventada prós
Brasileiros serem ca­ridosos e tinha tantos mosquitos carapanãs que Ma­cunaíma
largou do estudo e foi na cidade refrescar as idéias. Foi e viu um despropósito
de coisas. Parava em cada vitrina e examinava dentro dela aquela porção de
monstros, tantos que até parecia a serra do Ererê onde tudo se refugiou quando
a enchente grande inundou o mundo. Macunaíma passeava passeava e encontrou uma
cunhatã com uma urupema carregadinha de ro­sas. A mocica fez ele parar e botou
uma flor na lapela dele, falando:

— Custa milréis.

Macunaíma ficou muito
contrariado porque não sabia como era o nome daquele buraco da máquina roupa
onde a cunhatã enfiara a flor. E o buraco chama­va botoeira. Imaginou
escarafunchando na memória bem, mas nunca não ouvira mesmo o nome daquele
buraco. Quis chamar aquilo de buraco porém viu logo que confundia com os outros
buracos deste mundo e ficou com vergonha da cunhatã. “Orifício” era
palavra que a gente escrevia mas porém nunca ninguém não falava
“orifício” não. Depois de pensamentear pensamentear não havia meios
mesmo de descobrir o nome daquilo e pôs reparo que da rua Direita onde topara
com a cunhatã já tinha ido parar adiante de São Ber­nardo, passada a moradia de
mestre Cosme. Então vol­tou, pagou pra moça e falou de venta-inchada:

— A senhora me arrumou com
um dia-de-judeu! Nunca mais me bote flor neste… neste puíto, dona!

Macunaíma era desbocado duma
vez. Falara uma bocagem muito porca, muito! A cunhatã não sabia que puíto era
palavra-feia não e enquanto o herói voltava aluado com o caso pra pensão, ficou
se rindo, achando graça na palavra. “Puíto…” que ela dizia. E
repetia gozado: “Puíto… Puíto”… Imaginou que era moda. Então se
pôs falando pra toda a gente si queriam que ela botasse uma rosa no puíto
deles. Uns quiseram ou­tros não quiseram, as outras cunhatãs escutaram a pa­lavra,
a empregaram e “puíto” pegou. Ninguém mais não falava em boutonnière
por exemplo; só puíto, puíto se escutava.

Macunaíma ficou de azeite
uma semana, sem co­mer sem brincar sem dormir só porque desejava saber as
línguas da terra. Lembrava de perguntar prós ou­tros como era o nome daquele
buraco mais tinha ver­gonha de irem pensar que ele era ignorante e moita. •

Afinal chegou o domingo
pé-de-cachimbo que era dia do Cruzeiro, feriado novo inventado prós Brasileiros
descansarem mais. De manhã teve parada na Mooca, ao meio-dia missa campal no
Coração de Jesus, às dezes­sete corso e batalha de confetes na avenida Rangel
Pes­tana e de-noite, depois da passeata dos deputados e desocupados pela rua
Quinze, ia queimar um fogo-de-artifício no Ipiranga. Então pra espairecer
Macunaí­ma foi no parque ver os fogos.

Nem bem saiu da pensão topou
com uma cunha clara, louríssima, filhinha-da-mandioca bem, toda de branco e o
chapéu de tucumã vermelho coberto de margaridinhas. Chamava Fráulein e sempre
carecia de pro­teção. Foram juntos e chegaram lá. O parque estava uma boniteza.
Tinha tantas máquinas repuxos mistu­radas com a máquina luz elétrica que a
gente se en­costava um no outro no escuro e as mãos se agarra­vam pra agüentar
a admiração. Assim a dona fez e Macunaíma sussurrou docemente:

— Mani… filhinha da
mandioca!…

Pois então a alemãzinha
chorando comovida, se vi­rou e perguntou pra ele si deixava ela afincar aquela
margarida no puíto dele. Primeiro o herói ficou muito assarapantado, muito! e
quis zangar porém depois li­gou os fatos e percebeu que fora muito inteligente.
Ma­cunaíma deu uma grande gargalhada.

Mas o caso é que
“puíto” já entrara pras revistas estudando com muita ciência os
idiomas escrito e falado e já estava mais que assente que pelas leis de
catalepse elipse síncope mentonímia metafonia metátese próclise prótese aférese
apócope haplologia etimologia popular todas essas leis, a palavra
“botoeira” viera a dar em “puíto”, por meio duma palavra
intermediária, a voz latina “rabanitius” (botoeira-rabanitius-puíto),
sendo que rabanitius embora não encontrada nos documentos medievais, afirmaram
os doutos que na certa existira e fora corrente no sermo vulgaris.

Nesse momento um mulato da
maior mulataria tre­pou numa estátua e principiou um discurso entusias­mado
explicando pra Macunaíma o que era o dia do Cruzeiro. No céu escampado da noite
não tinha uma nuvem nem Capei. A gente enxergava os conhecidos, os
pais-das-árvores os pais-das-aves os pais-das-caças e o parentes manos pais
mães tias cunhadas cunhas cunhatãs, todas essas estrelas piscapiscando bem
felizes nessa terra sem mal, adonde havia muita saúde e pouca saúva, o
firmamento lá. Macunaíma escutava muito agradecido, concordando com a fala
comprida que o discursador fazia pra ele. Só depois do homem apontar muito e
descrever muito é que Macunaíma pôs reparo que o tal de Cruzeiro era mas eram
aquelas quatro es­trelas que ele sabia muito bem serem o Pai de Mutum morando
no campo do céu. Teve raiva da mentira do mulato e berrou:

— Não é não!

— … Meus senhores, que o
outro discursava aquelas quatro estrelas rutilantes como lágrimas arden­tes, no
dizer do sublime poeta, são o sacrossanto e tra­dicional Cruzeiro que…

— Não é não!

— Psiu!

— … o símbolo mais…

— Não é não!

— Apoiados!

— Fora!

— Psiu!… Psiu!…

— … mais su-sublime e
maravilhoso da nossa amarmada pátria é aquele misterioso Cruzeiro lucilante
que…

— Não é não!

— … ve-vedes com…

— Nan sculhàmba!

— … suas… qua… tro
claras lantejoulas de

prat…

— Não é não!

— Não é não! que outros
gritavam também. Com tanta bulha afinal o mulato entrupigaitou e todos os
presentes animados pelo “Não é não!” do he­rói estavam com muita
vontade de fazer um chinfrim. Porém Macunaíma tremia tão tiririca que nem perce­beu.
Pulou em riba da estátua e principiou contando a história do Pai do Mutum. E
era assim:

— Não é não! Meus senhores e
minhas senhoras! Aquelas quatro estrelas lá é o Pai do Mutum! juro que é o Pai
do Mutum, minha gente, que pára no campo vasto do céu!… Isso foi no tempo em
que os animais já não eram mais homens e sucedeu no grande mato Fulano. Era uma
vez dois cunhados que moravam mui­to longe um do outro. Um chamava
Camã-Pabinque e era catimbozeiro. Uma feita o cunhado de Camã-Pabin­que entrou
no mato por amor de caçar um bocado. Es­tava fazendo e topou com Pauí-Pódole e
seu compadre o vaga-lume Camaiuá. E Pauí-Pódole era o Pai do Mu­tum. Estava
trepado no galho alto da acapu, descan­sando. Vai, o cunhado do feiticeiro
voltou pra maloca e falou pra companheira dele que tinha topado com Pauí-Pódole
e seu compadre Camaiuá. E o Pai do Mutum com seu compadre num tempo muito de
dantes já foram gente que nem nós. O homem falou mais que bem que tinha querido
matar Pauí-Pódole com a sarabatana porém não alcançara o poleiro alto do Pai do
Mutum na acapu. E então pegou na frecha de pracuuba com ponta de taboca e foi
pescar carataís. Logo Camã-Pabinque chegou na maloca do cunhado e falou:

— Mana, o que foi que vosso
companheiro falou pra você?

Então a mana contou tudo pro
feiticeiro e que Pauí-Pódole estava empoleirado na acapu com seu com­padre o
vaga-lume Camaiuá. No outro dia manhãzinha Camã-Pabinque saiu do papiri dele e
achou Pauí-Pódole piando na acapu. Então o catimbozeiro virou na tocandeira
Ilague e foi subindo pelo pau mas o Pai do Mutum enxergou a formigona e soprou
um pio forte. Bateu um ventarão tamanho que o feiticeiro despencou do pau,
caindo nas capituvas da serrapilheira. Então virou na tacuri Opalá menorzinha e
foi subindo outra vez, porém Pauí-Pódole tornou a enxergar a formiga. Soprou e
veio um ventinho brisando que sacudiu Opalá nas trapoerabas da serrapilheira.
Então Camã-Pabin­que virou na lavapés chamada Megue, pequetitinha, su­biu na
acapu, ferrou o Pai do Mutum bem no furinho do nariz, enrolou o corpico e
trazendo o não-se-diz entre os ferrões, juque! esguichou ácido-fórmico aí. Chi!
mi­nha gente! Isso Pauí-Pódole abriu um vôo esparra­mado com a dor e espirrou
Megue longe! O feiticeiro nem não pôde sair mais do corpo de Megue, do susto
que pegou. E ficou mais essa praga da formiguinha la­vapés pra nós… Gente!.

“Pouca
sa
úde e muita saúva,

Os males do Brasil
são!”

 

já falei… No outro dia
Pauí-Pódole quis ir morar no céu pra não padecer mais com as formigas da nossa
terra, fez. Pediu, pro compadre vaga-lume alumiar o ca­minho na frente com as
lanterninhas verdes bem ace­sas. O vaga-lume Cunavá sobrinho do outro foi na
fren­te alumiando caminho pra Camaiuá e pediu pro mano que fosse na frente
alumiando pra ele também. O man0 pediu pro pai, o pai pediu pra mãe, a mãe
pediu pra toda a geração, o chefe-de-polícia e o inspetor do quarteirão e
muitos muitos, uma nuvem de valumes foram alumiando caminho uns prós outros.
Fizeram, gostaram de lá e sempre uns atrás dos outros nunca mais voltaram do
campo vasto do céu. É aquele ca­minho de luz que daqui se enxerga atravessando
o espaço. Pauí-Pódole então avoou pro céu e ficou lá. Minha gente! aquelas
quatro estrelas não é Cruzeiro, que Cruzeiro nada! É o Pai do Mutum! É o Pai do
Mutum, minha gente! É o Pai do Mutum, Pauí-Pódole que pára no campo vasto do
Céu!… Tem mais não”.

Macunaíma parou fatigado.
Então se ergueu do povaréu um murmurejo longo de felicidade fazendo relumear
mais ainda as gentes, os pais-dos-pássaros os pais-dos-peixes os
pais-dos-insetos os pais-das-árvores, todos esses conhecidos que param no campo
do céu. E era imenso o contentamento daquela paulistanada man­dando olhos de
assombro pras gentes, pra todos esses pais dos vivos brilhando morando no céu.
E todos esses assombros de-primeiro foram gente depois foram os as­sombros
misteriosos que fizeram nascer todos os seres vivos. E agora são as estrelinhas
do céu.

O povo se retirou comovido,
feliz no coração cheio de explicações e cheio das estrelas vivas. Ninguém não
se amolava mais nem com dia do Cruzeiro nem com as máquinas repuxos misturadas
com a máquina luz elé­trica. Foram pra casa botar pelego por debaixo do len­çol
porque por terem brincado com fogo aquela noite, na certa que iam mijar na
cama. Foram todos dormir. E a escuridão se fez.

Macunaíma parado em riba da
estátua ficara so­zinho ali. Também estava comovido. Olhou pra altura. Que
Cruzeiro nada! Era Pauí-Pódole se percebia bem daqui… E Pauí-Pódole estava
rindo pra ele, agradecendo. De repente piou comprido parecendo trem-de-ferro.
Não era trem era piado e o sopro apagou todas as luzes do parque. Então o Pai
do Mutum mexeu uma asa mansamente se despedindo do herói. Macunaíma ia
agradecer, porém o pássaro erguendo a poeira da neblina largou numa carreira
esparramando pelo campo vasto do céu.

 

XI

A VELHA CEIUCI

 

No outro dia o herói acordou
muito constipado. Era porque apesar do calorão da noite ele dormira de roupa
com medo da Caruviana que pega indivíduo dor­mindo nu. Mas estava muito
gangento com o sucesso do discurso da véspera. Esperou impaciente os quinze
dias da doença resolvido a contar mais casos pro povo. Porém quando se sentiu
bom era manhãzinha e quem conta história de dia cria rabo de cotia. Por isso
con­vidou os manos pra caçar, fizeram.

Quando chegaram ao bosque da
Saúde o herói murmurou:

— Aqui serve.

Dispôs os manos nas esperas,
botou fogo no bos­que e ficou também amoitado esperando que saísse al­gum viado
mateiro pra ele caçar. Porém não tinha nenhum viado lá e quando queimada
acabou, jacaré saiu? pois nem viado mateiro nem viado catingueiro, saíram só
dois ratos chamuscados. Então o herói caçou os ratos chamuscados, comeu-os e
sem chamar os ma­nos voltou pra pensão.

Lá chegado ajuntou os
vizinhos, criados a patroa cunhas datilógrafos estudantes empregados-públicos,
muitos empregados-públicos! todos esses vizinhos e con­tou pra eles que tinha
ido caçar na feira do Arouche e matara dois…

— … mateiros, não eram
viados mateiros não, dois viados catingueiros que comi com os manos. Até vinha
trazendo um naco pra vocês mas porém escor­reguei na esquina, caí derrubei o
embrulho e cachorro comeu tudo.

Toda a gente se sarapantou
com o sucedido e des­confiaram do herói. Quando Maanape e Jiguê volta­ram, os
vizinhos foram perguntar pra eles si era ver­dade que Macunaíma caçara dois
catingueiros na feira do Arouche. Os manos ficaram muito inquizilados por­que
não sabiam mentir e exclamaram irritadíssimos:

— Mas que catingueiros
esses! O herói nunca ma­tou viado!- Não tinha nenhum viado na caçada não! Gato
miador, pouco caçador, gente! Em vez foram dois ratos chamuscados que Macunaíma
pegou e comeu.

Então os vizinhos perceberam
que tudo era mentira do herói, tiveram raiva e entraram no quarto dele pra
tomar satisfação. Macunaíma estava tocando numa flautinha feita de canudo de
mamão. Parou o sopro, aparou o bocal da flautinha e se admirou muito sos­segado:

— Praquê essa gentama no meu
quarto, agora!… Faz mal pra saúde, gente!

Todos perguntaram pra ele:

— O que foi mesmo que você
caçou, herói?

— Dois viados mateiros.

Então os criados as cunhas
estudantes empregados-públicos. todos esses vizinhos principiaram rindo dele.
Macunaíma sempre aparando o bocal da flauti­nha. A patroa cruzando os braços
ralhou assim:

— Mas, meus cuidados, praquê
você fala que fo­ram dois viados e em vez foram dois ratos chamuscados!

Macunaíma parou assim os
olhos nela e secundou:

— Eu menti.

Todos os vizinhos ficaram
com cara de André e cada um foi saindo na maciota. E André era um vizi­nho que
andava sempre encalistrado. Maanape e Jiguê se olharam, com inveja da
inteligência do mano. Maa­nape inda falou pra ele:

— Mas praquê você mentiu,
herói!

— Não foi por querer não…
quis contar o que ti­nha sucedido pra gente e quando reparei estava men­tindo.
..

Jogou a flautinha fora,
pegou no ganzá pigarreou e descantou. Descantou a tarde inteirinha uma moda tão
sorumbática mas tão sorumbática que os olhos dele choravam a cada estrofe.
Parou porque os soluços não deixaram mais continuar. Largou do ganzá. Lá fora a
vista era uma tristura de entardecer dentro da cerração. Macunaíma sentiu-se
desinfeliz e teve saudades de Ci a inesquecível. Chamou os manos pra se conso­larem
todos juntos. Maanape e Jiguê sentaram junto dele na cama e os três falaram
longamente da Mãe do Mato. E espalhando a saudade falaram dos matos e cobertos
cerrações deuses e barrancas traiçoeiras do Uraricoera. Lá que eles tinham
nascido e se rido pela primeira vez nos macurus… Encostados nas maquiras pra
lá do limpo do mocambo os guirás cantavam o que não dava o dia e eram pra mais
de quinhentas as famí­lias dos guirás… Perto de quinze vezes mil espécies de
animais assombravam o mato de tantos milhões de paus que não tinham mais
conta… Uma feita um branco trouxera da terra dos Ingleses, dentro dum sapiquá
gó­tico, a constipação que fazia agora Macunaíma tanto chorar de sodades. E a
constipação tinha ido morar no antro das formigas mumbucas mui pretas. Na
escureza o calor se amaciava como saindo das águas; pra trabalhar se cantava;
nossa mãe ficara virada numa coxilha mansa no lugar chamado Pai do Tocandeira. >.
Ai, que preguiça… E os três manos perceberam per­tinho o murmurejo do
Uraricoera! Oh! como era bom por lá… O herói se atirou pra trás chorando
largado na cama.

Quando a vontade de chorar
parou, Macunaíma afastou os mosquitos e quis espairecer. Se lembrou de ofender
a mãe do gigante com uma bocagem novinha vinda da Austrália. Virou Jiguê na
máquina telefone porém o mano inda estava muito confundido com o caso da
mentira do herói e não houve meios de ligar. O apa­relho tinha defeito. Então
Macunaíma fumou fava de paricá pra ter sonhos gostosos e adormeceu bem.

No outro dia lembrou que
precisava se vingar dos manos e resolveu passar um pealo neles. Levantou
madrugadinha e foi esconder no quarto da patroa. Brin­cou pra fazer tempo.
Depois voltou falando afobado prós manos:

— Oi, manos achei rasto fresco
de tapir bem na frente da Bolsa de Mercadorias!

— Que me diz, perdiz!

— Pois é. Quem que havia de
dizer!

Ninguém inda não matara
tapir na cidade. Os ma­nos se sarapantaram e foram com Macunaíma caçar o bicho.
Chegaram lá, principiaram procurando o rasto e aquele mundão de gente
comerciantes revendedores baixistas matarazos, vendo os três manos curvados pro
asfalto procurando, principiaram campeando também, todo aquele mundão de gente.
Procuraram procura­ram, você achou? nem eles! Então perguntaram pra Macunaíma:

— Onde que você achou rasto
de tapir? Aqui não tem rasto nenhum não!

Macunaíma não parava de
campear falando sem­pre:

— Tetápe, dzónanei pemonéite
hêhê zeténe netaíte.

E os manos regatões zanguões
tequeteques mada­lenas e Hungareses recomeçavam procurando o rasto. Quando
cansavam e paravam pra perguntar, Macunaí­ma campeando sempre secundava:

— Tetápe, dzónanei pemonéite
hêhê zeténe netaíte.

E todo aquele mundão de
gente procurando. Era já perto da noite quando pararam desacorçoados. En­tão
Macunaíma se desculpou:

— Tetápe dzónanei pemo…

Não deixaram nem que ele
acabasse, todos pergun­tando o que significava aquela frase. Macunaíma res­pondeu:

— Sei não. Aprendi essas
palavras quando era pe­queno lá em casa.

E todos se queimaram muito.
Macunaíma fastou disfarçado falando:

— Calma gente! Tetápe hêhê!
Não falei que tem rasto de tapir não falei que tinha! Agora não tem mais não.

Foi pior. Um dos
comerciantes se zangou de ver­dade e o repórter que estava ao pé dele vendo o
outro zangado zangou também por demais.

— Isso não vai assim não!
Pois então a gente vi­ve trabucando pra ganhar o pão-nosso e vai um indi­víduo
tira a gente o dia inteiro do trabalho só pra cam­pear rasto de tapir!

— Mas eu não pedi pra
ninguém procurar rasto, moço, me desculpe! Meus manos Maanape e Jiguê é que
andaram pedindo, eu não! Culpa é deles!

Então o povo que já estava
todo zangado virou contra Maanape e contra Jiguê. Já todos, e eram mui­tos!
estavam com vontade de armar uma briga. Então um estudante subiu na capota dum
auto e fez discurso contra Maanape e contra Jiguê. O povo estava ficando
zangadíssimo.

— Meus senhores, a vida dum
grande centro ur­bano como São Paulo já obriga a uma intensidade tal de
trabalho que não permite-se mais dentro da magní­fica entrosagem do seu progresso
siquer a passagem mo­mentânea de seres inócuos. Ergamo-nos todos una você

contra os miasmas deletérios
que conspurcam o nosso organismo social e já que o Governo cerra os olhos e
delapida os cofres da Nação, sejamos nós mesmos os justiçadores…

— Lincha! lincha! que o povo
principiou gritando.

— Quê lincha nada! exclamou
Macunaíma to­mando as dores pelos manos.

E todos se viraram contra
ele outra vez. E agora já estavam zangadíssimos. O estudante continuava pra si:

— … e quando o trabalho
honesto do povo é perturbado por um desconhecido…

— O quê! quem que é
desconhecido! berrou Macunaíma desesperado com a ofensa.

— Você!

— Não sou, tá’í!

— É!

— Ora vá desmamar jacu com
alpiste, moço! Des­conhecida é a senhora vossa mãe, ouviu! — e virando pro povo:
O que vocês estão pensando, hein! Não te­nho medo não! nem de um nem de dois
nem de dez mil e daqui a pouco eu arraso tudo isto aqui!

Uma madalena que estava na
frente do herói, virou pro comerciante atrás dela e zangou:

— Não bolina, senvergonha!

O herói estava cego de
raiva, pensou que era com ele e:

— Quê “não bolina”
agora! não estou bolinando ninguém, sua lambisgóia!

— Lincha o bolina! Pau nele!

— Pois venham, cafajestes!

E avançou pra multidão. O
advogado quis fugir porém Macunaíma atirou um pontapé nas costas dele e entrou
pelo povo distribuindo rasteiras e cabeçadas. De repente viu na frente um homem
alto loiro mui lindo. E o homem era um grilo. Macunaíma teve ódio de tanta
boniteza e chimpou uma bruta duma bolacha nas fuças do grilo. O grilo berrou, e
enquanto falava uma frase em língua estrangeira agarrou o herói pelo congote.

— Prrrêso!

O herói gelou.

— Preso por quê?

O polícia secundou uma
porção de coisas em lín­gua estrangeira e segurou firme.

— Não estou fazendo nada!
que o herói murmu­rava com medo.

Porém o grilo não quis
conversa e foi descendo a ladeirinha com o povo todo atrás. Outro grilo chegou
e os dois falaram muitas frases, muitas! em língua estran­geira e lá foram
empurrando o herói ladeira abaixo. Uma testemunha de tudo contou o sucedido pra
um se­nhor que estava na porta duma casa de frutas e o se­nhor penalizado
atravessou a multidão e fez os grilos pararem. Era já na rua Libero. Então o
senhor fez um discurso prós grilos, que eles não deviam de levar Ma­cunaíma
preso porque o herói não fizera nada. Tinha ajuntado uma porção de grilos mas
nenhum não enten­dia o discurso porque nenhum não pescava nada de bra­sileiro.
As mulheres choravam com dó do herói. Os gri­los falavam por demais numa língua
estrangeira e uma voz gritou:

— Não pode!

Então o povo ficou com muita
vontade de pelear outra vez e de todos os lados agora estavam gritando:
“Larga!”. “Não leva!”. “Não pode!”. “Não
pode!”, um chinfrim, “Solta!”. Um fazendeiro estava disposto a
fa­zer discurso insultando a Polícia. Os grilos não enten­diam nada e
gesticulavam, muito atrapalhados falando em língua estrangeira. Formou-se um
furdunço temível. Então Macunaíma se aproveitou da trapalhada e pernas praquê
vos quero! Vinha um bonde na carreira badalando. Macunaíma pongou o bonde e foi
ver como passava o gigante.

Venceslau Pietro Pietra já
principiava convales­cendo da sova apanhada na macumba. Fazia um calorão dentro
da casa porque era hora de cozinharem a polenta e fora a fresca era boa por
causa do vento sulão. Por isso o gigante com a velha Ceiuci as duas filhas e a
criadagem pegaram cadeiras e vieram sentar na por­ta da rua pra gozar a
frescata. O gigante ainda não saíra do algodão e estava talequal um fardo
caminhan­do. Sentaram.

O curumi Chuvisco andava
librinando pelo bairro e encontro Macunaíma negaceando da esquina. Pa­rou e
ficou olhando o herói. Macunaíma virou-se:

— Nunca viu não!

— Quê que você está fazendo
aí, conhecido!

— Estou assustando o gigante
Piaimã com sua fa­mília.

Chuvisco debicou:

— Qual! não vê que gigante tem
medo de ti! Macunaíma encarou o curumi empalamado e teve raiva. Quis bater nele
porém lembrou de cor: “Quando você estiver embrabecendo conta três vezes
os botões da vossa roupa”, contou e ficou manso de novo. Então secundou:

— Quer apostar? Eu faço e aconteço
e garanto que Paiamã vai pra dentro com medo de mim. Esconde lá perto pra
escutar só o que eles falam.

Chuvisco avisou:

— Oi, conhecido, tome tento
com gigante! Você já sabe do que ele é capaz. Piaimã está fraco está fraco
porém canudo que teve pimenta guarda o ardume.. 
Si você não tem medo mesmo, aposto.

Virou numa gota e pingou
rente de Venceslau Pie­tro Pietra com a companheira as filhas e a criadagem.
Então Macunaíma pegou na primeira palavra-feia da coleção e jogou na cara de
Piaimã. O palavrão bateu de rijo porém Venceslau Pietro Pietra nem se incomo­dou,
direitinho elefante. Macunaíma chimpou outra bocagem mais feia na caapora. A
ofensa bateu rijo po­rém se incomodar é que ninguém se incomodou. Então
Macunaíma jogou toda a coleção de bocagens e eram dez mil vezes dez mil
bocagens. Venceslau Pietro Pietra falou pra velha Ceiuici, bem quieto:

— Tem algumas que a gente
não conhece inda não, guarda pra nossas filhas.

Então Chuvisco voltou pra
esquina. O herói garganteou:

— Tiveram medo ou não tiveram!

— Medo nada, conhecido! Até
o gigante mandou guardar as bocagens novas pras filhas brincarem. De mim que
eles têm medo, ocê aposta? Vá lá perto e escute só.

Macunaíma virou num caxipara
que é o macho da formiga saúva e foi se enroscar na rama de algodão acolchoando
o gigante. Chuvisco amontou numa nebli­na e quando ia passando em riba da
família deu uma mijadinha no ar. Principiou peneirando uma chuva-de-preguiça.
Quando os pingos vieram caindo o gigante olhou pra um agarrado na mão dele e
teve paúra de tanta água.

— Vam’bora, gente!

E todos com muito medo foram
correndo pra den­tro. Então Chuvisco desapeou e disse pra Macunaíma:

— Está vendo?

E assim até hoje. A família
do gigante tem medo de Chuvisco mas de palavra-feia não.

Macunaíma ficou muito despeitado
e perguntou pro rival:

— Me diga uma coisa: você
conhece a língua do lim-pim-gua-pá?

— Nunca vi mais gordo!

— Pois então, rival: Vá-pá
à-pá mer-per-da-pá! E abriu o pala até a pensão.

Mas estava muito contrariado
por ter perdido a aposta e se lembrou de fazer uma pescaria. Porém não podia
pescar nem de frecha nem com timbó nem cunambi nem tiguí nem macerá nem no pari
nem com linha nem arpão nem juquiaí nem sararaca nem gaponga nem de poita nem
de cassuá nem itapuá nem de giqui nem de grozera nem de gererê guê tresmalho
aparador gungá cambango arinque batebate gradeira caicai penca anzol de vara
covo, todos esses objetos armadilhas e ve­nenos porque não possuía nada disso
não. Fez um anzol com cera de mandaguari mas bagre mordia, le­vava anzol e
tudo. Porém tinha ali perto um Inglês pes­cando aimarás com anzol de verdade.
Macunaíma vol­tou pra casa e falou pra Maanape:

— Quê que havemos de fazer!
Carecemos de to­mar anzol de Inglês. Vou tirar aimará de mentira pra enganar o
bife. Quando ele me pescar e der a batida na minha cabeça então faço
“juque!” enganando que morri. Ele me atira no samburá, você pede o
peixe mais grande pra comer e sou eu.

Fez. Virou num aimará pulou
na lagoa, o Inglês pescou-o e bateu na cabeça dele. O herói gritou “Ju­que!”
Mas o Inglês tirou o anzol da goela do peixe po­rém. Maanape veio vindo e muito
disfarçado pediu pro Inglês:

— Dá peixe pra mim, seu Yes?

— Ali right. E deu um
lambari de rabo vermelho.

— Ando padecendo de fome,
seu Inglês! dá um macota, vá! esse um gordinho do samburá!

Macunaíma estava com o olho
esquerdo dormindo porém Maanape conheceu-o bem. Maanape era feiticei­ro. O
Inglês deu o aimará pra Maanape que agradeceu foi-se embora. Quando estava
légua e meia longe o limará virou Macunaíma outra vez. Assim três vezes, Inglês
sempre tirando anzol da goela do herói. Macunaíma segredou pro mano:

— Quê que havemos de fazer!
Carecemos de tomar anzol de Inglês. Vou virar piranha de mentira e arranco
anzol da vara.

Virou numa piranha feroz
pulou na lagoa arrancou anzol e desvirando outra vez légua e meia abaixo no
lugar chamado Poço do Umbu onde tinha umas pedras cheias de letreiros
encarnados da gente fenícia sacou anzol da goela bem contente porque agora
podia pescar corimã piraíba aruana pirara piaba todos esses’pei­tes. Os dois
manos iam-se quando escutaram Inglês falando pra Uruguaio:

— Que posso fazer agora! Não
possuo mais anzol que a piranha engoliu. Vou pra vossa terra, conhecido.

Então Macunaíma fez um
grande gesto com os dois braços e gritou:

— Espera um bocado, tapuitinga!

O Inglês se voltou e
Macunaíma só de caçoada virou-o na máquina London Bank.

No outro dia falou prós
manos que ia pescar peixões no igarapé Tietê. Maanape avisou:

— Não vá, herói, que você
topa com a velha Ceiuci mulher do gigante. Te come, heim!

— Não tem inferno pra quem
já navegou no Ca­choeira! que Macunaíma exclamou. E partiu.

Nem bem lançou a linha de
cima dum mutá que veio vindo a velha Ceiuci pescando de tarrafa. A caapora viu
a sombra de Macunaíma refletida n’água jogou depressa a tarrafa e só pescou
sombra. O herói nem não achou graça porque estava tremendo de medo, vai, pra
agradecer falou assim:

— Bom-dia, minha vó.

A velha virou a cara pro
alto e descobriu Macunaí­ma em riba do mutá.

— Vem cá, meu neto.

— Não vou lá não.

— Pois então mando
marimbondos.

Fez. Macunaíma arrancou um
molho de pataqueira e matou os marimbondos.

— Desce, meu neto, que sinão
mando novatas!

Fez. As formigas novatas
ferraram em Macunaí­ma e ele caiu n’água. Então a velha tarrafiou, envolveu o
herói nas malhas e foi pra casa. Lá chegada pôs o em­brulho na sala-de-visitas
que tinha um abajur encarna­do e foi chamar a filha mais velha que era bem
habilidosa, pras duas comerem o pato que ela caçara. E o pato era Macunaíma o
herói. Porém a filhona estava muito ocupada porque era mesmo habilidosa e a
velha pra adiantar serviço foi fazer fogo. A caapora possuía duas filhas e a
mais nova que não era nada habilidosa e só sabia suspirar, enxergando a velha
fazer fogo, ima­ginou: “Mãe quando vem da pescaria conta logo o que
pescou, hoje não. Vou ver”. Desenrolou a tarrafa e saiu dela um moço bem
do gosto. O herói falou:

— Me esconde!

Então a moça que estava mui
bondosa porque vi­via desocupada desde tempo, levou Macunaíma pro quarto e
brincaram. Agora estão se rindo um pro outro.

Quando fogo ficou bem quente
a velha Ceiuci veio com a filhona habilidosa pra depenarem o pato porém acharam
só tarrafa. A caapora embrabeceu:

— Isso há-de ser minha
filhinha nova que é muito bondosa…

Bateu no quarto da moça,
gritando:

— Minha filhinha nova,
entrega já meu pato que sinão enxoto você da casa minha pra todo o sempre!

A moça ficou com medo e
mandou Macunaíma ati­rar vinte milréis por debaixo da porta pra ver si con­tentava
a gulosa. Macunaíma de medo já atirou cem que viraram em muitas perdizes
lagostas robalos vidros-de-perfume e caviar. A velha gulosa engoliu tudo e
pediu mais. Então Macunaíma atirou um conto de réis por debaixo da porta. O
conto virou em mais lagostas coelhos pacas champanha rendas cogumelos rãs e a
ve­lha sempre comendo e pedindo mais. Então a moça bondosa abriu a janela dando
pro Pacaembu deserto e falou:

— Vou dizer três adivinhas,
si você descobre, te deixo fugir. O que é que é: É comprido roliço e perfu­rado,
entra duro e sai mole, satisfaz o gosto da gente e não é palavra indecente?

— Ah! isso é indecência sim!

— Bobo! é macarrão!

— Ahn… é mesmo!…
Engraçado, não?

— Agora o que é que é: Qual
o lugar onde as mulheres têm cabelo mais crespinho?

— ôh, que bom! isso eu sei!
é aí!

— Cachorro! É na África,
sabe!

— Me mostra, por favor!

— Agora é a última vez. Diga
o quê que é:

 

Mano, vamos fazer

Aquilo que Deus consente:

Ajuntar pêlo com pêlo,

Deixar o pelado dentro.

 

E Macunaíma:

— Ara! Também isso quem não
sabe! Mas cá pra nós que ninguém nos ouça, você é bem senvergonha, dona!

— Descobriu. Não é dormir
ajuntando os pêlos das pestanas e deixando o olho pelado dentro que você está
imaginando? Pois si você não acertasse pelo menos uma das advinhas te entregava
pra gulosa de minha mãe. Agora fuja sem escarcéu, serei expulsa, voarei pro
céu. Na esquina você encontra uns cavalos. Tome o castanho-escuro que pisa no
mole e no duro. Esse é bom. Si você escuta um passarinho gritando “Baúa!
Baúa!” en­tão é a velha Ceiuci chegando. Agora fuja sem escar­céu, serei
expulsa, voarei pro céu!

— Macunaíma agradeceu e
pulou pela janela. Na esquina estavam dois cavalos, um castanho-escuro e ou­tro
cardão-pedrez. “Cavalo cardão-pedrez pra carreira Deus o fez”
Macunaíma murmurou. Pulou nesse e abriu na galopada. Caminhou caminhou caminhou
e já per­to de Manaus ia correndo quando o cavalo deu uma to­pada que arrancou
chão. No fundo do buraco Macunaí­ma enxergou uma coisa relumeando. Cavou
depressa e descobriu o resto do deus Marte, escultura grega acha­da naquelas
paragens inda na Monarquia e primeiro-de-abril passado no Araripe de Alencar
pelo jornal cha­mado Comércio do Amazonas. Estava contemplando aquele torso
macanudo quando escutou “Baúa! Baúa!”. Era a velha Ceiuci chegando.
Macunaíma esporeou o cardão-pedrez e depois de perto de Mendoza na Argen­tina
quasi dar um esbarrão num galé que também vi­nha fugindo da Guiana Francesa,
chegou num lugar on­de uns padres estavam melando. Gritou:

— Me escondam, padres!

Nem bem os padres esconderam
Macunaíma num pote vazio que a caapora chegou montada no tapir.

— Não viram meu neto passar
por aqui no seu ca­valinho comendo capim?

— Já passou.

Então a velha apeou do tapir
e. montou num ca­valo gazeo-sarará que nunca prestou nem prestará e se­guiu.
Quando ela virou a serra do Pafanacoara os pa­dres tiraram o herói do pote,
deram pra ele um cavalo melado-caxito que tanto é bom como é bonito e man­daram
ele embora. Macunaíma agradeceu e galopou. Logo adiante encontrou uma cerca de
arame porém era cavaleiro: deu um sacalão, esbarrou o pongo e ajuntan­do as
mãos do animal caído com um jeito forte fez o cavalo girar e passar por debaixo
do arame. Então o herói pulou a cerca e amontou de novo. Galopeou galopeou
galopeou. Passando no Ceará decifrou os letreiros indígenas do Aratanha; no Rio
Grande do Norte costeando o serrote do Cabelo-não-tem decifrou outro. Na
Paraíba, indo de Manguape pra Bacamarte passou na Pedra-Lavrada com tanta
inscrição que dava um ro­mance. Não leu por causa da pressa e nem a da Barra do
Poti do Piauí, nem a de Jajeú em Pernambuco, nem a dos Apertados do Inhamum,
que já era no quarto dia e se escutava no ar rentinho: “Baúa! Baúa!”
Era a ve­lha Ceiuci chegando. Macunaíma pernas pra que vos quero pelo
eucaliptal. Mas o passarinho sempre mais perto e Macunaíma isso vinha que vinha
acochado pela velha. Afinal topou com a biboca dum surucucu que tinha parte com
o canhoto.

— Me esconde, surucucu!

O surucucu nem bem escondeu
o herói no buraco da latrininha, a velha Ceiuci chegou.

— Não viram meu neto passar
por aqui no seu ca­valinho comendo capim?

— Já passou.

A gulosa apeou do
gazeo-sarará que nunca prestou nem prestará e montou num cavalo bebe-em-branco
que é cavalo manco e seguiu.

Então Macunaíma escutou
surucucu tratando com a companheira pra fazerem um moquém do herói. Pu­lou do
buraco do quartinho e jogou no terreiro o anel com brilhantão que dera de
presente pro dedo Mindinho. O brilhantão virou em quatro contos de carros de
milho, adubo Polisu e uma fordeca de segunda mão. Enquanto o surucucu olhava
pra aquilo tudo satisfeito, Macunaíma pro melado-caxito descansar, amontou num
bagual cardão-rodado que nunca pode estar parado e galopeou através de varjões
e varjotas. Varou num áti­mo o mar de areia do chapadão dos Parecis e por der­rames
e dependurados entrou na caatinga e assustou as galinhas com pintos de ouro do
Camutengo perto de Natal. Légua e meia adiante abandonando a mar­gem do São
Francisco emporcalhada com a enchente-da-páscoa, entrou por uma brecha aberta
no morro al­to. Ia seguindo quando escutou um “psiu” de cunha. Parou
morto de medo. Então saiu do meio da catinga-de-porco uma dona alta e feiosa
com trança até o pé. E a dona perguntou cochichando pro herói:

— Já se foram?

— Se foram, quem!

— Os Holandeses!

— Você está caducando, quê
Holandês esse! Não tem Holandês nenhum, dona!

Era Maria Pereira cunha
portuga amufumbada na­quela brecha de morro desde a guerra com os Holande­ses
Macunaíma não sabia bem mais em que parte de Brasil estava e lembrou de
perguntar.

— Me diga uma coisa, filho
de gambá é raposa, como chama este lugar?

A cunha secundou emproada:

— Aqui é o Buraco de Maria
Pereira. Macunaíma soltou uma grande gargalhada e escafedeu enquanto a mulher
amoitava outra vez. O herói segui de carreira e enfim passou pra outra banda do
rio Chuí. Foi lá que topou com o tuiuiú pescando.

— Primo Tuiuiú, você me leva
pra casa?

— Pois não!

Logo o tuiuiú se transformou
na máquina aeroplano, Macunaíma escanchou no aturiá vazio e ergueram vôo.
Voaram sobre o chapadão mineiro de Urucuia, fi­zeram o circuito de Itapecerica
e bateram pro Nordeste. Passando pelas dunas de Mossoró, Macunaíma olhou pra
baixo e enxergou Bartolomeu Lourenço de Gusmão, batina arregaçada, pelejando
pra caminhar no areão. Gritou pra ele:

— Venha aqui com a gente,
ilustre! Porém o padre gritou com um gesto imenso:

— Basta!

Depois que pulando a serra
do Tombador no Mato Grosso deixaram pra esquerda as cochilhas de SantAna do
Livramento, o tuiuiu-aeroplano e Macunaíma subi­ram até o Telhado do Mundo,
mataram a sede nas águas novas do Vilcanota e na última etapa voando so­bre
Amargosa na Bahia, sobre o Gurupá e sobre o Gurupi com sua cidade encantada,
enfim toparam de novo com o mocambo ilustre do igarapé Tietê. Daí a pouqui­nho
estavam na porta da pensão. Macunaíma agrade­ceu muito e quis pagar o ajutório
porém se lembrou que estava carecendo de fazer economia. Virou pro tuiuiú e
falou:

— Olha, primo, pagar não
posso não mas vou te dar um conselho que vale ouro: Neste mundo tem três barras
que são a perdição dos homens: barra de rio, barra de ouro e barra de saia, não
caia!

Porém estava tão acostumado
a gastar que esque­ceu-se da economia. Deu dez contos pro tuiuiú, subiu
satisfeito pro quarto e contou tudo prós manos já muito ressabiados com a
demora. O caso afinal custara uns bons pacotes. Maanape então virou Jiguê num telefone
e deu queixa pra Polícia que deportou a velha gulosa. Porém Piaimã tinha muita
influência e ela voltou na companhia lírica.

A filha expulsa corre no
céu, batendo perna de déu em déu. É uma cometa.

 

 

XII

TEQUETEQUE, CHUPINZÃO E A
INJUSTIÇA DOS HOMENS

 

No outro dia Macunaíma
acordou febrento. Tinha mesmo delirado a noite inteira e sonhado com navio.

— Isso é viagem por mar,
falou a dona da pensão. Macunaíma agradeceu e de tão satisfeito virou logo

Jiguê na máquina telefone
pra insultar a mãe de Venceslau Pietro Pietra. Mas a sombra telefonista avisou
que não secundavam. Macunaíma achou aquilo esqui­sito e quis se levantar pra ir
saber o que era. Porém sentia um calorão cocado no corpo todo e uma moleza de
água. Murmurou:

— Ai… que preguiça…

Virou a cara pro canto e
principiou falando bocagens. Quando os manos vieram saber o que era, era
sarampão. Maanape logo foi buscar o famoso Bento curandeiro em Beberibe que
curava com alma de índio e água de pote. Bento deu uma agüinha e fez reza can­tada.
Numa semana o herói já estava descascando. En­tão se levantou e foi saber o que
tinha sucedido pro gigante.

Não tinha ninguém no palácio
e a copeira do vi­zinho contou que Piaimã com toda a família fora na Europa
descansar da sova. Macunaíma perdeu todo o requebrado e se contrariou bem.
Brincou com a co­peira muito aluado e voltou macambúzio pra pensão. Maanape e
Jiguê encontraram o herói na porta da rua e perguntaram pra ele:

— Quem matou seu
cachorrinho, meus cuidados? Então Macunaíma contou o sucedido e principiou

chorando. Os manos ficaram
bem tristes de ver o he­rói assim e levaram ele visitar o Leprosário de
Guapira, porém Macunaíma estava muito contrariado e o passeio não teve graça
nenhuma. Quando chegaram na pensão era noitinha e todos já estavam desesperados.
Tiraram uma porção enorme de tabaco dum cornimboque imitando cabeça de tucano e
espirraram bem. Então puderam pensamentear.

— Pois é, meus cuidados,
você andou lerdeando, cozinhando galo, cozinhando galo, o gigante é que não
havia de esperar, foi-se. Agora agüente a massada!

Nisto Jiguê bateu na cabeça
e exclamou:

— Achei!

Os manos levaram um susto.
Então Jiguê lembrou que eles podiam ir na Europa também, atrás da muiraquitã.
Dinheiro, inda sobravam quarenta contos do cacau vendido. Macunaíma aprovou
logo porém Maanape que era feiticeiro imaginou imaginou e concluiu:

— Tem coisa milhor.

— Pois então desembuxe!

— Macunaíma finge de
pianista, arranja uma pen­são do Governo e vai sozinho.

— Mas praquê tanta
complicação si a gente pos­sui dinheiro à bessa e os manos podem me ajudar na
Europa!

— Você tem cada uma que até
parece duas! Po­der a gente pode sim porém mano seguindo com arame do Governo
não é milhor? É. Pois então!

Macunaíma estava refletindo
e de repente bateu na testa:

— Achei!

Os manos levaram um susto.

— Quê foi!

— Pois então finjo de pintor
que é mais bonito! Foi buscar a máquina óculos de tartaruga um gramofoninho
meias de golfe luvas e ficou parecido com pintor.

No outro dia pra esperar a
nomeação matou o tem­po fazendo pinturas. Assim: Agarrou num romance de Eça de
Queiroz e foi na Cantareira passear. Então pas­sou perto dele um cotruco
andarengo muito marupiara porque possuía folhinha de picapau. Macunaíma dei­tado
de bruços divertia-se amassando os tacurus das for­migas tapipitingas. O tequeteque
saudou:

— Bom-dia, conhecido, como
le vai, muito obriga­do, bem. Trabalhando, não?

— Quem não trabuca não
manduca.

— É mesmo. Bom, té-loguinho.

E passou. Légua e meia
adiante topou com um mi-cura e lembrou de trabucar também um bocado. Pe­gou no gambazinho,
fez ele engolir dez pratas de dois milréis e voltou com o bicho debaixo do
braço. Chegan­do perto de Macunaíma mascateou:

— Bom-dia, conhecido, como
le vai, muito obriga­do, bem. Si você quer te vendo meu micura.

— Quê que vou fazer com um
bicho tão pichento! Macunaíma secundou botando a mão no nariz.

— Tem aca mas é coisa muito
boa! Quando faz necessidade só prata que sai! Vendo barato pra você!

— Deixe de conversa, turco!
Onde que se viu mi­cura assim!

Então o tequeteque apertou a
barriga do gambá e o bicho desistiu as dez pratinhas.

— Está vendo! Faz
necessidade é prata só! Ajuntando a gente fica riquíssimo! Barato pra você!

— Quanto que custa?

— Quatrocentos contos.

— Não posso comprar, só
tenho trinta.

— Pois então pra ficar
freguês deixo por trinta contos pra você!

Macunaíma desabotoou as
calças e por debaixo da camisa tirou o cinto que carregava dinheiro. Porém só

tinha a letra de quarenta contos e seis fichas do
Cassi­no de Copacabana. Deu a letra e teve vergonha de re­ceber o troco. Até inda
deu as fichas de inhapa e agra­deceu a bondade do tequeteque.

Nem bem o mascate sorvetera
entre as sapupiras guarubas e parinais do mato que já o micura quis fa­zer
necessidade outra feita. O herói arrendondou o bol­so aparando e a porcaria
caiu toda ali. Então Macunaíma percebeu o logro e abriu numa gritaria
desgraçada, caminho da pensão. Virando uma esquina encontrou o José Prequeté e
gritou pra ele:

— Zé Prequeté, tira bicho do
pé pra comer com café!

José Prequeté ficou com ódio
e insultou a mãe do herói porém este não fez caso não, deu uma grande
gargalhada e foi seguindo. Mais adiante lembrou que ia indo pra casa zangado e
pegou na gritaria outra vez.

Os manos inda não tinham
voltado da maloca do Governo e a patroa veio no quarto pra consolar Macunaíma,
brincaram. Depois de brincarem o herói pe­gou no choro. Quando os manos
chegaram toda a gen­te se sarapantou porque eles tinham cinco metros de altura.
Não vê que o Governo estava com mil vezes mil pintores já encaminhados pra
mandar na pensão da Europa e Macunaíma ser nomeado era mas só no dia de São
Nunca. Ficava muito longe. O invento tinha favado e os manos ficaram compridos
por causa do de­saponto. Quando enxergaram o mano chorando, se as­sustaram bem
e quiseram saber a causa. E como es­queceram o desaponto voltaram pro tamanho
de dan­tes, Maanape já velhinho e Jiguê na força do homem.

O herói fazia:

— Ihihih! tequeteque me
embromou! Ihihih! Com­prei micura dele, quarenta contos me custou!

Então os irmãos se
descabelaram. Agora não era possível mais irem na Europa não, porque possuíam
só a noite e o dia. Levaram na prantina enquanto o he­rói esfregava o óleo de
andiroba no corpo prós mosqui­tos não amolarem e adormecia bem.

No outro dia amanhaceu
fazendo um calorão temí­vel e Macunaíma suava que mais suava dum lado pra outro
enraivecido com a injustiça do Governo. Quis sair pra espairecer porém aquela
roupa tanta aumentando o calor… Teve mais raiva. Teve raiva por demais e
maliciou que ia ficar com o butecaiana que é doença da raiva. Então exclamou:

— Ara! Ande eu quente,
ria-se a gente!

Tirou as calças pra
refrescar e pisou em cima. A raiva se acalmou no sufragante e até que muito
satis­feito Macunaíma falou prós manos:

— Paciência, manos! não! não
vou na Europa não. Sou Americano e meu lugar é na América. A civiliza­ção
européia de certo esculhamba a inteireza do nosso caráter.

Durante uma semana os três
vararam o Brasil to­do pelas restingas de areia marinha, pelas restingas de
mato ralo, barrancas de paranãs, abertões, corredeiras carrascos carrascões e
chavacais, coroas de vazante bo­queirões mangas e fundões que eram ninhos de
geada, espraiados pancadas pedrais funis bocainas barroqueiras e rasouras,
todos esses lugares, campeando nas ruí­nas dos conventos e na base dos
cruzeiros pra ver si não achavam alguma panela com dinheiro enterrado. Não
acharam nada.

— Paciência, manos!
Macunaíma repetiu macambúzio. Jogamos no bicho!

E foi na praça Antônio Prado
meditar sobre a in­justiça dos homens. Ficou lá encostado num plátano muito
bem. Todos os comerciantes e aquele despropósito de máquina passavam rentinho
do herói grugunzando sobre a injustiça dos homens. Macunaíma já es­tava
disposto a mudar o dístico pra: “Pouca saúde e muitos pintores os males do
Brasil são” quando escutou um “Ihihih!” chorando atrás. Virou e
viu no chão um ticotico e um chupim.

O ticotico era pequetitinho
e o chupim era macota. O ticotiquinho ia dum lado pra outro acompanhado sempre
do chupinzão chorando pro outro dar de comer pra ele. Fazia raiva. O
ticotiquinho imaginava que o chupinzão era filhote dele mas não era não. Então
voa­va, arranjava um decumê por aí que botava no bico do chupinzão. Chupinzão
engolia e pegava na manha outra vez: “Ihihih! mamãe… telo decumê!…
telo decumê!…” lá na língua dele. O ticotiquinho ficava azaranzado
porque estava padecendo fome e aquele nhenhenhén-nhenhenhén azucrinando ele,
atrás, diz-que “Telo decumê!… telo decumê!…” não podia com o amor
sofrendo. Largava de si, voava buscar um bichi­nho uma quirerinha, todos esses
decumês, botava no bico do chupinzão, chupinzão engolia e principiava atrás do
ticotiquinho outra vez. Macunaíma estava meditan­do na injustiça dos homens e
teve um amargor imenso da injustiça do chupinzão. Era porque Macunaíma sa­bia
que de primeiro os passarinho foram gente feito nós… Então o herói pegou num
porrete e matou o ticotiquinho.

Foi-se embora. Depois que
andou légua e meia sen­tiu calor e lembrou de beber pinga pra refrescar. Tra­zia
sempre num bolso do paletó uma garrafinha de pin­ga presa ao puíto por uma corrente
de prata. Desarrolhou e chupitou de manso. Eis sinão quando escutou atrás um
“Ihihih!” chorando. Virou sarapantado. Era o chupinzão.

— Ihihih! papai… telo
decumê!… telo decu­mê!… lá na língua dele.

Macunaíma ficou com ódio.
Abriu o bolso onde es­tava guardado aquilo do micura e falou:

— Pois coma então!

Chupinzão pulou na beira do
bolso e comeu tudo sem saber. Foi engordando engordando, virou num pás­saro
preto bem grande e voou prós matos gritando “Afinca! Afinca!”. É o
Pai do Vira.

Macunaíma seguiu caminho.
Légua e meia adian­te estava um macaco mono comendo coquinho baguaçu. Pegava no
coquinho, botava no vão das pernas junto com uma pedra, apertava e juque! a
fruta quebrava. Macunaíma veio e esgurejou com a boca cheia d’água. Falou:

— Bom-dia, meu tio, como lhe
vai?

— Assim assim, sobrinho.

— Em casa todos bons?

— Na mesma.

E continuou mastigando.
Macunaíma ali, sapeando. O outro enquizilou assanhado:

— Não me olhe de banda que
não sou quitanda, não me olhe de lado que não sou melado!

— Mas o quê você está
fazendo aí, titio!

O macaco mono soverteu o
coquinho na mão fe­chada e secundou:

— Estou quebrando os meus
toaliquiçus pra comer.

— Vá mentir na praia!

— Uai, sobrinho, si tu não
dá crédito então pra-quê pergunta!

Macunaíma estava com vontade
de acreditar e in­dagou:

é gostoso é?

O mono estalou a língua:

— Chi! prove só!

Quebrou de escondido outro
coquinho, fingindo que era um dos toaliquiçus e deu pra Macunaíma comer.
Macunaíma gostou bem.

É bom mesmo, tio!
Tem mais?

— Agora se acabou mas si o
meu era gostoso que fará os vossos! Come eles, sobrinho!

O herói teve medo:

— Não dói não?

— Qual, si até é
agradável!…

O herói agarrou num
paralelepípedo. O macaco mono rindo por dentro inda falou pra ele:

— Você tem mesmo coragem,
sobrinho?

— Boni-t-ó-tó macaxeira
comotó! o herói excla­mou empafioso. Firmou bem o paralelepípedo e juque! nos
toaliquiçus. Caiu morto. O macaco mono caçoou assim:

— Pois, meus cuidados, não
falei que tu morrias! Falei! Não me escutas! Estás vendo o que sucede prós desobedientes.
Agora: sic transit!

Então calçou as luvas de
balata e foi-se. Daí a pouco veio uma chuvarada que refrescou a carne verde do
herói, impedindo a putrefação. Logo se formou um poder de correições de
formigas guajuguajus e muru-petecas pro corpo morto. O advogado Fulano atraído
pelas correições topou com o defunto. Abaixou, tirou a carteira do cadáver
porém só tinha cartão-de-visita. Então resolveu levar o defunto pra pensão,
fez. Carre­gou Macunaíma nas costas e foi andando. Porém o de­funto pesava por
demais e o advogado viu que não po­dia com o peso. Então arreou o cadáver e deu
uma coca de vara nele. O defunto ficou levianinho e o advo­gado Fulano pôde
levá-lo pra pensão.

Maanape chorou muito se
atirando sobre o corpo do mano. Depois descobriu o esmagamento. Maanape era
feiticeiro. Logo pediu de emprestado pra patroa dois côcos-da-Bahia, amarrou-os
com nó-cego no lugar dos toaliquiçus amassados e assoprou fumaça de ca­chimbo
no defunto herói. Macunaíma foi se erguendo muito desmerecido. Deram guaraná
pra ele e daí a pou­co matava sozinho as formigas que inda o mordiam. Es­tava
tremendo muito porque por causa da chuvarada a friagem batera de repente.
Macunaíma tirou a garrafinha do bolso e bebeu o resto da pinga pra esquentar.
Depois pediu uma centena pra Maanape e foi até um chalé jogar no bicho.
De-tarde quando viram, a cente­na tinha dado mesmo. E assim eles viveram com os
pal­pites do mano mais velho. Maanape era feiticeiro.

 

 

XIII

A PIOLHENTA DO JIGUÊ

 

No outro dia por causa da
machucadura Macunaíma amanheceu com uma grosseira pelo corpo todo. Fo­ram ver e
era a erisipa, doença comprida. Os manos trataram dele bem e traziam
diariamente pra casa to­dos esses remédios pra erisipela que os vizinhos e co­nhecidos,
todos esses Brasileiros aconselhavam. O he­rói passou uma semana de cama.
De-noite sonhava sempre com embarcações e a dona da pensão quando vinha
de-manhã por amor de saber como ia o herói di­zia sempre que embarcação
significava na certa viagem por mar. Depois saía deixando sobre a cama do enfer­mo
o Estado de São Paulo. E o Estado de São Paulo era um jornal. Então Macunaíma
gastava o dia lendo todos esses anúncios de remédios pra erisipa. E eram muitos
anúncios!

No fim da semana o herói
estava descascando bem e foi na cidade buscar sarna pra se cocar. Andou ban­zando
banzando, e muito fatigado por causa da fraqueza parou no parque do Anhangabaú.
Chegara bem de­baixo do monumento a Carlos Gomes que fora um mú­sico muito
célebre e agora era uma estrelinha do céu. O ruído da fonte murmurejando na
tardinha dava pro herói a visagem das águas do mar. Macunaíma sentou no
parapeito da fonte e assuntou os baguais marinhos de bronze chorando água. E lá
na escureza da gruta por detrás da tropilha presenciou uma luz. Fixou mais e
distinguiu uma embarcação muito linda que vinha boiando sobre as águas. “É
uma vigilenga” murmurou. Porém a nau vinha chegando cada vez maior. É um
gaiola” murmurou. Mas o gaiola vinha chegando tão granto tão! que o herói
deu um salto sarapantado e

gritou na bôca-da-noite
ecoada “É um vaticano!” O navio já vinha bem visível por detrás dos
baguais de bronze. Tinha o corte da velocidade no casco de prata e os mastros
inclinados pra trás estavam cheios de bandeiras que o vento da correria
imprensava entre as lâminas de ar. O grito chamara os choferes da espla­nada e
todos curioseavam o gesto parado do herói e se­guiam o risco do olhar dele
batendo na fonte escura.

— Quê foi, herói?

— Olha lá!… Olha o
vaticano macota que vem vindo sobre as águas imensas do mar!

— Aonde!

— Por detrás do cavalo de
estibordo!

Então todos viram por detrás
do cavalo de estibor­do o navio chegando. Já estava bem perto e ia passar entre
o cavalo e a parede de pedra, já estava na boca da gruta. E era um navio guaçu.

— Não é vaticano não! é o
transatlântico fazendo viagem por mar! gritou um chofer japonês que já fi­zera
muita viagem por mar. E era um transatlântico enorme. Vinha iluminado,
relampeava todo de ouro e prata embandeirado e festeiro. Os óculos das cabinas
eram colares no casco e nos cinco deques empoleirados corria música entre a
gentana dançando mexida no cururu. A choferada comentava:

— É do Lóide!

— Não, é da Hamburgo!

— Vá saindo! tou percebendo!
então! É il piróscafo Conte Verde em vez!

E era o piróscafo Conte
Verde sim. E era a Mãe D’água que vinha bancando piróscafo pra atentar o herói.

— Gente! adeus, gente! Vou
pra Europa que é milhor! Vou em busca de Venceslau Pietro Pietra que

é o gigante Piaimã comedor
de gente! que o herói dis­cursava.

E toda a choferada abraçava
Macunaíma se despe­dindo. O vapor estava ali e Macunaíma já pulara no cais da
fonte pra subir a escadinha do piróscafo Conte Verde. Todos os tripulantes na
frente da música ace­navam chamando Macunaíma e eram marujos forçudos, eram
Argentinos finíssimos e eram tantas donas lindís­simas pra gente brincar até
enjoar com os balangos das ondas.

— Desce a escadinha,
capitão! que o herói ex­clamou.

Então o capitão tirou o
cocar e executou uma le­tra no ar. E todos, os marujos os Argentinos finíssimos
e as cunhas lindíssimas pra Macunaíma brincar, todos esses tripulantes soltaram
vaias macotas caçoando do herói enquanto o navio manobrando sem parar dava a
popa pra terra e flechava de novo pro fundo da gruta. E todos aqueles
tripulantes viraram doentes com erisipa sempre caçoando do herói. E quando o
piróscafo atra­vessou o estreito entre a parede da gruta e o bagual de bombordo
a chaminèzona guspiu uma fumaçada de pernilongos, de borrachudos
mosquitos-pólvora mutucas marimbondos cabas potós môsca-de-ura, todos es­ses
mosquitos afugentando os motoristas.

O herói sentado no rebordo
da fonte penava todo mordido e com mais erisipa, mais, todo erisipelado. Sentiu
frio e veio febre. Então espantou com um gesto os mosquitos e caminhou pra
pensão.

No outro dia Jiguê entrou em
casa com uma cunhatã, fez ela engolir três bagos de chumbo pra não ter filhos e
os dois dormiram na rede. Jiguê tinha se amulherado. Ele era muito valente.
Passava o dia limpan­do a espingarda e afiando a lamparina. A companheira de
Jiguê todas as manhãs ia comprar macaxeira prós quatro comerem e se chamava
Suzi. Porém Macunaíma que era o namorado da companheira de Jiguê, to­dos os
dias comprava uma lagosta pra ela, punha no fundo do jamachi e por cima
esparramava a macaxeira pra ninguém não maliciar. Suzi era bem feiticeira. Quando
chegava em casa deixava a cesta na saleta e ia dormir pra sonhar. Sonhando ela
falava pra Jiguê:

— Jiguê, meu companheiro
Jiguê, estou sonhando que tem lagosta por debaixo da macaxeira.

Jiguê ia ver e tinha. Todos
os dias era assim e Jiguê tendo amanhecido com dor-de-cotovelo descon­fiou.
Macunaíma percebeu a dor do mano e fez uma mandinga pra ver si passava. Pegou
numa cuia e de-noite deixou-a no terraço, rezando manso:

 

“Água do céu

Vem nesta cuia,

Paticl vem nesta água,

Moposêru vem nesta água,

Sivuoímo vem nesta água,

Omaispopo vem nesta água,

Os Donos da Água enxotem a
dor-de-corno!

Aracu, Mecumecuri, Pai que
venham nesta água,

E enxotem a dor-de-corno si
o doente beber esta água

Em que estão encantados os
Donos da Água!”

 

Deu pra Jiguê beber no outro
dia porém não sur­tiu efeito não e o mano andava muito desconfiado.

Quando Suzi se vestia pra ir
na feira, assobiava o foxtrote da moda pro namorado ir também. O na­morado era
Macunaíma, ia. A companheira de Jiguê saía e Macunaíma saía atrás. Andavam
brincando por aí e quando chegava a hora da volta já não tinha macaxeira mais
na feira. Pois então Suzi disfarçando ia atrás da casa, sentava no jamachi e
puxava uma por­ção de macaxeira de dentro do maissó. Todos comiam muito bem, só
Maanape resmungava:

— Caboclo de Taubaté, cavalo
pangaré, mulher que mija em pé, libera nós Dominé! e empurrava a co­mida.

Maanape era feiticeiro. Não
queria saber daquela macaxeira não e como andava curtindo fome passava o tempo
mastigando ipadu pra enganar. De-noite quan­do Jiguê queria pular na rede a
companheira dele prin­cipiava gemendo, falando que estava empanzinada de tanto
engolir caroço de pitomba. Era só pra Jiguê não brincar com ela. Jiguê teve
raiva.

No outro dia ela foi na
feira e assobiou o foxtrote da moda. Macunaíma saiu atrás. Jiguê era muito va­lente.
Pegou numa mirassanga enorme e foi devagari­nho atrás deles. Procurou procurou
e encontrou Suzi com Macunaíma de, mãos dadas no Jardim da Luz. Já estavam se
rindo um pro outro. Jiguê desceu a miras­sanga nos dois, levou a companheira
pra pensão e dei­xou o mano fatigado na beira da lagoa entre cisnes.

Do outro dia em diante Jiguê
é que fazia as com­pras deixando a companheira presa no quarto. Suzi sem
quefazer passava o tempo contrariando a morali­dade mas uma feita o santo
Anchieta vindo ao mundo passou pela casa dela e por piedade ensinou-a a catar
piolhos. Suzi possuía uns cabelos ruivos à la garçonne e sustentava muitos
piolhos, muitos! Agora não so­nhava mais que tinha lagostas por debaixo da
macaxeira nem não fazia imoralidades. Quando Jiguê par­tia ela tirava os
cabelos e espetando-os no porrete do companheiro, catava piolhos. Mas tinha
muitos piolhos, muitos! Então com medo que o companheiro apanhas­se ela no
trabalho, falou assim:

— Jiguê, meu companheiro
Jiguê, quando você volta do mercado bate primeiro na porta, bate todos os dias
uma porção de tempo pra mim ficar contente e ir cozinhar a macaxeira.

Jiguê falou que sim. Todos
os dias ia no mercado comprar macaxeira e quando voltava batia demorado na porta.
Então a cunha botava os cabelos na cabeça e ficava esperando Jiguê.

— Suzi, minha companheira
Suzi, bati uma por­ção de vezes na porta, será que você alegrou?

— Muito! ela fez. E foi
cozinhar a macaxeira.

E todos os dias eram assim.
Mas tinha muitos pio­lhos, muitos! É que ela contava os catados um por um e por
isso os piolhos aumentavam. Uma feita Jiguê matutou no que ficava fazendo a
companheira quando ele ia no mercado e teve vontade de assustá-la, fez. Vi­rou
de pernas pro ar e veio andando nas pontas das mãos. Abriu a porta e assustou
Suzi. Isso ela gritou botando afobada a cabeleira na cabeça. E os cabelos da
testa ficaram no cangote e os cabelos do cangote fi­caram na testa escorrendo.
Jiguê xingou Suzi de porca e deu nela até escutar alguém subindo a escada. Era
Chico vindo de baixo. Então Jiguê parou e foi afiar a bicuda.

No outro dia Macunaíma
estava outra vez com von­tade de brincar com a companheira de Jiguê. Falou prós
manos que ia numa caçada longe porém não foi não. Comprou duas garrafas de
licor de butiá catarinense uma dúzia de sanduíches dois abacaxis de Pernambuco
e se amoitou no quartinho. Passado tempo saiu de lá e falou pra Jiguê,
mostrando o embrulho:

— Mano Jiguê, no fim de
muitas ruas, você indo, tem uma fruteira trilhada. Vi um poder de caça, vá ver!

O mano espiou desconfiado
pra ele porém Ma­cunaíma disfarçou bem:

— Olhe, tem paca tatu
cotia… Minto, cotia não enxerguei nenhuma. Paca tatu, cotia não.

Jiguê emprenhava pelas oiças
mesmo, foi logo pe­gando na espingarda e falou:

— Então vou porém mano jura
primeiro que não brinca com minha obrigação.

Macunaíma jurou pela memória
da mãe que nem olhava pra Suzi. Então Jiguê tornou a pegar na espingarda-pá e
na faca de ponta-tá tatatá e partiu. Ma­cunaíma nem bem Jiguê virou a esquina
ajudou Suzi abrindo os embrulhos e botando uma toalha da renda famosa chamada
“Ninho de Abelha” cujo papelão fora roubado em Muriú do Ceará-Mirim
pela danada Geracina da Ponta do Mangue. Quando tudo ficou pronto os dois
pularam na rede e brincaram. Agora estão se rindo um pro outro. Depois de rirem
bastante, Ma­cunaíma falou:

— Desarrolha uma garrafa pra
gente beber.

— Sim, ela fez. E beberam a
primeira garrafa de licor de butiá que era muito gostoso. Os dois estala­ram a
língua e pularam na rede outra vez. Brincaram quanto quiseram. Agora estão se
rindo um pro outro.

Jiguê andou légua e meia,
foi até no fim das ruas, campeou a fruteira uns pares de vezes, muito tempo,
jacaré achou? nem ele! Não tinha fruteira nenhuma e Jiguê voltou campeando
sempre por todos os fins das ruas. Afinal chegou subiu no quarto e encontrou
mano Macunaíma com a Suzi já rindo. Jiguê teve raiva e deu uma coca na
companheira. Agora ela está chorando. Jiguê agarrou o herói e chegou o porrete
com vontade nele. Deu que mais deu até Manuel chegar. Manuel era o criado da
pensão, um ilhéu. Agora o herói está fatigado. E Jiguê que vinha padecendo de
fome. então comeu as sanduíches os abacaxis e bebeu o licor de butiá.

Os dois sovados passaram a
noite se lastimando. No outro dia Jiguê enfarado pegou na sarabatana e saiu pra
ver si encontrava à tal de fruteira. Jiguê era muito bobo. Suzi viu ele sair,
enxugou os olhos e falou pro namorado:

— Choremos não.

Então Macunaíma desamarrou a
cara e se arran­jou pra ir falar com mano Maanape. Jiguê de volta na pensão
perguntou pra Suzi:

— Onde anda o herói?

Porém ela estava
zangadíssima e principiou asso­biando. Então Jiguê agarrou no porrete, se
chegou pra companheira e disse muito triste:

— Vai embora, perdição!

Daí ela sorriu feliz. Catou
sem contar todos os pio­lhos que restavam e eram muitos piolhos, atrelou-os a
uma cadeira-de-balanço, sentou nela, os piolhos pu­laram e Suzi foi pro céu
virada na estrela que pula. É uma zelação.

O herói nem bem viu Maanape
de longe pegou se lastimando. Se atirou nos braços do mano e contou uma
história bem triste provando que Jiguê não tinha razão nenhuma pra sová-lo
tanto. Maanape ficou zan­gado e foi falar com Jiguê. Mas Jiguê também já vinha
pra falar com Maanape. Se encontraram no corredor. Maanape contou pra Jiguê e
Jiguê contou pra Maanape. Então eles verificaram que Macunaíma era muito safa­do
e sem caráter. Voltaram pro quarto de Maanape e toparam com o herói se
lastimando. Pra consolar le­varam ele passear na máquina automóvel.

 

 

XIV

MUIRAQUITÃ

 

No outro dia de manhã nem
bem Macunaíma abriu a janela, enxergou um passarinho verde. O herói ficou
satisfeitíssimo e inda estava ficando satisfeito quando Maanape entrou no
quarto contando que as máquinas jornais anunciavam a volta de Venceslau Pietro
Pietra. Então Macunaíma resolveu não ter mais contemplação com o gigante e
matá-lo. Saiu da cidade e foi no mato Fulano experimentar força. Campeou légua
e meia e afinal topou com uma peroba com a sapopemba do ta­manho dum bonde.
“Esta serve” ele fez. Enfiou o bra­ço na sapopemba, deu arranco e o
pau saiu da terra não deixando nem sinal. “Agora sim que tenho
força!” Macunaíma exclamou. Tornou a ficar satisfeito e vol­tou pra
cidade. Porém não podia nem andar porque estava cheio de carrapatos. Macunaíma
com muita pa­chorra falou pra eles:

— Ara, carrapatos! vão
embora, pessoal. Não de­vo nada pra vocês não!

Então a carrapatada caiu no
chão por encanto e foi-se embora. Carrapato já foi gente que nem nós… Uma
feita botou uma vendinha na beira da estrada e fazia muitos negócios porque não
se incomodava de vender fiado. Tanto fiou tanto fiou, tanto Brasileiro não
pagou que afinal carrapato quebrou e foi posto pra fora da vendinha. Ele agarra
tanto na gente por­que está cobrando as contas.

Quando Macunaíma chegou na
cidade já era noite fechada e ele foi logo tocaiar a casa do gigante. Tinha
neblina sobre o mundo e a casa estava sem ninguém de tanta que era a escureza.
Macunaíma se lembrou de procurar uma criada pra brincar mas tinha
estacionamento das máquinas táxis na esquina e as cunhas já estavam brincado
por aí. Macunaíma se lembrou de armar arapuca prós curiós mas faltava isca. Não
havia que fazer e sentiu sono. Porém dormir não que­ria não porque estava
esperando Venceslau Pietro Pietra. Imaginou: “Agora vou vigiar e quando
Sono vier enforco ele”. Não demorou muito viu um vulto chegan­do. Era
Emoron-Pódole, o Pai do Sono. Macunaíma fi­cou muito parado entre os ninhos de
cupim pra não espantar o Pai do Sono e poder matá-lo. Emoron-Pó­dole veio vindo
veio vindo e quando já estava pertinho, o herói cochilou, bateu com o queixo no
peito, mordeu a língua e gritou:

— Que susto!

O Sono fugiu logo. Macunaíma
seguiu andando muito desapontado. “Ora veja só! não peguei mas qua­se…
Vou esperar outra vez e macacos me lambam si agora não pego o Pai do Sono e
enforco ele!” Assim que o herói refletiu. Tinha um corgo perto com um pau
caído por cima servindo de pinguela. Mais pra lon­ge uma lagoa branquejava de
luar porque a neblina já tinha ido-se embora. A vista era quieta e muito suave
por causa da agüinha cantando o acalanto dos pobres. O Pai do Sono devia de
estar amoitado por ali. Ma­cunaíma cruzou os braços e com o olho esquerdo dor­mindo
ficou imóvel entre os ninhos de cupim. Não de­morou muito enxergou
Emoron-Pódole chegando. O Pai do Sono veio vindo veio vindo e de repente parou.
Macunaíma ouviu que ele falava:

— Aquele sujeito não tá
morto não. Morto que não arrota onde se viu!

Então o herói arrotou
“juque!”

— Onde se viu morto arrotar,
gentes! o Sono ca­çoou e fugiu logo.

Por isso que o Pai do Sono
inda existe e os homens por castigo não podem dormir em pé.

Macunaíma ia ficar
desapontado com o sucedido quando escutou uma bulha e enxergou do outro lado do
corgo um chofer gesticulando feito chamado. Ficou muito sarapantado e gritou tiririca:

— Isso é comigo, colega! Sou
francesa não!

— Sai azar! o rapaz fez.

Então Macunaíma pôs reparo
numa criadinha com um vestido de linho amarelo pintado com extrato de tatajuba.
Ela já ia atravessando o corgo pelo pau. De­pois dela passar o herói gritou pra
pingela:

— Viu alguma coisa, pau?

— Vi a graça dela!

— Quá! quá! quá quaquá!…

Macunaíma deu uma grande
gargalhada. Então seguiu atrás do par. Eles já tinham brincado e descan­savam
na beira da lagoa. A moça estava sentada na borda duma igarité encalhada na
praia. Toda nua inda do banho comia tambiús vivos, se rindo pro rapaz. Ele
deitara de bruços na água rente do pés da moça e ti­rava os lambarizinhos da
lagoa pra ela comer. A crilada das ondas amontava nas costas dele porém escor­regando
no corpo nu molhado caía de novo na lagoa com risadinhas de pingos. A moça
batia com os pés n’água e era feito um repuxo roubado da Luna espirrando
jeitoso, cegando o rapaz. Então ele enfiava a cabeça na lagoa e trazia a boca
cheia de água. A moça apertava com os pés as bochechas dele e recebia o jato em
cheio na barriga, assim. A brisa fiava a cabeleira da moça esticando de um em
um os fios lisos na cara dela. O mo­ço pôs reparo nisso. Firmando o queixo no
joelho da companheira ergueu o busto da água, estirou o braço pro alto e
principiou tirando os cabelos da cara da moça pra que ela pudesse comer
sossegada os tamiús. Então pra agradecer ela enfiou três lambarizinhos na boca
dele e rindo muito fastou o joelho depressa. O busto do rapaz não teve apoio
mais e ele no sufragante focinhou n’água até o fundo, a moça inda forçando o
pes­coço dele com os pés. Ela ia escorregando sem perce­ber de tanta graça que
achava na vida. Ia escorregan­do e afinai a canoa virou. Pois deixai ela virar!
A moça levou,um tombo engraçado por cima do rapaz e ele enrolou-se nela
talqualmente um apuizeiro cari­nhoso. Todos os tamiús fugiram enquanto os dois
brincavam n’água outra vez.

Macunaíma chegava. Sentou no
.fundo da igarité virada, esperando. Quando viu que eles tinham acaba­do de
brincar, falou pro chofer:

— Faz três dias que não
como,

Semana que não escarro,

Adão foi feito de barro,

Sobrinho, me dá um cigarro.

 

O chofer secundou:

 

— Me desculpe, meu parente,

Si cigarro não lhe dou;

A palha o fosfre e o goiano

Caiu n’água, se molhou.

 

— Não se incomode que eu
tenho, respondeu Ma­cunaíma. Tirou uma cigarreira de tartaruga feita por
Antônio do Rosário no Pará, ofereceu cigarros de pa­lha de tauari pro moço e
pra criadinha, acendeu um fósforo prós dois e outro pra ele. Depois afastou os
mosquitos e principiou contando um caso. Assim a noi­te passava depressa e a
gente não se amolava com o canto da sururina marcando as horas da escuridão. E
era assim;

— No tempo de dantes, moços,
o automóvel não era uma máquina que nem hoje não, era a onça parda. Se chamava
Palauá e parava no grande mato Fulano. Vai, Palauá falou prós olhos dela:

— Vão na praia do mar, meus
verdes olhos, de­pressa depressa depressa!

Os olhos foram e a onça
parda ficou cega. Porém levantou o focinho, fez ele cheirar o vento e percebeu
que Aimalá-Pódole, o Pai da Traíra estava andando lá no longe do mar e gritou:

— Venham da praia do mar,
meus verdes olhos, depressa depressa depressa!

Os olhos vieram e Palauá
ficou enxergando outra vez. Passava por ali a tigre preta que era muito feroz e
falou pra Palauá:

— O que você está fazendo,
comadre!

— Estou mandando meus olhos
olharem o mar.

— É bom?

— Prós cachorros!

— Então manda os meus
também, comadre!

— Mando não porque
Aimalá-Pódole está na praia do mar.

— Manda que sinão te engulo,
comadre! Então Palauá falou assim:

— Vão na praia do mar,
amarelos olhos de minha comadre tigre, depressa depressa depressa!

Os olhos foram e a tigre
preta ficou cega. Aimalá-Pódole estava lá e juque! engoliu os olhos da tigre.
Palauá maliciou tudo porque o Pai da Traíra estava cheirando mui forte. Foi
tratando de se raspar. Porém a tigre preta que era mui feroz presenciou a
fugida e falou pra onça parda:

— Espera um pouco, comadre!

— Não vê que careço de
buscar janta pra meus fi­lhos, comadre. Então até outro dia.

— Primeiro manda meus olhos
voltarem, comadre, que já tomei um fartão de escureza.

Palauá gritou:

— Venham da praia do mar,
amarelos olhos de minha comadre tigre, depressa depressa depressa!

Porém os olhos não voltaram
não e a tigre preta ficou feito fúria.

— Agora que te engulo,
comadre!

E correu atrás da onça
parda. Foi uma chispada mãe por esses matos que chii! os passarinhos se tor­naram
pequetitinhos pequetitinhos de medo e a noite levou um susto tamanho que ficou
paralítica. Por isso que quando faz dia em riba das árvores, dentro do ma­to é
sempre noite. A coitada não pode mais andar…

Quando Palauá correu légua e
meia olhou pra trás fatigada. A tigre preta vinha perto. Vai, Palauá che­gou
num morro chamado Ibiraçoiaba e topou com um bigorna gigante, aquela uma que
pertencia à fundição de Afonso Sardinha no princípio da vida brasileira. Junto
da bigorna estavam quatro rodas esquecidas. En­tão Palauá amarrou elas nos pés
pra poder deslizar sem muito esforço e, como se diz: desatou o punho da rede
outra vez, uma chispada mãe! A onça engoliu num átimo légua e meia de terreno
porém isso vinha que vi­nha acochada pela tigre. Faziam um barulhão tama­nho
que os passarinhos estavam pequetitinhos pequeti­tinhos de medo e a noite mais
pesada por causa que não podia andar. E a bulha inda era assombrada pelos
gemidos do noitibó… Noitibó é Pai da Noite, moços, e chorava a miséria da
filha.

Bateu fome em Palauá. A
tigre na cola dela. Mas Palauá nem não podia mais correr assim com o estôma­go
nas costas, vai» em de mais longe quando passou pela barra do Boipeba onde o
cuisarruim morou, viu um mo­tor perto e engoliu o tal. Nem bem motor caiu na
barriga da onça que a pobre criou força nova e chispou. Fez légua e meia e
olhou pra trás. Isso a tigre preta vinha feita pra cima dela. Estava uma
escureza que só vendo por causa da malinconia da noite e bem na frente dum
feixo a onça deu uma trombada temível no derrame dum morrete, que por um triz,
era uma vez Palauá! Vai, ela abocanhou dois vagalumões e seguiu com eles nos
dentes pra alumiar caminho. Nem bem fez outra légua e meia olhou pra trás. A
tigre junto. Era por causa que a onça parda cheirava muito e a peste da cega
tinha faro de perdigueiro. Vai, Palauá ingeriu um purgante de óleo de mamona,
pegou numa lata da essência chamada gasolina, despejou no x e lá foi fuomfuom!
fuom! que nem burro peidorreiro por aí. A bulha foi tamanha que nem se escutou
o tinido as­sombrado dos pratos partidos do morro do Assobio ali. A tigre preta
ficou toda atrapalhada por causa que era cega e não cheirava mais a catinga da
comadre. Palauá correu mais muito e olhou pra trás. Não enxergou a tigre.
Também nem não podia mais correr com as fuças fumegando de quentura. Tinha ali
perto um bana­nal macota com um pauê na faixa porque Palauá já tinha chegado no
porto de Santos. Vai, a bicha der­ramou água cansada no focinho e desesquentou.
De­pois cortou uma folha açu de banana-figo e se escon­deu botando ela por riba
feito capote. Dormiu assim. A tigre preta que era muito feroz até passou por
ali, onça nem pio. E a outra passou não presenciando a comadre. Então de medo a
onça nunca mais que lar­gou de tudo o que tinha ajudado ela fugir. Anda sem­pre
com roda nos pés, motor na barriga, purgante de óleo na garganta, água nas
fuça?, gasolina no osso-de-Pai-João, os dois vaga-lumes na boca e o capote de
fo­lha de banana-figo cobrindo, ai ai! prontinha pra chispar. Principalmente si
pisa nalguma correição da for­miga chamada taxi e alguma trepando no pelame
luzido morde a orelha dela, qual! chispa que nem Deus! E inda tomou nome
estranho pra disfarçar mais. É a máquina automóvel.

Mas por causa que bebeu água
cansada Palauá te­ve estupor. Possuir automóvel de seu é ter estupor em casa,
moços.’

Dizem que mais tarde a onça
pariu uma ninhada enorme. Teve filhos e filhas. Uns machos outros fêmeas. Por
isso que a gente fala “um forde” e fala “uma chevrolé”…

Tem mais não.”

Macunaíma parou. Chorava
comoção pela boca dos moços. Sobre as águas a fresca boiava de barriga pro ar.
O rapaz mergulhou á cabeça pra disfarçar a lá­grima e trouxe um tabiú nos
dentes rabejando danadinho. Repartiu a comida com a moça. Então lá na porta da
casa uma onça fíate abriu a goela e urrou pra Lua:

— Baúa, Baúa!

Se escutou uma bulha
formidável e tomou conta do ar um pitium sufocado. Era Venceslau Pietro Pietra
que chegava. O motorista se ergueu logo e a criada também. Estenderam a mão pra
Macunaíma, convi­dando:

— Seu gigante chegou de
viagem, vamos todos saber como está?

Fizeram. Encontraram
Venceslau Pietro Pietra na porta-da-rua conversando com repórter. O gigante rio
prós três e falou pro motorista:

— Vamos lá dentro?

— Pois não!

Piaimã possuía orelhas
furadas por causa dos brin­cos. Enfiou uma perna do rapaz na orelha direita, a

outra na esquerda e foi
carregando o moço nas costas. Atravessaram o parque e entraram na casa. Bem no
meio do hol de acapu mobiliado com sofás de cipó-titica feitos por um judeu
alemão de Manaus, se via um buraco enorme tendo por cima um cipó de japecanga
feito ba­lanço. Piaimã sentou o moço no cipó e perguntou pra ele si queria
balançar um bocado. O moço fez que sim. Piaimã balançou balançou, de repente
deu um arranco. Japecanga tem espinho… Os espinhos entraram na carne do
chofer e principiou escorrendo sangue no buraco.

— Chega! já estou satisfeito!
que o chofer gritava.

— Balança que vos digo!
secundava Piaimã.

Sangue escorrendo. A caapora
companheira do gi­gante estava lá em baixo do buraco e o sangue pingava numa
tachada de macarrão que ela preparava pro com­panheiro. O rapaz gemia no
balanço:

— Ah, si eu possuísse meu
pai e minha mãe a meu lado não estava padecendo nas mãos deste malvado!…

Então Piaimã deu um arranco
muito forte no cipó e o rapaz caiu no molho da macarronada.

Venceslau Pietro Pietra foi
buscar Macunaíma. O herói já estava se rindo com a criadinha. O gigante fa­lou
pra ele:

— Vamos lá dentro?

Macunaíma estendeu os braços
sussurrando:

— Ai!… que preguiça!.. .

— Ora vamos!… Vamos?

— Pois sim…

Então Piaimã fez pra ele
como fizera pro chofer, carregou o herói nas costas de cabeça pra baixo pren­didos
os pés nos buracos das orelhas. Macunaíma apru­mou a sarabatana e assim de
cabeça pra baixo era ver um atirador malabarista de circo, acertando nos
ovinhos do alvo. O gigante ficou muito incomodado virou e percebeu tudo.

— Faz isso não, patrício!

Tomou a sarabatana e jogou
longe, Macunaíma agarrava quanto ramo caía na mão dele.

— Que você está fazendo?
perguntou o gigante ressabiado.

— Não vê que os ramos estão
batendo na minha cara!

Piaimã virou o herói de
cabeça pra cima. Então Macunaíma fez cócegas com os ramos nas orelhas do
gigante. Piaimã dava grandes gargalhadas e pulava de gozo.

— Não amola mais, patrício!
ele fez. Chegaram no hol. Por debaixo da escada tinha

uma gaiola de ouro com
passarinhos cantadores. E os passarinhos do gigante eram cobras e lagartos. Ma­cunaíma
pulou na gaiola e principiou muito disfarçado comendo cobra. Piaimã convidava-o
pra vir no balanço porém Macunaíma engolia cobras contando:

— Falta cinco…

E engolia mais outra bicha.
Afinal as cobras se^ acabaram e o herói cheio de raiva desceu da gaiola com o
pé direito. Olhou cheio de raiva pro gatuno da muiraquitã e rosnou:

— Hhhm… que preguiça!

Mas Piaimã insistia pro
herói balangar.

— Eu até que nem não sei
balançar. . . Milhor você vai primeiro, que Macunaíma rosnou.

— Que eu nada, herói! É
fácil que-nem beber água Assuba na japecanga, pronto: eu balanço!

— Então aceito porém você
vai primeiro, gigante. Piaimã insistiu, mas ele sempre falando pro gigante

balançar primeiro. Então
Venceslau Pietro Pietra

amontou no cipó e Macunaíma
foi balançando cada vez mais forte. Cantava:

 

“Bão-ba-lão

Senhor capitão,

Espada na cinta

Ginete na mão!”

 

Deu um arranco. Os espinhos
ferraram na carne do gigante e o sangue espirrou. A caapora lá em baixo não
sabia que aquela sangueira era do gigante dela e aparava a chuva na
macarronada. Molho engrossando.

Pára! Pára! Piaimã gritava.

— Balança que vos digo!
secundava Macunaíma. Balançou até o gigante ficar bem tonto e então deu

um arranco fortíssimo na
japecanga. Era porque tinha comido cobra e estava furibundo. Venceslau Pietro
Pie­tra caiu no buraco berrando cantado:

— Lem lem lem… si desta
escapar, nunca mais como ninguém!

Enxergava a macarronada
fumegando lá em baixo e berrou pra ela.

— Afasta que vos engulo!

Porém jacaré fastou? nem
tacho! O gigante caiu na macarronada fervendo e subiu no ar um cheiro tão forte
de couro cozido que matou todos os ticoticos da cidade e o herói teve uma
sapituca. Piaimã se debateu muito e já estava morre-não-morre. Num esforço gi­gantesco
inda se ergueu no fundo do tacho. Afastou os macarrões que corriam na cara
dele, revirou os olhos pro alto, lambeu a bigodeira:

— Falta queijo! exclamou…
E faleceu.

Este foi o fim de Venceslau
Pietro Pietra que era o gigante Piaimã comedor de gente.

Macunaíma quando voltou da
sapituca foi buscar a muiraquitã e partiu na máquina bonde pra pensão. E
chorava gemendo assim:

— Muiraquitã, muiraquitã de
minha bela, vejo você mas não vejo ela!…

 

XV

A PACUERA DE OIBÊ

 

 

Então os três manos voltaram
pra querência deles.

Estavam satisfeitos porém o
herói inda mais con­tente que os outros porque tinha os sentimentos que só um
herói pode ter: uma satisfa imensa. Partiram. Quando atravessaram o pico do
Jaraguá Macunaíma virou pra trás contemplando a cidade macota de São Paulo.
Maginou sorumbático muito tempo e no fim sacudiu a cabeça murmurando:

— Pouca saúde e muita saúva,
os males do Brasil são…

Enxugou a lágrima, consertou
o beicinho tremendo. Então fez um caborge: Sacudiu os braços no ar e virou a
taba gigante num bicho preguiça todinho de pedra. Partiram.

Depois de muito refletir,
Macunaíma gastara o ara­me derradeiro comprando o que mais o entusiasmara na
civilização paulista. Estavam ali com ele o revólver Smith-Wesson o relógio
Pathek e o casal de galinha Legorne. Do revólver e do relógio Macunaíma fizera
os brincos das orelhas e trazia na mão uma gaiola com o galo e a galinha. Não
possuía mais nem um tostão do que ganhara no bicho porém lhe balangando no
beiço furado pendia a muiraquitã.

E por causa dela tudo ficara
mais fácil. Desciam de rodada o Araguaia e quando Jiguê remava Maanape manejava
o joão-de-pau. Se sentiam marupiaras outra vez. Pois então Macunaíma adestro na
proa tomava nota das pontes que carecia construir ou consertar pra facilitar a
vida do povo goiano. Noite chegada, enxer­gando as luzinhas dos afogados
sambando manso nas ipueiras da cheia, Macunaíma olhava olhava e adormecia bem.
Acordava esperto no outro dia e erguido na proa da igarité com o argolão da
gaiola enfiado no braço esquerdo, repinicava na violinha botando a boca no
mundo cantando saudades da querência, assim:

Antianti é tapejara,

— Pirá-uauau,

Ariramba é cozinheira,

— Pirá-uauau,

Tapera, onde a tapera.

Da beira do Uraricoera?

— Pirá-uauau.

 

E o olhar dele espichando
espichando descia a pele do rio em busca dos pagos da infância. Descia e cada
cheiro de peixe cada moita de craguatá cada tudo pu­nha entusiasmo nele e o
herói botava a boca no mundo feito maluco fazendo emboladas e traçados sem
sentido:

Tapera tapejara,

— Caboré,

Arapaçu passoca,

— Caboré,

Manos, vamos-se embora

Pra beira do Uraricoera!

— Caboré!

 

As águas araguaias
murmurejavam chamando a reta da igarité com gemidinho e lá do longe vinha a
cantiga pequenta das uiaras. Vei, a Sol, dava lambadas no costado relumeando
suor de Maanape e Jiguê remeiros e no cabeludo corpo em pé do herói. Era um
calorão molhado fazendo fogo no delírio dos três. Macunaíma se lembrou que era
imperador do Mato-Virgem. Riscou um gesto na Sol, gritando:

— Eropita boiamorebo!

Logo o céu se escurentou de
sopetão e uma nuvem ruivor subiu do horizonte entardecendo a calma do dia. A
ruivor veio vindo veio vindo e era o bando de araras vermelhas e jandaias,
todos esses faladores, era o papagaio-trombeta era o papagaio-curraleiro era o
periquito cutapado era o xarã o peito-roxo o ajuru-curau o ajuru-curica arari
ararica araraúna araraí araguaí arara-taua maracana maitaca arara-piranga
catorra teriba camiranga anaca anapura canindés tuins periquitos, todos esses,
o cortejo sarapintado de Macunaíma im­perador. E todos esses faladores formaram
uma tenda de asas e de gritos protegendo o herói do despeito vingarento da Sol.
Era uma bulha de águas deuses e pas­sarinhos que nem se escutava mais nada e a
igarité meio parava atordoada. Mas Macunaíma assustando os legornes riscava de
quando em vez um gesto diante de tudo e gritava:

— Era uma vez uma vaca
amarela, quem falar primeiro come a bosta dela! Dem-de-lem chegou!

O mundo ficava mudo não
falando um isto e o si­lêncio vinha amulegar a mornidão da sombra na iga­rité.
E se escutava lá no longe lá no longe baixinho baixinho o ruidejar do
Uraricoera. Então dava mais entusiasmo no herói. A violinha repinicava tremida.
Macunaíma pigarreava atirando gusparadas no rio e en­quanto o guspe afundava
transformado em mata-matás nojentos, o herói botava a boca no mundo feito
maluco sem nem saber o que cantava, assim:

 

Panapaná pá-panapaná,

Panapaná pá-panapanema:

Papa de papo na popa,

— Maninha,

Na beira do Uraricoera!

 

Depois a bôca-da-noite engoliu todas as bulhas e o mundo
adormeceu. Tinha só Capei, a Lua, enorme de gorda, rechonchuda que-nem cara das
polacas depois duma noite daquelas, puxavante! quanta sacanagem fe­liz quanta
cunha bonita e quanto cachiri… Então Macunaíma teve saudades do sucedido na
taba grande paulistana. Viu todas aquelas donas de pele alvinha com quem
brincara de marido e mulher, foi tão bom!… Sussurrou docemente: “Mani!
Mani! filhinhas da man­dioca!” … Deu um tremor comovido no beiço dele
que quase a muiraquitã cai no rio. Macunaíma tornou a enfiar o tembetá no
beiço. Então pensou muito sério na dona da muiraquitã, na briguenta, na diaba
gostosa que batera tanto nele, Ci. Ah! Ci, Mãe do Mato, marvada que tornara-se
inesquecível porque fizera ele dormir na rede tecida com os cabelos dela!… “Quem
tem seus amores longe, passa trabalhos trianos…” parafusou. Quê caborge
da marvada!… E estava lá no campo do céu banzando nuns trinques toda
enfeitada passean­do brincando quem sabe com quem… Teve ciúmes. Ergueu os
braços pro alto assustando os legornes e re­zou pro Pai do Amor:

 

Rudá! Rudá!

Tu que estás no céu

E mandas nas chuvas.

Rudá! faz com que minha amada

Por mais companheiros que arranje

Ache que todos são frouxos!

Assopra nessa marvada

Sodades do seu marvado!

Faz com que ela se lembre de mim amanhã

Quando a Sol for-se embora no poente !…

 

Olhou bem pro ar. 
Não tinha Ci não, Capei só, gordanchona, tomando tudo.  O herói deitou de comprido na igarité, fez um
cabeceiro da gaiola e ador­meceu entre maruins piuns muriçocas.

A noite já estava amarelando quando Macunaíma acordou com
os gritos dos viras num bambuzal. Assun­tou a vista e deu um pulo na praia,
falando pra Jiguê:

  Espera um
bocadinho.

Entrou no mato bem, légua e meia. Foi buscar a linda
Iriqui, companheira dele que já fora companheira de Jiguê e esperava se
enfeitando e cocando mucuim assentada nas raízes da samaúma. Os dois se festeja­ram,
muito brincaram e vieram pra igarité.

Quando foi ali pelo meio-dia a papagaiada se es­tendeu de
novo resguardando Macunaíma. E assim por muitos dias. Uma tarde o herói estava
muito enfarado e se lembrou de dormir em terra firme, fez. Nem bem pisou na
praia e se ergueu na frente dele um mons­tro. Era o bicho Ponde um jucurutu do
Solimões que virava gente de-noite e engolia os estradeiros. Porém Macunaíma
pegou na flecha que tinha na ponta a ca­beça chata da formiga santa chamada
curupê e nem fez pontaria, acertou que foi uma beleza. O bicho Ponde estourou
virando coruja. Mais pra diante depois de atravessado um chato quando subia por
um espigão cheio de crocas topou com o Monstro Mapinguari macaco-homem que anda
no mato fazendo mal pràs moças. O monstro agarrou Macunaíma porém o herói tirou
o toaquiçu pra fora e mostrou pro Mapinguari.

— Não confunde não, parceiro!

O monstro riu e deixou Macunaíma passar. O he­rói andou
légua e meia procurando um pouso sem for­miga. Subiu na ponta dum cumaru de
quarenta me­tros e afinal depois de muito campear descobriu uma luzinha longe.
Foi lá e topou com um rancho. E era o rancho de Oibê. Macunaíma bateu e uma vozica
mui doce gemeu de lá dentro:

  Quem vem lá!

— É de paz!

Então a porta se abriu e
apareceu um bicho tama­nho que sarapantou o herói. Era o monstro Oibê o
minhocão temível. O herói sentiu friagem por dentro mas se lembrou do
smith-wesson, criou coragem e pediu pou­sada.

— Entre que a casa é sua.

Macunaíma entrou, sentou
numa canastra e ficou assim. Afinal perguntou:

— Vamos conversar?

— Vamos.

— Sobre o quê?

Oibê cocou a barbicha
matutando e de repente des­cobriu satisfeito:

— Vamos conversar porcaria?

— Chi! gosto disso que é um
horror! o herói ex­clamou:

E conversaram uma hora de
porcariada.

Oibê estava cozinhando a
comidinha dele. Ma­cunaíma não tinha fome nenhuma porém botou a gaiola no chão
e só de embusteiro esfregando a mão na barriga fez:

— Juque! Oibê resmungou:

— Que é isso, gente!

— É fome é fome!

Oibê pegou numa gamela,
botou cará com feijão dentro, encheu uma cuia com farinha-d’água e ofere­ceu
pro herói. Mas não deu nem um tiquinho de pacuera assando no espeto de canela
de sassafrás e aro­mando bem. Macunaíma engoliu tudo sem mastigar e não tinha
fome nenhuma porém a boca dele ficou cheia de água por causa da pacuera
assando. Esfregou a mão na barriga e fez: .

— Juque!

Oibê resmungou:

— Que é isso, gente!

— É sede é sede!

Oibê pegou no balde e foi
buscar água no poço. Enquanto ia, Macunaíma tirou a canela de sassafrás das
brasas engoliu a pacuera inteira sem mastigar e fi­cou bem sossegado esperando.
Quando o minhocão trouxe o balde Macunaíma bebeu um coco cheio. De­pois se
espreguiçando suspirou:

— Juque!

O monstro se sarapantou:

— Que mais que é, gente!

— É sono é sono!

Então Oibê levou Macunaíma
pro quarto-de-hóspedes deu boa-noite e fechou a porta por fora. Foi cear.
Macunaíma botou a gaiola num canto, cobrindo o ca­sal de galinhas com umas
chitas. Assuntou o quarto bem. Tinha uma bulhinha sem parada vinha de todos os
lados. Macunaíma bateu a pedra do isqueiro e viu que eram baratas. Trepou assim
mesmo na rede não sem espiar mais uma vez si não faltava nada prós legornes. O
casal estava até bem satisfeito comendo barata. Macunaíma se riu pra ele,
arrotou e adorme­ceu. Daí a pouco estava coberto de baratas lambendo.

Quando Oibê pôs reparo que
Macunaíma tinha comido a pacuera, teve raiva. Agarrou num sininho, se embrulhou
num lençol branco e foi fazer assombra­ção pro hóspede. Mas era só de
brincadeira. Bateu na porta e manejou o sininho, de-lem!

— Oi?

— Vim buscar minha
pacuera-cuera-cuera-cuera-cuera, de-lem!

Abriu a porta. Quando o
herói enxergou a assom­bração ficou com tanto medo que nem se mexeu. Ele não
sabia que era Oibê não. A fantasma vinha vindo:

— Vim buscar minha
pacuera-cuera-cuera-cuera cuera, de-lem!

Então Macunaíma percebeu que
não era assom­bração nada, era mas o monstro Oibê minhocão temível. Criou
coragem pegou no brinco da orelha esquerda que era a máquina revólver e deu um
tiro na assombração. Porém Oibê não fez caso e veio vindo. O herói tornou a ter
medo. Pulou da rede agarrou a gaiola e escafedeu pela janela, jogando baratas
no caminho todo. Oibê correu atrás. Mas era só de brincadeira que ele queria
comer o herói. Macunaíma desembestara agres­te fora mas isso ia que ia acochado
pelo minhocão. Então botou o furabolo na goela, fez cosquinha e lan­çou a
farinha engolida. A farinha virou num areão e enquanto o monstro pelejava pra
atravessar aquele mundo de areia escorregando, Macunaíma fugia. To­mou pela
direita, desceu o morro do Estrondo que soa de sete em sete anos seguiu por uns
caponetes e depois de cortar um travessão encapelado fez o Sergipe de ponta a
ponta e parou ofegando num agarrado muito pedregoso. Na frente havia uma lapa
grande furada por uma furna com um altarzinho dentro. Na boca da socava um
frade. Macunaíma perguntou pro frade:

— Como se chama o nome de
você?

O frade pôs no herói uns
olhos frios e secundou com pachorra:

— Eu sou Mendonça Mar
pintor. Desgostoso da injustiça dos homens faz três séculos que afastei-me
deles metendo cara no sertão. Descobri esta gruta ergui com minhas mãos este
altar do Bom Jesus da Lapa e vivo aqui perdoando gente mudado em frei Francisco
da Soledade.

— Está bom, Macunaíma falou.
E partiu na chispada.

Mas o terreno era cheio de
socavas e logo adiante estava outro desconhecido fazendo um gesto tão bobo que
Macunaíma parou sarapantado. Era Hercules Florence. Botara um vidro na boca
duma furna mirim, tapava e destapava o vidro com uma folha de taioba. Macunaíma
perguntou:

— Ara, ara ara! Mas você não
me dirá o quê que está fazendo aí, siô!

O desconhecido virou pra ele
e com os olhos relumeando de alegria falou:

— Gardez cette date: 1927!
Je viens d’inventer Ia photographie!

Macunaíma deu uma grande
gargalhada.

— Chi! Isso já inventaram
que anos, siô! Então Hercules Florence caiu estuporado sobre a folha de taioba
e principiou anotando com música uma memória científica sobre o canto dos
passarinhos. Es­tava maluco. Macunaíma chispou.

Depois que correu légua e
meia olhou pra trás e viu que Oibê já vinha perto. Botou o furabolo na goela e
lá foi pro chão todo o cará engolido que virou num tartarugal mexemexendo. Oibê
custou pra virar aquela imundície de tartaruga e Macunaíma fugiu. Légua e meia
adiante olhou pra trás. Isso Oibê vinha na cola dele. Então tornou a botar o
furabolo na goela e lan­çou que era só feijão e água. Tudo virou num lamedo
cheio de sapos-bois e quanto Oibê se debatia atraves­sando aquilo, o herói
catava umas minhocas pras ga­linhas e partia afobado. Ganhou muita dianteira e
pa­rou pra descansar. Ficou bem admirado porque tinha corrido tanto que estava
outra feita na porta do rancho de Oibê. Resolveu se esconder no pomar. Tinha um
pé de carambola e Macunaíma principiou arrancando ra­mos do caramboleiro pra se
amoitar por debaixo. Os ramos cortados agarram pingando água de lágrima e se
escutou o lamento do caramboleiro:

 

Jardineiro de meu pai,

Não me, cortes meus cabelos,

Que o malvado me enterrou

Pelo figo da figueira

Que passarinho comeu…

— Chó, chó, passarinho!

 

Todos os passarinhos
choraram de pena gemida nos ninhos e o herói gelou de susto. Agarrou no patuá
que trazia entre os berloques do pescoço e traçou uma mandinga. O caramboleiro
virou numa princesa muito chique. O herói teve um desejo danado de brincar com
a princesa porém Oibê já devia de estar estourando por aí. De-fato:

— Vim buscar minha
pacuera-cuera-cuera-cuera-cuera, de-lem!

Macunaíma deu a mão pra princesa
e fugiram na disparada. Mais adiante havia uma figueira com a sapopemba enorme.
Oibê estava já no calcanhar deles e Macunaíma não tinha tempo mais pra nada.
Então se meteu com a princesa no buraco da sapopemba. Mas o minhocão enfiou o
braço e inda agarrou a perna do herói. Ia puxar mas Macunaíma deu uma grande
gar­galhada de experiência e falou:

— Você está maginando que
pegou minha gâmbia, pegou não! Isso é raiz, bocó!

O minhocão largou. Macunaíma
gritou:

— Pois era a perna mesmo
bocó-de-mola!

Oibê tornou a enfiar o braço
mas o herói já, tinha encolhido a perna e o minhocão só achou raiz. Tinha uma
garça perto. Oibê falou pra ela:

— Comadre garça, bote
sentido no herói. Não deixa ele sair que vou buscar uma enxada pra cavar.

A garça ficou guardando.
Quando Oibê já estava longe Macunaíma falou pra ela:

— Então, sua palerma, é
assim que se bota sen­tido num herói! Fique bem perto arregalando os olhos!

A garça fez. Então Macunaíma
atirou um punha­do de formigas-de-fogo nos olhos dela e enquanto a gar­ça
gritava de cega ele saiu do buraco com a princesa e escafederam outra vez.
Perto de Santo Antônio do Mato Grosso toparam com uma bananeira e estavam
morrendo de fome. Macunaíma falou pra princesa:

— Assobe, come as verdes que
são boas e atira as amarelas pra mim.

Ela fez. O herói se fartou
enquanto a princesa dançava de eólicas pra ele apreciar. Oibê já vinha che­gando
e eles desataram o punho da rede outra vez.

Depois de correrem mais
légua e meia, enfim che­garam num firme pontudo do Araguaia. Porém a igarité
estava abicada bem mais pra baixo na outra mar­gem com Maanape Jiguê a linda
Iriqui, todos esses companheiros dormindo. Macunaíma olhou pra trás. Oibê quase
ali. Então botou o furabolo na goela pela última vez, fez cosquinha e alojou a
pacuera n’água. A pacuera virou num periantã muito fofo de ervas. Macunaíma
botou a gaiola com jeito no fofo, atirou a princesa lá e dando um arranco na
margem com o pé, afastou da praia o periantã que as águas levaram. Oibê chegou
mas os fugitivos iam longe. Então o minhocão que era um lobisomem famoso
principiou tremelicando criou rabo e virou cachorro-do-mato. Escancarou a goela
desencantada e saiu da barriga dele uma bor­boleta azul. Era alma de homem
presa no corpo do lobo por artes do Carrapatu medonho que pára na gruta do
Iporanga.

Macunaíma e a princesa
brincando desciam a cor­rente do rio. Agora estão se rindo um pro outro.

Quando
passaram rente da igarité os manos se acordaram com os gritos de Macunaíma e
foram atrás. Iriqui ficou logo enciumada porque o herói não queria saber mais
dela e só brincava com a princesa. E pra ver si reconquistava o herói abriu num
bué famoso. Jiguê teve logo muita pena dela e falou pra Macunaíma ir brincar
com Iriqui um poucadinho. Jiguê era muito bobo. Mas o herói que já andava impinimando
com Iriqui secundou pra ele:


Iriqui é muito relambória, mano, mas a prin­cesa, upa! Não dê credito pra
Iriqui não! Oi que Sol de inverno chuva de verão choro de mulher palavra de
ladrão, eieiei… ninguém não caia não!

E foi brincar com a princesa.
Iriqui ficou triste triste, bem triste, chamou seis araras canindés e subiu com
elas pro céu, chorando luz virada numa estrela. As canindés amarelinhas também
viraram estrelas. É o Setestrêlo.

 

XVI

URARICOERA

     

No outro dia Macunaíma amanheceu com muita tosse e uma
febrinha sem parada. Maanape desconfiou e foi fazer um cozimento de broto de
abacate, imagi­nando que o herói estava hético. Em vez era impalu­dismo, e a
tosse viera só por causa da laringite que toda a gente carrega de São Paulo.
Agora Macunaíma passava as horas deitado de borco na proa da igarité e nunca
mais que havia de sarar. Quando a princesa não podia mais e vinha pra
brincarem, o herói até uma vez recusou suspirando:

— Ara… que preguiça…

No outro dia atingiram as
cabeceiras dum rio e escutaram perto o ruidejar do Uraricoera. Era ali. Um
passarinho serigaita trepado na munguba, enxergando o farrancho gritou logo:

— Sinhá dona do porto, dá
caminho pra mim passar!

Macunaíma agradeceu feliz.
De pé ele assuntava a paisagem passando. Veio vindo o forte São Joaquim erguido
pelo mano do grande Marquês. Macunaíma deu um té-logo pro cabo e pro soldado
que só possuíam um naco esfarrapado de culote e o boné na cabeça e viviam
guardando as saúvas dos canhões. Afinal ficou tudo conhecidíssimo. Se enxergou
o cerro manso que fora mãe um dia, no lugar chamado Pai da Tocandeira, se
enxergou o pauê trapacento malhado de vitórias-régias escondendo os puraquês e
os pitiús e pra diante do be­bedouro da anta se viu o roçado velho agora uma
tigüera e a maloca velha agora uma tapera. Macunaíma chorou.

Abicaram e entraram na
tapera. Vinha a bôca-da-noite. Maanape com Jiguê resolveram fazer uma facheada
pra pegarem algum peixe e a princesa foi ver si topava com algum arezi pra
comerem. O herói ficou descansando. Estava assim quando sentiu no ombro um peso
de mão. Virou a cara e olhou. Junto dele estava um velho de barba. O velho
falou:

— Quem és tu, nobre
estrangeiro?

— Não sou estranho não,
conhecido. Sou Macunaíma o herói e vim parar de novo na terra dos meus. Você
quem é?

O velho afastou os mosquitos
com amargura e secundou:

— Sou João Ramalho.

Então João Ramalho enfiou
dois dedos na boca e assoviou. Apareceram a mulher dele as quinze famí­lias de
escadinha. E lá partiram de mudança buscando pagos novos sem ninguém.

No outro dia bem cedinho
foram todos trabucar. A princesa foi no roçado Maanape foi no mato e Jiguê foi
no rio. Macunaíma se desculpou, subiu na montaria e deu uma chegadinha até a
boca do rio Negro pra buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá. Jacaré
achou? nem ele. Então o herói pegou na cons­ciência dum hispanoamericano, botou
na cabeça e se deu bem da mesma forma.

Passava uma piracema de
jaraquis. Macunaíma agarrou pescando e distraído distraído quando viu es­tava
em Óbidos, a montaria cheinha de peixes frescos. Mas o herói foi obrigado a
atirar tudo fora porque em Óbidos “quem come j ar aqui fica aqui”
falam e ele ti­nha que voltar pro Uraricoera. Voltou e como era ainda o pino do
dia deitou na sombra da ingazeira catou os carrapatos e dormiu. Tarde chegando
todos voltaram pra tapera só Macunaíma não. Os outros saíram pra esperar. Jiguê
se acocorou botando a orelha no chão pra ver si escutava o passinho do herói,
nada. Maanape trepou no grelo duma inajá pra ver si enxer­gava o brilho dos brincos
do herói, nada. Então saíram por mato e capoeira gritando:

— Macunaíma, nosso mano!…

Nada. Jiguê chegou debaixo
da ingazeira e gritou:

— Nosso mano!

— Que foi!

— Você, aposto que já estava
dormindo!

— Dormindo nada, então!
Estava mas era nega­ceando um inambu-guaçu. Você fez bulha, nhambu escapoliu!

Voltaram. E assim todos os
dias. Os manos an­davam muito desconfiados. Macunaíma percebeu e disfarçou bem:

— Eu caço porém não acho
nada não. Jiguê nem caça nem pesca, passa o dia dormindo.

Jiguê teve raiva porque
peixe andava rareando e caça inda mais. Foi na praia do rio pra ver si pescava
alguma coisa e topou com o feiticeiro Tzaló que tem uma perna só. O
catimbozeiro possuía uma cabaça encantada feita com a metade duma casca de
gerimum. Mergulhou a cabaça no rio, encheu de água até o meio e despejou na
praia. Caiu um despropósito de peixe. Jiguê reparou bem como que o feiticeiro
fazia. Tzaló largou da cabaça por aí e principiou matando peixe com um porrete.
Então Jiguê roubou a cabaça do fei­ticeiro Tzaló que tem uma perna só.

Mais pra diante fez que-nem
tinha reparado e veio muito peixe, veio pirandira veio pacu veio cascudo veio
bagre jundiá tucunaré, todos esses peixes e Jiguê vol­tou carregado pra tapera
depois de esconder a cabaça na raiz do cipó. Todos ficaram sarapantados com

aquele mundo de peixe e comeram bem. Macunaíma
desconfiou.

No outro dia esperou com o
olho esquerdo dor­mindo que Jiguê fosse pescar, saiu atrás. Descobriu tudo.
Quando o mano foi-se embora Macunaíma lar­gou da gaiola com os legornes no chão
pegou na cabaça escondida e fez que-nem o mano. Isso vieram muitos peixes, veio
acará veio piracanjuba veio aviú guri-juba, piramutaba mandi surubim, todos
esses peixes. Macunaíma atirou a cabaça por aí, na pressa de matar todos os
peixes, cabaça caiu numa lapa e juque! mer­gulhou no rio. Passava a pirandira
chamada Padzá. Imaginou que era abobra e engoliu a cabaça que virou na beixiga
de Padzá. Então Macunaíma enfiou a gaiola no braço voltou pra tapera e contou o
sucedido. Jiguê teve raiva.

— Cunhada princesa, eu que
pesco, seu compa­nheiro fica dormindo em baixo da ingazeira e inda atra­palha
os outros!

— Mentira!

— Então o que você fez hoje?

— Cacei viado.

— Quê-dele ele!

— Comi, uai! Fui andando por
um caminho, vai, topei rasto dum… catingueiro não era não mas era mateiro. Me
agachei e fui no rasto. Olhando olhando, sabe, dei uma cabeçada numa coisa
mole, que engra­çado! sabem o que era! pois a bunda do viado, gente! (Macunaíma
deu uma grande gargalhada). Viado per­guntou pra mim: — Que está fazendo aí,
parente!, — Te campeando! secundei. E vai, matei o catingueiro que comi com
tripa e tudo. Vinha trazendo um naco pra vocês, vai, escorreguei atravessando o
ipu, dei um tombo, naco foi parar longe e tanajura sujou nele.

A peta era tamanha que
Maanape desconfiou. Maanape era feiticeiro. Chegou bem rente do mano e
perguntou:

— Você foi na caça?

— Quer dizer… fui sim.

— O quê você caçou?

— Viado.

— Qual!

Maanape fez um grande gesto.
O herói piscou de medo e confessou que tudo era lorota.

No outro dia Jiguê estava
procurando a cabaça quando topou com o tatu-canastra feiticeiro chamado Caicãe
que nunca teve mãe. Caicãe sentado na porta da toca puxou a violinha dele feita
com a outra metade da abobra encantada e agarrou cantando assim:

 

“Vote vote coandu!

Vote vote cuati!

Vote vote taiçu!

Vote vote pacari!

Vote vote canguçu!

Êh!…”

 

Assim. Vieram muitas caças.
Jiguê, reparando. Caicãe atirou a violinha encantada por aí, pegou num porrete
e foi matar todo aquele poder de caças que esta­vam feito bobas. Então Jiguê
roubou a violinha do feiticeiro Caicãe que nunca teve mãe.

Mais pra diante cantou que
nem tinha escutado e veio um dilúvio de caça parando na frente dele. Jiguê
voltou carregado pra tapera depois de esconder a violi­nha na raiz de outro cipó.
Todos tornaram a se espan­tar e comeram bem. Macunaíma tornou a desconfiar.

No outro dia esperou com o
olho esquerdo dor­mindo que Jiguê partisse, foi atrás. Descobriu tudo. Quando o
mano voltou pra tapera Macunaíma pegou na violinha, fez talequal reparara e
veio uma imundície de caça, viados cotias tamanduás capivaras tatus aperemas
pacas graxains lontras muçuãs catetos monos tejus queixadas antas, a anta
sabatira, onças, a onça pinima a papa-viado a jaguatirica, suçuarana canguçu
pixuna, isso era uma imundície de caças! O herói teve medo daquela bicharada
tamanha e saiu numa carreira mãe pinchando a violinha longe. A gaiola enfiada
no braço dele ia batendo nos paus e o galo com a galinha faziam um cacarejo de
ensurdecer. O herói imaginava que era a bicharia e disparava mais.

A violinha caiu no dente de
um queixada que tinha umbigo nas costas e se partiu em dez vezes dez pedaços
que os bichos engoliram pensando que era gerimum. Os pedaços viraram nas
bexigas das caças.

O herói estourou tapera a
dentro feito um desespe­rado botando os bofes pela boca. Nem bem pôde res­pirar
contou o sucedido. Jiguê teve ódio e falou:

— Agora que não caço nem
pesco mais!

E foi dormir. Todos
principiaram curtindo fome. Bem que pediam porém Jiguê pulava na rede e fechava
os olhos. O herói jurou vingança. Fingiu um anzol com presa de sucuri e falou
pro feitiço:

— Anzol de mentira, si mano
Jiguê vier experi­mentar você, então entra na mão dele.

Jiguê não podia dormir de
tanta fome e enxer­gando o anzol falou pro mano:

— Mano, esse anzol é bom?

— Xispeteó! Macunaíma fez e
continuou lim­pando a gaiola.

Jiguê decidiu ir numa
pescaria porque estava mes­mo curtindo fome, falou:

— Deixa ver si anzol é bom.

Pegou no feitiço e
experimentou na palma da mão. O dente de sucuri entrou na pele e despejou todo
o veneno lá. Jiguê correu pro matinho e bem que mastigou e engoliu maniveira,
não vale de nada. Então foi bus­car uma cabeça de anhuma que fora encostada em
pi­cada de cobra. Pôs na mão. Não valeu de nada. Ve­neno virou numa ferida leprosa
e principiou comendo Jiguê. Primeiro comeu um braço depois metade do corpo
depois as pernas depois a outra metade do corpo depois o outro braço depois o
pescoço e a cabeça. Só ficou a sombra de Jiguê.

A princesa teve ódio. É que
ela andava ultima­mente brincando com Jiguê. Macunaíma bem que per­cebeu porém
imaginou: “Plantei mandioca nasceu maniva, de ladrão de casa ninguém se
priva, paciên­cia! …” E tinha encolhido os ombros. A princesa raivosa
falou pra sombra:

— Quando o herói for passear
de fome você vira num cajueiro numa bananeira e num churrasco de viado.

A sombra era envenenada por
causa da lepra e a princesa queria matar Macunaíma.

No outro dia o herói acordou
com tanta fome que foi espairecer passeando. Topou com um cajueiro cheio de
frutas. Quis comer porém presenciou que era a sombra leprosa e passou adiante.
Légua e meia depois topou com um churrasco de viado fumegando. Já estava roxo
de fome porém pôs reparo que o chur­rasco era a sombra leprosa e passou
adiante. Légua e meia depois topou com uma bananeira carregadinha de pencas
maduras. Mas agora o herói já estava que vinha vesgo de tanta fome. A vesgueira
fez ele enxergar dum lado a sombra do mano e do outro a bananeira.

— Arre que posso comer! fez.

E devorou todas as pencas. E
as bananas eram a sombra leprosa do mano Jiguê. Macunaíma ia morrer. Então se
lembrou de passar a doença nos outros pra não morrer sozinho. Pegou numa
formiga saúva e es­fregou bem ela na ferida do nariz, formiga já foi gente que
nem nós e a saúva ficou leprosa. Então o herói agarrou a formiga jaguataci e
fez o mesmo. Jaguataci ficou leprosa também. Então foi a vez da formiga aqueque
devoradora de sementes e da formiga guiquém, da formiga tracuá e da formiga
mumbuca bem preta, todas ficaram leprosas. Não tinha mais formigas em redor do
herói sentado. Ele ficou com preguiça de es­tender o braço porque já estava
moribundo. Esperou a visita da saúde, criou força e pegou no mosquito birigüi
mordendo o joelho dele. Passou a doença no mosquito birigüi. Por isso que agora
quando esse mosquito morde a gente, entra na pele, atravessa o corpo e sai do
outro lado enquanto o furinho de entrada vira na bereva medonha chamada
chaga-de-Bauru.

Macunaíma tinha passado a
lepra em sete outras gentes e ficou são no sufragante, voltando pra tapera. A
sombra de Jiguê conferiu que o herói era muito inte­ligente e quis voltar
desesperada pra junto da família. Era já de-noite e se confundindo com a
escureza a som­bra não achava mais o caminho perto. Sentou numa pedra e berrou:

— Foguinho, cunhada
princesa!

A princesa coxeando muito
porque estava doente de zamparina veio com um tição aluminando caminho. A
sombra engoliu o fogo e a cunhada. Berrou de novo:

— Foguinho, mano Maanape!

Maanape veio logo com outro
tição alumiando ca­minho. E se arrastava molengo porque barbeiro chu­para
sangue dele e Maanape estava opilado. A som­bra engoliu fogo e mano Maanape.
Berrou:

— Foguinho, mano Macunaíma!

Queria engolir o herói
também mas Macunaíma percebendo o que sucedera pro mano e pra companheira

encostou a porta e ficou bem
quieto na tapera. A som­bra pedia foguinho, pedia porém não recebendo res­posta
se lastimou até madrugada”. Então Capei apare­ceu iluminando a terra e a
leprosa pôde chegar na tapera. Sentou na cangerana da soleira e esperou o dia
pra se vingar do mano.

De-manhã inda estava
acocorada ali. Macunaíma acordou e escutou. Não se ouvia nada e ele concluiu: —
Arre! Foi-se!

E saiu passear. Quando
passou pela porta a sombra trepou no ombro dele. O herói não maliciou nada.
Estava padecendo de fome porém a sombra não. deixava ele comer. Tudo o que
Macunaíma pegava ela engolia, tamorita mangarito inhame biribá cajuí guiambê
guacá uxi ingá bacuri cupuaçu pupunha tape-rebá graviola grumixama, todas essas
comidas do mato. Então Macunaíma foi pescar porque agora não tinha mais ninguém
que pescasse pra ele não. Mas cada peixe que tirava do anzol e jogava no
paneiro, a som­bra pulava do ombro, engolia o peixe e voltava pro poleiro outra
vez. O herói matutou: “Deixa estar que te arranjo!” Quando peixe
pegou, Macunaíma fez um esforço heróico, deu um bruto arranco na vara de for­mas
que o impulso fez o peixe ir parar lá na Guiana. A sombra correu atrás do
peixe. Então Macunaíma gavionou mato fora no sentido oposto. Quando a sombra
voltou, não achando mais o mano disparou no rasto dele. Depois de correr um
pouco, atravessar a terra dos índios tatus-brancos e pegar um susto tama­nho
que passou sem pedir licença entre a sombra de Jorge Velho e a sombra do Zumbi
que estavam dis­cutindo, o herói fatigadíssimo, olhou pra trás e viu que a
sombra já vinha chegando. Estava na Paraíba e tão sem vontade de chispar que
parou. Era por causa do herói estar impaludado. Perto havia uns trabalhadores
destruindo formigueiros para construir um açude. Macunaíma pediu água pra eles.
Não tinha nem gota porém deram raiz de umbu. O herói matou a sede dos legornes,
agradeceu e gritou:

Diabo leve quem trabalha!

Os trabalhadores estumaram a
cachorrada no he­rói. Isso mesmo que ele queria porque teve medo e chispou bem.
Na frente abria a estrada das boiadas. Macunaíma isso vinha que vinha acochado
pela som­bra, nem turtuveou: meteu pelo estradão. Mais adiante estava dormindo
um boi malabar chamado Espácio que viera do Piauí. O herói deu um trompaço nele
de tanta fúria. Isso o boi saiu numa galopada louca de susto e lá foi cego
manadeiro abaixo. Então Macunaíma que­brou por uma picada sem jeito e se
amoitou por de­baixo dum mucumuco. A sombra escutava a bulha do marruá
galopeando e imaginou que era Macunaíma, foi atrás. Alcançou o boi e pra não perder
a pernada fez poleiro no costado dele. E cantava satisfeita:

“Meu boi bonito,

Boi Alegria,

Dá um adeus

Pra toda a família!

 

ôh… êh bumba,

Folga meu boi!

Ôh… êh bumba,

Folga meu boi!”

 

Porém nunca mais que o boi
pôde comer, a sombra engolia tudo antes do bicho. Então o marruá foi fican­do
jururu ficando jururu magruço e lerdo. Quando passou pelo rincão chamado Água
Doce perto de Guarapes, o boi mirou sarapantado bem no meio do areão
a vista linda, um laranjal cheio de sombra com a ga­linha ciscando
por baixo. Era sinal de morte… A sombra desenganada cantava agora:

“Meu boi bonito,

Boi desengano,

Dá um adeus,

Até para o ano!

 

– ôh.-.. êh bumba,

Folga meu boi!”

ôh… êh bumba,

Folga meu boi!

 

No outro dia o marruá estava
morto. Foi esverdeando esverdeando… A sombra muito penarosa se consolava
cantando assim:

 

“O meu boi morreu,

Quê será de mim?

Manda buscar outro,

— Maninha,

Lá no Bom Jardim…”

 

E o Bom Jardim era uma
estância do Rio Grande do Sul. Então veio vindo uma giganta que gostava de
brincar com o marruá. Viu o boi morto,-chorou bem e quis levar o cadáver pra
ela.

A sombra teve raiva e
cantou:

 

“Arretira-te, giganta,

Que o caso está perigoso!

Quem se arretirou amante

az ação de generoso!”

 

A giganta agradeceu e foi-se
embora dançando. Então passou por ali o indivíduo chamado Manuel da Lapa
carregado de folha de cajueiro e de rama de al­godão. A sombra saudou o
conhecido:

“Seu Manué que vem do
Açu,

Seu Manué que vem do Açu,

Vem carregadinho de folha de
caju!

 

Seu Manué que vem do sertão,

Seu Manué que vem do sertão,

Vem carregadinho de rama de
algodão!”

 

Manuel da Lapa ficou muito
concho com a sauda­ção e pra agradecer dançou um sapateado e cobriu o cadáver
com a folha de caju e a rama de algodão.

O velho já estava tirando a
noite do buraco e a sombra toda confundida não via mais o boi debaixo dos
flocos e da folhagem. Principiou dançando à procura dele. Um vaga-lume se
admirou daquilo e cantou per­guntando:

 

“Linda pastorinha

Que fazeis aqui?”

 

“Vim buscar meu gado,

Maninha,

Que eu aqui perdi”.

 

Foi como a sombra secundou
cantando. Então o vaga-lume dançando voou do tronco pra baixo e mos­trou o boi
pra sombra. Ela trepou na barriga verde do morto e ficou chorando ali.

No outro dia o boi estava
podre. Então vieram muitos urubus, veio o urubu-camiranga, veio o urubu-jeregua
o urubu-peba o urubu-ministro o urubu-tinga que só come olhos e língua, todos
esses cabeças-peladas e principiaram dançando de contentes. O mai& grande
puxava a dança cantando:

“Urubu é passo feio
feio feio!

Urubu é passo limpo limpo
limpo”!

 

E era o urubu-ruxama,
urubu-rei, o Pai do Urubu. Então mandou um urubuzinho piá entrar dentro do boi
para ver si já estava bem podre. O urubuzinho fez. En­trou por uma porta e saiu
por outra dizendo que sim e todos fizeram a festa juntos dançando e cantando:

“Meu boi bonito,

Boi Zebedeu,

Corvo avoando,

Boi que morreu.

 

 Ôh… êh bumba,

Folga meu boi!

Ôh… êh bumba,

Folga meu boi!”

 

E foi assim que inventaram a
festa famanada do Bumba-meu-Boi, também conhecida por Boi-Bumbá.

A sombra teve raiva de
estarem comendo o boi dela e pulou no ombro do urubu-ruxama. O Pai do Urubu
ficou muito satisfeito e gritou:

— Achei companhia pra minha
cabeça, gente!

E vou pra altura. Desde esse
dia o urubu-ruxama que é o Pai do Urubu possui duas cabeças. A som­bra leprosa
é a cabeça da esquerda. De primeiro o urubu-rei tinha só uma cabeça.

 

 

XVII

URSA MAIOR

 

Macunaíma se arrastou até a
tapera sem gente agora. Estava muito contrariado porque não com­preendia o
silêncio. Ficara defunto sem choro, no aban­dono completo. Os manos tinham
ido-se embora trans­formados na cabeça esquerda do urubu-ruxama e nem siquer a
gente encontrava cunhas por ali. O silêncio principiava cochilando a beira-rio
do Uraricoera. Que enfaro! E principalmente, ah!… que preguiça!…

Macunaíma foi obrigado a
abandonar a tapera cuja última parede trançada com palha de catolé estava
caindo. Mas o impaludismo não lhe dava coragem nem pra construir um papiri.
Trouxera a rede pro alto dum teso onde tinha uma pedra com dinheiro enterrado
por debaixo. Amarrou a rede nos dois cajueiros frondejando e não saiu mais dela
por muitos dias dormindo caceteado e comendo cajus. Que solidão! O próprio
séquito sarapintado se dissolvera. Não vê que um ajuru-catinga passara muito
afobado por ali. Os papa­gaios perguntaram pro parente onde que ia.

— Madurou milho na terra dos
Ingleses, vou pra lá!

Então todos os papagaios
foram comer milho na terra dos Ingleses. Porém primeiro viraram periquitos
porque assim, comiam e os periquitos levavam a fama. Só ficara um aruaí muito
falador. Macunaíma se con­solou pensamenteando: “O mal ganhado, diabo
leva… paciência”. Passava os dias enfarado e se distraía fa­zendo o
pássaro repetir na fala da tribo os casos que tinham sucedido pro herói desde
infância. Aaah … Macunaíma bocejava escorrendo caju, muito mole na rede, com
as mãos pra trás fazendo cabeceiro, o casal de legornes empoleirado nos pés e o
papagaio na bar­riga. Vinha a noite. Aromado pelas frutas do cajuei­ro o herói
ferrava no sono bem. Quando a arraiada vinha o papagaio tirava o bico da asa e
tomava o café da manhã devorando as aranhas que de-noite fiavam as teias dos
ramos pro corpo do herói. Depois falava:

— Macunaíma!

O dorminhoco nem se mexia.

— Macunaíma! ôh Macunaíma!

— Deixa a gente dormir,
aruaí…

— Acorda, herói! É de-dia!

— Ah… que preguiça!.. .

— Pouca saúde e muita saúva,
Os males do Brasil são!…

Macunaíma dava uma grande
gargalhada e cocava a cabeça cheia de pixilinga que é piolho-de-galinha. Então
o papagaio repetia o caso aprendido na véspera e Macunaíma se orgulhava de
tantas glórias passadas. Dava entusiasmo nele e se punha contado pro aruaí
outro caso mais pançudo. E assim todos os dias.

Quando a Papaceia que é a
estrela Vésper apa­recia falando pras coisas irem dormir, o papagaio zan­gava
por causa da história parando no meio. Uma feita ele insultou a estrela
Papaceia. Então Macunaíma contou:

— “Não insulta ela não,
aruaí! Taína-Cã é bom. Taína-Cã que é a estrela Papaceia tem pena da Terra e
manda Emoron-Pódole dar o sossego do sono deste mundo pra todas essas coisas
que podem ter sossego porque não possuem pensamento que nem nós. Taína-Cã é
indivíduo também… Relumeava lá no campo vasto do céu e a filha mais velha do
morubixaba Zo­zoiaça da tribo carajá, solteirona chamada Imaerô fa­lou assim:

— Pai, Taína-Cã relumeia tão
bonito que eu quero me amulherar com ele.

Zozoiaça riu bem por causa
que não podia dar Taína-Cã de casamento pra filha velha não. Vai, de-noite veio
descendo o rio uma piroga de prata, um remeiro saltou dela, bateu no poial e
falou pra Imaerô:

— Eu sou Taína-Cã. Escutei
vosso pedido e vim numa piroga de prata. Casa comigo por favor?

— Sim, ela fez
contentíssima.

Deu a rede pro noivo e foi
dormir com a mana mais nova se chamando Denaquê.

No outro dia quando Taína-Cã
pulou da rede to­dos se sarapantaram. Era uma coroca enrugado enru­gado,
tremelicando tanto feito a luz da estrela Papa­ceia. Vai, Imaerô falou:

— Cai fora, coroca! Vê lá si
vou casar com velho! Pra mim há-de ser um moço mui brabo mucudo e de nação
carajá!

Taína-Cã ficou jururu jururu
e principiou imagi­nando na injustiça dos homens. Porém a filha mais nova do
morubixaba Zozoiaça teve pena do coroca e falou:

— Eu caso com você…

Taína-Cã brilhou de gozo.
Ficaram ajustados. Denaquê preparando o enxoval cantava noite e dia:

— Amanhã por estas horas,
furrum-fum-fum… Zozoiaça respondia:

— Eu também com vossa mãe,
furrum-fum-fum …

Depois que se acabaram os
dedos das vossas mãos, papagaio, que são de espera pra noivo, na rede trança­da
por Denaquê se brincou dança de amor, furrum-fum-fum.

Nem bem o dia estava
rompendo a barra, Taína-Cã pulou da rede e falou pra companheira:

— Vou derrubar mato pra
fazer roçado. Agora você fica no mocambo e nunca não vai na roça me espiar.

— Sim, ela fez.

E ficou na rede, matutando
gozada naquele velhi­nho esquisito que dera pra ela a noite mais gostosa de
amor que a gente imagina.

Taína-Cã derrubou mato,
botou fogo em todos os macurus de formiga e preparou a terra. Naquele tem­po
inda a nação carajá não conhecia as plantas boas. Era só peixe e bicho que
carajá engolia.

Na outra madrugada Taína-Cã
falou pra compa­nheira que ia buscar sementes pra semear e repetiu a proibição.
Denaquê ficou deitada na rede inda um bo­cado, matutando nas gostosuras
valentes das noites de amor que o bom do coroca dava pra ela. E foi fiar.

Taína-Cã deu uma chegadinha
no céu, foi até o corgo Berô, fez oração e botando uma perna em cada barreira
do corgo esperou assuntando a água. Daí a pouco vieram vindo no pêlo da agüinha
as sementes do milho cururuca, o fumo, a maniveira, todas essas plan­tas boas.
Taína-Cã apanhou o que passava, desceu do céu e foi no roçado plantar. Estava
trabucando na Sol quando Denaquê apareceu. Era por causa que ela de sodosa quis
ver o companheiro dando gostosuras tão valentes pra ela nas noites de amor.
Denaquê deu um grito de alegria. Taína-Cã* não era coroca não! Taína-Cã era mas
um rapaz muito brabo mucudo e de nação carajá. Fizeram um macio de fumo e de
maniva e brincaram pulado na Sol.

Quando voltaram pro mocambo
muito se rindo um pro outro, Imaerô ficou tiririca. Gritou:

— Taína-Cã é meu! Foi pra
mim que ele veio do céu!

— Sai azar! que Taína-Cã
falou. Quando eu quis você não quis, pois agora brinque-se!

E trepou na rede com
Denaquê. Imaerô desinfeliz suspirou assim:

— Deixe estar jacaré, que a
lagoa há-de secar!… E saiu gritando pelo mato. Virou na ave araponga

que grita amarelo de inveja
no quiriri do mato diurno. Desde então por causa da bondade de Taína-Cã é que
Carajá come mandioca e milho e possui fumo pra se animar.

E tudo o que Carajá carecia,
Taína-Cã ia no céu e voltava trazendo. Pois não é que Denaquê, de ambicio­sa,
deu pra namorar com todas as estrelinhas do céu! Deu sim, e Taína-Cã que é a
Papaceia enxergou tudo. Isso, até se orvalhou de tão triste, pegou nos teréns e
foi-se embora pro vasto campo do céu. Ficou lá, trouxe mais nada não. Si a
Papaceia continuasse trazendo as coisas do outro lado de lá, céu era aqui,
nosso todinho. Agora é só do nosso desejo. Tem mais não”. O papagaio dormia.

Uma feita janeiro chegado
Macunaíma acordou tarde com o pio agourento do tincuã. No entanto era dia feito
e a cerração já entrara pro buraco… O herói tremeu e apalpou o feitiço que
trazia no pescoço, um ossinho de piá morto pagão. Procurou o aruaí, desapa­recera.
Só o galo com a galinha brigando por causa duma aranha derradeira. Fazia um
calorão parado tão imenso que se escutava o sininho de vidro dos gafanho­tos.
Vei, a Sol, escorregava pelo corpo de Macunaíma, fazendo cosquinhas, virada em
mão de. moça. Era mal­vadeza da vingarenta só por causa do herói não ter se
amulherado com uma das filhas de luz. A mão de moça vinha e escorregava tão de
manso no corpo… Que vontade nos músculos pela primeira vez espetados depois
de tanto tempo! Macunaíma se lembrou que fazia muito não brincava. Água fria
diz que é bom pra es­pantar as vontades… O herói escorregou da rede, tirou a
penugem de teia vestindo todo o corpo dele e descendo até o vale de Lágrimas
foi tomar banho num sacado perto que os repiquetes do tempo-das-águas ti­nham
virado num lagoão.

Macunaíma depôs com
delicadeza os legornes na praia e se chegou pra água. A lagoa estava toda cober­ta
de ouro e prata e descobriu o rosto deixando ver o que tinha no fundo. E
Macunaíma enxergou lá no fun­do uma cunha lindíssima, alvinha e padeceu de mais
vontade. E a cunha lindíssima era a Uiara.

Vinha chegando assim como
quem não quer, com muitas danças, piscava pro herói, parecia que dizia —
“Cai fora, seu nhonhô moço!” e fastava com muitas danças assim como
quem não quer. Deu uma vontade no herói tão imensa que alargou o corpo dele e a
boca umideceu:

— Mani!. . .

Macunaíma queria a dona.
Botava o dedão n’água e num átimo a lagoa tornava a cobrir o rosto com as teias
de ouro e prata. Macunaíma sentia o frio da água, retirava o dedão.

Foi assim muitas vezes. Se
aproximava o pino do dia e Vei estava zangadíssima. Torcia pra Macunaíma cair
nos braços traiçoeiros da moça do lagoão e o herói tinha medo do frio. Vei
sabia que a moça não era moça não, era a Uiara. E a Uiara vinha chegando outra
vez com muitas danças. Quê boniteza que ela era!… Mo­rena e coradinha que-nem
a cara do dia e feito o dia que vive cercado de noite, ela enrolava a cara nos
ca­belos curtos negros como as asas da graúna. Tinha no perfil duro um narizinho
tão mimoso que nem servia pra respirar. Porém como ela só se mostrava de frente
e festava sem virar Macunaíma não via o buraco no cangote por onde a pérfida
respirava.. E o herói inde­ciso, vai-não-vai. Sol teve raiva. Pegou num
rabo-de-tatu de calorão e guascou o lombo do herói. A dona ali, diz-que abrindo
os braços mostrando a graça fe­chando os olhos molenga. Macunaíma sentiu fogo
no espinhaço, estremeceu, fez pontaria, se jogou feito em cima dela, juque! Vei
chorou de vitória. As lágrimas caíram na lagoa num chuveiro de ouro e de ouro.
Era o pino do dia.

Quando Macunaíma voltou na
praia se percebia que brigara muito lá no fundo, Ficou de bruços um tem­pão
coma vida dependurada nos respiros fatigados. Es­tava sangrando com mordidas
pelo corpo todo, sem per­na direita, sem os dedões sem os côcos-da-Bahia sem
orelhas sem nariz sem nenhum dos seus tesouros. Afinal pôde se erguer. Quando
deu tento das perdas teve ódio de Vei. A galinha cacarejava deixando um ovo na
praia. Macunaíma pegou nele e chimpou-o no carão feliz da  Sol. O ovo esborrachou bem nas bochechas
dela que sujou-se de amarelo pra todo o sempre. Entardecia.

Macunaíma sentou numa lapa
que já fora jaboti nos tempos de dantes e andou contando os tesouros per­didos
em baixo d’água. E eram muitos, era uma perna os dedões, eram os côcos-da-Bahia
eram as orelhas os dois brincos feitos com a máquina pathek e a máquina
smith-wesson, o nariz todos esses tesouros… O herói pulou dando um grito que
encurtou o tamanho do dia. As piranhas tinham comido também o beiço dele e a
muiraquitã! Ficou feito louco.

Arrancou uma montanha de
timbó de assacú de tingui de canambí, todas essas plantas e envenenou pra
sempre o lagoão. Todos os peixes morreram e ficaram boiando com a barriga pra
cima, barrigas azuis barrigas amarelas barrigas rosadas, todas as barrigas
sara) pintando a face da lagoa. Era de-tardinha.

Então Macunaíma destripou
todos esses peixes, todas as piranhas e todos os botos, caqueando a muraquitã
nas barrigas. Foi uma sangueira mãe escorrendo sobre a terra e tudo ficou tinto
de sangue. Era bôca-da-noite.

Macunaíma campeava campeava.
Achou os dois brincos achou os dedões achou as orelhas os nuquiiri o nariz,
todos esses tesouros e prendeu todos nos lugares deles com sapé e cola
de peixe. Porém a perna e a muiraquitã não achou não. Tinham sido engolidos
pelo monstro Ururau que não morre com timbó nem pau. O sangue coalhara negro
cobrindo a praia e o lagoão. Era de-noite.

Macunaíma campeava campeava.
Soltava grite de lamentação encurtando com a bulha o tamanho da bicharada.
Nada. O herói varava o campo, saltando na perna só. Gritava:

— Lembrança! Lembrança da
minha marvada não vejo nem ela nem você nem nada!

E pulava mais. As lágrimas
pingavam dos olhinhos azuis dele sobre as florzinhas brancas do campo. As
florzinhas tingiram de azul e foram os miosótis. O herói não podia mais, parou.
Cruzou os braços num desespero tão heróico que tudo se alargou no espaço pra
conter o silêncio daquele penar. Só um mosquitinho raquitiquinho
infernizava inda mais a disgra do herói, zumbindo fininho: “Vim di
Minas… vim di Minas…”

Então Macunaíma não achou
mais graça nesta terra. Capei bem nova relumeava lá na gupiara do céu. Macunaíma
cismou inda meio indeciso, sem saber si morar no céu ou na ilha de
Marajó. Um momento pensou mesmo em morar na cidade da Pedra com o enérgico
Delmiro Gouveia, porém lhe faltou ânimo. Pra vi­ver lá, assim como tinha vivido
era impossível. Até era por causa disso mesmo que não achava mais graça na
Terra… Tudo o que fora a existência dele apesar de tantos casos tanta
brincadeira tanta ilusão tanto sofri: mento tanto heroísmo, afinal não fora
sinão um se dei­xar viver; e pra parar na cidade do Delmiro ou na ilha de
Marajó que são desta Terra carecia de ter um sen­tido. E ele não tinha coragem
pra uma organização. Decidiu:

— Qua o quê!… Quando urubu
está de caipora o de baixo caga no de cima, este mundo não tem jeito mais e vou
pro céu.

Ia pro céu viver com a
marvada. Ia ser o brilho bonito mas inútil porém de mais uma constelação. Não
fazia mal que fosse brilho inútil não, pelo menos era o mesmo de todos esses
parentes de todos os pais dos vivos da sua terra, mães pais manos cunhas
cunhadas cunhatãs, todos esses conhecidos que vivem agora do brilho inútil das
estrelas.

Plantou uma semente do cipó
matamatá, filho-da-luna, e enquanto o cipó crescia agarrou numa itá pontuda
escreveu na lage que já fora jaboti num tempo muito de dantes:

 

NÃO VIM NO MUNDO PARA SER
PEDRA

 

A planta já tinha crescido e
se agarrava numa pon­ta de Capei. O herói capenga enfiou a gaiola dos legornes
no braço e foi subindo pro céu. Cantava triste:

— “Vamos dar a
despedida,

— Tapera,

 Taleqüal o passarinho,.

— Tapera,

Bateu asa foi-se embora,

— Tapera,

Deixou a pena no ninho.

— Tapera…”

 

Lá chegando bateu na maloca
de Capei. A Lua desceu no terreiro e perguntou:

— Quê que quer, saci?

— Abênção minha madrinha, me
dá pão com fa­rinha?

Então Capei reparou que não
era saci não, era Macunaíma o herói. Mas não quis dar pensão pra ele, se
lembrando do fedor antigo do herói. Macunaíma enfe­zou. Deu uma porção de
munhecaços na cara da Lua. Por isso que ela tem aquelas manchas escuras na
cara.

Então Macunaíma foi bater na
casa de Caiuano­gue, a estrêla-da-manhã. Caiuanogue apareceu na janelinha pra
ver quem era e confundida pelo negrume da noite e a capenguice do herói,
perguntou:

— Que é que quer, saci?

Mas logo pôs reparo que era
Macunaíma o herói e nem esperou resposta se lembrando que ele cheirava

muito fedido.

— Vá tomar banho! falou
fechando a janelinha.

Macunaíma tornou a enfezar e
gritou.

— Vem pra rua, cafajeste!

Caiuanogue raspou um susto
enorme e ficou tre­mendo espiando pelo buraco da fechadura. Por isso que a
bonita da estrelinha é tão pecurrucha e tremelica tanto.

Então Macunaíma foi bater na
casa de Pauí-Pódole, o Pai do Mutum. Pauí-Pódole gostava muito dele porque
Macunaíma o defendera daquele mulato da maior mulataria na festa do Cruzeiro.
Mas exclamou:

— Ah, herói, tarde piaste!
Era uma honra grande pra mim receber no meu mosqueiro um descendente de jaboti,
raça primeira de todas.. . No princípio era só o Jaboti Grande que existia na
vida… Foi ele que no silêncio da noite tirou da barriga um indivíduo e sua
cunha. Estes foram os primeiros fulanos vivos e as pri­meiras gentes da vossa
tribo… Depois, que os outros vieram. Chegaste tarde, herói! Já somos em doze
e com você a gente ficava treze na mesa. Sinto muito mas chorar não posso!

— Que pena, sinh’Helena! que
o herói exclamou. Então Pauí-Pódole teve dó de Macunaíma. Fez uma feitiçaria.
Agarrou três pauzinhos jogou pro alto fez encruzilhada e virou Macunaíma com
todo o estenderete dele, galo galinha gaiola revólver relógio, numa constelação
nova. É a constelação da Ursa Maior.

Dizem que um professor
naturalmente alemão an­dou falando por aí por causa da perna só da Ursa Maior
que ela é o saci… Não é não! Saci inda pára neste mundo espalhando fogueira e
traçando crina de bagual… A Ursa Maior é Macunaíma. É mesmo o herói capenga
que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo,
foi-se embora e ban­za solitário no campo vasto do céu.



EPÍLOGO

 

Acabou-se a história e
morreu a vitória.

Não havia mais ninguém lá.
Dera tangolo-mangolo na tribo Tapanhumas e os filhos dela se acabaram de um em
um. Não havia mais ninguém lá. Aqueles lu­gares aqueles campos furos puxadouros
arrastadouros meios-barrancos, aqueles matos misteriosos, tudo era a solidão do
deserto… Um silêncio imenso dormia a beira-rio do Uraricoera.

Nenhum conhecido sobre a
terra não sabia nem falar na falta da tribo nem contar aqueles casos tão
pançudos. Quem que podia saber do herói? Agora os manos virados na sombra
leprosa eram a segunda cabe­ça do Pai do Urubu e Macunaíma era a constelação da
Ursa Maior. Ninguém jamais não podia saber tanta história bonita e a fala da
tribo acabada. Um silêncio imenso dormia a beira-rio do Uraricoera.

Uma feita um homem foi lá.
Era madrugadinha e Vei mandara as filhas visar o passe das estrelas. O deserto
tamanho matava os peixes e os passarinhos de pavor e a própria natureza
desmaiara e caíra num gesto largado por aí. A mudez era tão imensa que
espichava o tamanhão dos paus no espaço. De repente no peito doendo do homem
caiu uma voz da ramaria:

— Currr-pac, papac!
currr-pac, papac!…

O homem ficou frio de susto
feito piá. Então veio brisando um guanumbi e boleboliu no beiço do homem:

— Bilo, bilo, bilo, lá…
tetéia!

E subiu apressado pras
árvores. O homem seguin­do o vôo do guanumbi, olhou pra cima.

— Puxa rama, boi! o
beija-flor se riu. E escafedeu.

Então o homem descobriu na
ramaria um papagaio verde de bico dourado espiando pra ele. Falou:

— Dá o pé, papagaio.

O papagaio veio pousar na
cabeça do homem e os dois se acompanheiraram. Então o pássaro principiou
falando numa fala mansa, muito nova, muito! que era canto e que era cachiri com
mel-de-pau, que era boa e possuía a traição das frutas desconhecidas do mato.

A tribo se acabara, a
família virará sombras, a ma­loca ruíra minada pelas saúvas e Macunaíma subira
pro céu, porém ficara o aruaí do séquito daqueles tempos de dantes em que o
herói fora o grande Macunaíma im­perador. E só o papagaio no silêncio do
Uraricoera pre­servava do esquecimento os casos e a fala desaparecida. Só o
papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói.

Tudo ele contou pro homem e
depois abriu asa ru­mo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei
pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas
folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a
boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói
de nossa gente.

Tem mais não.

 

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