A LUNETA MÁGICA
Joaquim Manuel de Macedo
© Copyright 2017, VirtualBooks Editora e Livraria Ltda. 1ª edição:
Publicado pela primeira vez em 1869. Capa: VBO Todos os
direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98. Joaquim Manuel de Macedo
(1820 —1882) A LUNETA MÁGICA.
Joaquim Manuel de Macedo. Pará de Minas, MG, Brasil: VirtualBooks Editora, 2017. ISBN: 9781521845738 – CDD- B869 Literatura brasileira. Romance.
PRIMEIRA
PARTE
INTRODUÇÃO
I
Chamo-me Simplício e tenho
condições naturais ainda mais tristes do que o meu nome.
Nasci sob a influência de uma
estrela maligna, nasci marcado com o selo do infortúnio.
Sou míope; pior do que isso,
duplamente míope física e moralmente.
Miopia física:- a duas polegadas de
distância dos olhos não distingo um girassol de uma violeta.
E por isso ando na cidade e não
vejo as casas.
Miopia moral:- sou sempre escravo
das ideias dos outros; porque nunca pude ajustar duas ideias minhas.
E por isso quando vou às galerias
da câmara temporária ou do senado, sou consecutiva e decididamente do parecer
de todos os oradores que falam pró e contra a matéria em discussão.
Se ao menos eu não tivesse
consciência dessa minha miopia moral!… mas a convicção profunda de infortúnio
tão grande é a única luz que brilha sem nuvens no meu espírito
Disse-me um negociante meu amigo
que por essa luz da consciência represento eu a antítese de não poucos varões
assinalados que não tem dez por cento de capital da inteligência que ostentam,
e com que negociam na praça das coisas publicas.
— Mas esses varões não quebram,
negociando assim?… perguntei-lhe.
— Qual! são as coisas públicas que
andam ou se mostram quebradas.
— E eles?…
— Continuam sempre a negociar com o
crédito dos tolos, e sempre se apresentam como boas firmas.
Na cândida inocência da minha
miopia moral não pude entender se havia simplicidade ou malícia nas palavras do
meu amigo.
II
Aos doze anos de idade achei-me no
mundo órfão de pai e de mãe.
Eu estava acostumado a ver pelos
olhos de minha mãe, a pensar pela inteligência de meu pai; fiquei, pois, nas
trevas dos olhos e da razão.
Meus pais eram ricos, e deviam
deixar-me, deixaram-me por certo, avultada fortuna; quanto, não sei: meu irmão
mais velho que tomou conta dos meus bens, minha tia Domingas que tomou conta da
minha pessoa, e minha prima Anica que se criou comigo e que é um talento raro,
pois até aprendeu latim, hão de saber disso melhor do que eu.
Dizem eles que a minha fortuna vai
a vapor, ignoro se para trás se para diante, porque os barcos e carros a vapor
avançam e recuam à custa do gás impulsor; mas o meu amigo negociante
declarou-me que por certas razões que não compreendo, nas quais, também não sei
porque, entra a pessoa da prima Anica, devo confiar muito no zelo da tia
Domingas.
E eu confio nela o mais possível;
porque é uma senhora que anda sempre de rosário e em orações e que tendo alguma
coisa de seu, apesar de tão religiosa, nua deu nem dá um vintém de esmola ao
pobre que lhe bate à porta, pretextando sempre que tem muita vontade de fazer
esmolas evangélicas; porem que ainda não achou meio de esconder da mão esquerda
o óbolo da caridade pago pela mão direita.
Estou tão profundamente convencido
da pureza dos sentimentos religiosos da tia Domingas, que desde que ela tomou
conta de mim, vivo em sustos de que algum dia a piedosa senhora mande amputar a
mão esquerda para conseguir dar esmolas com a mão direita, conforme o preceito
evangélico de que em sua santa severidade não quer prescindir.
III
Aos dezoito anos de idade comecei a
compreender todas as proporções da minha desgraça dupla: chorei, lastimei-me,
pedi médicos para os meus olhos, e mestres para minha inteligência.
A força de muito rogar e bradar
consegui que me dessem uns e outros.
Os mestres ganharam o seu dinheiro
e eu quase que perdi todo o meu tempo com eles; porque bem pouco lucrei no
empenho de combater a minha miopia moral.
O mais hábil dos meus professores
declarou-me no fim de quatro anos que um mancebo tão rico de cabedais como eu
era, podia bem reputar-se literato de avantajado merecimento, sabendo ler,
escrever e as quatro espécies da aritmética.
Convencido sempre que só me diziam
a verdade, e tendo conseguido saber, aos vinte e dois anos de idade, ler mal,
escrever pior, e fazer com a maior dificuldade as quatro espécies da
aritmética, mandei embora o hábil professor, e fiquei literato.
Os médicos falaram-me em córnea
transparente, em cristalino, em raios luminosos muito convergentes, em retina,
e não sei em que mais, e acabaram por dizer-me que aos sessenta, ou setenta
anos de idade, eu havia de ver muito melhor.
Dos médicos alopatas recebi esta
consolação de melhor visão aos setenta anos, se estivesse vivo; dos homeopatas
sei se me deram o cristalino em glóbulos, ou os raios convergentes em tintura;
mas o fato é que em resultado de dez conferências e de vinte tratamentos
diversos não vi uma linha adiante do que via, e apenas posso gabar-me de não
ter ficado cego com a luz de tanta ciência.
O meu desgosto foi aumentando com
os anos.
Meu irmão, que é um santo homem, me
dizia:
— Consola-te, mano; tudo tem
compensação: a tua miopia é uma desgraça; mas porque és míope não vês como são
bonitos os bordados da farda de um ministro de estado, e portanto não te
exasperas por não poder ostentá-los.
Convém saber que meu irmão saiu
eleito deputado na última designação constitucional, e mandou fazer a sua libré
parlamentar ainda antes de ser reconhecido representante legítimo do povo
soberano que anda de paletó e de jaqueta.
Deste fato e da sua observação
concluí eu em minha simplicidade que o mano Américo vive doido por ser ministro
para fazer o bem da pátria.
E não é só ele; a prima Anica já
sonhou três vezes com mudança de gabinete, e com correios e ordenanças à porta
de nossa casa.
Inocente menina! é um anjo: os seus
sonhos são piedosos como as vigílias da tia Domingas, sua mãe, e patrióticos,
como os cálculos o mano deputado; ela diz com virginal franqueza que tem meia
dúzia de parentes pobres a arranjar, quando o mano Américo for ministro.
Meia dúzia só!… que abnegação e
que desinteresse da prima Anica!
Ela está se tornando tão
profundamente religiosa como a tia Domingas.
Já fez um ponto de fé deste
suavíssimo princípio: “a caridade deve começar por
casa”.
IV
O mano Américo tem sempre aberta
para mim uma fonte perene de consolações; persegue-me, porém, a infelicidade de
não saber apreciar bastante a sabedoria, que fala pelos lábios de meu irmão.
Já disse como ele me consolava da
minha miopia física; pois bem: a sua bondade ia além; quando me ouvia tristes
queixas da minha miopia moral, me apertava as mãos, e falava assim:
— Agradece a Deus esse infortúnio;
estás livre de desgostos sem conta, de responsabilidades sem número, e de
tormentos sem tréguas; tu não sabes pensar; mas eu penso por ti e por mim; tu
mal dirigirias os teus negócios; mas eu dirijo os teus e os meus negócios; tu
sofres muito menos do que eu sofro; porque eu sofro por ti e por mim.
Que alma santa a de meu irmão!
E todavia quando isso ouço,
lembra-me que o mano Américo foi o testamenteiro e inventariante nomeado por
meus pais, e que até hoje está de posse das minhas heranças, que ele emprega e
zela, certamente só em meu proveito, mas sem me dizer como, nem jamais dando-me
contas; e portanto pensando, negociando e sofrendo por mim o meu pobre irmão!
Dói-me tamanho sacrifício! ah! se
eu conseguisse tomar para mim metade dos trabalhos e sofrimentos do mano
Américo… a minha metade só… para ele não sofrer por mim!
Porém se por acaso manifesto de
leve esse desejo, alvoroça-se o amor fraternal, meu irmão se enternece, me
abraça e diz:
— Inocente Simplício! não serei tão
egoísta que te abandone às ciladas dos homens sem consciência, que devorariam a
tua fortuna. A minha dedicação é na verdade pesada; mas é um dever e Deus a
abençoa.
Vejo-me, pois, obrigado a ficar
devendo ao mano Américo o favor de tomar conta da minha fortuna, e de
empregá-la por mim. E como é ingrata a humanidade! já cheguei a suspeitar que a
dedicação do mano é mais suave do que ele diz.
A primeira vez que me confessar hei
de perguntar ao padre, se Deus abençoa tais dedicações fraternais; é este um
ponto que deve ser esclarecido para que seja mais doce a submissão dos irmãos
míopes.
V
Minha tia também me faz ouvir
consolações, e sempre conforme as suas ideias religiosas.
Para ela a minha miopia física é um
imenso beneficio da providência, que assim menos exposto me deixou às tentações
do diabo, que ataca o pecador pelos olhos; e a minha miopia moral ainda mais
precioso dom, porque dos pobres de espírito é o reino do céu.
A lógica piedosa da tia Domingas
seria capaz de levá-la a rezar para que eu me tornasse surdo, mudo e paralítico
a fim de ser completa a minha bem-aventurança na terra.
Em consequência deste receio nunca
disse amém às consolações místicas de minha tia.
Ainda tenho uma terceira fonte de
consolações; essa, porem, ao menos é mais poética.
A prima Anica é perdida pelos
apólogos; quando pode explicar-se por meio deles, não se explica de outro modo:
o apólogo é o seu capricho de moça.
Além disso ninguém como ela se
empenha tanto e mais habilmente em agradar-me; sabendo que quase não vivo pelos
olhos, procura recomendar-se, açucarando a voz, e usando de perfumes
suavíssimos.
As vezes e quando tem ocasião
faz-me também ouvir apólogos.
Um dia em que como de costume
lastimava a minha desdita, que então nem me deixava distinguir as flores do
jardim, onde ambos passeávamos, colheu ela duas flores, uma rosa d’Alexandria,
e uma angélica, e deu-mas para que eu as reconhecesse.
Aproximei muito dos olhos as duas
flores para apreciar suas cores e um espinho da rosa feriu-me a ponta do nariz,
e aí ficou preso.
— Repara no que te ensina a rosa,
disse Anica; repara e compreende quanto te pode aproveitar a miopia: as flores
que mais almejas distinguir e admirar não são as do nosso jardim, são as que
enfeitam e enchem de magia os salões das sociedades, que não frequentas, são as
jovens formosas com que sonhas em sonhos doidos de amor ainda mais doido;
essas, porém, assemelham-se à rosa d’Alexandria, tem espinhos que te
despedaçariam o coração.
Anica interrompeu-se por breves
instantes para suspirar; eu ouvi o suspiro, e ia perguntar-lhe, na minha
simplicidade, se estava incomodada, quando ela continuou, dizendo:
— Contenta-te, pois, com a angélica
que é suave ao tacto e que te pode embalsamar a vida do retiro com o perfume do
amor e da virtude.
Fiquei mudo: tinha compreendido o
apólogo apesar da minha miopia moral.
Anica faz talvez um esforço para
vencer o pudor e perguntou-me:
— Sabes quem é a angélica?…
Instintivamente me fingi mais pobre
de espírito do que sou, e respondi perguntando:
— A angélica? pois não é aquela
flor que me deste?…
Deixamos o jardim: eu saia dele com
um espinho de roseira na ponta do nariz, e Anica provavelmente com o espinho da
minha indiferença no seio.
Senti que chegara a ser cruel; mas
eu nem sabia se Anica era bonita ou feia; porque nunca pudera ver-lhe
distintamente o rosto: se fosse bonita não seria o seu amor a mais doce
consolação para mim?
Tive uma idéia inspirada metade
pela gratidão, metade pela curiosidade maliciosa, a idéia de ver se Anica era
bonita ou feia, se me seria possível amá-la. Chegando a sala, sentei-me e pedi
à prima que me tirasse o espinho da ponta do nariz.
A inocente moça prestou-se a fazer
a fácil operação: armou-se da tesoura mais delicada que achou, com os macios
dedos da mão esquerda segurou-me o nariz, com a mão direita dirigiu a ponta da
tesoura, e cuidadosamente ocupada em extrair-me o espinho, chegou seu rosto tão
perto dos meus olhos que mais não era possível.
Durante três ou quatro minutos vi,
distingui, apreciei suficientemente o rosto de Anica… não era o rosto com que
eu sonhava, não era o das descrições das heroinas dos romances que me tinham
lido… não era.
O rosto da prima Anica e muito
respeitável; mas em consciência esta muito longe de ser angélico.
A prova de que é muito respeitável
esta em que não tive necessidade de expelir de minha alma o menor desejo
desrespeitoso, achando-se esse rosto por alguns minutos ainda mais peito dos
meus lábios, do que dos meus olhos.
A prova concludentíssima de que
Anica não é angélica, está em que a operação me pareceu tão dolorosa como
demorada.
Anica tivera a bondade de fazer-me
ouvir a significação moral do seu apólogo da rosa d’Alexandria e da angélica. O
apólogo não lhe aproveitou; mas a culpa disso não esta em mim.
Ofereço agora, não a Anica, porque
me pesaria molestá-la, porém às senhoras a quem o caso possa interessar, a
moralidade da história da extração do espinho da ponta do meu nariz.
É uma pequenina história que também
pode correr, como apólogo.
A moralidade é esta:
Moça que não for bonita não se
preste a extrair espinho da ponta do nariz de homem míope.
VI
No princípio do ano corrente de
186… o excelente sistema de governo que nos rege, deu-me o sinal da minha
regeneração civil; e política.
Sem que o mano Américo, a tia
Domingas e a prima Anica disso previamente soubessem, fui incluído na lista dos
jurados da minha freguesia; quando chegou-nos a notícia do fato consumado houve
em nossa casa uma espécie de consternação.
Até que ponto chega o amor dos
parentes, a influência do sangue da família! meu irmão, minha tia, e minha
prima sobressaltaram-se ante o perigo que eu corria por me haverem reconhecido
dotado de senso comum!
Era certamente porque o mano
Américo via que não lhe era possível ser também jurado por si e por mim. Eu ia
começar a ficar exposto as ciladas do mundo e dos homens sem consciência.
O juiz de direito que presidira a
revisão da lista dos jurados, resolvera um problema até então intrincadíssimo,
declarando que eu podia ser jurado, e que por consequência eu tinha senso
comum, condição exigida pela lei.
Eu fui alheio a tudo isso: estava
mesmo convencido pelo mano Américo e pela tia Domingas que ate o senso comum me
faltava; confesso, porém, que mudei de opinião com íntima e mal disfarçada
alegria.
Um juiz de direito não pode julgar
de modo torto: ao menos tem a seu favor a presunção de direito, que em falta de
todos os outros fundamentos é fundamento que supre todos os outros; para mim
que não sei aprofundar as coisas, um juiz de direito é sempre tão infalível na
ciência do direito, como um padre na ciência do latim.
Por consequência fiquei convencido
de que tinha senso comum.
Ninguém faz idéia do profundo
contentamento que me deu esta convicção.
E não era para menos.
O nosso código é necessariamente muito
sábio e muito previdente: exige que para ser jurado o cidadão brasileiro tenha
apenas senso comum, se exigisse bom senso haveria desordem geral, porque
segundo tenho ouvido dizer, muitos dos que têm feito e dos que fazem leis,
muitos dos que as deviam mandar e mandam executar, e muitos dos que têm por
dever aplicar as leis, não poderiam ser jurados por falta do bom senso!
Dizem-me isso, e asseguram-me que o
bom senso é senso raro.
Eu não entendo estas coisas; mas
atendendo ao que me dizem, chego a crer que foi por essa razão que a lei não
impôs a condição do bom senso nem para que o cidadão fosse jurado, nem para que
fosse magistrado, deputado, senador, ministro, e conselheiro de estado.
Asseveram-me ainda que se assim não
fosse, que, se se exigisse a condição do bom senso para o exercício daquelas
altas delegações e cargos do Estado, haveria quatro quintas partes do mundo
oficial inteiramente fora da lei.
Já confessei que não entendo destes
graves assuntos; como, porém, acredito piamente em tudo quanto me dizem,
sinto-me cheio de orgulho pela convicção legalmente autorizada de que tenho
senso comum, e apoderado de irresistível vaidade com a presunção de que sou
igual a muitos magistrados, deputados, senadores, ministros e conselheiros de
estado, pela falta de bom senso ou senso raro.
VII
Na primeira convocação do júri o
meu nome foi o primeiro que saiu da urna. Este sucesso deu que pensar e que
falar em casa.
A tia Domingas levou um dia inteiro
a repetir: “o primeiro na primeira… “; passou assim o dia sem
rezar, nem sei se rezou de noite; mas na manhã seguinte propôs-me comprar de
sociedade comigo um bilhete de loteria.
Eu não cabia em mim de contente; o
mano Américo hesitava, porém enfim conveio em que eu entrasse no exercício do
meu direito de cidadão jurado.
Creio que meu irmão procedeu assim
pelo respeito que consagra às leis, como me assegurou, embora a prima Anica me
dissesse em particular que o segredo da sua condescendência esteve no receio de
pagar multas… por mim.
As senhoras são de ordinário muito
maliciosas; acham graça em sê-lo: Anica tem esse defeito; mas, diga ela o que
quiser, eu penso que o mano Américo é simples e puro, como Adão antes de comer
do fruto proibido.
Compareci oportunamente ao tribunal
de que a sorte me fizera membro: a sorte estava declarada por mim: logo no
primeiro processo o meu nome foi ainda o primeiro que saiu da urna, e não
pareci suspeito nem ao advogado do réu, nem ao da justiça pública.
Prestei a maior atenção à leitura
do processo, às testemunhas e aos debates, e quando entrei para a sala secreta
achava-me plenamente convencido pelo promotor de que o réu merecia a forca;
pelo advogado do réu de que este era credor de uma coroa cívica, e pelo juiz de
direito que resumira a acusação e a defesa, de que o réu tinha jus à forca e a
coroa.
Na consulta secreta sentei-me junto
de um bom velho que, vendo-me completamente as escuras em uma questão de
atenuantes e agravantes, quis iluminar o meu espírito, fazendo-me ler uns
artigos do seu Manual dos Jurados.
Não tive remédio, senão
confessar-lhe as enormes proporções da minha miopia física Ler era para mim um
martírio: pedi-lhe que me lesse os artigos do seu Manual.
— Pobre moço,
disse-me ele; já procurou o Reis?…
— O Reis? quem e o Reis?
— Quem é o Reis?… pois um míope ignora
quem seja o Reis?… c Reis é o homem-luz, o homem-fonte de visão para os
míopes se ele não o fizer ver, é porque o senhor é cego.
— Mas eu sou quase cego.
— O Reis anula-lhe o quase,
e dá-lhe o dom da vista perfeita; o Reis é o graduador de vidros miraculosos.
O senhor tem sido deixado em abandono por sua família
— Pelo que me diz, começo a ter
desconfianças disso.
— Escute: eu vou contar-lhe
maravilhas em relação ao Reis
— Mas o processo?
— Que nos importa semelhante
massada?… deixá-los falar, e discutir; nós já sabemos como havemos de votar.
— O senhor como vota?
— Votarei de modo que o réu seja
necessariamente absolvido.
— Então tem certeza de que ele é
inocente?
— Deve sê-lo sem a menor dúvida.
— Por quê?…
— Porque não menos de dois
compadres e de três amigos meus se empenharam para que eu o absolvesse.
— E tem razão: não posso acreditar
que dois compadres e três amigos de um juiz fizessem a este a injúria de
pedir-lhe uma sentença injusta, julgando-o capaz de um prejuízo e de um
sacrifício de consciência.
— Deveras?…
— O que me parecia, era que
semelhantes pedidos e empenhos deviam ser exclusivamente reservados para
servirem de luz aos jurados pobres de espírito como eu; porque os inteligentes,
como o senhor, não precisam de quem lhes dirija as consciências.
O velho pôs-se a rir, não sei de
que; provavelmente eu tinha dito alguma necedade, e começava a sentir-me tomado
de vexame e de confusão, quando o presidente chamou-nos a votar em resposta aos
quesitos do juiz de direito.
O bom velho, meu novo amigo,
exerceu naquele conselho de jurados os direitos do mano Américo; porque votou
por si e por mim.
O réu foi absolvido pela maioria de
dois votos, e por consequência o empenho de dois compadres e de três amigos e a
minha miopia moral decidiram da sentença.
Sai do júri com a convicção de que
ou não tenho senso comum, ou é preciso mais alguma coisa além do senso comum
para que o cidadão seja bom jurado.
VIII
Quando cheguei a porta da rua,
senti que alguém me tomava o braço: era o bom velho.
— Quero levá-lo já à casa do Reis,
disse-me ele.
Apertei-lhe a mão com o. mais vivo
reconhecimento e deixei-me conduzir, hesitando entre a esperança e a dúvida.
Enquanto caminhávamos, o meu
condutor falava e eu o ouvia curioso:
— O estabelecimento do Reis é um representante
do espírito do século: começou plebeu e já está nobre pela constância no
trabalho e pelo encanto do progresso; não sei se o Reis tem sido agraciado;
pouco importa o homem; mas a casa, a indústria já tem quatro condecorações
nobiliárias.
— E o que faz o Reis?
— Dá, reproduz os meios conhecidos,
aperfeiçoa-os e inventa novos para se fazer a paz e a guerra, a guerra, dando
precisão, segurança às pontarias das peças de artilharia, a paz, oferecendo
balanças e níveis de todas as qualidades, alguns dos quais devem poder marcar o
peso e o nível dos interesses de quaisquer beligerantes, e além desses os mais
perfeitos instrumentos para demarcação dos limites dos Estados; governa nos
mares com as melhores bússolas; é senhor do sol e da lua, e de todos os
planetas pelos mais fortes telescópios; conhece e domina os animais invisíveis
pela força engrandecedora dos microscópios, vê o fundo tenebroso das minas, tem
o cetro da física o império da química a soberania da eletricidade pela magia
dos seus instrumentos, marca o tempo, prediz o calor e a chuva, e chama-se Reis
porque não é um rei; mas tem o poder de muitos reis.
Eu escutava boquiaberto a concisa
explicação de tão extraordinária potestade humana, e quando o bom velho se
interrompeu para respirar, perguntei-lhe:
— E um homem, como este, certamente
já tem sido muito aproveitado pelo nosso governo?!…
— Não; o nosso governo
encomendou-lhe um dia o mais perfeito pince-nez
político: 0 Reis fez obra de mestre, um pince-nez, que por um
dos vidros deixava ler as lições do passado e pelo outro os perigos do futuro;
mas o pince-nez não achou nariz de ministro, em que se
ajeitasse, e foi desprezado.
— Mas então o Reis que é? é
mágico?…
— Não sei; suponha que seja o
diabo; o certo é que ele tem, e isso é o que mais lhe importa, o segredo de dar
vista de águia aos míopes mais infelizes, aos míopes quase cegos.
— Por que meio, meu amigo?
— Por meio de vidros, e de
cristais, cuja concavidade encerra sobrenatural magia; por meio de lunetas de
forca excepcional.
— E o governo esquece homem
semelhante?… há ministro que não se apresse a comprar uma luneta dessas?…
O velho desatou a rir:
perguntei-lhe qual era o motivo da sua hilaridade, e ele me respondeu assim:
— O senhor é sem o pensar, sem o
querer, cruelmente epigramático: falei-lhe em luneta para os míopes e o senhor
procurou logo saber, se os nossos ministros de estado não usavam dessas
lunetas!!!
A simplicidade de um pobre de
espírito está sempre exposta às falsas interpretações dos maliciosos.
Eu não era capaz de pôr em dúvida a
vidência, a ciência e a sapiência de um homem que chega a ser ministro de
estado.
O fato é a presunção do direito, e
para mim a infalível resolução do problema.
Não pode haver cidadão que seja
chamado a tomar, e que tome sobre seus ombros a imensa responsabilidade do
governo do Estado sem que seja reconhecido e se reconheça na altura de tão
grandiosa missão.
Em minha inocência não posso pensar
de outro modo.
Para mim quem e ministro de estado
é sábio, ou pelo menos estadista.
É por isso que até hoje, quando me
diziam, que no carro que passava, ia um ministro de estado, eu tirava o meu
chapéu e me conservava descoberto em sinal de respeito até que me asseguravam
que o próprio ordenança do ministro já estava longe.
Porque no próprio ordenança eu
ainda admiro e venero os reflexos da sabedoria do ministro.
IX
Chegamos, disse-me o velho.
Um tremor nervoso agitou-me o corpo
todo; mas ajudado pelo meu amigo subi dois degraus de pedra e achei-me no
armazém do Reis.
Não pude distinguir nem a casa, nem
o dono dela; não precisei porém de olhos para sentir imediatamente a
amabilidade do Reis.
O bom velho expôs as proporções da
minha miopia física e pediu remédio para ela; ouvi logo abrir gavetas, e em
breve começou o ensaio das mais fortes lunetas de vidro côncavo.
Reis desprezou os vidros dos
números mais altos das vinte e duas forças: principiou por fazer-me
experimentar um do grau quatro e perdeu completamente o seu tempo: deixou de
lado os vidros côncavos do grau três e deu-me uma luneta da forca número dois,
e ainda assim não pude ler o titulo de um livro que me apresentou, senão depois
que cheguei o livro a duas polegadas de distancia dos olhos.
— É muito míope disse ele.
E desceu enfim ou antes subiu ao
vidro do grau número um, o último, o non plus ultra dos vidros
côncavos, e recuou espantado, ouvindo-me dizer que não via mais nem menos.
— É incrível! exclamou.
— É portanto?… perguntei tão
abatido que nem pude acabar a frase.
— Não tenho recurso que lhe
aproveite, respondeu-me com tristeza profunda.
Deixei cair a cabeça sobre o peito:
a extrema esperança que eu concebera poucas horas antes, acabava de apagar-se
completamente; tive vontade de chorar e murmurei em tom queixoso:
— E todavia eu vinha tão cheio de
confiança! esperava tanto!
— Que quer?… o poder humano que é
o poder da ciência, ainda não foi além dos instrumentos que inutilmente
experimentou.
— Ah! é que o meu amigo chegou a
fazer-me acreditar que o senhor era mais do que um simples homem, era uma
espécie de ente sobrenatural, um mago, um realizador de impossíveis
principalmente em matéria de instrumentos óticos.
— O seu amigo que é também meu,
exagerou muito as minhas pobres condições; eu não creio na magia; mas se lhe
apraz consultar um pretendido mágico, é coisa fácil.
— Como?…
— Mandei contratar na Europa um
artista de merecimento superior para os trabalhos das minhas oficinas, e
chegou-me no ultimo paquete um armênio de habilidade extraordinária; mas que me
desagrada por ter pretensões a muito sabido em magia.
— Ainda uma esperança! exclamei; eu
me abraço com a mais tênue, com a mais dúbia, e até mesmo com a mais louca.
Onde está o armênio?…
— Em um pequeno gabinete no fundo
da casa, e ai dorme de dia e trabalha de noite e sempre só: é um maníaco.
— Poderia eu falar-lhe?
— Vou mandá-lo chamar.
— Entender-me-á ele?…
— Fala perfeitamente todas as
línguas em que lhe falam.
X
Entramos para a casa das oficinas;
porque o armênio não gostava de mostrar-se no armazém.
Vou dizer com inteira verdade o que
ouvi e o que o bom velho meu amigo viu e me referiu miudamente tanto nesta
ocasião, como à hora da meia-noite no gabinete misterioso,
Passados apenas alguns minutos o
armênio apareceu.
Era um homem alto, magro e com os
ossos muito salientes: trazia os cabelos crescidos, o rosto contraído, a face
macilenta enegrecida pela fumaça; suas mãos enormes estavam empoeiradas, e seus
dedos coroados por grandes unhas pareciam garras; vestia calças e blusa de pano
vermelho.
— Que pretendem de mim? perguntou
ele em português.
Não me animei a falar; o bom velho,
meu amigo, também não ousou fazê-lo: foi o Reis quem falou por mim, expondo a
minha Infelicidade, e a desesperada esperança que eu concebera.
O armênio se aproximou de mim,
considerou-me durante alguns instantes, examinou-me os olhos, apalpou-me os
ossos do crânio, e mostrando-se compadecido, disse:
— Não te quero mal, e o dia é mau;
hoje é sábado, e os gênios
sinistros predominam: escolhe outro
dia, e eu te darei a vista.
O Reis fez um movimento denunciador
da sua incredulidade.
O armênio encarou-o fixamente, e
depois perguntou-lhe:
— Duvida sempre?
— Não duvido, tenho a certeza de
que a sua magia não é impostura somente porque é lamentável mania.
O armênio desatou a rir; devia ser
um rir medonho, porque foi longa e estridente gargalhada, e porque, segundo me
disse o velho, ele não tinha um único dente.
— De que ri assim?… inquiriu o
Reis.
— Do triunfo e do mal: duvidam do
meu poder, e vou prová-lo: eis o triunfo; infiltrarei o ceticismo na alma de um
inocente mancebo eis o mal.
Tive um ímpeto de coragem, avancei
um passo e perguntei-lhe:
— Dar-me-ás a vista?…
— Sim, e mais penetrante do que a
desejas.
— Como?
— A experiência te responderá.
— E tu por que não?…
— Que te importa?… já o disse:
terás vista mais penetrante do que desejas e pensas; queres?
— Por que modo a terei?
— Dando-te eu uma luneta mágica.
— Quando?
— Hoje mesmo e amanhã, na hora em
que acabará o dia de hoje para começar o dia de amanhã, à meia-noite;
— E o teu prêmio?
— Será a tua próxima convicção de
que é melhor ser cego, do que ver demais.
— Aceito.
— É o mal.
— Aceito.
— É o gelo no coração!
— Aceito.
— E o ceticismo na vida!
— Aceito.
— Por que, criança?…
— Porque eu quero ver.
— Veras demais!
— Aceito.
— Volta à meia-noite.
XI
Quando, de volta da casa do Reis,
me achei a sós na solidão do meu quarto, comecei a sentir espinhos na
consciência, temores de incorrer em grande pecado por ir procurar na magia
remédio contra a minha miopia física.
Mas na luta do desejo ardente de
ver bem i distintamente, e dos meus escrúpulos religiosos que acabavam de
despertar, eu me reconheci tão fraco e tão pecador como Eva, porque pela
ambição da vista deixava-me sempre escravo das promessas do armênio, como Eva
se deixou escrava dos conselhos infernais da serpente pela ambição da ciência
do bem e do mal.
Hesitei: meditei, e desconfiado da
minha miopia moral, resolvi-me a consultar a opinião das três consciências mais
sãs que eu conhecia no mundo.
A consciência do mano Américo, o
homem que vivia por si e por mim, o tipo do desinteresse e da abnegação.
A consciência da prima Anica, a
jovem símbolo do amor mais dedicado, e sem sombras do egoísmo.
A consciência da tia Domingas, a
velha religiosa e santa, que vivia a rezar, e que era toda misticismo.
Dirigi-me ao mano Américo e
perguntei-lhe:
— Se encontrasses um mágico que te
oferecesse um talismã com a virtude de te assegurar a vitória em todas as
eleições de deputados, e de te fazer subir ao ministério, que farias?
Meu irmão respondeu-me logo:
— Para servir a minha pátria, e
dedicar-me todo a ela, eu aceitaria o talismã, e o traria sempre comigo.
Achei-me a sós com Anica, e
apressei-me a consultá-la:
— Se houvesse um feiticeiro, que
por artes diabólicas possuísse e te quisesse dar o segredo da formosura e da
vida em constante primavera até cem anos de idade, que farias?
— Abraçava o feiticeiro, tomava-lhe
o segredo e pedia-lhe que te desse, mesmo por artes diabólicas, melhores olhos
para que visses a minha formosura encantada.
Fui ter com a tia Domingas e
fiz-lhe a seguinte pergunta:
— Se lhe aparecesse um homem
suspeito de se ter vendido ao demônio, e lhe apresentasse o bilhete de loteria
em que uma hora antes houvesse saído a sorte grande, que faria?
— Somente pelo gosto de enganar o
demônio, comprava o bilhete, e recebendo o prêmio, gastava metade em obras de
misericórdia.
Estas respostas sossegaram o meu
espírito meu irmão que é a virtude cívica, a prima Anica que é a pureza
original, a tia Domingas que é a piedade zelosa, não acham que seja pecado
aproveitar-se alguém, com intenções inocentes, dos favores da magia, da
feitiçaria, e até do inimigo do homem.
A educação, os exemplos, as lições
da família formam o caráter do menino e preparam o seu futuro.
Eu já estou na lista dos jurados, e
já fiz parte de um conselho julgador; mas ainda sou menino pela minha miopia
moral: consultei toda a família sobre o meu caso de consciência e todos os meus
parentes votaram pela transação com a magia em proveito do interesse pessoal.
Serenaram pois os meus escrúpulos,
e fiquei resolvido definitivamente a ir ao gabinete do armênio à meia-noite em
ponto.
O bom velho, meu amigo, ficara de
esperar-me perto da nossa rasa para levar-me à do Reis.
Não me despi, nem me deitei e
quando ouvi o sinal de onze e meia horas dado pelo sino de S. Francisco de
Paula, sai do meu quarto, fui de manso até a porta da rua que um escravo fiel
me abriu, e logo depois tomei o braço do bom velho que me esperava e seguimos
para o nosso destino.
XII
Encontramos o Reis a porta do seu
armazém. Entramos.
Faltavam dez minutos para a
meia-noite.
— Vamos ter com o armênio, disse o
Reis.
E passou adiante para dirigir-nos.
Nunca maldisse tanto da minha
miopia física porque achava-me possuído da mais viva curiosidade, desejava e
não me era dado ver o que se ia passar, e apenas posso hoje relatar o que o bom
velho meu amigo, e o Reis também desde esse dia muito meu amigo, me contaram
muitas vezes com todos os pormenores.
Avançamos por um longo corredor; o
velho levava-me pela mão e a mão do velho estava enregelada e trêmula.
O Reis repetiu duas vezes:
— Isto não passa de uma comédia,
que nos fará rir amanhã: a verdadeira magia está nas maravilhosas realidades
das ciências físicas
Mas a voz do Reis estava um pouco
alterada e como se o seu coração palpitasse forte, e apressadamente por nervosa
agitação.
Chegamos ao fim do corredor, e o
Reis levantava a mão para bater a uma porta que nos ficava ao lado esquerdo,
quando esta imediatamente se abriu.
Os meus dois companheiros recuaram
um passo; eu não recuei porque não vi coisa alguma.
— Como é bom não ver! disse uma voz
Cavernosa.
XIII
O gabinete do armênio estava todo
pintado de negro, tendo em branco os caracteres especiais de todos os dias da
lua marcados pelas vinte duas chaves do Tarot e pelos sinais dos sete planetas;
no meio do teto também negro via-se a figura do pentagrama em vermelho
vivíssimo.
No fundo do gabinete uma mesa
servia de altar da magia; junto a ela uma pele de leão tapizava o chão, imenso
pano vermelho cobria completamente a mesa, e nesse pano eram mais de cem as
figuras cabalísticas pintadas em negro
Sobre o altar maldito descansavam
os instrumentos da magia e entre outros a vara mágica, a espada, a taça e a
lâmpada; a um lado, no chão, estava a trípode. Globos, triângulos, a figura do
diabo, a estrela de seis raios, o abracadabra, as combinações do triângulo, e
uma infinidade de símbolos enchiam a mesa e o gabinete.
O armênio mágico vestia a roupa
própria do sábado, simples túnica cinzenta com caracteres bordados em seda cor
de laranja, tendo ao pescoço uma medalha de chumbo com o sinal cabalístico da
Saturno e as palavras ou nomes- Amalec, Aphiel, Zarabiel, e
trazia na cabeça um barrete triangular de cor branca com o pentagrama em cor
negra.
— Entrai, disse o armênio, tudo
está pronto.
Entramos no gabinete, que estava
cheio de luz; o armênio sentou-se na tripeça e nós ficamos de pé; ele se
concentrava; nós tremíamos.
De súbito o armênio levantou-se,
como cedendo a impulso irresistível, e quando ele se levantou os sinos deram o
sinal de meia-noite.
— É a hora, disse ele, e tomando a
espada, brandiu-a no ar, e as luzes se apagaram.
Ficamos em completa escuridão; mas
sentimos e compreendemos que o armênio se movia e laborava, como se estivesse
vendo tudo à luz do sol ao meio-dia.
No fim de alguns minutos a lâmpada
mágica lançou e manteve uma tênue flama que começou pálida e fraca, pouco e
pouco foi se tornando intensa e rubra, e da qual o armênio retirou a ponta da
espada, que pareceu tê-la acendido.
Logo depois ele tomou a lâmpada
entre suas mãos e deu alguns passos para os quatro lados do gabinete, parando
breves instantes em cada um dos lados, e estendendo os braços de cada vez na
direção de um dos quatro pontos cardeais, feito o que tornou a pôr a lâmpada no
seu lugar, e sobre ela colocou uma peça de ferro composta de três hastes que se
firmaram na mesa e que na sua parte superior se aproximavam e eram ligadas por
um anel de três correntes de ouro retorcidas, em cima do qual ele depositou um
simples vidro côncavo do grau mais fraco.
Em seguida ouvimo-lo exorcizar em
latim os espíritos elementares, e falar e evocar as ondinas, as salamandras, os
silfos e os gnomos; empregou assim meia hora pelo menos a entender-se com
invisíveis e duvidosos ou quiméricos seres.
Apenas acabou de falar, lançou
sobre o fogo pequenas porções de diagrídio, escamônea, pedra-ume, enxofre e
assa-fétida.
Resistimos às ondas do ativo
perfume que inundou o gabinete.
A flama da lâmpada tornara-se viva,
brilhantíssima, derramando tanta luz como se mil bicos de gás iluminassem a
pequena sala.
A operação mágica adiantava-se, o
armênio começou a exaltar-se e bradou com força: Cashiel! Schaltiel! Aphiel!
Zarabiel!…
E a flama da lâmpada redobrou de
intensidade, como se obedecesse à voz do mágico.
O gabinete parecia já arder em
ondas de luz tão deslumbrante e vivíssima que se diria o fulgor dos relâmpagos
demorado, continuado, sem intermitência.
De repente uma faísca se desprendeu
da flama da lâmpada e foi, como pequena seta de fogo vivo, cravar-se e
estremecer no fundo da concavidade do vidro que estava sobre o anel de ouro;
uma tênue bolha de vidro fervente agitou-se em torno da faísca que sem
apagar-se tomou a forma microscópica de uma salamandra, o gênio elementar do
fogo que banhava-se no fogo, brincava no fogo, aspirava e respirava fogo.
Mas o armênio tocou com a ponta da
espada na faisca que fazia ferver a bolha de vidro no fundo da concavidade, e
disse com acento dominador:
— Fica aí!
A salamandra microscópica
dobrou-se, como fugindo à ponta da espada, e o fogo da lâmpada de rubro que era
se tornou pálido.
— Fica ai! tornou ele com voz mais
forte ainda.
E a salamandra foi se mergulhando
na bolha de vidro fervente, e a flama da lâmpada principiou a vacilar.
— Fica aí! bradou o armênio pela
terceira vez.
E a salamandra desapareceu de todo
na bolha do vidro que se abateu e sumiu-se sem deixar vestígios, nem depressão
nem ruga na concavidade polida, e a espada que firme conservara a sua ponta,
onde brilhara a faisca mágica, obedecendo à mão do armênio se retirou.
Imediatamente a flama da lâmpada se
extinguiu, como ao sopro de um gênio invisível; reinou outra vez no gabinete
profunda escuridão, e logo ao começarem as trevas, pareceu que um suspiro quase
imperceptível movera o ar, mas tão de leve, tão sutilmente, como c vôo de uma
borboleta.
Era talvez a queixa extrema da
salamandra presa; porque ainda se ouviu a voz do armênio, que disse com império
de senhor:
— Fica aí, escrava!
Pouco depois iluminou-se de novo o
gabinete do armênio, que lançando algumas gotas de um liquido perfumado sobre o
vidro que expusera à operação cabalística, retirou este completamente frio do
anel de ouro, onde o havia colocado.
Sem dizer-nos uma só palavra, sem
parecer ocupar-se da nossa presença, o armênio armou o vidro em um aro de ouro,
e no ponto em que o aro circular se liga ao anel destinado ao cordão
pendurador, imprimiu sinistro selo, uma letra cabalística, com um sinete de
forma triangular, e enlaçou no anel da luneta um cordão finíssimo, em que se
entrançavam cabelos de todas as cores, e de diversos animais.
Estava terminada a mágica operação.
O armênio me entregou a luneta, e disse-me então:
— Triunfo, e faço mal; mas posso
prevenir o mal: criança! tu és inocente e bom, eu me compadeço de ti; escuta.
Recebi tremendo, a luneta, que
ainda apenas sentia pelo tacto e não tinha visto pelos olhos, e escutei o
armênio, que continuou a falar-me:
— Dou-te uma luneta mágica; veras
por ela, quanto desejares ver, verás muito: mas poderás ver demais. Criança!
dou-te um presente que te pode ser funesto: ouve-me bem! não fixas esta luneta
em objeto algum, e sobretudo em homem algum, em mulher alguma por mais de três
minutos; três é o número simbólico, e para ti será o número simples, o da visão
da superfície e das aparências; não a fixes por mais de três minutos sobre o
mesmo objeto, ou aborrecerás o mundo e a vida.
Eu estava todo trêmulo, e não sabia
que dizer.
O armênio disse ainda:
— Esta luneta é a maravilha da
magia: por ela verás demais no presente, e poderias ler no futuro; mas o teu
coração é bom, e a tua alma é pura, criança; além do número de três minutos
está a visão do mal, que o meu poder de mágico não te pode impedir; porque a
visão do mal é a vingança da salamandra escrava; mas a fixidade dessa luneta
além do número de treze minutos é a vidência do futuro, e essa eu ta impeço,
Cashiel! Schaltiell Aphiel! Zarabiel! eu ta impeço, criança louca: essa luneta
fixada além de treze minutos se quebrará em tuas mãos!
E tendo assim falado, empurrou-nos
rudemente para fora do gabinete, e trancou-nos a porta.
Voltamos espantados e mudos pelo
extenso corredor; o que se tinha passado era tão maravilhoso que nos estava
impondo a eloquência sublime do silêncio.
Chegados ao armazém os meus dois
amigos, o bom velho e o Reis, convidaram-me a experimentar logo, ali mesmo, e à
luz do gás a minha luneta mágica.
— Não, disse-lhes eu; esta luneta é
a minha extraordinária esperança de luz, a luz da noite, se a dá a lua, é
emprestada, se a dá a arte dos homens, é artificial; quero, devo esperar o dia,
a luz da natureza, quero esperar a aurora, e o sol.
Um homem que espera pela luz,
espera pela vida. Eu ainda duvidava do poder mágico do armênio; não quis apagar
minha dúbia esperança na mesma hora, na mesma noite em que ela nascera.
Despedi-me do Reis e sai com o bom
velho, que ainda se prestou a acompanhar-me.
Quando entrei em minha casa, davam
os sinos o sinal de três horas da madrugada.
Pouco falta para romper a aurora e
brilhar o sol.
Em breve experimentarei se vejo,
como e quanto vejo.
Agora vou fazer por dormir, se
puder dormir.
FIM DA INTRODUÇÃO À PRIMEIRA PARTE
VISÃO DO MAL
I
Não me foi possível dormir. Fiquei
velando ansioso a esperar pelo dia, como o preso que espera ouvir soar a hora,
em que lhe assegurarão a liberdade.
Procurei abreviar o tempo, ocupando
o meu espírito naturalmente lembraram-me os conselhos que me dera o armênio.
Refleti.
O mágico me recomendara que me
abstivesse de fixar a minha luneta sobre o mesmo objeto por mais de três
minutos; porque além de três minutos ela me daria a visão do mal, em que a
salamandra cevaria a vingança da sua escravidão encantada.
Deverei eu obedecer neste ponto o
conselho do armênio?… compreendo que pobre de espírito como sou, arrisco-me a
errar gravemente, querendo deliberar por meu próprio entendimento, e por isso
até hoje o mano Américo, que é sábio e justo, sempre tem pensado por mim.
Todavia está me parecendo que ver o
mal que se contém em um homem, em uma mulher ou em qualquer objeto pode antes
ser útil do que nocivo, porque em todo o caso me servirá para fugir do mal.
Eu não entendo bem o que o armênio
chama visão do mal; se porém é simplesmente o que significam as duas palavras,
chego a presumir, que a visão do bem há de por força ser mais suave; mas a
visão do mal necessariamente mais proveitosa ao homem que faz na terra a viagem
difícil e perigosa da vida.
Ora, o que o armênio me proibiu,
foi a fixidade da minha luneta por mais de treze minutos, foi a visão do
futuro, sob pena de quebrar-se a luneta em minhas mãos, e a semelhante
calamidade nunca por certo me hei de expor; ele porém não me proibiu, apenas me
aconselhou que me abstivesse da visão do mal.
Assim, pois, o que mais acertado e
prudente devo supor, é, se a luneta mágica não for malvada zombaria ou presente
da loucura, experimentar uma vez a visão do mal; porque em todo caso conservo c
direito e arbítrio de limitar-me daí em diante à simples visão da superfície e
das aparências, como diz o mágico.
Foi isto o que refleti, e o que
pela primeira vez resolvi por mim sem consultar o mano Américo.
E de novo nesta noite maravilhosa
veio-me a lembrança de Eva e reconheci a minha procedência legitima da primeira
pecadora; mas em vez de achar na procedência e no primeiro pecado lição contra
a desobediência, achei somente desculpa da minha curiosidade talvez temerária.
II
A frescura das auras matinais anunciou-me
que se aproximava a aurora.
A janela do meu quarto se abre para
o jardim e olha para o oriente; lancei-me para a janela abençoada e com a minha
luneta na mão deixei-me ficar em pé, imóvel, contando nalma os instantes que
iam passando vagarosos.
Eu respirava as exalações
deleitosas das flores do jardim, e sentia nos meus cabelos e no meu rosto a
doce impressão dos sopros da madrugada.
De súbito perguntei a mim mesmo em
quem ou em que faria o ensaio, a experiência do encanto da minha luneta.
Embora eu tivesse acabado de
recorrer à magia, o meu coração estava sempre e todo voltado para o céu.
Lembrou-me logo ver uma flor, que e
símbolo de pureza; mas rejeitei esta idéia; porque a flor é apenas ornamento da
terra.
Preferi ver a aurora que também é
flor; mas é rosa do céu.
A aurora! eu nunca tinha visto a
aurora! ouvira ler vinte, cem descrições da formosa precursora do sol, e
chorara vinte, cem vezes por não poder admirar a diva matutina que recebe
diário culto dos turíbulos das flores e da música dos passarinhos.
f: a aurora, é a rosa do céu que,
antes de tudo mais, quero ver… se puder ver; e a aurora que é pura, que é o
sorrir do sol mandado de longe à terra, é a aurora que eu contemplarei por mais
de três, por dez minutos sem temer a visão do mal: porque no seio e através da
aurora só poderei ver o sol, que é majestade pela luz, vida pelo calor,
providencia pela regulação do movimento dos planetas.
III
E estremeci, ouvindo o canto dos
passarinhos no jardim, e o ruído e a festa da natureza, saudando o despontar da
aurora.
Era tempo; mas demorei-me ainda,
aspirando mais luz, mais brilhante alvorecer no horizonte; o meu coração
palpitava com força, a minha alma estava nadando em mar de esperanças e de
temores: enfim minha mão se ergueu convulsa… fixei a luneta…
Oh! felicidade!… oh, supremo
gozo!… eu vi!… eu adorei a aurora!
Ah! contemplei esse quadro ao mesmo
tempo gracioso e magnífico de rosas de fogo suave, esse rubor da virgem do
oriente acendido pelo beijo de fogo brando que o sol na face lhe imprime!
Como é bela, esplêndida, fresca,
sublime a aurora! não se descreve: é como o primeiro despertar de noiva formosa
no leito nupcial, mistura de glória e pejo, de pudicícia e de flamas que fazem
corar… é o indizível… o céu abrindo-se à terra.
Eu estava embevecido a olhar a
aurora pela minha luneta mágica, admirava, apreciava uma a uma todas as pétalas
daquela rosa do oriente que resume mil rosas, todas as nuanças daquelas tintas
de fogo saídas dos pincéis dos ralos do sol…
Esqueci o tempo a olhá-la… sem
dúvida eu ia já além de três minutos…
E de repente as rosas fulgurantes
foram se apagando… vi uma nuvem negra, feia, horroroso, preparando em seu
seio tempestade violenta, senti a trovoada e o raio, as trevas perto da luz, o
estridor abafando o trinar das aves…
Vi o sol, mas não senti nem a luz
da majestade, nem o calor que fecunda, vi os raios de ardor desastroso que
crestam as plantas e preparam a miséria e a fome; vi raios que pela insolação
tinham de produzir a loucura, vi raios que forjados para vibrar sobre os
tanques de águas estagnadas, e sobre os pauis, iam levantar, espalhar miasmas e
com eles derramar a peste e a morte sobre os homens, vi o sol- não formoso- mas
cheio de manchas; vi o sol- não fonte de vida- mas senti a sua força atrativa
forjando só os terremotos, os cataclismos, o horror…
Recuei assombrado… a luneta
mágica abandonada pela mão que a sustinha, caiu-me no peito… nada mais vi,
exclamei porém com dor profunda:
— Meu Deus!… como a aurora e
enganadora e falsa!… e como o sol é feio, terrível e mau!!!
IV
O armênio tem razão: a visão do mal
é um tormento; ver muito é um erro; ver demais e um castigo; a temperança é
virtude que deve presidir e moderar os gozos de todos os sentidos do homem.
Por que, para que me expus a
desestimar a aurora que é tão formosa, e a descobrir na natureza e na
influência do sol que dizem ser fonte de vida, tantos germens de destruição e
de morte? Por que e para que ficar-me na alma esta desconfiança das ilusões da
aurora, esta certeza de que o sol é também assassino da criação e assolador da
terra?…
E por que esta luneta mágica além
de três minutos de fixidade só me deixou ver os males e os horrores que o sol
pode produzir e negou-me a contemplação dos seus benefícios?
Oh! foi dolorosa; mas será profícua
a lição; doravante saberei defender-me da vingança terrível da salamandra
escravizada: aborreço. Não experimentarei mais a visão ao mal; basta-me a visão
da superfície e das aparências. Se o mundo é de enganos, se a vida é de ilusões,
se na terra a felicidade do homem está nas ilusões dos sentidos, e nos enganos
da alma, eu quero iludir-me e enganar-me para ser feliz.
Oh! vem, minha luneta magica, vem!
mas para que eu te fixe somente dois minutos sobre cada objeto.
E eu fixei a luneta nas flores,
cujo matiz, e cujas cores variadas e belas enfeitiçaram meus olhos, fixei-a nos
passarinhos, nas borboletas, nas folhas das arvores que ainda lagrimejavam
gotas de orvalho e festejei todos estes tesouros da natureza, que eu via, e
distinguia perfeitamente pela primeira vez.
Gozei uma hora de inexplicável
encantamento, gozei muito, muito; mas, preciso é confessar, os meus gozas,
suavíssimos embora, foram sempre perturbados por dois sentimentos que de certo
modo os deixavam incompletos.
Fixando a minha luneta eu sentia
logo e quase ao mesmo tempo medo e curiosidade; medo de esquecer o tempo e de
chegar à visão do mal, e curiosidade teimosa, insistente, insidiosa e cada vez
mais forte dessa mesma visão do mal.
Pouco e pouco venci o medo, medindo
instintivamente os minutos; não pude porém vencer, domar a curiosidade, que em
luta aberta com a minha razão, martirizava-me, aguçando um desejo fatal.
Essa curiosidade era como a
tentação do demônio que nos arrasta ao pecado; meus lábios haviam já tocado uma
vez na taça oferecida pela tentação, e o veneno que eu bebera, abrasava o meu
seio, e eu tinha sede devoradora da visão do mal.
A salamandra, o gênio, o demônio
tentador estava incessantemente a dizer-me ao ouvido que eu era senhor de um
poder, de que nenhum outro homem, nem sábio, nem rei, podia usar e
aproveitar-se, e que só a fraqueza de animo ou os hábitos rudes da mais triste
ignorância explicariam o abandono, o sacrifício desse poder encantado que me
fazia penetrar e ler no intimo dos seres.
E foi no instante em que mais
violento era o combate da curiosidade com a razão que divagando, passeando com
a minha luneta, vi a prima Anica entrar no jardim.
V
Fitei-a.
A prima Anica estava vestida de
branco e com os cabelos solto. Eu já tinha idéia do seu rosto, mas ainda não
apreciava bem o seu porte; agora não tenho dúvidas sobre o juízo que fazia do
seu merecimento físico.
Anica não é feia, nem bonita; abre
muito os olhos, porque os tem pequenos e sem o fogo do sentimento; seu rir é
triste, sua cintura delicada, os braços são tão finos que movem dó, e os pés
tão grandes, que fazem pena; tem cabelos pretos, finos e bastos; o seu parecer
porem, a sua figura, o seu andar são de um desenxabimento, que desconsola. O
melhor dom que a natureza lhe deu foi a voz, que é doce e maviosa como a queixa
de uma santa.
Retirei a luneta antes de passar o
terceiro minuto; mas imediatamente senti o impulso da curiosidade que se
tornava irresistível.
Esqueci o protesto feito, esqueci a
dor da primeira experiência da visão do mal, esqueci, sufoquei a razão que
ainda me falava, condenando o desejo imprudente, e dizendo a mim mesmo:
— Preciso saber com quem vivo.
De novo fitei a minha luneta sobre
a prima Anica, que estava dando os bons dias às suas flores
A principio vi somente o que já
tinha visto, que ela não era nem bonita nem feia, mas notavelmente desenxabida.
Passados três minutos, não lhe vi mais o rosto nem a figura, vi-lhe o coração e
a alma; o coração era uma pedra de gelo, a alma era o espírito reduzido a
cálculo, a alma era como o seu olhar sem o fogo do sentimento; no seu coração
li a indiferença e a tristeza, na sua alma a ambição de um marido rico que lhe
desse mais o gozo da mesa, do que o esplendor do luxo e das festas; era, é a
mulher fria, egoísta positiva, material, incapaz de amizade, e ainda menos
suscetível de amor, mulher que sendo esposa nunca desejaria um filho, nem teria
zelos do marido, mulher sem caridade, porque só vivia ocupada de dormir bem,
comer bem, e passar bem.
Encontrei a minha imagem na alma de
Anica, mas a minha imagem estava ali, como se fora um X em um problema de
álgebra: eu era em sua alma uma hipótese de marido, e como letreiro, como nome
da minha imagem, li em caracteres aritméticos a soma das legitimas, das
heranças que me haviam deixado meu pai e minha mãe! …
E mais viva do que a minha imagem
vi a do mano Américo que é muito mais rico do que eu (sem dúvida porque ele
pensando por dois, pensava mais e melhor em si, do que por mim é em mim), vi a
imagem do mano Américo, outra hipótese de marido, mais desejada, mais afagada
do que a minha hipótese, mas só com afagos de cálculo, e sem um ligeiro afago
de amor.
E, à exceção do gelo e do cálculo,
coração morto na vida, alma estéril, seca, inóspita.
Anica e a mulher do egoísmo
sublime: contanto que lhe dessem boa casa, boa mesa, bom jardim e melhor pomar,
amas se tivesse filhos, criados que a deixassem não trabalhar, silêncio e
isolamento à noite para dormir à vontade, poderia enviuvar vinte vezes, dando à
memória de seus finados, não a consolação das lágrimas do amor e da saudade,
mas a da certeza de não ter sido infiel, nem falsa a nenhum deles menos por
virtude, do que pela acerbidade e aridez de sua alma enregelada. Que mulher!
olhos sem lágrimas, terra sem vegetação, mar sem ondas nem tempestades, céu sem
estrelas e horizonte sem nuvens, natureza, rochedo.
Desviei a minha luneta dessa
mulher, campo árido, deserto infindo de áreas estéreis sem um só oásis
consolador.
Mulher-cálculo, mulher-aritmética,
mulher sem sentimento, mulher sem amor, mulher-egoísmo é um triunfo da matéria
sobre o espírito mais terra do que céu, mais pó do que alma, mais lodo do que
pureza da eternidade; é a mulher-monstro que calunia a mulher criada por Deus;
é um assombro que se faz admirar pela hediondez.
A prima Anica tornara-se para mim
repulsiva, mais do que repulsiva, repugnante.
Jurei que nunca mais fixaria nela a
minha luneta mágica.
VI
Amarga desilusão acabava de
obumbrar-me o animo: a prima Anica que tanto procurava agradar-me e que
pudibunda recorria aos apólogos para manifestar-me a ternura dos seus
sentimentos, a prima Anica que eu reputava o símbolo do amor mais puro e
desinteressado, não era mais do que uma mulher insensível, egoísta, e somente
preocupada dos gozos da vida animal!…
Eu nunca sentira amor pela prima
Anica; mas votava-lhe amizade fraternal, e experimento verdadeira mágoa,
reconhecendo que não mais posso estimá-la como dantes. Doce amizade! é uma flor
de menos no jardim do meu coração.
Entretanto não me arrependo de
haver-lhe devassado a alma, e descoberto a verdade dos seus sentimentos
mesquinhos e vis: esta senhora, pelo menos não há de mais enganar-me.
As vozes do mano Américo e da tia
Domingas que, entrando juntos no Jardim, dirigiam gracejos a Anica, chamaram a
minha atenção.
Eu já não combatia mais a
curiosidade da visão do mal: o conhecimento a que eu chegara, da falsidade da
prima Anica, me excitava o desejo de esmerilhar os segredos de outros corações.
Lancei a luneta sobre o mano
Américo e observei-o: mancebo de agradável parecer, é pena que seus olhos,
aliás bonitos, não tenham firmeza no olhar, que não se demora em objeto algum e
parece ou temeroso ou movido por preocupações do espírito a divagar estonteado,
ou a fugir à observação dos homens; além desse defeito, notei que sua boca
escapara de ficar sem lábios, tão finos são estes, e que o seu sorrir mostrava
ser antes uma concessão artificial de aparente alegria, do que sinal espontâneo
de íntima ledice’.
E passaram três minutos: oh! minha
cega e imensa credulidade! o político patriota era apenas um ambicioso vulgar!
o nome da pátria era uma alavanca, a dedicação ao povo um meio de construir
escada: Américo queria subir, queria ter influência; mas nem ao menos por
vaidade, ou também um pouco por vaidade; somente porém por cálculos de fortuna,
somente para explorar as posições oficiais em seu proveito material; desprezava
as graças, os títulos nobiliários, o brilhantismo da corte, as fardas de ricos
bordados de ouro; mas desejava tudo isso como sinais de importância pessoal
para negociar ainda mesmo com as exterioridades; talentoso, instruído, hábil,
vende-se ou vender-se-á, aluga-se ou alagar-se-á sem parecer que o faz, ostenta
e ostentará independência e abnegação, não pedindo jamais ao governo favor
algum para si; mas fará questão de um contrato, cuja celebração irá dar contos
de réis à sua mesa de advogado; fará questão de um privilegio para a empresa de
que não é, nem será acionista; mas cuja gratidão já foi em segredo ajustada.
Sua eloquência será ameaça viva a todos os ministérios novos; o leão
parlamentar porém se deixará levar por um fio de seda, que ele transformará
oportunamente em corrente de favores, não para si, só para amigos, cujo
reconhecimento nada tem com as suas relações com os ministros; e servirá ao
Estado, e será patriota assim, e subirá, e há de ser grande na sua terra.
Dá o nome de amigos a três mil
conhecidos, sabe angariar simpatias, colhe os frutos de mil préstimos, e não é
amigo de homem algum, sabendo todavia servir com empenho àqueles que têm de
servi-lo em dobro depois; mas serve só e sempre como intermediário, do seu
apenas serve, dando o tempo que emprega para pedir e obter.
Em relação à família, Américo
negocia com a legítima paterna da prima Anica, com a fortuna da tia Domingas e
com a minha; convenceu-nos a todos de que perdêramos a quarta parte do que
possuíamos na quebra das casas bancárias em 1864; ele porém ganhou nessa crise
setenta e cinco por cento da suma das nossas três fortunas prejudicadas, isto
é, aumentou a sua riqueza na proporção exata de nossas perdas; não toma
compromisso sério; deixa que a tia Domingas lhe fale muitas vezes do seu
casamento com a prima Anica; mas projeta abdicar em mim esta glória, e fareja
entre os dotes ricos o dote mais rico para se casar com ele, aceitando, como meio
indispensável da transação, uma pobre noiva condenada aos tormentos da sua
indiferença.
Não esquecendo que sou seu irmão,
Américo não me ama, mas olha-me com piedade; creio que não me deixará morrer de
fome creio; porque tenho horror à incredulidade em tal hipótese; creio,
revoltando-me contra a visão do mal; mas vejo bem que se ele puder, absorverá
tudo quanto possuo.
Américo não é avarento, porque
despende bastante para viver com decência e algum luxo; é porém o homem sedento
de ouro, e para quem família, pátria e Deus se resumem no- ouro.
Enriquecer é a sua idéia: se chegar
a possuir cem mil contos terá ambição cem mil vezes maior, e não fará bem algum
à humanidade.
Entristeci-me profundamente,
pensando no que acabava de ler no livro aberto da alma de meu irmão; logo
porém, e como ansioso a procurar, a pedir uma consolação, fitei e observei por
dez minutos a tia Domingas.
É uma senhora de sessenta anos,
gorda, simpática, e perseguida de ataques erisipelatosos que a têm avelhantado
mais que os anos; traz ao pescoço três ou quatro breves da marca, e na mão o
rosário em que aponta as suas orações; sua fisionomia é plácida, tranquila como
a face de um pequeno lago, é um espelho da virtude da paciência, e nos seus
olhos que a miado se voltam para o céu parecem brilhar os raios da esperança e
da fé.
Mas a visão do mal mostrou-me em
seguida a hipocrisia de sua face: a tia Domingas é invejosa e má; detesta as
moças porque é velha; maldiz das traições e dos enganos do mundo porque não
espera mais ser traída, nem enganada; benze-se, levantando aleives às vizinhas,
ou propalando suas fraquezas; faz incríveis economias no governo da casa,
esconde dentro do colchão e das almofadas de sua cama o dinheiro que poupa, e
no principio de cada mês se lamenta da insuficiência da verba concedida por
Américo para n manutenção da família: não dá um vintém de esmola aos pobres;
arranca à rudeza e à calunia odienta dos escravos os segredos verdadeiros e
falsos da vida intima de seus senhores, e faz das confidencias capítulos de acusação
maledicente, acompanhados sempre de um- Deus me perdoe! na terra o acho, na
terra o deixo! e pecadora que peca mil vezes por dia, pensa que engana a Deus,
rezando, quando não peca.
Tem no mundo um amor, é sua filha;
aborrece Américo; mas finge que o estima para ver se consegue casar Anica ou
com ele ou em último recurso comigo; aborrece-o porque lhe inveja a riqueza que
ele acumula, adorá-lo-ia, se Anica se tornasse senhora de metade da sua
fortuna; não me ama, mas tolera-me, sou a seus olhos um genro obrigado na falta
de Américo.
Pela força do hábito os lábios da
tia Domingas estão em movimento incessante, porque sua boca repete
maquinalmente as orações de seu rosário; interrompe, porém, as orações a cada
instante no governo da casa para proferir pragas contra os escravos, chamando
mil vezes pelo nome do diabo; mas não tem idéia deste pecado; porque reza, como
peca, e peca como reza, sem intenção, nem consciência.
A tia Domingas é santa pela cara, e
condenada pelo coração.
Retirei a minha luneta, sai da janela,
e murmurei tristemente:
— Com que gente eu tenho vivido!…
que desilusões, meu Deus! . que desgraça é perder como perdi a confiança nos
parentes, e o amor que eu sentia por eles!!!
VII
A visão do mal, o conhecimento das
paixões ruins, dos vícios, dos intentos pérfidos ocultos nas dobras negras dos
primeiros corações humanos que eu devassara com a minha luneta mágica, dos três
corações, em que eu mais confiava, e que mais amava, começavam a produzir no
meu espírito os seus naturais efeitos.
Se meu irmão, minha tia e minha
prima, os únicos parentes que me restavam no mundo, os dois primeiros que me
haviam criado desde bem tenros anos, Anica que fora minha camarada da infância,
quase minha irmã, assim tão cruelmente me enganavam, que podia eu esperar dos
estranhos e dos indiferentes?…
E o armênio aconselhar-me que me
abstivesse da visão do mal! que erro! devo eu preferir viver iludido e vitima
cega, estúpida, entregue de corpo e alma àqueles que abusam da minha inocência
e simplicidade para sacrificar-me ao seu egoísmo e à sua ambição criminosa?
— Oh! mil vezes. não! a visão do
mal me envenenará talvez a vida; mas há de ser o meu escudo contra os pérfidos,
e me acenderá luz para livrar-me dos laços da traição.
Eu sinto já que a minha miopia
moral vai se desvanecendo sob o influxo de uma ciência amarga, desconsoladora,
triste, comprimente; a ciência do mal; em todo caso porém ciência.
Eu já compreendo e reflito; já sei
meditar, e resolver por mim; não sou mais o pupilo perpétuo do mano Américo. A
visão do mal emancipou-me.
Dói-me ter perdido a suave, a
deleitosa crença da lealdade do amor dos parentes; dói-me, porém acabo de
perdê-la.
VIII
A miopia moral, a ignorância
completa do mal, a inocência conservaram-me até esta manhã franco, simples, sem
uma nuvem de suspeita na alma, sem desconfiança dos outros, e com o coração
aberto, transparente aos olhos de todos.
O conhecimento do mal vai operando
em mim forçosa modificação de ideias e de sentimentos.
Já sei que é preciso fingir: já o
sei; porque estou determinado a esconder de Américo, da tia Domingas, de Anica
e de todos a principal virtude da minha luneta: direi que por meio dela
distingo melhor, mas ainda imperfeitamente os objetos.
Vou portanto dissimular e enganar;
primeira lição da ciência do mal que a visão do mal me está dando; primeiro
passo no caminho tortuoso da desmoralização; mas inevitável; porque é preciso
dissimular e enganar para defender-me de parentes desamorosos e pérfidos e
para, cauteloso e seguro, realizar projetos que desde alguns minutos fervem no
meu espírito exaltado pelos ressentimentos do coração.
Nas latas do mundo devo bater-me
com armas iguais às daqueles que me hostilizam: dissimulação contra
dissimulação, engano contra engano.
Em uma hora experimentei três
desilusões que me envelheceram trinta anos! os gelos de três desenganos
apagaram no meu seio é fogo santo de três afeições profundas, inocentes e
puras.
IX
Tenho na mente uma providência que
me é necessário tomar em breves dias; tenho no coração um vácuo que ardentemente
desejo preencher sem precipitação, mas quanto antes.
Quando retirar do mano Américo a
gerência da minha fortuna: eis a providência que vou tomar; acharei um
procurador zeloso, prudente e honrado que se incumba deste negócio, e o efetue
sem escândalo, e sem descrédito de meu irmão, a quem não me dirigirei sobre
este assunto; porque me repugna expor-me ao extremo de confundi-lo em face.
Não preciso de informações nem de
recomendações para a escolha do meu procurador: a minha luneta mágica me
ensinará qual dentre muitos merecerá ser preferido.
Hoje mesmo darei principio a este
estudo, aos trabalhos desta descoberta ou preferência.
O preenchimento do vácuo do coração
é mais difícil, e há de ser mais moroso.
Estou; mas não é admissível que eu
possa viver sem família.
Estou sem família, a visão do mal
rompeu os laços que me ligavam aos meus três e únicos parentes.
Essas três afeições, essas três
únicas flores do jardim do meu coração marcharam para sempre, e o meu seio
ficou deserto e noite.
Nasci para amar, tenho sede de
amor; não posso viver assim.
A família, é na terra a
beatificação da vida do homem; a família, é o mundo em festa no lar doméstico;
a família, é a imensa vida de amor, em que se identificam algumas vidas que se
amam, que se abraçam, que se completam; a família, é a consolação no
infortúnio, o suave descanso no fim do trabalho e das lidas, é o rir de muitos
pela felicidade de cada um de seus membros, é na extrema hora o colo em que se
encosta a cabeça para dormir o último sono, é o pranto de amor que orvalha a
sequidão da morte, a mão de amor que, religiosa, fecha os olhos do morto.
Eu quero ter família, não posso
viver sem ela.
Estou como enjeitado que sai do
hospício estou só, sem um parente, estou deserto e noite, e aspiro sociedade e
luz.
O enjeitado não tem; mas pode criar
e cria uma família, para si, procura uma mulher, e abre-lhe o coração; a mulher
o faz esquecer o deserto e a noite do passado, dando-lhe a sociedade, e
acendendo-lhe a luz do presente e do futuro.
A mulher é a placenta da família, é
a criação privilegiada, a última e a mais mimosa criação de Deus, que em um
sorrir divino nela derramou a graça que encerra o encanto da vida do homem.
Eu quero procurar uma mulher jovem,
bela e pura, que me dê família, eu estou deserto e noite; quero receber a
companhia do coração e a luz dos olhos de uma mulher formosa e santa; quero um
anjo, a cujas asas brancas me prenda, para sair do deserto e da noite.
Avalio bem as proporções imensas da
minha aspiração; mas a luneta mágica me deixa ler os segredos de todas as
almas, e, mercê desse encantado privilégio, hei de achar o botão de inocência
que almejo, a noiva- anjo da terra que adorarei perpetuamente.
A mesa do almoço apareci com a
minha luneta, e causei surpresa; disse que auxiliado pelo poderoso vidro, podia
ver melhor do que dantes, embora menos do que desejava; mas acabando de almoçar
e usando da luneta, servi-me de um palito sem pedir que me dessem.
Diante dessa prova evidente de que
já me era fácil distinguir um palito, o mano Américo abriu a boca espantado, a
tia Domingas benzeu-se, e a prima Anica consertou com faceirice as dobras e o
laço que aliás não tinham desconserto algum.
Enfim meu irmão e minha prima
deram-me uns parabéns que me pareceram muito dessaboridos; minha tia disse:
“Deus te abençoe para que não peques pelos olhos!” e eu despedi-me e
fui para o júri.
X
Nas ruas vi tudo de passagem e frui
mil gozos novos para mim com a simples visão das aparências; mas chegando à
sala do júri e tomando a minha cadeira, dispus-me a não poupar o meu privilégio
da visão do mal.
Nesse dia não sai sorteado, embora
se formassem dois conselhos que consecutivamente julgaram o primeiro um, o
segundo dois réus.
Em qualquer dos três réus encontrei
um coração negro, um homem-fera; do primeiro julgado, porém, não lhe descobri
na consciência indicio algum do crime de que o acusavam, e foi exatamente
contra esse que mais vigorosa se desencadeou a palavra do acusador.
Fitei minha luneta no advogado que
assim falava por parte do autor, e no fim de breves minutos reconheci que ele
estava convencido da inocência do réu que acusava.
Examinei no segundo processo a
consciência do eloquente defensor dos dois réus justamente processados por
crime de homicídio, e vi que ele fazia prodígios de habilidade sofista para
iludir os jurados. e levá-los a obrigar injusta sentença de absolvição.
Arredei de meus olhos a luneta que
acabava de fazer-me descrer do sacerdócio da advocacia.
— Como é, perguntei a mim mesmo;
como é que um advogado ostenta a mentira e o dolo, rebaixando uma das mais
nobres e esplêndidas profissões, sustentando, demonstrando o contrário do que
pensa e do que sente, para ganhar a soma, porque contratou a acusação ou a
defesa?…
— Como é que se abate assim o
talento, e se aniquilam as grandes noções do dever?
Um advogado era para mim a luz do
direito, o escudo da inocência, o campeão da lei; era a Sabedoria a pleitear
pela justiça; como pois um advogado se anima a mentir diante de Deus e dos
homens, a malfazer a sociedade, esforçando-se com todo o poder das suas
faculdades para que se julgue inocente e puro um assassino conhecido e provado,
um malvado que ele sabe que é assassino?… e, mil vezes ainda pior, como é que
outro advogado profundamente convencido de que o réu não cometeu o crime que
lhe imputam, ousa ir acusá-lo, ousa ir pedir que o encarcerem, que o condenem a
trabalhos forçados?…
E além da mentira o dolo!… o
dolo; porque tais advogados se empenham em enganar os juizes de fato, tecem
ardis, desfiguram os atos praticados, enredam e perturbam as testemunhas,
tornam o processo caos com o fim de arrastar o júri a decisões contrárias à
verdade e à justiça e só em proveito dos clientes que os têm contratado para
acusar ou defender?…
E do mesmo modo que praticam em
questões criminais, que afetam a moralidade e a segurança da sociedade, e a
liberdade e aos direitos individuais, hão de também praticar nas questões que
se referem à propriedade!… haverá pois advogado que convicto da infame
velhacaria do seu cliente, ainda assim lhe alague a sua banca, que devia ser
altar nobilíssimo e ponha em tributo os recursos da sua ciência para ajudar o
cliente a roubar o alheio?!!!
Ah! visão do mal que me estás
levando a descrer da humanidade! tu me serás talvez fatal; mas eu te quero, e
não te dispenso mais, porque tu és luz, embora sejas luz do inferno.
XI
Entre o primeiro e o segundo
processo tivemos uma hora de folga, que tanto durou o conselho secreto.
O meu velho amigo, cujo nome quero
agora declinar, o Sr. Nunes, veio sentar-se junto de mim: apertei-lhe a mão com
força, prazer e confiança; pois era a ele que eu devia o ter ido à casa do
Reis, onde encontrei o maravilhoso armênio.
— Então? perguntou-me o velho; que
tal achou a luneta?… estou ansioso por sabê-lo; não dormi um instante toda a
noite; que me diz da luneta?
— É admirável, meu amigo.
— É, na verdade mágica?
— Estupendamente mágica.
— Conte-me alguma coisa…
Contei-lhe tudo.
Cometi um erro, sendo completamente
franco na exposição de todas as minhas experiências, e outro, ainda maior, na
confidência dos meus dois projetos, o de encarregar a um procurador hábil o
arranjo dos meus negócios com o mano Américo, e o de criar para mim uma
família, casando com uma jovem formosa e pura.
O velho Nunes sorriu-se
agradavelmente, com expansão de amizade, apertando-me as mãos, e desfazendo-se
em felicitações: a alegria radiava-lhe nos olhos e no rosto. Que excelente e
nobre homem!… que diferença entre ele e os meus três parentes!…
No fim de alguns minutos em que me
pareceu refletir, disse me:
— Eu creio que nasci predestinado
para lhe ser útil.
— Já lhe devo muito.
— E vai dever-me mais; o seu
primeiro projeto e justo; mas arriscado…
— Por quê?
— Mal pode calcular como são
alicantineiros e vorazes quase todos os procuradores e solicitadores que por aí
andam, e receio muito vê-lo cair nas garras de algum desses trapaceiros.
— Pensa?…
— Mas ainda bem que eu sou também
solicitador no foro da corte, e tenho orgulho da reputação de probidade e de
dedicação, que ninguém ousa disputar-me; o trabalho me sobra, e o tempo me
falta; mas para servi-lo, ofereço-me de corpo e alma para concluir em poucos
dias todos os negócios que tem com seu irmão e sem escândalo nem desgosto.
— Oh! meu bom amigo!
— Pode chamar-me assim; tenho queda
para o senhor; amanhã há de jantar comigo: quero apresentar-lhe minha mulher
que é uma santa e minha filha que é uma flor do paraíso
Senti-me cativo do honrado e
generoso velho e para melhor apreciá-lo, fixei a luneta, ele porém voltou o
rosto imediatamente; três, cinco, dez vezes repeti a manobra, e o Sr. Nunes
outras tantas fugiu com o semblante, e por fim ao sair o conselho da sala
secreta, mudou o velho de cadeira e sentou-se exatamente diante de mim,
dando-me portanto as costas.
Admirei tanta modéstia, e ensaiando
uma nova experiência, pus a luneta em ação e olhei o velho Nunes pelas costas
durante sete minutos.
Oh! luneta sublime! não há recurso
que possa anular a tua força!
Eu vi perfeitamente o homem.
Misericórdia! que enormíssimo
tratante é o Sr. velho Nunes!- afável, obsequiador, loquaz, insinuante, sabe um
por um todos os segredos das traficâncias que desmoralizam o povo: tem
falsificado documentos, rasgado e sumido folhas de autos, já furtou a firma de
um juiz, já solicitou pró e contra em mais de vinte causas, tem comprometido interesses,
demolido fortunas, e ainda não entrou na casa de correção!… aluga-se, quando
não lhe convém vender-se, e vende-se apenas lhe chegam ao preço; tem de seu
mais de cem contos de réis torpemente adquiridos, e é usurário de profissão;
surrava os escravos sem piedade, vendeu-os todos há poucos meses, arremata
outros em praça para vendê-los em breve prazo, e é entusiasta da emancipação; é
cabalista admirável de eleições, tem sido eleitor por todos os partidos, e
votado como eleitor nos candidatos que lhe compraram os votos por dinheiro, e
por transações que valem dinheiro. Exalta os gozos suaves e a santidade do lar
doméstico, e no lar doméstico dá pancadas na mulher, que o teme e que o
detesta, e vive em guerra aberta com a filha porque ela em doces e costuras que
faz ganha somente bastante para se vestir.
E, o que é mais, eu me vi, eu me
encontrei e me reconheci nos cálculos da mente do velho Nunes!… elo sabe
melhor do que eu a quanto chega a minha fortuna, planeja explorá-la em seu
proveito, desacreditar, infamar meu irmão, ou negociar com ele em meu prejuízo,
e finalmente concebeu a idéia de casar-me com sua filha!!!
Tive horror do execrável Nunes, a
quem mais nunca darei o nome de velho amigo; senti-me, porém, desconsolado e
triste, descobrindo tanta malvadeza, em quem supunha tanta bondade e virtude.
É ainda uma desilusão! é ainda um
turvo desengano a arrastar-me à desconfiança e talvez em breve ao aborrecimento
dos homens.
Sai do júri mais sombrio e abatido
do que os réus que por ele acabavam de ser condenados.
XII
É claro que não procurei mais
encontrar-me com o velho Nunes, e aproveitando a lição desse novo desengano,
compreendi que me cumpria ser ainda muito mais cauteloso na escolha do meu
procurador, e principalmente na eleição da minha noiva.
Empreguei quatro dias no empenho da
descoberta de um procurador, como desejava, e perdi o meu tempo: estudei com a
minha luneta magica nada menos que trinta e tantos procuradores e achei-me
sempre de mal a pior! pareceram-me todos eles verdadeiros procuradores do
epigrama de Bocage, os que se diziam melhores e passavam por mais hábeis e
dedicados, eram os piores pela mais refinada arteirice, e profunda malícia.
No fim dos quatro dias senti-me
tonto, aborrecido, desesperado, e com a convicção tristíssima, de que não
encontraria procurador, que pudesse merecer a minha confiança.
— Que homens! disse comigo mesmo;
que gente desmoralizada, ardilosa e má! isto será talvez devido à influência do
oficio: eles têm tantas vezes de procurar, de trabalhar em proveito de causas
injustas, têm tantas vezes de contrariar a verdade, a justiça, a inocência, e o
direito, que acabam por habituar-se ao dolo, à mentira, e ao sacrifício de
todas as noções do dever. Há de ser assim, e nem pode ser de outro modo; porque
a minha luneta mágica, que me faz ver no intimo dos corações, não me deixa cair
em falsas apreciações.
— Mas todos eles maus e nem um
único bom ao menos sofrível… é demais! não quero tão cedo continuar na
descoberta de procurador; estou cansado de ver homens ruins; tratarei de
consolar-me contemplando as graças do sexo encantador.
O último dos quatro mal afortunados
dias fora de abrasadora calma; ao declinar da tarde dirigi-me ao Passeio
Público.
Era a primeira vez que eu visitava,
com a certeza de poder apreciar pela visão, esse pequeno, mas preciosíssimo
jardim, onde a população da cidade pode ir gozar das árvores sombra e
imperceptível respiração purificadora do ar, das flores encanto e perfumes, do
mar o aspecto sublime, da terra limitada amostra da opulência majestosa da
natureza do nosso Brasil, e das magias da tarde a suave frescura da viração.
Entrei no Passeio Público, e com
apressada curiosidade fui vendo e gozando os deleitosos quadros da relva
verdejante, dos grupos de arbustos graciosos, das árvores gigantes, das
correntes d’água, das pontes, do outeiro dos jacarés, do terraço que se torna
admirável pela vista das montanhas, dos rochedos e do mar, das fortalezas e das
ilhas, das praias e da cidade formosa, mas recreio da cidade ofuscadora, a que
demora fronteira.
Tudo isso era novo para mim, tudo,
todas essas maravilhas da criação, todos esses belos testemunhos, todas essas
obras do trabalho e da arte dos homens.
Eu devia esquecer-me de mim mesmo,
embevecendo-me na contemplação de tantos prodígios; senti porém perto de mim,
em torno de mim, passando junto de mim, indo e vindo, outra maravilha, que os
homens veem em toda parte, a todas as horas, e que nunca se satisfazem de
admirar, e de amar; ouvi o ruído do arrastar de vestido, senti doces e sutis
aromas deixados em leve rasto, tocaram-me os ouvidos os sons murmurantes de
vozes argentinas, em uma palavra, senti a mulher e não vi mais nem serras, nem
ondas, nem natureza grandiosa, nem arte nascente, nem florestas, nem cidades;
senti perto de mim a mulher, e, olvidando tudo mais, voltei-me para contemplar
a mulher.
XIII
Não era uma, eram cem as senhoras
que passavam e que estavam no terraço.
Sentei-me em um dos bancos de
mármore e deixei fixada a minha luneta.
Mais de vinte jovens senhoras me
pareceram bonitas; defronte de mim porém estava sentada junto de um venerando
ancião a mais formosa donzela.
Vestira-se de branco! tinha os
cabelos negros, os olhos pretos, grandes e suavíssimos, eram olhos que não
abrasavam, mas que inundavam de doçura, de luz branda, de enfeitiçadas delicias
o coração do homem que lhe merecia um olhar; tinha no rosto a palidez
enlevadora, que não indica sofrimento e atesta fina sensibilidade: o seu corpo
era esbelto, e sua cintura de proporções delicadíssimas; trazia na mão pequenina
e branca um leque de madrepérola com que se abanava distraída, absorta na
contemplação do mar, ou divagando pelos mundos da imaginação; levantou-se a
convite do ancião, sem dúvida seu pai, e com ele passeou ao longo do terraço;
no fim de alguns minutos tornou a sentar-se no mesmo lugar em que estivera.
Era indizível a graça do seu andar
tão suave, como o deslizar da nuvem pela face do horizonte.
A donzela pálida afigurou-se
revelação de todas as perfeições humanas completando um portento de formosura.
O rosto é o espelho da alma, a graça, dom do céu: a donzela pálida era
necessariamente 0 símbolo do amor e da pureza dos anjos.
O meu coração palpitava
transportado de admiração, e já dominado pelo poder miraculoso de tanta beleza.
— Como está hoje arrebatadora Dona
Rosinha! disse um mancebo, falando a outro perto de mim.
Ela chamava-se Rosa; tinha o nome
da rainha das flores.
— Está hoje como sempre; mas em que
cismará ela?… provavelmente em coisa nenhuma: quer que se acredite que tem
horas de embevecimento poético.
— Não; ela fez vinte anos ontem, e
está sem dúvida cismando nos motivos por que ainda não se casou…
Revoltei-me contra os dois
sacrílegos, apartei-me deles com sentimento de aversão.
Eu tinha observado a formosa jovem,
lançando-lhe vistas repetidas, mas passageiras, receoso de sobressaltar o seu
virginal pudor; não pude porém resistir por mais tempo ao ardente empenho da
adoração da sua alma, e fitei nela a minha luneta por mais de três. minutos.
A donzela apercebeu-se da minha
contemplação e por acaso ou de propósito deu a seu corpo flexível uma atitude
de gracioso abandono, que me deixava apreciar todos os encantos da sua figura,
inclinando langorosa a cabeça para o ombro de seu pai, e esquecendo os olhos no
céu.
Ah! foi para mim um abismo de magias,
um arrebatamento do espírito irresistível perdição de toda a minha liberdade
durante três minutos…
E no fim de três minutos o coração
da donzela se patenteou a meus olhos, e os segredos de sua alma se revelaram à
visão do mal.
O demônio das contradições absurdas
reunira naquela alma de mulher formosa a vaidade mais descomedida, e a inveja
mais violenta e cruel: Rosa julgava-se a mais encantadora e bela das mulheres e
invejava de uma os cabelos loiros, de outra os olhos azuis, de sua mãe o
vestido mais rico, de sua prima a voz de contralto, da amiga da infância uma
prenda que lhe faltava, da noiva desconhecida a fortuna do casamento; invejosa,
aborrecia todas as senhoras, vaidosa, queria ser amada, requestada por todos os
homens; pela inveja era mordaz, maldizente, intrigante e aleivosa; pela vaidade
era imprudente e louca, coração corrompido; não poupava sorrisos, nem olhar
animador, nem palavras comprometedoras para prender um namorado: o que era em
solteira prometia ser quando casada, namoradeira sempre; e pela combinação da
vaidade e da inveja com a sua organização e suscetibilidade nervosas, havia de
impor-se absoluta dominadora do marido, a quem não amaria como marido, e só
olharia como escravo; frenética, doida em ímpetos de brutais ciúmes não derivados
de amor, rancorosa, raivosa, dissipadora, sem consciência do dever,
sacrificando por uma noite de baile um ano de pão para a família não hesitando
em reduzir à miséria pai, e esposo, para alimentar o seu luxo, só pensando nos
gozos da ostentação e de apaixonados cultos na terra, sem fé, sem religião, em
moça era tentação infernal, velha havia de ser o desgosto de si própria
degenerado em malvada ira contra todos, em vaidade condenada, em inveja
corroída, em aborrecimento do mundo, e em ódio a todos elevado a expansões
delirantes, capazes de transformar o lar doméstico.
Eu vi tudo isto, e ainda mais podia
ver; porque longe ainda deviam estar os treze minutos que limitavam a visão do
mal: podia e tinha mais que ver naquele coração desgraçado; mas não quis…
tive horror de um ponto negro, que se ia esclarecer; tive horror… deixei cair
a luneta, e amaldiçoando a inveja, e maldizendo da vaidade, fugi, correndo,
precipitado para fora do terraço.
XIV
Na escada por onde me retirava para
o seio do jardim quase que em impulso desastrado levei diante de mim um homem
que também descia.
— Ah! senhor! exclamou ele
voltando-se; não tem olhos ou vem doido?
— Perdão! respondi; exatamente não
tenho olhos, porque sou míope e venho doido, porque encontrei no terraço um
demônio com aparências de querubim.
— Pois quem é míope deve trazer
óculos, e quem anda às voltas com o diabo deve procurar antes o inferno do que
o Passeio Público!
— Mano! disse uma voz dulcíssima; o
senhor se desculpou tão cortesmente, que o favor da sua amabilidade exige antes
agradecimento, do que insistência na lembrança de um acaso que não teve más
consequências.
— Obrigado, minha senhora, tornei
logo, fixando a luneta; eu já nem me arrependo da minha imprudente
precipitação; pois que a ela devo o encanto do perdão dado por voz tão
melodiosa.
Vi voltar-se para mim o lindo rosto
de uma mulher que ostentava todo o esplendor da beleza na primavera dos anos;
ela porém afrontou com tanta firmeza a fixidade da minha luneta, sorriu-se tão
facilmente para mim, olhou-me com tão clara garridice, que antes de cinco
minutos causava-me já tal desgosto que por castigo nem lhe descreverei as
graças da figura.
Coitadinha! era uma menina, que
talvez tivesse nascido com excelentes disposições, branda, condescendente,
alegre, assim o devo supor, pois não creio que alguém nasça mau e pervertido;
mas os pais entusiasmados pela beleza da filha, quiseram fazer dela singular
maravilha, e a esqueceram cinco anos em um famoso colégio, cuja diretora,
antiga florista de Paris, mudara de vocação com os enjoos da viagem
transatlântica, e chegada ao Rio de Janeiro, anunciou prodígios de instrução e
educação de meninas.
Nesse internato, onde as educandas
de todas as idades se confundem e se acham em contato de dia e de noite com seus
diversos costumes, com seus bons e maus instintos, com suas imaginações
travessas, com suas malacias enfim, a pobre menina aprendeu demais o que devia
ignorar, e quase nada o que precisava saber, e saiu do colégio, corando não por
pudor virginal, mas por artifício de namoradeira, não conhecendo o valor de um
beijo de seus lábios, nem o preço e a glória das virtudes, sem as quais a
mulher se faz objeto de desprezo.
A leviandade do seu procedimento, a
palavra desenvolta com que aturdia as amigas, a audácia com que se arriscava na
sociedade, sacrificando todos os preceitos da prudência na liberdade exagerada
que permitia a quantos lhe faziam a corte, que não era mais suficientemente
respeitosa, autorizavam a maledicência que a feria com venenosas calúnias.
O aleive, a mentira a ultrajavam
injustamente com suspeitas cruéis; não era calúnia porém, a fama da sordícia do
seu coração.
Quantos perigos, meu Deus, há nos
colégios, e nos internatos de meninas!… quantas pobres inocências atiradas a
prevaricações possíveis e fáceis! ah! se eu tiver uma filha, hei de fazê-la
instruir-se ao lado e aos olhos de sua mãe; e se então me achar em pobreza, e
não puder pagar mestres, minha mulher e eu ensinaremos como pudermos, e o que
pudermos à nossa filha, e em último caso ficará ela embora ignorante, mas não
será exposta a ser desmoralizada.
Oh! minha luneta mágica! eu te
agradeço esta lição, que me deste.
XV
E ainda com a proveitosa lição
senti-me triste, profundamente triste.
Que dia infeliz! começou de manhã
pelos procuradores que vi e que me causaram repugnância e tédio, e acaba à
tarde com a contemplação de duas jovens formosas, que a princípio me pareceram
dois anjos, e logo depois reconheci que eram duas criaturas condenadas, dois
corações infeccionados, duas mulheres formosas, porém más, dois medonhos
abismos cobertos de lindas flores.
Esta luneta é implacável e cruel:
além da visão das aparências ainda não me concedeu uma contemplação suave.
Já aborreço os homens, e hoje
principiei a desconfiar das mulheres.
Quero, preciso ter uma consolação,
uma impressão felicitadora, que compense as tristes desilusões, por que tenho
passado. Longe da minha luneta os homens e as mulheres! prefiro olhar, apreciar
algum ser impecável, obra de Deus, não contaminada pelas malícias, e pelos
vícios da humanidade.
Aí estão as duas pirâmides, e
defronte o outeiro dos jacarés… são trabalhos do homem, desprezo-os; lá se
mostram as flores… algumas são venenosas, e os perfumes das mais inocentes em
certas condições podem matar; também não quero as flores; a água deste lago
pode conter miasmas… não me convém…
Oh! eis ali um beija-flor!… a
mais delicada e gentil criatura! eu o estou vendo com suas penas de esmeraldas
e rubis, de ouro e topázio, de púrpura e de fogo… eu o estou vendo com a sua
mobilidade faceira, com os seus voos rápidos e graciosos, com o seu trêmulo
adejar equilibrante no gozo puro do seu amor das flores…
Mas… que vejo ainda? que vejo
agora?… ah! essa avezinha tão mimosa e tão linda é um monstro que me inspira
aversão por seus instintos ferozes e qualidades perniciosas.
Egoísta, falso, incapaz de afeição
durável, o perverso abusa dos seus encantos, e beija, profana e atraiçoa todas
as flores e infame, poluindo seus nectáreos e ostentando após a mais bárbara
indiferença, a mais ostentosa e ilimitada inconstância.
O beija-flor é como a serpente pela
extensibilidade da língua, e esta ainda nele se duplica, estendendo dois
filetes, que lhe servem como as garras às aves de rapina.
Finalmente assassino e destruidor,
ele mata e devora em cada dia dezenas e dezenas de insetos inocentes, fracos e
incapazes de defender-se, ousando sem continência, nem respeito ir arrancá-los
do mais doce asilo, do seio mimoso das flores!…
Hoje criei ódio aos beija-flores,
passarinhos devassos, desmoralizados, traiçoeiros e malvados.
Flores da terra! acreditai na minha
luneta mágica: tende medo dos beija-flores!
XVI
Esta última experiência afligiu-me
profundamente.
Quê! até nos seres irracionais, e
entre eles na própria avezinha, mimo da criação, sorriso de anjo e raio de sol
nascente tornados pelo criador em passarinho, no próprio beija-flor só me é
dado encontrar maldades e perversão!!!
Sempre turvos e sinistros
desenganos! sempre o mal neste mundo de peste e de misérias!… este mundo será
pois o inferno, ou pode o inferno ser pior que este mundo?…
Deixei o Passeio Público,
maldizendo da vida, detestando o homem, a mulher, toda criação, pedindo a Deus
a morte, como o indigente faminto pede pão, como a escrava que é mãe, e a quem
a maldição do cativeiro ainda não deturpou e anulou a sensibilidade, deseja e
pede a liberdade do filho.
Que noite de horror e desespero
passei! mas enfim a fadiga, o sofrimento do corpo que respondia às torturas
morais da alma, venceram a contenção do espírito que procurava debalde imaginar
consolações e lenitivo: ao romper da aurora adormeci.
Lembra-me que meu último sentimento
na tormentosa vigília foi de desgosto da vida e de repugnância a toda a
humanidade.
XVII
E como esses cinco últimos dias
ainda mais trinta, um mês inteiro de desenganos e desilusões! em casa o quadro
constante de tríplice traição na companhia obrigada de meus três e únicos
parentes; fora de casa a pronta descoberta da maldade e da perfídia de todos os
homens e de todas as mulheres.
Vi, encontrei somente o mal em
tudo, e em toda a parte, nos seres orgânicos e nos inorgânicos, nas obras das
ciências, e das artes, nos livros e nos monumentos.
Para escrever tudo quanto me
mostrou a visão do mal me fora preciso encher com a pena molhada em fel muitos
e volumosos livros, e atormentar a minha alma com o registro vivo das mais
aflitivas observações.
Resumirei muito em breves palavras.
Eu tinha por amigos dois jovens da
minha idade que moravam perto de nossa casa; a intimidade em que eu vivera com
ambos nos tempos da minha miopia física e moral me fora sempre de grande
consolação; mas a luneta mágica fez-me em breve conhecer o erro perigosíssimo
dessas relações de tantos anos: um desses mancebos, o mais alegre, espirituoso
e folgazão, era um homem imoral, desprezador das leis humanas, afrontador das
leis de Deus, sem consciência, sem crenças, sem fé, tipo da sensualidade sem
freio, besta que só cuidava em fartar-se nos pastos do mundo.
O outro que me agradava ainda mais,
porque se mostrava sempre grave, pensador e comedido, era um calculista frio,
sem escrúpulos na escolha dos meios para atingir ao fim que tinha em mira; o
seu princípio moral consistia em salvar as aparências; furtaria a bolsa do
amigo, se tivesse a certeza. de o não verem furtar; venderia sentenças, se
fosse juiz; estava cansado de esperar pela morte de um tio, de quem contava ser
herdeiro; filho único, porém não legitimo, do pai houvera abastada fortuna, e
esquecia a mãe ainda viva e abandonada na miséria e no desprezo.
Separei-me de homens tão indignos
da minha amizade; mas por isso mesmo mais profundos se tornaram o deserto e a
noite da minha vida, e a medonha solidão no meio da mais ruidosa e brilhante
sociedade.
O que faz sofrer este estado
lúgubre, terrível do espírito ninguém sabe, ninguém faz idéia, só eu que o
estou sofrendo.
XVIII
Um dia vi uma elegante e nobre
senhora, que passava, deixar cair com angélico disfarce duas moedas de ouro na
mão de um mísero leproso, que deitado no primeiro degrau da escada do átrio de
uma igreja, esmolava tristemente; vi-a levar o lenço aos olhos para enxugar
duas grossas lágrimas, que lhe sublimavam as faces; segui a nobre senhora com a
minha luneta fixada sobre ela: ah! o disfarce fora mentira, a caridade era
ostentação; as duas lágrimas duas pérolas falsas preparadas e expostas pelo
artifício da hipocrisia; essa mulher casara rica, dominava o marido, gastava
anualmente vinte contos de réis em vestidos e enfeites, economizando
exageradamente em casa, negando ceia aos escravos, dando-lhes almoço e jantar
muitas vezes insuficientes, e compensando a penúria da alimentação com frequência
de castigos ferozes e de torturas repugnantes.
Em outro dia vi um padre de aspecto
venerando; não arredava do chão os olhos, trajava com severa decência própria
do seu ministério, levava na fronte o selo da austeridade de seus costumes, e
na expressão suave de seus olhos, e de sua boca meio risonha a manifestação da
sua piedade: eram olhos de conforto espiritual, e boca de perdão. Observei-o
com a minha luneta por mais de três minutos: os olhos de conforto espiritual
eram vulcões de concupiscência, a boca do perdão era a fonte de palavras santas
no altar e no púlpito, mas de seduções vergonhosas fora do templo; esse padre
tinha corrompido uma donzela, abandonando-a depois aos frenesis da
prostituição; esse padre discutia previamente a espórtula das missas, fazia
sacrilegamente do altar balcão de traficantes, brigava por uma vela de libra ou
meia libra de cera, guerreava os outros padres na sacristia, não se lembrava
mais da conta das missas que devia, e desonrava enfim o sacerdócio, ultrajando
o Cristo com exemplos de desmoralização e de ganância pervertedores do rebanho
católico.
Uma vez quis ler um artigo de uma
gazeta diária que me haviam recomendado por muito importante e bem escrito. Com
efeito logo no primeiro período achei ideias sãs e luminosas enunciadas com
elegância e pureza; bem depressa porem, revoltei-me, descobrindo oculta na
metafísica de um principio a materialidade da ambição mais desenfreada, disfarçado
em máximas de moral sublime o manejo intrigante do órgão de uma facção, nos
protestos do amor da pátria a mentira do mais refalsado egoísmo e na ostentação
de franqueza e independência dissimulado o preço por que se alugara o escritor.
Irritado, fiz em pedaços a gazeta maldita.
XIX
Em outra ocasião, passando pela Rua
dos Barbonos, parei diante de uma casa consagrada ao mais piedoso e santo
mister, e vi armado em sua parede aquele aparelho movediço que se chama- roda
dos enjeitados.
Ora pois! disse a mim mesmo; aqui é
impossível que eu descubra o mal; porque neste caso o mal está somente na mãe,
ou na família cruel, que enjeita o recém-nascido; mas no seio que se abre para
recebê-lo, salvá-lo, adotá-lo não pode estar senão o bem, a caridade, a santidade.
E fitei a minha luneta na roda por
mais de três minutos: quem o diria?… a roda da piedade bem depressa
pareceu-me antes protetora do vicio e da desmoralização, do que providência
salvadora de inocentes criancinhas condenadas; essa roda afigurou-se leito ruim
de falsa caridade, porta do abandono, da perdição, talvez algumas vezes do
cativeiro dos míseros enjeitados; li no berço dessa roda cem lúgubres
histórias, e recuando espantado, preferi a miopia à visão do mal, e cheguei a
pensar que para muitos dos enjeitados e para a sociedade fora melhor a
sepultura, do que a roda.
E retirei-me, meditando, refletindo
sobre o que acabava de ver.
Fique de parte a questão moral,
social da conveniência de tais estabelecimentos de caridade,
Que faz a roda ao enjeitado? Se
pode, livra-o da morte; mas depois condena-lhe a vida: era talvez preferível
deixá-lo morrer.
Ser ou não ser: se a instituição é
de caridade, seja-o plenamente, não se desnature, recorrendo a meios que em
regra geral são fatais aos enjeitados; se não pode sê-lo plenamente, não cumpre
o seu fim.
Que faz a roda? Recebe o enjeitado,
e depois enjeitado por sua vez. A verdadeira caridade não enjeitada.
A roda que faz? Dá os enjeitados a
criar, a quem os vem pedir e os leva a dez, a vinte, a cinquenta e mais léguas
de distancia, e fica muito contente de si, porque paga a criação do enjeitado
por dois terços menos, do que de ordinário custa o aluguel de uma ama.
E por esse preço insuficientíssimo
criar enjeitados é negócio que se explora!
Que fortuna espera ao enjeitado que
a roda assim por sua vez enjeita? Faz tremer pensá-lo.
O mísero inocente é feliz, se acha
seios de mulher em que se aleite, e fica apenas analfabeto e sem educação; a
sociedade é que não pode esperar ser felicitada por semelhante enjeitado de
roda.
E o que não é feliz desse modo tão
infeliz?…
E o enjeitado que fica reduzido a
escravo da família que o foi pedir?… e o enjeitado que morre à mingua longe
da roda que o enjeitou, e que paga sua criação muitos meses além da afortunada
morte do mísero condenado?
E o enjeitado de cor preta, ou de
cor menos branca, que tão facilmente substitui o escravo que morre, e que toma
dele o nome para ser vendido pela perversidade de algum infame dentre os
negociantes de criação de enjeitados?
Esta ultima idéia, a suspeita da
possibilidade… talvez da realidade de tão grande crime penetraram no meu
espírito, como punhais ervados que me rasgassem o coração.
Tudo pois que eu via no mundo era
maléfico, pavoroso, medonho!
XX
A minha vida se tornava mais pesada,
insuportável fardo. Não havia para mim na terra nem consolação, nem luz de
esperança; se me tivesse faltado a profunda fé em Deus, e a educação católica,
o meu recurso teria sido o suicídio porque a visão do mal me levara ao
desespero.
Compreendi bem o horrível suplício
da minha vida.
Em três parentes que eu possuía no
mundo descobri três ignóbeis exploradores da minha fortuna e do meu infortúnio.
Em dois amigos quase da infância
achei dois miseráveis sem moral, nem consciência.
Fiquei sem as santas prisões da
família e sem a doce confiança da amizade.
Quis tomar conta dos meus bens e
criar para mim uma família e empenhei-me em acertar com um bom procurador, e
com uma donzela digna de ser minha noiva, e todos os procuradores que estudei,
eram homens repulsivos e alicantineiros e todas as donzelas que observei me
inspiravam repugnância, pelas suas ruins qualidades morais, e gravíssimos
defeitos.
Para qualquer lado que me voltei,
fitando a minha luneta, vi somente sob falsas aparências corações corrompidos
pelos vícios, ou enegrecidos pelo crime.
Não houve uma exceção!… todos os
homens hediondos, todas as mulheres ainda piores que os homens! 0 mundo
pareceu-me povoado por demônios de ambos os sexos; porque fora absurdo
acreditar, que somente na cidade do Rio de Janeiro toda a população nacional c
estrangeira fosse má e estivesse pervertida.
Descobri no sol fontes de terríveis
calamidades, no beija-flor uma criatura malvada; na imprensa uma instituição
condenável, em estabelecimentos de caridade lições e praticas de desumanidade.
Descri do advogado, do padre, do
sábio, do artista, de todos e de tudo!
Achei-me na terra sem um parente
amado, sem um parente possível, sem uma noiva possível sem sociedade possível.
Em todos vi o mal; porque em breve
desconfiei mesmo daqueles, que não estudara por mais de três minutos com a
luneta mágica.
A visão do mal me causava já certa
espécie de terror; um dia lembrou-me fitar a luneta no prato que acabavam de
servir-me ao jantar; mas estremeci, e não a fitei, receoso de encontrar veneno;
que me importava ser envenenado?… era melhor não ver.
Foi assim que passei mais outro mês
que se arrastou como um século
Que viver de torturas!
Tende piedade de mim, meu Deus!
tirai-me deste mundo, onde eu vivo só, absolutamente só em solidão infernal, ou
com um único, inseparável, amaldiçoado, mas implacável e sinistro companheiro,
com o mal que eu vejo em tudo, em todos, em toda a parte.
XXI
O armênio tinha razão: a visão do
mal é um poder fatalíssimo, uma faculdade que aniquila a paz, o sossego, as
afeições, a vida do desgraçado que tem esse poder; mas agora é tarde! é muito
tarde; precipitei-me em escarpado precipício, e é inevitável que eu vá morrer
no fundo do abismo.
Pode-se viver sem crenças, sem a
mais tênue esperança, sem o mais dúbio raiozinho de confiança em algum homem,
em alguma mulher… pode-se; porque é assim que estou vivendo.
XXII
Recebi hoje uma carta do Reis, a
quem não tornarei a chamar meu amigo; pois não me é possível ser amigo de homem
algum.
Eu não tinha voltado à casa do Reis
nem para cumprir o dever de cortesia, indo render-lhe agradecimentos, e também
ao armênio pelo favor da luneta mágica.
Não voltei e não volto lá: detesto
o armênio e desconfio do Reis; o melhor sinal de imerecida gratidão que a ambos
posso e devo dar, é esquecê-los, é não ir lá fitar por mais de três minutos
sobre eles a luneta que me deram: o armênio é concentrado e rude; o Reis é
expansivo e obsequiador; quem sabe o que a minha luneta me mostraria no intimo
de qualquer deles?…
Devem ficar-me muito agradecidos
por não ir vê-los: detesto o armênio, desconfio do Reis; não quero relações com
eles.
Mas a carta do Reis deu-me que
pensar; ei-la aqui ipsis verbis.
“Rio de Janeiro, 1.° de abril
de 1868: Ilmo. Sr.: Não mereci a graça de uma visita de V. S a depois da noite
da operação cabalística do armênio, e apenas desde anteontem comecei a ter
singulares noticias da sua luneta mágica; mas de modo que sou obrigado a pedir
a V. S B o favor de explicações que me são indispensáveis.
“Há dois dias que o meu
armazém é procurado por numerosos fregueses e desconhecidos que se empenham por
obter esclarecimentos relativos à luneta mágica. Muitos zombam do caso,
atribuem maravilhas inconvenientes que se contam à exaltação perigosa da
imaginação de V. S.ª; exigem porém informações sobre o armênio e sobre a
operação cabalística, de que têm notícia não sei por quem.
“Outros, e infelizmente não
são poucos, pretendem que com a luneta mágica tem V. S.ª a faculdade de ver os
corações e as consciências de quantos observa por mais de três minutos,
descortinando assim segredos, vícios que se escondem, erros que se ocultam e
más qualidades que se dissimulam, protestando todos contra o perigo social que
pode resultar de tão fatal e assombroso poder de encantamento.
“Alguns enfim incômodos e
teimosos querem por força que eu lhes venda lunetas iguais à sua, e
perseguem-me com instâncias que me perturbam o sossego.
“O maldito armênio diz que
está pronto a encantar lunetas, sem dúvida com intenção maléfica; eu porem não
consinto que ele apareça no armazém.
“V. S.ª compreende que tenho
urgente necessidade de saber tudo quanto há e se tem passado em relação à sua
luneta mágica.
“Devo aos meus fregueses e ao
público em geral explicações sem reservas, transparência sem a mais leve sombra
em tudo quanto se prepara e se faz, se imita, se aperfeiçoa, se inventa e se
realiza nas minhas oficinas, e de quanto se vende no meu armazém ou dele sai,
no cumprimento deste dever há para mim escrúpulo e honra; peço pois a V. S a
que me habilite para dar esclarecimentos e informações às pessoas que
incessantemente me estão procurando, e inquirindo sobre esse importante assunto
Sou etc. Reis.”
XXIII
A carta não me foi agradável;
refleti por algum tempo e resolvi não responder ao Reis; a falta de resposta
era inqualificável grosseria; eu porém já tinha em tão profundo desprezo e
aborrecimento os homens, que pouco ou nada me preocupava a idéia de ofender o
Reis. Decidi-me a fazer de conta que não recebera a carta.
Mas quem poderia ter atraiçoado o meu
segredo? Tornado patente a minha facilidade da visão do mal?… Só três homens:
O armênio, de cuja ciência mágica
se duvidava, e cujo testemunho era portanto suspeito, e para quase todos seria
ridículo.
O Reis que me escrevia,
interrogando-me, e que por consequência. nada sabia, visto que perguntava.
O velho Nunes que assistira a cena
dos trabalhos mágicos do armênio e a quem no dia seguinte eu confiara
imprudente, louca e desastradamente o segredo do poder miraculoso da minha
luneta magica.
Portanto, o traidor, o propalador
do segredo fora o velho Nunes, o procurador imoral e refalsado, de quem eu
fugira, e a cujo convite para jantar no seio de sua família faltara sem escusas
ulteriores nem satisfações.
O velho trapaceiro e ignóbil
procurava pois vingar-se do meu desprezo, denunciando a todos, publicando a
força prodigiosa da luneta que eu possuía.
Vingança estéril, vã, estúpida! Que
me importa o juízo dos homens? Que me importa o mundo?
Mundo, homens, velho Nunes e minha
própria vida eu embrulho todos e tudo isso nos trapos do meu mais profundo
desprezo,
Não dei a menor importância à
revelação traidora, mal intencionada do velho Nunes: pensei que ainda quando
ela pudesse trazer-me desgosto e porventura colocar-me em circunstâncias
embaraçosas e desagradáveis, nem por isso chegaria a tornar-me mais desgraçado
do que eu já era.
Atirei com a carta do Reis sobre a
mesa, tomei o chapéu e sai a passear para desforrar-me de três dias de
misantropa reclusão, a que me condenara.
Eu levava comigo o suplício da
visão do mal, e não pudera imaginar que ainda outro suplício e igualmente
horrível por ela me estivesse esperando no mundo em que vivia.
Saí, como disse, e avançara apenas
alguns passos, quando reparei que muitas pessoas fugiam de encontrar-me, que
outras voltavam-me as costas, que as senhoras se retiravam apressadas das
janelas.
A princípio não pude explicar o
fenômeno; logo depois, porém, lembrou-me a insidiosa revelação do velho Nunes,
e compreendi que me fugiam por medo da minha luneta magica.
— Fogem, disse rindo-me; fogem,
porque lhes doem as consciências e se reconhecem todos hipócritas e maus.
Era a primeira vez que me ria desde
dois meses; o meu riso, porém, era cheio de fel, era o rir de maldição irônica
lançando em face à humanidade-demônio.
Era quase noite; cheguei à Praça da
Constituição, e entrei no jardim que estava cheio de povo.
De súbito ouvi surdo e longo ruído
de centenas de vozes, semelhante ao trovejar longínquo da tempestade afastada;
que me importava isso?… Continuei o meu passeio pelas ruas do jardim, mas
antes de três minutos a Praça achou-se deserta, e no jardim apenas a estátua equestre
e eu!…
— Que gente! exclamei sem poder
conter-me: não há um homem, não há uma mulher que ouse afrontar a luneta
mágica.
Veio-me o desejo de olhar e estudar
a estátua equestre; imediatamente porém senti tanta repugnância ao desengano
provável das ideias e sentimentos que eu acreditava ou antes acreditara
presidindo e dirigindo o acontecimento majestoso e patriótico que esse belo
monumento comemora, e atesta com sublime ufania que cedendo a generoso impulso,
não quis contemplá-lo, e deixando o jardim, dirigi-me ao café vizinho, à muito
conhecida casa do Braga.
Entrei, sentei-me a uma das
primeiras mesas, e pedi uma xícara de café.
A sala estava atopetada de
fregueses; mas apenas entrei, e tomei um lugar, despovoou-se de improviso, e um
servente rude e mal-educado veio de mau modo dizer-me que não havia mais café,
e que a casa dispensava a minha freguesia, e muito me agradeceria, se eu não
tornasse a aparecer ali.
Desta despedida formal a uma
expulsão à viva força a distância era pequena e quase nula, era a intimação
antes da violência; eu tinha por mim o meu direito incontestável de ser
servido, pagando o que se garantia ao gozo publico; a lata, a contenda porém
não me podia convir: traguei o insulto, e saí sem responder uma única palavra
ao caixeiro selvagem.
Andei às tontas, sem destino e sem
norte pelas ruas; às oito horas da noite dirigi-me a um dos nossos teatros,
pouco importa saber qual, comprei um bilhete, e fui tomar a minha cadeira.
Mal acabava de sentar-me, ouvi
dizer perto de mim: “é ele!”
A essa voz que soara em tom baixo,
seguiram-se outras que repetiram com ecos surdos: “é ele! “
Dentro em pouco o sussurro
transformou-se em ruído, o ruído em desordem: as senhoras que estavam nos
camarotes, recuaram os seus bancos até não poderem ser vistas, espectadores das
cadeiras e da plateia levantaram-se ao mesmo tempo como um só homem, e geral
gritaria de “fora! fora! fora!” ribombou estrepitosa, insistente,
ameaçadora no teatro.
Um porteiro veio humildemente
pedir-me que me retirasse, oferecendo-me com estúpida e revoltante aparência de
benignidade a vil quantia, por que eu pagara o meu bilhete; resisti e furioso
disse uma injúria ao mísero porteiro.
Mas a gritaria tempestuosa
continuava; insultos desabridos, ameaças ferozes chegaram a meus ouvidos; a
polícia interveio debalde em meu favor; a pateada violenta ameaçava degenerar
em motim. No maior fervor da borrasca recebi da autoridade policial não uma ordem,
porém um pedido para retirar-me do teatro, do qual então imediatamente sai
vexadíssimo, ardendo em cólera, ferido pela reprovação de todos, e ao som dos
aplausos escarnecedores, com que era festejada a minha vergonhosa retirada.
XXIV
Nos dois seguintes dias teimei em
aparecer ao público e experimentei iguais testemunhas de geral condenação.
Nas ruas e praças fui cem vezes
apupado.
Na tarde de um desses dias tentei
ir passear a Niterói; mas a minha entrada na ponte da companhia Ferry, produziu
um movimento ameaçador entre os passageiros, e eu tive logo de sair da ponte ao
ouvir algumas vozes sinistras que repetiram: “deitá-lo-emos ao mar!”
Em um hotel negaram-se a dar-me o
jantar que pedi.
O cocheiro de um carro da praça não
quis acudir ao meu chamado.
E ninguém mais fugia de mim, porque
todos me espantavam com ameaças.
No terceiro dia fiquei encerrado em
casa; mas à noite fui a um aparatoso baile, para o qual estava desde algumas
semanas convidado.
Era uma brilhante festa dada em
aplauso e honra de um casamento com ardor desejado, e com júbilo abençoado
pelas famílias dos noivos.
Apenas apareci foi extraordinária a
agitação que se sentiu na sala cheia de convidados, as senhoras encheram-se de
terror, e cobriram os rostos com os leques e os lenços, a noiva esteve a ponto
de desmaiar; os homens deixaram-me perceber pragas que a cortesia, e o respeito
à sociedade onde estavam, abafavam; o dono da casa três vezes encaminhou-se
para mim e outras tantas recuou confuso e com evidentes sinais de
contrariedade; eu o compreendi, e poupando-lhe o amargor de uma despedida
formal, fiz o que me cumpria: fugi desesperado, chorando de raiva, e cada vez
mais convencido da malvadeza de toda a humanidade.
XXV
Que noite de cruel vigília ainda
mais cruel do que tantas outras, cujos horrores já havia provado!
Eis-me pois ainda mil vezes mais
desgraçado do que dantes!
Não creio em homem algum, em mulher
alguma: sou a descrença viva, ceticismo animado.
Desconfio de todos.
Aborreço a vida, mas sendo obrigado
a Viver, como vai correr a minha vida?
Um por um todos se arreceiam de
mim, e todos me detestam.
Em toda parte sou por todos
enxotado, de toda parte repelido.
Ninguém me quer ver; quando
apareço, ninguém me tolera.
Tocou-me a lepra moral.
Eu sou como a peste, pois todos
fogem de mim; sou pior que a peste, sou como um cão hidrófobo que se persegue,
e cuja morte se deseja!
Oh, meu Deus! meu Deus! Eu sou
católico e é somente por isso que não me mato; mas se alguma vez o suicídio
pudesse merecer o perdão, a vez do perdão do suicídio era esta.
Meu Deus! eu pequei, confiando na
magia, entregando-me a um pérfido mágico, aceitando para meus olhos o socorro
do demônio!
Perdão, meu Deus!
Oh!… como é bom não ver!!!
XXVI
Não sei, não posso dizer quantas
vezes nessa noite furioso lancei mão da luneta mágica para quebrá-la; mas, com
vergonha o confesso, nunca tive animo bastante para realizar o meu pensamento.
Não dormi um instante, chorei quase
toda a noite, e quando não chorei, revolvi-me, debati-me no leito em agitação
violenta, e devorado por abrasadora sede.
XXVII
Na manhã seguinte eu tinha os olhos
inchados, a cabeça atordoada, e o rosto inflamado; senti-me doente; mas não
quis anunciar o meu estado.
Às dez horas introduziram no meu
quarto o Sr. A…, o dono da casa, donde eu fora expelido na noite antecedente.
Recebi-o sem ressentimento.
— Está doente ? perguntou-me.
— Um pouco; sofri muito esta noite.
— Eu o previ, meu amigo, e por isso
me apressei a vir dar-lhe explicações, que reputo indispensáveis até para o bem
do seu futuro.
— Agradeço a sua bondade; eu porém
sei tudo e sei demais.
— Que sabe, pois?
— Que um miserável, o muito
conhecido velho Nunes, fez espalhar a notícia de que eu possuo uma luneta
magica, pela qual chego à visão do mal, e descubro todos os segredos e todas as
maldades e vícios que se escondem e se dissimulam; e que o medo que causa n
minha luneta faz com que se levantem contra mim todos os homens, porque com
efeito todos são perversos e temem que sejam conhecidas suas perversidades.
— E então…
— Então desde que se espalhou tal
noticia eu tenho sido apupado, insultado, repelido por toda parte, onde
apareço. Não é isto?
— Não é tudo, como lhe parece.
— Explique-se.
— Não se ofenderá se eu lhe disser
toda a verdade?
— Não: diga tudo.
— Meu amigo; a população da nossa
capital 6 muito civilizada, e não acredita no poder da sua luneta mágica.
— Neste caso por que me fogem?…
Por que me apupam?… Por que me temem?
— Aqueles que o têm perseguido com
apupadas e os que fogem tremendo da sua luneta dividem-se em duas classes, uma
a que pertencem todos os crédulos e pobres de espírito que ainda prestam fé a
feiticeiros e artes mágicas: há dessa gente em todas as capitais; a outra é a
dos garotos que ousam rir e zombar de infortúnios e males a que todos estamos
sujeitos.
— Que quer dizer?
— Quanto aos mais eu vou dizer-lhe
o que há, e arme-se de coragem para ouvir-me.
— Nada mais me pode admirar, e
menos assustar neste mundo.
— O velho Nunes, que se proclama
seu amigo e intimo confidente, foi com efeito o propalador das notícias que
correm; e sabe o que se pensa? O que todos acreditam?
— Diga.
— Que o senhor, tendo imaginação
ardentíssima e fraquíssima razão, foi arrastado por um pérfido e malvado
armênio até deixar-se dominar pela mais inacreditável mania; que por isso o
senhor imagina ver o que não vê, o que não é real; supõe, julga infalível a
visão extraordinária da sua luneta, e nas confidências de alguns amigos, que
aliás abusam da sua credulidade enferma, descreve os corpos, e expõe íntimos
das consciências de quantas senhoras, e de quantos homens fita com a sua
luneta.
— Mentira e verdade! corpos não, é
falso; minha luneta 6 honestíssima; almas sim, minha luneta as patenteia
plenamente, e eu tenho visto em todos hediondas maldades.
— Não discutamos agora esse pretendido
poder da sua luneta. O que é certo é que o simples receio de que o senhor,
acreditando que vê realmente o que apenas molestamente imagina, e que descreve
em confidências de amigos quadros físicos, defeitos e virtudes, em que ninguém
crê; mas que em todo caso ridiculizam não pouca as vítimas da sua luneta, faz
com que todos o evitem, todos o queiram longe, todos temam somente o ridículo
que provém do que chamam sua manta.
— Mania!!! que o seja embora; mas
eu juro que não tenho um só amigo, que não tenho confidentes: isso é calunia.
— Cumpria-me dar-lhe estas
explicações, meu amigo. Fique certo de que não há homem, nem senhora de juízo
que dê importância e que tema a sua luneta mágica; mas das suas falsas
apreciações, e dos sonhos extravagantes mas não recatados, não ocultos da sua
imaginação resultam o ridículo de que todos querem escapar.
— Entendo-o perfeitamente.
O Sr. A… disse-me ainda algumas
palavras consoladoras; convidou-me a tratar da minha saúde alterada pelo
excesso de imaginação, e fraqueza do espírito e deixou-me enfim.
XXVIII
E esta!
Por consequência estou
definitivamente declarado doido pela opinião pública que e a rainha do mundo, e
cujos decretos não tem apelação.
A humanidade perversa e infame
engenhou o mais seguro dos meios para livrar-se de mim: não há recurso contra
ela.
Todos os homens, todas as mulheres
cientes do meu poder, todos e com eles e elas todos os médicos, autoridades
declaradas e decretadas na matéria dizem- que estou doido!
Não há, não pode haver uma só voz
que proteste contra a sentença; porque a todos eles e a todas elas convém que
eu seja reconhecido- doido.
Há só uma voz que pode e há de
protestar, é a minha, a voz suspeita, a voz do doido.
Por consequência estou doido!!!
E amanhã, ou hoje mesmo, talvez
daqui a uma hora, quatro ou seis policiais quatro ou seis urbanos virão
agarrar-me, e hão de conduzir-me ao hospício da Prata Vermelha!…
E meu irmão se mostrará compungido,
e a prima Anica fingirá chorar, e a tia Domingas rezara por mim nos seus
rosários!!!
E rir-se-ão todos de mim!… e me
chamarão o doido!
Meu Deus! estarei eu realmente
doido?…
Ninguém compreende os tormentos que
sofri com esta nova perseguição da perversidade dos homens, com esta idéia da-
loucura- que começou a agitar-me.
O atordoamento da minha cabeça
aumentou, a febre devorou-me com milhões de línguas de fogo e eu bradei em alta
voz:
— Água! água! quem me dá água?…
XXIX
Lembra-me que vi entrar o mana
Américo, a tia Domingas, a prima Anica, e meia hora depois o médico da família.
Lembra-me que eu quis falar e não
pude, porque faltou-me a voz; lembra-me que procurei saltar fora do leito e não
pude; porque me seguraram.
Lembra-me que instintivamente
cerrei a minha luneta na mão direita, e que não houve esforço humano que
pudesse conseguir abrir-me a mão, até que o médico, chegando nessa conjuntura,
proibiu severamente o emprego de tal violência.
Lembra-me que a prima Anica
perguntou:
— Ele está mesmo doido, senhor
doutor?
E que o médico respondeu:
— Veremos.
Sábia resposta que não resolvia a
questão.
Lembra-me que o doutor sangrou-me
copiosamente no braço esquerdo.
Vi tudo isso sem poder dizer que
estava vendo.
Depois saíram todos, deixando ao pé
do meu leito dois escravos possantes para, em caso de necessidade, conter o
doido.
Creio que dormi; quanto tempo não
sei, talvez mais de vinte e quatro horas.
Quando acordei, senti penetrante
dor na mão direita: eram os meus dedos que pregados na parte superior da palma
da mão defendiam a luneta mágica; abri os dedos, levantei-os a custo.
Quis ensaiar a voz e disse:
— Água!
Deram-me água, que bebi com ardor
febril.
Descansando outra vez a cabeça no
travesseiro, tornei a cerrar os olhos, mas com a consciência de me achar
completamente acordado e refletidamente determinado a fingir que dormia.
O meu coração palpitava normal, eu
não sentia mais nem atordoamento de cabeça, nem calor, nem sede; estava pois
muito melhor, estava apenas um pouco abatido.
Ordenei minhas ideias, recordei
quanto se havia passado, e tirei de tudo duas principais conclusões; primeira:
que havia geral conspiração para que eu fosse declarado doido; segunda: que eu
me achava no perfeito gozo das minhas faculdades intelectuais.
E a melhor prova que a mim próprio
dei da segurança do meu juízo, foi a resolução que tomei de proceder com prudência
e cautela, submetendo-me sem resistência, nem oposição ao médico e aos meus
três parentes, e simulando-me ainda doente.
Havia porém uma condescendência, a
que de modo algum me prestaria: era a entrega da minha luneta mágica, que em
vão tinham já procurado arrancar-me; e para poupar-me a maiores lutas, tirei
sutilmente o cordão que a fazia pender do meu pescoço, e atei-o a uma das
minhas pernas. Era um recurso fraquíssimo, mas o único de que lembrei na
situação em que me via com duas sentinelas dentro do quarto.
Calculei que para salvar as
aparências de caridade, ao menos durante alguns dias, não empregariam
violências materiais contra mim no empenho de descobrir e tomar-me a luneta.
É assim a natureza humana: na minha
última noite de tormentosa vigília, tive horror da luneta mágica e até por
vezes o pensamento de quebrá-la, e agora a fúria dos meus inimigos que a todo o
transe queriam privar-me do poderoso meio que me assegura a visão do mal,
centuplica em meu capricho o valor desse tesouro, que eu só e nenhum outro
homem talvez possui no mundo.
O homem é assim; menino mais ou
menos malcriado toda sua vida.
O espírito de oposição, o prazer de
contrariar os outros começam no berço e só acabam, quando chega a morte.
Se quiserem que algum homem grite:
– “não!”, ordenem-lhe que balbucie: – “sim”.
XXX
Asseveram que estou doido, e eu me
sinto no pleno e perfeito gozo de minhas faculdades mentais.
Mas de que me aproveita a
consciência do meu estado, a certeza de que estou em meu juízo, se o mano
Américo, a tia Domingas, a prima Anica, e toda a população do Rio de Janeiro me
declaram doido?
A opinião pública que dizem ser a
rainha do mundo decretou que me acho vitima de alienação mental.
Vitima concordo que eu esteja
sendo; mas alienado?… Protesto.
Doido por quê?… Porque tenho o
privilégio de descobrir o mal que se dissimula; e porque não há máscara de
hipocrisia, que resista à minha luneta mágica!
Doido! …
Ah! quantos homens de juízo não
andarão por aí declarados doidos somente para que os golpes certeiros de suas
palavras terríveis percam a força, com que devem ferir e despedaçar a
imoralidade, os vícios ignóbeis e até os crimes de grandes figurões?…
Eu não creio, não posso mais
acreditar na bondade ou na virtude de homem algum; todos são mais ou menos
ruins, falsos, e indignos; há porém alguns que sem dúvida com o fim de ser mais
nocivos aos outros, e para produzir maior dano, têm o merecimento de dizer a
verdade nua e crua, e chamar as coisas pelos seus nomes próprios tornando-se
verdadeiros e francos certamente ainda por maldade.
Pois bem: esses perigosos faladores
são em breve denunciados ao publico sempre enganado, como- doidos.
Conversem um pouco e em voz baixa
com a nossa capital, e hão de reconhecer os fundamentos desta observação.
Um exemplo: um desses homens de
palavra solta e descomedida declara sem cerimônia e declinando nomes que tal e
tal sujeitos que chegaram a titulares e são considerados, lisonjeados e
adulados pela sua riqueza nas mais elegantes sociedades, mereciam antes estar
ria casa de correção por terem enriquecido com abusos escandalosos e crimes, de
que ele faz a história. – É doido.
Outro exemplo: um jornalista que
escreve sem luvas de seda, chama na imprensa ao ministro que dilapida,
dilapidador ao funcionário ou administrador que rouba, ladrão; e assim por
diante sem limar o verso para que não fira. Que doido!
Terceiro exemplo: um desastrado
falador diz a um pai cego e doido pelos filhos: – “os seus filhos são
vadios e procedem indignamente;” – a um esposo de quem é amigo:- “a vida
repreensível que vives, a depravação de teus costumes não só te nodoam, como
talvez preparem a vergonha da tua casa… não desesperes tua pobre mulher:
corrige-te”. É doido, absolutamente doido.
E esses e outros semelhantes são
doidos, e eu também estou doido; por que?…
Porque na sociedade a maior prova,
o mais seguro sintoma de loucura é dizer a verdade sem rebuço, mesmo quando a
verdade pode ser desagradável ou ofensiva.
XXXI
E em certos casos de que vale a consciência ao homem contra s
guerra teimosa e perversa dos outros homens?…
Nem Hércules contra dois; que poderá um contra todos?…
Aqui estou eu certíssimo de me achar em meu perfeito juízo e com
serias apreensões de ver-me obrigado a endoidecer em breve.
Os meus parentes, os meus conhecidos, e todos creem ou fingem
crer, e dizem, proclamam, gritam por toda parte que estou doido.
Há situação mais horrível e ameaçadora?…
Considere-se cada qual no meu caso.
Em casa apenas levantado da cama, e durante o dia todo a família
os parentes com hipócritas aparências de compaixão a repetiram mil vezes: –
“coitado! está doido…”
Os falsos amigos em suas visitas dizerem-me:- “trate-se!
creia que a sua cabeça não está boa…”
Na rua, no passeio, no teatro, em toda parte uns a rir e a
gritar:- “está doido!”; outros com voz lastimosa a murmurar:-
“pobre moço! está doido”.
Durante a noite guardas possantes velando no quarto do doido.
E oito, quinze dias seguidos, um mês, família amigos, conhecidos,
desconhecidos, toda a população de uma cidade a repetir de hora em hora, de
minuto a minuto, incessantemente: – “está doido! está doido!”
Quem seria, quem é capaz de resistir a semelhante impulso violento
para a loucura?…
De que vale em tais casos a própria consciência contra esse acordo
geral que a condena?…
O homem mais forte cede exasperado à convicção de todos, e em
breve prazo começa a duvidar de si…
E desde que começa a duvidar de si, começa a enlouquecer…
Oh! é horrível!… e um martírio que os algozes mais ferozes nunca
imaginaram!
Mas eu hei de reagir!
Zombarei da fúria desses monstros que se chamam homens.
Sinto-me grande, porque sou um a assoberbar a todos.
E para assoberbá-los é condição indispensável sofrer com frieza,
resignação, e sem desesperar: saberei fazê-lo; e além da frieza e da resignação
no sofrimento, é também essencial o mais profundo desprezo da humanidade.
Oh! é impossível que eu a despreze mais!
XXXII
Era dia, e eu estava lá cansado de
refletir e de esperar.
Fraco, abatido e apreensivo, uma
prolongada e grave meditação podia ter consequências funestas para mim; tive
medo da exaltação do meu espírito mas para dominá-la, para arrancar-me a ela,
eu precisava do uma distração poderosa.
Mas de que modo entreter-me,
distrair-me no triste encerro do meu sótão; deitado no meu leito, e com guardas
a dois passos?…
De que me havia de lembrar?… da
minha luneta mágica; foi uma lembrança muito natural.
Tanto tempo já tinha passado sem
que eu gozasse o poder miraculoso desse tão perseguido vidrinho ótico!
Não pede conter-me; a que risco me expunha?…
os meus guardas eram escravos da família e habituados a respeitar-me; eu estava
certo de que eles não ousariam vir lutar comigo para me tirar com violência a
luneta mágica.
Não hesitei.
Com o maior cuidado e sossego
desatei a luneta mágica, que pouco antes atara prudentemente a uma de minhas
pernas, e deitado, como estava, não tendo objeto de escolha ou de preferência
em que a fitasse, fitei-a indiferentemente no teto da casa.
O sótão, onde eu tinha o meu
aposento, era cômodo, porém multo modesto, conforme as regras de humildade da
tia Domingas; o teto era de telha vã, e a casa já contava de existência meia
dúzia de lustros.
O que a minha luneta me mostrou foi
uma multidão de insetos muito comuns, e demasiadamente conhecidos de todos nós
para que eu me ocupe em fazer a sua descrição, segundo os apreciei durante os
três minutos da visão das aparências.
Chegada porém a visão do mal que
imensa corte de demônios! Quanta maldade em corpos tão pequenos!
XXXIII
Vi um grilo.
Em sua natureza maléfica o perverso
diabrete sentindo-se incapaz de produzir maior dano, rogando uma contra a outra
base de seus élitros produz o que lhe chamam canto, e que é um dos pequenos
tormentos da humanidade.
Não julgueis que é insignificante o
malefício perturba o sono, gasta a paciência, arranha os ouvidos, ofende os
nervos e impede o sossego.
O grilo com o seu canto
desagradável, teimoso, e importuno, é o tipo desses homens cruéis, estafadores
da cortesia alheia, que muitas vezes tomam conta de uma pobre vítima que tem em
que se ocupar, e horas inteiras a martirizam com interminável maçada.
Felizmente para mim os grilos são
mais frequentes nas assembleias legislativas, do que no meu sótão.
XXXIV
Ao pé do grilo um seu irmão pela
família vi um gafanhoto: outro malvado e ainda muito pior; é flagelo em vida, e
o tem sido depois de morto.
Vivo, o gafanhoto é o inimigo do
jardim, do pomar e da lavoura; dotado de infernal gula devora flores e folhas,
ervas e searas; pelo seu peso parece desprezível, e todavia quando invade em multidão
incalculável, quando é praga que ataca, ao seu peso estalam arvores que
derribadas caem.
Morto, o gafanhoto é em certas
circunstâncias muito pior e nisso tem por igual o seu irmão grilo. Dado o caso
de emigração ou de praga de gafanhotos e de grilos, se uma súbita mudança
atmosférica, alguma tempestade dá cabo deles, a consequente putrefação da
imensidade desses malvadinhos determina a peste que povoa os cemitérios.
Os grilos e os gafanhotos não são
melhores que os homens.
XXXV
Vi uma pulga. A perversa estava
cheia de sangue, talvez meu, com que se havia regalado, e atenta descansava em
suas grandes patas posteriores pronta a dar o salto de ataque ou de retirada.
A pulga é a parasita sanguinária
que vive à custa de muitos quadrúpedes e que não pouco persegue o homem.
Vive de beber sangue a atroz, e
frequentemente agrava a atrocidade, ultrajando o decoro com perseguição
revoltante. Inimiga declarada do homem e da senhora, ousa devassar o leito da
honestidade e do recato, morder sem piedade a menina, a donzela, a esposa, a
matrona, que temerosas dão-se a mil cuidados e diligências para descobrir e
apanhar a incômoda sanguinária antes de se deitarem.
No teatro a pulga não falta, no
baile também salteia, e assalta, embora menos frequente; às vezes vemos no
teatro ou no baile uma elegante senhora, que parece preocupada, que indicia no
rosto, e em leves movimentos contrafeitos achar-se de mau humor ou indisposta;
debalde lhe perguntamos se sofre, ou se alguma coisa lhe falta: ela o não
confessa; é porém uma pulga insolente, que aferrada entre os dois níveos pomos,
ou abaixo de algum deles lhe sorve o sangue com atrito cruel.
A pulga é um demônio que faz inveja
a muita gente sem generosidade.
XXXVI
Vi um mosquito: outro monstro sanguinário dez vezes mais bárbaro
que a pulga; porque a pulga farta-se do sangue em silêncio, e não zomba das
vitimas, e o mosquito, à semelhança dos selvagens e dos bárbaros que dançavam
festivos em roda dos cadáveres de suas vitimas, o mosquito, digo, bebe sangue
ao som da musica, ou antes e depois de bebê-lo em nossos corpos, canta
enfadonho, insuportável, desatinados, insistente como o grilo.
A natureza, que se me afigura mãe, fonte exclusiva do mal,
auxiliou a perversidade do mosquito, dando-lhe, em facetas imperceptíveis e
inumeráveis, imperceptíveis e inumeráveis olhos, com os quais o mosquito vê
perfeitamente para diante e para trás, para a direita e para a esquerda, para
cima e para baixo, pelo que é licito concluir uma coisa horrível isto é, que
cada mosquito enxerga muito mais do que os afamados estadistas do Império do
Brasil, que, segundo o testemunho dos fatos, mostram ser tão míopes como eu.
Por esta consideração ainda mais detesto o mosquito.
XXXVII
Vi o cupim.
O cupim não é sanguinário, mas a sua malvadeza não é menos
prejudicial à sociedade.
A visão do mal patenteou-me segredos incríveis que li no seio
recôndito desse inseto destruidor.
O cupim estraga, aniquila mais cabedais do que certos ministros da
fazenda e de obras públicas que temos tido no império do Brasil: façam idéia de
quanto ele estraga para vencer na comparação!
Conhecendo a faculdade destruidora do maldito inseto, os
carpinteiros, os livreiros, os alfaiates e as modistas fizeram comércio de
amizade, e pacto de aliança com o cupim, e todos reunidos representam e formam
uma firma comercial sob a denominação de Cupim e Cia.
Em dois anos arruma-se uma casa, em dois meses fica em pó e renda
uma biblioteca, em duas semanas torna-se sem serventia um guarda-roupa.
E note-se, o cupim é implacável, profundamente desprezado de todas
as conveniências, e revoltoso ao ponto de não dar importância nem a um decreto
referendado pelo ministro do império; em seu furor o cupim é capaz de não parar
nas velhas calças brancas da corte, e de ir até roer as novas calças azuis dos nossos
gentis-homens.
O cupim é portanto um inseto-monstro que deve ser posto fora da
lei.
XXXVIII
Além do cupim vi uma aranha.
Feio bicho; era porém ele que
principalmente dominava o teto do meu sótão.
No centro da imensa teia que se
estendia em admirável rede de mil fios entrelaçados por baixo de todo o
telhado, o diabo da aranha se ostentava soberana.
A um movimento do ar que sacudia
tênue fio da teia, a aranha avançava logo para, se era preciso, remendar ou dar
nó à rede; ao toque de um inseto os fios tocados enlaçavam a mísera presa que a
aranha ia logo devorar sem piedade.
O sistema da centralização política
e administrativa estava ali perfeitamente realizado pela aranha.
Era exatamente como a
administração, a polícia e a guarda nacional do Brasil.
Mas a aranha ia em perversidade
muito além desse domínio escravizador do telhado.
Feia, assassina, terrível, a aranha
excede em crueza a todos os animais irracionais, e, oh assombro! até aos
racionais, até aos homens!
Como todos os insetos carnívoros
caça, mata e devora outros insetos.
Pior que os outros insetos
assassinos, guerreia, e mata os da sua própria espécie a semelhança dos homens.
E ainda pior que os homens, a
aranha, o tipo da malvadeza levada ao zênite, a celeradez nec plus ultra, à mais horrível exceção em tudo, a aranha mistura o
amor com o ódio e o gozo com o assassinato, a aranha cede ao instinto, obedece
à lei da reprodução da espécie, e satisfeito o império natural da lei, a
aranha, como a antiga e fabulosa amazona, ataca, fere, e mata aquele mesmo que
pouco antes lhe dera a glória próxima de encher de ovos prolíficos a sua tela.
Onde se viu perversidade
semelhante!!!
XXXIX
Horrorizado da aranha, desviei dela
a minha luneta mágica e em movimento de repulsão levei-a até uma das
extremidades do telhado, onde encontrei metade do corpo de um rato que me
olhava esperto, e com ar que me pareceu de zombaria.
Senti vivo desejo de estudar o rato
e fixei-o com a minha luneta; mas o tratante somente se deixou exposto durante
minuto e meio, e fugiu-me, deixando-me ouvir certo ruído que me pareceu
verdadeira risada de rato.
E fiquei sem poder apreciar esse
quadrúpede roedor e daninho pela visão do mal!
O rato é de todos os animais que
tenho encontrado, o único que não me foi possível estudar tanto quanto
desejava.
Por quê?…
Seria isto efeito do acaso?
Ou é que os ratos tem no Brasil o
privilégio de escapar à justa curiosidade, e às justíssimas diligências
perseguidoras de quem os deve apanhar, e pôr em boa guarda?…
Não creio nesta segunda hipótese.
As ratoeiras abundam; todos o
sabem.
Agora o que desconfio que seja
verdade, e que a justiça pública arma ratoeiras que só apanham os camundongos,
e deixa e tolera que famosas ratazanas vaguem impunes, floresçam e brilhem,
fazendo farofa pelas ruas da cidade.
XL
Ainda conservava fixada a minha
luneta mágica no ponto donde me fugira o rato, quando senti rumor de pessoas
que vinham subindo a escada do sótão e ouvi distintamente a voz do médico.
O meu primeiro cuidado foi
imediatamente esconder a luneta do mesmo modo que antes fizera, e em seguida
fechei os olhos e fingi que dormia tranquilo sono.
Era meu intento, fingindo-me
adormecido, ouvir as observações do médico e dos meus três ruins parentes para
saber o que devia esperar e temer, e como me cumpriria, ou me conviria
proceder.
Confesso que foi grande atrevimento
meu querer iludir o médico com um sono falso; contei porém a ligeireza habitual
dos exames de muitos desses doutores que, depois do primeiro e esmerilhado
estudo do doente, supõem governar a natureza e a moléstia, e dão a cada uma de
suas visitas a duração de- cinco minutos por cerimônia.
Desconfio que a visão do mal tem me
tornado mordaz; mas os homens merecem ser tratados assim.
XLI
Entraram.
Reconheci as vozes do doutor, do
mano Américo da tia Domingas, e da prima Anica.
— Ele dorme, disse a prima Anica.
— Sono reparador, observou o medico
com um tom magistral.
E logo tomou-me o pulso com a maior
delicadeza para não me despertar; tocou-me a fronte, passando por ela a palma
da mão, e examinou-me o calor dos pés.
— Do mais grave perigo está salvo,
disse então o doutor; operou-se uma crise benéfica, e a congestão foi a tempo
embaraçada. Respondo pelo nosso homem.
— A noticia não pode ser mais
agradável, disse o mano Américo; mas eu receio muito alguma recaída…
— Não é impossível.
— A causa subsiste…
— Que causa?…
— A posse em que ele está da luneta
que supõe mágica.
— Luneta que é obra do diabo!
exclamou a tia Domingas.
— Luneta aleivosa e má, acrescentou
a prima Anica.
— Minhas senhoras, não indiciem
acreditar no poder mágico da famosa luneta para que eu não me convença de que
devo tratar aqui de três doentes em vez de um.
— Essa é boa! tornou a tia
Domingas: pois seria a primeira vez que o espírito maligno fizesse das suas no
mundo? Bem se diz que os médicos não são religiosos.
— O senhor doutor talvez tenha
razão, disse Anica; há porém coisas que fazem tontear a gente!
— Eu creio, respondeu o médico em
tom brincão: a senhora por exemplo não tem em si o espírito maligno, e contudo
aposto que terá feito andar às tontas as cabeças de muitos moços de bom gosto.
— Ora, ora.
— Mas, doutor, acudiu o mano
Américo; tratemos seriamente deste caso: eu também não tenho a simplicidade
pueril de acreditar no poder mágico da luneta fatal; todavia meu irmão está
possuído dessa idéia.
— O que é mau sintoma, convenho.
— Muita gente se julga ofendida
pela luneta e a teme…
— Segue-se que também é preciso
tratar dessa gente que padece tanto, como seu irmão.
— O doutor graceja…
— Não; falo sério.
— Penso que convinha muito e ainda
mesmo à força tomar essa luneta, e quebrá-la.
— Francamente, disse o médico;
julgo que seu irmão iludido por um suposto mágico, tem-se tornado vitima da
própria imaginação exaltada no maior extremo; com efeito essa ilusão, de que
ele é escravo, assumiu o caráter de mania…
— Então…
— Ou é possível ou impossível
curar-lhe a manta: se é impossível, para que atormentar seu irmão inutilmente?
Se é possível, nós o curaremos da mania mais tarde…
— Mas…
— Agora eu o vejo escapando apenas
a um ataque cerebral que ameaçou tomar proporções terríveis, e o ressentimento
de qualquer violência que ele sofresse, seria capaz de levá-lo à sepultura.
— E a influência maléfica da
luneta?…
— Proíbo que contrariem e que
desgostem de qualquer modo o nosso doente.
— Então ele está realmente doido,
senhor doutor? perguntou Anica.
— Cuidado, minha senhora; seu primo
foi multo seriamente ameaçado de uma congestão cerebral; acudimo-lo a tempo;
conseguimos prevenir um caso talvez desesperado, mas qualquer imprudência pode
ainda ser fatal.
— A minha pergunta…
— Foi menos prudente; se seu primo
a ouvisse receberia cruel impressão. Felizmente ele dorme.
XLII
Senti verdadeira dor de consciência
por estar com o meu fingido sono enganando ao homem que tão decidido me
defendera.
Abri os olhos; fiz de conta que
despertava.
— Como vamos? perguntou-me o
doutor.
— Acho-me bom; mas fraquíssimo.
— Fui eu que o enfraqueci:
tirei-lhe sangue, como nenhum outro médico se lembra mais de tirar; agora a
moda é condenar a lanceta; eu porém adoro ainda a minha…
— Obrigado, doutor. Se me quiser
estender sua mão, eu a beijarei… duas vezes.
— Tão bom me acha?
— Pela minha gratidão acho-o ótimo.
— Logo nem todos os homens são
maus.
Compreendi a alusão e guardei
silêncio.
— Daqui a alguns dias resolveremos
esta importante questão; agora não lhe permito conversar nem mesmo com os seus
parentes.
— Pode ficar descansado nesse
ponto, doutor; juro-lhe que não lhes darei nem palavra.
— Que ingrato! murmurou Anica que
me apertava uma das mãos.
— Além disso quero que esteja
absoluta, perfeitamente tranquilo, e sem a mais leve apreensão triste ou
temerosa no ânimo.
— Como?
— Que é da sua luneta?
— Tenho-a escondida, doutor.
— Escondida por que?
— Não me pergunte o que sabe: a
minha luneta é o único tesouro que possuo no mundo ou na vida, e querem
roubar-me!!!
— Não é preciso exaltar-se tanto;
confie mais em seus parentes que o amam, e que são os primeiros a garantir-lhe
a posse do seu pretendido ou verdadeiro tesouro.
— Ontem à noite empregaram a força,
lutaram, magoaram-me para arrancar-me a luneta…
— Engana-se: ontem à noite o senhor
teve ardente febre e delírio… não se passou, o que acaba de dizer; pode usar
de sua luneta sem receio algum; tranquilize-se, serene o seu espírito os seus
parentes estão aqui, e em prova de cuidado e de amor estão prontos, embora não
seja isso necessário, a dar-lhe todas as seguranças…
— Sim, mano Simplício, disse
Américo com acentuação enternecida; podes usar da tua luneta com a mais plena
liberdade, que eu serei o primeiro a fazer respeitar por todos os meios.
— Benza-te Deus, menino! Que mal
nos faz a tua luneta? exclamou a tia Domingas.
— Primo, eu preferiria morrer a
causar-lhe o menor desgosto, assobiou suavemente Anica com a sua voz de música
afinada.
— Já ouviu? perguntou-me o doutor.
Eu estava dentro de mim revoltado
contra aquela hipocrisia refinada dos meus três parentes inimigos; por eles
media, aquilatava ainda uma vez a perversão e a malvadeza da humanidade, e em
meu assanhado ressentimento desejei castigá-los, ostentando a minha
desconfiança.
O médico proporcionou-me a
oportunidade do castigo.
— Que é da sua luneta?…
perguntou-me ele outra vez, notando sem duvida a minha reflexão.
— Receio… desconfio sempre,
respondi com azedume franco.
— Apresente-a; sirva-se dela; conte
com a proteção de seus parentes.
— E quem é deles o fiador?
perguntei acerbo.
Percebi um movimento, tríplice
movimento de contrariedade e de viva impressão de ofensa; libei a minha
vingança.
— Injusto irmão! disse Américo.
— Que pecado contra a natureza!
bradou a tia Domingas, acrescentando em voz baixa: ave Maria, Deus te perdoe!
— Meu primo! como você é ingrato!
balbuciou a prima Anica.
O doutor desatara a rir.
Os médicos são os homens que mais
riem ou os homens que nunca riem, porque são os homens que mais e melhor
estudam a humanidade por obrigação do ofício.
Eu quis provar que me não deixara
comover, e aplaudindo em minha consciência a eloquente risada do médico, firmei
a sentença da minha bem fundada desconfiança, repetindo a pergunta:
— E quem é deles 0 fiador? Quem se
atreve a ser o fiador dos meus três parentes?…
— Eu, disse o doutor.
Sem mais hesitar desatei a luneta,
e apresentando-a, fixei-a ousadamente, observando em rápido volver as quatro
pessoas que estavam diante de mim.
O médico ria-se, com um sarcasmo a
rir desenvoltamente.
O mano Américo, a tia Domingas, e a
prima Anica mostravam-se contrafeitos pelo vexame, e no mais completo e
ridículo desapontamento.
Como é vil, ruim, baixa e indigna a
humanidade!!!
XLIII
Este médico será uma exceção entre
os homens?… será bom e honesto?… a sua boca pronunciou palavras justas e
leais; o seu proceder foi o de um médico consciencioso; enganou-se com o meu
fingido sono ou por ligeireza de observação, ou por inabilidade; mas que será
este homem no fundo do coração?… evidentemente ele me defendeu; pareceu-me
bom e honesto; eu porém não me fio mais em aparências.
Hei de com a luneta mágica estudar
o meu doutor, quando tiver ocasião oportuna.
XLIV
Passaram pouco mais ou menos assim
cinco dias.
Eu me sentia perfeitamente
restabelecido; mas o médico teimava em administrar-me colheres de uma
preparação que ajudada de severa dieta debilitava-me cruelmente.
Este tratamento martirizava-me; no
quinto dia obtive que se suspendessem as malditas colheres de remédio que me
estavam prostrando; mas ainda me ficou a dieta apenas ligeiramente modificada
no sentido reparador.
Apesar disso o médico me convinha:
achei nele o meu protetor, e, o que é mais, o defensor dos meus direitos de
posse absoluta da luneta mágica. Ouvi-o por mais de uma vez lançar o ridículo
sobre os meus três ferozes parentes que teimavam em sustentar a conveniência de
despojar-me do meu tesouro.
Estimei, amei, adorei o excelente
doutor, o único homem, que eu tinha encontrado com bastante amor à verdade para
sustentar que eu não estava doido, e que não tinha receio da minha luneta, cujo
poder, se eu nisso acreditava, era, dizia ele, apenas inocente mania facilmente
curável.
Esta última apreciação, que era um
erro, talvez notável contradição de médico, pois se havia em mim tal manta, era
fácil que ela me levasse à perda completa do juízo, essa contradição, que bem
podia ser um recurso de consolação empregado pelo doutor, por fim de contas me
era útil, e tão agradecido me reconheci que deliberei não fitar a minha luneta
no doutor.
Eu devia-lhe tanto, que preferi
viver enganado com ele a expor-me a descobrir sentimentos repugnantes nesse
homem.
XLV
Em todo este tempo o meu extremoso
irmão que com tristes lamentações insistia em considerar-me doido, conservara
sempre no meu quarto um ou dois escravos de sentinela.
No sétimo dia de tratamento o
doutor logo que entrou acompanhado dos meus três adoráveis e estremecidos
parentes, despediu as malditas sentinelas, declarou que não eram necessárias e
que pelo contrário deveriam ter sido dispensadas desde o segundo dia.
Ficamos no quarto, o doutor, o mano
Américo, a tia Domingas, a prima Anica e eu.
— Ora pois! disse o médico,
dirigindo-se a mim, o senhor esta bom, e hoje venho despedir-me do seu
tratamento.
Desfiz-me em agradecimentos, que me
saíram do coração.
— Muito bem, tornou ele; quero por
em prova imediata a sua gratidão.
— Que quer de mim? mande, doutor.
— Todos falam da sua luneta mágica;
o senhor pretende que por meio dela pode ler no livro intimo dos sentimentos
dos homens: é isto verdade?
— f: verdade, doutor.
— Otimamente; eu duvido de tudo
isso e quero que dissipe as minhas dúvidas: dá-me palavra de honra que há de
dizer em alta voz tudo quanto ler e encontrar nos arcanos da minha alma,
fixando em mim sua luneta?
— Doutor!
— Eu o exijo.
— Oh! não!… eu lhe devo muito…
— Eu o exijo. Dá-me palavra de
honra?…
— Dou-lhe; é a pesar meu; mas dou-lhe.
— Fite pois em mim a sua luneta:
ela! venha a experiência.
Com ímpetos de curiosidade, talvez
de insensata saudade da visão do mal, tremendo porém de grato medo, fixei a
luneta mágica no rosto do médico, que imóvel e inabalável se deixou observar.
Vi e fui dizendo o que via.
— Cabelos castanhos e crespos,
fronte soberba, olhos pequenos, mas brilhantes e incisivos no olhar, nariz
aquilino, faces pálidas, lábios grossos e eróticos, pouca barba, mãos finas e
delicadas, corpo bem feito, e… oh!…
— Que é isso?…
— A visão do mal!… exclamei.
— Venha ela!
— Não! não! não!
— Deu-me a sua palavra de honra:
cumpra-a!
— Não!
— Eu o exijo.
Obedeci e falei tremendo e a pesar
meu.
— Bela inteligência, e estudo
profundo desvirtuados pela ambição do ganho, e pelo embotamento da
sensibilidade! O senhor desperta à meia-noite ao chamado anelante de um pobre,
cuja esposa lhe dizem que agoniza, e responde friamente: “procurem outro
médico: se a mulher agoniza, não vou lá”; e conchegando ao corpo os
lençóis, dorme sem remorsos; o senhor faz pacto de aliança com as moléstias dos
ricos que pagam, prolonga os tratamentos para multiplicar as visitas, e dobrar
os lucros… o senhor é materialista e incrédulo, não admite alma, espírito ri
da vida eterna, admira o acaso, e não reconhece Deus, criador do universo,
criador do homem, Deus do castigo do mau que não se arrepende, Deus do perdão
do pecador contrito!… O senhor é o homem da Inteligência, raio do céu, e da
ciência Incompleta, vaidosa e corrompida da terra! O senhor é uma fonte de
erros e de abominações, o senhor é perverso!…
O médico desatou em estrondosas
gargalhadas, talvez para disfarçar a confusão em que sem dúvida ficara, e saiu
do quarto, rindo-se cada vez mais estrepitosamente em seguimento de meu Irmão,
de minha tia e de minha prima que fugiram espantados do testemunho tremendo da
visão do mal.
XLVI
A luneta mágica tinha caído no meu
colo e eu me abismei mais tristes reflexões.
Ainda um desengano, o ultimo! O
doutor que fora tão bom, tão leal para comigo, que se me afigurara tão
escrupuloso no tratamento da minha moléstia, que com tanto acerto combatera, o
médico que usando da sua autoridade proibira que empregassem a menor violência
para me arrancarem a minha luneta, esse homem que eu quisera que fosse uma
exceção entre os homens, era como os outros e mais do que muitos outros,
Indigno da minha estima pelo seu ruim caráter.
Os seus escrupulosos cuidados
tinham tido por fim demorar a cura para ganhar mais dinheiro! …
A defesa da minha luneta fora
devida à incredulidade materialista, que o levava até o selvagem extremo de
negar a existência do espírito que anima o homem, e de Deus sempiterno e
onipotente!…
Isso porém não me espantou:
afligiu-me, aflige-me; mas eu já estava preparado para o desengano cruel; a meu
despeito, a despeito dos impulsos da gratidão, eu já desconfiava do médico.
O que me preocupa agora, o que me
atormenta é a negridão do meu futuro, e a incerteza terrível dos tormentos que
me esperam.
Que será de mim?… que vou eu
sofrer?… por que provações vou passar?…
XLVII
Não posso mais ser feliz: é
impossível.
Aborreço a todos, e todos me
aborrecem.
Sou um contra todos, a sociedade
toda está em guerra aberta contra mim. Não pode haver luta, vou sucumbir;
cairei ao primeiro golpe.
O grito do primeiro garoto, a
pedrada do primeiro menino malcriado será o anúncio do meu sacrifício
A voz geral brada que estou doido.
O médico que me tratou protesta que
não estou doido; mas confessa que estou maníaco. A distinção não me salva.
Ficarei para sempre fechado neste
quarto, ou, se aparecer na rua, gritarão mil vozes: “o doido! o doido!”
E arrastarão o doido para o
hospício dos alienados…
E me arrancarão à força a minha
luneta mágica, e hão de quebrá-la, destruir o poder da visão do mal!…
Oh! é horrível esta situação.
XLVIII
E de que me serve mais esta luneta
fatal?…
Ela já me fez conhecer a sobras o
mundo e os homens. Doravante nada mais pode ensinar-me que seja novo para mim.
Se me arrancarem, se a quebrarem,
ficarei em todo caso com a ciência que ela me deu;
Que a quebrem pois! Pouco importa.
O que me apavora é a incerteza e o
medo dos transes, a que tenho de sujeitar-me.
Se ao menos eu soubesse, se eu
pudesse prever o que se projeta, se planeja, e se realizará contra mim
amanhã… de hoje a três dias, daqui a um mês ou mais tarde…
Se eu pudesse acabar de uma vez com
esta incerteza que é o pior dos martírios…
Oh! …
O armênio me proibiu fixar a luneta
mágica por mais de treze minutos, sobre o mesmo objeto, porque além de treze
minutos começaria a visão do futuro.
A visão do futuro! … é a que eu
aspiro, o que ardentemente agora desejo.
É verdade que o armênio também me
assegurou que a visão do futuro me era negada, e que a luneta magica se
quebraria entre meus dedos, se eu a fixasse sobre o mesmo objeto por mais de
treze minutos.
Mas quem sabe se o armênio procurou
enganar-me?… Quem me diz que ele não inventou esse meio, que não empregou
essa proibição dolosa para impedir que eu chegasse até a visão do futuro e dela
me aproveitasse?…
A visão do futuro me daria poder
igual ao do mais abalizado mágico; com ela eu seria igual ao armênio…
Diz-me o coração que o armênio quis
enganar-me, e que eu posso ter a visão do futuro; e por ela igualá-lo na
extensão do poder mágico.
Quero fazer a experiência. Que me
pode acontecer de pior?… quebrar-se a luneta entre os meus dedos… ora! …
e sem a visão do futuro, de que, para que mais me serve esta luneta?…
XLIX
O desejo impetuoso, irresistível da
visão do futuro dominou-me absolutamente.
Ardi por efetuar a experiência.
Mas o futuro que eu principalmente
e antes de tudo almejava conhecer, era o meu.
Como era possível que eu fitasse a
minha luneta mágica em mim próprio, no meu próprio rosto?…
Pensei debalde uma hora, e acabei
entendendo que não há recursos para vencer o impossível.
Pois há! mercê do encanto prodigioso
da minha luneta mágica. há.
Em um momento de inspiração que me
pareceu feliz, lembrou-me de fitar a luneta na imagem do meu rosto refletida
pelo vidro do espelho.
E saltei da cama, e corri ao
espelho, e fitei na imagem do meu rosto a luneta mágica.
L
Vi-me pálido, abatido, desfigurado,
vi-me outro, e muito diferente, do que eu ainda era um mês antes… vi meus
olhos encovados, e meu olhar inquieto, cheio de flamas, e como que temeroso…
vi sem dar importância ao que via, os senões e talvez os dotes físicos do meu
semblante…
Eu estava ansioso pelo fim dos
treze minutos; quase que não tinha consciência do que estava por força vendo…
eu tremia, e esperava a visão do futuro: era a minha idéia exclusiva.
De súbito estremeci violentamente.
Oh! sem que eu nisso cuidasse, sem
que eu com isso tivesse calculado, oh!… cheguei antes da visão do futuro à
visão do mal!…
E quereis sabê-lo?… vi a minha
perversidade!…
Meu Deus! isto e necessariamente
mentira, ou castigo; meu Deus! eu não sou assim!…
Vi que sou o mais infame
caluniador, e inimigo dos meus parentes! Vi que em frenesi de malvadeza
infernal assaco aleives contra os homens, atiro aleives sobre nobres senhoras,
e inocentes donzelas, ouso insultar ao pé dos altares os sacerdotes, respiro o
mal, vivo do mal, semeio o mal…
Eu estava em convulsão…
detestava-me… tinha horror de mim próprio, desprezo pela minha torpe
individualidade, vi-me tão imundo, tão profundamente vil e asqueroso, que
desejei cuspir, e, se pudesse, teria cuspido no meu rosto.
Vi-me ainda venenoso como a pior e
a mais enraivada das serpentes; vi-me em fúrias de enraivadas atrocidades,
possesso do demônio, vi-me morder em delírio todos os seres da criação, e
maldito hediondo, horroroso, ultrajando a Deus, o criador.
Soltei um grito de pavor indizível,
e apertando desesperado os dedos, quebrei, fiz em migalhas a luneta, e sem
sentir a dor da mão ferida e ensanguentada pelos pedaços de vidro que tinham
nela se entranhado, fui cair no leito chorando desabridamente, e por entre
dolorosos soluços, bradando em alta voz:
— Perdão!… perdão!… perdão!…
FIM DA PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
INTRODUÇÃO
I
Oito dias deixei-me clausurado em
casa, maldizendo da minha infelicidade.
Eu tinha recebido da experiência
uma grande lição; mas como quase sempre acontece ao homem, veio-me a lição da
experiência, quando não podia mais aproveitar-me.
A Insaciabilidade do desejo para a
causa determinante do meu maior infortúnio.
Pobre míope o que eu mais
ambicionara, por muito tempo debalde, consegui enfim obter um dia, tive uma
luneta potente que deu a meus olhos a vista penetrante da águia.
Alcançado beneficio tão grande,
tesouro tão precioso, aquilo que se me afigurara impossível desejei mais!
Quis ter e gozar a visão do mal, a
que o armênio sabiamente me aconselhara não expor-me, esclarecendo-me sobre os
seus perigos.
Mas desejei e quis ter, e tive essa
visão fatal, e por ela tornei-me o homem mais desgraçado.
Não me corrigi ainda assim, e
desejei a visão do futuro que me fora proibida, sob pena de quebrar-se em
minhas mãos a luneta mágica.
Desejei e quis ter a visão do
futuro; mas antes de chegar a ela detestei a luneta que me inspirava horror de
mim próprio, e em furioso ímpeto despedacei o vidro mágico, realizando-se desse
modo a sentença do armênio.
E agora os meus olhos ficaram sem
luz, estou tateando as trevas, e o desejo de gozar com a vista a natureza é mil
vezes mais ardente, do que outrora; porque eu já vi, e já sei o que perco não
vendo, como pude ver.
Ah! no outro tempo eu era como um
cego de nascença, infeliz; ao menos porém não apreciando bastante a profundeza
da minha miséria; agora eu sou o cego que já viu, que cegou depois de ter
visto, e que sabe tudo quanto perdeu com a cegueira!…
Maldita seja a insaciabilidade do
desejo, que envenena a vida do homem, e que mil vezes o leva a sacrificar
imenso bem que está gozando pela ambição de mais gozos ainda, e do que não lhe
era preciso para a felicidade da vida!
Eu já vivi no mundo da luz, e agora
estou condenado, condenei-me a vegetar no cárcere das trevas.
II
O despedaçamento, a destruição da
minha luneta mágica foi muito festejada pelos meus três parentes e pelo que me
disseram, a notícia do fato mereceu as honras de uma gazetilha do Jornal do
Comércio, espalhou-se pela cidade, e tranquilizou o espírito da sua população
que tanto se exaltara contra a visão do mal que eu possuía.
O mano Américo teve a bondade de
fazer-me ouvir um discurso consolador, em que me demonstrou que eu tinha sido
vítima de um longo acesso de loucura; que eu nunca vira mais do que dantes; que
a minha miopia não era suscetível de recurso ou socorro algum que me
emprestasse vista, e que enfim, quebrando a luneta, eu me libertara de uma
ilusão perigosíssima, e rematou o discurso com a eloquente peroração, jurando
que estava pronto a continuar a ver e pensar por mim.
A tia Domingas mandou apanhar todos
os pedaços do vidro que eu quebrara, e lançá-los ao mar, dizendo que havia
neles malícia do diabo, de que eu estivera possesso, durante não poucas
semanas, e manifestando finalmente a crença de que ao poder das suas orações
fora devido o despedaçamento da luneta mágica, e de que a salvação da minha
alma, e a doce tranquilidade da minha vida teriam tanto mais segurança, quanto
mais completa e irremediável fosse a minha miopia, que me livrara de enormes
pecados.
A prima Anica foi dos três parentes
o único que teria podido fazer-me sorrir, se nos meus lábios fosse ainda
possível ralar um sorriso suave, e haver no meu coração um resto de confiança
para essa moça interesseira e egoísta.
A prima Anica procurou convencer-me
de que a minha luneta diabolicamente encantada me fizera ver os objetos ao
contrário do que eles são na realidade, e que por isso mesmo eu devia acreditar
e considerar formosa a senhora que me tivesse parecido feia ou menos bonita, e
ter em conta de virtuosa, recatada e dedicadíssima aquela que pela visão do mal
eu houvesse julgado loureira, má e calculista. Lembrou-me Cícero, pleiteando a
própria causa.
E logo depois dessa teoria sobre a
luneta mágica, a prima perseguiu-me cruelmente para que eu lhe confiasse em
segredo todas as revelações que eu recebera da visão do mal relativamente às
senhoras do seu conhecimento. Uma vez, por inocente malícia, comuniquei-lhe uma
apreciação cruel, talvez aleivosa, dos sentimentos, e do caráter da mais
intima, e aparentemente mais estimada das suas amigas, que aliás eu não tivera
ocasião de observar com a minha luneta.
A prima Anica, ouvindo-me,
exclamou:
— É isso mesmo! exatíssimo
juízo!…
— Anica, disse-lhe eu; a minha
luneta era diabólica, como você me assegura, e o que ela me fez apreciar e me
mostrou, deve-se entender pelo contrário, segundo a sua opinião…
— Primo, respondeu-me Anica sem
hesitar, o diabo para enganar facilmente, às vezes diz e mostra a verdade.
Eu fiquei profundamente convencido,
de que houvera menos diabo na minha luneta mágica, do que havia nos pensamentos
e nos sentimentos da prima Anica.
III
Depois do oitavo dia da minha
voluntária clausura despertei no seguinte ao canto de um cenário que festejava
a aurora.
Levantei-me e fui debruçar-me a
janela que abria para o jardim.
O frescor suave das auras, o
perfume das flores, o ruidoso acordar da cidade lembraram-me aquele anelado
amanhecer do dia, em que eu fizera a primeira experiência da minha luneta
mágica; e as arrebatadores impressões que eu recebera, podendo ver, e admirando
a aurora, as flores, as borboletas, a natureza enfim.
Os pesares, as sensações
repugnantes, os tormentos e o horror da visão do mal como que se varriam da
minha memória exclusivamente empenhada em avivar a saudade do bem que eu havia
Perdido.
Apoderou-se de mim melancolia tão
profunda e sombria como era profunda e sombria a noite dos meus olhos.
Passei um dia de silenciosa
amargura, e arrependi-me mil vezes de haver quebrado a minha luneta mágica.
Se eu tivesse sido mais prudente, e
ainda mesmo dissimulado, por certo que não me teriam faltado meios de iludir
quantos me cercavam e cercam, e de conservar a preciosa luneta.
Agora é tarde, e o meu pungente
arrependimento não me aproveita, e só duplica a aflição que me acabrunha.
A cada momento vinham-me à
lembrança o Reis e o armênio, o Reis tão bom e amável, tão complacente e
obsequiador; o armênio tão hábil e tão sábio; tão poderoso em magia, e tão leal
em seus conselhos.
Lembrança inútil!
Eu havia sido tão descortês, tão
ingrato em meu proceder em relação ao Reis, que me não era licito pensar em ir
de novo bater à sua porta, que ele tinha o direito de me fechar no rosto.
E o armênio? Como poderia eu
aparecer, mostrar-me diante dele depois da minha desobediência aos seus
preceitos?…
E todavia eu teimava sempre em
lembrar-me do Reis e do armênio…
E de instante a instante perguntava
a mim mesmo, se o armênio ainda se conservava trabalhando nas oficinas do
Reis…
A idéia de voltar ao famoso armazém
de instrumentos óticos da Rua do Hospício, começava a perseguir-me, a
dominar-me, como a paixão mais violenta escraviza, e move, impele e arrebata a
sua vitima.
Dois únicos sentimentos ainda me
tolhiam os passos: eram o vexame e o medo.
IV
É claro que eu estava em caminho
adiantado para vencer o vexame, que me fazia hesitar em apresentar-me na casa
do Reis.
Todo o homem é mais ou menos
egoísta e em proveito do seu egoísmo raro é aquele que em circunstâncias
imponentes, em casos extraordinários não sacrifica simples consideração de
delicadeza.
Quantos homens ricos e maus que
nunca deram esmola ao pobre, tornados mendigos pelo vaivém da fortuna,
deixariam de estender a mão pedinte a algum recente herdeiro de inesperada
riqueza, ao qual dantes tivesse por vezes respondido: Deus o favoreça?!…
Eu não fiz tanto como isso: hei de
pois dominar o meu vexame e ir à casa do Reis.
Pedirei perdão com humildade, e luz
para meus olhos, como um condenado à morte que pede a vida ao poder que e capaz
de dá-la.
O medo que eu tenho, é de sair à
rua, de expor-me às zombarias, as vaias, à perseguição dessa gente que me
detestou, que talvez me detesta ainda por causa da visão do mal.
Em seu ódio, em seu empenho de
vingança muitos conspiraram para que eu fosse reputado maníaco ou doido, e em
todo caso perigoso e nocivo à sociedade.
Horrível ameaça pesou sobre mim, e
mais de uma voz, mais de um conselho sinistro apontava a conveniência de me
recolherem ao hospício dos alienados.
Eu tenho medo de aparecer a essa
gente que maldizia de mim, e que pedia a minha prescrição, o encarceramento do
doido.
Tenho medo de sair à rua.
V
Refletindo bem, me parece que este
medo chega a ser pueril. Tenho duas presunções a favor da minha segurança, duas
observações que destroem todos os fundamentos do medo.
Não se provou, conforme as
exigências da lei que eu estivesse ou fosse doido; o pronunciamento de muitos
homens irrefletidos apenas poderia indicar que eu era um excêntrico ou enfim
possuído de esquisita mania, o que nem por isso prejudicava o meu juízo em
relação a todas as circunstâncias e condições da vida particular e social.
Ora, na cidade do Rio de Janeiro
não só não se recolhem ao hospício dos alienados os excêntricos e maníacos da
ordem em que fui contemplado, como é certo que os excêntricos, e adoidados não
reconhecidos legalmente doidos gozam privilégios de tolerância, e de
indulgência, e quando algum deles ofende a sociedade, com o escândalo publico,
em que compromete o decoro da família ou ataca de frente as mais veneráveis e
santas considerações sociais, encontra impunidade certa, e desculpa segura na
vos do povo que diz: “não se faça caso: aquilo tudo é excentricidade o
homem tem suas manias mas no fundo é boa coisa”.
Eu creio pois que não há lugar nem
cidade como o Rio de Janeiro, em que se possa ser impudentemente e sem
inconveniência pessoal não somente excêntrico e maníaco mas até doido,
completamente doido, contanto que se traje de paletó escovado e se tenham meses
ou dias de lucidez.
Afora esta importante consideração
que deve utilizar-me, conto por mim o tempo, que ainda mais foi ajudado pela
notícia da destruição ou despedaçamento da minha luneta mágica.
Perdida, quebrada a luneta, cessou
o motivo da perseguição que moviam contra mim.
E lá vão oito dias!
Oito dias valem oito anos para
memória e para as impressões mais fortes do povo da nossa capital.
Em oito dias regenera-se o político
que a opinião pública irritada condenou.
Em oito dias do réu se faz o juiz do pleito em que fora réu.
Em oito dias as vezes a rocha Tarpéia se transforma em Capitólio.
Em oito dias corre o Letes por onde estava bramindo a memória de
um escândalo.
Em oito dias a sociedade ligeira, inconstante, mudável, seria
capaz de santificar o diabo.
Não há atividade de opinião que resista à extensão, à eternidade
de oito dias na nossa capital.
O nosso povo é a certos respeitos povo um pouco francês.
Eu tenho por mim oito dias: refletindo assim, perdi o medo e vou
sair a rua.
Ensaiarei um passeio de simples experiência, e se eu for feliz, se
me deixarem em paz andar pela cidade, amanhã ou depois de amanhã irei à casa do
Reis.
VI
Ao cair da tarde saí.
Em relação a meus olhos pouco importava que eu saísse de dia ou de
noite; quis porem arriscar-me a aparecer à luz do crepúsculo para observar a
impressão que a minha pessoa causava ao público.
Não me era possível apreciar expressões fisionômicas daqueles que
reparassem em mim; mas eu tinha e tenho bom ouvido de cego, e não me escapariam
nem o murmurar da maledicência, nem mesmo o sussurro da curiosidade revelada em
trocas de palavras abafadas.
Caminhando vagarosamente, e com atenção dissimulada, porém viva,
ouvi, e percebi o que alguns disseram, vendo-me passar.
— Míope ou antes cego, como dantes!
— Perdeu o encanto…
— Que encanto! caluniavam o pobre rapaz…
— Deveras?
— Foi vítima da mais cruel perseguição.
— Coitado!
— Querem-no cego para desfrutarem-lhe a fortuna…
— Que imoralidade!
Eis como pensavam e murmuravam quase todos ao considerarem o meu
infortúnio.
Volúvel e caprichosa cidade! o seu juízo se modifica, e até muda
completamente com o volver de alguns dias, e o objeto das maldições pouco a
pouco se torna objeto de simpatias.
Estudai a capital; a nossa é provavelmente como todas as outras de
iguais ou maiores proporções: os seus habitantes vivem sujeitos ao contagio
moral dos sentimentos; uma opinião entra em moda, poucos a examinam e discutem,
a novidade a recomenda, o contágio moral a espalha, mais tarde a reflexão
começa a patentear-lhe as falhas, o espírito ressentido reage, a reação
propaga-se por novo contágio, e se pronuncia fulminando-a, e então nem
distingue o que ela pode ter de exatidão e de verdade entre os erros, aliás a
principio aplaudidos como acertos.
A opinião pública é deslumbrante, mas leve e fugitiva;
assemelha-se às fadas dos contos orientais, encanta, porém ilude; é igual às
jovens formosas e facilmente apaixonadas, seduzem e cativam e mudam de amor em
breve prazo.
Quando cheguei ao fim destas e de outras semelhantes reflexões,
era noite, e eu me achava sentado em um dos bancos de pedra do jardim da Praça
da Constituição.
Ninguém reparava em mim, senti-me ou isolado ou defendido pela
indiferença de todos, e todavia, poucos dias antes eu tinha sido naquele mesmo
lagar causa de alvoroço geral e vira a multidão fugir aterrada da minha
presença, como se eu estivera na Ásia e afetado da poste negra.
É triste, miséria da humanidade! Aquela indiferença que em minhas
apreensões desse mesmo dia, eu desejava tanto, e tanto pedira ao céu, aquela
indiferença que era a paz que a população me concedia, acabou por fatigar-me,
por despertar o ressentimento da mais estulta vaidade em minh’alma de pobre
pecador.
A popularidade é sempre um pedestal em que o homem se levanta
acima dos outros; mas a impopularidade também é pedestal, distingue pela
reprovação ruidosa, e em vez de abaixar, também levanta, também arranca do
vulgar a sua vítima, e para açoitá-la, eleva-a ao pelourinho, e mostra-a pela
sua perseguição ou pelo seu ódio acima das proporções comuns da generalidade.
Eu já havia experimentado a distinção torturadora da aversão
popular; eu já tinha sido notabilidade embora adiada, e senti-me abatido,
desprezado, aviltado, reduzido à invisível nulidade pela indiferença com que me
deixavam nem olhado no meu banco.
Houve um momento em que atiçado, impelido, enlouquecido pela
influencia traiçoeira da mais estúpida vaidade, tive ímpetos de levantar-me, e
de bradar àquela multidão que não me via: “olhai-me! persegui-me! eu tenho
a visão do mal…”
Mas exatamente nesse momento alguém me tocou com a mão no ombro, e
me disse ao ouvido:
— Até que enfim nos encontramos!
VII
Vi diante de mim e logo sentado a
meu lado um vulto de homem, de quem não pude distinguir as feições e nem ao
menos a moda e a cor dos vestidos.
— Quem é? perguntei.
— Pois a tal ponto se esqueceu de
mim?…
— Se me conhecer, deve saber que
sou quase cego.
— Sou o Reis.
Reconheci imediatamente a voz do
Reis, mal pude abafar um grito que me rompia da alma e creio que teria caído de
joelhos, se esse excelente homem não me tivesse contido.
— Perdão! balbuciei; eu fui um
ingrato, perdão!
— Seja prudente, disse-me ele;
conversemos em voz baixa; não convém que o reconheçam.
Apertei com ardor as mãos do meu
bom amigo Reis, e ainda assim tive um pensamento suspeitoso, maligno; pois perguntei
a mim mesmo, se a visão do mal não desmentiria as aparências tão eloquentes e
persuasivas da bondade, e do generoso caráter deste homem.
Era a dúvida, era o ceticismo que a
visão do mal tinha inoculado no meu espírito
Guardei silêncio inexplicável pela
desconfiança que me inspirava a humanidade; mas o meu egoísmo os cálculos do
meu interesse pessoal fizeram com que eu mantivesse apertadas entre as minhas
as mãos daquele, em que de novo eu depositava todas as esperanças, de remédio,
de recurso, de socorro para a minha miopia.
— Então inutilizou a sua luneta?
perguntou-me o Reis.
— É verdade: em um acesso de
desespero pelo horror que tive de mim próprio, ousei praticar esse ato de
loucura.
E referi miudamente toda a história
dos prodígios da luneta mágica, e todos os desgostos que eu sofrera por ela.
— Também eu por minha parte não
sofri pouco; porque perseguiram-me e há quem me persiga ainda por lunetas
mágicas; mas com efeito é extraordinário, e incompreensível!…
— A luneta?
— Não; continuo a não acreditar no
poder da cabala; é porém incompreensível a ilusão pasmosa dos seus sentidos.
— Não houve ilusão; eu juro…
— Juram do mesmo modo e com a mesma
convicção quantos têm sido vitimas de igual ou semelhante exaltação enferma do
espírito.
— Oh! eu era, como sou, tão míope
que posso considerar-me cego, e mercê daquela admirável luneta vi
distintamente, perfeitamente…
— Até ai creio, é possível; mas na
famosa visão do mal não acredito.
— E todavia era real e
incontestável.
— Eu só tenho fé em Deus, e creio
somente na verdadeira ciência; se a magia fosse uma realidade, e eu quisesse
explorá-la, ganharia milhões em poucos meses.
— Como?
— A mania do nosso armênio se
agrava cada vez mais: ofendido pela incredulidade, e, diz ele, dedicado a minha
pessoa pela influencia irresistível de não sei que fluido misterioso e
inescrutável de que ele me fala, oferece-se para operar maravilhas, que
tornariam o meu armazém em oficina encantada.
— Que maravilhas?
— Entre cem outras por exemplo as
seguintes: óculos que façam ver o que se passa a mil léguas de distancia;
pequenos espelhos polidos pela magia que reproduzam a imagem do rosto de uma
velha com todas as graças da sua mocidade passada, binóculos, por um de cujos
vidros, se veja todo o passado e pelo outro todo o presente da vida intima da
pessoa que se observa; instrumentos de precisão ótica que patenteiem o ouro, as
pedras preciosas, as riquezas e os segredos dos monstros oceânicos que se
escondem por baixo das camadas da terra, no leito dos rios, e no fundo dos mares;
lunetas e pince-nez que emprestam à mulher morena da Arábia e
a mameluca do Brasil a palidez romanesca das filhas melancólicas da poesia dos
sonhos, e aos olhos negros da caucasiana, e aos negros cabelos da espanhola os
olhos cor do céu azul da inglesa, e os cabelos de ouro das princesas dos cantos
de Ossian.
— É extraordinário!
— O armênio com efeito o é; quer
saber? no dia e na hora, em que o senhor quebrou a sua luneta, ele veio ter
comigo e disse-me: “a salamandra libertou-se: o seu míope quebrou a luneta
magica”.
— É possível?!!!
— Dois dias depois as folhas
diárias da capital deram conta do caso.
— E onde esta o armênio?
— Sempre encerrado em seu gabinete
prestigioso no fundo do nosso armazém.
— Adivinhou então o meu infortúnio?
— E espera-o.
— Espera-me?
— Assegurou-me que o senhor nos
procuraria amanhã: marcou-me o dia.
— Ainda esta!. era a minha idéia; confesso-o. E não o espanta essa
previdência do futuro? Essa vidência do pensamento alheio?
— Espanta-me por certo; mas sei também que a ciência está longe de
ter pronunciado sua última palavra sobre os assombrosos fenômenos do
magnetismo..
— E o armênio
— Conta com a sua visita.
— Eu hesitava e temia…
— E ele assegura que dará novo e infalível recurso para vencer a
sua miopia, novo e infalível porém não o mesmo.
— E se eu bater à sua porta?…
— A porta da nossa casa abre-se a todos os homens, que vão bater a
ela, e para os honestos, para os honrados nunca houve hora em que não se
abrisse.
— Irei amanhã.
— É o dia marcado pelo armênio.
— Marcou ele também a hora?
— Disse que do dia e da hora a escolha lhe pertence e que do dia e
da hora depende a condição benigna ou maléfica do socorro que lhe poderá dar.
— E qual a hora mais propícia?
— Não quis dizer.
— Em todo caso terei luz para os meus olhos?
— Terá, conforme ele assevera.
— Depois da meia-noite começa o dia de amanhã: irei depois da
meia-noite… estou ansioso… irei, se a sua bondade chega a tolerar a minha
visita em horas, em que o descanso e o sono é um direito de todos.
— Hei de velar esta noite; não creio na magia; quero, porém,
desejo e peço uma segunda experiência do poder desse armênio que se presume
mágico, e se julga capaz de realizar impossíveis.
— Espere-me, pois que eu irei.
— Quer que previna o armênio?…
— Como lhe parecer melhor.
— Em tal caso prefiro experimentar, se espera e adivinha a sua
visita. Não o prevenirei.
— Conte pois comigo; mas… depois da meia-noite.
— Por que tão tarde?…
— Não sei: instintivamente desejo falar ao armênio em hora mais
próxima do dia…
— Achar-me-á velando.
O Reis levantou-se e, depois de me apertar a mão, retirou-se.
VIII
Fiquei só, refletindo.
Eu ia de novo recorrer a magia, e,
se alcançasse outra e igualmente poderosa luneta, talvez expor-me de novo às
perseguições do povo.
Ter uma luneta mágica para não usar
dela, seria criar para mim o martírio de Tântalo.
Usar da luneta mágica novamente
obtida seria perigo quase certo para a minha segurança.
Reproduziram-se pois as minhas
tristes apreensões, e os meus cuidados, e se me antolhava um tormento que ainda
não provara, a certeza da visão, ou a impossibilidade de exercê-la pelo medo da
perseguição…
Portanto era minha sina sofrer
sempre, ser sempre como o proscrito dos homens!
E todavia em todo caso eu desejava,
eu queria poder ver.
Mas se a magia era uma ciência
sobrenatural, porém verdadeira, pois que operava as maravilhas que eu
experimentara, e contava ir experimentar, por que não poderia ela também
livrar-me da reprovação publica e torná-la mesmo se não em estima ao menos em
tolerância ou indulgência?
Resolvi-me a falar sobre este
assunto ao mágico, a quem regato capaz de realizar impossíveis.
Não compreendo, não posso admitir a
pertinácia, com que o meu amigo Reis nega-se a reconhecer o miraculoso poder do
armênio.
Ou eu me engano muito, ou anda ai
receio pueril de expor-se ao ridículo, e de passar por explorador de suposto
charlatanismo na opinião dos espíritos fortes.
Os espíritos fortes! Não conheço
espíritos mais fracos do que esses que se dizem fortes. A sua força consiste na
negação de tudo quanto não podem explicar ou pelos sentidos ou pela sua razão
que só resolve dentro do círculo das ideias que recebe pelos sentidos. A sua
negação 6 pois um trono consagrado à ignorância, e firmado no materialismo.
Dantes eu não sabia reconhecer a profundeza
destes erros filosóficos; graças porém à influência da minha luneta mágica, e
principalmente à visão do mal, acho-me curado da minha miopia moral.
Faz-me pena, não digo a
incredulidade, porque não a admito, mas a obstinação do meu amigo Reis.
Um homem que tem nas suas oficinas
um mágico da força do armênio, e mágico que lhe oferece prodígios, teima em não
querer experimentar ao menos a capacidade extraordinária, os trabalhos
estupendos desse esclarecido adepto da cabala.
Só o receio do ridículo, e o
respeito exageradíssimo aos espíritos fortes pode explicar semelhante
procedimento.
Pois eu tenho para mim que em
proveito da humanidade, e em especial serviço ao público brasileiro, devo
comprometer tanto quanto me for possível o Reis.
Se eu conseguir, como espero,
segunda luneta mágica tão admirável como foi a primeira, anunciarei pelos
Jornais a existência do armênio nas oficinas do Reis, e a diversidade e
surpreendentes condições dos instrumentos óticos que ele pode temperar no fogo
da magia.
Tenha o amigo Reis paciência, hei
de comprometê-lo, e as justas exigências dos seus fregueses e do público o
obrigarão a aproveitar-se da habilidade magica do armênio, e a facilitar a
todos os instrumentos óticos por este preparados.
Se assim não quisesse, cumpria-lhe
não ter e não conservar esse mágico em suas oficinas.
IX
Empreguei tanto tempo nestas
reflexões, que de súbito as interrompi, quando o guarda do jardim veio dizer-me
que era tempo de retirar-me, pois ia trancar as grades.
A noite se adiantava.
Deixando o jardim, pensei que não
me convinha recolher-me a casa.
Meu irmão, minha tia, e a prima
Anica bem poderiam desconfiar do meu primeiro e prolongado passeio depois da
inutilização da luneta mágica, e ficando alerta, embaraçar a minha saída de
casa em desoras.
Achei prudente este juízo, e
resolvi-me a matar o tempo, passeando pelas ruas desertas da cidade.
E passeei… e andei, como o judeu
errante; ninguém me perguntou quem eu era, nem me espiou os passos.
Míope nada vi; mas distraí-me,
ouvindo o ruído anunciador da negligencia da autoridade pública.
Ouvi o ressonar de mais de um
indigente que dormia nos degraus do alpendre de uma igreja, e perguntei a mim
mesmo se não havia na capital do Império um asilo para a indigência sem teto,
para a miséria esfarrapada e sem recurso.
Ouvi as juras e os protestos de
jogadores infelizes ou roubados, que saiam em furor de uma casa, onde se
cantavam árias italianas ao som do piano na sala da frente, e se arruinavam
fortunas ao lansquenê em alguma saia do interior; e perguntei a mim mesmo por
que a polícia, que invade a alçada de todos os poderes do estado, não manda
trancar as portas das casas públicas de jogo, onde tantos mancebos devastam as
riquezas de seus pais, tantos caixeiros fazem paradas à custa das gavetas dos
amos, tantos inespertos são criminosamente despojados por jogadores
trapaceiros.
Ouvi o estrépito da orgia das
famosas mulheres impudicas, e dos velhos ricos, e jovens viciosos que de copo
de champanha em punho, e com a voz da lascívia nos lábios entoavam cantos
obscenos em honra do ridículo da velhice, da corrupção da mocidade, e do
desavergonhamento da nudez e do o próbrio do sexo, do recato, do pudor, e da
honestidade; e perguntei a mim mesmo que exemplo davam aos filhos esses velhos,
que esperanças devam à pátria esses Jovens, que futuro esperavam as esposas e
as filhas dos primeiros, as mães e as irmãs dos segundos.
Ouvi…
Deus me livre de dizer tudo quanto
ouvi, rebentando do interior de certas casas, ou falando sem reserva nas ruas
ao ruído abafado ou a algazarra vergonhosa do vício em dissimulação ou em
desenvoltura.
Ouvi finalmente no dobre de alguns
sinos o sinal de três horas da madrugada, e dirigi-me então a Rua do Hospício.
Como da primeira vez o Reis me
esperava à porta de sua casa.
X
Entrei.
Eu achava-me fatigado do longo
passeio e pedi licença para descansar alguns momentos.
Sentei-me e respirei afadigado.
O Reis se conservou em silêncio ate
que lhe perguntei:
— O armênio?
— Sem dúvida está no seu gabinete;
não o preveni.
Eu não posso ver o que porventura
terá de se passar dentro em pouco; conto com a sua condescendência para
referir-me por miúdo o que não me 6 dado apreciar pela vista.
— Pode estar certo disso.
— Bem; já descansei: vamos procurar
o armênio.
O Reis tomou-me o braço e disse:
— Vamos; se ele é, como pretende,
verdadeiro mágico, deve ter adivinhado a sua visita; se o não é,
surpreendê-lo-emos ou descuidado, ou dormindo.
E tínhamos apenas avançado um
passo, quando o armênio mostrou-se à porta do fundo do armazém, trazendo na mão
uma lanterna furta-fogo.
— Eu adivinhei a tua visita,
mancebo, disse ele.
E fitando o Reis, acrescentou:
— Reconheça-me pois verdadeiro
mágico.
O Reis não respondeu; evidentemente
ficara confundido.
O armênio adiantou alguns passos
para nós, e dirigindo-se a mim, disse-me:
— Criança! não te acuso pelo que
fizeste: a tua desobediência aos meus conselhos era um fato previsto pela
magia; es homem, tinhas de errar, como erraste.
— Não errarei outra vez, balbuciei
humildemente,
— Errarás sempre, e tornarás a desobedecer-me.
— Não!
— Vê-lo-ás.
— Então conseguirei deveras outra
luneta mágica?
— Sim, se a exiges.
— Peço-a de joelhos.
— Criança! para que teimas em querer ver?…
— Porque ver é viver.
— Eu te anunciei da outra vez que o que me pedias era o mal, o gelo
do coração, o ceticismo na vida, e sabes que não te enganei.
— Mas ao menos eu vi, e agora de novo me acho cego.
— Criança! tu escolheste um dia benéfico, um domingo, uma hora
propícia, a que antecede apenas ou vê despontar a aurora; ainda assim porém tu
veras demais!
— Embora!
— Pedes-me uma segunda luneta mágica que te será fatal como a
primeira.
— Já tenho por mim a experiência.
— Será o engano infantil na vida…
— Aceito!
— Será a credulidade insensata.
— Aceito!
— Será a inocência indefesa.
— Aceito!
— Será a zombaria do mundo e a cegueira da razão.
— Aceito!
— Por que, criança?…
— Porque eu quero ver.
— Verás demais!
— Aceito.
— Eu o sabia, e tanto que o altar está pronto e nos espera; já
evoquei os espíritos elementares: nada falta; vamos.
Mas ao primeiro passo, o armênio levantou a lâmpada, inundou-nos
de luz, e disse:
— Trazes vestidos de cor preta, que e antipática a Júpiter, cujo
dia é hoje.,,
E fez com a mão um sinal que eu não vi com os olhos; mas a que
obedeci, ficando imóvel, e como preso ao lugar que meus pés pisavam.
O armênio saiu do armazém para ir ao seu gabinete.
O Reis silencioso, eu estático, respirávamos apenas, dominados
pelo prestigio do mágico que em breve tornou a aparecer, trazendo uma túnica de
pano branco bordada de triângulos de prata.
Cumprindo as ordens do mágico tirei a sobrecasaca, o jaleco e a
gravata que eram de cor preta, e vesti a túnica.
— Agora vamos, repetiu ele.
O Reis e eu seguimos em silêncio o mágico.
XI
Não pude ver o que se passou desde
que entramos no gabinete do armênio até o fim da operação mágica; referirei
porém o que o meu amigo Reis me contou com inteira verdade e profunda
admiração.
Cumpre-me declarar que o meu amigo
insiste em não acreditar na magia; confessando porem não poder explicar e menos
negar os prodígios de que foi pela segunda vez testemunha.
O Reis jurou culto e fé às ciências
físicas e fanático por elas não quer ver o maravilhoso e o sobrenatural que lhe
está entrando pelos olhos, nem sentir o que está tocando os seus sentidos.
Todavia leal e nobre, o meu amigo
referiu-me quanto viu e que vou repetir, e apelo para o seu testemunho que é
insuspeito por ser testemunho de incrédulo.
O armênio que nos conduziu ao seu
gabinete, trajava vestido de púrpura com tiara e braceletes de ouro; trazia no
dedo competente anel de ouro com um rubim, e na cabeça barrete ainda de púrpura
com o pentagrama bordado de prata.
A porta do gabinete magico abriu-se
em par a um simples aceno da mão direita do armênio
O interior do gabinete estava
resplendente de luz, e todo ornado das mesmas figuras e símbolos da cabala, que
na primeira operação magica se observaram; as cores porém eram outras e
diferentes; as paredes estavam pintadas de vermelho vivo, tendo em cor de ouro
as vinte e duas chaves do Tarot, e os sinais dos sete planetas; o teto era azul
como o céu no dia mais sereno, tendo no centro a figura do pentagrama
fulgurando, como se fosse fogo, como se tivera tomado de empréstimo o brilho do
sol mais ardente.
A mesa que servia de altar da magia
mostrava-se coberta com um imenso pano branco, alvíssimo, tendo figuras
cabalísticas sem numero bordadas em ouro. O chão era tapizado de peles de leão,
que conservavam o aspecto exterior das cabeças dessas feras, e cujos olhos
flamejavam abertos.
Os instrumentos da magia, os
símbolos que enchiam o altar e o gabinete eram ainda os mesmos, a vara mágica
porém tinha terminando-lhe a ponta um quase imperceptível triângulo de ouro.
Coroas de louro e de heliotrópio
ornavam o altar, no qual a figura sinistra do diabo fora substituída por uma
pomba, em cujo peito aberto entrava uma serpente que lhe mordia e devorava o
coração.
Nós tínhamos penetrado no gabinete,
e o mágico se sentara e se concentrara.
Um galo cantou seguidamente três
vezes.
O armênio levantou-se e bradou:
“Uriel! Zadklel! Gehudiel!… Oriphiel! …
E na parede sobre o altar esses
quatro nomes surgiram em caracteres de fogo, como as palavras proféticas no
festim de Baltazar. O mágico tomou em suas mãos a lâmpada mágica que estava já
ardente, e levou-a, dando três passos para o lado do Ocidente, e depois
depositou-a outra vez no altar; mas no ângulo ocidental dele.
Em seguida firmou no meio do altar
sem esforço nem artifício apreciável um finíssimo tubo de vidro azul de palmo e
meio de altura e de diâmetro igual em toda sua extensão, tendo à meia polegada
da extremidade inferior um orifício em que a custo entraria um fio de seda, e
na extremidade superior um triângulo de ouro perfurado, e apenas perceptível.
Sobre esse triângulo o armênio
colocou o vidro côncavo destinado à luneta: o equilíbrio, a firmeza do tubo de
vidro sobre o altar, do vidro sobre o triângulo não tinha explicação aceitável;
mas era real.
O galo cantou de novo três vezes.
O mágico estendeu o braço para
tomar a vara mágica: mas ouvindo o piar de uma coruja, empunhou a espada e
manejou-a no espaço, exclamando: “Zadklel! Zalriel! Oriphiel!” .
O piar da coruja cessou, o galo
repetiu seu canto, e o armênio atirou longe de si a espada, do cuja ponta saiu
uma flama que foi embeber-se no pentagrama que radiava no teto.
Tomando então a vara magica o
armênio mergulhou o triângulo em que ela terminava a sua ponta na flama da
lâmpada e dela tirou e levou um fio de fogo até o orifício do tubo de vidro
azul.
O tubo acendeu-se, ou pareceu
acender-se todo. O mágico lançou imediatamente sobre a flama da lâmpada
cinamomo, incenso, açafrão, e sândalo rubro, e o fumo perfumado foi sair pela
extremidade superior do tubo de vidro, envolvendo em ondas aromáticas o vidro
côncavo que descansava sobre o triângulo de ouro.
Pela terceira vez o galo cantou
três vezes, e não se ouviu piar de coruja.
O armênio radiante e ufanoso
levantou o braço e firmou a vara mágica uma polegada acima do vidro côncavo, e
do triângulo do vidro azul em fogo.
Um minuto depois uma faísca cor de
sangue negro saiu do fogo do vidro azul e pregou-se no triângulo da vara
mágica; mas o armênio sacudiu três vezes a vara, dizendo: gnomo! para os
vulcões!
E a faísca apagou-se.
Dois minutos depois outra faísca
amarela desmaiada, rompendo do vidro azul foi tocar no triângulo de ouro da
vara mágica; mas o armênio bradou: ondina! para o seio das fontes e para o
fundo dos mares!
E a faísca logo se apagou, como a
primeira.
Três minutos depois terceira faísca,
e essa cor de sangue negro surgiu do mesmo ponto e pareceu querer embeber-se na
áurea extremidade da vara mágica; o armênio porém bradou: salamandra! para o
fogo do inferno!
E a faísca se apagou e o solo e a
casa estremeceram debaixo de nossos pés.
E no fim de quatro minutos ainda
uma faísca brilhante se desprendeu do vidro azul, e começou a embeber-se no
ângulo em que terminava em ponta o triângulo da vara mágica.
— Quaternário! exclamou o armênio;
absorve-te, e depois liquefaz-te, silfo, e liquefeito, te exagera no bem!
E a faísca pouco a pouco se foi
embebendo na fina ponta da vara mágica, que ainda ficou imóvel e firme sobre o
vidro côncavo…
Passou um minuto, e caiu da ponta
da vara mágica uma gota d’água semelhante a uma lágrima no vidro côncavo, que a
observou.
E a pomba que tinha o peito aberto
exalou um gemido.
Passaram dois minutos, e caiu da
ponta da vara mágica outra gota d’água, outra lágrima, que também se embebeu no
vidro côncavo, e a pomba cujo peito estava aberto, e o coração era mordido pela
serpente gemeu duas vezes.
Passaram três minutos e terceira gota
d’água, terceira lágrima caiu da ponta da vara mágica, e foi embeber-se no
vidro côncavo, e a pomba que mostrava o peito aberto e a serpente a morder-lhe
e a devorar-lhe o coração, gemeu três vezes.
— Ternário! exclamou o armênio e
abaixou a vara mágica.
O gabinete que parecera arder em
incêndio de repente passou a mostrar-se em suave luz de crepúsculo da tarde.
O armênio retirou da extremidade do
vidro azul, cujo fogo se apagara, o vidro côncavo, lavou-o com água perfumada
que derramou da taça mágica, enxugou-o com o pano que forrava o altar, armou-o
em um finíssimo aro de prata, imprimiu neste o selo cabalístico, e enlaçou no
anel da luneta um fio de cabelo loiro, que engrossou subitamente, tomando a
forma e proporções de um trancelim de ouro.
Logo depois o armênio pronunciou
uma palavra cabalística, cujo sentido só ele compreendeu, e por breves momentos
a luz se apagou e reinou a escuridão.
Ouvimos um grito:- retorno!…
O grito pareceu-nos vir de fora e
de longe, e logo duas janelas se abriram no gabinete, e o raiar suave da
aurora, e o despontar do dia deu-nos a claridade duvidosa e romanesca que
precede ao esplendor do sol.
O gabinete mágico desaparecera por
encanto: achamo-nos o Reis e eu diante do armênio em um quarto modesto, de
paredes brancas e nuas, contando apenas em seu interior uma rude mesa, uma
cadeira, e um leito humilde.
— Sou o pobre que dá tesouros,
disse o armênio.
E entregando-me a luneta,
continuou:
— Dou-te pela segunda vez uma
luneta mágica: veras por ela quanto desejares ver; veras muito; mas poderás ver
demais. Criança! dou-te um presente, que te pode ser funesto; ouve-me com
atenção: não fixes esta luneta em objeto algum, e sobretudo em homem algum, em
mulher alguma por mais de três minutos; três é o numero simbólico e para ti será,
como na outra, o numero simples, o da visão da superfície, e das aparências:
não a fixes por mais de três minutos sobre o mesmo objeto; porque além de três
minutos, hás de ter a visão do bem, que o meu poder de mágico não te pode
impedir, pois a visão do bem será a vingança do silfo que escravizei para teu
serviço.
— Eu te obedecerei! respondi.
— Hoje mesmo me desobedecerás,
tornou o armênio com voz lúgubre.
— Não! Juro que não!
— Vê-lo-ás, tornou ele, e
prosseguiu: terás a visão do bem e hás de ser por ela infeliz; veras demais no
presente, e poderias ler no futuro, fixando-a por mais de treze minutos sobre o
mesmo
objeto; eu tenho porem piedade de
ti, e te proíbo ainda a vidência do futuro: Cashiel! Schaltiel! Aphiel!
Zarabiel! eu impeço a vidência do futuro a este mancebo, e esta luneta
quebrar-se-á em suas mãos antes do décimo quarto minuto de fixidade.
E mal acabou de falar, o armênio
deitou-se no seu leito, fechou os olhos, e imediatamente dormiu.
XII
O meu amigo Reis levou-me do
gabinete do armênio para o armazém.
— E então? perguntei-lhe…
— Não sei… não sei… não sei…
repetiu o Reis, respondendo-me; este homem parece o. demônio…
— Duvida ainda?
— Não posso explicar o que
testemunhei; mas duvido sempre.
— É demais!
— Vá ensaiar a sua luneta, e volte
a dizer-me o que ela é; preciso saber tudo…
Foi só ouvindo esse convite do meu
amigo Reis que me lembrou o pedido importantíssimo que eu devia fazer ao
mágico.
— Ah! exclamei; esqueceu-me pedir
ao armênio algum encanto, algum talismã que me pusesse a salvo da perseguição
popular. Eu não poderei usar a minha luneta sem expor-me aos maiores perigos
…
— Podes! disse uma voz grave: nada
receiem
Era o armênio que me mostrara à
porta do fundo do armazém, e que apenas acabou de pronunciar essas palavras, se
retirou, desaparecendo como uma visão misteriosa.
Despedi-me logo depois do meu amigo
Reis que ficara mudo de surpresa e admiração.
Era dia; venci porém a minha
ardente ansiedade, resolvido a fazer o primeiro ensaio da minha nova luneta
mágica em minha casa, a sós, e livre de qualquer curioso observador.
FIM DA INTRODUÇÃO À SEGUNDA PARTE
VISÃO DO BEM
I
O armênio e um mágico sublime.
A minha nova luneta é na visão das
aparências ou igual ou superior a primeira.
Agora sim, creio que devo e posso
considerar-me feliz; feliz porque possuo tão precioso instrumento ótico, feliz
porque me é dado usar dele sem perigo.
Fiz o primeiro ensaio da minha nova
luneta mágica, fitando-a de longe e às ocultas sobre os meus três parentes, e
vi-os, distingui as feições de qualquer deles como as distinguira com a outra
luneta, e até cheguei a ver mais, pois percebi um sinalzinho azul no meio da
face esquerda da prima Anica, sinalzinho que lhe dá na verdade uma certa graça
ao rosto.
Seguro da força do maravilhoso instrumento
ótico, aumentou ainda mais a minha confiança no armênio, e resolvi logo pôr em
prova a certeza que ele me dera de que eu poderia sem receio de perseguição ou
de perigo algum usar da minha luneta mágica.
Apesar disso cumpre-me confessar
que foi com algum abalo do coração e com a mão trêmula, que, ao sentar-me a
mesa do almoço em companhia dos meus três parentes, prendi a um dos olhos por
dois minutos a luneta mágica.
— Oh! temos nova luneta? disse
sorrindo o mano Américo.
— É verdade, e ótima, como… a
outra.
— Como a outra não, observou a tia
Domingas; esta me parece diferente e não me faz mal aos nervos, como aquela que
felizmente se quebrou.
O meu espanto não pode ser maior.
— Vê bem? Vê muito?… perguntou-me
a prima Anica, cheia de curiosidade.
— Bem e muito, respondi.
— Que tenho no meu cabelo?
— Uma rede de retrós, que os
contem.
— No meu peito?
— Um amor-perfeito.
— Nas minhas orelhas?…
— Nada; não traz brincos.
— É estupendo!
— Assim o penso.
— Por que não conserva fixada a sua
luneta?
— Porque além de três minutos de
fixidade eu veria mais do que devo e quero ver.
— O mal?
— Não; o bem.
— Ora! experimente em mim.
— De modo nenhum: o mágico me aconselhou
que o não fizesse.- Eu lhe peço.
— Deus me livre de obedecer-lhe,
Anica.
— Empresta-me a sua luneta por
cinco minutos?
— Sem dúvida.
Passei a luneta à prima Anica, que
apenas fixou-a, exclamou, retirando-a:
— Ah!… nada posso ver… e que
peso sobre os olhos… que fogo …
— É efeito da magia…
— Quando eu digo que há mágicos de
Deus, e mágicos do diabo não querem me acreditar!… observou a tia Domingas.
— Ora pois, mano Simplício, disse
meu irmão; conserve cuidadoso a sua boa luneta…
— Olhe-me com ela! tornou a prima
Anica.
Fiz-lhe a vontade, olhei-a por dois
minutos.
— Como me acha?
— Lindos cabelos, e rosto a que um
sinalzinho azul na face esquerda dá tal encanto…
Anica interrompeu-me desatando a
rir; mas com evidente satisfação da sua vaidade de moça.
Eu estava como assombrado.
Que mudança de ideias e de
prevenções, e de apreciações relativamente à luneta mágica!
Quem pudera dizer aos meus parentes
que a minha nova luneta não era como a outra, e que em vez da visão do mal,
continha o poder da visão do bem?
Como isto aconteceu não sei; mas
aconteceu.
Evidentemente eu não tinha perseguição,
nem perigos a recear.
O armênio salvara-me.
O armênio é verdadeiro mágico.
II
Acabado o almoço, e depois de
abraçado e ardentemente felicitado pelos meus três parentes, de quem ainda
continuava a desconfiar muito, voltei ao meu quarto com a alma repleta de
consolação, de alegria, e de entusiasmo.
Creio que entrei no meu quarto,
saltando jubiloso, como um candidato da oposição que se vê eleito deputado
depois de uma dissolução da câmara temporária, ou como um mancebo namorado que
após resistências cruéis da família da amada, recebe a decisão ditosa, que lhe
dá as glórias de noivo.
Beijei mil vezes a minha luneta
mágica e mil vezes jurei que seria acautelado e prudente, que me contentaria
com a visão das aparências e que nunca iria além de três minutos procurar a
visão do bem.
Entretanto a visão do bem era uma
coisa que não podia fazer mal! …
Esta idéia já havia entrado por
mais de uma vez no meu espírito: ver o bem! eu tinha sofrido tanto, vendo em
tudo, em todos, e por toda parte o mal, que ver o bem poderia ser uma agradável
compensação, uma profunda consolação para mim…
Mas eu jurara a mim mesmo obedecer
fielmente aos conselhos do armênio, e portanto venci, esmaguei o meu desejo de
ver o bem.
Hei de, protesto que hei de
contentar-me com a visão das aparências: é duro, é triste o privar-me da visão
do bem; não a quero porém; juro que não me exporei a essa visão que o armênio
reputa inconveniente.
A visão do bem deve ser deliciosa!
mas não a quero; não sou criança louca; sou homem de juízo, e de força de
vontade: não quero, não terei a visão do bem.
III
Lembrou-me o meu amigo Reis.
O Reis! tenho pena dele.
A incredulidade do meu amigo Reis é
mais do que pertinácia no erro, é um atentado contra os direitos do publico que
por ela se vê privado de instrumentos óticos temperados pela magia do armênio,
e que podem vulgarizar maravilhas.
O meu amigo Reis é incrédulo; eu
porém não sou egoísta, não quero para mim só os milagres que o armênio é capaz
de realizar.
Conscienciosamente entendo que em
proveito de todos devo atraiçoar o meu amigo Reis, publicando o que sei e o que
obtive do armênio, e o que o armênio é capaz de dar, enriquecendo, sublimando,
tornando mágicas as oficinas, que alimentam o armazém do Reis.
Que me cumpre fazer? É claro: vou
redigir uma noticia do que obtive e consegui das oficinas do Reis, vou
denunciar a existência do armênio, e a sua extraordinária habilidade em magia,
vou obrigar, forçar o meu amigo Reis a satisfazer aos seus fregueses, tornando
público o que o armênio se declara pronto a realizar em matéria de instrumentos
óticos encantados ou mágicos. É um serviço que devo prestar ao meu país e ao
mundo.
Entusiasmado fixei a luneta, tomei
a pena e comecei logo a escrever:
NOTÍCIA IMPORTANTE
“O abaixo-assinado, possuidor
de uma nova e não menos admirável luneta magica que, por grande favor obteve do
Sr. J. M. dos Reis, em cujas oficinas na casa de instrumentos físicos etc., a
Rua do Hospício n.º 71 trabalha um armênio que é profundamente amestrado em
magia, julga do seu dever publicar um segredo que não convém ser por mais tempo
guardado.
‘O Sr. J. M. dos Reis, teimando em
não acreditar na magia, nega-se a aproveitar-se dos oferecimentos do armênio
prejudicando assim os seus interesses e os do público.
“Informo pois que o armênio, a
quem devo a luneta mágica, se propõe a preparar para que o Sr. J. M. dos Reis
exponha a venda no seu armazém vidros e instrumentos óticos de assombrosas
condições; espelhos que refletem a imagem dos velhos com o viço da mocidade
passada, óculos, binóculos e lunetas que fazem ver o que se passa e o que há a
muitas centenas de léguas de distancia, no leito dos rios, no fundo dos mares,
no seio da terra…”
Oh!… que fiz eu? Que estou
vendo?… meu Deus!… é a visão do bem!…
Escrevendo, esqueci o tempo,
passaram mais de três minutos, e, como predissera o armênio, hoje mesmo
desobedeci aos seus conselhos!
Pequei involuntariamente; como
porém é bela e suave a visão do bem!
As palavras que eu acabava de
escrever me pareceram acendidas em brando fogo em que brilhavam generosos
sentimentos… as palavras escritas falavam a meus olhos, a incredulidade do
Reis exprimia a nobre severidade da ciência e o escrúpulo da religião, a.
capacidade magistral do armênio revelava o inocente e benéfico poder da magia
que os homens não compreendem, e por isso apreciam mal, a noticia escrita por
mim transpirava de todas as linhas, de todas as palavras, de todas as sílabas o
amor da humanidade. Em tudo e em todos somente sentimentos nobres e doces
virtudes.
Que prazer! que delicias
experimentei e estou experimentando!
Ah! por que o armênio havia de
aconselhar-me a não usar da visão do bem?
Por que privar-me destes gozos que
fazem sorrir a alma beatificada pela pureza e santidade do sentimento?…
Que mal pode provir do bem?…
Eu me senti feliz, imensamente
feliz…
Completei a notícia, acrescentando
ao que tinha escrito, o seguinte período:
“Ao público, e especialmente
aos fregueses do Sr. J. M. dos Reis cabe o direito de à força de pedidos,
empenhos, e reclamações coagi-lo a vencer a sua incredulidade, e a aproveitar
os oferecimentos do armênio mágico para facilitar ao público e aos seus
fregueses todos os instrumentos óticos e maravilhosos espelhos encantados pela
magia”.
Datei a notícia, assinei-a com o
meu nome e imediatamente mandei tirar dela três cópias, para que no dia
seguinte aparecesse ao mesmo tempo em todas as gazetas diárias da cidade do Rio
de Janeiro.
IV
Que mal pode vir do bem?
Devo abster-me da visão do bem
depois de haver experimentado uma vez as sensações mais deliciosas, a
suavíssima consolação que ela assegura ?
O armênio me aconselhou que me
abstivesse da visão do bem, declarando-a tão perigosa como a visão do mal; eu
porém involuntariamente já infringi esse preceito do mágico…
Se há perigo na visão do bem, já
pois inadvertidamente me expus a ele…
A falta, a desobediência estão
cometidas…
Ainda mais: o armênio afirmou que
hoje mesmo eu desobedeceria aos seus conselhos, e assim aconteceu sem que da
minha parte houvesse intenção premeditada.
Portanto o que aconteceu tinha de
acontecer.
Não seria estulta vaidade pretender
levantar-me contra a fatalidade, resistir à lei da magia?
E a visão do bem me foi tão
agradável!
Se eu não pude vencer o
encantamento da visão do mal, que me fazia sofrer tanto, como poderei triunfar
do encanto da visão do bem, que é tão deleitosa?…
Eu não sei se estou sofismando para
me enganar a mim próprio, imaginando, inventando escusas e desculpas com o fim
de serenar a minha consciência, que escrupulosa me repete os conselhos do
armênio; sei porém e confesso que a curiosidade, um desejo irresistível me
impelem com a mais viva força para o gozo da visão do bem, que já me encheu a
alma de felicidade e de contentamento.
Eu sinto que há verdade e enlevo,
beatificação da vida, amor da terra e dos homens, sorrir do coração, luz do céu
iluminando a terra na visão do bem.
Quaisquer que sejam os perigos a
que me arrisque pela visão do bem, de boa vontade os arrostarei.
E impossível que eu me torne
desgraçado por ver o bem.
Perdão, armênio! doravante vou
desobedecer-te intencionalmente.
Visão do bem! eu te quero, eu te
adoro, eu te bendigo, e te aceito para guiar-me no caminho da vida.
V
Fixei a luneta e cheguei-me à
janela do meu quarto: vi a prima Anica debruçada à janela do seu.
Lembrou-me a idéia que dos
sentimentos dessa moça egoísta, fria, incapaz de amar, eu fizera pela visão do
mal, e retirei a luneta com repugnância.
Momentos depois a reflexão me
acudiu; e compreendi que exatamente pelo conhecimento que eu já tinha daquela
mulher-cálculo, mulher-aritmética, mulher mais terra do que céu, mais matéria
do que espírito: mais pó do que alma, era nela que melhor experimentaria a
visão do bem.
E fitei a prima Anica, que parecia
estar meditando.
Vi-lhe o rosto que eu conhecia, o
sinalzinho azul que o engraçava, os cabelos formosos, e…
Passaram os três minutos, e o
coração e a alma de Anica se abriram, se patentearam ao meu espírito
perscrutador.
Oh! como fora caluniadora e
perversa a visão do mal!
Anica é um anjo de inocência e
simplicidade, e ao mesmo tempo uma senhora de juízo reto e de exemplar virtude.
O que eu julgara nela gelo do coração era virginal recato, o que eu tomara por
cálculo material e egoísta era a reflexão e a sabedoria instintiva de uma
mulher-modelo; zelosa, sem ciúmes rudes e ridículos, econômica sem vileza,
amante sem paixão em delício, serena, complacente, dedicada, livre do amor da
ostentação e do luxo, de costumes simples, estremecida pela família paciente,
suave, meiga, Anica é a mulher que reúne todos os dotes para felicitar o homem
que for seu esposo.
Encontrei a minha imagem na alma de
Anica; não porém como a visão do mal ma mostrou: encontrei-a amada, ternamente
amada, encontrei-a cercada dos cuidados e do interesse de um sentimento tão
profundo como generoso que só lembrava a minha fortuna, a minha riqueza com o
receio de que fossem motivos que excitando a ambição de alguma outra mulher,
prejudicassem às aspirações do seu amor desinteressado e puro.
Vi na alma de Anica também a imagem
do mano Américo, mas somente afagada por inocente e mimosa afeição fraternal.
Horizonte sem nuvens, mar sem
tempestades, céu de lua cheia luminoso e sereno, jardim de belas flores sem
espinhos, terra de solidão sem florestas negras, nem abismos, nem antros de
feras, tranquilidade sem tristeza, saudade sem amarguras, flama sem incêndio,
recato, modéstia, melindre, abnegação, amenidade, eis o que é a prima Anica.
De súbito ela volveu os olhos para
a minha janela, percebeu que eu a fitava com a minha luneta mágica e sorriu-se
docemente para mim.
Que sorrir! Foi como um raiar de
aurora.
Deixei cair a luneta, e quase me
ajoelhei para adorar a angélica moça.
Creio nos amores que de repente
conquistam e escravizam os corações.
Creio nas paixões que de improviso
se acendem.
Creio nos. amores e nas paixões que
os romances nos descrevem inspiradas em um momento pelos encantos de jovens
formosas e de prestigio deslumbrante.
Creio; porque eu sinto que amo
apaixonada e perdidamente a prima Anica.
Eu quero ajoelhar-me, prender-me
aos pés desta moça gentil, mimosa, rica de virtudes, quero ajoelhar-me a seus
pés, prender-me aos seus pés como se me prendessem as asas de um anjo, que em
sublime vôo me levasse à salvação, à glória suprema, ao céu.
Abençoada seja a visão do bem, se a
prima Anica quiser aceitar a minha mão, o meu nome, e ser minha esposa, a santa
companheira na minha viagem pela terra, a mulher unificada comigo nos
trabalhos, e nos gozos da vida.
VI
Veio-me a idéia correr
imediatamente à presença da tia Domingas e pedir-lhe em casamento a prima
Anica; mas contive-me; porque me lembrou que devia para isso achar-me
autorizado pela noiva, e porque desejei desfrutar o encanto de alguns dias de
intimas confidências, e de enlevo de namorados com a adorada moça.
Com a certeza que eu tinha de ser
amado por Anica, e com a segurança da sua virtude alguns dias de demora no
pedido de casamento não podiam senão duplicar a minha felicidade com o
aguçamento de honestos mas ardentes desejos da posse do objeto amado.
Empreguei o resto do dia no estudo
da tia Domingas, e do mano Américo pela visão do bem.
Indispensavelmente a visão do mal
tinha sido a visão do diabo, que me fizera ver o contrário da verdade, e
caluniar os mais santos corações, e os caracteres mais puros e generosos.
A tia Domingas era a devoção, a
piedade personalizada. Aos pobres negava esmola à nossa vista, e semeava
benefícios às escondidas: era a caridade do evangelho, o bem que fazia, só ela
o sabia. e quando rezava, mais vezes suas orações eram por seus parentes e
pelos estranhos, do que por si. No governo da casa economizava para matar a
fome à indigência, e imaginava mil pretextos para ter mais que dar, e encobrir
o que dava.
A tia Domingas era e é uma santa
velha; o que ela faz em obras de caridade só Deus o sabe, e eu agora também o sei
pela visão do bem.
O mano Américo é o tipo da
dedicação fraternal: vive pensando em mim, negociando por mim, e explorando em
meu favor e beneficio as evoluções, revoluções, e combinações da Praça do
Comércio.
Em sua abnegação sublime deixa
intatas e não desviadas do emprego em que se acham as somas da sua riqueza
própria, e, mercê de uma procuração que assinei, negocia com a minha fortuna,
jogando na praça: se perde, perco eu e é justo; se ganha, tira dos lucros a sua
porcentagem, o que é justíssimo; a prova da honradez e boa-fé do mano Américo é
que a minha fortuna ainda não diminuiu um ceitil, embora não tenha aumentado
por causa de alguns prejuízos consequentes de jogo infeliz.
O que tem sempre aumentado é a
fortuna do mano Américo que nunca perde, e ganha sempre; mas a isso nada tenho
que dizer; porque o mano Américo só se ocupa de mim, e faz o sacrifício de
jogar na praça somente com o meu dinheiro, e em tal caso quando há perdas, é
evidente que eu devo carregar com elas, tanto mais que quando há lucros, meu
irmão os reparte comigo.
É evidente que se o mano Américo
jogasse na praça com os seus próprios recursos, ganharia somente para si, e eu
não teria parte nos lucros.
Eu fora o mais vil ingrato se
desconhecesse o que devo ao mano Américo.
A visão do bem acaba de mostrar-me
tal qual ele é. A sua prudência e sabedoria igualam à sua dedicação fraternal,
e aos escrúpulos de sua probidade.
Com a minha luneta mágica eu
poderia gerir perfeitamente os meus negócios; não incorrerei porem nesse erro:
o mano Américo continuará a ser o depositário de toda minha fortuna, e a
administrará e empregará absolutamente, como entender melhor.
Oh! quão aleivosa e envenenada,
traidora e diabólica era a visão do mal! A que criminosos juízos sobre o
caráter dos meus ótimos parentes me levou ela!
Ainda bem que posso enfim ver e
apreciar a verdade, e pelo conhecimento da verdade viver a mais ditosa, e
risonha das vidas.
Casar-me-ei com a prima Anica.
A tia Domingas será o gênio
protetor da família e o anjo da caridade que fará descer as bênçãos do céu
sobre a nossa casa.
O mano Américo continuara a ser o
arbitro, o regulador dos negócios da família, dispondo convenientemente dos
nossos cabedais em proveito de todos.
E eu serei o egoísta, o desfrutador
de tantos benefícios só e de tanta felicidade sem trabalho, sem cuidados, só me
ocupando do amor da prima Anica.
Abençoado sela o armênio
Abençoada seja a luneta magica que
me deu a visão do bem.
VII
Eu tinha a febre da felicidade.
O mundo e a vida me festejavam o
coração; eu desejava rir, divertir-me, folgar.
Em casa a tia Domingas e a prima
Anica dormiam cedo, e eu senti-me contrariado pelas horas que havia de perder,
deitando-me antes da meia-noite.
Acudiu-me ao espírito um pensamento
extravagante, e talvez menos digno de quem já se considerava noivo: lembrou-me
ir ao Alcasar Lírico, que nessa noite dava espetáculo e representação- não
pedidos, nem para público de escolha- ; mas da sua série ordinária e portanto
menos contidos e mais livres.
Não refleti mais: decidi-me a
realizar o meu intento.
A hora aprazada entrei pela
primeira vez no tal teatro francês, de que tanto mal me diziam, e tomei um
lugar no meio de numeroso concurso de homens e de mulheres.
Antes de tudo observei o teatro,
cuja descrição não farei: achei-o bonito e cômodo mas no fim de três minutos de
exame, a luneta mágica encantou-me com a visão do bem.
Que injustiça fazem ao Alcasar
Lírico: vi nele o contrário do que me informavam! Vi nele o ponto de reunião de
todas as classes da sociedade, o jubiloso recurso de entretimento para os
homens pobres que não podem pagar outro menos barato, e para as mulheres que
degradadas pelo vício são repelidas da boa sociedade; vi nele a mais eloquente
escola de moralidade pública pela exposição ampla e quase sem medida do comércio
imoral e repugnante das criaturas desgraçadas que tem descido à última abjeção:
melhor que as teorias e os conselhos de um pai austero, falava ali à mocidade o
exemplo vivo dos perigos e das torpezas da devassidão. O Alcasar me pareceu
enfim uma bela instituição filantrópica e filosófica, a Ética de Jó ensinada
pelas antíteses, a ostentação da grandeza da virtude pela observação da baixeza
do vicio.
Não pude compreender a razão por
que o governo do Brasil ainda não concedeu subvenção ou loterias anuais para
auxílio deste admirável teatro lírico francês!
Passei imediatamente a observar os
espectadores de ambos os sexos, e antes deles as atrizes ou artistas.
Em breve me apercebi como que
abismado em um dilúvio de arrebatadoras graças e dos mais generosos sentimentos.
Não houve para a minha luneta uma só atriz francesa que não fosse prodígio; se
nos primeiros três minutos uma me pareceu menos bonita, outra menos bem feita,
e outra menos engraçada, passados os três minutos veio a visão do bem
obrigar-me a pagar a todas elas os justos tributos da minha admiração: esta
atriz cativou-me pela sua rara e esquisita sensibilidade que a tornava por
agradecida e terna incapaz de resistir à flama de quem em honra de sua beleza
ia confessar-se, mostrar-se rendido a seus pés; aquela deu-me o mais sublime
exemplo do amor do próximo; porque abrasada nesse religioso fogo de caridade,
não sabia fazer exceção no seu amor do próximo, e amava todos os próximos, como
a si mesma; aquela outra, vivo e surpreendente símbolo de humildade evangélica,
condescendente e submissa dobrava-se à vontade alheia, e era a escrava de cem
senhores.
Declaro que tive medo de
apaixonar-me por todas essas generosas e santas criaturas, em cujos olhos
ardentes, feiticeiros sorrisos, requebros de corpo, e estudadas posições,
descobri somente a ambição inocentíssima de agradar, o impulso da sensibilidade
a mais terna, o amor do próximo ou dos próximos o mais profundo, e a humildade
cristã da santa moça submissa e pronta a ser escrava de novos senhores.
Evidentemente havia para o noivo da
prima Anica verdadeiro perigo na observação repetida daquelas moças tão
resplendentes de inocência e de candura; delas pois desviei a minha luneta
mágica, e com o coração ainda palpitante de ternura, de enlevo, quase de entusiasmo,
fixei-a no rosto de uma jovem que estava sentada perto de mim.
Cabelos castanhos e ondeantes,
rosto oval e de cor pálida com uns longos roxos nas faces, olhos pretos e
vivos, dentes brancos iguais e em continuo rir de continuo à mostra, o peito e
os braços nus e os seios e as axilas por metade fora do vestido, mãos de vadia,
cintura fina, os pés calçando botinas à Benoiton e atirados em exposição,
palavra solta e louca, modos descomedidos, mobilidade febril. provocação e
petulância,- eis a jovem em quem eu fixara a minha luneta mágica e que não
podia contar mais de vinte anos de idade.
Era pois moça e bonita; mas trazia
no olhar, no falar, no rir, no proceder o letreiro da devassidão; causou-me
dolorosa impressão; tive dó daquela mocidade pervertida.
Entre mim e ela estava sentado um
velho de sessenta anos pelo menos, que todo impertigado a miúdo lhe falava ao
ouvido, como o fazia também pelo outro lado um mancebo que evidentemente devia
ser mais atendido.
A rapariga mostrava-se alegre e
folgazona, e sem dúvida ria-se do velho, quando escutava os segredos do moço.
Animei-me a perguntar em voz baixa
ao velho:
— Quem é esta… mulher?
— Não a conhece?… disse-me ele
admirado.
— Confesso que não.
— Pois não conhece a Esmeralda?
— Esmeralda? E o seu nome de
batismo?
— Quase todas as raparigas da
classe desta adotam ou recebem o seu nome de guerra; a moça, que está vendo a
meu lado, chama-se Esmeralda pela paixão e preferência que lhe merecem as
pedras desse nome: observe o adereço que ela traz ao pescoço.
— Com efeito é riquíssimo.
— Sei bem o que ele vale: custou-me
os olhos da cara.
Voltei-me com repugnância,
desviando outra vez a minha luneta mágica da figura daquela mulher desgraçada,
e do rosto do velho ridículo e parvo.
Pouco depois mudei de lugar e encontrei-me
com aquele mancebo meu vizinho que prazenteiro, gracejador e sempre jovial, tão
indigno da minha amizade me parecera julgado pela visão do mal.
Já desconfiado dessa visão
caluniadora, observei-o primeiro a alguma distância por mais de três minutos, e
reconheci a perfídia da minha. primeira luneta: o meu jovem amigo era o caráter
mais igual, mais nobre e distinto que se podia imaginar.
Fui ter com ele, que me festejou
com expansão de verdadeira alegria.
— No Alcasar!!! exclamou enfim; tu
no Alcasar!…
— É verdade; começo a viver.
— Estás apenas meio perdido; mas eu
vou te perder de todo.
— Como?
— Do Alcasar a uma ceia infernal é
só um pulo: queres pular?- Não entendo.
— Convido-te para cear com uma
dúzia de demônios de ambos os sexos.
— Uma orgia…
— Pouco mais ou menos: mademoiselle
tem medo de se comprometer?
Corei da zombaria, e respondi:
— Aceito, se es tu que dás a ceia.
— Nessa não caia eu: quem paga a
Cela é o tolo;
— E quem é o tolo?
— É o paio.
— E quem é o paio?
— É um animal que não conheces: é o
velho que a Esmeralda depena.
— Conheço-o já; mas com que direito
me convidas?
— O pateta do velho conta comigo e
com um primo, de quem lhe falei, e que me faltou à palavra por causa de uma
sobrinha, que celebra esta noite um batizado de bonecas: ficarás sendo meu
primo durante a ceia, ou és mais tolo que o velho.
— Aceito o convite.
— Ainda bem, meu primo; principias
a ter juízo.
VIII
A meia-noite o velho, dez alegres
moças e outros tantos mancebos rodeavam esplêndida mesa.
Ridículo Baco de cabelos brancos, o
velho provocava a companhia ao ruído, as cantigas livres, as libações frequentes,
à desenvoltura à orgia enfim.
Mais bela e petulante que todas as
suas companheiras, Esmeralda era digna rainha daquela festa, que me inspirava
espanto e horror.
Esmeralda, impudica e doida,
desnudava encantos que o recato esconde cuidadoso, deixando-os apenas adivinhar
nas palpitações do peito que arfa. Ela tinha esvaziado as taças cheias de seis
vinhos diversos, e pedia ainda champanha e conhaque!
Mísera bacante precisaria em breve
que a levassem quase carregada para dormir em casa.
A bela moça embebedava-se!
Dentro em pouco faltava o juízo a
quase todos: mulheres e homens se achavam aviltados, castigados pelos venenos
da orgia e da depravação dos costumes.
Dois únicos dos convivas resistiam
ao contágio fatal, o meu amigo, que bebera vinha com água, e eu que bebera água
com vinho.
— Primo, disse-me ele; estuda esta
lição, e aproveita-a.
— Tens razão, respondi; é tempo de
fazê-lo: devo e quero apreciar toda a ignomínia, e toda a imensa vergonha dos
nossos sócios de orgia.
E fixei a minha luneta mágica sobre
a Esmeralda embriagada.
A principio vi, o que tinha já
apreciado, seus dotes físicos, sua gentileza que o vinho e a petulância apenas
anuviavam; Esmeralda era ainda bonita apesar da embriaguez e da ignomínia; sem
dúvida que o era, pois que eu o reconhecia, embora o sentimento que ela me
inspirava fosse o da repulsão e do tédio, que nos causa a vista de um animal
imundo.
Passaram porém os três minutos e
começou a visão do bem.
Li com surpresa e enternecimento na
alma da embriagada a história do seu passado e dos tormentos de sua vida.
Menina de coração angélico, mimoso
tipo de sensibilidade, fora muito cedo vitima do crime; era pobre e órfã e uma
parenta corrompida preparou-lhe sinistro sono, e vendeu-lhe a um monstro a
inocência e a pureza; riram-se de suas lágrimas e a arrastaram para o vício;
mas em breve despertando no meio da perversão, Esmeralda teve remorsos,
detestou sua vida, foi mil vezes desgraçada; desejou amar e ser amada, como ama
e é amada a senhora honesta; era porém tarde: o mundo já tinha marcado a sua
fronte com o sinal negro da reprovação perpétua. Então principiou para a mísera
a vida do frenesi a que o desespero preside.
Na convicção tremenda do seu
aviltamento embriaga-se todos os dias para esquecer a sua miséria moral, e para
matar-se; sabe e sente que o conhaque queima-lhe as entranhas e lhe abrevia a
vida; pelo sabor aborrece o conhaque, pelos seus efeitos adora-o; beberia fogo
vivo, se o fogo vivo se bebesse.
O seu rir contínuo é o delírio da
dor, a antítese das torturas do coração em convulsões dos lábios que fingem
alegria.
Ninguém a despreza tanto como ela
mesma se despreza, porque na pureza dos seus sentimentos e de sua sensibilidade
adora a virtude, compreende a sublimidade do amor honesto, e se reconhece
infame pela infâmia do vício.
Quando está só em casa, e vê passar
uma jovem com o vestido branco e a virginal coroa de noiva no carro que a
conduz à igreja, Esmeralda se ajoelha, chora, e reza; chorando por si, e orando
pela noiva.
Fatal arruinadora dos ricos, que se
tornam seus apaixonados, parece nadar em mar de ouro, e nunca lhe sobra o
dinheiro; porque ela alimenta e veste quantos pobres a procuram; ou quantos
pobres conhece; mas tem fama de dissipadora e ninguém a chama caridosa.
Nos desvarios precipites da sua
vida Esmeralda ganhou créditos de petulante, interesseira, vil, desordenada,
infrene e louca, incapaz de uma afeição, não suscetível de amar, demônio de
gelo, demônio de voracidade áurea, demônio de corrupção; ela o sabe e ri com o
seu rir que é mais amargo do que o pranto mais doloroso.
Que falsa apreciação! Esmeralda é
flagelada pelo seu pudor inato de mulher que nasceu para ser santa; não tem
ordem na vida maternal, porque abomina o cálculo egoísta a ponto de esquecer os
cuidados do futuro; o que chamam sua loucura é como um castigo que ela se impõe
na terra; sensível, dedicada, extremosa, amando tão ardentemente a virtude, que
nem concebe escusa, desculpa, ou perdão para sua vida manchada e ignominiosa,
tem uma coração que é um abismo de amor exaltado e sublime.
Se fosse amada, esposa de um homem
a quem amasse, seria tipo de fidelidade, heroína pela abnegação, mártir pela
paciência, anjo pela santidade dos sentimentos e da vida.
Contemplando essa vítima do mundo,
e dos homens, essa embriagada adorável, essa virtude cheia de manchas, esse
querubim profanado, essa mulher formosa de corpo aviltado e alma pura, esse
coração todo amor, essa Madalena que se torturava no vício, que se atribulava
na orgia, que se degradava na embriaguez, que antes da morte e com severa
consciência condenava o corpo à corrupção, à podridão, as extremas e esquálidas
misérias da terra, e tinha a alma arrependida já metade no céu, tive ímpetos de
correr a beijar-lhe os pés, e de bradar-lhe: “acorda! surge do sono da
embriaguez! eu te compreendo e te amo, eu te regenero, dando-te o meu nome!
“
Creio que dominado pelos encantos
físicos e morais de Esmeralda, eu teria ido além de treze minutos de
contemplação, se o meu primo de convenção não me tivesse tocado no braço,
fazendo assim cair a luneta mágica que eu fixara sobre a infeliz moça.
— Não olhes tanto para a Esmeralda,
disse-me ele; corres o risco de ficar verde.
Ou por acaso, ou porque ouvisse a
observação do meu suposto primo, a Esmeralda cravou em meu rosto um olhar
flamejante, e logo depois empunhando o corpo, bradou:
— Conhaque! conhaque! conhaque!
Pareceu-me então que a ouvia pedir
veneno para se ir matando, levantei-me de súbito, e atirei-me de encontro ao
criado que correra a deitar-lhe conhaque no copo; arrebatei-lhe da mão a
garrafa e exclamei:
— Basta! a senhora não deve tomar
mais conhaque!
— Pois então… vou-me embora…
balbuciou a Esmeralda, e no meio de gerais gargalhadas, saiu, cambaleando,
apoiada no braço do velho.
IX
Dormi mal o resto da noite; porque
despertei por vezes, sonhando com a prima Anica, e com a Esmeralda, e no dia
seguinte encontrei as imagens de ambas, felicitando a minha alma.
Cumpre-me dizer que senti por isso
mesmo o primeiro inconveniente da visão do bem: eu amava igualmente as duas
moças, e hesitava sobre qual delas merecia preferência.
Anica era pura; Esmeralda manchada
pelo vicio mais torpe.
Anica era sóbria como todas as
senhoras de educação e apenas em jantar cerimonioso molhava os lábios com
alguma. gotas de champanha; Esmeralda era afeita à ignomínia; da embriaguez.
Anica era objeto do respeito de
todos, e somente em culto à sua virtude, e às delicadezas devidas ao seu sexo,
alguns na sociedade lhe beijavam reverentemente a mão; Esmeralda era o escárnio
de muitos, e o insulto vivo da moral pública.
Mas eu, melhor que todos, conhecera
Esmeralda pelas revelações da visão do bem, e não podia deixar de fazer-lhe
justiça.
Anica era feliz, tivera mãe e
parentes a velar por ela, educação a aprimorar suas virtudes; Esmeralda era a
desgraçada mártir sacrificada por infame parenta; a primeira tivera todos, a
segunda ninguém por si.
E além disso a Esmeralda conservava
o melindre do sentimento na depravação da vida; devorada pelos remorsos, tendo
aversão ao vício que a aviltava, arrojava-se a ele, como a um castigo, e
procurava abreviar seus dias com o veneno da embriaguez.
Não era Madalena arrependida, mas
era Madalena delirante.
Se aparecesse um homem que amando
Esmeralda, e sendo por ela amado, lhe dissesse: “eu te amo! eu te dou o
meu nome e te regenero!”, essa mulher se agarraria a esse homem, como a um
anjo de salvação, e sua esposa dedicada, extremosa e fiel o faria feliz.
O marido de Anica será por força
ditoso; mas desfrutador egoísta de uma dita, que toda lhe há de vir da esposa;
o marido de Esmeralda porá fim a um grande infortúnio, cobrirá com os véus do
seu nome uma nudez reprovada; fará uma obra de caridade, de amor santo, que o
exaltará aos olhos de Deus, que purificou a Madalena arrependida.
Em uma palavra o marido de Anica
poderá ser mais ditoso; mas o de Esmeralda será mais generoso.
E todavia eu hesitava sempre…
Às vezes a minha razão me dizia que
todas as mulheres pervertidas têm sempre de prevenção no espírito a história de
uma perversa sedução, de martírios cruéis, de desespero, de arrependimento sem
proveito, de desejo de morte, e de exemplar dedicação; suas virtudes raras, e
seus sentimentos sublimes, brilhariam sem dúvida com o mais vivo fulgor se achassem
maridos que as regenerassem reservando-se elas entretanto o direito de serem no
futuro e depois de casadas dignas do seu ignominioso passado.
A reflexão também me diz que a
mocidade inexperiente e generosa tem na sua inexperiência e generosidade uma espécie
de luneta mágica com a visão do bem, que faz tomar a nuvem por Juno, e
acreditar facilmente em tudo quanto lhe cantam aquelas pérfidas sereias.
A razão enfim me está clamando, que
o verdadeiro arrependimento exclui a idéia da persistência no pecado, e que a
prática do vício em nome do desespero, da embriaguez, em nome do desejo da
morte, e do esquecimento da infâmia no sono do álcool são pretextos rudes,
sofismas repugnantes das mulheres depravadas.
Se é assim realmente a visão do
bem, isto é, o modo de ver e de aceitar as coisas, de apreciar os fatos, e de
julgar os homens, o homem e a mulher sempre pelo lado bom, sempre pelas regras
da desculpa, do perdão, do bem, do otimismo na humanidade, é um grande e enorme
perigo tão fatal em suas consequências, como a visão do mal que é o extremo
oposto.
Estas considerações começavam a
perturbar-me, a incomodar-me; eu porem não podia, sem ofender a minha
consciência, negar-me a confessar, a reconhecer, a proclamar o que tinha visto
pela visão do bem, contemplando a Esmeralda com a minha luneta mágica por mais
de três minutos.
Evidentemente eu seria indigno,
malvado, se não declarasse, se não estivesse pronto a declarar a todos, e à
face do mundo, que a Esmeralda é uma pobre mártir, manchada em sua vida; mas
santa pelo sentimento, anjo pelo coração.
Portanto a visão do bem fazia-me
adorar a Esmeralda, como eu adorava a prima Anica, e hesitar sobre a escolha,
sobre a preferência entre uma senhora honesta e para, e uma mulher perdida e
petulante.
A razão fria lutava com o
sentimento em fogo, a reflexão com a generosidade, o juízo com o coração.
Muitas vezes eu tinha vergonha
dessa minha hesitação entre a pureza e o último aviltamento…
Mas hesitava sempre…
A luta era um tormento, e a visão
do bem começava pois a me fazer mal.
X
Mostrei-me pensativo e menos alegre
ao almoço; Anica reparou nisso, e perguntou-me docemente qual podia ser a causa
da minha melancolia.
Disse-lhe que tinha dormido mal,
porque levara toda a noite a sonhar com ela; a resposta a fez sorrir, e
livrou-me de mais explicações.
Nada é mais agradável à mulher do
que o culto, e a purificação à sua vaidade.
Logo depois sai para visitar o meu
amigo Reis, e dar-lhe conta da força, e do poder maravilhoso da minha luneta
mágica.
Uma vez por todas fica declarado
que o público da capital, como os meus parentes o tinham feito, deixou-me com a
mais completa e absoluta tolerância ou indiferença no gozo pacífico e pleno da
minha nova luneta mágica, conforme o armênio o havia garantido.
Ao chegar à casa do meu amigo Reis,
um homem, que com ele conversava no armazém, voltou imediatamente as costas ao
ver-me entrar, dizendo-lhe em voz baixa algumas palavras.
O Reis veio logo receber-me com a
sua habitual e natural amabilidade.
Sem que rogado me fizesse, confiei
ao excelente amigo tudo quanto se passara no dia antecedente em relação à minha
nova luneta mágica.
— E não haverá nisso ainda muita
influência de imaginação? perguntou-me o Reis sorrindo-se.
— Sempre incrédulo! respondi-lhe
eu; não há meio de convencer a um homem que não quer ser convencido.
— Lembra-se da visão do mal?
— Muito.
— Que me diz dessa visão agora?
— Que era caluniadora e perversa.
— E por que não será traidora e
falsa a visão do bem?
— Suponhamos que o seja; ainda
assim a magia de que duvida é uma realidade, embora seja maléfica.
— Proponho-lhe uma experiência…
— Aceito-a.
— Vê aquele homem que nos dá as
costas?
— Vejo-o
— Vou esconder-lhe o rosto com um
lenço e o senhor que já o julgou pela visão do mal o julgará pela visão do bem
e me dirá quem é ele.
— Estou pronto: não sei se poderei
dizer quem ele seja, porque ignoro se a luneta mágica estende a tanto o seu
poder; mas tenho a certeza de ver, de apreciar e de patentear o seu caráter, e
as suas qualidades boas ou más.
— Experimentemos pois, disse o
Reis.
E logo foi cobrir com um lenço de
seda roxo o rosto do seu amigo ou freguês, que assim perfeitamente seguro de
não ser conhecido, voltou-se para mim, e ficou firme, como se fosse uma
estátua.
A um lado entre mim e o
desconhecido o Reis nos observava risonho.
Fixei a minha luneta, e principiei
logo a falar, descrevendo o que via.
— Rosto comprido, magro, um pouco
moreno, cabelos que começam a embranquecer… este homem tem mais de cinquenta
anos de idade …
E seguidamente fiz o retrato do
desconhecido.
O Reis ouvia-me admirado.
No fim de três minutos de
observação senti que a visão do bem abria ao meu olhar a alma do desconhecido:
— Mal julgado por alguns; mas
nobilíssimo caráter! este homem é procurador de causas no foro, e muitas vezes
sacrifica seus interesses pessoais, servindo a ambos os litigantes contrários
no empenho da conciliação e da harmonia; com o seu trabalho honrado e sábia
economia tem adquirido alguma riqueza, e sabe acudir às circunstâncias difíceis
dos seus amigos, emprestando-lhes dinheiro a juros; os velhacos o chamam por
isso usurário; em seu lar doméstico pede à esposa e à filha diligencia, zelo e
labor para fundamento da segurança do futuro; ele trabalha, a mulher trabalha,
a filha trabalha, e a riqueza da família aumenta, e com o trabalho a moralidade
do lar doméstico aprofunda raízes. E um homem útil à sociedade; severo em seus
costumes, austero na educação da filha, na direção da esposa, no governo da
casa, é um modelo de chefe de família, um exemplar, que por muitos pais e
maridos deve ser copiado. Este homem chama-se … ah! …
— Que é isto? perguntou-me o Reis,
notando a minha súbita surpresa.
Este homem chama-se Nunes… perdão
meu velho e bom amigo! exclamei avançando dois passos para ele; perdão!… A
visão do mal me tinha pintado o senhor com horríveis cores! perdão! perdoe-me!
a calúnia não foi minha, foi da visão do mal que era aleivosa e malvada!
Vendo-se reconhecido, o velho Nunes
tirou o lenço que lhe cobria o rosto, e deu-me apertado abraço.
— Perdoa-me? perguntei-lhe.
— Com uma condição…
— Qual?
— Há de remir a sua dívida: hoje
mesmo juntará comigo.
— Com o maior prazer.
— Então também me perdoa?
perguntou-me o velho Nunes por sua vez.
— O que, meu amigo?
— O mal que involuntariamente lhe
causei; confesso que confiei a algumas pessoas o segredo da sua primeira luneta
mágica; mas não fui eu quem inventou as falsidades que o comprometeram na
opinião do povo.
— Tudo isso está passado…
— Ainda bem!
— Amigo Reis, eu quero agradecer ao
armênio…
— Vou chamá-lo já, ou antes, venham
comigo.
Seguimos o Reis, e quando
chegávamos à porta do misterioso gabinete, esta se abriu, e o armênio apareceu,
como se nos estivesse esperando.
— Para que me incomoda? disse-me
ele rudemente; o dia em que precisará de mim, não chegou ainda. Deixe-me, vá
gozar a visão do bem.
E trancou-nos a porta.
O velho Nunes observou, sorrindo:
— Positivamente a magia não tem
escola de boa educação.
— Não, disse eu com tristeza: o
armênio está ressentido da minha desobediência; ele tinha-me aconselhado que me
abstivesse da visão do bem.
— Enganas-te, criança! respondeu de
dentro do gabinete a voz do mágico: o que aconteceu devia acontecer.
XI
Voltamos ao armazém e nos sentamos
para conversar.
Eu estava outra vez de bom humor; a
resposta do armênio tinha banido minha súbita tristeza.
— Então, meu amigo Reis?
— Não compreendo isto; mas em todo
caso estou firmemente decidido a resistir ao armênio, e a não consentir, a não
admitir no meu armazém instrumentos mágicos.
— E se os fregueses o exigirem?
— Negarei a realidade do que não
compreendo.
— E se amanhã aparecer em todas as
gazetas diárias da capital a noticia da minha nova luneta mágica?
— Confio na sua discrição.
— Pois não confie; fui eu que
redigi a noticia.
— Oh! que fez? exclamou o Reis.
Depois serenou logo e tornou:
— Sofrerei o que já sofri; mas
desta vez lançarei todas as culpas sobre o armênio que não fala e não aparece a
pessoa alguma.
— Que teima!
— Não quero no meu armazém
instrumento algum que não seja obra da arte e da ciência humana. Eu já teria
despedido este maldito armênio, se ele não fosse o artista mais hábil
consumado, e dedicado nas minhas oficinas; tudo que sai das suas mãos, do seu
trabalho, pode-se dizer perfeito; mas reputo a sua pretendida ou real magia
perigosa à sociedade, ofensiva da religião, capaz até de perturbar a ordem
pública.
O velho Nunes desatou a rir.
— De que ri assim? perguntou-lhe o
Reis.
— Da sua inocência, respondeu-lhe o
velho; vivemos na terra, no pais das artes mágicas, e o senhor se arreceia de
introduzir nela obras de magia! Meu amigo, o senhor está na cidade e não vê as
casas.
— Como assim?
— Creia que há magias a cada canto;
olhe: como é que empregados públicos, e homens de todos os misteres e condições
vivem, ganhando cinco, e gastando cinquenta em cada ano? Só por magia. Como é
que um farroupilha há dois ou três anos se ostenta de súbito milionário? Só por
magia. Como é que o Brasil festeja todos os anos o aniversário da sua
constituição libérrima e vive, sem exceção de um dia, fora da lei constitucional
e em plena ditadura, ou sob a vontade arbitrária, absoluta de quem está de
cima? Só por magia. Acredite-me: há arte mágica na vida, na riqueza, no
procedimento e na fortuna de muitos; há arte mágica nas misérias da
administração, nas mentiras constitucionais do governo, nas zombarias feitas à
opinião, no impune desprezo do povo, e até na paciência ilimitada dos que
sofrem, há arte mágica..
— Basta, Sr. Nunes; no meu armazém
se conversa sobre tudo, menos somente sobre dois assuntos.
— Quais?
— A vida alheia, e a política do
estado.
— Pois fiquemos no que disse. Que
horas são?
O Reis consultou o relógio:
— Duas e meia.
— É tempo; em nossa casa janta-se
precisamente as três horas da tarde: a alegria seria completa, se o amigo Reis
se sujeitasse a fazer hoje penitência conosco.
O Reis esquivou-se cortesmente ao
convite, declarando que devia sua presença a um hóspede.
O velho Nunes e eu saímos.
XII
As três horas da tarde em ponto
serviu-se o jantar na casa do velho Nunes.
Éramos quatro à mesa, ele e eu, sua
mulher, a Sra. D. Eduvirges, e sua filha, D. Ana, a quem os pais chamavam
familiarmente Nicota. Honrando com o mais bem merecido apetite o simples jantar
de família que aliás era variado, excelente, e digno da apimentada cozinha
brasileira, não me descuidei de fixar a minha luneta mágica sobre as duas
senhoras.
D. Eduvirges ainda bonita, era o
tipo da matrona do nosso pais; boa e afável, mas recatada e grave, media suas
palavras, governava seus olhos, sabia ser a rainha da casa, porém obediente ao
rei por teoria de educação e prática da vida. Virtuosa sem violência, honesta
sem esforços, tranquila e plácida, feliz em seu retiro doméstico era como
harmonia musical prolongada, monótona; mas em todo caso harmonia.
Nicota contava vinte e três anos,
era morena, bela, agradável, jubilosa, e tinha uns olhos negros, que me
pareceram crateras de lavas apaixonadas. Eu nunca tinha visto olhos como esses,
e, deve-se dizer, nos olhos e no sorrir é que está a flama da vida de um rosto
de mulher. A visão do bem tornou-me patentes a alma e o coração de Nicota.
Inocente, suave, meiga, nascida para obediência de seu pai e do esposo, que a
amasse, educada no trabalho que moraliza, na economia que não dissipa; mas não
impõe privações, modesta e religiosa, ingênua e simples, engraçada e
espirituosa sem saber que o é, poética no falar sem afetação, com um olhar que
é fogo, com uma voz que é música, com um sorrir que e feitiço, com sentimentos
em que a candideza se identifica com o amor, Nicota fez-me esquecer durante o
jantar a prima Anica e a Esmeralda.
Levantei-me da mesa do jantar
embriagado, completamente embriagado não de vinho; mas de amor.
Se eu não tivesse contemplado com a
minha luneta mágica Anica em quase todo o dia, a Esmeralda na noite que se
haviam passado, creio que no fim do jantar, que o velho Nunes me dera, me
curvaria ante esse amigo, pedindo-lhe a filha em casamento.
Em meu coração sensível já lutavam
não duas, mas três imagens de moças queridas, a quem eu amava com paixão igual,
e sem preferência possível.
Eram três flamas ardentíssimas a
consumir-me, a devorar-me a alma perdida por qualquer dessas três criaturas
encantadoras e privilegiadas.
Eu amava Anica…
Amava Esmeralda…
Amava Nicota…
A preferência, a escolha entre elas
era impossível…
Eu sofria muito…
XIII
Um mês inteiro correu para mim
sempre em gozos da visão do bem em todos e em toda parte.
Mas, eu o confesso, a própria visão
do bem não é isenta de inconvenientes, e a cada dia que passava, alguma nova
contrariedade vinha perturbar a doce vida que eu vivia.
Desejando muito casar-me, ter por
companheira e sócia na fortuna amiga ou adversa, nos risos e no pranto, uma
mulher bela e amável, eu sentia uma barreira indestrutível opondo-se, tornando
impraticável a realização desse desejo.
Do mesmo modo que me julgo com o
direito de exigir da mulher que me aceitasse por esposo fidelidade absoluta,
coração meu só, amor sem fingimento, assim também quero respeitar iguais
direitos naquela que me aceitar por marido, nem admito que seja pura e
abençoada pelo céu a minha união com a noiva que eu levar ao altar, se ela
tiver um pensamento para outro homem, e se eu tiver um pensamento amoroso para
outra mulher.
Ora o que me está acontecendo é
que, a pesar meu, eu amo Anica, Esmeralda, Nicota, e amo ainda com o mesmo
ardor mais trinta jovens senhoras, que tenho estudado com a visão do bem!
Dizem que com uma paixão mata-se
outra: é engano! Eu já me abraso em trinta e três paixões, e creio que irei
além.
E o que mais me penaliza, não é o
meu tormento, este doce veneno trinta e três vezes multiplicado, e a dor, a
desconsolação ou a falsa esperança dessas trinta e três vitimas da minha
sensibilidade esquisita; pois que pela visão do bem tenho reconhecido que cada
uma delas também me ama, que todas elas também estão apaixonadas por mim!
Urgido, atraído por tantos amores,
vivo como às tontas a correr pela cidade para pagar tributos de amor e
adoração; mas se em toda parte tenho enlevos, tenho em toda parte saudades…
Neste mês já fui doze vezes a casa
de Esmeralda, que me recebe sempre risonha e se despede de mim com uns ares que
aos três primeiros minutos de fixidade da minha luneta me parecem de
inexplicável admiração, e que logo depois a visão do bem me explica, que são de
profunda melancolia, e de pungentes remorsos. O certo é que nas minhas doze
visitas, o meu amor tem sido exclusivamente platônico, e a conversação que
alimento sempre cheia de lições de virtude, e de suaves esperanças de
regeneração moral pelo sincero e completo arrependimento do passado.
Esmeralda com a sua reputação de
interesseira, e arruinadora de quantos a frequentam, ainda não me impôs, nem
sequer me pediu a mais insignificante despesa; quis uma vez fazer-lhe presente
de uma joia, e ela, coitadinha! respondeu-me quase chorando.
— Não lha mereço; eu sou vil, e
indigna da sua bondade; se lhe é grato obsequiar-me, assine alguma quantia
nesta subscrição destinada a salvar da miséria uma numerosa família.
E apresentou-me um papel, no qual
achei muitos nomes, e alguns de pessoas consideráveis, que tinham contribuído
com seus donativos.
Assinei e dei o dobro da maior
quantia que vi subscrita.
Nobre e caridosa Esmeralda! as
pobres contavam tanto com ela, que ate hoje tenho-lhe encontrado na mesa da
sala mais oito subscrições para obras de misericórdia, para as quais também
contribuí, como pude, a despeito da resistência, e dos protestos dessa moça tão
mal julgada, dessa Madalena suave, que, eu o espero, o arrependimento há de
purificar.
As subscrições têm me custado pouco
mais de um conto de réis, de que fiz entrega a Esmeralda, e estou perfeitamente
seguro de que ela não desviou um real do destino a que se dedicavam as quantias
assinadas.
A Esmeralda é o gênio do bem. Um
amigo, sem dúvida de caráter suspeitoso, procurou fazer-me acreditar que a
infeliz rapariga zombava de mim, explorava a minha inexperiência, e que as
subscrições eram falsas, e não passavam de velhacos e rudes laços armados ao
meu dinheiro. Respondi a este aviso com o sorrir de quem abe o que faz, e como
procede. Que me importam suspeitas vãs?… A visão do bem me da certeza de que
Esmeralda preferiria morrer de fome a tomar para compra de seu pão a menor das
quantias dadas pelos subscritores beneficentes.
Juro que o meu dinheiro foi
religiosamente empregado em socorro da miséria e da orfandade.
XIV
Há oito dias que voltei pela décima
vez à casa do velho Nunes, meu bom amigo, e ditoso pai da Nicota.
Eram onze horas da manhã, o velho
estava fora, tratando dos seus negócios; mas a esposa e a filha me receberam
com os corações abertos.
A nossa conversação para mim muito
agradável prolongara-se até uma hora da tarde, quando entrou 0 velho Nunes
apressado, e evidentemente dominado por dolorosa comoção. Cumprimentou-me,
falou em segredo a D. Eduvirges, e saiu de novo sem despedir-se, e muito aflito.
D. Eduvirges ficara com os olhos
rasos de lágrimas, e Nicota olhava para a mãe com expressão de tanta ternura
que também quase me fez chorar.
— Que há? perguntei; um amigo tem o
direito de saber o motivo da aflição da família, que verdadeiramente estima;
sobreveio algum infortúnio? Qual é?
— Irremediável! exclamou D,
Eduvirges.
— A morte de algum parente?
— Não.
— Pois irremediável, minha senhora,
só conheço a morte.
— Oh! e um depósito de dez contos
de réis, que meu marido deve e não pode entregar hoje.
— Hoje?
— E sabe o que ele me disse?
Disse-me que é a casa de correção que o espera, e cujas portas vão se fechar
sobre ele!… em poucos dias Nunes terá esse dinheiro e muito mais; hoje porém
bateu já debalde a todas as portas!… é a desonra que o espera, e que o vai
matar! …
Nicota desfazia-se em pranto e
soluços.
Imediatamente o velho Nunes voltou
de novo pálido e desfigurado, e após ele um homem, e mais dois, que exigiam a
entrega do depósito …
A dor da família foi imensa; no
meio porém daquela dor de esposa e de filha, e sobretudo, contemplando as
lágrimas da bela Nicota, tive, gozei suavíssima prazer.
Eu nem sabia que gozava tanto
crédito no Rio de Janeiro; bastaram porém algumas palavras pronunciadas por mim
para transformar toda aquela tempestade rasgada em perfeita bonança.
Para resumir a história: assinei
como sacador e endossante uma letra de dez contos de réis que devia vencer-se
no prazo de trinta dias.
O velho Nunes jurou-me, sem que eu
lhe pedisse juramento, que antes de quinze dias teria ele pago essa divida, que
então se tornara em dobro dívida de honra para sua consciência.
O bom amigo abraçou-me; D.
Eduvirges me ofereceu a mão que eu beijei respeitosamente, e Nicota me
apresentou a fronte cândida, na qual toquei com a ponta dos meus lábios.
Tanta gratidão por duas
assinaturas! tanto reconhecimento pelo saque e pelo endosso de uma letra, que o
velho Nunes pagará em quinze dias!
Que família de anjos!
Eu nunca me senti tão feliz, como
nesse dia.
Fiquei para jantar com aquela boa e
santa gente.
A mesa do jantar bebi vinho no
mesmo copo em que Nicota, sentada a um lado, apenas molhara os lábios; foi ela
que trocou os nossos cálices, e seus pais não viram essa travessura, ou
meiguice de moça inocente.
Como achei saboroso e excelente o
vinho! pareceu-me sentir nele a delícia de um beijo de Nicota.
Bebi somente um cálix de vinho;
aquele que Nicota divinizara com o contato da sua boca mimosa.
Se eu bebesse mais, ou de outro
vinho, teria sido sacrílego.
— Sai da casa do velho Nunes, como
um rei sai do templo, onde acaba de celebrar-se o ato da sua sagração.
XV
Graças a intervenção de pessoa
competente, foi-me concedido, a poucos dias, o visitar a Casa de Correção: vi e
apreciei tudo, e tudo ali me pareceu levado ao último apuro da perfeição.
O sistema administrativo do
estabelecimento, a secretaria e livros de escrituração, as obras que se faziam,
as disposições internas e até o local da casa, o método penitenciário adotado,
a alimentação e tratamento dos presos, o zelo dos empregados enlevaram-me os
sentidos.
Eu estava cheio de admiração, vendo
e aplaudindo a sabedoria e a solicitude do governo do meu país naquela grande
penitenciária, quando me levaram a correr as oficinas onde trabalhavam os
condenados.
A princípio contemplei satisfeito o
aspecto das oficinas, a excelência das obras que se executavam e sobretudo a
importância moral do trabalho, cujo hábito regenerará os criminosos, fazendo de
nocivos que eram, homens úteis à sociedade aqueles desgraçados.
Mas logo depois examinando com a
minha luneta e pela visão do bem um por um todos os condenados, horrorizei-me
da cegueira, da ignorância, ou da perversidade da justiça pública, dos
tribunais, e dos juizes.
Será incrível; mas é verdade: não
há um só daqueles infelizes condenados que não seja inocente dos crimes que
lhes imputam, e todos eles, todos sem exceção, se distinguem por virtudes raras
e pela moralidade mais exemplar!…
Eu estava convulso, irritado, aceso
em fúria; veio-me a idéia soltar um brado de revolta, excitar as pobres vitimas
à resistência, às armas, e à vingança; lembrei-me porém a tempo dos soldados
que guardavam o estabelecimento e fugi das oficinas precipitadamente e bramindo
de cólera.
Voltava para casa dominado por
pensamentos perigosos, e revolucionários, e desejoso de uma profunda
transformação social, que acabasse com os algozes, e salvasse as vítimas; mas
de súbito parei: a casualidade me mostrava um grupo de cinco homens,
conversando alegremente na rua, onde acabavam de encontrar-se; conheci a todos
cinco: três eram desembargadores, e dois eram juízes de Direito, portanto
presidentes de júri; simples aplicadores da lei, ou fiscalizadores das
nulidades, e das regras legais dos processos, eram contudo magistrados, e tendo
contribuído para a condenação e tormentos de tantos inocentes, os monstros
ainda podiam conversar com alegria!
Fitei sobre eles a luneta mágica,
estudando-os um por um para inteirar-me de todos os instintos ferozes ocultos
em seus corações de tigres…
E cinco vezes caí das nuvens e
fiquei adoidado na terra…
Todos esses cinco magistrados são
sábios, íntegros, justiceiros, escrupulosos e até aquele momento nenhum deles
tinha jamais contribuído para uma só condenação injusta nem lavrado sentença
nem lado o mais simples despacho que não fossem inspirados pela sabedoria, e
baseados na lei.
A minha confusão não pode ser
maior: os condenados eram inocentes, os condenadores tinham sentenciado com
acerto; a contradição tornara-se pois evidente!
Como explicar a contradição?
Uma de duas:
Ou provas fortíssimas, porém de
falsidade infelizmente não conhecida, tinham, condenando os réus, justificado
os juizes;
Ou a minha luneta mágica mentia,
enganava-me com a visão do bem.
f: claro que adotei logo a primeira
hipótese.
Cumpre-me dizer, que ainda assim
refleti um pouco sobre o caso.
Com efeito a mocidade inexperiente
é crédula demais, e deixando-se levar pelas aparências, dando fé às palavras de
quem jura, sensibilizando-se diante do infortúnio, fácil em tomar o partido de
quem chora e sofre, vendo em todos e em tudo o riso e o bem, porque ela é
risonha e boa, deixa-se iludir e erra, presumindo ou julgando encontrar a
virtude e a inocência, onde mil vezes só existe vício e crime.
Mas estas reflexões não têm
cabimento no caso de que me ocupava; porque eu vi, e reconheci perfeitamente
pela minha luneta mágica a inocência e a pureza de todos os condenados da Casa
de Correção, embora eu visse e reconhecesse também logo depois o direito e a
justiça que determinaram suas condenações.
Confesso que esta aparente
contradição confundiu-me; já porém a expliquei sem quebra da confiança que
deposito na visão do bem que tenho pela minha luneta mágica.
XVI
Um jovem da minha idade, grande
coração, e alma cândida, Damião chama-se ele, excelente amigo, com quem me
relacionei na casa de Esmeralda, levou-me anteontem por curiosidade minha, e a
despeito das suas judiciosas observações, a uma casa, onde jogam o lansquenê
três vezes por semana cavalheiros da mais fina educação.
O dono da casa é casado com uma
senhora amabilíssima que toca piano como Hertz, e tem uma cunhada na primavera
dos anos, que possui surpreendente voz de contralto, canta como a Stoltz, e é
faceira, e linda; o seu nome é Hermínia, e não posso esquecê-lo mais; porque
ela é a trigésima quarta senhora, por quem me sinto perdido de amor, e que me
tributa igual sentimento.
Ninguém me censure por este
muçulmanismo de amor platônico: sou escravo da visão do bem e amo sem querer
amar.
Aproveitei duas horas deliciosas
ouvindo tocar e cantar; todos porém jogavam, Damião mo fez notar, aconselhando-me
que saísse ou jogasse.
Compreendi que o dever da cortesia
me ordenava entrar no jogo.
Joguei pois e ganhei a principio;
mas em breve a fortuna mudou e perdi não só quanto ganhara, como todo dinheiro
que na carteira levava.
Consolei-me do prejuízo, observando
que o meu amigo Damião fora de todos o que mais lucrara com as minhas perdas,
que se elevaram a quinhentos mil-réis.
Quando não tive mais dinheiro para
perder, deixei o jogo, e como as senhoras já se haviam recolhido, sai, e saiu
comigo um outro jogador infeliz, que deixara aos carteadores do lansquenê o
duplo do que me custara a minha curiosidade.
— São gatunos, arranjadores de
maço, são refinados ladrões! disse-me ele.
— Para que tal suspeita? respondi;
queixemo-nos da fortuna adversa; eu observei e estudei com escrupuloso cuidado
todos aqueles jogadores, e posso assegurar que são homens honrados, e que
jogaram com exemplar lisura, e nem o meu amigo Damião seria capaz de trazer-me
a uma casa que não fosse muito moralizada e honesta.
— Damião?!!! ora é boa! esse é
conhecido como trapaceiro e gatuno de profissão.
Coraram-me as faces, e irritado
perguntei:
— Em tal caso como se explica a sua
condescendência, jogando com semelhante homem?
— Tem razão, tornou-me ele; tem mil
vezes razão; mas eles sabem atrair e endoidecer os mancebos inexperientes, como
nós, com a paixão do jogo que é fatal, e com os belos olhos dessas duas
sereias, que uma toca, outra canta, e ambas servem ao vício.
— Que está dizendo? que calúnia!…
duas senhoras pudicas, recatadas! …
O meu companheiro de infelicidade
ao jogo desatou estrepitosa gargalhada, e depois exclamou sem baixar a voz:
— O senhor é ainda mais simples do
que eu! Tenha cuidado…
— A esposa, e a cunhada…
— Não há esposa, nem cunhada,
fique-o sabendo, e não torne mais a esta casa maldita. Essas duas mulheres são
também cartas do jogo aladroado, são damas dos baralhos do lansquenê, e ganham
sua quota ou porcentagem do barato que rende o jogo em cada noite, além dos
lucros das conquistas que fazem, namorando os tolos como eu.
E assim dizendo, o jogador infeliz
retirou-se apressado.
Eu também encaminhei-me para a
minha casa, meditando sobre a injustiça dos homens.
Aquele jogador irritado pelos
prejuízos que tivera, não hesitara em caluniar os preclaríssimos cavalheiros
com quem acabava de jogar, e duas jovens senhoras, tipos de delicadeza, de fina
educação, e de virtudes sem mancha, conforme eu a vi, amei, e adorei pela visão
do bem.
No jogo alguém havia de perder, e
alguém havia de ganhar.
Chamar ladrão e gatuno, a quem
ganha no jogo, é desconhecer as condições, a fortuna, as eventualidades do
jogo.
Deste modo e com juízos tais não há
inocência, nem probidade, que escape aos aleives do jogador infeliz.
Ainda bem que eu perdi. Estou livre
de qualquer suspeita injuriosa, e nunca mais em minha vida tornarei a jogar.
Mas o que em suma, e em caso algum
admito é que os botes da calúnia cheguem até os anjos.
Hermínia e sua irmã são duas
flores, principalmente Hermínia e uma flor, um botão de rosa do paraíso.
XVII
Ontem achei a prima Anica pensativa
e triste; à mesa do almoço olhava-me melancólica, e como que levemente
ressentida do meu proceder; por duas vezes pareceram-me os seus olhos nadando
em mal contidas lágrimas.
Sai de casa magoado, triste, e
convencido de que eu era cruel, que não sabia apreciar o merecimento de Anica.
Compreendi que me era preciso
consolá-la: é tão fácil consolar a pobre donzela que ama! Basta um sinal que dê
testemunho de lembrança, uma flor que indique amoroso sentimento.
Eu tenho os meus direitos de primo
e de convivência de família resolvi-me pois a levar nesse mesmo dia a Anica um
mimo delicado e agradável à inocente vaidade de seu sexo.
Impelido por essa idéia dirigi-me à
Rua do Ouvidor, e empreguei quatro horas nas casas de joalheiros e de modas a
procurar debalde uma jóia ou um enfeite de bom gosto para levar de presente a
minha querida prima.
Procurei debalde! Não que deixasse
de encontrar algum objeto que me agradasse; mas porque todos quantos vi e
examinei com a luneta mágica me agradaram tanto, me pareceram tão igualmente
bonitos e mimosos que não me foi possível determinar a preferência.
Ninguém pode conceber que
extravagante, pueril, ridícula, mas indeclinável e imperiosa luta se travou em
meu espírito! A princípio cheguei a rir-me de mim mesmo, depois irritei-me e
por fim desesperei! Se me decidia a comprar uma pulseira, a lembrança de uns
brincos que antes examinara destruía-me a decisão; se um cinto com primorosa
fivela estava quase a passar para as minhas mãos, a imagem de um faceiro
relógio fazia recuar o cinto; entre uma linda caixinha guarda-joias e um
formoso álbum de retratos eu vacilava, como sobre tudo mais e nada decidia, e
nada decidi! em uma palavra, quis e não pude preferir, quis e não pude comprar
objeto algum! …
Senti-me ridículo, escravo
inexplicável, inconcebível da irresolução mais insensata; a minha razão me
aconselhava comprar qualquer daqueles objetos que me haviam parecido igualmente
bonitos; mas que querem?… não sei explicar o fenômeno; mas foi-me impossível
escolher um entre todos, porque a escolha dependia de preferência.
Reconheci então e pela primeira vez
que eu era o ludibrio da visão do bem.
Voltei para casa aflito, e
aborrecido de mim próprio; porque não pudera trazer um mimo para a prima Anica.
Recolhi-me ao meu quarto e refletindo sobre o que se passara
comigo nos últimos dias, experimentei pungente dor; porque comecei a arrecear-se
das consequências da visão do bem, e a nutrir algumas apreensões sobre o estado
das minhas faculdades mentais.
Oh! não há sabedoria de homem que possa comparar-se com a
sabedoria do armênio.
O armênio me avisou e não mentiu.
A visão do bem pode fazer mal.
XVIII
Ainda um outro mês, e neste o mel mudado em fel, a alegria em
tristeza, a bonança em tempestade.
A medida que os dias se iam passando, a visão do bem se tornava
mais imponente, absoluta, e desastrada.
Ao levantar-me da cama de manhã, ou tendo a qualquer hora de
vestir-me para sair, era-me indispensável deixar de lado a minha luneta; porque
se com ela tentava escolher as vestes, achava todas preferíveis, e não sabia
mais como vestir-me.
A mesa era-me preciso comer às cegas do que me quisessem servir;
porque se com a luneta examinava as diversas iguarias, não sabia mais por qual
delas começar, aceso em paixão gulosa por todas elas.
Nos saraus a que eu ia, ou não dançava, ou pedia os meus pares sem
consciência, e expondo-me a ridículos pedidos, dirigindo-me às vezes a
senhoras, cuja idade não autorizava mais a dança, e isso porque, se eu
contemplava as jovens presentes ao baile com a minha luneta, por todas elas me
enlevava e me perdia, e a nenhuma era-me possível dirigir-me em primeiro lagar.
É certo que durante três minutos a luneta mágica só me oferecia a
visão das aparências, e que eu devera não ir além desse espaço que era sem
perigo; desde que porém eu fixava a luneta, uma força sobrenatural, superior a
minha vontade, mais forte que a minha reflexão e consciência a grudava, a
prendia à órbita até que a visão do bem me transportava, tornando-me escravo da
admiração por atributos e dotes sempre fascinadores.
Era o bem mais maléfico que se pode imaginar!
Ou porque o tormento que se está experimentando sempre se afigura
mais cruel do que o tormento que já se experimentou e passou, ou porque
realmente eu sofria mais do que havia sofrido, a visão do bem chegou a
parecer-me pior, mais funesta, do que a visão do mal.
A visão do bem realizava em mim o martírio de Tântalo.
Eu vivia mergulhado no bem e não podia gozar, desfrutar o bem.
Eu estava com os olhos no céu e com o coração preso no inferno.
XIX
Um dia tive desejos de possuir um
bom cavalo de passeio; falei nisso a Damião, que em breves horas me levou a um
negociante que dizia ter os melhores ginetes, e que me apresentou um com as
recomendações mais entusiásticas.
Examinei o animal, e achei-o
formosíssimo; o negociante asseverou-me e jurou que o cavalo era leão pela
soberbia, ovelha pela mansidão, camelo pela paciência, águia pela velocidade.
Comprei caríssimo o singular e
maravilhoso cavalo, e mandei-o recolher a uma cocheira.
No dia seguinte quis experimentar o
meu ginete, e o dono da cocheira se opôs a isso, informando-me que o pobre
animal era cego, e aberto dos peitos.
Revoltei-me contra o abuso de
confiança, de que eu fora vítima, e fixando a minha luneta mágica, examinei de
novo o cavalo, e reconheci que ele havia cegado de súbito e de súbito adoecido
na noite que última passara, conservando ainda assim todos os sublimes dotes,
que o vendedor exaltara.
Carreguei com o prejuízo; mas em
todo caso honrando o testemunho leal, verdadeiro, consciencioso do negociante
de cavalos.
XX
Vi-me constantemente cercado de
amigos, em quem aplaudi e venerei virtudes exemplares; paguei-lhes jantares e
celas, e a quase todos emprestei dinheiro, que não me restituíram somente porque
a fortuna lhes correu adversa.
Paguei flores, coroas e ovações em
honra de atrizes dos diversos teatros, todas elas artistas de merecimento
surpreendente, e de um proceder ilibado, que só os caluniadores e os perversos
punham em dúvida, e recebi em compensação de quantas despesas fiz pela
glorificação da arte, sorrisos e votos de eterna gratidão que em seus camarins
onde as fui entusiasmado cumprimentar, me renderam essas sublimes intérpretes
das sublimes criações dos nossos autores dramáticos, que a minha luneta mágica
me mostrou pela visão do bem enriquecidos pelo seu trabalho, altamente
honorificados pelo governo, e endeusados pelo povo.
Joguei na praça associando-me com
um inglês, que é, pelo que me informou e esclareceu a visão do bem, o homem
mais probo do mundo; mas as vacilações e subidas e descidas dos fundos públicos
e ações dos bancos e de companhias foram tais, que eu perdi alguns contos de
réis e o meu sócio inglês ganhou o dobro do meu prejuízo, o que ainda a minha
razão não compreendeu; mas que a visão do bem elucidou perfeitamente,
resplendendo os merecidos créditos de probidade e inteireza do nobre súdito de
S. M. Britânica.
A visão do bem impeliu-me ainda a
muitos outros atos, de que me desvaneço, mas que me custaram caro.
Contribui, subscrevi não sei para
quantas liberdades de escravos, obras pias, dotes de donzelas órfãs,
instituições filantrópicas, benefícios teatrais em favor de cegos e aleijados,
socorros para indigência e nem me lembra que mais; Damião, a Esmeralda e vinte
outras amáveis ou respeitáveis pessoas apresentaram-me as subscrições, e
receberam-me as quantias com que contribui para todas essas obras de caridade,
e estou certo de que o meu dinheiro foi muito bem empregado; porque a visão do
bem mo assegura.
Mas na última quinzena deste mês,
de que dou conta, têm sobrevindo fatos, e tenho ouvido apreciações terríveis
que me provam, que ou fui vitima dos mais pérfidos enganos, e perversos abusos
de confiança, ou a calúnia, e a maldade dos homens, que aliás reputo
puríssimos, vão além de todos os limites.
XXI
Alheio aos negócios e não
conhecendo bem o valor do dinheiro; porque em consequência da minha dúplice
miopia, miopia moral e física, meu irmão, como ia tenho dito por vezes, tomou
conta da minha fortuna, e sabiamente a dirigiu, eu, neste último mês e meio
despendi talvez sem cuidado nem medida, deixando-me dirigir pela visão do bem.
Deste erro, se foi erro, não tenho
mais desculpa na miopia moral; porque desde que recebi as lições da visão do
mal o meu espírito se esclareceu e tive consciência de que sabia e podia
compreender as coisas e refletir sobre elas; ao menos porém eu acho escusa no
abandono da minha educação em matéria de economia. Como não me era possível
gastar, não me ensinaram a guardar, e em resultado quando pude ver e desejar,
despendi sem me importar com a conta das somas que despendia.
Creio firmemente que tenho
despendido muito bem; mas é certo que o mano Américo logo na primeira quinzena
do mês último observou-me com doçura que eu estava gastando despropositadamente.
A visão do bem fez-me então ver,
que o mano Américo assim me falara somente pelo escrúpulo com que zela a minha
fortuna; confesso porém que me senti acanhado, e que experimentei verdadeira
dificuldade de pedir mais dinheiro a meu irmão.
Eu já contava tantos e tão
excelentes amigos que não hesitei em confiar a um deles os embaraços da minha
situação.
— Há recurso fácil, respondeu-me
esse fidus Achates, levo-te a um escrupuloso negociante que te
emprestará todas as quantias de que precisares.
E com efeito conduziu-me à casa do
mais nobre, benéfico, e generoso capitalista, que me, foi emprestando dinheiro
a juros de três por cento ao mês, e assinando eu letras garantidoras das
dívidas.
O processo me pareceu comodíssimo;
porque eu obtinha por meio dele e com extraordinária facilidade tanto dinheiro,
quanto me julgava necessário.
A minha vida econômica deslizava-se
pois plácida e suavemente, e a visão do bem a abençoava, ensinando-me, que eu
empregava santamente, e acertadamente algumas migalhas da minha inesgotável
riqueza.
E fui vivendo assim até que em um
dia rebentou a primeira bomba de uma girândola de loucuras, conforme a chamou o
mano Américo.
Eu fiquei então estupefato.
XXII
O caso foi o mais simples de todos
os casos, ao menos pelo que me pareceu.
Vencido o prazo da letra aceita
pelo velho Nunes, e que eu assinei como endossante e sacador, não tendo ido o
aceitante pagá-la, veio pessoa competente exigir de mim o pagamento.
Eu estava em casa e também o mano
Américo que tomando o documento e vendo a minha assinatura, encrespou as
sobrancelhas, escreveu sem hesitar uma ordem para imediatamente ser paga e
remida a letra não sei, nem me importa saber como e por quem.
Ficamos sós.
— Simplício, disse-me o mano
Américo de mau humor; acabas de ser vitima de um velhaco.
— Velhaco? Não o creio.
— O Nunes? Todos o conhecem.
— Melhor o conheço eu.
— Como?
— Estudei-o perfeitamente por meio
da minha luneta mágica que me dá a visão do bem. O velho Nunes é um tipo de
probidade.
Américo olhou-me com a mais triste
compaixão e tornou-me:
— Dez contos de reis! Deus permita
que não seja esta a primeira bomba de alguma girândola de loucuras.
E tomando o chapéu, saiu apressado
e como que abismado em mar de negras apreensões.
Eu estava espantado.
Para mim não havia nada mais
natural, do que o velho Nunes não ter conseguido obter dez contos de réis no
prazo fatal, e consequentemente pagar eu por ele.
Ninguém seria capaz de convencer-me
de que o velho Nunes deixaria de pagar-me os dez contos de réis que eu apenas
adiantara.
Era questão de tempo, demora de
alguns dias ou de breves semanas.
A visão do bem não me enganava: o
meu amigo Nunes é rígido como Catão, probo como a probidade mais austera.
E além de tudo isso, não é ele o
feliz pai da formosa Nicota?
XXIII
Quando meu irmão entrou para
jantar, tinha eu a luneta fixada, e quase o desconheci, tão descomposta pela
cólera estava a sua fisionomia.
— Quebra essa luneta! exclamou
furioso e com voz de trovão.
Ele avançava sobre mim; mas eu
escondi no seio a luneta, e a tia Domingas e a prima Anica vieram correndo em
meu socorro.
— Que é isto? perguntou a primeira
assustada.
— É este doido, este frenético
esbanjador, que em menos de dois meses atirou ao meio da rua trinta e dois
contos de reis!…
— Misericórdia! exclamou a tia
Domingas.
— É possível?… disse Anica,
perguntando-me.
O mano Américo trêmulo e agitado
arrancou do bolso uma dúzia de letras aceitas por mim e que ele acabava de
resgatar, pagando o principal e prêmios ao meu honradíssimo banqueiro, e
mostrou-as às duas senhoras.
— Eis aí como este louco obtinha
dinheiro para desastradamente esbanjar, fazendo avultados empréstimos a quantos
velhacos quiseram abusar da sua mania, jogando e deixando-se roubar no jogo,
pagando jantares e celas a cem desfrutadores, que riem-se dele, assinando
centenas de mil-réis em falsas subscrições para obras pias e, o que é mais,
entregando enormes somas a uma mulher desprezável, a cujos pés o idiota se
ajoelha, adorando-a, como anjo de caridade!
A tia Domingas e a prima Anica
pronunciaram-se violentamente contra mim, e com o mano Américo cantaram-me o
mais horroroso terceto.
Conservei-me silencioso e imóvel;
mas tremendo pela minha luneta mágica.
— E eu que não vi, que não
adivinhei, que não compreendi o que se foi passando e naturalmente devia
passar-se nestes dois meses!!! a bomba dos dez contos despertou-me hoje, sai,
procurei informações; todos sabem, e somente nós ignorávamos, todos me
indicaram o usurário que empresta dinheiro, e o exército de bargantes que
depenam este imbecil!.. Todos zombam dele, e devem zombar; porque o néscio
esbanjou em menos de dois meses a terça parte pelo menos da fortuna que
possuía!
Meu irmão tinha-me insultado tanto,
que não pude mais conter-me e respondi-lhe:
— Ainda bem que foi da minha
fortuna o dinheiro que despendi: já tenho idade bastante para empregar o meu
dinheiro, como entendo, e sem pedir licença nem dar contas a alguém.
O terceto rebentou de novo e uma
chuva de impropérios e de maldições caiu sobre mim.
— Idade! exclamou enfim o mano
Américo, dominando as outras duas vozes: os néscios, os idiotas não têm idade,
e aos idiotas e dissipadores nomeia-se um curador!
— É o que cumpre requerer
imediatamente, bradou a tia Domingas.
— O mais acertado é não deixar o
primo sair à rua, observou Anica.
— Tudo isso se fará; mas o
essencial é quebrarmos-lhe lá a maldita luneta, disse Américo.
— Não, acudiu Anica; trancado em
casa pode bem conservar a luneta para ver e apreciar os parentes que o não
enganam…
— Nada de concessões! gritou meu
irmão.
Eu tive medo; olhei em torno de mim
e nada vi; porque estava sem luneta, lembrou-me porém o gabinete do mano
Américo, e de improviso corri para ele, tranquei-me por dentro, e com tanta
precipitação que dando volta à chave, esta saiu da fechadura, e foi cair a
alguns passos longe da porta.
XXIV
A borrasca ribombava sempre e
incessante na sala e eu era de continuo fulminado pelos raios de três cóleras
em delírio: doestos, injúrias, aleives, pragas, insultuoso ridículo, tudo me
lançavam com furor. Três ódios a falar não falariam mais venenosamente, três
línguas-punhais a ferir não feririam mais profundamente.
O meu ressentimento dissipou o medo
que me abatera o espírito; veio-me a vontade de examinar esses três semblantes
desfigurados pelos sentimentos mais vis.
Fixei a minha luneta mágica, olhei
pela abertura que deixara a chave caída da fechadura, e estudei os meus
odientos parentes: apreciei primeiro olhos e faces que se abrasavam no fogo da
ira, lábios convulsos, gesticulações ameaçadoras, e logo depois que pureza de intenções
e que santidade de desígnios!… Meu irmão, minha tia, e a prima Anica, se
mostraram tais quais realmente são, três querubins, então radiantes de fogo não
de cólera, mas de verdadeiro amor, de sublime interesse por mim!… Estavam
aflitíssimos e em dolorosa agitação; porque me supunham perdido no erro, e
ludibrio de malandrins. O erro era dos meus três parentes e meu o acerto; mas
as intenções deles indisputavelmente eram nobres, leais, desinteressadas,
angélicas.
No meio porém dessas intenções veneráveis
descobri firme e inabalável no animo de meu irmão a de quebrar a minha luneta
mágica, e embora eu reconhecesse e reconheça a piedade dessa intenção, não pude
com ela conformar-me; abençoei meu irmão, minha tia, e a prima Anica; mas tomei
a peito salvar a todo transe a minha luneta mágica.
Eu estava vestido decentemente para
sair à rua, só me faltava chapéu para a cabeça e porta franca para a retirada.
Com o auxilio da luneta achei no
gabinete um chapéu do mano Américo, que me servia muito nas circunstâncias em
que me achava, embora estivesse um pouco usado.
Faltava-me a porta para saída sem
oposição; mas o gabinete abria uma janela para rua; o caso era grave e
exigente; não havia recurso, e havia risco na demora da resolução; há tanta
gente que de dia claro e com sol fora se presta a entrar pelas janelas em vez
de entrar pelas portas, que não me pareceu anormal nem escandaloso no Brasil
sair por onde se entra de ordinário para as mais altas posições do Estado.
Assim pois subi à janela do
gabinete, e saltei na rua; ouvi gargalhadas, e não dei atenção a elas; apressei
os passos, quase que corri, enfim afastei-me apressado da casa da minha
família, como um preso, que se escapa e foge da cadeia.
XXV
Quando me achei longe de casa e me
supus livre, por algum tempo ao menos, da generosa perseguição da minha
família, instintivamente procurei a luneta mágica, e senti inexprimível prazer,
tirando-a do seio; em seguida apalpei o bolso do paletó, e consolei-me
encontrando nele a carteira, onde eu tinha ainda de reserva alguns centos de
mil-réis.
Duplamente satisfeito, experimentei
logo uma exigência da minha natureza animal que as recentes emoções haviam
feito calar, mas que de novo falava com dobrada força: tive fome, e
dirigindo-me a um dos nossos melhores hotéis, tomei sala para dormir, e mandei
que me servissem o jantar.
Como é grandioso, sublime o
sentimento da amizade, quando pronto corre a cercar o amigo caído na
adversidade!
Apenas sentei-me para jantar, vi-me
de súbito cercado por Damião e mais seis outros mancebos que me eram dedicados,
e se tinham apressado a vir em meu auxílio, e a oferecer-me os seus serviços,
pois que a cidade toda já sabia, o que comigo acabava de passar-se.
Com lágrimas de reconhecimento
agradeci tão doce demonstração de interesse e de estima, e convidei a esses
excelentes amigos para jantar comigo.
Que duas horas gozamos! A nossa
mesa foi sucessivamente servida das mais delicadas iguarias, e dos vinhos mais
generosos, que deliciosamente nos prenderam juntos até o anoitecer.
Acabado o jantar, declarei com
franqueza que precisava descansar e imediatamente os meus ótimos amigos
deixaram-me só, retirando-se a rir não sei mesmo de quê.
Ia recolher-me, quando me apareceu
o dono do hotel ou chefe da casa, a quem eu já perfeitamente conhecia e
estimava, como homem de verdade, singeleza e consciência.
— Sr. Simplício, disse-me ele; eu
devo prevenir a V. S.ª de que esses sujeitos que daqui saíram, são todos
parasitas de profissão, e exploradores da inexperiência; o senhor deu-lhes um
jantar, que lhe custa cento e trinta mil-réis, e eles desceram a escada a rir
descompassadamente da sua boa-fé, a que ousavam dar outro nome que não me animo
a repetir.
Fixei a minha luneta mágica sobre o
homem que me falava, e com espanto meu a visão do bem me fez reconhecer que ele
dizia sempre e ainda desta vez a verdade; mas a visão do bem ainda também à
mesa do jantar me mostrara como protótipos de amigos fiéis e dedicadíssimos os
sete mancebos que acabavam de retirar-se! …
Fiquei suspenso, perplexo, indeciso,
triste e aborrecido.
Paguei o jantar; fui deitar-me, e
ou pela fadiga resultante das fortes emoções, por que naquele dia passara, ou
pela mistura dos vinhos que bebera sem dúvida menos sobriamente do que costumo,
adormeci logo, caindo em profundo sono.
Despertei às duas horas da
madrugada, e a meu despeito, velei até o amanhecer.
Revolvia-me na cama, contra mim
próprio excitado; porque não queria refletir sobre a minha situação; mas
refletia.
Cerrava os olhos para dormir; mas o
espírito velava.
Chamava em meu socorro a imaginação
que por momentos perturbava com ilusões forçadas a série de graves reflexões;
mas em breve a imaginação se apagava, e as frias reflexões se impunham.
A força, a meu despeito embora, não
dormi e refleti.
Evidentemente eu tinha despendido
muito em mês e meio… mais de quinhentos mil-réis por dia, três vezes mais do
que a renda anual da minha fortuna, segundo os cálculos de meu honradíssimo
irmão.
Tão avultada desposa (que eu estou
certo que empreguei com proveito da humanidade), sem dúvida, conforme os
costumes e o modo de ver da sociedade egoísta, e dos homens da lei que não
julgam pelo coração nem pelo Evangelho, será explicada, recebida e sentenciada
como dissipação, e por consequência, e até por amor da minha pessoa, me darão
um curador!…
A visão do mal me expôs a ser
trancado por doido no hospício de Pedro II, a visão do bem expõe-me a ser
declarado néscio, ou idiota, ou por muito favor apenas dissipador da minha
fortuna, e como tal confiado, entregue absolutamente ao domínio de um curador,
de um dono e árbitro da minha pessoa, de um senhor de quem serei quase escravo!
Pela visão do mal ou pela visão do
bem, pelo ódio ou pelo amor da humanidade, pelo juízo mau a respeito de todos
ou pelo juízo bom a respeito de todos, as duas lunetas mágicas levaram-me ao
mesmo perigo, ao mesmo fim, a mesma calamidade.
Uma, a primeira me fez passar por
doido; outra, a segunda, me faz passar por néscio! Doido ou néscio, não
escolho; porque a consequência é a mesma.
O meu curador será provavelmente o
mano Américo, que concebeu e lá manifestou a horrível idéia de quebrar a minha
luneta mágica.
Portanto querem condenar-me à
miopia perpétua, miopia que para mim é a cegueira, é a morte no seio da vida!
Desejo, tenho o direito de desejar
ver, que é viver, e não querem permitir que eu viva, não me permitindo que eu
veja…
Não! não! e não!
Hei de até o extremo defender a
minha luneta mágica.
E certo que começo a conceber
algumas desconfianças em relação ao acerto e à infalibilidade das revelações da
visão do bem.
As contradições que notei entre a
inocência dos condenados da casa de correção e as sentenças sempre instas dos
magistrados, e entre os sentimentos dos amigos que ontem jantaram comigo, e os
avisos leais e cheios de verdade do dono do hotel desacreditam um pouco no meu
conceito a visão do bem.
Se a visão do bem fosse o apólogo
vivo, a expressão real da inexperiência; se pela visão do bem eu me tenho
tornado o escárnio dos parasitas, o ludibrio dos trapaceiros, a zombaria de
todos, o objeto da mofa e do ridículo do povo… ah! eu preferia ter sido
fulminado por um raio…
O ridículo!… o ridículo é a queda
no charco; é o aviltamento sem compaixão; é o pelourinho mil vezes pior que o
patíbulo; é o azorrague mais cruel que a guilhotina; é a morte pelo desprezo…
Quero antes a perseguição do ódio,
do que o acompanhamento do ridículo…
E dizem que riem-se de mim… que
me apontam, como estúpida vitima de homens sem consciência, e de uma mulher sem
brio, e sem coração…
Eu sei, e sinto, eu tenho consciência
de que tudo isso é falso; mas riem-se de mim!…
Que hei de fazer?… nem sei;
quebrar a minha luneta magica, origem e causa de todas estas torturas do
espírito?… não; menos isso.
O erro dos homens é patente: quem
vive e procede com acerto, sou eu.
Resistirei pois aos homens, e me
deixarei matar, defendendo a minha luneta mágica que meu irmão condenou.
Eu refletia assim, e tinha ia
esquecido as horas e o empenho de escapar às reflexões, dormindo, quando a
aurora principiou a espancar as trevas, e as auras matinais, refrescando o meu
cérebro, me aditaram de novo e insensivelmente com o mais tranquilo e suave
sono.
XXVI
Levantei-me às dez horas da manhã,
e tinha acabado de almoçar, ouvindo o sinal de meio-dia.
Dispunha-me a sair; mas vi entrar o
meu amigo Reis, que vinha de propósito visitar-me.
No Reis depositava eu e deposito
confiança sem limites. Ou todos o julgam pela visão do bem da minha luneta
mágica, ou se eu me engano no juízo que faço do Reis, todos se enganam comigo.
Recebi o amigo Reis, como um cego,
a quem se anuncia o primeiro raio de luz, e com ele a vida pelos olhos.
Apertamos as mãos, e nos sentamos
um ao lado do outro.
— Temos sofrido muito ambos, e pelo
mesmo erro, disse-me o Reis.
— Como?
— Eu errei, deixando-o entregar-se
a um pretendido mágico; o senhor errou acreditando exageradamente nele.
— Mas se eu vejo!!!
— É porque ele conhece e esconde o
segredo de elevar a maior, a mais alto, e ainda não calculado grau os vidros
côncavos destinados a corrigir a miopia; tudo mais que ele emprega é
delicadíssimo artifício de charlatanismo para excitar e inflamar a imaginação.
— A sua descrença é um erro…
— A minha tolerância é que tem sido
erro; a notícia que imprudentemente fez publicar na imprensa diária da corte, e
a fama da sua nova luneta deram causa a que meu armazém seja com frequência
procurado por pretendentes a instrumentos mágicos de ótica, sofrendo eu
perseguições e desgostos, que mal pode calcular; isso porem é o menos.
— Que é então o mais?
— A situação em que se acha.
— Que pensa?
— Ouça-me com paciência: a sua
pretendida visão do bem o tornou alvo das zombarias e do ridículo…
— Do ridículo?! ! !
— Não há vadio, nem trapaceiro que
não tenha abusado da sua boa-fé; o senhor aparece em público associado e
convivendo com as celebridades mais imorais e desprezíveis da cidade…
— Que me está dizendo?
— A verdade; todas as senhoras
conhecem já a sua… mania de se supor amado por elas sem exceção de uma só, e
de amar igualmente a todas, e isso as diverte de modo tal, que nenhuma o vê que
não precise de grande esforço para conter o riso…
— O riso!…
— Enfim o senhor é o divertimento
de muitos, e o objeto da compaixão dos homens graves, que acreditam
indispensável que sua família o sujeite a mais zelosa curadoria…
Senti que sucumbia ao peso do meu
infortúnio.
O amigo Reis prosseguiu:
— Seu irmão foi hoje a nossa casa e
queixou-se da maléfica influência das duas lunetas mágicas saídas das minhas
oficinas; tive de reconhecer a minha responsabilidade e, pedindo perdão,
assegurei que mais nunca permitiria ao armênio outra operação mágica para
facilitar-lhe nova luneta.
— Que fez!… exclamei tremendo.
— Seu irmão disse-me que antes de
três dias seria nomeado seu curador, e que empregará até a força para
recolhê-lo ao seio da família …
— Três dias… e depois a privação
da luneta mágica, a cegueira, e a casa tornada cárcere!!!
— Quando seu irmão saiu, fui ter
com o armênio e referi-lhe a sua desgraça, a sua lamentável…
— Necedade.
— Não me animava a dizê-lo; os seus
grandes prejuízos, e ridículo proceder em consequência da visão do bem.
— E o armênio?
— Respondeu-me, levantando e
encolhendo os ombros com cure gelada indiferença.
— Estou perdido…
— Então avisei severamente ao
armênio, de que eu o despediria para sempre da minha casa, se nela praticasse
uma única vez mais as suas pretendidas artes mágicas.
— E ele?
— Nem sequer olhou para mim; mas
riu-se com o seu rir medonho.
— Não o despedirá!
— Despedi-lo-ei, se não me
obedecer. Quanto ao senhor, meu jovem amigo, submeta-se a sua sorte: volte para
o santo asilo da sua família, e deixe-se dirigir e guiar por seu irmão.
— Estou perdido, repeti
lugubremente.
O Reis despediu-se e deixou-me só.
XXVII
Meu irmão dá-me três dias de
liberdade, o mesmo prazo que se concedia aos condenados à morte: três dias
entre a intimação e a execução da sentença.
E todavia meu irmão é o melhor dos
homens, e símbolo do amor fraternal.
Serei eu realmente néscio ou
idiota?… mas eu penso, raciocino, reflito, e tenho consciência de que o faço.
Ninguém me chamou idiota, somente
me julgaram doido, quando eu julgava os homens e as coisas pela visão do mal.
Será pois a visão do bem fonte de
necedade?…
É certo que pela visão do bem eu
vejo todos sem exceção, tudo sem exceção resplendendo pureza e perfeições; ainda
não descobri defeito em alguém, ainda não pude julgar má ação alguma.
Com efeito esta inocência e
perfeição de todos e de tudo excluem a idéia do pecado, e portanto a idéia do
prêmio e do castigo na vida eterna, o prêmio, porque é distinção, e não podem haver
escolhidos e distintos quando todos são igualmente bons; o castigo, porque não
há que castigar.
Assim pois eu ataco pela base a
filosofia, a doutrina católica…
Meu Deus! terei eu sem o pensar
chegado até ofender a religião?…
A visão do bem da minha luneta será
como a do mal acesa pelo demônio?… será infernal pelo excesso de mostrar
sempre o bem em todos e em tudo?
Minhas ideias se baralharam, minha
cabeça começou a pesar-me; receei a iminência de um ataque cerebral, ou algum
acesso de loucura.
Tomei o chapéu e sai sem destino,
levando fixada a minha luneta; dei por mim na Rua Direita, reconhecendo o Boulevard
Carceller, e fui sentar-me isolado à sombra da árvore mais vizinha da
Igreja do Carmo.
A defender-me da luneta que eu
conservava fixada, levava cuidadoso. a desconfiança no coração; mas o Boulevard
estava cheio de gente, de homens e de senhoras: percebi que muitos me apontavam
com os dedos, que outros sorriam-se, observando-me; mas a despeito da minha
desconfiança, não pude resistir à evidência: compreendi, convenci-me que estava
diante de uma reunião numerosa, na qual todos os homens eram santos, todas as
senhoras anjos.
Sobretudo senti que as senhoras me
contemplavam embevecidas e perdidas de amor; eu ardia no fogo de vinte novas
paixões!
Que sensações deliciosas!… todas
essas criaturas angélicas riam-se olhando para mim, e encontrando o meu olhar,
e no riso de cada uma delas eu encontrava um céu aberto, um romper de aurora no
paraíso.
De súbito chegou-se a mim um
mancebo com o semblante abatido, e repassado de dor, e mal podendo falar,
expôs-me a sua situação que era das mais pungentes sem dúvida, e acabou,
pedindo-me o óbolo da minha caridade para enterrar o filhinho, o filho único,
que deixara em casa morto no colo da consternada esposa.
Vi que o mancebo, mísero pai,
falava a verdade, e às ocultas dei-lhe algum dinheiro.
Seguiram-se logo ao infeliz jovem
uma imediatamente depois de outra três moças que se chegaram a mim, esmolando
para missas pedidas.
Essas esmolavam, rindo-se, e eram
raparigas elegantes, espertas, e francamente alegronas e travessas, devendo ser
conhecidas de muitos que ali estavam, pois que com muitos trocavam gracejos;
chegadas porém a mim vi-as confundidas de pelo, e abrasadas de amor; fitei
bastante com a minha luneta cada uma delas, e extasiei-me, encontrando em seus
corações a mais santa piedade, e profundo sentimento religioso.
É claro que concorri, como devia,
para as três missas pedidas. Não podia ser de outro modo.
O que me valia, considerando as
três moças, e as outras senhoras, era o seu número, e a semelhança e força
igual que produziam em mim tantas belezas e tão preciosas qualidades; porque eu
estava doido de paixão por todas elas, e todas elas também por mim,
coitadinhas!
Como isso era não posso
razoavelmente explicar; era porém assim.
Todavia em seguida as moças veio
logo uma velha que me confessou ser viúva pobre, tendo seis filhos, que até
aquela hora não tinham almoçado… dei-lhe esmola.
Depois da velha correu a ter comigo
um cavalheiro de maneiras muito distintas, e da mais perfeita cortesia, a quem
acontecera um desses pequenos infortúnios, a que todos estamos sujeitos:
acabando de comer pastéis, e de beber uma garrafa de cerveja, reconhecera haver
esquecido a carteira, e achava-se naturalmente muito contrariado. Fiz o que
qualquer outro faria no meu caso: reconhecendo a capacidade e merecimento do
cavalheiro, que me pareceu trigo sem joio, entreguei-lhe a quantia necessária
para pagar a despesa que fizera.
Mas após o nobre cavalheiro
avançavam lá para mim dez ou doze rapazes ao mesmo tempo, quando um venerando
ancião, tomando-lhes os passos, e censurando-os com algumas breves, mas severas
palavras, chegou-se ao banco que eu ocupava e disse-me:
— Mancebo inexperiente! Não vê, não
sente, que está sendo vítima da zombaria de gente sem generosidade ou de maus
costumes?… Para que deita fora o seu dinheiro?… Aqueles e aquelas que lho
tomaram, simulando morte de filho, missas pedidas, fome de família,
esquecimento de carteira, estão ali dentro da confeitaria, rindo às gargalhadas
da sua inverossímil credulidade, comendo e bebendo à sua custa.
Fixei a luneta e vi: o velho era
respeitável como as suas cãs, puro como os mártires da fé, verdadeiro como um
axioma, severo como a lei, austero como a própria virtude, justo como a
sentença da sabedoria.
— Que me diz, meu amigo?
— Eu não sou seu amigo, pois que
nem o conheço; dói-me porém vê-lo deixar-se depenar por mulheres perdidas, e
homens sem brio.
— É demais… tenho razão para
reputá-las, e reputá-los dignos de toda a consideração…
— Infeliz moço! murmurou o ancião.
E logo depois tomando-me pelo
braço, e obrigando-me a deixar o banco, acrescentou:
— Retire-se; recolha-se a casa;
diga a seus parentes que cuidem mais e melhor do senhor.
— Os meus parentes!… esses
declararam-me guerra… são ótimas pessoas, e muito me amam; mas alucinados
perseguem-me…
— Como?
— Acreditam que sou… talvez
maníaco, e querem nomear-me curador.
— Deixa-me dizer-lhe a verdade?
— Sem dúvida…
— Seus parentes tem razão.
Quase que me rompeu da garganta o
grito de misericórdia! Fiquei como assombrado.
O ancião repetiu:
— Pobre moço! Recolha-se a casa.
E empurrando-me suavemente pelos
ombros, foi sentar-se.
Eu apartei-me do Boulevard Carceller
aflito, quase desesperado, e tanto mais que escutava atrás de mim, e no lugar
donde me retirava, observações epigramáticas, tristes apreciações do meu
estado, e até risadas de escárnio.
Minha situação piorava, o meu
espírito se obumbrava cada vez mais, e as mais turvas e sinistras ideias
começavam a invadi-lo.
Entrei com precipitados passos na
Rua do Ouvidor: era a hora de mais costumada concorrência.
Eu mantinha a minha luneta sempre
fixada; mas fixada sem consciência porque não queria ver, e não via; também não
desejava ouvir, porém ouvia.
Pelos meus ouvidos pareceu-me estar
ainda no Boulevard Carceller, porque era-me impossível não
escutar risadas que mal se abafavam, ou que petulantes se desprendiam.
O meu nome era repetido em tom de
compaixão por alguns, em tom de escárnio por outros.
Evidentemente ninguém me
considerava, como eu queria ser considerado, e tinha direito de sê-lo.
— Aí vai ele…
— E o maníaco…
— É o Simplício…
— Coitado…
Eis as palavras, as designações
cruéis, condenadoras, terríveis que me chegavam aos ouvidos!
Eu continuava a caminhar apressado,
furioso, fora de mim, pedindo ao céu um abismo, onde caísse de súbito, um raio
que me fulminasse…
Eu ia indo… sempre… quase a
correr: deviam na verdade julgar-me desvairado…
De repente parei: uma voz
argentina, suave, melodiosa exclamara:
— Como corre o bom anjo! É pena que
não me visse! Segundo a regra morreríamos de amor um pelo outro, e ele me
pagaria o jantar…
Olhei… fixei com a minha luneta
mágica o demônio que assim tão barbaramente me ridiculizava… encarei-o… observei-o
com ódio.
Ah! …
Era uma jovem no mais belo frescor
da idade: vinte anos não mais, dezoito anos não menos; cabeleira de ouro com
enchentes de anéis a inundar-lhe as espáduas nuas e alvejantes… colo nu, e
seios quase de todo à mostra; vestido de duas salas, e toilette com
mais cores que o arco-íris, meia perna patente… botinas justas de laços com
botões a brilhar e de saltos de duas ou três polegadas… olhos radiantes, e
boca a rir, mostrando os dentes brancos… sublimes…
Ela tinha parado e olhava-me
provocadora, insolente, como a pedir-me jantar…
Esperei três minutos contemplando-a
bonita para aborrecê-la escandalosa e infame…
Meu Deus! a visão do bem mostrou-me
o que ela era…
Ela era a formosura… a
pudicícia… o recato… um anjo!…
Insensivelmente meus joelhos se iam
curvando; eu estava quase na posição, em que os devotos adoram a divindade,
quando de todos os lados estrondaram gargalhadas…
A criatura angélica, gargalhando
também saltou para dentro de um carro puxado por magnífica parelha, e
fugiu-me…
As gargalhadas continuavam… era
como uma pateada que me davam…
Em desespero, em frenesi, em fúria,
corri, fugindo e fui encerrar-me no hotel.
XXVIII
Não sai mais nesse dia e dei ordem
aos empregados do hotel para que despedissem a todos quantos me procurassem,
pretextando ou incômodo ou ausência de minha pessoa.
Consumi a tarde, a noite e a manhã
seguinte em teimosas, amarguradas, mas estéreis reflexões.
Eu estava precisamente na mesma
situação, nas mesmas circunstâncias, em que me achava nos últimos dias da posse
e uso da primeira luneta mágica.
Se alguma diferença havia entre as
duas épocas e as duas aflições era agora para muito pior; porque agora se me
quebrarem a luneta mágica da visão do bem, já sei que não poderei conseguir
outra luneta.
E a sentença está lavrada e é
irrevogável: o mano Américo, em sua extrema bondade e pelo grande interesse que
toma por mim, receoso de que eu esbanje o resto de minha fortuna, me privará da
luneta mágica que dá a visão do bem.
E é amanhã o dia em que por bem ou
por mal serei recolhido a casa ou ao cárcere de minha família, e sujeito ao meu
curador.
Deverei submeter-me?…
Estudei por todos os lados e em
todas as suas consequências possíveis o caso, e conclui que o partido que me
restava era fugir, e fugir imediatamente.
Para onde? Pouco importa; correrei
o mundo; com dinheiro e boa vontade não se vive mal em parte alguma.
Examinei a minha carteira:
restavam-me trinta e tantos mil réis!… fiquei desagradavelmente surpreendido;
lembrou-me porém que na antevéspera tinha emprestado quatrocentos mil-réis a um
dos amigos que jantaram comigo, e que na véspera assinara em duas subscrições
para alforria de escravos.
A falta de dinheiro não podia
embaraçar a execução do meu plano; eu contava tantos amigos que facilmente
arranjaria quatro ou seis contos de réis.
Paguei o que devia no hotel e fui
logo procurar o velho Nunes, e em seguida ao bom Damião e a mais quinze ou
vinte, a todos os quais patenteei a minha situação, confiei o meu plano, e pedi
algum dinheiro ou a titulo de empréstimo, ou em pagamento do que me deviam.
Triste observação!. . Não achei em
todos esses excelentes amigos um só que me acudisse com alguma e ainda diminuta
quantia!… mas os pobres e honradíssimos homens asseguraram-me que em quinze
dias ou um mês me levariam a casa trinta ou quarenta contos de réis.
É pena que somente para tão tarde
possa eu contar com esse recurso que fora hoje tão poderoso, e que então será
inútil para o meu plano.
Não desanimei e me dirigi ao meu
banqueiro; este porém apenas percebeu o que eu queria, tomou o Jornal
do Comércio que estava sobre a mesa de seu escritório, e mostrou-me um
anúncio assinado por meu irmão, em que protestava não seria paga divida alguma
contraída por mim.
Retirei-me desesperado; todas as
minhas esperanças tinham falhado, todos os meios me faltavam para obter
dinheiro…
Ninguém pode fazer idéia da dor que
me despedaçava o coração …
Recorri ainda a dois outros amigos
que me deviam também somas importantes… um deles voltou-me as costas sem me
responder, e o outro não me conheceu!!!
Fixei a minha luneta mágica sobre
cada um desses dois miseráveis… ah! nenhum deles era mau: o primeiro
voltava-me as costas cheio de vergonha e de pesar por não poder servir-me, e
sem dúvida ao ver-me partir, desatara a chorar… o outro, pobre infeliz,
afetado de uma moléstia cérebro-espinhal, tinha perdido a memória; pelo menos
foi isto o que reconheci pela visão do bem.
Perdida a última esperança,
sentindo profundo, moralmente mortal o golpe da desgraça, prevendo o raio
infalível que ia fulminar-me no dia seguinte, pus-me a andar sem destino, mas
apressado, quase a correr não sei por quais ruas da cidade; sei porém que de
improviso parei na quina, ou ângulo formado por duas ruas que se cortavam.
Aproximava-se numeroso préstito de
carruagens; quis vê-lo passar.
Era o préstito lúgubre de um
finado. Era um enterro.
XXIX
Tive um pensamento que estava
naturalmente em relação com a negra tristeza do meu espírito.
Desejei estudar o cadáver, que se
ia sepultar.
Fixei a minha luneta mágica no
féretro.
Eis o que vi:
Primeiro um caixão de madeira
coberto de ricos estofos pretos e de galões de ouro, dentro um cadáver já em
corrupção, fétido, repugnante… Iodo e pó da terra e nada mais.
Logo depois a memória das
singulares virtudes do finado e… oh!… a felicidade, a incomparável
felicidade da morte!…
Eu vi, senti, compreendi a morte,
que se patenteou tal qual é, a visão do bem!
Eu vi a morte- mal julgada,
caluniada pelos homens- sono plácido, suavíssimo que começa à última dor, ao
extremo transe da vida, e que acaba ao despertar nas delicias da eternidade;
paz sem cuidados, sossego sem a mais leve perturbação- véspera instantânea da
verdadeira vida- porta do fim que é luz celeste.- Oh! que gozos na morte! a
podridão e o fétido do cadáver em sublime contraste muito de longe dariam idéia
da pureza e do angélico aroma da alma que se desprende do pó! Que gozos na
morte! O mais vaidoso dos reis sente-se pela primeira vez verdadeiramente
grande e exaltado elevando-se à esfera onde se encontra igual ao mais humilde e
rude dos vassalos ou escravos que tivera!… Não há dor, nem ânsias, nem
moléstias, nem privações, nem miopia na imensa e refulgente região da morte!
Aquela frieza enregelada do cadáver significa esquecimento absoluto das penas
da vida efêmera e mundana.
Pela morte o escravo é livre, a
criança e a virgem são anjos, a esposa jovem, a matrona e a velha santas, a
mundana é Madalena purificada, o malvado, o celerado são arrependidos que se
regeneram, o desgraçado é feliz, o mudo tem voz, o paralítico voa, o surdo ouve
segredos, o cego vê nas trevas, o desgraçado é perfeitamente feliz!…
A morte é Jordão que lava as
culpas…
A morte é glória…
A morte é luz…
Só a morte é que dá principio à
vida.
Eis um pouco do muito que a visão
do bem me fez descobrir e apreciar na morte.
O préstito já tinha passado.
Deixei cair a luneta mágica.
Abismei-me em profunda introversão,
no estado da minha intima consciência, no estado novo e extraordinário do meu
espírito…
Achei-me consolado, forte,
invencível, contente, feliz…
Eu desejava, almejava morrer…
Morrer era começar a viver… e a
viver que vida de delícias!…
Eu acabava de conceber a idéia, e
de abraçar-me com a idéia do suicídio.
XXX
Examinei o ponto da cidade onde me
achava, e logo conheci que havia parado para ver passar o préstito fúnebre no
lugar, que é corte da Rua dos Barbonos, fim da das Mangueiras. e principio da
dos Arcos.
A breve distancia estava pois mais
adiante a ladeira do morro dantes chamado do Desterro, e desde o século passado
de Santa Teresa.
Mais de um suicídio se tem
realizado no alto, e nos desertos abismos daquele monte.
Instintivamente mas sem dúvida com
a idéia da morte, dirigi-me para a ladeira, e comecei a subi-la passo a passo,
com vagar e tranquilidade, com ânimo sereno, e com o firme propósito de pôr
termo a minha vida.
Eu não tinha comigo nem punhal, nem
veneno, nem revólver, não levava pois arma, ou instrumento, ou meio de morte, e
contudo subia a ladeira com intento de me matar.
A visão do bem me levava à morte.
Eu nunca visitara o sitio famoso do
Corcovado; ouvira porém dizer que lá havia enorme precipício, profundíssimo
abismo, no seio do qual a morte era certa para o infeliz que por acaso a ele se
arrojasse.
Se as informações não eram falsas,
o propósito me daria o fim, que receava do acaso ou da imprudência.
Não me era pois necessário levar
comigo punhal, veneno, ou revólver: eu tinha por mim o abismo.
Fui subindo a ladeira tranquila e
pausadamente, descansando aqui, ali, e deleitando-me a ouvir o leve ruído das
águas da Carioca, que em alguns pontos do antigo encanamento mandado construir
pelos vice-reis do tempo colonial, parecem murmurar da negligência, ou da
comparativa inferioridade da administração da nossa época, que vinte vezes por
ano deixa o povo em penúria d’água, e diariamente lhe da água da Tijuca
toldada, mal zelada, e não aquela tão pura e admirável a que o gentio chegava a
dar o condão de acender’ a inspiração da poesia
E fui subindo sempre.
A noite era formosa; a lua em fase
plena mergulhava a cidade em um oceano de luz pálida, mas clara, suave,
encantadora e romanesca.
Muitas vezes voltava-me para
contemplar essa já grande Babel, esse labirinto de ruas que formam a opulenta
capital do Brasil, e me embebia por minutos no grandioso panorama da bela
sebastianópolis iluminada por milhares de flamas de gás, que simulavam
enfeitiçá-la em noite de festa.
E de cada vez que me voltava para a
cidade, eu dela me despedia, dizia-lhe o adeus saudoso e melancólico do filho que
se separa da família, e que sabe que não voltará mais ao seu lar.
Eu subia sempre; o silêncio da
noite era só interrompido pelo latir dos cães que, sentinelas vigilantes,
guardavam as chácaras.
Ainda era cedo, mas a solidão
completa; e todavia eu não tinha receio de encontro algum suspeito ou sinistro;
receio de quê?… pobre e decidido a morrer, rir-me-ia do ladrão, do assassino
que me atacasse.
Depois de muito longa marcha ouvi a
voz de um homem que caminhava adiante de mim e que cantava uma rude cantiga com
acompanhamento de viola, que ele próprio executava.
Apressei o passo e apanhei o
cantor.
Era um guarda do aqueduto.
Trocamos a saudação de- boa noite.
— Vou seguindo o caminho do
Corcovado?
— Sim senhor; mas a estas horas?
— É proibido?
— Não; já sei: quer amanhecer lá.
— Adivinhou.
— Pois eu vou dormir às Paineiras.
— Tanto melhor para mim. E das
Paineiras ao Corcovado?
— Não há que errar.
Fomos seguindo em silêncio: no fim
de meia hora perguntei:
— Por que não canta?
— Gosta?
— Muito.
— O canto anima o trabalho e ilude
a fadiga, disse o guarda.
E afinou a viola e cantou outra
cantiga também rude, e monótona, mas saudosa e melancólica.
No meio da solidão e da noite o
canto do guarda produzia em mim indizível impressão de suave tristura.
Observei com a luneta mágica por
mais de três minutos o guarda, e vi que era pobre, tinha mulher e dois filhos,
vivia alegre, e por seus dotes merecia as honras da terra e a maior estima dos
homens.
Revoltou-me a posição obscura desse
homem distintíssimo pela nobreza de caráter, e pela santidade do coração.
Quando acabou a cantiga,
perguntei-lhe:
— Que pensa da vida?
— Que custa a viver.
— Não é melhor a morte?
— E minha mulher? e meus filhos?
— É feliz?
— Conforme: se me dessem o dobro do
que ganho, eu me julgaria dobradamente feliz um dia.
— E por que não dois dias e mais?
— Porque é quase certo que no
segundo dia eu desejaria ainda outra vez o dobro do que estivesse então
ganhando.
— E não tem aflições?
— Às vezes, e sobretudo quando não
trabalho; mas em tais casos Luísa deixa a costura e vem perguntar-me o que
tenho; correm os meninos a pular-me ao pescoço, e lá se vai a tristeza pelo
morro abaixo; ou, se estou só em casa pego na viola e canto.
— Que pensa dos homens?
— Bem e mal: nem confio nem
desconfio, e julgo que é melhor não pensar neles.
— Por quê?
— Porque todo tempo é pouco para
cada um pensar em si, na sua família, no seu trabalho, e nas contas que deve a
Deus.
Eu admirava a sabedoria do guarda
do aqueduto, e compreendi perfeitamente o seu amor, o seu apego à vida pelo
encanto da esposa e dos filhos.
Só o egoísta pode almejar as
delícias da morte, sendo esposo e pai; eu porém procurei debalde uma noiva, não
tenho filhos e posso portanto e devo morrer.
Enlevado pela conversação ia
continuá-la, quando o guarda me disse:
— Estamos nas Paineiras, e aqui nos
separamos.
Ensinou-me o fácil caminho que me
levaria ao Corcovado, deu-me- boa noite- e desapareceu, metendo-se por um
trilho quase encoberto pelo mato.
XXXI
Lavado de suor e arfando de fadiga
cheguei finalmente a alto ermo do Corcovado.
A lua brilhava formosíssima, e
consultando o relógio, mercê da minha luneta mágica, vi que eram duas horas da
madrugada.
Véu impenetrável de cerração cobria
o mundo nos espaços imensos em torno do Corcovado.
Eu estava em pé no trono de vasto
pais, submerso em dilúvio de neblina; compreendia a soberba majestade do meu
sólio; mas tinha idéia das proporções dos meus Estados.
O vento frio fazia-me tremer, o ar
leve e puríssimo deleitava-me a respiração.
Sentei-me; quis pensar na morte e
não pude, porque meus olhos se cerraram, e dormi.
Despertei ao primeiro raio do sol,
que refletiu no meu rosto.
Levantei-me.
Era ainda cedo para ver o mundo
abaixo dos meus pés e em torno do Corcovado.
Passeando pela planura, conversei
comigo mesmo.
Morrerei; mas antes de morrer quero
ver as grandezas da terra que deste sublime trono erguido por Deus se revelam e
manifestam aos olhos do homem.
Aqui da altura direi o extremo
adeus aos meus lá embaixo.
Será o último serviço que deverei a
minha luneta mágica…
O último?…
Oh! eu vou morrer, por que não
experimentarei a visão do futuro?… que me importa que se quebre a luneta,
quando mais não posso usar dela?…
Fora loucura não tentar a
experiência?…
Este novo pensamento dominou-me;
fixei a luneta, e observei em volta do Corcovado o aspecto da natureza…
A cerração se desfizera de todo…
o mundo se mostrava, se patenteava amplo, completamente sem véus, sem
nuvens…vi…
Oh! meu Deus! eu não descreverei,
não tentarei descrever o lindo, o belo, o sublime panorama, que por todos os
lados, se abriu à minha luneta mágica, as cidades e povoados, as terras, e o
oceano. as montanhas e os abismos, os montes e os vales, as torrentes e as
pedras, o céu e os campos, a providência, e o mundo, a riqueza do favor de
Deus, e a miséria da incúria dos homens!!!
Ajoelhei-me e orei.
Ergui-me e ainda uma vez, e outra,
e mais dez vezes enlevei-me na contemplação das majestades da criação que em
torno do Corcovado se ostentavam…
Tudo era grande, tudo menos o homem
que era o perdulário, e o esbanjador sacrílego dos tesouros da terra, que Deus
lhe dera…
Senti que para não odiar,
desprezava o homem, desprezei-me também, lembrei-me da morte, que olvidara em
minha contemplação entusiasta, lembrei-me também do suicídio e da visão do
futuro.
O suicídio era fácil: um abismo
estava cavado abaixo de meus pés; atirar-me a ele e não morrer era
impossível…
Experimentar a visão do futuro era
igualmente muito simples: bastava-me fixar a luneta mágica por mais de treze
minutos sobre algum objeto.
Instintivamente lembrei-me da
capital do Império do Brasil.
Ter por impressão extrema da vida
uma idéia dos tempos que ainda hão de vir para aqueles que deixarei vivos, era
uma ambição arrebatadora; ter por extrema despedida do mundo o quadro aberto do
futuro próspero da pátria, seria a mais suave consolação, se eu pudesse
conseguir a visão do futuro antes de suicidar-me.
Fixei pois a luneta mágica sobre a
cidade do Rio de Janeiro e vi…
Durante os três primeiros minutos:
força vital, prodígios de riqueza do solo do Império, majestade da natureza e
em grande número de homens incapacidade, inveja, capricho, nepotismo, vaidade
comprometendo tudo, sacrificando tudo, perdendo tudo no culto do egoísmo, e de
ruins paixões.
Depois de três minutos até treze: a
mesma e ainda mais surpreendente opulência de tesouros naturais do solo, o mais
sábio governo do mundo, a população mais moralizada e pura, a constituição e as
leis do Império religiosamente executadas, trabalho inteligente, a indústria
esplêndida, abundância de ouro, profunda instrução em todos, contentamento
geral, o céu na terra enfim…
Além de treze minutos: a visão do
futuro… primeiro e de súbito imensa e compacta nuvem negra cobrindo todo o
horizonte e logo através dela vivíssimo e penetrante raio de luz que me feriu e
deslumbrou, que me fez recuar e cair por terra, quebrando-se em migalhas a
luneta mágica de encontro a uma pedra!
Achei-me em trevas; mas ergui-me de
pronto, e sem hesitar corri para o abismo e bradando:
— Adeus!…
Saltei o parapeito, arrojando-me ao
profundo precipício…
Mas duas mãos possantes
suspenderam-me pelas orelhas, pelas orelhas me contiveram por momentos no
espaço entre a vida e a morte, e, sempre pelas orelhas, me tiraram da boca do
abismo, e me depuseram no chão.
— Ainda é cedo, criança! disse a
voz rouca do homem que me salvara, puxando-me as orelhas.
Reconheci o homem pela voz.
Era o armênio.
FIM DA SEGUNDA PARTE
EPÍLOGO
I
A suavidade das auras, a pureza do
ar que banhavam docemente meu rosto e meus pulmões, o vivificante calor dos
raios do sol venceram pouco a pouco a supraexcitação nervosa que me ficara da
tentativa de suicídio, do salto que eu dera, e da suspensão no espaço, na
horrível boca do abismo.
Estirado no chão e em convulsivo
tremor eu conservava a consciência de que vivia pela ativa lembrança das
sensações instantâneas, mas violentas que me tinham torturado a alma; primeiro
o adeus, extremo adeus deixado ao mundo, depois, dado o salto, o arrependimento
súbito e vão; logo o socorro imediato e não esperado, e enfim a esperança, as
ânsias e o terror desses instantes supremos, indizíveis em que me achei entre a
vida e a morte, entre o suicídio que parecia absorver-me, e as mãos da
providência que me continha pelas orelhas.
Passada uma longa hora, senti que
me voltavam as forças.
Ajoelhei-me, e repeti em voz baixa
breve oração.
Depois levantei-me e disse,
procurando debalde com os olhos o armênio:
— Obrigado!
— Bom sinal! observou este; o teu
coração voltou-se para Deus, e depois de render-lhe graças, a tua voz disse na
primeira palavra um voto de gratidão ao homem que te salvou: morreste louco, e
renasceste ajuizado.
Eu desatara a chorar, e chorei
longamente.
O armênio tornou-me, depois de
deixar muito tempo livre curso a meu pranto.
— Criança adoidada: já te puxei
bastante as orelhas; mancebo infeliz, quero agora consolar-te.
Enxuguei com precipitação as
lágrimas, e lancei os olhos quase sem luz para o lado, donde me vinha a voz do
armênio.
Ele riu-se e acrescentou
— Adivinhei o teu criminoso intento
e vim aqui salvar-te do suicídio, e dar-te nova, terceira e última luneta
mágica.
— Oh! .. e onde? e quando?
— Aqui mesmo e em breve.
— Que felicidade!
— Vou proceder à operação mágica.
— Eu a espero ansioso.
— E não tens medo? .. aqui.. neste
lugar deserto… a sós comigo…
— Não.
— Confias pois muito em mim?
— Muito.
— Não há confiança sem fundamento
que ao menos se suponha seguro, e tu nem sequer sabes como me chamo, o que não
me admira, porque nem sabes o teu verdadeiro nome.
— Eu o conheço pelo armênio, o mais
sábio dos mágicos, e sei que recebi na pia batismal o nome de Simplício.
— Erro duplo! não há aqui armênio
nem Simplício.
— Então como nos chamamos?
— Eu me chamo Lição.
— E eu?
— Tu te chamas Exemplo.
— Ah!
— Escuta-me.
II
O armênio começou a falar.
— A exageração degenera os
sentimentos, desvirtua os fatos, desfigura a verdade.
“Exagerar é mentir.
“No mundo há o bem e o mal,
como há na vida o prazer e a dor.
“Mas o bem é o bem, o mal é o
mal como eles são e não podem deixar de ser para a humanidade que e imperfeita:
perfeito bem, absoluto mal não há para ela.
“O bem absoluto é Deus; mal
absoluto não existe, não pode existir; porque seria o mal sem arrependimento, e
sem perdão e portanto um limite à onipotência de Deus, o absurdo na verdade eterna.
“Assim pois acontecimento, ser
da criação, homem absolutamente maus ou absolutamente bons não são possíveis,
nem se compreendem.
“Estudar o mundo e os homens,
observando-os pela enfezada lente as doutrinas, ou prevenções, as tuas duas
lunetas exageraram.
“Ora exagerar é mentir.
“Mancebo, a verdadeira
sabedoria ensina e manda julgar os homens, aceitar os homens, aproveitar os
homens, como os homens são.
“A imperfeição e a
contingência da humanidade são as únicas ideias que podem fundamentar um juízo
certo sobre todos os homens.
“Fora dessa regra não se pode
formar sobre dois homens o mesmo juízo.
“Cada qual é o que é; cada
qual tem as suas qualidades, e seus defeitos.
“A sociedade que aceite cada
homem com as suas qualidades e os seus defeitos, explorando umas e outras em
seu proveito.
“As próprias plantas venenosas
são úteis: a ciência faz do veneno mais violento um meio destruidor de
moléstias, regenerador da saúde, conservador da vida.
“A educação do homem que é a
base mais importante e a essencial da ciência social pode explorar em beneficio
da sociedade, dirigindo-os convenientemente, os próprios defeitos
correspondentes às qualidades estimáveis de cada um.
“Mancebo! para te levar à
verdade já te lancei duas vezes no caminho do erro.
“Erraste acreditando no mal,
erraste acreditando no bem, que te mostraram tuas duas lunetas, que exageraram
o mal e o bem, ostentando cada uma o exclusivismo falaz do seu encantamento
especial.
“Erraste pelo exclusivismo;
porque o exclusivismo é o absurdo do absoluto no homem.
“Erraste pela exageração;
porque exagerar é mentir.”
III
Eu escutara com respeitoso silêncio
o armênio que, tendo descansado alguns momentos, disse-me:
— Resolvi dar-te hoje a mais
preciosa, mas também a última das lunetas mágicas que de mim terás.
— Qual?…
— Aquela que te fará gozar a visão
do bom senso.
— Oh! a visão da sabedoria…
— Quase.
— Serei feliz… perfeitamente
feliz!
— Nem assim.
— Por quê?…
— Porque o homem é o homem.
— Não entendo.
— Porque ainda com o bom senso há
ardendo na alma do homem uma flama insaciável, que torna impossível a
felicidade perfeita.
— Que flama é essa?
— A do desejo- de desejo que tem
mil sobrenomes- amor, glória, ambição, ouro, honras, luxo, gula, vingança .. e
muito mais que eu não acabaria de dizer nem em duas horas.
— Ao menos porém a visão do bom
senso não me tornará nem cético, nem ludibrio do mundo e dos homens.
— E não sofrerás menos por isso
— Como?
— Pela visão do bom senso
reconhecerás, onde está o bem e o mal, e mil vezes não poderás aproveitar o bem,
e livrar-te do mal.
— Mas é incompreensível!
— A pesar teu serás arrastado para
longe do bem e para os precipícios do mal…
— Resistirei.
— Serás o censor de muitos e o
reprovado de quase todos…
— Que importa?
— Os homens te condenarão
contraditoriamente, como republicano e áulico, excêntrico e tolo, ateu e
fanático, imoral e hipócrita, presumido e estúpido, santilão e demônio.
— Rir-me-ei deles.
— Terás pois a luneta; mas será a
última
— Conservá-la-ei sempre.
— Quebrá-la-ás.
— Conterá ela também a visão do
futuro?
— Como, se e a do bom senso?-
Criança, a visão do futuro não pode ser mais do que uma combinação de
probabilidades feitas à luz do passado.
— Então juro que conservarei a
luneta do bom senso por toda a minha vida.
— Fá-la-ás em pedaços e intencionalmente.
— Por quê?
— Porque é melhor não ver.
— Oh! não…
— Vou dar-te a luneta.
IV
………………………………………………………………
V
Não posso dizer o que se passou
durante meia hora ou mais; porque eu nada vi, nada podia ver, pobre míope quase
cego que eu era.
O armênio procedera a uma operação
mágica não sei como, nem em que altar de cabala improvisado à luz do sol e no
alto do Corcovado.
Ouvi piar de aves, silvos de
serpentes, conjurações do armênio que me pareciam sair ou do seio da terra, ou
de profunda gruta, senti frio de gelo e calor de fogo ardente; em seguida
reinou silêncio, e em breve o mágico lançou-me ao pescoço um trancelim que
suponho ser de arame que enlaça a luneta pelo competente anel, onde, como vim a
saber depois, estava gravado em letras microscópicas o nome- raro.
— Fixa a luneta! gritou-me com sua
voz ronca o armênio.
Obedeci, e fixando a luneta mágica,
vi diante de mim o mágico melancólico e carrancudo, e o meu amigo Reis
agradável e risonho.
O armênio voltou-nos imediatamente
as costas, e desapareceu logo, descendo apressado a montanha.
O Reis abraçou-me: e disse:
— Aquele homem é irresistível;
adivinhou o ato de loucura que o senhor ia praticar, e prometeu-me salvá-lo sob
duas condições, de que não quis prescindir: a primeira foi que eu conviesse em
ser-lhe dada uma terceira 6 última luneta mágica, que teria a visão do bom
senso; a segunda que eu consentiria em expor à venda no meu armazém lunetas
mágicas com a visão do bom senso.
— E o meu amigo…
— Poderia eu hesitar, quando se
tratava de impedir o seu suicídio? .. Comprometi-me a tudo; mas consegui do
armênio três concessões.
— Quais?
— Que ele faria suas operações mágicas fora da minha casa; que
ficaria em sigilo o que o senhor porventura observasse por meio da visão do bom
senso; e que exclusivamente aos meus fregueses e amigos de intima confiança eu
pessoalmente e só eu cederia, vendidas ou doadas, as lunetas mágicas do bom
senso, ficando ainda a meu arbítrio a exigência de segredo, até que provas
irrecusáveis do forçado encantamento experimentado por diversas pessoas,
excluíssem qualquer suposição de credulidade pueril.
— Portanto o armênio começa enfim a convencê-lo.
— Ainda não; mas é um homem extraordinário. Quer ver? Acertou pelo
seu o meu relógio; marcou precisamente a hora em que eu devia chegar ao alto do
Corcovado, e encontrá-lo, lançando-lhe ao pescoço a sua nova luneta, e eu
cheguei aqui exatamente à hora precisa, e no momento em que o armênio alargava
com as mãos o cordão da luneta acima da sua cabeça e o fazia logo descer ao seu
pescoço!…
— E se soubesse ..
— Perdão; saberei tudo depois. Agora urge satisfazer a dois
empenhos, um meu, e outro nosso.
— O seu antes do nosso: qual é? ..
— Promete-me o sigilo, a que o armênio não se opõe?
— Pela minha gratidão e amizade juro guardá-lo.
— Obrigado! disse o Reis apertando-me britanicamente a mão
— E o nosso empenho?…
— Não o adivinha?… são onze horas da manhã e ainda não
almoçamos… eu apenas tomei café às três horas da madrugada.
— E eu não ceei ontem, e estou morrendo de fome… desçamos para a
cidade.
— E lá almoçaremos, jantando.
Pusemo-nos alegremente a caminho.
Apesar da fome devoradora que sentia, reconheci que é menos
fatigante e desagradável descer do que subir às montanhas, exceto, exceto
sempre, mas exceto somente, quando se trata das alturas do governo.
VI
E já lá vai um mês… um mês inteiro de visão do bom senso.
Sinto desejo veemente de referir o que tenho observado; mas estou
preso pelo dever de gratidão e pela religião do juramento, que me impõe
silêncio.
Quantas lunetas do bom senso terá o armênio preparado magicamente
para o armazém do Reis? E este a quantos amigos as terá confiado?…
Não posso compreender estas cerimônias e escrúpulos do meu amigo
Reis
Tais escrúpulos são até antipatrióticos.
Se o Reis quer teimar no seu prejudicialíssimo sigilo, deve ao
menos, e embora muito em segredo, oferecer sete lunetas mágicas com a visão do
bom senso para uso dos membros do ministério e do governo do Brasil.
Não posso falar, não posso escrever, não posso dizer o que a visão
do bom senso me está ensinando há um mês.
Quando o meu amigo Reis me desligar do juramento que fiz,
escreverei o livro da- visão do Bom Senso.
Mas até lá… segredo.
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