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A ILUSTRE CASA DE RAMIRES

Eça de Queirós

© Copyright 2017, VirtualBooks Editora e Livraria Ltda. 1ª edição:
Editora Livraria Chardron, Porto,
Portugal, em 1900. Capa: O Fado, 1910, pintura de José Malhoa José Maria de Eça
de Queirós (Póvoa de Varzim, 25 de novembro de 1845 — Paris, 16 de agosto de
1900) A ILUSTRE CASA DE RAMIRES, Eça de Queirós. Pará de Minas, MG, Brasil: VirtualBooks
Editora,  2017.  ISBN: 9781521887332 CDD- 869  Literatura portuguesa. Romance.

 

 

Capítulo I

 

Desde as
quatro horas da tarde, no calor e silêncio do domingo de junho, o Fidalgo da
Torre, em chinelos, com uma quinzena de linho envergada sobre a camisa de chita
cor-de-rosa, trabalhava. Gonçalo Mendes Ramires (que naquela sua velha aldeia
de Santa Ireneia, e na vila vizinha, a asseada e vistosa Vila Clara, e mesmo na
cidade, em Oliveira, todos conheciam pelo «Fidalgo da Torre»), trabalhava numa
Novela Histórica, A Torre de D. Ramires, destinada ao primeiro número dos ANAIS
DELITERATURA E DE HISTÓRIA, revista nova, fundada por José Lúcio Castanheiro,
seu antigo camarada de Coimbra, nos tempos do Cenáculo Patriótico, em casa das
Severinas.A livraria, clara e larga, escaiolada de azul, com pesadas estantes
de pau -preto onde repousavam, no pó e na gravidade das lombadas de carneira,
grossos fólios de convento e de foro, respirava para o pomar por duas janelas,
uma de peitoril e poiais de pedra almofadados de veludo, outra mais rasgada, de
varanda, frescamente perfumada pela madressilva, que se enroscava nas grades.
Diante dessa varanda, na claridade forte, pousava a mesa — mesa imensa de pés
torneados, coberta com uma colcha desbotada de damasco vermelho, e atravancada
nessa tarde pelos rijos volumes da História Genealógica, todo o Vocabulário de
Bluteau, tomos soltos do Panorama, e ao canto, em pilha, as obras de Walter
Scott, sustentando um copo cheio de cravos amarelos. E dai, da sua cadeira de
couro, Gonçalo Mendes Ramires, pensativo diante das tiras de papel almaço,
roçando pela testa a rama da pena de pato, avistava sempre a inspiradora da sua
Novela — a Torre, a antiquíssima Torre, quadrada e negra sobre os limoeiros do
pomar que em redor crescera, com uma pouca de hera no cunhal rachado, as fundas
frestas gradeadas de ferro, as ameias e a miradoura bem cortadas no azul de
junho, robusta sobrevivência do Paço acastelado, da falada Honra de Santa
Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde os meados do século X.

Gonçalo
Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o morgado de
Cidadelhe), era certamente o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal. Raras
famílias, mesmo coevas, poderiam traçar a sua ascendência, por linha varonil e
sempre pura, até aos vagos Senhores que entre Douro e Minho mantinham castelo e
terra murada, quando os barões francos desceram, com pendão e caldeira, na
hoste do Borguinhão. E os Ramires entroncavam limpidamente a sua casa, por
linha pura e sempre varonil, no filho do Conde Nuno Mendes, aquele agigantado
Ordonho Mendes, senhor de Treixedo e de Santa Ireneia, que casou em 967 com
Dona Elduara, Condessa de Carrion, filha de Bermudo o Gotoso, Rei de Leão.Mais
antigo na Espanha que o Condado Portucalense, rijamente, como ele, crescera e
se afamara o Solar de Santa Ireneia resistente como ele às fortunas e aos
tempos. E depois, em cada lance forte da História de Portugal, sempre um Mendes
Ramires avultou grandiosamente pelo heroísmo, pela lealdade, pelos nobres
espíritos.

Um dos
mais esforçados da linhagem, Lourenço, por alcunha o Cortador, colaço de Afonso
Henriques (com quem na mesma noite, para receber a pranchada de cavaleiro,
velara as armas na Sé de Zamora), aparece logo na batalha de Ourique, onde
também avista Jesus Cristo sobre finas nuvens de ouro, pregado numa cruz de dez
côvados. No cerco de Tavira, Martim Ramires, freire de Santiago, arromba a
golpes de acha um postigo da Couraça, rompe por entre as cimitarras que lhe
decepam as duas mãos, e surde na quadrela da torre albarrã, com os dois pulsos
a esguichar sangue, bradando alegremente ao Mestre: — «D. Paio Peres, Tavira é
nossa! Real, Real por Portugal!» O velho Egas Ramires, fechado na sua Torre,
com a levadiça erguida, as barbacãs eriçadas de frecheiros, nega acolhida a El
-Rei D. Fernando e Leonor Teles que corriam o Norte em folgares e caçadas —
para que a presença da adúltera não macule a pureza estreme do seu solar! Em
Aljubarrota, Diogo Ramires o Trovador desbarata um troço de besteiros, mata o
adiantado-mor de Galiza, e por ele, não por outro, cai derribado o pendão real
de Castela, em que ao fim da lide seu irmão de armas, D. Antão de Almada, se
embrulhou para o levar, dançando e cantando, ao Mestre de Avis. Sob os muros de
Arzila combatem magnificamente dois Ramires, o idoso Soeiro e seu neto Fernão,
e diante do cadáver do velho, trespassado por quatro virotes, estirado no pátio
da Alcáçova ao lado do corpo do Conde de Marialva — Afonso V arma juntamente
cavaleiros o Príncipe seu filho e Fernão Ramires, murmurando entre lágrimas: «Deus
vos queira tão bons como esses que aí jazem!…» Mas eis que Portugal se faz
aos mares! E raras são então as armadas e os combates do Oriente em que se não
esforce um Ramires — ficando na lenda trágico -marítima aquele nobre capitão do
Golfo Pérsico, Baltasar Ramires, que, no naufrágio da Santa Bárbara, reveste a
sua pesada armadura, e no castelo de proa, hirto, se afunda em silêncio com a
nau que se afunda, encostado à sua grande espada. Em Alcácer Quibir, onde dois
Ramires sempre ao lado de El-Rei encontram morte soberba, o mais novo, Paulo
Ramires, pajem do Guião, nem leso nem ferido, mas não querendo mais vida pois
que El-Rei não vivia, colhe um ginete solto, apanha uma acha -de-armas, e
gritando: — «Vai -te, alma, que já tardas, servir a de teu senhor!» entra na
chusma mourisca e para sempre desaparece. Sob os Filipes, os Ramires, amuados,
bebem e caçam nas suas terras. Reaparecendo com os Braganças, um Ramires,
Vicente, Governador das Armas de Entre Douro e Minho por D. João IV, mete a
Castela, destroça os Espanhóis do Conde de Venavente, e toma Fuente Guinal, a
cujo furioso saque preside da varanda dum Convento de Franciscanos, em mangas
de camisa, comendo talhadas de melancia. já, porém, como a nação, degenera a
nobre raça… Álvaro Ramires, valido de D. Pedro II, brigão façanhudo, atordoa
Lisboa com arruaças, furta a mulher dum vedor da Fazenda que mandara matar a
pauladas por pretos, incendeia em Sevilha, depois de perder cem dobrões, uma
casa de tavolagem, e termina por comandar uma urca de piratas na frota de Murad
o Maltrapilho. No reinado do Sr. D. João V, Nuno Ramires brilha na Corte, ferra
as suas mulas de prata, e arruína a casa celebrando sumptuosas festas de
Igreja, em que canta no coro vestido com o hábito de Irmão Terceiro de S. Francisco.
Outro Ramires, Cristóvão, Presidente da Mesa de Consciência e Ordem, alcovita
os amores de El-Rei D. José I com a filha do prior de Sacavém. Pedro Ramires,
provedor e feitor-mor das Alfândegas, ganha fama em todo o Reino pela sua
obesidade, a sua chalaça, as suas proezas de glutão no Paço da Bemposta com o
arcebispo de Tessalónica. Inácio Ramires acompanha D. João VI ao Brasil como
reposteiro-mor, negoceia em negros, volta com um baú carregado de peças de ouro
que lhe rouba um administrador, antigo frade capuchinho, e morre no seu solar
da cornada de um boi. O avô de Gonçalo, Damião, doutor liberal dado às Musas,
desembarca com D. Pedro no Mindelo, compõe as empoladas proclamações do
Partido, funda um jornal, o Antifrade, e depois das Guerras Civis arrasta uma
existência reumática em Santa Ireneia, embrulhado no seu capotão de briche,
traduzindo para vernáculo, com um léxico e um pacote de simonte, as obras de
Valerius Flaccus. O pai de Gonçalo, ora Regenerador, ora Histórico, vivia em
Lisboa no Hotel Universal, gastando as solas pelas escadarias do Banco
Hipotecário e pelo lajedo da Arcada, até que um Ministro do Reino, cuja
concubina, corista de S. Carlos, ele fascinara, o nomeou (para o afastar da
Capital), Governador Civil de Oliveira. Gonçalo, esse, era bacharel formado com
um R no terceiro ano.

E nesse
ano justamente se estreou nas Letras Gonçalo Mendes Ramires. Um seu companheiro
de casa, José Lúcio Castanheiro, algarvio muito magro, muito macilento, de
enormes óculos azuis, a quem Simão Craveiro chamava o «Castanheiro
Patriotinheiro», fundara um semanário, a Pátria — «com o alevantado intento
(afirmavasonoramente o Prospecto) de despertar, não só na mocidade académica,
mas em todo o

País, do
cabo Sileiro ao cabo de Santa Maria, o amor tão arrefecido das belezas,
dasgrandezas e das glórias de Portugal!» Devorado por essa ideia, «a sua
Ideia», sentindo nela uma carreira, quase uma missão, Castanheiro
incessantemente, com ardor teimoso de apóstolo, clamava pelos botequins da
Sofia, pelos claustros da Universidade, pelosquartos dos amigos entre a fumaça
dos cigarros, -«a necessidade, caramba, de reatar a tradição! de desatulhar,
caramba, Portugal da aluvião do estrangeirismo!, — Como osemanário apareceu
regularmente durante três domingos, e publicou realmente estudos recheados de
grifos e citações sobre as Capelas da Batalha, a Tomada de Ormuz, a Embaixada
de Tristão da Cunha, começou logo a ser considerado uma aurora, aindapálida mas
segura, de Renascimento Nacional. E alguns bons espíritos da Academia, sobretudo
os companheiros de casa do Castanheiro, os três que se ocupavam das coisasdo
saber e da inteligência (porque dos três restantes um era homem de cacete e
forças, o outro guitarrista, e o outro «premiado»), passaram, aquecidos por
aquela chama patriótica, a esquadrinhar na biblioteca, nos grossos tomos nunca
dantes visitados deFernão Lopes, de Rui de Pina, de Azurara, proezas e lendas —
«só portuguesas, só nossas (como suplicava o Castanheiro), que refizessem à
nação abatida uma conscienciada sua heroicidade!» Assim crescia o Cenáculo
Patriótico da casa das Severinas. E foi então que Gonçalo Mendes Ramires, moço
muito afável, esbelto e louro, duma brancura sã de porcelana, com uns finos e
risonhos olhos que facilmente se enterneciam, sempreelegante e apurado na
batina e no verniz dos sapatos — apresentou ao Castanheiro, num domingo depois
do almoço, onze tiras de papel intituladas D. Guiomar. Nelas secontava a
velhíssima história da castelã, que, enquanto longe nas guerras do Ultramar o
castelão barbudo e cingido de ferro atira a acha -de-armas às portas de
Jerusalém, recebe ela na sua câmara, com os braços nus, por noite de Maio e de
Lua, o pajem de aneladoscabelos… Depois ruge o Inverno, o castelão volta,
mais barbudo, com um bordão de romeiro. Pelo vílico do castelo, homem
espreitador e de amargos sorrisos, conhece atraição, a mácula no seu nome tão
puro, honrado em todas as Espanhas! E ai do pajem! ai da dama! Logo os sinos
tangem a finados. Já no patim da Alcáçova, o verdugo, de capuz escarlate, espera,
encostado ao machado, entre dois cepos cobertos de panos dedó… E no final
choroso da D. Guiomar, como em todas essas histórias do Romanceiro de Amor,
também brotavam rente às duas sepulturas, escavadas no ermo, duas
roseirasbrancas a que o vento enlaçava os aromas e as rosas. De sorte que (como
notou José

Lúcio
Castanheiro, coçando pensativamente o queixo), não ressaltava nesta D. Guiomar
nada que fosse «só português, só nosso, abrolhando do solo e da raça!» Mas
essesamores lamentosos passavam num solar de Ribacoa: os nomes dos cavaleiros,
Remarigues, Ordonho, Froylas, Gutierres, tinham delicioso sabor godo: em cada
tiraressoavam brandamente os genuínos: «Bofé… Mentes pela gorja!… Pajem, o
meu morzelo!…»; e através de toda esta vernaculidade circulava uma suficiente
turba de cavalariços com saios alvadios, beguinos sumidos na sombra das
cogulas, ovençaissopesando fartas bolsas de couro, uchões espostejando nédios
lombos de cerdo… A novela, portanto, marcava um salutar retrocesso ao
sentimento nacional.- E depois (acrescentava o Castanheiro) este velhaco do
Gonçalinho surde com um estilo terso, másculo, de boa cor arcaica… De óptima
cor arcaica! Lembra até O Bobo, O Monge de Cister!… A Guiomar, realmente, é
uma castelã vaga, da Bretanha ouda Aquitânia. Mas no vílico, mesmo no castelão,
já transparecem portugueses, bons portugueses de fibra e de alma, de Entre
Douro e Cávado… Sim senhor! Quando oGonçalinho se enfronhar dentro do nosso
passado, das nossas crónicas, temos enfim nas letras um homem que sente bem o
torrão, sente bem a raça!

D.
Guiomar encheu três páginas da Pátria. Nesse domingo, para celebrar a
suaentrada na literatura, Gonçalo Mendes Ramires pagou aos camaradas do
Cenáculo e a outros amigos uma ceia onde foi aclamado, logo depois do frango
com ervilhas, quandoos moços do Camolino, esbaforidos, renovavam as garrafas de
Colares, como «o nosso Walter Scott!» Ele, de resto, anunciara já com
simplicidade um romance em dois volumes, fundado nos anais da sua Casa, num
rude feito de sublime orgulho deTructesindo Mendes Ramires, o amigo e alferes
-mor de D. Sancho I. Por temperamento, por aquele saber especial de trajes e
alfaias que revelara na D. Guiomar, até pelaantiguidade da sua linhagem,
Gonçalinho parecia gloriosamente votado a restaurar em Portugal o romance
histórico. Possula uma missão — e começou logo a passear pela Calçada,
pensativo, com o gorro sobre os olhos, como quem anda reconstruindo ummundo. No
acto desse ano levou o R.

Quando
regressou das férias para o Quarto Ano, já não refervia na Rua daMatemática o
cenáculo ardente dos patriotas. O Castanheiro, formado, vegetava em Vila Real
de Santo António: com ele desaparecera a Pátria: e os moços zelosos, que na
Biblioteca esquadrinhavam as Crónicas de Fernão Lopes e de Azurara,
desamparadospor aquele apóstolo que os levantava, recaíram nos romances de
Georges Ohnet e retomaram à noite o taco nos bilhares da Sofia. Gonçalo voltava
também mudado, deluto pelo pai que morrera em Agosto, com a barba crescida,
sempre afável e suave, porém mais grave, averso a ceias e a noites errantes.
Tomou um quarto no Hotel Mondego, onde o servia, de gravata branca, um velho
criado de Santa Ireneia, o Bento;- e os seus companheiros preferidos foram três
ou quatro rapazes que se preparavam para a Política, folheavam atentamente o
Diário das Câmaras, conheciam algunsenredos da Corte, proclamavam a necessidade
duma «orientação positiva» e dum «largo fomento rural», consideravam como
leviandade reles e jacobina a irreverência da Academia pelos Dogmas, e, mesmo
passeando ao luar no Choupal ou no Penedo daSaudade, discorriam com ardor sobre
os dois Chefes de Partido — o Brás Vitorino, o homem novo dos Regeneradores, e
o velho Barão de S. Fulgêncio, chefe clássico dosHistóricos. Inclinado para os
Regeneradores, porque a Regeneração lhe representava tradicionalmente ideias de
conservantismo, de elegância culta e de generosidade, Gonçalo frequentou então
o Centro Regenerador da Couraça, onde aconselhava à noite,tomando chá preto, «O
fortalecimento da autoridade da Coroa», e «uma forte expansão colonial!»
Depois, logo na Primavera, desmanchou alegremente esta gravidade política;e
ainda tresnoitou, na taberna do Camolino, em bacalhoadas festivas, entre o
estridor das guitarras. Mas não aludiu mais ao seu grande romance em dois
volumes; e ou recuara ou se esquecera da sua missão de Arte Histórica.
Realmente só na Páscoa doQuinto Ano retomou a pena — para lançar, na Gazeta do
Porto, contra uni seu patrício, o Dr. André Cavaleiro, que o Ministério do S.
Fulgêncio nomeara Governador Civil deOliveira, duas correspondências muito
acerbas, dum rancor intenso e pessoal (a ponto de chasquear «a feroz bigodeira
negra de S. Ex -a»). Assinara JUVENAL, Como outrora o pai, quando publicava
comunicados políticos de Oliveira nessa mesma Gazeta do Porto, jornal amigo,
onde um Vilar Mendes, seu remoto parente, redigia a Revista Estrangeira. Mas
lera aos amigos no Centro — «os dois botes decisivos que atirariam oSr.
Cavaleiro abaixo do seu Cavalo!» E um desses moços sérios, sobrinho do Bispo de

Oliveira,
não disfarçou o seu assombro:

— Oh
Gonçalo, eu sempre pensei que você e o Cavaleiro eram íntimos! Se bem melembro,
quando você chegou a Coimbra, para os Preparatórios, viveu na casa do
Cavaleiro, na Rua de S. João… Pois não há uma amizade tradicional, quase
histórica,entre Ramires e Cavaleiros?… Eu pouco conheço Oliveira, nunca andei
para os vossos sítios; mas até creio que Corinde, a quinta do Cavaleiro, pega
com Santa Ireneia!

E Gonçalo
enrugou a face, a sua risonha e lisa face, para declarar secamente queCorinde
não pegava com Santa Ireneia: que entre as duas terras corria muito
justificadamente a ribeira do Coice: e que o Sr. André Cavaleiro, e sobretudo
Cavalo,era um animal detestável que pastava na outra margem! — O sobrinho do
Bispo saudou e exclamou:

— Sim
senhor, boa piada!Um ano depois da formatura, Gonçalo foi a Lisboa por causa da
hipoteca da sua quinta de Praga, junto a Lamego, que certo foro anual de
dez-réis e meia galinha, devidoao abade de Praga, andava empecendo terrivelmente
nos Conselhos do Banco Hipotecário -, e também para conhecer mais estreitamente
o seu chefe, o Brás Vitorino, mostrar lealdade e submissão partidária, colher
algum fino conselho de conduta política.Ora uma noite, voltando de jantar em
casa da velha Marquesa de Louredo, a «tia

Louredo»,
que morava a Santa Clara, esbarrou no Rossio com José Lúcio Castanheiro,então
empregado no Ministério da Fazenda, na repartição dos Próprios Nacionais. Mais
defecado, mais macilento, com uns óculos mais largos e mais tenebrosos, o
Castanheiro ardia todo, como em Coimbra, na chama da sua Ideia — «a
ressurreição do sentimentoportuguês!» E agora, alargando a proporções condignas
da Capital o plano da Pátria, labutava devoradoramente na criação duma revista
quinzenal, de setenta páginas, comcapa azul, os ANAIS DE LITERATURA E DE
HISTÓRIA. Era uma noite de Maio, macia e quente. E, passeando ambos em torno
das fontes secas do Rossio, Castanheiro, que sobraçava um rolo de papel e um
gordo fólio encadernado em bezerro, depois derecordar as cavaqueiras geniais da
Rua da Misericórdia, de maldizer a falta de intelectualidade de Vila Real de
Santo António -voltou sofregamente à sua Ideia, esuplicou a Gonçalo Mendes
Ramires que lhe cedesse para os ANAIS esse romance que ele anunciara em
Coimbra, sobre o seu avoengo Tructesindo Ramires, alferes -mor de Sancho
I.Gonçalo, rindo, confessou que ainda não começara essa grande obra!

— Ah! —
murmurou o Castanheiro, estacando, com os negros óculos sobre ele,duros e
desconsolados. — Então você não persistiu?… Não permaneceu fiel à Ideia?…
Encolheu os ombros, resignadamente, já acostumado, através da sua missão, a
estes desfalecimentos do patriotismo. Nem consentiu que Gonçalo, humilhado
peranteaquela fé que se mantivera tão pura e servidora -aludisse, como
desculpa, ao inventário laborioso da Casa, depois da morte do papá…- Bem,
bem! Acabou! Procrastinare lusitanum est. Trabalha agora no Verão…Para
Portugueses, menino, o Verão é o tempo das belas fortunas e dos rijos feitos.
No

Verão nasce
Nuno Álvares no Bonjardim! No Verão se vence em Aljubarrota! NoVerão chega o
Gama à índia!… E no Verão vai o nosso Gonçalo escrever uma novelazinha
sublime!… De resto os ANAIS só aparecem em Dezembro,caracteristicamente no
Primeiro de Dezembro. E você em três meses ressuscita um mundo. Sério, Gonçalo
Mendes!… É um dever, um santo dever, sobretudo para os novos, colaborar nos
ANAIS. Portugal, menino, morre por falta de sentimento nacional!Nós estamos
imundamente morrendo do mal de não ser Portugueses!

Parou —
ondeou o braço magro, como a correia dum látego, num gesto queaçoitava o
Rossio, a Cidade, toda a Nação. Sabia o amigo Gonçalinho o segredo desta
borracheira sinistra? E que, dos Portugueses, os piores desprezavam a Pátria —
e os melhores ignoravam a Pátria. O remédio?… Revelar Portugal, vulgarizar
Portugal. Sim,amiguinho! Organizar, com estrondo, o reclamo de Portugal, de
modo que todos o conheçam — ao menos como se conhece o Xarope Peitoral de
James, hem? E que todoso adoptem — ao menos como se adoptou o sabão do Congo,
hem? E conhecido, adoptado, que todos o amem enfim, nos seus heróis, nos seus
feitos, mesmo nos seus defeitos, em todos os seus padrões, e até nas veras
pedrinhas das suas calçadas! Paraesse fim, o maior a empreender neste apagado
século da nossa História, fundava ele os

ANAIS.
Para berrar! Para atroar Portugal, aos bramidos sobre os telhados, com a
notíciainesperada da sua grandeza! E aos descendentes dos que outrora fizeram o
Reino incumbia, mais que aos outros, o cuidado piedoso de o refazer… Como?
Reatando a tradição, caramba!- Assim, vocês! Por essa história de Portugal
fora, vocês são uma enfiada de

Ramires
de toda a beleza. Mesmo o desembargador, o que comeu numa ceia de Nataldois
leitões!… É apenas uma barriga. Mas que barriga! Há nela uma pujança heróica
que prova raça, a raça mais forte do que promete a força humana, como diz
Camões. Dois leitões, caramba! Até enternece!… E os outros Ramires, o de
Silves, o de Aljubarrota, osde Arzila, os da índia! E os cinco valentes, de
quem você talvez nem saiba, que morreram no Salado! Pois bem, ressuscitar estes
varões, e mostrar neles a almafaçanhuda, o querer sublime que nada verga, é uma
soberba lição aos novos… Tonifica, caramba! Pela consciência que renova de
termos sido tão grandes, sacode este chocho consentimento nosso em
permanecermos pequenos! É o que eu chamo reatar atradição… E depois feito por
você próprio, Ramires, que chique! Caramba, que chique!

É um
fidalgo, o maior fidalgo de Portugal, que, para mostrar a heroicidade da
Pátria,abre simplesmente, sem sair do seu solar, os arquivos da sua Casa, velha
de mais de mil anos. É de rachar!… E você não precisa fazer um grosso
romance… Nem um romance muito desenvolvido está na índole militante da
revista. Basta um conto, de vinte outrinta páginas… Está claro, os ANAIS por
ora não podem pagar. Também, você não precisa! E que diabo! não se trata de
pecúnia, mas duma grande renovação social… Edepois, menino, a literatura leva
a tudo em Portugal. Eu sei que o Gonçalo em Coimbra, ultimamente, frequentava o
Centro Regenerador. Pois, amigo, de folhetim em folhetim, se chega a S. Bento!
A pena agora, como a espada outrora, edifica reinos… Pense vocênisto! E
adeus! que ainda hoje tenho de copiar, para letra cristã, este estudo do

Henriques
sobre Ceilão… Você não conhece o Henriques?… Não conhece. Ninguémconhece.
Pois quando na Europa, nessas grandes Academias da Europa, há uma dúvida sobre
a História ou a Literatura cingalesa, gritam para cá, para o Henriques!

Abalou,
agarrado ao seu rolo e ao seu tomo — e Gonçalo ainda o avistou, na portae
claridade da tabacaria Nunes, agitando o braço esguio de Apóstolo diante dum
sujeito obeso, de vasto colete branco, que recuava, com espanto, assim
perturbado no quietogozo do seu grosso charuto e da doce noite de Maio.

O Fidalgo
da Torre recolheu para o Bragança, impressionado, ruminando a ideia do
Patriota. Tudo nela o seduzia — e lhe convinha: a sua colaboração numa
revistaconsiderável, de setenta páginas, em companhia de escritores doutos,
lentes das Escolas, antigos ministros, até conselheiros de Estado; a
antiguidade da sua raça, mais antiga queo Reino, popularizada por uma história
de heróica beleza, em que, com tanto fulgor, ressaltavam a bravura e a soberba
de alma dos Ramires; e enfim a seriedade académica do seu espírito, o seu nobre
gosto pelas investigações eruditas, aparecendo no momentoem que tentava a
carreira do Parlamento e da Política!… E o trabalho, a composição moral dos
vetustos Ramires, a ressurreição arqueológica do viver Afonsino, as cem tirasde
almaço a atulhar de prosa forte — não o assustavam… Não! porque felizmente já
possuía a «sua obra» — e cortada em bom pano, alinhavada com linha hábil. Seu
tio Duarte, irmão de sua mãe (uma senhora de Guimarães, da casa das Balsas),
nos seusanos de ociosidade e imaginação, de 1845 a 1850, entre a sua carta de
Bacharel e o seu Alvará de Delegado, fora poeta -e publicara no ar o, semanário
de Guimarães, umpoemeto em verso solto, o Castelo de Santa Ireneia, que assinara
com duas iniciais D.B. Esse castelo era o seu, o Paço antiquíssimo, de que
restava a negra torre entre os limoeiros da horta. E o poemeto cantava, com
romântico garbo, um lance de altivezfeudal em que se sublimara Tructesindo
Ramires, alferes -mor de Sancho I, durante as contendas de Afonso II e das
senhoras Infantas. Esse volume do Bardo, encadernado emmarroquim, com o brasão
dos Ramires, o açor negro em campo escarlate, ficara no arquivo da Casa como um
trecho da crónica heróica dos Ramires. E muitas vezes em pequeno Gonçalo
recitara, ensinados pela mamã, os primeiros versos do poema, de tãoharmoniosa
melancolia:

Na
palidez da tarde, entre a folhagem Que o Outono amarelece…

Era com
esse sombrio feito do seu vago avoengo, que Gonçalo Mendes Ramires decidira em
Coimbra, quando os camaradas da Pátria e das ceias o aclamavam «o nossoWalter
Scott», compor um romance moderno, dum realismo épico, em dois robustos
volumes, formando um estudo ricamente colorido da Meia Idade Portuguesa… E
agora lhe servia, e com deliciosa facilidade, para essa novela curta e sóbria,
de trinta páginas,que convinha aos ANAIS.

No seu
quarto do Bragança abriu a varanda. E debruçado, acabando o charuto, nadormente
suavidade da noite de Maio, ante a majestade silenciosa do rio e da Lua,
pensava regaladamente que nem teria a canseira de esmiuçar as crónicas e os
fólios maçudos… Com efeito! toda a reconstrução histórica a realizara, e
solidamente, com umsaber destro, o tio Duarte. O Paço acastelado de Santa
Ireneia, com as fundas carcovas, a torre albarrã, a alcáçova, a masmorra, o
farol e o balsão; o velho Tructesindo, enorme,e os seus flocos de cabelos e
barbas ancestrais, derramados sobre a loriga de malha; os servos mouriscos, de
surrões de couro, cavando os regueiros da horta; os oblatos resmungando à
lareira as Vidas dos Santos: os pajens jogando no campo do tavolado -tudo
ressurgia, com verídico realce, no poemeto do tio Duarte! Ainda recordava mesmo
certos lances; o truão açoitado; o festim e os uchões que arrombavam as cubas decerveja;
a jornada de Violante Ramires para o Mosteiro de Lorvão…

Junto à
fonte mourisca, entre os ulmeiros, A cavalgada pára…

O enredo
todo com a sua paixão de grandeza bárbara, os recontros bravios em quese saciam
a punhal os rancores de raça, o heróico falar despedido de lábios de ferro — lá
estavam nos versos do titi, sonoros e bem balançados…

Monge,
escuta! O solar de D. Ramires Por si, e pedra a pedra se aluíra, Se jamais um
bastardo lhe pisasse, Com sapato aviltado, as lajes puras!

Na
realidade só lhe restava transpor as fórmulas fluidas do Romantismo de
1846,para a sua prosa tersa e máscula (como confessava o Castanheiro), de
óptima cor arcaica, lembrando o Bobo. E era um plágio? Não! A quem, com mais
seguro direito do que a ele, Ramires pertencia a memória dos Ramires
históricos? A ressurreição do velhoPortugal, tão bela no Castelo de Santa
Ireneia, não era obra individual do tio Duarte — mas dos Herculanos, dos
Rebelos, das Academias, da erudição esparsa. E, de resto,quem conhecia hoje
esse poemeto, e mesmo o Bardo, delgado semanário queperpassara, durante cinco
meses, há cinquenta anos, numa vila de província?… Não hesitou mais,
seduzido. E enquanto se despia, depois de beber aos goles um copo deágua com
bicarbonato de soda, já martelava a primeira linha do conto, à maneira
lapidária da Salambô: — «Era nos Paços de Santa Ireneia, por uma noite de
Inverno, nasala alta da alcáçova…».

Ao outro
dia, procurou José Lúcio Castanheiro na repartição dos Próprios Nacionais, à
pressa — porque, depois duma conferência no Banco Hipotecário, aindaprometera
acompanhar as primas Chelas a uma Exposição de Bordados na livraria

Gomes. E
anunciou ao Patriota que, positivamente, lhe assegurava para o primeironúmero
dos ANAIS a novela, a que já decidira o título — a Torre de D. Ramires.- Que
lhe parece?

Deslumbrado,
José Castanheiro atirou os magríssimos braços, resguardados pelasmangas de
alpaca, até à abóbada do esguio corredor em que o recebera: — Sublime!… A
Torre de D. Ramires !… O grande feito de Tructesindo MendesRamires, contado
por Gonçalo Mendes Ramires!… E tudo na mesma Torre! Na Torre o velho
Tructesindo pratica o feito; e setecentos anos depois, na mesma Torre, o nosso
Gonçalo conta o feito! Caramba, menino, carambíssima! isso é que é reatar a tradição!Duas
semanas depois, de volta a Santa Ireneia, Gonçalo mandou um criado da quinta,
com uma carroça, a Oliveira, a casa de seu cunhado José Barrolo, casado
comGracinda Ramires, para lhe trazer da rica livraria clássica que o Barrolo
herdara do tio Deão da Sé, todos os volumes da História Genealógica — «e»
(acrescentava numa carta) «todos os cartapácios que por lá encontrares com o
título de Crónicas do Rei Fulano…»Depois, do pó das suas estantes,
desenterrou as obras de Walter Scott, volumes desirmanados do Panorama, a
História de Herculano, O Bobo, O Monge de Cister. Eassim abastecido, com uma
farta resma de tiras de almaço sobre a banca, começou a repassar o poemeto do
tio Duarte, incli nado ainda a transpor para a aspereza duma manhã de Dezembro,
como mais congénere com a rudeza feudal dos seus avós, aquelaluzida cavalgada
de donas, monges e homens de armas que o tio Duarte estendera através duma
suave melancolia outonal, pelas veigas do Mondego…

Na
palidez da tarde, entre a folhagem Que o Outono amarelece…

Mas, como
era então junho e a Lua crescia, Gonçalo determinou por fimaproveitar as
sensações de calor, luar e arvoredos, que lhe fornecia a aldeia — para
levantar, logo à entrada da sua novela, o negro e imenso Paço de Santa Ireneia,
no silêncio duma noite de Agosto, sob o resplendor da lua cheia.E já enchera
desembaraçadamente, ajudado pelo Bardo, duas tiras, quando uma desavença com o
seu caseiro, o Manuel Relho, que amanhava a quinta por oitocentosmil-réis de
renda, veio perturbar, na fresca e noviça inspiração do seu trabalho, o

Fidalgo
da Torre. Desde o Natal o Relho, que durante anos de compostura e ordem se
emborrachava sempre aos domingos com alegria e com pachorra, começara a
tomar,três e quatro vezes por semana, bebedeiras desabridas, escandalosas, em
que espancava a mulher, atroava a quinta de berros, e saltava para a estrada,
esguedelhado, de varapau,desafiando a quieta aldeia. Por fim, uma noite em que
Gonçalo, à banca, depois do chá, laboriosamente escavava os fossos do Paço de
Santa Ireneia — de repente a Rosa cozinheira rompeu a gritar: «Aqui d’El-Rei
contra o Relho!» E, através dos seus bradose dos latidos dos cães, uma pedra,
depois outra, bateram na varanda venerável da livraria! Enfiado, Gonçalo Mendes
Ramires pensou no revólver… Mas justamente nessatarde o criado, o Bento,
descera aquela sua velha e única arma à cozinha para a desenferrujar e arear!
Então, atarantado, correu ao quarto, que fechou à chave, empurrando contra à
porta a cómoda com tão desesperada ansiedade, que frascos decristal, um cofre
de tartaruga, até um crucifixo, tombaram e se partiram. Depois gritos e latidos
findaram no pátio — mas Gonçalo não se arredou nessa noite daquele refúgiobem
defendido, fumando cigarros, ruminando um furor sentimental contra o Relho, a
quem tanto perdoara, sempre tão afavelmente tratara, e que apedrejava as
vidraças da Torre! Cedo, de manhã, convocou o Regedor; a Rosa, ainda trémula,
mostrou no braçoas marcas roxas dos dedos do Relho; e o homem, cujo
arrendamento findava em

Outubro,
foi despedido da quinta com a mulher, a arca e o catre. Imediatamenteapareceu
um lavrador dos Bravais, o José Casco, respeitado em toda a freguesia pela sua
seriedade e força espantosa, propondo ao fidalgo arrendar a Torre. Gonçalo
Mendes Ramires, porém, já desdea morte do pai, decidira elevar a renda a
novecentos e cinquenta mil -réis; — e o Casco desceu as escadas, de cabeça
descaída. Voltou logo ao outro dia, repercorreumiudamente toda a quinta,
esfarelou a terra entre os dedos, esquadrinhou o curral e a adega, contou as
oliveiras e as cepas; e num esforço, em que lhe arfaram todas as costelas,
ofereceu novecentos e dez mil -réis! Gonçalo não cedia, certo da sua equidade.O
José Casco voltou ainda com a mulher; depois, num domingo, com a mulher e um
compadre — e era um coçar lento do queixo rapado, umas voltas desconfiadas em
tornoda eira e da horta, umas demoras sumidas dentro da tulha, que tornavam
aquela manhã de junho intoleravelmente longa ao Fidalgo, sentado num banco de
pedra do jardim, debaixo duma mimosa, com a Gazeta do Porto. Quando o Casco,
pálido, lhe veiooferecer novecentos e trinta mil -réis — Gonçalo Mendes Ramires
arremessou o jornal, declarou que ia ele, por sua conta, amanhar a propriedade,
mostrar o que era um terrãorico, tratado pelo saber moderno, com fosfatos, com
máquinas! O homem de Bravais, então, arrancou um fundo suspiro, aceitou os
novecentos e cinquenta mil -réis. À maneira antiga o Fidalgo apertou a mão ao
lavrador — que entrou na cozinha a enxugarum largo copo de vinho, esponjando na
testa, nas cordoveias rijas do pescoço, o suor ansiado que o alagava.Mas, como
entulhada por estes cuidados, a veia abundante de Gonçalo estancou — não foi
mais que um fio arrastado e turvo. Quando nessa tarde se acomodou à banca, para
contar a sala de armas do Paço de Santa Ireneia por uma noite de Lua —
sóconseguiu converter servilmente numa prosa aguada os versos lisos do tio
Duarte, sem relevo que os modernizasse, desse majestade senhorial ou beleza
saudosa àquelesmaciços muros onde o luar, deslizando através das rechãs,
salpicava centelhas pelas pontas das lanças altas, e pela cimeira dos
morriões… E desde as quatro horas, no calor e silêncio de domingo de junho,
labutava, empurrando a pena como lento arado em chãopedregoso, riscando logo
rancorosamente a linha que sentia deselegante e mole, ora num rebuliço, a
sacudir e reenfiar sob a mesa os chinelos de marroquim, ora imóvel eabandonado
à esterilidade que o travava, com os olhos esquecidos na Torre, na sua
dificílima Torre, negra entre os limoeiros e o azul, toda envolta no piar e
esvoaçar das andorinhas.Por fim, descoroçoado, arrojou a pena que tão
desastrosamente emperrara. E fechando na gaveta, com uma pancada, o volume
precioso do Bardo:- Irra! Estou perfeitamente entupido! É este calor! E depois
aquele animal do Casco, toda a manhã!…

Ainda
releu, coçando sombriamente a nuca, a derradeira linha rabiscada e suja:-
«…Na sala altaneira e larga, onde os largos e pálidos raios da Lua…» Larga,
largos!… E os pálidos raios, os eternos pálidos raios!… Também este maldito
castelo,tão complicado!… E este D. Tructesindo, que eu não apanho, tão
antigo! Enfim, um horror!

Atirou,
num repelão, a cadeira de couro; cravou, com furor, um charuto nosdentes; — e
abalou da livraria, batendo desesperadamente a porta, num tédio imenso da sua
obra, daqueles confusos e enredados Paços de Santa Ireneia, e dos seus
avós,enormes, ressoantes, chapeados de ferro, e mais vagos que fumos.

 

Capítulo II

 

Bocejando,
apertando os cordões das largas pantalonas de seda que lheescorregavam da
cinta, Gonçalo, que durante todo o dia preguiçara, estirado no divã de damasco
azul, com uma vaga dor nos rins, atravessou languidamente o quarto
paraespreitar, no corredor, o antigo relógio de charão. Cinco horas e meia!…
Para desanuviar, pensou numa caminhada pela fresca estrada dos Bravais. Depois
numavisita (devida já desde a Páscoa!) ao velho Sanches Lucena, eleito
novamente deputado, nas eleições gerais de Abril, pelo circulo de Vila Clara.
Mas a jornada à Feitosa, à quinta do Sanches Lucena, demandava uma hora a
cavalo, desagradável com aquelateimosa dor nos rins que o filara na véspera à
noite, depois do chá, na Assembleia da vila. E, indeciso, arrastava os passos
no corredor, para gritar ao Bento ou à Rosa que lhesubissem uma limonada,
quando, através das varandas abertas, ressoou um vozeirão de grosso metal, que
gracejando mais se engrossava, rolava pelo pátio, numa cadência cava de malho
malhando:- Oh só Gonçalo! Oh sô Gonçalão! Oh sô Gonçalíssimo Mendes Ramires!

Reconheceu
logo o Titó, o António Vilalobos, seu vago parente, e seucompanheiro de Vila
Clara, onde aquele homenzarrão excelente, de velha raça alentejana, se
estabelecera sem motivo, só por afeição bucólica à vila. E havia onze anos que
a atulhava com os seus possantes membros, o lento ribombo do seu vozeirão, e
asua ociosidade espalhada pelos bancos, pelas esquinas, pelas ombreiras das
lojas, pelos balcões das tabernas, pelas sacristias a caturrar com os padres,
até pelo cemitério afilosofar com o coveiro. Era um irmão do velho morgado de
Cidadelhe (o genealogista), que lhe estabelecera uma mesada de oito moedas para
o conservar longe de Cidadelhe — e do seu sujo serralho de moças do campo, e da
obra tenebrosa a que, agora, se atrelara,a Verídica Inquirição, uma inquirição
sobre as bastardias, crimes e títulos ilegítimos das famílias fidalgas de
Portugal. E Gonçalo, desde estudante, amara sempre aqueleHércules bonacheirão,
que o seduzia pela prodigiosa força, a incomparável potência em beber todo um
pipo e em comer todo um anho, e sobretudo pela independência, uma suprema
independência, que, apoiada ao bengalão terrífico e com as suas oito
moedasdentro da algibeira, nada temia e nada desejava nem da Terra nem do Céu.
— Logo debruçado na varanda, gritou:- Oh Titó, sobe!… Sobe enquanto eu me
visto. Tomas um cálice de genebra… Vamos depois passear até aos Bravais…

Sentado
no rebordo do tanque redondo e sem água que ornava o pátio, erguendopara o
casarão a sua franca e larga face requeimada, cheia de barba ruiva, o Titá
movia lentamente, como um leque, um velho chapéu de palha:- Não posso… Ouve
lá! Tu queres hoje à noite cear no Gago, comigo e com o João Gouveia? Vai
também o Videirinha e o violão. Temos uma tainha assada, uma famosa. E enorme,
que eu comprei esta manhã a uma mulher da Costa por cinco tostões.Assada pelo
Gago!… Entendido, hem? O Gago abre pipa nova de vinho, do abade de

Chandim.
Eu conheço o vinho. E daqui, da ponta fina.E Titó, com dois dedos,
delicadamente, sacudiu a ponta mole da orelha. Mas Gonçalo, repuxando as
pantalonas, hesitava:

— Homem,
eu ando com o estômago arrasado… E desde ontem à noite uma dornos rins, ou no
fígado, ou no baço, não sei bem, numa dessas entranhas!… Até hoje, para o
jantar, só caldo de galinha e galinha cozida… Enfim! vá! Mas, à
cautela,recomenda ao Gago que me prepare para mim um franguinho assado… Onde
nos encontramos? Na Assembleia?

O Titó
despegara logo do tanque, pousando na nuca o chapéu de palha:- Hoje não me
gasto pela Assembleia. Tenho senhora. Das dez para as dez e meia, no
Chafariz… Vai também o Videirinha com a viola. Viva!… Das dez para as dez
emeia! Entendido… E franguinho assado para S. Ex-a, que se queixa do rim!

E
atravessou o pátio, com lentidão bovina, parando a colher numa roseira, junto
ao portão, uma rosa com que floriu a quinzena de veludilho cor de
azeitona.Imediatamente Gonçalo decidira não jantar, certo dos benefícios
daquele jejum até às dez horas, depois de um passeio pelos Bravais e pelo vale
da Riosa. E, antes de entrarno quarto para se vestir, empurrou a porta
envidraçada sobre a escura escada da cozinha, gritou pela Rosa cozinheira. Mas
nem a boa velha, nem o Bento por quem também berrou furiosamente, responderam,
no pesado silêncio em que jaziam, comoabandonados, esses sombrios fundos de
grande laje e de grande abóbada que restavam do antigo palácio, restaurado por
Vicente Ramires depois da sua campanha em Castela,incendiado no tempo de El-Rei
D. José I. Então Gonçalo desceu dois degraus da gasta escadaria de pedra e atirou
outro dos longos brados com que atroava a Torre -desde que as campainhas
andavam desmanchadas. E descia ainda para invadir a cozinha, quando aRosa
acudiu. Saíra para o pátio da horta com a filha da Crispola! não sentira o Sr.

Doutor!…-
Pois estou a berrar há uma hora! E nem você nem Bento!… É porque não janto.
Vou cear a Vila Clara com os amigos.

A Rosa,
do sonoro fundo do corredor, protestou, desolada. Pois o Sr. Doutorficava assim
em jejum até horas da noite? — Filha dum antigo hortelão da Torre, crescida na
Torre, já cozinheira da Torre quando Gonçalo nascera, sempre o tratara
por«menino», e mesmo por «seu riquinho», até que ele partiu para Coimbra e
começou a ser, para ela e para o Bento, o «Sr. Doutor». — E o Sr. Doutor, ao
menos, devia tomar o caldinho de galinha, que apurara desde o meio -dia,
cheirava que nem feito no Céu!Gonçalo, que nunca discordava da Rosa ou do
Bento, consentiu — e já subia, quando reclamou ainda a Rosa para se informar da
Crispola, uma desgraçada viúva que,com um rancho faminto de crianças, adoecera
pela Páscoa de febres perniciosas.

— A
Crispola vai melhor, Sr. Doutor. já se levanta. Diz a pequena que já se
levanta… Mas muito derreadinha…Gonçalo desceu logo outro degrau, debruçado
na escada, para mergulhar mais confidencialmente naquelas tristezas:- Olhe, oh
Rosa, então se a pequena ai está, coitada, que leve para casa à mãe a galinha
que eu tinha para jantar. E o caldo… Que leve a panela! Eu tomo uma chávena
de chá com biscoitos. E olhe! Mande também dez tostões à Crispola… Mande
doismil-réis. Escute! Mas não lhe mande a galinha e o dinheiro assim
secamente… Diga que estimo as melhoras, e que lá passarei por casa para
saber. E esse animal do Bento queme suba água quente!

No
quarto, em mangas de camisa, diante do espelho, um imenso espelho rolando entre
colunas douradas, estudou a língua que lhe parecia saburrosa, depois o branco
dosolhos, receando a amarelidão de bílis solta. E terminou por se contemplar na
sua feição nova, agora que rapara a barba em Lisboa, conservando o bigodinho
castanho frisado eleve, e uma mosca um pouco longa, que lhe alongava mais a
face aquilina e fina, sempre duma brancura de nata. O seu desconsolo era o
cabelo, bem ondeado, mas ténue e fraco, e, apesar de todas as águas e pomadas,
necessitando já risca mais elevada, quaseao meio da testa clara.

— É
infernal! Aos trinta anos estou calvo…E todavia não se despegava do espelho,
numa contemplação agradada, recordando mesmo a recomendação da tia Louredo, em
Lisboa: — Oh sobrinho! o menino, assim galante e esperto, não se enterre na
província! Lisboa está sem rapazes. Precisamos cáum bom Ramires!» — Não! não se
enterraria na província, imóvel sob a hera e a poeira melancólica das coisas
imóveis, como a sua Torre!… Mas vida elegante em Lisboa,entre a sua parentela
histórica, como a aguentaria com o conto e oitocentos mil -réis de renda que
lhe restava, pagas as dívidas do papá? E depois realmente vida em Lisboa só a
desejava com uma posição política — cadeira em S. Bento, influência intelectual
no seuPartido, lentas e seguras avançadas para o Poder. E essa, tão docemente
sonhada em

Coimbra,
nas fáceis cavaqueiras do Hotel Mondego — muito remota a entrevia!
Quaseinconquistável, para além de um muro alto e áspero, sem porta e sem
fenda!… Deputado -como? Agora, com o horrendo S. Fulgêncio e os Históricos no
Ministério durante três gordos anos, não voltariam Eleições Gerais. E mesmo
nalguma Eleição Suplementarque possibilidade lograria ele, que, desde Coimbra,
bem levianamente, arrastado por uma elegância de tradições, se manifestara
sempre Regenerador, no «Centro» daCouraça, nas correspondências para a Gazeta
do Porto, nas verrinas ardentes contra ochefe do Distrito, o Cavaleiro
detestável?… Agora só lhe restava esperar. Esperar, trabalhando; ganhando em
consistência social; edificando com sagacidade, sobre a basedo seu imenso nome
histórico, uma pequenina nomeada política; tecendo e estendendo a malha
preciosa das amizades partidárias, desde Santa Ireneia até ao Terreiro do
Paço…Sim! eis a teoria esplêndida: — mas consistência, nomeada, afeições
políticas, como se conquistam? «Advogue, escreva nos Jornais!» fora o conselho
distraído e risonho do seu chefe, o Brás Vitorino. Advogar em Oliveira, mesmo
em Lisboa? Não podia, comaquele seu horror ingénito, quase fisiológico, a autos
e papelada forense. Fundar um jornal em Lisboa como o Ernesto Rangel, seu
companheiro de Coimbra no HotelMondego? Era façanha fácil para o neto adorado
da Srª D. Joaquina Rangel, que armazenava dez mil pipas de vinho nos barracões
de Gaia. Batalhar num jornal de Lisboa? Nessas semanas de Capital, sempre pelo
Banco Hipotecário, sempre com as«primas», nem formara relações duráveis e úteis
nos dois grandes Diários

Regeneradores,
a Manhã e a Verdade… De sorte que, realmente, nesse muro que oseparava da
fortuna só descobria um buraquinho, bem apertado m as serviçal — os ANAIS DE
LITERATURA E DE HISTÓRIA, com a sua colaboração de Professores, de Políticos,
até dum Ministro, até de um Almirante, o Guerreiro Araújo, esse tonantemaçador.
Aparecia pois nos ANAIS com a sua Torre, revelando imaginação e um saber rico.
Depois, trepando da Invenção para o terreno mais respeitável da Erudição,
dariaum estudo (que até lhe lembrara no comboio, ao voltar de Lisboa!) sobre as
«Origens

Visigóticas
do Direito Público em Portugal…». Oh, nada conhecia, é certo, dessas Origens,
desses Visigodos. Mas, com a bela História da Administração Pública em Portugal
que lhe emprestara o Castanheiro, comporia corrediamente um resumo elegante…
Depois, saltando da Erudição às Ciências Sociais e Pedagógicas — por quenão
amassaria uma boa «Reforma do Ensino jurídico em Portugal» em dois artigos
maçudos, de Homem de Estado?… Assim avançava, bem chegado aos Regeneradores,
construindo e cinzelando o seu pedes tal literário, até que os Regeneradores
voltassemao Ministério, e no muro se escancarasse a desejada porta triunfal. —
E no meio do quarto, em ceroulas, com as mãos nas ilhargas, Gonçalo Mendes
Ramires concluiu pelanecessidade de apressar a sua novela.

— Mas,
quando acabarei eu essa Torre? assim emperrado, sem veia, com o fígado
combalido?…O Bento, velho de face rapada e morena, com um lindo cabelo branco
todo encarapinhado, muito limpo, muito fresco na sua jaqueta de ganga,
entraravagarosamente, segurando a infusa de água quente.

— Oh
Bento, ouve lá! Tu não encontraste na mala que eu trouxe de Lisboa, ou
nocaixote, um frasco de vidro com um pó branco? É um remédio inglês que me deu
o Sr. Dr. Matos… Tem um rótulo em inglês, com um nome inglês, não sei quê,
fruit salt …Quer dizer sal de frutas…

O Bento
cravou no soalho os olhos, que depois cerrou, meditando. Sim, no quarto de
lavar, em cima do baú vermelho, ficara um frasco com pó, embrulhado
numpergaminho antigo como os do Arquivo.

— É esse!
— declarou Gonçalo. — Eu precisava em Lisboa uns documentos porcausa daquele
malvado foro de Praga. E por engano, na balbúrdia, levo do Arquivo um
pergaminho perfeitamente inútil! Vai buscar o rolo… Mas tem cuidado com o
frasco!

O Bento,
cuidadoso, sempre lento, ainda enfiou os botões de ágata nos punhos dacamisa do
Sr. Doutor, e desdobrou sobre a cama, para ele vestir, a quinzena, as calças
bem vincadas, de cheviote leve. E Gonçalo, retomado pela ideia de artigos para
osANAIS, folheava, rente à janela, a História da Administração Pública em
Portugal,quando Bento voltou com um rolo de pergaminho, de onde pendia, por
fitas roídas, um selo de chumbo.- Esse mesmo! — exclamou o Fidalgo atirando o
volume para o poial da janela. — É esse mesmo que eu enrolei no pergaminho para
se não quebrar. Desembrulha, deixaem cima da cómoda… o Sr. Dr. Matos
aconselhou que o tomasse com água tépida, em jejum. Parece que ferve. E limpa o
sangue, desanuvia a cabeça… Pois eu muito necessitado ando de desanuviar a
cabeça!… Toma tu também, Bento. E diz à Rosa quetome. Todos tomam agora, até
o Papa!

Com
cuidado, o Bento desenrolara o frasco, estendendo sobre o mármore dacómoda o
pergaminho duro, onde a letra do século XVI se encarquilhava amarela e morta. E
Gonçalo, abotoando o colarinho:

— Ora ai
está o que eu levo preciosamente, para deslindar o foro de Praga! Umpergaminho
do tempo de D. Sebastião… E só percebo mesmo a data, mil quatrocentos…

Não, mil
quinhentos e setenta e sete. Nas vésperas da jornada de África… Enfim! serviupara
embrulhar o frasco.

O Bento,
que escolhera no gavetão um colete branco, relanceou de lado o pergaminho
venerável:- Naturalmente foi carta que El-Rei D. Sebastião escreveu a algum
avozinho do

Sr.
Doutor…- Naturalmente — murmurava o Fidalgo, diante do espelho. — E para lhe
dar alguma coisa boa, alguma coisa gorda… Antigamente ter rei era ter renda.
Agora… Não apertes tanto essa fivela, homem! Trago há dias o estômago
inchado… Agora, comefeito, esta instituição de Rei anda muito safada, Bento!

— Parece
que anda — observou gravemente o Bento. — Também, o Século afiançaque os Reis
estão a acabar, e por dias. Ainda ontem afiançava. E o Século é jornal bem
informado… No de hoje, não sei se o Sr. Doutor leu, lá vem a grande festa dos
anos do Sr. Sanches Lucena, e o fogo -de-vista, e o bródio que deram na
Feitosa…Enterrado no divã de damasco, Gonçalo estendera os pés ao Bento, que
lhe laçava as botas brancas:- Esse Sanches Lucena é um idiota! Ora que arranjo
fará a esse homem, aos sessenta anos, ser deputado, passar meses em Lisboa no
Francfort, abandonar as propriedades, deixar aquela linda quinta… E para quê?
Para rosnar de vez em quando«apoiado»! Antes ele me cedesse a cadeira, a mim,
que sou mais esperto, não possuo grandes terras, e gosto do Hotel Bragança. E
por Sanches Lucena… O Joaquim amanhãque me tenha a égua pronta, a esta hora,
para eu ir à Feitosa, visitar esse animal… E ponho então o fato novo de
montar que trouxe de Lisboa, com as polainas altas… Hámais de dois anos que
não vejo a D. Ana Lucena. É uma linda mulher!

— Pois
quando o Sr. Doutor estava em Lisboa eles passaram aí, na caleche. Atépararam,
e o Sr. Sanches Lucena apontou para a Torre, a mostrar à senhora… Mulher
muito perfeita! E traz uma grande luneta, com um grande cabo, e um grande
grilhão, tudo de ouro…- Bravo!… Encharca bem esse lenço com água
-de-colónia, que tenho a cabeça tão pesada!… Essa D. Ana era uma jornaleira,
uma moça do campo, de Corinde?Bento protestou, com o frasco suspenso, espantado
para o Fidalgo:

— Não
senhor! A Srª D. Ana Lucena é de gente muito baixa! Filha de um carniceiro de
Ovar… E o irmão andou a monte por ter morto o ferrador de Ílhavo.- Enfim —
resumiu Gonçalo — filha de carniceiro, irmão a monte, bela mulher, luneta de
ouro… Merece fato novo!Em Vila Clara, às dez horas, sentado num dos bancos de
pedra do Chafariz, sob as olaias, o Titó esperava com o amigo João Gouveia —
que era o Administrador do Concelho da vila. Ambos se abanavam com os chapéus,
em silêncio, gozando a frescurae o sussurro da água lenta na sombra. E a «meia»
batia no relógio da Câmara, quando

Gonçalo,
que se retardara na Assembleia num voltarete enremissado, apareceuanunciando
uma fome terrível, «a fome histórica dos Ramires», e apressando a marcha para o
Gago sem mesmo consentir que o Titó descesse à tabacaria do Brito, a buscar uma
garrafa de aguardente de cana da Madeira, velha e «da ponta fina…».- Não há
tempo! Ao Gago! Ao Gago!… Senão devoro um de vocês, com esta furiosa fome
Ramírica!Mas, logo ao subirem a Calçadinha, parou ele cruzando os braços,
interpelando divertidamente o Sr. Administrador do Concelho, pelo estupendo
feito de seu Governo… Então o seu Governo, os seus amigos históricos, o seu
honradíssimo S.Fulgêncio nomeavam, para Governador Civil de Monforte, o António
Moreno! O

António
Moreno, tão justamente chamado em Coimbra Antoninha Morena! Não,realmente, era
a derradeira degradação a que podia rolar um país! Depois desta, para harmonia
perfeita dos serviços, só outra nomeação, e urgente — a da Joana Salgadeira,
Procuradora-Geral da Coroa!E o João Gouveia, um homem pequeno, muito escuro,
muito seco, de bigode mais duro que piaçaba, esticado numa sobrecasaca curta,
com o chapéu de coco atirado para aorelha, não discordava. Empregado imparcial,
servindo os Históricos como servira os Regeneradores sempre acolhia com
imparcial ironia as nomeações de bacharéis novos, Históricos ou Regeneradores,
para os gordos lugares administrativos. Mas, neste caso,sinceramente, quase
vomitara, rapazes! Governador Civil, e de Monforte, o António

Moreno,
que ele tantas vezes encontrara no quarto, em Coimbra, vestido de mulher,
deroupão aberto, e a carinha bonita coberta de pó -de-arroz!… — E, travando
do braço do Fidalgo, recordava a noite em que o José Gorjão, muito bêbado, de
cartola e com um revólver, exigiafuriosamente que o Padre Justino, também
bêbado, o casasse com o Antoninho diante dum nicho da Senhora da Boa Morte! Mas
o Titó, que esperava, floreando o bengalão,declarou àqueles senhores que se o
tempo sobejava para arrastarem assim na rua, a conversar de Política e de
indecências — então voltava ele ao Brito, buscar a aguardentezinha…
Imediatamente o Fidalgo da Torre, sempre brincalhão, sacudiu obraço do
Administrador, e galgou pela Calçadinha, aos corcovos, com as mãos fortemente
juntas, como colhendo uma rédea, contendo um cavalo que se desboca.E na sala
alta do Gago, ao cimo da escada esguia e íngreme que subia da taberna, a um
canto da comprida mesa alumiada por dois candeeiros de petróleo, a ceia foi
muito alegre, muito saboreada. Gonçalo, que se declarava miraculosamente curado
pelopasseio até aos Bravais e pelas emoções do voltarete, em que ganhara
dezanove tostões ao Manuel Duarte — começou por uma pratada de ovos com
chouriço, devorou metadeda tainha, devastou o seu «frango de doente», clareou o
prato da salada de pepino, findou por um montão de ladrilhos de marmelada; e
através deste nobre trabalho, sem que a fina brancura da sua pele se
afogueasse, esvaziou uma caneca vidrada deAlvaralhão, porque logo ao primeiro
trago, e com desgosto do Titó, amaldiçoara o vinho novo do abade. À sobremesa
apareceu o Videirinha, «o Videirinha do violão»,tocador afamado de Vila Clara,
ajudante de Farmácia, e poeta com versos de amor e de patriotismo já impressos no
Independente de Oliveira. jantara nessa tarde, com o violão, em casa do
comendador Barros, que celebrava o aniversário da sua comenda; e sóaceitou um
copo de Alvaralhão, em que esmagou um ladrilho de marmelada «para adocicar a
goela». Depois, à meia -noite, Gonçalo obrigou o Gago a espertar o lume,ferver
um café «muito forte, um café terrível, Gago amigo! um café capaz de abrir
talento no Sr. Comendador Barros!» Era essa a hora divina do violão e do
«fadinho». E já o Videirinha recuara para a sombra da sala, pigarreando,
afinando os bordões,pousado com melancolia à borda dum banco alto.

— A
Soledad, Videirinha! — pediu o bom Titó, pensativo, enrolando um grossocigarro.
Videirinha gemeu deliciosamente a Soledad: Quando fores ao cemitério Ai
Soledad, Soledad!…

Depois,
apenas ele findou, aclamado, e enquanto acertava as cravelhas, o Fidalgo da
Torre e João Gouveia, com os cotovelos na mesa, os charutos
fumegando,conversaram sobre essa venda de Lourenço Marques aos Ingleses,
preparada sorrateiramente (conforme clamavam, arrepiados de horror, os jornais
da Oposição)pelo Governo do S. Fulgêncio. E Gonçalo também se arrepiava! Não
com a alienação da Colónia — mas com a impudência do S. Fulgêncio! Que aquele
careca obeso, filho sacrílego dum frade que depois se fizera merceeiro em
Cabecelhos, trocasse a libras,para se manter mais dois anos no poder, um pedaço
de Portugal, terrão augusto, trilhado heroicamente pelos Gamas, os Ataídes, os
Castros, os seus próprios avós — era para eleuma abominação que justificava todas
as violências, mesmo uma revolta, e a Casa de Bragança enterrada no lodo do
Tejo! Trincando, sem parar, amêndoas torradas, João Gouveia observou:- Sejamos
justos, Gonçalo Mendes! Olhe que os Regeneradores…

O Fidalgo
sorriu superiormente. Ah! se os Regeneradores realizassem essagrandiosa
operação — bem! Esses, primeiramente, nunca cometeriam a indecência de vender a
Ingleses terra de Portugueses! Negociariam com Franceses, com Italianos, povos
latinos, raças fraternas… E depois os bons milhões soantes seriam aplicados
aofomento do País, com saber, com probidade, com experiência. Mas esse horrendo
careca do S. Fulgêncio!… — E no seu furor, engasgado, gritou por genebra,
porque realmente aquele conhaque do Gago era uma peçonha torpe!

O Titó
encolheu os ombros, resignado: — Não me deixaste ir buscar a aguardentezinha,
agora aguenta… E a genebra éainda mais peçonhenta. Nem para os negros desse
Lourenço Marques que tu queres vender… Portugueses indecentes, a vender
Portugal! Até o Sr. Administrador do Concelho devia proibir estas conversas…

 Mas o Sr. Administrador do Concelho afirmou
que as consentia, e rasgadamente…Porque também ele, como Governo, venderia
Lourenço Marques, e Moçambique, e toda a Costa Oriental! E às talhadas! Em
leilão! Ali, toda a África, posta em praça, apregoadano Terreiro do Paço! E
sabiam os amigos porquê? Pelo são princípio de forte administração — (estendia
o braço, meio alçado do banco, como num Parlamento)… Pelo são princípio de
que todo o proprietário de terras distantes, que não pode valorizar porfalta de
dinheiro ou gente, as deve vender para consertar o seu telhado, estrumar a sua
horta, povoar o seu curral, fomentar todo o bom terrão que pisa com os pés…
Ora aPortugal restava toda uma riquíssima, província a amanhar, a regar, a
lavrar, a semear — o Alentejo!

O Titó
lançou o vozeirão, desdenhando o Alentejo, como uma película de terra demá
qualidade, que, fora umas léguas de campos em torno de Beja e de Serpa, por um
grão só dava dois, e, apenas esgaravatada, logo mostrava o granito…- O mano
João tem lá uma herdade imensa, imensíssima, que rende trezentos mil-réis!

O
Administrador, que advogara em Mértola, protestou, encristado. O
Alentejo!Província abandonada, sim! Abandonada miseravelmente, desde séculos,
pela imbecilidade dos governos… Mas riquíssima, fertilíssima!- Pois então os
Árabes… E qual Árabes! Ainda há dias o Freitas Galvão me contava…

Mas
Gonçalo Mendes, que cuspira também a genebra com uma carantonha,acudiu, num
resumo varredor, condenando todo o Alentejo como uma desgraçada ilusão!Estirado
por sobre a mesa, o Administrador gritava:

— Você já
esteve no Alentejo? — Também nunca estive na China, e…- Então não fale! Só a
vinha espantosa que plantou o João Maria…

— Quê!
Umas cem pipas de zurrapa! Mas, noutros sítios, léguas e léguas sem…- Um
celeiro! — Uma charneca! E através do tumulto o Videirinha, repenicando com
solitário ardor, levado natorrente de ais de «fado» da Areosa, soluçava contra
uns olhos negros, donos do seu coração:

Ai! que
dos teus negros olhos Me vem hoje a perdição…

O
petróleo dos candeeiros findava; e o Gago, reclamado para trazer
castiçais,surdiu em mangas de camisa, detrás duma cortina de chita, com a sua
esperta humildade banhada em riso, lembrando a Suas Excelências que passava da
uma horazinha da noite… O Administrador, que detestava noitadas, nocivas à
sua garganta (de amígdalasloucamente inflamáveis), puxou o relógio com terror.
E rapidamente reabotoado na sobrecasaca, de chapéu -coco mais tombado à banda,
apressou o lento Titó, porqueambos moravam no alto da vila — ele defronte do
Correio, o outro na viela das Teresas, numa casa onde outrora habitara e
aparecera apunhalado o antigo carrasco do Porto.

O Titó
porém não se aviava. Com o bengalão debaixo do braço, ainda chamou oGago ao
fundo sombrio da sala estreita, para cochichar sobre o embrulhado negócio duma
compra de espingarda, soberba espingarda Winchester, empenhada ao Gago
pelofilho do tabelião Guedes de Oliveira. E, quando desceu a escadaria,
encontrou à porta da taberna, no estendido luar que orlava a rua adormecida, o
Fidalgo da Torre e o João Gouveia, bruscamente engalfinhados na costumada
contenda sobre o Governador Civilde Oliveira — o André Cavaleiro!

Era
sempre a mesma briga, pessoal, furiosa e vaga. Gonçalo clamando que
nãoaludissem diante dele, pelas cinco chagas de Cristo, a esse bandido, esse
Sr. Cavaleiro e sobretudo Cavalo, mandão burlesco que desorganizava o Distrito!
E João Gouveia, muito teso, muito seco, com o coco mais caído na orelha, assegurando
a inteligênciasuperior do amigo Cavaleiro, que estabelecera limpeza e ordem,
como Hércules, nas cavalariças de Oliveira! O Fidalgo rugia. E Videirinha, com
o violão resguardado atrásdas costas, suplicava aos amigos que recolhessem à
taberna, para não alvorotar a rua…

— Tanto
mais que defronte, coitada, a sogra do Dr. Venâncio está desde ontem com a
pontada!- Pois então — berrou Gonçalo — não venham com disparates que revoltam!
Dizer você, Gouveia, que Oliveira nunca teve Governador Civil como o Cavaleiro!…
Não épor meu pai! O papá já lá vai há três anos, infelizmente. Concordo que não
fosse boa autoridade. Era frouxo, andava doente… Mas depois tivemos o
Visconde de Freixomil. Tivemos o Bernardino. Você serviu com eles. Eram dois
homens!… Mas este cavalodeste Cavaleiro! A primeira condição, para a
autoridade superior dum Distrito, é não ser burlesca. E o Cavaleiro é de
entremez! Aquela guedelha de trovador, e a horrendabigodeira negra, e o olho
languinhento a pingar namoro, e o papo empinado, e o pó-pó-poh! É de entremez!
E estú pido, duma estupidez fundamental, que lhe começa nas patas, vem subindo,
vem crescendo. Oh senhores, que animal!… Sem contar que émalandro.

Teso na
sombra do imenso Titó, como uma estaca junto duma torre, oAdministrador mordia
o charuto. Depois, de dedo espetado, com uma serenidade cortante:

— Você
acabou?… Pois, Gonçalinho, agora escute!Em todo o distrito de Oliveira, note
bem, em todo ele! não há ninguém, absolutamente ninguém, que de longe, muito de
longe, se compare ao Cavaleiro eminteligência, carácter, maneiras, saber, e
finura política!

O Fidalgo
da Torre emudeceu, varado. Por fim, sacudindo o braço, num desabrido, arrogante
desprezo:- Isso são as opiniões dum subalterno!

— E isso
são as expressões dum malcriado! — uivou o outro, crescendo todo, comos
olhinhos esbugalhados a fuzilar. Imediatamente entre os dois, mais grosso que
um barrote, avançou o braço do Titó, estendendo uma sombra na calçada:- Olá! Oh
rapazes! Que desconchavo é este? Vocês estão borrachos?… Pois tu,
Gonçalo…Mas já Gonçalo, num desses seus impulsos generosos e amoráveis que
tão finamente seduziam, se humilhava, confessava a sua brutalidade,
sensibilizado:

— Perdoe
você, João Gouveia! Sei perfeitamente que você defende o Cavaleiro poramizade,
não por dependência… Mas que quer, homem? Quando me falam nesse

Cavalo…
Não sei, é por contágio da besta, orneio, atiro coice!O Gouveia, sem rancor,
logo reconciliado (porque admirava carinhosamente o Fidalgo da Torre), deu um
puxão forte à sobrecasaca e apenas observou «que o Gonçalinho era uma flor, mas
picava…». Depois, aproveitando a emoção submissa deGonçalo, recomeçou a
glorificação do Cavaleiro, mais sóbria. Reconhecia certas fraquezas. Sim, com
efeito, aquele modo empertigado… Mas que coração! — E oGonçalinho devia
considerar…

O
Fidalgo, de novo revoltado, recuou, espalmando as mãos:

— Escute
você, oh João Gouveia! Por que é que você lá em cima, à ceia, nãocomeu a salada
de pepino? Estava divina, até o Videirinha a apeteceu! Eu repeti, acabei a
travessa… Por que foi? Porque você tem horror fisiológico, horror visceral ao
pepino.A sua natureza e o pepino são incompatíveis. Não há raciocínios, não há
subtilezas, que o persuadam a admitir lá dentro o pepino. Você não duvida que
ele seja excelente, desde que tanta gente de bem o adora; mas você não pode…
Pois eu estou para o Cavaleirocomo você para o pepino. Não posso! Não há
molhos, nem razões, que mo disfarcem.

Para mim
é ascoroso. Não vai! Vomito!… E agora oiça…Então Titó, que bocejava,
interveio, já farto:

— Bem!
Parece -me que apanhámos a nossa dose de Cavaleiro, e valente! Somos todos
muito boas pessoas e só nos resta debandar. Eu tive senhora, tive tainha…
Estouderreado. E não tarda a madrugada, que vergonha!

O
Administrador pulou. Oh Diabo! E ele, às nove horas da manhã, com comissãode
recenseamento!… Para esmagar bem o amuo, cingiu Gonçalo num rijo abraço. E,
quando o Fidalgo descia para o Chafariz com o Videirinha (que nestas noites
festivas de Vila Clara o acompanhava sempre pela estrada até ao portão da
Torre), João Gouveiaainda se voltou, pendurado do braço do Titó no meio da
Calçadinha, para lhe lembrar um preceito moral «de não sei que filósofo»:- «Não
vale a pena estragar boa ceia por causa de má polí tica Creio que é de Aristóteles!

E até
Videirinha, que de novo afinava a viola, se preparava para um solto descanteao
luar, murmurou respeitosamente por entre abafados harpejos:

— Não
vale a pena, Sr. Doutor… Realmente não vale a pena, porque em Políticahoje é
branco, amanhã é negro, e depois, zás, tudo é nada. O fidalgo encolhera os
ombros. A Política! Como se ele pensasse na Autoridade, no Sr. Governador Civil
de Oliveira — quando injuriava o Sr. André Cavaleiro, deCorinde! Não! o que
detestava era o homem — o falso homem de olho langoroso!

Porque
entre eles existia um desses fundos agravos que outrora, no tempo
dosTructesindos, armavam um contra o outro, em dura arrancada de lanças, dois
bandos senhoriais… — E pela estrada, com a Lua no alto dos outeiros de
Valverde, enquanto no violão do Videirinha tremia o choro lento do fado do
Vimioso, Gonçalo Mendesrecordava, aos pedaços, aquela história que tanto
enchera a sua alma desocupada.

Ramires e
Cavaleiros eram famílias vizinhas, uma com a velha torre em Santa Ireneia,mais
velha que o reino — a outra com quinta bem tratada e rendosa em Corinde. E
quando ele, rapaz de dezoito anos, enfiava enfastiadamente os preparatórios do
Liceu, André Cavaleiro, então estudante do Terceiro Ano, já o tratava como um
amigo sério.Durante as férias, como a mãe lhe dera um cavalo, aparecia todas as
tardes na Torre; e muitas vezes, sob os arvoredos da quinta ou passeando pelos
arredores de Bravais eValverde, lhe confiava, como a um espírito maduro, as
suas ambições políticas, as suas ideias de vida; que desejava grave e toda
votada ao Estado. Gracinha Ramires desabrochava na flor dos seus dezasseis
anos; e mesmo em Oliveira lhe chamavam «aFlor da Torre». Ainda então vivia a
governanta inglesa de Gracinha, a boa miss Rhodes — que, como todos na Torre,
admirava com entusiasmo André Cavaleiro pela suaamabilidade, a sua ondeada
cabeleira romântica, a doçura quebrada dos seus olhos largos, a maneira ardente
de recitar Vítor Hugo e João de Deus. E, com essa fraqueza que lhe amolecia a
alma e os princípios perante a soberania do Amor, favorecerademoradas conversas
de André com Maria da Graça sob as olaias do mirante e mesmo cartinhas trocadas
ao escurecer, por sobre o muro baixo da Mãe -d’água. Todos osdomingos o
Cavaleiro jantava na Torre: — e o velho procurador Rebelo já preparara, com
esforço e resmungando, um conto de réis para o enxoval da «menina». O pai de
Gonçalo, Governador Civil de Oliveira, sempre atarefado, enredado em Política e
emdívidas, amanhecendo só na Torre aos domingos, aprovava esta colocação de
Gracinha, que, meiga e romanesca, sem mãe que a velasse, criava na sua vida, já
difícil, umtropeço e um cuidado. Sem representar como ele uma família de imensa
crónica, anterior ao Reino, do mais rico sangue de Reis godos, André Cavaleiro
era um moço bem-nascido, filho de general, neto de desembargador, com brasão
legítimo na sua casaapalaçada de Corinde, e terras fartas em redor, de boa
semeadura, limpas de hipotecas…

Depois,
sobrinho de Reis Gomes, um dos Chefes Históricos, já filiado no PartidoHistórico
(desde o Segundo Ano da Universidade), a sua carreira andava marcada com
segurança e brilho na Política e na Administração. E enfim Maria da Graça amava
enlevadamente aqueles reluzentes bigodes, os ombros fortes de Hércules bem
-educado,o porte ufano que lhe encouraçava o peitilho e que impressionava. Ela,
em contraste, era pequenina e frágil, com uns olhos tímidos e esverdeados que o
sorriso humedecia eenlanguescia, uma transparente pele de porcelana fina, e
cabelos magníficos, mais lustrosos e negros que a cauda dum corcel de guerra,
que lhe rolavam até aos pés, em que se podia embrulhar toda, assim macia e
pequenina. Quando desciam ambos asalamedas da quinta, miss Rhodes (que o pai,
professor de Literatura Grega em Manchester, recheara de Mitologia) pensava
sempre em «Marte cheio de força, amandoPsiqué cheia de graça». E mesmo os
criados da Torre se maravilhavam do «lindo par!»

Só a Sr a
D. Joaquina Cavaleiro, a mãe de André, senhora obesa e rabugenta, detestava
aquela terna assiduidade do filho na Torre, sem motivo pesado, só por
«desconfiar dapinta da menina e desejar nora mais comezinha…». Felizmente,
quando André Cavaleiro se matriculava no Quinto Ano, a desagradável matrona
morreu duma anasarca. O pai deGonçalo recebeu a chave do caixão; Gracinha tomou
luto; e Gonçalo, companheiro de casa do Cavaleiro na Rua de S. João, em
Coimbra, enrolou um fumo na manga da batina. Logo em Santa Ireneia se pensou
que o esplêndido André, liberto da pecaoposição da mamã, pediria a «Flor da
Torre» depois do Acto de Formatura. Mas, findo esse desejado Acto, Cavaleiro
abalou para Lisboa — porque se preparavam eleições emOutubro, e ele recebera do
tio Reis Gomes, então Ministro da justiça, a promessa de «ser deputado» por
Bragança.

E todo
esse Verão o passou na Capital; depois em Sintra, onde o negro langor dosseus
olhos húmidos amolecia corações; depois numa jornada quase triunfal a Bragança,
com foguetes e «vivas ao sobrinho do Sr. Conselheiro Reis Gomes!» Em
Outubro,Bragança «confiou ao Dr. André Cavaleiro (como escreveu o Eco de
Trás-os-Montes) odireito de a representar em Cortes, com os seus brilhantes
conhecimentos literários e a sua formosíssima presença de orador…». Recolheu
então a Corinde; mas nas suas visitasà Torre, onde o pai de Gonçalo convalescia
duma febre gástrica, que exacerbara a sua antiga diabetes, André já não
arrastava sofregamente Gracinha como outrora, para assilenciosas sombras da
quinta, permanecendo de preferência na sala azul, a conversar sobre Política
com Vicente Ramires, que se não movia da poltrona, embrulhado numa manta. E
Gracinha, nas suas cartas para Coimbra a Gonçalo, já se carpia de nãocorrerem
tão doces nem tão íntimas as visitas do André à Torre, «ocupado, como andava
sempre agora, a estudar para deputado…». Depois do Natal o Cavaleiro
voltoupara Lisboa, para a abertura das Cortes, muito apetrechado, com o seu
criado Mateus, uma linda égua que comprara em Vila Clara ao Manuel Duarte, e
dois caixotes de livros. E a boa miss Rhodes sustentava que Marte, como
convinha a um herói, sóreclamaria Psiqué depois de um nobre feito, uma estreia
nas Câmaras, «num discurso lindo, todo flores…». Quando Gonçalo, nas férias
de Páscoa, apareceu na Torre,encontrou Gracinha inquieta e descorada. As cartas
do seu André, que se estreara «e num discurso lindo, todo flores…», eram cada
semana mais curtas, mais calmas. E a última (que ela lhe mostrou em segredo),
datada da Câmara, contava em três linhas malrabiscadas «que tivera muito que
trabalhar em comissões, que o tempo se pusera lindo, que nessa noite era o
baile dos condes de Vilaverde, e que ele continuava com muitassaudades do seu
fiel André…». Gonçalo Mendes Ramires, logo nessa tarde desabafou com o pai,
que definhava na sua poltrona:

— Eu acho
que o André se está portando muito mal com a Gracinha… O papá nãolhe parece?

Vicente
Ramires apenas moveu, num gesto de vencida tristeza, a mão descarnada,de onde a
cada momento lhe escorregava o anel de armas. Por fim em Maio a sessão das
Câmaras terminou — essa sessão que tanto interessara Gracinha, ansiosa «que
eles acabassem de discutir e tivessem férias». Equase imediatamente ela em
Santa Ireneia, Gonçalo em Coimbra, souberam pelos jornais que «o talentoso
deputado André Cavaleiro partira para Itália e França, numalonga viagem de
recreio e de estudo». E nem uma carta à sua escolhida, quase sua noiva!… Era
um ultraje, um bruto ultraje, que outrora, no século XII, lançaria todos os
Ramires, com homens de cavalo e peonagem, sobre o solar dos Cavaleiros, para
deixarcada trave denegrida pela chama, cada servo pendurado duma corda de
cânave. Agora

Vicente
Ramires, apagado e mortal, murmurou simplesmente: «Que traste!» Ele emCoimbra,
rugindo, jurou esbofetear um dia o infame! A boa miss Rhodes, para seconsolar,
desembrulhou a sua velha harpa, encheu Santa Ireneia de magoados harpejos.

E tudo
findou nas lágrimas que Gracinha, durante semanas, tão desconsolada da vidaque
nem se penteava, escondeu sob as olaias do mirante.

E, ainda
depois desses anos, a esta lembrança das lágrimas da irmã, um rancorinvadiu
Gonçalo, tão redivivo que atirou para o lado, para sobre as sebes da vala, uma
bengalada, com se fosse às costas do Cavaleiro! — Caminhavam então junto à
ponte da Portela, onde os campos se alargam, e da estrada se avista Vila Clara,
que a Luabranqueava toda, desde o convento de Santa Teresa, rente ao Chafariz,
até ao muro novo do cemitério, no alto, com os seus finos ciprestes. Para o
fundo do vale, claratambém no luar, era a igrejinha de Craquede, Santa Maria de
Craquede, resto do antigo Mosteiro em que ainda jaziam, nos seus rudes túmulos
de granito, as grandes ossadas dos Ramires Afonsinos. Sob o arco, docemente, o
riacho lento, arrastando entre osseixos, sussurrava na sombra. E Videirinha,
enlevado naquele silêncio e suavidade saudosa, cantava, num gemer surdo de
bordões:

Baldadas
são tuas queixas, Escusados são teus ais, Que é como se eu morto fora, E não me
verás nunca mais!…

E Gonçalo
retomara as suas recordações, repassava tristezas que depois caíram sobre a
Torre. Vicente Ramires morrera numa tarde de Agosto, sem sofrimento,estendido
na sua poltrona à varanda, com os olhos cravados na velha Torre, murmurando
para o Padre Soeiro: — «Quantos Ramires verá ela ainda, nesta casa, e àsua
sombra?…» Todas essas férias as consumiu Gonçalo no escuro cartório,
desajudado (porque o procurador, o bom Rebelo, também Deus o chamara),
revolvendo papéis, apurando o estado da casa reduzida aos dois contos e
trezentos mil -réis que rendiam osforos de Craquede, a herdade de Praga, e as
duas quintas históricas, Treixedo e Santa

Ireneia.
Quando regressou a Coimbra deixou Gracinha em Oliveira, em casa de umaprima, D.
Arminda Nunes Viegas, senhora muito abastada, muito bondosa, que habitava no
Terreiro da Louça um imenso casarão cheio de retratos de avoengos e de árvores
de costado, onde ela, vestida de veludo preto, pousada num canapé de damasco,
entre aiasque fiavam, perpetuamente relia os seus livros de cavalaria, o
Amadis, Leandro o Belo, Tristão e Brancaflor, as Crónicas do Imperador
Clarimundo… Foi ai que José Barrolo(senhor de uma das mais ricas casas de
Amarante) encontrou Gracinha Ramires, e a amou com uma paixão profunda, quase
religiosa — estranha naquele moço indolente, gorducho, de bochechas coradas
como uma maçã, e tão escasso de espírito que osamigos lhe chamavam «o José
Bacoco». O bom Barrolo residira sempre em Amarante com a mãe, não conhecia o
traído romance da «Flor da Torre» — que nunca se espalharapara além dos
cerrados arvoredos da quinta. E, sob o enternecido e romanesco patrocínio de D.
Arminda, noivado e casamento docemente se apressaram, em três meses, depois
duma carta de Barrolo a Gonçalo Mendes Ramires, jurando — «que aafeição pura
que sentia pela prima Graça, pelas suas virtudes e outras qualidades
respeitáveis, era tão grande que nem achava no Dicionário termos para a
explicar…».Houve uma boda luxuosa; e os noivos (por desejo de Gracinha, para
se não afastar da querida Torre), depois duma jornada filial a Amarante,
«armaram o seu ninho» em Oliveira, à esquina do largo de El-Rei e da Rua das
Tecedeiras, num palacete que oBacoco herdara, com largas terras, do seu tio
Melchior, Deão da Sé. Dois anos correram, mansos e sem história. E Gonçalo
Mendes Ramires passava justamente emOliveira as suas últimas férias de Páscoa,
quando André Cavaleiro, nomeado Governador Civil do Distrito, tomou posse,
estrondosamente, com foguetes, filarmónicas, o Governo Civil e o Paço do Bispo
iluminados, as armas dos Cavaleirosem transparentes no Café da Arcada e na
Recebedoria!… Barrolo conhecia o Cavaleiro quase intimamente, admirava o seu
talento, a sua elegância, o seu brilho político. MasGonçalo Mendes Ramires, que
dominava soberanamente o bom Bacoco, logo o intimou a não visitar o Sr.
Governador Civil, a não o saudar sequer na rua, e a partilhar, por dever de
aliança, os rancores que existiam entre Cavaleiros e Ramires! José
Barrolocedeu, submisso, espantado, sem compreender. Depois uma noite, no
quarto, enfiando as chinelas, contou a Gracinha «a esquisitice de Gonçalo»:- E
sem motivo, sem ofensa, só por causa da Política!… Ora, vê tu! Um belo rapaz
como o Cavaleiro!… Podíamos fazer um ranchinho tão agradável!…

Outro
sereno ano passou… E nessa Primavera, em Oliveira, onde se demorara paraa
festa dos anos de Barrolo, eis que Gonçalo suspeita, fareja, descobre uma
incomparável infâmia! O empertigado homem da bigodeira negra, o Sr.
AndréCavaleiro, recomeçara com soberba impudência a cortejar Gracinha Ramires,
de longe, mudamente, em olhadelas fundas, carregadas de saudade e langor,
procurando agora apanhar como amante aquela grande fidalga, aquela Ramires, que
desdenhara comoesposa!

Tão
levado ia Gonçalo pela branca estrada, no rolo amargo destes pensamentos,que
não reparou no portão da Torre, nem na portinha verde, à esquina da casa, sobre
três degraus. E seguia, rente do muro da horta, quando Videirinha, que estacara
com osdedos mudos nos bordões do violão, o avisou rindo.

— Oh, Sr.
Doutor, então larga assim a estas horas, de corrida para os Bravais?Gonçalo
virou, bruscamente despertado, procurando na algibeira, entre o dinheiro solto,
a chavinha do trinco:

— Nem
reparava… Que lindamente você tem tocado, Videirinha! Com Lua, depoisda ceia,
não há companheiro mais poético… Realmente você é o derradeiro trovador
português!Para o ajudante de Farmácia, filho de um padeiro de Oliveira, a
familiaridade daquele tamanho Fidalgo, que lhe apertava a mão na botica diante
do Pires boticário e em Oliveira diante das autoridades, constituía uma glória,
quase uma coroação, esempre nova, sempre deliciosa. Logo sensibilizado, feriu
os bordões rijamente:

— Então,
para acabar, lá vai a grande trova, Sr. Doutor!Era a sua famosa cantiga, o Fado
dos Ramires, rosário de heróicas quadrascelebrando as lendas da Casa ilustre —
que ele desde meses apurava e completava, ajudado na terna tarefa pelo saber do
velho Padre Soeiro, capelão e arquivista da Torre.Gonçalo empurrou a portinha
verde. No corredor espirrava uma lamparina mortiça, já sem azeite, junto ao
castiçal de prata. E Videirinha, recuando ao meio daestrada, com um «dlindlon»
ardente, fitara a Torre, que, por cima dos telhados da vasta casa, mergulhava
as ameias, o negro miradouro, no luminoso silêncio do céu de Verão. Depois,
para ela e para a Lua, atirou as endechas glorificadoras, na dolente melodia
dumfado de Coimbra, rico em ais:

Quem te
v’rá sem que estremeça, Torre de Santa Ireneia, Assim tão negra e calada, Por
noites de lua cheia… Ai! Assim calada, tão negra, Torre de Santa Ireneia!

Ainda
suspendeu para agradecer ao Fidalgo, que o convidava a subir e enxugarum cálice
de genebra salvadora. Mas retomou logo o descante, ditoso em descantar, como
sempre arrebatado pelo sabor dos seus versos, pelo prestígio das lendas,
enquantoGonçalo desaparecia — com folgazãs desculpas ao Trovador «por cerrar a
portinha do castelo…».

Ai! aí
estás, forte e soberba, Com uma história em cada ameia, Torre mais velha que o
reino, Torre de Santa Ireneia!…

E
começara a quadra a Múncio Ramires, Dente de Lobo, quando em cima uma sala,
aberta à frescura da noite, se alumiou — e o Fidalgo da Torre, com o charuto
aceso,se debruçou da varanda para receber a serenata. Mais ardente, quase
soluçante, vibrou o cantar do Videirinha. Agora era a quadra de Gutierres
Ramires, na Palestina, sobre o monte das Oliveiras, à porta da sua tenda,
diante dos barões que o aclamavam com asespadas nuas, recusando o Ducado de
Galileia e o senhorio das Terras de Além -Jordão.

— Que não
podia, em verdade, aceitar terra, mesmo Santa, mesmo de Galileia… Quem já
tinha em Portugal Terras de Santa Ireneia!

— Boa
piada! — murmurou Gonçalo.Videirinha, entusiasmado, entoou logo outra nova,
trabalhada nessa semana — a do saimento de Aldonça Ramires, Santa Aldonça,
trazida do mosteiro de Arouca ao solar de Treixedo, sobre o almadraque em que
morrera, aos ombros de quatro Reis!- Bravo! — gritou o Fidalgo pendurado da
varanda. — Essa é famosa, oh

Videirinha!
Mas aí há Reis de mais… Quatro Reis!Enlevado, empinando o braço do violão, o
ajudante de Farmácia lançou outra, já antiga — a daquele terrível Lopo Ramires
que, morto, se erguera da sua campa no Mosteiro de Craquede, montara um ginete
morto, e toda a noite galopara através daEspanha para se bater nas Navas de
Tolosa! Pigarreou — e, mais chorosamente, atacou a do Descabeçado:

Lá passa
a negra figura… Mas Gonçalo, que abominava aquela lenda, a silenciosa figura
degolada, errando por noites de Inverno entre as ameias da Torre com a cabeça
nas mãos — despegou davaranda, deteve a crónica imensa:

— Toca a
deitar, oh Videirinha, hem? Passa das três horas, é um horror. Olhe! O Titó e o
Gouveia jantam cá na Torre, no domingo. Apareça também, com o violão ecantiga
nova; mas menos sinistra…

Bona
sera! Que linda noite! Atirou o charuto, fechou a vidraça da sala — a «sala
velha», toda revestida dessesdenegridos e tristonhos retratos de Ramires, que
ele desde pequeno chamava as carantonhas dos vovós. E, atravessando o corredor,
ainda sentia rolarem ao longe, no silêncio dos campos cobertos de luar,
façanhas rimadas dos seus:

Ai! lá na
grande batalha… El-Rei Dom Sebastião… O mais moço dos Ramires Que era pajem
do guião…

Despido,
soprada a vela, depois de um rápido sinal da Cruz, o Fidalgo da Torreadormeceu.
Mas no quarto, que se povoou de sombras, começou para ele uma noite revolta e
pavorosa. André Cavaleiro e João Gouveia romperam pela parede, revestidos de
cotas de malha, montados em horrendas tainhas assadas! E lentamente, piscando
oolho mau, arremessavam contra o seu pobre estômago pontoadas de lança, que o
faziam gemer e estorcer sobre o leito de pau -preto. Depois era, na Calçadinha
de Vila Clara, omedonho Ramires morto, com a ossada a ranger dentro da
armadura, e El-Rei D. Afonso II, arreganhando afiados dentes de lobo, que o
arrastavam furiosamente para a batalha das Navas. Ele resistia, fincado nas
lajes, gritando pela Rosa, por Gracinha, peloTitó! Mas D. Afonso tão rijo murro
lhe despedia aos rins, com o guante de ferro, que o arremessava desde a
hospedaria do Gago até à Serra Morena, ao campo da lide, luzentee fremente de
pendões e de armas. E imediatamente seu primo de Espanha, Gomes Ramires, Mestre
de Calatrava, debruçado do negro ginete, lhe arrancava os derradeiros cabelos,
entre a retumbante galhofa de toda a hoste sarracena e os prantos da
tiaLouredo, trazida como um andor aos ombros de quatro Reis!… — Por fim, moído,
sem sossego, já com a madrugada clareando nas fendas das janelas e as
andorinhas piandono beiral dos telhados, o Fidalgo da Torre atirou um
derradeiro repelão aos lençóis, saltou ao soalho, abriu a vidraça — e respirou
deliciosamente o silêncio, a frescura, a verdura, o repouso da quinta. Mas que
sede! uma sede desesperada que lhe encortiçavaos lábios! Recordou então o
famoso fruit salt que lhe recomendara o Dr. Matos, — arrebatou o frasco, correu
à sala de jantar, em camisa. E, a arquejar, deitou duas fartascolheradas num
copo de água da Bica Velha, que esvaziou dum trago, na fervura picante.

— Ah! que
consolo, que rico consolo!…Voltou derreadamente à cama; e readormeceu logo,
muito longe, sobre as relvas profundas dum prado de África, debaixo de coqueiros
sussurrantes, entre o apimentadoaroma de radiosas flores, que brotavam, através
de pedregulhos de oiro. Dessa perfeita beatitude o arrancou o Bento, ao meio
-dia, inquieto com «aquele tardar do Sr. Doutor».

— É que
passei uma noite horrenda, Bento! Pesadelos, pavores, bulhas,esqueletos…
Foram os malditos ovos com chouriço; e o pepino… Sobretudo o pepino! Uma
ideia daquele animal do Titó… Depois, de madrugada, tomei o tal fruit salt, e
estouóptimo, homem!… Estou optimíssimo! Até me sinto capaz de trabalhar. Leva
para a livraria uma chávena de chá verde, muito forte… Leva também torradas.

E
momentos depois, na livraria, com um roupão de flanela sobre a camisa dedormir,
sorvendo lentos goles de chá, Gonçalo relia junto da varanda essa derradeira linha
da novela, tão rabiscada e mole, em que «os largos raios da Lua se estiravam
pelalarga sala de armas…». De repente, numa rasgada impressão de claridade,
entreviu detalhes expressivos para aquela noite de Castelo e de Verão — as
pontas das lanças dos esculcas faiscando silenciosamente pelos adarves da
muralha, e o coaxar triste das rãsnas bordas lodosas dos fossos…

— Bons
traços!Achegou devagar a cadeira, consultou ainda no volume do Bardo o poemeto
dotio Duarte. E, desanuviado, sentindo as imagens e os dizeres surgirem como
bolhas duma água represa que rebenta, atacou esse lance do Capítulo I em que o
velhoTructesindo Ramires, na sala de armas de Santa Ireneia, conversava com seu
filho Lourenço e seu primo D. Garcia Viegas, o Sabedor, de aprestos de
guerra… Guerra!Porquê? Acaso pelos cerros arraianos corriam, ligeiros entre o
arvoredo, almogávares mouros? Não! Mas desgraçadamente, «naquela terra já
remida e cristã, em breve se cruzariam, umas contra outras, nobres lanças
portuguesas!…»Louvado Deus! a pena desemperrara! E, atento às páginas
marcadas num tomo da

História
de Herculano, esboçou com segurança a época da sua novela — que abria entreas
discórdias de Afonso II e de seus irmãos por causa do testamento de El -Rei seu
pai, D. Sancho I. Nesse começo do capítulo já os Infantes D. Pedro e D.
Fernando, esbulhados, andavam por França e Leão. já com eles abandonara o Reino
o forte primodos Ramires, Gonçalo Mendes de Sousa, chefe magnífico da casa dos
Sousas. E agora, encerradas nos castelos de Montemor e de Esgueira, as senhoras
Infantas, D. Teresa eD. Sancha, negavam a D. Afonso o senhorio real sobre as
vilas, fortalezas, herdades e mosteiros, que tão copiosamente lhes doara El-Rei
seu pai. Ora, antes de morrer no Alcáçar de Coimbra, o senhor D. Sancho
suplicara a Tructesindo Mendes Ramires, seucolaço e alferes -mor, por ele
armado cavaleiro em Lorvão, que sempre lhe servisse e defendesse a filha amada
entre todas, a Infanta D. Sancha, senhora de Aveiras. Assim ojurara o leal Rico
-Homem junto do leito onde, nos braços do Bispo de Coimbra e do Prior do
Hospital sustentando a candeia, agonizava, vestido de burel como um penitente,
o vencedor de Silves… Mas eis que rompe a fera contenda entre Afonso
II,asperamente cioso da sua autoridade de Rei — e as Infantas, orgulhosas,
impelidas à resistência pelos freires do Templo e pelos prelados a quem D.
Sancho legara tão vastospedaços do Reino! Imediatamente Alenquer e os arredores
de outros castelos são devastados pela hoste real que recolhia das Navas de Tolosa.
Então D. Sancha e D. Teresa apelam para el -Rei de Leão, que entra com seu
filho D. Fernando por terras dePortugal, a socorrer as «Donas oprimidas». — E
neste lance o tio Duarte, no seu Castelo de Santa Ireneia, interpelava com
soberbo garbo o alferes -mor de Sancho I:

— Que
farás tu, mais velho dos Ramires? Se ao pendão leonês juntas o teu Trais o
preito que deves ao rei vivo! Mas se as Infantas deixas indefesas Trais a jura
que destes ao rei morto!…

Esta
dúvida, porém, não angustiara a alma desse Tructesindo rude e leal, que
oFidalgo da Torre rijamente modelava. Nessa noite, apenas recebera pelo irmão
do alcaide de Aveiras, disfarçado em beguino, um aflito recado da senhora D.
Sancha — ordenava a seu filho Lourenço que, ao primeiro arrebol, com quinze
lanças, cinquenta homens de pé da sua mercê e quarenta besteiros, corresse
sobre Montemor. Ele, no entanto, daria alarido — e em dois dias entraria a
campo com os parentes de solar, umtroço mais rijo de cavaleiros acontiados e de
frecheiros, para se juntar a seu primo, o

Sousão,
que na vanguarda dos leoneses descia de Alva do Douro.Depois, logo de
madrugada, o pendão dos Ramires, o açor negro em campo escarlate, se plantara
diante das barreiras gateadas; e ao lado, no chão, amarrado à haste por uma tira
de couro, reluzia o velho emblema senhorial, o sonoro e fundo caldeirãopolido.
Por todo o castelo se apressavam os serviçais, despendurando as cervilheiras,
arrastando com fragor pelas lajes os pesados saios de malhas de ferro. Nos
pátios osarmeiros aguçavam ascumas, amaciavam a dureza das grevas e coxotes com
camadas de estopa. já o adail, na ucharia, arrolara as rações de vianda para os
dois quentes dias da arrancada. E por todas as cercanias de Santa Ireneia, na
doçura da tarde, os tamboresmouriscos, abafados no arvoredo, rataplã! rataplã!
ou mais vivos nos cabeços, ratatá! ratatá! convocavam os cavaleiros de soldo e
a peonagem da mesnada dos Ramires.No entanto o irmão do alcaide, sempre
disfarçado em beguino, de volta ao castelo de Aveiras com a boa -nova de
prestes socorros, transpunha ligeiramente a levadiça da carcova… E aqui, para
alegrar tão sombrias vésperas de guerra, o tio Duarte, no seupoemeto, engastara
uma sorte galante:

À moça,
que na fonte enchia a bilha, O frade rouba um beijo e diz Amen!

Mas
Gonçalo hesitava em desmanchar com um beijo de clérigo a pompa daquela formosa
surtida de armas… E mordia pensativamente a rama da pena — quando a portada
livraria rangeu.

— O
correio… Era o Bento com os jornais e duas cartas. O Fidalgo apenas abriu
uma, lacradacom o enorme sinete de armas do Barrolo — repelindo a outra em que
reconhecera a letra detestada do seu alfaiate de Lisboa. E imediatamente, com
uma palmada na mesa:- Oh diabo! quantos do mês, hoje? catorze, hem?

O Bento
esperava com a mão no fecho da porta. — É que não tardam os anos da mana Graça!
De todo esqueci, esqueço sempre. Esem ter um presentinho engraçado… Que seca,
hem?

Mas na
véspera o Manuel Duarte, na Assembleia, à mesa do voltarete, anunciarauma fuga
a Lisboa por três dias, para tratar do emprego do sobrinho nas Obras Públicas.
Pois corria a Vila Clara pedir ao Sr. Manuel Duarte, que lhe comprasse em
Lisboa um bonito guarda-solinho de seda branca com rendas…- O Sr. Manuel
Duarte tem gosto; tem muito gosto! E então o Joaquim que não sele a égua; já
não vou ao Sanches Lucena. Oh, senhores, quando pagarei eu esta infamevisita?
Há três meses!… Enfim, por dois dias mais, a bela D. Ana não envelhece; e o
velho Lucena também não morre.

E o
Fidalgo da Torre, que decidira arriscar o beijo folgazão, retomou a
pena,arredondou o seu final com elegante harmonia:

«A moça,
furiosa, gritou: Fu! Fu! vilão! E o beguino, asso biando, aligeirou assandálias
pelo córrego, na sombra das altas faias, enquanto que, por todo o fresco vale,
até Santa Maria de Craquede, os tambores mouriscos, rataplã! rataplã!
convocavam àmesnada dos Ramires, na doçura da tarde…»

 

Capítulo III

 

Durante a
longa semana, nas horas da calma, o Fidalgo da Torre trabalhou comaferro e
proveito. E nessa manhã, depois de repicar a sineta no corredor, duas vezes o
Bento empurrara a porta da livraria, avisando o Sr. Doutor «que o almocinho,
assim àespera, certamente se estragava». Mas de sobre a tira de almaço Gonçalo
rosnava «já vou!» — sem despegar a pena, que corria como quilha leve em água
mansa, na pressaamorosa de terminar, antes do almoço, o seu Capítulo I.

Ah! e que
canseira lhe custara, durante esses dias, esse copioso capítulo, tão difícil,
com o imenso castelo de Santa Ireneia a erguer; e toda uma idade esfumada daHistória
de Portugal, a condensar em contornos robustos; e a mesnada dos Ramires a
apetrechar, sem que faltasse uma ração nos alforges, ou uma garruncha nos
caixotes,sobre o dorso das mulas! Mas felizmente, na véspera, já movera para
fora do castelo o troço de Lourenço Ramires, em socorro de Montemor, com um
vistoso coriscar de capelos e lanças em torno ao pendão tendido.E agora, nesse
remate do capítulo, era noite, e o sino de recolher tangera, e a almenara
luzira na Torre albarrã, e Tructesindo Ramires descera à sala térrea daAlcáçova
para cear — quando fora, diante da carcova, com três toques fortes anunciando
filho de algo, uma buzina apressada soou. E, sem que o vílico tomasse permissão
do senhor, o alçapão da levadiça rangeu nas correntes de ferro, ribombou
cavamente nosapoios de pedra. Quem assim chegava em dura pressa era Mendo Pais,
amigo de Afonso

II e
mordomo da sua cúria, casado com a filha mais velha de Tructesindo, D.
Teresaaquela que, pelo ondeante e alvo pescoço, pelo pisar mais leve que um voo,
os Ramires chamavam a Garça Real. O senhor de Santa Ireneia correra ao patim
para acolher, num abraço, o genro amado — «membrudo cavaleiro, com os cabelos
ruivos, a alvíssima peleda raça germânica dos visigodos…». E, de mãos
enlaçadas, ambos penetraram nessa sala de abóbada, alumiada por tochas que
toscos anéis de ferro seguravam, chumbados aosmuros.

Ao meio
pousava a maciça mesa de carvalho, rodeada de escanhos até ao topo, onde se
erguia, diante dum áspero mantel de linho coberto de pratos de estanho e
depichéis luzidios, a cadeira senhorial com o açor grossamente lavrado nas
altas espaldas, e delas suspensa, pelo cinturão tauxiado de prata, a espada de
Tructesindo. Por trásnegrejava a funda lareira apagada, toda entulhada de ramos
de pinheiro, com a prateleira guamecida de conchas, entre bocais de
sanguessugas, sob dois molhos de palmas trazidas da Palestina por Gutierres
Ramires, o de Ultramar. Rente a um esteio dachaminé, um falcão, ainda
emplumado, dormitava na sua alcândora; e ao lado, sobre as lajes, numa camada
de juncos, dois alões enormes dormiam também, com o focinho naspatas, as
orelhas rojando. Toros de castanheiro sustentavam a um canto um pipo de vinho.
Entre duas frestas engradadas de ferro, um monge, com a face sumida no capuz,
sentado na borda duma arca, lia, à claridade do candil que por cima fumegava,
umpergaminho desenrolado… Assim Gonçalo adornara a soturna sala Afonsina com
alfaias tiradas do tio Duarte, de Walter Scott, de narrativas do Panorama. Mas
que esforço!… Emesmo, depois de colocar sobre os joelhos do monge um fólio
impresso em Mogúncia por Ulrick Zell, desmanchara toda essa linha tão erudita,
ao recordar, com um murro na mesa, que ainda a Imprensa se não inventara em
tempos de seu avô Tructesindo, e queao monge letrado apenas competia «um
pergaminho de amarelada escrita…».

E
caminhando nos ladrilhos sonoros, desde a lareira até ao arco da porta
cerradopor uma cortina de couro, Tructesindo, com a branca barba espalhada
sobre os braços cruzados, escutava Mendo Pais, que, na confiança de parente e
amigo, jornadeara sem homens da sua mercê, cingindo apenas por cima do brial de
lã cinzenta uma espadacurta e um punhal sarraceno. Açodado e coberto de pó
correra Mendo Pais desde Coimbra para suplicar ao sogro, em nome do Rei e dos
preitos jurados, que se nãobandeasse com os de Leão e com as senhoras Infantas.
E já desenrolara ante o velho todos os fundamentos invocados contra elas pelos
doutos notários da cúria — as resoluções do Concílio de Toledo! a bula do
Apóstolo de Roma, Alexandre! o velhoforo dos Visigodos!… De resto, que
injúria fizera às senhoras Infantas seu real irmão, para assim chamarem hostes
leonesas a terras de Portugal? Nenhuma! Nem regedorianem renda dos castelos e
vilas da doação de D. Sancho lhes negava o senhor D. Afonso. O Rei de Portugal
só queria que nenhum palmo de chão português, baldio ou murado, jazesse fora de
seu senhorio real. Escasso e ávido, El-Rei D. Afonso?… Mas nãoentregara ele à
senhora D. Sancha oito mil morabitinos de oiro? E a gratidão da irmã fora o
Leonês passando a raia e logo caídos os castelos formosos de Ulgoso,
deContrasta, de Urros e de Lanhoselo! O mais velho da casa dos Sousas, Gonçalo
Mendes, não se encontrara ao lado dos cavaleiros da Cruz na jornada das Navas,
mas lá andava em recado das Infantas, como mouro, talando terra portuguesa
desde Aguiar atéMiranda! E já pelos cerros de Além -Douro aparecera o pendão
renegado das treze arruelas — e por trás, farejando, a alcateia dos Castros!
Carregada ameaça, e de armascristãs, oprimindo o Reino — quando ainda Moabitas
e Agarenos corriam à rédea solta pelos campos do Sul!… E o honrado senhor de
Santa Ireneia, que tão rijamente ajudara a fazer o Reino, não o deveria decerto
desfazer, arrancando dele os pedaços melhores paramonges e para donas rebeldes!
— Assim, com arremessados passos, exclamara Mendo

Pais, tão
acalorado do esforço e da emoção, que duas vezes encheu de vinho uma concade
pau e de um trago a despejou. Depois, limpando a boca às costas da mão trémula:

— Ide por
certo a Montemor, senhor Tructesindo Ramires! Mas em recado de paz e boa
avença, persuadir vossa senhora D. Sancha e as senhoras Infantas que
voltemhonradamente a quem hoje contam por seu pai e seu Rei!

O enorme
senhor de Santa Ireneia parara, pousando no genro os olhos duros, sob aruga das
sobrancelhas, hirsutas e brancas como sarças em manhã de geada: — Irei a
Montemor, Mendo Pais, mas levar o meu sangue e dos meus para que justiça logre,
quem justiça tem.Então Mendo Pais, amargurado, ante a heróica teima:

— Maior
dó, maior dó! Será bom sangue de Ricos -Homens, vertido por másdesforras…
Senhor Tructesindo Ramires, sabei que em Canta Pedra vos espera Lopo de Baião,
o Bastardo, para vos tolher a passagem com cem lanças!

Tructesindo
ergueu a vasta face — com um riso tão soberbo e claro que os alõesrosnaram
torvamente, e, acordando, o falcão esticou a asa lenta:


Boa-nova e de boa esperança! E, dizei, senhor mordomo -mor da cúria, tão
defeição e certa assim ma trazeis para me intimidar? — Para vos intimidar?…
Nem o senhor Arcanjo S. Miguel vos intimidaria, descendo do Céu com toda a sua
hoste e a sua espada de lume! De sobra o sei, senhorTructesindo Ramires. Mas
casei na vossa casa. E já que nesta lide não sereis por mim bem ajudado, quero,
ao menos, que sejais bem avisado.O velho Tructesindo bateu as palmas para
chamar os sergentes:

— Bem,
bem, a cear, pois! À ceia, Frei Múnio!… E vós, Mendo Pais, deixai receios.-
Se deixo! Não vos pode vir dano que me anseie de cem lanças, de duzentas, que
vos surjam a caminho.E, enquanto o monge enrolava o seu pergaminho, se acercava
da mesa — Mendo Pais ajuntou com tristeza, desafivelando vagarosamente o
cinturão da espada:

— Só um
cuidado me pesa. E é que, nesta jornada, senhor meu sogro, ides ficar demal com
o Reino e com o Rei. — Filho e amigo! De mal ficarei com o Reino e com o Rei,
mas de bem com ahonra e comigo! Este grito de fidelidade, tão altivo, não
ressoava no poemeto do tio Duarte. E quando o achou, com inesperada inspiração,
o Fidalgo da Torre, atirando a pena,esfregou as mãos, exclamou, enlevado:


Caramba! Aqui há talento!Rematou logo o capítulo. Estava esfalfado, à banca do
trabalho desde as nove horas, a reviver intensamente, e em jejum, as energias
magníficas dos seus fortes avós! Numerou as tiras — fechou na gaveta à chave o
volume do Bardo. Depois à janela, como colete desabotoado, ainda lançou o brado
genial num grave e rouco tom, como o lançaria Tructesindo: — «…de mal com o
Reino e com o Rei, mas de bem com a honra ecomigo!…» E sentia nele realmente
toda a alma de um Ramires, como eles eram no século XII, de sublime lealdade,
mais presos à sua palavra que um santo ao seu voto, e alegremente desbaratando,
para o manter, bens, contentamento e vida!O Bento, que espalhara outro repique
desesperado, escancarou a porta da livraria:

— É o
Pereira… Está lá em baixo no pátio o Pereira, que quer falar ao Sr.
Doutor.Gonçalo Mendes franziu a testa, com impaciência, assim repuxado daquelas
alturas onde respirava os nobres espíritos da sua raça:

— Que
maçada!… O Pereira… Que Pereira?O Pereira; o Manuel Pereira, da Riosa; o
Pereira Brasileiro. Era um lavrador, com casal na Riosa, chamado Brasileiro por
ter herdado vinte contos de um tio, regatão noPará. Comprara então terras,
trazia arrendada a Cortiga, a falada propriedade doscondes de Monte Agra,
envergava aos domingos uma sobrecasaca de pano fino, e dispunha de sessenta
votos na Freguesia.- Ah! Diz ao Pereira que suba, que conversamos enquanto
almoço… E põe outro talher.A sala de jantar da Torre, que abria por três
portas envidraçadas para uma funda varanda alpendrada, conservava, do tempo do
avô Damião (o tradutor de Valerius Flaccus), dois formosos panos de Arrás
representando a Expedição dos Argonautas.Louças da Índia e do Japão,
desirmanadas e preciosas, recheavam um imenso armário de mogno. E sobre o
mármore dos aparadores rebrilhavam os restos, ainda ricos, daspratas famosas
dos Ramires, que o Bento constantemente areava e polia com amor. Mas Gonçalo,
sobretudo de Verão, sempre almoçava e jantava na varanda luminosa e fresca, bem
esteirada, revestida até meio -muro por finos azulejos do séc ulo XVIII,
eoferecendo a um canto, para as preguiças do charuto, um profundo canapé de
palhinha com almofadas de damasco.Quando lá entrou, com os jornais da manhã que
não abrira, o Pereira esperava, encostado a um grosso guarda -sol de paninho
escarlate, considerando pensativamente a quinta que, dali se abrangia até aos
álamos da ribeira do Couce e aos outeiros suaves deValverde. Era um velho
esgalgado e rijo, todo ossos, com um carão moreno, de olhos miudinhos e
azulados, e uma barbicha rala, já branca, entre dois enormes colarinhospresos
por botões de oiro. Homem de propriedade, acostumado à Cidade e ao trato das
Autoridades, estendeu largamente a mão ao Fidalgo da Torre, e aceitou, sem
embaraço, a cadeira que ele lhe empurrara para a mesa — onde dominavam, com os
seus ricoslavores, duas altas infusas de cristal antigo, uma cheia de açucenas
e a outra de vinho verde.- Então, que bom vento o traz pela Torre, Pereira
amigo? Não o vejo desde Abril!

— É
verdade, meu Fidalgo, desde o sábado em que caiu a grande trovoada, navéspera
da eleição! — confirmou o Pereira afagando o cabo do guarda -sol, que
conservara entre os joelhos.Gonçalo, numa esfaimada pressa do almoço, repicou a
campainha de prata. Depois rindo:

— E os
seus votos, Pereira amigo, segundo o costume, lá foram para o eternoSanches
Lucena, direitinhos, como os rios vão para o mar!

O Pereira
também riu, com um riso agradado que lhe descobria os maus dentes.Pois o
círculo era uma propriedade do Sr. Sanches Lucena! Cavalheiro de fortuna, homem
de bem, conhecedor, serviçal… E então, quando lhe calhava como em Abril o
apoio do Governo, nem Nosso Senhor Jesus Cristo que voltasse à terra e se
propusessepor Vila Clara, desalojava o patrão da Feitosa! O Bento, vagaroso, de
jaqueta de lustrina preta sobre o avental resplandecente,entrava com um prato
de ovos estrelados, quando o Fidalgo, que desdobrara o guardanapo, o amarrotou,
arremessou com nojo:

— Este
guardanapo já serviu! Eu estou farto de gritar. Não me importa guardanaporoto,
ou com passagens, ou com remendos… Mas branquinho, fresquinho cada manhã, a
cheirar a alfazema!E reparando no Pereira, que discretamente arredava a
cadeira:

— O quê!
Você não almoça, Pereira?… Não, agradecia muito ao Fidalgo, mas nessa tarde
comia as sopas com o genro nosBravais, que era festa pelos anos do netinho.

— Bravo!
Parabéns, Pereira amigo! Dê lá um beijo meu ao netinho… Mas então aomenos um
copo de vinho verde. — Entre as comidas, meu Fidalgo, nem água nem vinho.
Gonçalo farejara, arredara os ovos. E reclamou o «jantar da família»,
sempremuito farto e saboroso na Torre, e começando por essas pesadas sopas de
pão, presunto e legumes, que ele desde criança adorava e chamava as palanganas.
Depois, barrandode manteiga uma bolacha:

— Pois
francamente, Pereira, esse seu Sanches Lucena não faz honra ao círculo! Homem
excelente, decerto, respeitável, obse quiador… Mas mudo, Pereira!
Inteiramentemudo!

O
lavrador roçou vagarosamente pelas ventas cabeludas o lenço vermelho,enrolado
em bola: — Sabe as coisas, pensa com acerto… — Sim! mas pensamento e acerto
não lhe saem de dentro do crânio! Depois estámuito velho, Pereira! Que idade
terá ele? Sessenta?


Sessenta e cinco. Mas de gente muito rija, meu Fidalgo. O avô durou até aoscem
anos. E ainda o conheci na loja… — Como, na loja? Então o Pereira, enrolando
mais o lenço, estranhou que o Fidalgo não soubesse ahistória do Sanches Lucena.
Pois o avô, o Manuel Sanches, era um linheiro do Porto, da

Rua das
Hortas. E casado também com uma moça muito vistosa, muito farfalhuda…- Bem! —
atalhou o Fidalgo. — Isso é honroso para o Sanches Lucena. Gente que engordou,
que trepou… E eu concordo, Pereira, o círculo deve mandar a Lisboa um homem
como o Sanches Lucena, que tenha nele terra, raízes, interesses, nome… Mas
épreciso que seja também homem com talento, com arrojo. Um deputado, que, nas
grandes questões, nas crises, se erga, transporte a Câmara!… E depois,
Pereira amigo,em Política, quem mais grita mais arranja. Olhe a estrada da
Riosa! Ainda em papel, a lápis vermelho… E, se o Sanches Lucena fosse homem
de berrar em S. Bento, já oPereira trazia por lá os seus carros a chiar.

O Pereira
abanou a cabeça, com tristeza:- Aí talvez o Fidalgo acerte… Para essa
estradinha da Riosa sempre faltou quem gritasse. Aí talvez o Fidalgo acerte!

Mas o
Fidalgo emudecera, embebido na cheirosa sopa, dentro duma caçoila nova,com
raminhos de -hortelã. E então o Pereira, acercando mais a cadeira, cruzou no
rebordo da mesa as mãos, que meio século de trabalho na terra tornara negras e
durascomo raízes — e declarou que se atrevera a incomodar o Fidalgo, àquelas
horas do almocinho, porque nessa semana começava um corte de madeiras para os
lados de Sandim, e desejava, antes que surdissem outros arranjos, conversar com
S. Ex.-a sobre oarrendamento da Torre…

Gonçalo
reteve a colher, num pasmo risonho:- Você queria arrendar a Torre, Pereira? —
Queria conversar com V. Ex-a. Como o Relho está despedido… — Mas eu já tratei
com o Casco, o José Casco dos Bravais! Ficámos meioapalavrados, há dias… Há
mais de uma semana.

O Pereira
coçou arrastadamente a barba rala. Pois era pena, grande pena… Ele sóno
sábado se inteirara da desavença com o Relho. E, se o Fidalgo não ressalvava o
segredo, por quanto ficara o arrendamento?

— Não
ressalvo, não, homem! Novecentos e cinquenta mil -réis.O Pereira tirou da
algibeira do colete a caixa de tartaruga, e sorveu detidamente uma pitada, com
o carão pendido para a esteira. Pois maior pena, mesmo para o Fidalgo.Enfim!
depois de palavra trocada… Mas era pena, porque ele gostava da propriedade;
já pelo S. João pensara em abeirar o Fidalgo; e, apesar dos tempos correrem
escassos, não andaria longe de oferecer um conto e cinquenta, mesmo um conto
cento e cinquenta!Gonçalo esqueceu a sopa, numa emoção que lhe afogueou a face
fina, ante um tal acréscimo de renda — e a excelência de tal rendeiro, homem
abastado, com metal nobanco, e o mais fino amanhador de terras de todas as
cercanias!

— Isso é
sério, oh Pereira? O velho lavrador pousou a caixa de rapé sobre a toalha, com
decisão:- Meu Fidalgo, eu não era homem que entrasse na Torre para caçoar com
V. Ex-a!

Proposta
a valer, escritura a fazer… Mas se o arrendamento está tratado…Recolheu a
caixa, apoiava a mão larga na mesa para se erguer, quando Gonçalo acudiu,
nervoso, empurrando o prato:

— Escute,
homem!… Eu não contei por miúdo o caso do Casco. Você compreende,sabe como
essas, coisas se passam… O Casco veio, conversámos; eu pedi novecentos e
cinquenta mil-réis e porco pelo Natal. Primeiramente concordou, que sim; logo
adiante,emendou, que não… Voltou com o compadre; depois, com a mulher e o
compadre, e o afilhado, e o cão! Depois só. Andou aí pela quinta, a medir, a
cheirar a terra; acho até que a provou. Aquelas rabulices do Casco!… Por fim,
uma tarde, lá gemeu, lá aceitou osnovecentos e cinquenta mil -réis, sem porco.
Cedi do porco. Aperto de mão, copo de vinho. Ficou de aparecer para combinar,
tratar da escritura. Não o avistei mais, há quaseduas semanas! Naturalmente já
virou, já se arrependeu… Para resumir, não tenho com o Casco contrato
firme… Foi uma conversa em que apenas estabelecemos, como base, a renda de
novecentos e cinquenta. E eu, que detesto coisas vagas, já andava pensando
emencontrar melhor homem!

Mas o
Pereira coçava o queixo, desconfiado. Ele, em negócios, gostava de
lisura.Sempre se entendera bem com o Casco. Nem por um condado se atravessaria
nos arranjos do Casco, homem violento, assomado. De modo que desejava as coisas
claras, para não surdir desgosto rijo. Não se lavrara escritura, bem! Mas
ficara, ou não, palavradada entre o Fidalgo e o Casco?

Gonçalo
Mendes Ramires, que findara apressadamente a sopa e enchia um copode vinho
verde para se calmar, fitou o lavrador, quase severamente: — Homem, essa
pergunta!… Pois se eu tivesse confirmado ao Casco decisivamente a palavra de
Gonçalo Ramires, estava agora aqui a tratar, ou sequer a conversar
consigo,Pereira, sobre o arrendamento da Torre?

O Pereira
baixou a cabeça. Também era verdade!… Pois, nesse caso, ele abria asua
tenção, claramente. E, como conhecia a propriedade, e apurara o seu cálculo —
oferecia ao Fidalgo um conto cento e cinquenta mil -réis, sem porco. Mas não
dava para a família nem leite, nem hortaliça, nem fruta. O Fidalgo, homem só,
pouco seaproveitava. A Torre, porém, casa antiga, enxameava de gentes e de
aderentes. Todos apanhavam, todos abusavam… Enfim, esse era o seu princípio E
de resto, para a mesado Fidalgo e mesmo dos criados, bastava o pomar e a horta
de regalo… Que horta e pomar necessitavam trato mais jeitoso; mas ele, por
amor do Fidalgo, e gosto seu, por lá passaria e tudo luziria… Enquanto às
outras condições, aceitava as do antigoarrendamento. E escritura assinada para
a outra semana, no sábado… Estava feito?

Gonçalo,
depois de um momento em que pestanejou nervosa e tremulamente,estendeu a mão
aberta ao Pereira: — Toque! Agora sim! Agora fica palavra dada! — E Nosso
Senhor lhe ponha virtude — concluiu o Pereira, firmado no imensoguarda-sol para
se erguer. — Então no sábado, em Oliveira, para a escritura… Assina V.

Ex-a ou o
Sr. Padre Soeiro?Mas o Fidalgo calculava:

— Não,
homem, não pode ser! No sábado, com efeito, estou em Oliveira, mas são os anos
da mana Maria da Graça…O Pereira destapou de novo os maus dentes, num riso de
estima:

— Ah! e
como vai a Sr a D. Maria da Graça? Há que idades a não vejo! Desde oano
passado, na procissão de Passos, em Oliveira… Muito boa senhora! Muito dada!
E o Sr. José Barrolo? Pessoa excelente também, a valer, o Sr. José Barrolo… E
que terra a dele, a Ribeirinha! A melhor propriedade destas vinte léguas em
redor! Lindapropriedade! A do André Cavaleiro, que lhe está pegada, a Biscaia,
não se lhe compara — é como cardo ao pé de couve.O Fidalgo da Torre descascava
um pêssego, sorrindo:

— Do
André Cavaleiro nada presta, Pereira! Nem terra, nem alma! O lavrador pareceu
surpreendido. Ele imaginava que o Fidalgo e o Cavaleirocontinuavam chegados e
amigos… Não em Política! Mas particularmente, como cavalheiros…- O quê? Eu
e o Cavaleiro? Nem como cavalheiro nem como político. Que ele nem é cavalheiro
nem político. É apenas cavalo, e ressabiado.

O Pereira
ficou silencioso, com os olhos na toalha. Depois, resumindo:- Então está
entendido, no sábado, na cidade. E, se não faz transtorno ao Fidalgo, passamos
pelo tabelião Guedes, e fica o feito arrumado. O Fidalgo, naturalmente, vaipara
a casa da senhora sua mana…

— Sempre.
Apareça você às três horas. Lá conversamos com o Padre Soeiro. — Também há que
idades não encontro o Sr. Padre Soeiro!- Oh! esse ingrato, agora, raramente
aparece na Torre. Sempre em Oliveira, com a mana Graça, que é a menina dos seus
encantos… Então nem um cálice de vinho doPorto, Pereira?… Bem, até sábado.
Não esqueça o beijinho para o neto.

— Cá me
vai no coração, meu Fidalgo… Ora essa! Pois consentia eu que V. Ex-a
selevantasse? Sei perfeitamente a escada, e ainda passo pela cozinha para
debicar com a tia Rosa. já desde o tempo do paizinho de V. Ex. a, que Deus
haja, conheço bem aTorre!… E sempre me esperancei de trazer nesta quinta uma
lavoura a meu gosto, de consolar!

Durante o
café, esquecido dos jornais, Gonçalo gozou a exce lência daquele negócio.
Duzentos mil -réis mais de renda. E a Torre tratada pelo Pereira, com aqueleamor
da terra e saber de lavra que transformara o chavascal do Monte Agra numa
maravilha de seara, vinha e horta!… Além disso, homem abastado, capaz de um
adiantamento. E eis ai mais uma evidência do valor da Torre, esse afinco do
Pereira ema arrendar, ele tão apertado, tão seguro… Quase se arrependia de
lhe não ter arrancado um conto e duzentos. Enfim, a manhã fora fecunda! E,
realmente, nenhum acordofirmado o colava ao Casco. Entre eles apenas se
esboçara uma conversa, sobre um arrendamento possível da Torre, a debater
depois miudamente, numa base nova de novecentos e cinquenta mil -réis… E que
insensatez se ele, por escrupuloso respeitodessa conversa esboçada, recusasse o
Pereira, retivesse o Casco, lavrador de rotina — dos que raspam a terra para
comer, e a deixam cada ano deperecendo, mais cansada echupada!…

— Bento,
traz charutos! E o Joaquim que tenha a égua selada das cinco para as cinco e
meia. Sempre vou à Feitosa… Hoje é o dia!Acendeu um charuto, voltou à
livraria. E, imediatamente, releu o final magnífico:

«De mal
com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra e comigo!» — Ah! como
aligritava a alma inteira do velho português, no seu amor religioso da palavra
e da honra! E, com a tira de almaço entre os dedos, junto da varanda, considerou
um momento a Torre, as poeirentas frestas engradadas de ferro, as resistentes
ameias, ainda inteiras,onde agora adejava um bando de pombas… Quantas manhãs,
às frescas horas de alva, o velho Tructesindo se encostara àquelas ameias,
então novas e brancas! Toda a terra emredor, semeada ou bravia, decerto
pertencia ao poderoso Rico -Homem. E o Pereira, nesse tempo colono ou servo, só
abordava o seu senhor de joelhos e tremendo! Mas não lhe pagava um conto cento
e cinquenta mil -réis de sonora moeda do Reino. Também,que diabo, o vovô
Tructesindo não precisava… Quando os sacos rareavam nas arcas, e os acostados
rosnavam por tardança de soldo, o leal Rico -Homem, para se prover, tinhaas
tulhas e as adegas dos Concelhos mal defendidos — ou então, numa volta de
estrada, o ovençal voltando de recolher as rendas reais, o bufarinheiro genovês
com os machos ajoujados de trouxas. Por baixo da Torre (como lhe contara o
papá) ainda negrejava amasmorra feudal, meio atulhada, mas com restos de
correntes chumbadas aos pilares, e na abóbada a argola de onde pendia a polé, e
no lajedo os buracos em que se escorava opotro. E, nessa surda e húmida cova,
ovençal, bufarinheiro, clérigos e mesmo burgueses de foro uivavam sob o açoite
ou no torniquete, até largarem, agonizando, o derradeiro morabitino. Ah! a
romântica Torre, cantada tão meigamente ao luar pelo Videirinha,quantos
tormentos abafara!…

E de
repente, com um berro, Gonçalo agarrou de sobre a mesa um volume deWalter
Scott, que atirou sem piedade, como uma pedra, contra o tronco de uma faia. É
que descortinara o gato da Rosa cozinheira, trepado, de unhas fincadas num
ramo, arqueando a espinha, para assaltar um ninho de melros.

Quando
nessa tarde o Fidalgo da Torre, airoso no seu fato novo de montar,polainas de
couro polido, luvas de camurça branca, parou a égua ao portão da Feitosa -um
velho todo esfarrapado, com longos cabelos caídos pelos ombros e imensas barbas
espalhadas pelo peito, imediatamente se ergueu do banco de pedra onde comia
rodelasde chouriço, bebendo duma cabaça, para o avisar que o Sr. Sanches Lucena
e a Srª D. Ana andavam por fora, de carruagem. Gonçalo pediu ao velho que
puxasse o ferro dasineta. E entregando um cartão ao moço, que entreabrira a
rica grade dourada, com um S e um L entrelaçados sob uma coroa de conde:

— O Sr.
Sanches Lucena, bem?- O Sr. Conselheiro, agora, um pouquinho melhor…

— O quê?
Esteve doente?Pois o Sr. Conselheiro, aqui há três ou quatro semanas, andou
muito agoniado… — Oh! Sinto muito… Diga ao Sr. Conselheiro que sinto muitíssimo!
Chamou o velho que repicara a sineta para o recompensar com um tostão.
E,interessado por aquelas barbaças e melenas de mendigo de melodrama:


Vossemecê pede esmola por estes sítios?O homem ergueu para ele os olhos sujos,
avermelhados da poeira e do sol, mas risonhos, quase contentes:

— Também
me chego pela Torre, meu Fidalgo. E, graças a Deus, lá me fazemmuito bem.

— Então
quando lá voltar diga ao Bento… Você conhece o Bento?- Se conhecia! E a Sr a
Rosa… — Pois diga ao Bento que lhe dê uma calças, homem! Você assim, com
essas calças, não -anda decente.O velho riu, num riso lento e desdentado,
mirando com gosto os sórdidos farrapos que lhe trapejavam nas canelas, mais
denegridas e secas que galhos de Inverno:- Rotinhas, rotinhas… Mas o Sr. Dr.
Júlio diz que me ficam assim bem. O Sr. Dr. Júlio, quando lá passo, sempre me
tira o retrato na máquina. Ainda na semana passada… Até com uns pedaços de
grilhões dependurados do pulso, e uma espada erguida namão… Parece que para
mostrar ao Governo.

Gonçalo,
rindo, picou a égua. Pensava agora em alongar por Valverde; depoisrecolheria
por Vila Clara, e tentaria o Gouveia a partilhar na Torre um cabrito assado no
espeto de cerejeira, para que ele na véspera, na Assembleia, convidara o Manuel
Duarte e o Titó. Mas ao atravessar a «Cruz das Almas», onde a estrada de
Corinde, tão linda,com as suas filas de álamos, cruza a ladeira de Valverde,
parou -notando ao fundo, para o lado de Corinde, como o confuso esbarro duma
carrada de lenha, e uma carriola deaçougue, e uma mulher de lenço escarlate
bracejando sobre a albarda dum burro, e dois lavradores de enxada às costas. E,
de repente, todo o encalhe se despegou — a mulher trotando no seu burrinho,
logo sumida numa volta de arvoredo; a carriola solavancandonum rolo leve de
poeira; o carro avançando para a «Cruz das Almas» a chiar tardamente; os
cavadores descendo para uma chá através das leiras de feno… Na estradasó
restou, como desamparado, um homem de jaqueta ao ombro, que se arrastava
penosamente, coxeando. Gonçalo trotou, com curiosidade:

— Que
foi?… Vossemecê que tem?O homem, com a perna encolhida, levantou para Gonçalo
uma face arrepanhada, quase desmaiada, que reluzia sob as camarinhas de suor:-
Nosso Senhor lhe dê muito boas -tardes, meu Fidalgo! Ora o que há -de ser?
Desgraças desta vida!

E,
gemendo, contou a sua história. — Desde meses padecia duma chaga numtornozelo,
que não secara, nem com emplastros, nem com pó de murtinhos, nem com
benzeduras… E agora andava arriba, na fazenda do Sr. Dr. Júlio, a consertar
um socalco,para ajudar um compadre também doente com maleitas — e, zás, desaba
um pedregulho, que topa na ferida, leva a carne, lasca o osso, o deixa naquela
lástima!… Até rasgara afralda para ensopar o sangue e amarrar por cima o
lenço.

— Mas
assim não pode andar, homem! De onde é vossemecê?- De Corinde, meu Fidalgo.
Manuel Solha, do lugar da Finta. Até lá, sempre me hei-de arrastar.

— E
então, dessa gente toda, que aí estava há bocado, ninguém o pôde ajudar?…Uma
carriola, dois latagões…

Uma rija
guinada, no teimoso esforço de firmar a perna, arrancou um grito aoSolha. Mas
sorriu, arquejando… Que queria o Fidalgo? Cada um, neste mundo, tem a sua
pressa… Enfim, a rapariga do burro prometera passar pela Finta, para avisar.
E talvez um dos seus rapazes aparecesse na estrada com uma eguazita que ele
comprarapela Páscoa — e que, por desgraça, também mancava!…

Imediatamente,
com um salto leve, o Fidalgo da Torre desmontou:- Bem! Então, égua por égua, já
vossemecê tem aqui esta… O Solha embasbacou para Gonçalo: — Ora essa! Santo
nome de Deus!… Pois eu havia de ir a cavalo, e V. Ex-a a pé?- Gonçalo ria:

— Homem,
com essas discussões de «eu a pé» e «você a cavalo», e «faz favor» e«não
senhor», é que perdemos um tempo precioso. Monte, esteja quieto, e trote para a
Finta!

O outro
recuava para a valeta da estrada, sacudindo a cabeça, esgazeado, como noespanto
de um sacrilégio:

— Isso é
que não, meu senhor, isso é que não! Antes eu acabasse aqui à míngua,com a
chaga em bolor! Gonçalo bateu o pé, com autoridade: — Monte, que mando eu!
Vossemecê é um lavrador de enxada, eu sou um Doutorformado em Coimbra, sou eu
que sei, sou eu que mando!

E o
Solha, logo submisso ante aquela força deslumbrante do Saber superior,agarrou
em silêncio a crina da égua, enfiou respeitosamente o estribo, ajudado pelo
Fidalgo, que, sem tirar as luvas brancas, lhe amparava o pé entrapado e
manchado de sangue.Depois, quando ele repousou no selim com um ah! consolado: —
Então que tal?O homem só murmurava o nome de Nosso Senhor, na gratidão e no
assombro daquela caridade:

— Mas
isto é a volta do Mundo… Eu aqui, na égua do Fidalgo! E o Fidalgo, o
Sr.Gonçalo Ramires, da Torre, a pé pela estrada!

Gonçalo
gracejou. E, para entreter a caminhada, perguntou pela quinta do Dr.Júlio que,
agora, se arrojara a obras e plantações de vinha. Depois, como o Manuel Solha
conhecia o Pereira Brasileiro (que pensara em arrendar as terras do Dr. Júlio),
conversaram sobre esse esperto homem, sobre as grandezas da Cortiga. já
semembaraço, direito no selim, no gosto daquela intimidade com o Fidalgo da
Torre, o

Solha
esquecia a chaga, a dor que adormentara. E à estribeira do Solha, atento
esorrindo, o Fidalgo estugava o passo na poeira branca.

Assim se
avizinhavam da Bica Santa, um dos sítios decantados daquelas cercanias
formosas. Aí a estrada, cortada na encosta dum monte, alarga e forma um
arejadoterraço, de onde se abrange todo o vale de Corinde, tão rico em casais,
em arvoredos, em searas, em águas. No pendor do monte, coberto de carvalhos e
de fragas musgosas,brota a fonte nomeada, que já em tempos de El-Rei D. João V
curava males de entranhas — e que uma devota senhora de Corinde, D. Rosa
Miranda Carneiro, mandou encanar desde o alto até a um tanque de mármore, onde
agora corre beneficamente, poruma bica de bronze, sob a imagem e patrocínio de
Santa Rosa de Lima. De cada lado do tanque se encurvam dois compridos bancos de
pedra, que a espalhada ramaria dascarvalheiras tolda de sombra e frescura. E um
suave retiro onde se apanham violetas, se comem merendas, e senhoras dos
arredores se sentam em rancho, nas tardinhas de domingo, escutando os melros,
gozando a povoada, luminosa e verdejante largueza dovale.

Antes,
porém, de desembocar na Bica Santa, e perto do lugar do Serdal, a estradade
Corinde quebra numa volta: — e, aí, de repente, a égua pulou, num reparo, que
obrigou o Fidalgo da Torre, desconfiado da perícia do Solha, a deitar a mão à
caimba do freio. Fora o encontro inesperado duma carruagem — uma caleche
forrada de azul, com aparelha coberta de redes brancas contra a mosca, e na
almofada, teso, um cocheiro de bigode, farda de gola escarlate e chapéu de tope
amarelo. E Gonçalo mantinha ainda aégua pelo freio, como arrieiro serviçal em
trilho perigoso — quando avistou, sentado num dos bancos de pedra, junto da
Bica, com um xale -manta por cima dós joelhos, o velho Sanches Lucena. Ao lado
o trintanário, agachado, esfregava com um molho deerva a botina que a bela D.
Ana lhe estendia, apanhando o vestido de linho cru, apoiando a outra mão, sem
luva, na cinta vergada e fina.A desconcertada aparição do Fidalgo da Torre,
puxando pela rédea a sua égua, onde se escarranchava regaladamente um cavador
em mangas de camisa, alvorotou aquele repousado e dormente recanto da Bica.
Sanches Lucena esbugalhava os olhos,esbugalhava os óculos, num arremesso de
curiosidade que o levantara, com o pescoço esticado, o xale -manta escorregado
para a relva. D. Ana recolheu bruscamente a botina,logo empertigada, na
gravidade condigna da senhora da Feitosa, retomando como umainsígnia o cabo de
ouro da luneta de ouro, suspensa por um cordão de ouro. E até o trintanário ria
pasmadamente para o Solha.Mas já, com o seu desembaraço elegante, Gonçalo, num
relance, saudara D. Ana, apertava com fervor a mão espantada do Sanches Lucena,
e, alegremente, secongratulava por aquele encontro ditoso! Pois vinha
justamente da Feitosa! E aí souberacom desgosto, por um moço da quinta, decerto
exagerado, que o Sr. Conselheiro, nas últimas semanas, andara doente… E,
então como estava? como estava? — Oh! afisionomia era excelente!

— Pois
não é verdade, Srª D. Ana? O aspecto é excelente!Com um leve requebro da
cabeça, um fofo ondear do molho de plumas brancas sobre o chapéu de palha
vermelha, ela volveu numa voz rolada, lenta e gorda, que arrepiou Gonçalo:- O
Sanches agora, graças a Deus, desfruta melhor saúde…

— Um
pouco melhor, sim, com efeito, muito agradecido a V. Ex-a, Sr. GonçaloRamires!
— murmurou o descarnado e corcovado homem, repuxando para os joelhos o
xale-manta.

E, com os
óculos a luzir, cravados em Gonçalo, na curiosidade que o abrasava,quase lhe
rosara a face afilada, mais amarela que um círio:

— Mas,
com perdão de V. Ex-a! como é que V. Ex-a anda por aqui, pela estrada
deCorinde, neste estado, a pé, trazendo à rédea um lavrador de enxada?…
Rindo, sobretudo para D. Ana, cujos olhos formosamente negros, duma funda
refulgência liquida, também esperavam, sérios e reservados, Gonçalo contou o
desastredo bom homem, que encontrara no caminho gemendo, arrastando a perna
escalavrada…

— De
sorte que lhe ofereci a minha égua… E até, se V. Ex-a me permite,
minhasenhora, é necessário que eu combine com ele o resto da jornada…

 Rapidamente, voltou ao Solha, que, de novo
acanhado ante os senhores da Feitosa, com o chapéu na mão, encolhido sobre o
selim, como atenuando a sua grandeza, logo se desestribou para desmontar. Mas
já Gonçalo lhe ordenava que trotassepara a Finta — e lhe mandasse a égua por um
dos seus rapazes, ali à Bica Santa, onde ele se demorava com o Sr. Conselheiro.
E quando o Solha largou, saudando, desabaladamente, torcido, como impelido a
seu pesar pelos acenos risonhos com que oFidalgo o despedia, o assombro do
Sanches Lucena recomeçou:

— Ora uma
coisa destas! Eu tudo esperaria, tudo, menos o Sr. Gonçalo MendesRamires a
trazer à rédea, pela estrada de Corinde, um cavador de enxada! É a repetição do
Bom Samaritano… Mas para melhor!

Gonçalo
gracejou, sentado no banco, junto de Sanches Lucena. — Oh! o BomSamaritano não
merecera uma página tão amável no Evangelho, somente por oferecer o burro a um
levita doente: decerto mostrara virtudes mais belas… — E sorrindo para D.Ana,
que, do outro lado de Sanches Lucena, espalhava a luneta, com lentidão
majestosa, pelas árvores e pela fonte que tão bem conhecia:

— Há dois
anos, minha senhora, que eu não tenho a honra…Mas Sanches Lucena despediu um
grito:

— Oh! Sr.
Gonçalo Ramires! V. Ex-a traz sangue na mão!O Fidalgo reparou, espantado. Sobre
a luva de camurça branca ressaltavam duas manchas arroxeadas:

— Não é
sangue meu! foi naturalmente quando o Solha montou, e eu lhe segurei opé
escalavrado…

Arrancou
a luva, que arremessou para as ervas bravas, por trás do banco de pedra.E
continuando o sorriso: — Com efeito, não tenho a honra de encontrar a V. Ex-a,
minha senhora, desde o baile do barão das Marges, em Oliveira, o famoso baile
de Entrudo… Há mais de doisanos, era eu estudante. E ainda me recordo que V.
Ex-a estava vestida esplendidamente de Catarina da Rússia…E, enquanto a
envolvia no sorrir dos olhos finos e meigos, pensava: -«Formosa criatura! mas
ordinária! e que voz!…» D. Ana também se recordava do baile dos Marges:- O
cavalheiro, porém, está equivocado. Eu não fui de Russa, fui de Imperatriz…

— Sim, de
Imperatriz da Rússia, de Grande Catarina… E com um gosto! com umluxo! Sanches
Lucena voltou vagarosamente para Gonçalo os óculos de ouro, apontou um dedo
alongado e lívido:- Pois também eu me lembro que sua mana, e minha senhora, a
Srª D. Graça, trazia um traje de lavradeira de Viana… Foi uma luzidíssima
festa; nem admira; o nossoMarges é sempre primoroso… E desde essa noite não
tornei a encontrar a mana de V. Ex-a em intimidade. Apenas de longe, na
missa…

De resto,
pouco residia agora em Oliveira, apesar de conservar a casa montada,criadagem e
cocheira — porque, ou culpa do ar ou culpa da água, não se dava bem na
cidade.Gonçalo acalorou mais o seu interesse:

— Mas
então, realmente, V. Ex-a o que tem tido? Sanches Lucena sorriu, com amargura.
Os médicos, em Lisboa, não se entendiam.Uns atribuíam ao estômago — outros
atribulam ao coração. Portanto, aqui ou ali, víscera essencial atacada. E
sofria crises — más crises… Enfim, com a graça de Deus, e regime, eleite, e
descanso, ainda esperava arrastar uns anos.

— Oh! com
certeza! — exclamou Gonçalo alegremente. — E V. Ex-a não pensa que aestada em
Lisboa, e as Câmaras, e a Política, a terrível Política, o fatiguem, o
agitem?… Não, pelo contrário, Sanches Lucena passava toleravelmente em
Lisboa. Melhormesmo que na Feitosa! Depois, gostava daquela distracção das Câmaras.
E comoconservava amigos na Capital, uma roda escolhida, uma roda fina…

— Um
desses nossos excelentes amigos, V. Ex-a decerto conhece. Ele é parente deV.
Ex-a… O D. João da Pedrosa. Gonçalo, alheio ao homem, mesmo ao nome, murmurou
polidamente:- Sim, o D. João, decerto… E Sanches Lucena, passando pelas
suíças brancas a mão magríssima, quase transparente, onde reluzia um enorme
anel de armas de safira:E não somente o D. João… Outro dos nossos amigos é
igualmente parente de V.

Ex. a, e
chegado. Muitas vezes temos falado de V. Ex-a, e da sua casa. Que ele
pertencetambém à primeira nobreza… É o Arronches Manrique.


Cavalheiro muito dado, muito divertido! — acrescentou D. Ana, com uma convicção
que lhe alteou o peito, a que o corpete justo marcava a força viçosa e
aperfeição.

A Gonçalo
também nunca chegara esse nome sonoro. Mas não hesitou:- Sim, perfeitamente, o
Manrique… De resto, eu tenho tantos parentes em Lisboa, e vou tão pouco a
Lisboa!… E V. Ex -a Sr a D. Ana…

Mas o
Sanches Lucena insistia, deliciado naquela conversa de parentescosfidalgos:

— V. Ex-a
naturalmente, tem em Lisboa toda a sua parentela histórica. Assim eucreio que
V. Ex-a é primo do Duque de Lourençal… O Duarte Lourençal! Ele não usa o
título, por Miguelismo, ou antes por hábito; mas enfim é o legítimo Duque de
Lourençal… É quem representa a casa de Lourençal.Gonçalo, sorrindo
atentamente, desabotoara o fraque, procurava a sua velha charuteira de couro.-
Sim, com efeito, o Duarte… Somos primos. Diz ele que somos primos. E eu
acredito. Entendo tão pouco de árvores de costado!… De facto as casas em
Portugal andam muito cruzadas; todos somos parentes, não só pelo lado de Adão,
mas pelosGodos… E V. Ex-a, Srª D. Ana, prefere a estada em Lisboa?

Mas,
reparando que escolhera um charuto, distraidamente o trincara:- Oh! perdão,
minha senhora… Ia fumar sem saber se V. Ex-a… Ela saudou, descendo as
longas pestanas: — O cavalheiro pode fumar; o Sanches não fuma, mas eu até
aprecio o cheiro.Gonçalo agradeceu, enjoado com aquela voz redonda e gorda,
aqueles horrendos

«cavalheiro,
o cavalheiro !…» Mas pensava: «que linda pele! que bela criatura!…»
ESanches Lucena, inexorável, estendera o dedo agudo:

— Pois eu
conheço muito, não o Sr. D. Duarte Lourençal, não tenho essa subida honra por
ora, mas seu irmão, o Sr. D. Filipe. Cavalheiro estimabilíssimo, como V.
Ex-adecerto sabe… E depois, que talento… Que talento, no cornetim!

— Ah!- O
quê! V. Ex-a não ouviu seu primo, o Sr. D. Filipe Lourençal, tocar cornetim? E
até a bela D. Ana se animou, com um sorriso lânguido dos beiços cheios, mais
vermelhos que cerejas maduras, sobre o fresco rebrilho dos dentes pequeninos:-
Oh! toca ricamente! O Sanches gosta muito de música; eu também… Mas, como

V. Ex-a
compreende, aqui na aldeia, com a falta de recursos…Gonçalo, arremessando o
fósforo, exclamara logo, num sincero interesse:

— Então,
queria que V. Ex-a ouvisse um amigo meu, que é verdadeiramentesublime no
violão, o Videirinha!… Sanches Lucena estranhou o nome, a sua vulgaridade. E
o Fidalgo, singelamente:- É um rapaz muito meu amigo, de Vila Clara… O José
Videira, ajudante de Farmácia…

Os óculos
de Sanches Lucena cresceram de puro espanto:- Ajudante de Farmácia e amigo do
Sr. Gonçalo Mendes Ramires!

Sim,
desde estudante, dos exames do Liceu. Até o Videirinha passava as férias
naTorre, com a mãe, antiga costureira da casa. Tão bom rapaz, tão simples… E
na realidade, no violão, um génio!

— Agora
tem ele uma cantiga admirável que chamou o Fado dos Ramires. Amúsica é com efeito
um fado de Coimbra, um fado conhecido. Mas os versos são dele, umas quadras
engraçadas sobre coisas da minha Casa, lendas, patranhas… Pois ficousublime!
Ainda há dias na Torre, comigo e com o Titó…

E a este
nome, familiar e menineiro, Sanches Lucena mostrou outro reparo: — O Titó?O
Fidalgo ria:

— É uma
velha alcunha de amizade que nós damos ao António Vilalobos.Então Sanches
Lucena atirou ambos os braços, como se alguém muito querido aparecesse na
estrada:

— O
António Vilalobos! Mas esse é um dos nossos fiéis e bons amigos!
Cavalheiroestimabilíssimo! Quase todas as semanas nos faz o favor de aparecer
pela Feitosa… E agora era o Fidalgo que pasmava ante essa intimidade a que
nunca o Titóaludira, quando no Gago, na Torre, na Assembleia, se berrava, politicando,
o nome do

Sanches
Lucena!

— Ah! V.
Ex-a conhece…Mas D. Ana, que se erguera bruscamente do banco, e, debruçada,
recolhia a luva e a sombrinha — lembrou ao marido o esfriar lento da tarde, a
neblina subindo sempreàquela hora do vale aquecido:

— Sabes
que nunca te faz bem… E também não faz bem à parelha, assim parada, há tanto
tempo.Imediatamente Sanches Lucena, receoso, puxara da algibeira um espesso
lenço de seda branca, para abafar o pescoço. E, receoso também pela parelha,
logo se arrancoupesadamente do banco de pedra, com um aceno cansado ao
trintanário para apanhar o xale, avisar o cocheiro. Mas ainda atravessou,
vergado e arrimado à bengala, para o parapeito que resguarda a estrada sobre o
despenhado pendor do monte, dominando ovale. E confessava a Gonçalo que aquele
era, nos arredores da Feitosa, o seu passeio preferido. Não só pela beleza do
sítio, já cantado pelo «nosso mavioso Cunha Torres»; -mas porque do terraço da
Bica, sem esforço, sentado no banco, avistava numa largueza terras suas:

— Olhe V.
Ex. a… Para além daquele souto, até à chá e ao cômoro onde está acasota
amarela e por trás o pinhal, tudo é meu… O pinhal ainda é meu… Acolá, do
renque de álamos para diante, depois do lameiro, é também meu… Ali, do lado
daermida, pertence ao Monte Agra… Mas, mais para lá, passado o azinhal, pelo
monte acima, é tudo meu!

O lívido
dedo, o braço escanifrado na manga de casimira preta, cresciam por sobreo vale.
— Além os pastos… Adiante os centeios… Depois o bravio… — Tudo dele! E,
por trás da magra figura alquebrada, de chapéu enterrado na nuca, o abafo de
seda subidoaté às pálidas orelhas quase despegadas, D. Ana, esbelta, clara e sã
como um mármore, com um sorriso esquecido nos lábios gulosos, o formoso peito
mais cheio, acompanhava a enumeração copiosa, fincava a luneta sobre os pastos,
e os pinhais, e oscenteios, sentindo já — tudo dela!

— E agora
acolá, detrás do olival — concluiu Sanches Lucena com respeito — é sítioseu,
Sr. Gonçalo Mendes Ramires… — Meu?… — De V. Ex. a, quero dizer, ligado à
casa de V. Ex-a. Pois não reconhece?… Além,por trás do moinho, passa a
estrada de Santa Maria de Craquede. São os túmulos dos seus antepassados…
Passeio que eu também às vezes faço, e com gosto. Ainda há ummês visitámos
detidamente as ruínas. E acredite que fiquei impressionado! Aquele bocado de
claustro tão antigo, os grandes esquifes de pedra, a espada chumbada à abóbada
por cima do túmulo do meio… E de comover! E achei muito bonito, muitofilial,
da parte de V. Ex-a, o ter sempre aquela lâmpada de bronze acesa, de noite e de
dia… Gonçalo engrolou um murmúrio risonho — porque não se recordava da
espada, nunca recomendara a lâmpada. Mas Sanches Lucena, agora, suplicava um
precioso favor ao Sr. Gonçalo Mendes Ramires. E era que S. Ex-a lhe concedesse
a honra de oconduzir na carruagem à Torre… Alvoroçadamente Gonçalo recusou.
Nem podia! combinara com o homem da perna dorida esperar ali, na Bica, pela sua
égua.- Mas fica aqui o meu trintanário, que leva a égua de V. Ex-a à Torre.

— Não,
não, se V. Ex-a me permite, eu espero… Depois meto pelo atalho da Crassa,
porque tenho às oito horas na Torre, à minha espera para jantar, o Titó.D. Ana,
do meio da estrada, apressou logo o marido sacudidamente, com a ameaça renovada
da friagem, do relento… Mas, junto da caleche, Sanches Lucena aindaemperrou
para afirmar a Gonçalo, com a descarnada mão sobre o encovado peito, que aquela
tarde lhe ficava célebre…

— Porque
vi uma coisa que poucas vezes se terá visto: o maior fidalgo de Portugal,a pé
pela estrada de Corinde, levando à rédea no seu próprio cavalo um cavador de
enxada!Ajudado por Gonçalo, trepou enfim pesadamente ao estribo. D. Ana já se
enterrara nas almofadas, alçando entre as mãos, como uma insígnia, o cabo
rebrilhante da luneta de ouro. O trintanário também se entesou, cruzou os
braços; e a calecheaparatosa, com as manchas brancas das redes dos cavalos,
mergulhou no silêncio e na penumbra da estrada, sob a espalhada ramaria das
faias.«Que maçada!» exclamou Gonçalo. E não se consolava de tarde tão linda
assim desperdiçada… Intolerável, esse Sanches Lucena, com o Sr. D. Fulano e o
Sr. D. Sicrano, e a sua gula de «roda fina», e «tudo dele» por colina e vale! A
mulher,esplêndida peça de carne, como filha de carniceiro — mas sem migalha de
graça ou alma. E que voz, Jesus, que voz! Gente pedante e sabuja… — E agora
só desejavarecuperar a sua égua, galopar para a Torre, e desabafar com o Titó,
familiar da Feitosa!o seu asco por toda aquela Sancharia.

A égua
não tardou, a trote largo, montada pelo filho do Solha, que, ao avistar
oFidalgo, saltou à estrada, de chapéu na mão, encouchado e encarnado,
balbuciando que o pai chegara bem, pedia a Nosso Senhor lhe pagasse a
caridade…- Bem, bem! Recados a teu pai. Que estimo as melhoras. Lá mandarei
saber.

Num pulo
montara — galopava pelo fácil atalho da Crassa. Mas, diante do portão da Torre,
encontrou um moço do Gago, com um bilhete do Titó, anunciando que nãopodia
jantar na Torre, porque partia nessa semana para Oliveira!

— Que
disparate! Para Oliveira também eu parto; mas janto hoje! Atécombinávamos, o
levava na carruagem… Ele que ficou a fazer, o Sr. D. António? O rapaz coçou
pensativamente a cabeça:

— O Sr.
D. António passou lá por casa para eu trazer o bilhete ao Fidalgo…Depois,
creio que tem festa, porque entrou defronte no tio Cosme fogueteiro, a comprar
bichas-de-rabear…Aquelas inesperadas bichas -de-rabear causaram logo ao
Fidalgo uma imensa inveja:

— E onde
é a festa, sabes?- Eu não sei, meu Fidalgo… Mas parece que é coisa rija,
porque o Sr. João

Gouveia
encomendou lá ao patrão dois grandes pratos de bolos de bacalhau.Bolos de
bacalhau! Gonçalo sentiu como a amargura de uma traição:

— Oh! que
animais! E de repente ideou uma vingança alegre:- Pois se vires hoje o Sr. D.
António ou o Sr. João Gouveia, não te esqueças de lhes dizer que sinto muito…
Que eu também cá tinha à noite na Torre uma festa. E haviasenhoras. Vinha a Sr
a D. Ana Lucena… Não te esqueças, hem?

Gonçalo
galgou as escadas rindo da sua invenção. Mas, nessa noite, às nove horas,
depois do arrastado e atochado jantar com o Manuel Duarte, entrou na salagrande
dos retratos, apenas alumiada pelo lampião dourado do corredor, para buscar uma
caixa de charutos. E casualmente, através da janela aberta, reparou num homemque,
em baixo, rente da sombra dos álamos, rondava, espreitava… Mais atento,
imaginou reconhecer os poderosos ombros, o andar bovino do Titó. Mas não, com
certeza! o homem trazia jaqueta e carapuço de lã. Curioso, abafando os passos,
ainda seabeirou da varanda. O vulto porém descera da estrada, logo sumido sob
as árvores duma quelha que contorna o casal do Miranda, e desemboca adiante, na
Portela, junto dasprimeiras casas de Vila Clara.

 

Capítulo IV

 

O
palacete dos Barrolos em Oliveira (conhecido desde o começo do século pelaCasa
dos Cunhais), erguia a sua fidalga fachada de doze varandas do Largo de El-Rei,
entre uma solitária viela que conduz ao quartel e à Rua das Tecedeiras, velha
rua malempedrada, ladeirenta, oprimida pelo comprido terraço do jardim, e pelo
muro fronteiro da antiga cerca das Mónicas. E nessa manhã, justamente quando
Gonçalo, na caleche daTorre puxada pela parelha do Torto, desembocava no Largo
de El-Rei, subia pela Rua das Tecedeiras, dobrando a esquina dos Cunhais, num
cavalo negro de fartas clinas, que feria as lajes com soberba e garbo, o
Governador Civil, o André Cavaleiro, de coletebranco e chapéu de palha. Num
relance, do fundo da caleche, o Fidalgo ainda o surpreendeu levantando os
pestanudos olhos negros para as varandas de ferro dopalacete. E pulou, com um
murro no joelho, rugindo surdamente — «que biltre!» Ao apear no portão (um
portão baixo, como esmagado pelo imenso escudo de armas dos Sãs), tão sufocada
indignação o impelia, que não reparou nas efusões do porteiro, ovelho Joaquim
da Porta, e esqueceu dentro da caleche os presentes para Gracinha, a caixa com
o guarda -solinho e um cesto de flores da Torre coberto de papel de seda.Depois
em cima, na sala de espera, onde José Barrolo correra, ao sentir nas lajes do
Largo silencioso o estrépito do calhambeque, desabafou logo, arrebatadamente,
atirando o guarda-pó para uma cadeira de couro:- Oh, senhores! Que eu não possa
vir à cidade, sem encontrar de cara este animal do Cavaleiro! E sempre no
Largo, defronte da casal É sorte!… Esse bigodeira não acharáoutro lugar para
onde vá caracolar com a pileca?

José
Barrolo, um moço gordo, de cabelo ruivo e crespo, com um buço claro numa face
mais redonda e corada que uma bela maçã, acudiu, ingenuamente:- Pileca?!… Oh,
menino, tem agora um cavalo lindo! Um cavalo lindo, que comprou ao Marges!-
Pois bem! É um burro feio em cima dum cavalo bonito. Que fiquem ambos na
cavalariça. Ou que vão ambos pastar para as Devesas!

O Barrolo
escancarou a boca larga e fresca, de soberbos dentes, num lento pasmo.E de
repente, com uma patada no soalho, vergado pela cinta, rompeu numa risada que o
sufocava, lhe inchava as veias:- Essa é de arromba! Não, essa é para contar no
Clube… Um burro feio em cima dum cavalo bonito! E ambos a pastarem!… Tu
vens hoje rico, menino! Olha que essa! Ambos a pastarem, com os focinhos na
erva, o Governador Civil e o cavalo… E dearromba!

Rebolava
pela sala, com palmadas radiantes sobre a coxa obesa. E Gonçalo,adoçado por
aquela ovação que celebrava a sua facécia: — Bem. Dá cá esses ossos, ou antes
esses untos. E como vai a família? A Gracinha?… Oh! viva a linda flor!Era
ela, com a sua ligeireza airosa e menineira, os magníficos cabelos soltos sobre
um penteador de rendas, correndo alvoroçada para o irmão, que a envolveu num
abraçoe em dois beijos sonoros. E imediatamente, recuando, a declarou mais
bonita, mais gorda:


Positivamente, estás mais gorda, até mais alta… É sobrinho?… Não? nada,
porora?

Gracinha
corou, com aquele seu lânguido sorriso que mais lhe humedecia e lheenternecia a
doçura dos olhos esverdeados.

— Se ela
não quer, ela não quer! — gritava o José Barrolo, gingando, com as
mãosenterradas nos bolsos do jaquetão, que lhe desenhava as ancas roliças. — A
culpa não é cá do patrão… Mas ela não se decide!O Fidalgo da Torre repreendeu
a irmã:

— Pois é
necessário um menino. Eu por mim não caso, não tenho jeito: e lá se vão desta
feita Barrolos e Ramires! A extinção dos Barrolos é uma limpeza. Mas,
acabadosos Ramires, acaba Portugal. Portanto, Sr a D. Graça Ramires, depressa,
em nome da

Nação, um
morgado! Um morgado muito gordo, que eu pretendo que se chameTructesindo!

Barrolo
protestou, aterrado: — O quê? Tructesindo? Não! Para tal sorte não o fabrico
eu!Mas Gracinha deteve aqueles gracejos picantes, desejosa de saber da Torre, e
do

Bento, e
da Rosa cozinheira, e da horta, e dos pavões… Conversando, penetraram naoutra
sala, guarnecida de contadores da índia, de pesados cadeirões dourados de
damasco azul, com três varandas sobre o Largo de El-Rei. Barrolo enrolou um
cigarro, reclamou a história do Relho, da grande desordem. Também ele arranjara
uma «pega»com o rendeiro da Ribeirinha, por causa de um corte de pinhal. Essa
do Relho, porém, fora tremenda…E Gonçalo, enterrado ao canto do fundo canapé
azul, desabotoando preguiçosamente o jaquetão de cheviote claro:

— Não!
foi muito simples. já há meses esse Relho andava bêbado, sem despegar…Uma
noite berrou, ameaçou a Rosa, agarrou numa espingarda. Eu desci, e num instante
a Torre ficou desembaraçada de Relhos e de barulhos.- Mas veio o Regedor, com
cabos! — acudiu o Barrolo.

Gonçalo
sacudiu os ombros impaciente: — Veio o Regedor? Veio depois, para legalizar! já
o homem abalara, corrido. Ecomo resultado arrendei a Torre ao Pereira, ao
Pereira da Riosa…

Contou
esse negócio excelente, tratado na varanda, ao almoço, entre dois copos devinho
verde. Barrolo admirou a renda — gabou o rendeiro. Assim Gonçalo descortinasse
outro Pereira para a quinta de Treixedo, terra tão generosa, tão mal amanhada!

À borda
do canapé, coberta pelos belos cabelos que lavara nessa manhã e quecheiravam a
alecrim, Gracinha contemplava o irmão com ternura:

— E do
estômago, andas melhor? Continuam as ceias com o Titó?- Oh! esse animal! —
exclamou Gonçalo. — Há dias prometeu jantar na Torre, até a Rosa assou um
cabrito no espeto, magnífico… Depois falhou: creio que teve uma orgia infame,
com bichas -de-rabear. Ele vem esta semana a Oliv eira… E é verdade!
vocêssabiam da intimidade do Titó com o Sanches Lucena?

Historiou
então, com exagero alegre, o encontro da Bica Santa, o horror que lhecausara a
bela D. Ana, a descoberta inesperada dessa familiaridade do Titó na
Feitosa.Barrolo recordou que uma tarde, antes do S. João, avistara o Titó,
diante do portão da Feitosa, a passear pela trela um cãozinho branco de
regaço…- Mas o que eu não compreendo, menino, é esse teu «horror» pela D.
Ana… Caramba! Mulher soberba! Um quebrado de quadris, uns olhões, um
peitoril…- Cale essa boca impura, devasso! — gritou Gonçalo. — Pois aqui ao
lado da sua mulher, que é a flor das Graças, ousa louvar semelhante peça de
carne!

Gracinha
rindo, sem ciúmes, compreendia «a admiração do José». Realmente, aAna Lucena,
que vistosa, que bela!…

— Sim —
concedeu Gonçalo — bela como uma bela égua… Mas aquela voz gorda,papuda… E
a luneta, os modos… E «o cavalheiro pode fumar, o cavalheiro está
enganado…». Oh! senhores, pavorosa E Barrolo gingava, diante do sofá, com as
mãos nos bolsos da rabona:- Uvas verdes, Sr. D. Gonçalo, uvas verdes! O Fidalgo
dardejou sobre o cunhado uns olhos ferozes:- Nem que ela se me oferecesse, de
joelhos, em camisa, com os duzentos contos do Sanches numa salva de ouro!

Sorrindo,
vermelha como uma peónia, com um «oh» escandalizado, Gracinha bateu no ombro de
Gonçalo — que puxou por ela, galhofeiramente:

— Venha
lá essa bochecha, e outra beijoca, para purificar! Com efeito, só pensar naD.
Ana, arrasta a gente às imagens brutais… Dizias então do estômago… Sim,
filha, combalido. E há dias mais pesado, desde o tal cabrito no espeto e da
companhia beberrona do Manuel Duarte. Tu tens cá água de Vidago?… Então,
Barrolinho, sêangélico. Manda trazer já uma garrafinha bem fresca. E olha!
pergunta se subiram um açafate e uma caixa de papelão que eu deixei na caleche?
Que ponham no meu quarto. Enão desembrulhes, que é surpresa… Escuta! Que me
levem água bem quente. Preciso mudar toda a roupa… Estava uma poeirada por
esse caminho!

E quando
o Barrolo abalou, a rebolar e a assobiar, Gonçalo, esfregando as mãos:- Pois
vocês ambos estão esplêndidos! E na harmonia que convém. Tu positivamente mais
forte, mais cheia. Até pensei que fosse sobrinho. E o Barrolo maisdelgado, mais
leve…

— Oh,
agora o José passeia, monta a cavalo, já não adormece tanto depois de
jantar…- E a outra família? A tia Arminda, o rancho Mendonça? Bem?… Padre
Soeiro, que é feito desse santo?- Teve um ataquezito de reumatismo, muito
ligeiro. Agora bom, sempre no Paço do Bispo, na Biblioteca… Parece que se
entretém a fazer um livro sobre os Bispos.

— Bem
sei, a História da Sé de Oliveira… Pois eu também tenho trabalhado
muito,Gracinha! Ando a escrever um romance.

— Ah!- Um
romance pequeno, uma novela, para os ANAIS DE LITERATURA E DE HISTÓRIA, uma
revista que fundou um rapaz meu amigo, o Castanheiro… É sobre um facto
histórico da nossa gente… Sobre um avô nosso, muito antigo, Tructesindo.- Tem
graça, que fez ele?


Horrores. Mas é pitoresco… E depois o Paço de Santa Ireneia, no século XII,
emtodo o seu esplendor! Enfim, uma bela reconstrução do velho Portugal e
sobretudo dos velhos Ramires. Hás -de gostar… Não há amores, tudo guerras.
Apenas, muito remotamente, uma das nossas antepassadas, uma D. Menda, que eu
nem sei serealmente existiu. Tem seu chique, hem?… E tu compreendes, como eu
desejo tentar a

Política,
preciso primeiramente aparecer, espalhar o meu nome…Gracinha sorria docemente
para o irmão, no costumado enlevo:

— E agora
tens alguma ideia? A tia Arminda lá continua sempre com a teima que devias
entrar na Diplomacia. Ainda há dias… «Ai, o Gonçalinho, assim galante, e
comaquele nome, só numa grande embaixada!»

Gonçalo
despegara lentamente do vasto canapé, reabotoando o jaquetão claro:- Com efeito
ando com uma ideia, há dias… Talvez me viesse dum romance inglês, muito
interessante, e que te recomendo, sobre as antigas minas de Ofir, King
Salomon’s Mines… Ando com ideias de ir para a África.- Oh Gonçalo, credo!
Para a África?

O
escudeiro entrara com duas garrafas de água de Vidago, ambas desarrolhadas,numa
salva. Precipitadamente, para aproveitar o «piquezinho», Gonçalo encheu um copo
enorme de cristal lavrado. Ah! que delícia de água! — E como o Barrolo
voltava,anunciando que cumprira as ordens de S. Ex-a:

— Bem!
então logo conversamos ao almoço, Gracinha! Agora lavar, mudar deroupa, que não
paro com estas infames comichões… Barrolo acompanhou o cunhado ao quarto, um
dos mais espaçosos e alegres do palacete, forrado de cretones cor de canário
com uma varanda para o jardim, e duasjanelas de peitoril sobre a Rua das
Tecedeiras e os velhos arvoredos do convento das

Mónicas.
Gonçalo impaciente despiu logo o casaco, sacudiu para longe o colete:- Pois tu
estás esplêndido, Barrolo! Deves ter perdido três ou quatro quilos. São
naturalmente os quilos que Gracinha ganhou… Vocês, se assim se equilibram,
ficam perfeitos.Diante do espelho Barrolo acariciava a cinta, com um risinho
deleitado:


Realmente, parece que adelgacei… Até sinto nas calças…Gonçalo abrira o
gavetão da rica cómoda de ferragens douradas, onde conservava sempre roupa (até
duas casacas), para evitar o transporte de malas entre os Cunhais e a Torre. E
ria, aconselhava o bom Barrolo a «adelgaçar» sem descanso, para beleza dafutura
raça Barrólica -quando em baixo, na silenciosa Rua das Tecedeiras, as patas de
um cavalo de luxo feriram as lajes em cadência lenta.Logo desconfiado, Gonçalo
correu à j anela, ainda com a camisa que desdobrava. E era ele! Era o André
Cavaleiro, que descia ladeando, sopeando a rédea, para escarvar com garbo e
fragor a rampa mal empedrada. Gonçalo virou para o Barrolo a facechamejante de
furor:

— Isto é
uma provocação! Se este descarado deste Cavaleiro passa outra vez na,maldita
pileca, por debaixo das janelas, apanha com um balde de água suja!… Barrolo,
inquieto, espreitou: — Naturalmente vai para casa das Lousadas… Anda agora
muito intimo dasLousadas… Sempre por aqui o vejo… E é para as Lousadas.

— Que
seja para o inferno! Pois, em toda a cidade, não há outro caminho para casadas
Lousadas? Duas vezes em meia hora! Grande insolente! Tem uma chapada de água de
sabão, pela grenha e pela bigodeira, tão certo como eu ser Ramires, filho de
meu pai Ramires!Barrolo beliscava a pele do pescoço, constrangido ante aqueles
rancores ruidosos que desmanchavam o seu sossego. já, por imposição de Gonçalo,
romperadesconsoladamente com o Cavaleiro. E agora antevia sempre uma bulha, um
escândalo que o indisporia com os amigos do Cavaleiro, lhe vedaria o Clube e as
doçuras da Arcada, lhe tornaria Oliveira mais enfadonha que a sua quinta da
Ribeirinha ou da Murtosa, solidões detestadas. Não se conteve, arriscou o
costumado reparo:

— Ó
Gonçalinho, olha que também todo esse espalhafato só por causa da
Política…Gonçalo quase quebrou o jarro, na fúria com que o pousou sobre o
mármore do lavatório:


Política! Aí vens tu com a Política! Por Política não se atira água suja
aosGovernadores Civis. Que ele não é político, é só malandro! Além disso…

Mas
terminou por encolher os ombros, emudecer, diante do pobre bacoco debochechas
pasmadas, que, naquelas rondas do Cavaleiro pelos Cunhais, só notava o «lindo
cavalo» ou «o caminho mais curto para as Lousadas!…»

— Bem! —
resumiu. — Agora larga, que me quero vestir… Do bigodeira meencarrego eu.

— Então,
até logo… Mas se ele passar nada de asneiras, hem?- Só justiça, aos baldes!

 E bateu com a porta nas costas resignadas do
bom Barrolo, que, pelo corredor,suspirando, lamentava o assomado génio do
Gonçalinho, as cóleras desproporcionadas em que o lançava «a Política».Enquanto
se ensaboava com veemência, depois se vestia numa pressa irada, Gonçalo ruminou
aquele intolerável escândalo. Fatalmente, apenas se apeava em Oliveira,
encontrava o homem da grande guedelha, caracolando por sob as janelas
dopalacete, na pileca de grandes clinas! E o que o desolava era perceber no
coração de

Gracinha,
pobre coração meigo e sem fortaleza, uma teimosa raiz de ternura peloCavaleiro,
bem enterrada, ainda vivaz, fácil de reflorir… E nenhum outro sentimento
forte que a defendesse, naquela ociosidade de Oliveira — nem superioridade do
marido, nem encanto dum filho no seu berço. Só a amparava o orgulho, certo
respeito religiosopelo nome de Ramires, o medo da pequena terra espreitadeira e
mexeriqueira. A sua salvação seria o abandono da cidade, o encerrado retiro
numa das quintas do Barrolo, a Ribeirinha, sobretudo a Murtosa, com a linda
mata, os musgosos muros de convento, aaldeia em redor para ela se ocupar como
castelã benéfica. Mas quê! Nunca o Barrolo consentiria em perder o seu
voltarete no Clube, e a cavaqueira da tabacaria «Elegante»,e as chalaças do
Major Ribas!

Afogueado
pelo calor, pela emoção, Gonçalo abriu a varanda. Em baixo, no curtoterraço
ladrilhado, orlado de vasos de louça, precedendo o jardim, Gracinha, ainda
soltos os cabelos por cima do penteador, conversava com outra senhora, muito
alta, muito magra, de chapéu-marujo enfeitado de papoilas, que segurava entre
os braços umrepolhudo molho de rosas.

Era a
«prima» Maria Mendonça, mulher de José Mendonça, condiscípulo doBarrolo em
Amarante, agora capitão do Regimento de Cavalaria estacionado em Oliveira.
Filha dum certo D. António, senhor (hoje Visconde) dos Paços de Severim,
devorada pela preocupação de parentescos fidalgos, de origens fidalgas, ligava
sempresorrateiramente o vago solar de Severim a todas as casas nobres de
Portugal — sobretudo, mais gulosamente, à grande casa de Ramires; e, desde que
o regimento seaquartelara em Oliveira, tratara logo Gracinha por «tu» e Gonçalo
por «primo», com a intimidade especial, que convém a sangues superiores.
Todavia mantinha amizades muito seguidas e activas com brasileiras ricas de
Oliveira — até com a viúva Pinho, donada loja de panos, que (segundo se
murmurava) lhe fornecia os dois filhos, ainda pequenos, de calções e de
jalecas. Também convivia intimamente, já na cidade, já na Feitosa, com D. Ana
Lucena. Gonçalo gostava da sua graça, da sua agudeza, davivacidade maliciosa
que a agitava numa linda crepitação de galho, ardendo com alegria. E quando, ao
rumor da janela perra, ela levantou os olhos luzidios e espertos,foi em ambos
uma surpresa carinhosa:

— Oh
prima Maria! Que felicidade, logo que chego e que abro a janela…- E para mim,
primo Gonçalo, que o não via desde a sua volta de Lisboa!… Pois está mais
lindo, assim de bigode…

— Dizem
que estou lindíssimo, absolutamente irresistível! Até aconselho à primaMaria que
se não aproxime muito de mim, para se não incendiar.

Ela
deixou pender desoladamente nos braços o seu pesado molho de rosas:- Ai Jesus,
então estou perdida, que ainda agora prometi à prima Graça jantar cá esta
tarde!… Oh Gracinha, por quem és, põe um biombo entre os dois!

Gonçalo
gritou, pendurado da varanda, já deliciado com os chistes da primaMaria:

— Não!
enfio eu um abat-jour pela cabeça para atenuar o meu brilho!… E omaridinho,
os pequenos? Como vai o nobre rancho?


Vivendo, com algum pão e muita graça de Deus… Então até logo, primoGonçalo! E
seja misericordioso! E ainda ele ria, encantado — já a prima Maria, depois de
cochichar e de estalar doisbeijos apressados na face de Gracinha desaparecera
pela porta envidraçada da sala com a sua elegância esgalgada. Gracinha,
lentamente, subiu os três degraus de mármore do jardim. Da varanda, Gonçalo
ainda avistou através da ramaria leve, entre as sebes debuxo, o penteador
branco, os fartos cabelos caídos, reluzindo no sol como uma cascata de azeviche.
Depois o negro brilho, as claras rendas, desapareceram sob os loureiros darua
que conduzia ao mirante.

Mas
Gonçalo não se arredou de entre as janelas, limando vagamente as unhas,
espreitando pelas cortinas, numa desconfiança, quase num terror que o Cavaleiro
denovo surgisse na pileca agora que Gracinha se embrenhara para os lados desse
cómodo mirante, construção do século XVIII, imitando um templozinho do Amor,
que rematavao longo terraço do jardim e dominava a Rua das Tecedeiras. Mas a
calçada permanecia silenciosa, sob as derramadas sombras de arvoredo do
palacete e do convento. E por fim decidiu descer, envergonhado da espionagem —
certo que a irmã não se mostraria aoCavaleiro na varandinha do mirante, assim
com os cabelos em desalinho, por cima dum penteador.E cerrava a porta, quando
se encontrou diante dos braços do Padre Soeiro, que o prenderam pela cinta com
afago e respeito.

— Oh! meu
ingratíssimo Padre Soeiro! — exclamava Gonçalo, batendo ternamentenas gordas
costas do capelão. — Então que feia acção foi esta? Mais de um mês sem aparecer
na Torre! Agora para o Sr. Padre Soeiro já não há Gonçalinho, há sóGracinha…

Enternecido,
quase com uma lágrima a bailar nos mansos olhos miúdos, que mais negrejavam
entre a frescura rósea da face roliça e a cabecinha branca como algodão -Padre
Soeiro sorria, fechando as mãos sobre o peito da batina de alpaca, de onde
surdia a ponta de um lenço de quadrados vermelhos. E não lhe escasseara
certamente o desejode ir à Torre. Mas aquele trabalhinho na Biblioteca do Paço do
Bispo… Depois o seu reumatismozito… Enfim a Srª D. Graça sempre esperando
S. Ex-a, um dia, outro dia…

— Bem,
bem! — acudiu alegremente Gonçalo — contanto que o coração não seesquecesse da
Torre…

— Ah!
esse! — murmurou Padre Soeiro com comovida gravidade.E pelo corredor de paredes
azuis, adornadas com gravuras coloridas das batalhas de Napoleão, Gonçalo
resumiu as novidades da Torre:

— Como o
Padre Soeiro sabe, rebentou aquele escândalo do Relho… E ainda bem,porque
concluí um negócio esplêndido. Imagine! Arrendei há dias a quinta ao Pereira

Brasileiro,
ao Pereira da Riosa, por um conto cento e cinquenta mil -réis…O capelão
suspendeu a pitada, que colhera numa caixa de prata dourada, pasmado para o
Fidalgo:

— Ora aí
está como as coisas se inventam! Pois por cá constou que V. Ex-a trataracom o
José Casco, o José Casco dos Bravais. Até no domingo, ao almoço, a Srª D.

Graça…-
Sim — interrompeu o Fidalgo com uma fugidia cor na face fina. -Efectivamente o
Casco veio à Torre, conversámos. Primeiramente quis, depois não quis. Aquelas
coisas do Casco! Enfim, uma maçada… Não ficou nada decidido. E quando o
Pereira,uma bela manhã, me apareceu com a proposta, eu, inteiramente desligado,
aceitei, e com que alvoroço!… Imagine! Um aumento soberbo de renda, o Pereira
comorendeiro… O Padre Soeiro conhece bem o Pereira…

— Homem
entendido — concordou o capelão, coçando embaraçadamente o queixo.- Não há
dúvida. E homem de bem… Depois não havendo palavra dada ao Cas… — Pois o
Pereira para a semana vem à cidade — a talhou apressadamente Gonçalo.- O Padre
Soeiro previne o tabelião Guedes, e assinamos essa bela escritura. São as
condições costumadas. Creio que há uma reserva a respeito da hortaliça e do
porco… Enfim o Padre Soeiro deve receber carta do Pereira.E imediatamente,
descendo a escada, passando o lenço perfumado pelo bigode, gracejou com o
capelão sobre o famoso Fado dos Ramires, em que ele colaborava como Videirinha.
Oh! Padre Soeiro fornecera lendas sublimes! Mas aquela de Santa Aldonça, realmente,
fora ataviada com exageração… Quatro Reis a levarem a Santa aos ombros!- São
Reis de mais, Padre Soeiro!

O bom
capelão protestou, logo interessado e sério, no amor daquela obra
queglorificava a Casa: — Ora essa! Com perdão de V. Ex-a… Perfeitissimamente
exacto. Lá o conta o Padre Guedes do Amaral, nas suas Damas da Corte do Céu,
livro precioso, livroraríssimo, que o Sr. José Barrolo tem na livraria. Não
especifica os Reis, mas diz quatro… «Aos ombros de quatro Reis e com
acompanhamento de muitos Condes». Maso nosso José Videira declarou que não
podia meter os Condes por causa da rima.

O Fidalgo
ria, dependurando num cabide, ao fundo da escada, o chapéu de palha com que
descera:- Por causa da rima, pobres Condes… Mas o fado está lindo. Eu trago
uma cópia para a Gracinha cantar ao piano… E agora outra coisa, Padre Soeiro.
O que se conta poraí do Governador Civil, desse Sr. André Cavaleiro?…

O capelão
encolheu os ombros, desdobrando cautelosamente o seu vasto lenço de quadrados
vermelhos:- Eu, como V. Ex-a sabe, não entendo de Política. Depois também não
frequento os cafés, os sítios onde se questiona Política… Mas parece que
gostam.No corredor um escudeiro gordo, de opulentas suíças ruivas, que Gonçalo
não conhecia, badalou a sineta do almoço. Gonçalo reparou, avisou o homem que a
Srª D. Maria da Graça andava para o fundo do jardim…- Entrou agora, Sr. D.
Gonçalo! — acudiu o escudeiro. — E até manda perguntar se

V. Ex-a
deseja para o almoço vinho verde de Amarante, de Vidainhos.Sim, com certeza,
vinho de Vidainhos. Depois sorrindo:- Oh Padre Soeiro, previna este escudeiro
novo que eu não tenho Dom. Sou simplesmente Gonçalo, graças a Deus!O capelão
murmurou que todavia, em documentos da Primeira Dinastia, apareciam Ramires com
Dom. E, como Gonçalo parara diante do reposteiro corrido dasala, logo o bom
velho se curvou, com as suas escrupulosas, reverentes cerimónias, para o
Fidalgo passar.

— Então,
Padre Soeiro, por quem é!Mas ele, com apegado respeito:

— Depois
de V. Ex -a meu senhor…Gonçalo afastou o reposteiro, empurrou docemente o
capelão: — Padre Soeiro, já nos documentos da Primeira Dinastia se estabeleceu
que os Santos nunca andam atrás dos Pecadores!- V. Ex-a manda, e sempre com que
graça.

Depois
dos anos de Gracinha, uma tarde, pelas três horas, Gonçalo, recolhendocom Padre
Soeiro duma visita à Biblioteca do Paço do Bispo, sentiu logo da antecâmara o
vozeirão do Titó, que rolava na sala azul em trovão lento. Franziu vivamente
oreposteiro — e sacudiu o punho para o imenso homem que enchia um dos cadeirões
dourados, estirando por sobre as flores dó tapete umas botas novas de grossas
tachasreluzentes:

— Oh
infame!… Então noutro dia assim me larga, sem escrúpulo, depois de eu lhe
preparar um cabrito estupendo, assado num espeto de cerejeira? E para quê?…
Para umaorgia reles, com bolinhos de bacalhau e bichinhas-de-rabear!

Titó não
desmanchou a sua conchegada beatitude:- Impossibilíssimo. De tarde encontrei o
João Gouveia no Chafariz. E só então nos lembrámos de que eram os anos da D.
Casimira. Dia sagrado!

Aquelas
ceias de Vila Clara, as tresnoitadas «pândegas»com violão,impressionavam sempre
Barrolo, que as apetecia. E com o olho aguçado, do canto da mesa onde
esfarelava cuidadosamente pacotes de tabaco dentro de uma terrina do Japão:-
Quem é a D. Casimira? Vocês em Vila Clara descobrem uns tipos… Conta lá!

— Um
monstro! — declarou Gonçalo. — Uma matronaça bojuda como uma pipa, com um pêlo
nojento no queijo. Vive ao pé do cemitério, num cacifro que tresanda apetróleo,
onde este senhor e as autoridades vão jogar o quino, e derriçar com umas
sirigaitas de casabeque vermelho e de farripas… Nem se pode decentemente
contardiante do Sr. Padre Soeiro!

O
capelão, que sem rumor se esbatera numa sombra discreta, entre os franjados
cetins duma cortina e um pesado contador da índia, moveu os ombros
numconsentimento risonho, como acostumado a todas as fealdades do Pecado. E,
com pachorra, o Titó emendava o esboço burlesco do Fidalgo:- A D. Casimira é
gorda, mas muito asseada. Até me pediu para eu lhe comprar hoje, na cidade, uma
bacia nova de assento. A casa não cheira a petróleo e fica por trás do convento
de Santa Teresa. As sirigaitas são simplesmente as sobrinhas, duasraparigas que
gostam de rir e de troçar… E o Sr. Padre Soeiro podia, sem medo…

— Bem,
bem! — atalhou Gonçalo. — Gente deliciosa! Deixemos a D. Casimira, quetem bacia
nova para os seus semicúpios… Vamos à outra infâmia do Sr. António Vilalobos!

Mas
Barrolo insistia, curioso:- Não, não, conta lá, Titó… Noite de anos,
patuscada rija, hem?

— Ceia
pacata — contou o Titó com a seriedade que lhe merecia a festa das suasamigas.
— A D. Casimira tinha uma bela frangalhada com ervilhas. O João Gouveia trouxe
do Gago uma travessa de bolos de bacalhau que calharam… Depois,
fogo-de-vistas na horta. O Videirinha tocou, as peque nas cantaram… Não se
passou mal.Gonçalo esperava — irresistivelmente interessado pela ceia das
Casimiras:

— Acabou,
hem?… Agora a outra infâmia, mais grave! Então o Sr. AntónioVilalobos é
íntimo do Sanches Lucena, frequenta todas as semanas a Feitosa, toma cháe
torradas com a bela D. Ana, e esconde tenebrosamente dos seus amigos estes
privilégios gloriosos?…- Sem contar — gritou o Barrolo deliciosamente
divertido que lhe passeia à trela os cãezinhos felpudos!- Sem contar que lhe
passeia à trela os cãezinhos felpudos! ecoou cavamente Gonçalo. — Responda, meu
ilustre amigo!

O Titó
remexeu o vasto corpo dentro do cadeirão, recolheu as botas de tachasluzentes,
afagou lentamente a face barbuda, que uma vermelhidão aquecera. E depois de
encarar Gonçalo, intensamente, com um esforço de sagacidade que mais o
afogueou:- Tu já alguma vez, por curiosidade, me perguntaste se eu conhecia o
Sanches Lucena? Nunca me perguntaste…

O Fidalgo
protestou. Não! Mas constantemente lia Assembleia, no Gago, naTorre, eles
berravam, em questões de Política, o nome do Sanches Lucena! Nada mais natural,
até mais prudente, do que aludir o Sr. Titó à sua intimidade ilustre! Ao
menospara evitar que ele, ou os amigos, diante do Sr. Titó que comia as
torradas da Feitosa,tratassem os Sanches Lucena como um trapo!

O Titó
despegou do cadeirão. E afundando as mãos nos bolsos da quinzena dealpaca,
sacudindo desinteressadamente os ombros: — Cada um tem sobre o Sanches a sua
opinião… Eu apenas o conheço há quatro oucinco meses, mas acho que é sério,
que sabe as coisas… Agora, lá nas Câmaras… Gonçalo, indignado, bradava que
se não discutiam os méritos do Sr. Sanches Lucena — mas os segredos do Sr. Titó
Vilalobos! E o escudeiro novo, avançando assuíças ruivas por uma fenda do
reposteiro, anunciou que o Sr. Administrador de Vila

Clara
procurava Suas Ex. as…Barrolo largou logo a terrina de tabaco:

— O Sr.
João Gouveia! Que entre! Bravo! temos cá toda a rapaziada de Vila Clara! O
Titó, da janela onde se refugiara, lançou o vozeirão, mais troante, abafando
aimportuna conversa do Sanches e da Feitosa: — Viemos ambos! Por sinal numa
traquitana infame… Até se nos desferrou umadas pilecas e tivemos de parar na
Vendinha. Não se perdeu tempo, que há agora lá um vinhinho branco que é daqui
da ponta fina!…

Beliscava
a orelha. Aconselhava ruidosamente Barrolo e Gonçalo a passarem naVendinha,
para provar a pinga celeste.

— Até
aqui o Sr. Padre Soeiro lhe atiçava uma caneca valente, apesar do pecado!Mas
João Gouveia entrou, encalmado, empoeirado, com um vinco vermelho na testa, do
chapéu e do calor — e abotoado na sobrecasaca preta, de calças pretas, de luvas
pretas. Sem fôlego, apertou silenciosamente pela sala as mãos amigas que o
acolhiam. Edesabou sobre o canapé, implorando ao amigo Barrolo a caridade duma
bebidinha fresca!- Estive para entrar no Café Mónaco. Mas reflecti que nesta
grandiosa casa dos Barrolos as bebidas são de mais confiança.

— Ainda
bem! Você que quer? Orchata? Sangria? Limonada?- Sangria.

E, limpando
o pescoço e a testa, amaldiçoou o indecente calor de Oliveira:- Mas há gente
que gosta! Lá o meu chefe, o Sr. Governador Civil, escolhe sempre a hora do
calor para passear a cavalo. Ainda hoje… Na repartição até ao meio-dia;
depois, cavalo à porta; e larga até à e strada de Ramilde, que é uma
África…Não sei como lhe não fervem os miolos!

— Oh! —
acudiu Gonçalo — é muito simples. Se ele os não tem!O Administrador saudou
gravemente: — Já cá faltava com a sua ferroadazinha, o Sr. Gonçalo Mendes
Ramires! Não comecemos, não comecemos… Este seu cunhado, Barrolo, é bicho
indomesticável!Sempre reponta!

O bom
Barrolo gaguejou, constrangido, que Gonçalinho em Política nãodispensava a
piada… — Pois olhe! — declarou o Administrador, sacudindo o dedo para Gonçalo.
— Esse Sr. André Cavaleiro, que não tem miolos, ainda esta manhã na repartição
gabou comimensa simpatia os miolos do Sr. Gonçalo Mendes Ramires!…

E
Gonçalo, muito sério:- Também não faltava mais nada! Para esse Governador
Civil, ser perfeitamente absurdo, só lhe restava que me considerasse um asno!

— Perdão!
— gritou o Administrador, que se erguera, desabotoando logo asobrecasaca, para
comodidade da contenda. Barrolo acudiu, aflito, carregando nos ombros do
Gouveia para o sossegar e orepor no canapé: — Não, meninos, não! Política, não!
E então essa maçada do Cavaleiro… Vamos ao que importa. Você janta connosco,
João Gouveia?- Não, obrigado. já prometi jantar como Cavaleiro. Temos lá o
Inácio Vilhena.

Vai ler
um artigo que escreveu para o Boletim de Guimarães, sobre umas formas
defabricar ossos de mártires, descobertas nas obras do convento de S. Bento.
Estou com curiosidade… E a Srª D. Graça, bem? Quem eu não avistava havia
meses era o Sr. Padre Soeiro. Nunca aparece agora pela Torre!… Mas sempre
rijo, sempre viçoso. Oh, Sr.Padre Soeiro, qual é o seu segredo para toda essa
meninice?

Do seu
canto, o capelão sorriu timidamente. O segredo? Poupar a vida -não aconsumindo
nem com ambições nem com decepções. Ora para ele, louvado Deus, a vida corria muito
simples e muito pequenina. E fora o seu reumatismo…

Depois,
corando de acanhamento, através das sentenças evangélicas que lheescapavam:

— Mas
mesmo o reumatismo não é mal perdido. Deus, que o manda, sabe porque omanda…
Sofrer edifica. Porque enfim o que nós sofremos, nos leva a pensar no que os
outros sofrem…

— Pois
olhe — volveu com alegre incredulidade o Administrador — eu, quandotenho os
meus ataques de garganta, não penso na garganta dos outros! Penso só na minha,
que me dá bastante cuidado. E agora a vou regalar naquela bela sangria…O
escudeiro vergava, com a luzente bandeja de prata, carregada de copos de
sangria, onde boiavam rodelinhas de limão. E todos se tentaram, todos beberam,
até Padre Soeiro, para mostrar ao Sr. António Vilalobos que não desdenhava o
vinho,dádiva amável de Deus — pois como ensina Tibulo com verdade, apesar de
gentílico, vinus facit dites animos, mollia corda dat, enrija a alma e adoça o
coração.João Gouveia, depois dum suspiro consolado, pousou na bandeja o copo que
esvaziara dum trago e interpelou Gonçalo:

— Vamos a
saber! Então noutro dia que história fantástica foi essa duma festa naTorre,
com senhoras, com a D. Ana Lucena?… Eu não acreditei, quando o pequeno do

Gago me
encontrou, me deu o recado. Depois…Mas de entre as cortinas da janela, onde
acabava a sangria, Titó novamente ribombou, interpelando também o Fidalgo:

— Oh sô
Gonçalo! E o que me contou há pouco o Barrolo?… Que andavas comideias de
abalar para a África?

Ao
espanto de João Gouveia quase se misturou terror. Para a África?… O quê?Com
um emprego para a África?… — Não! plantar cocos! plantar cacau! plantar café!
— excla mava o Barrolo, com divertidas palmadas na coxa.Pois Titó aprovava a
ideia! Também ele, se arranjasse um capital, dez ou quinze contos, tentava a
África, a traficar com o preto… E também se fosse mais pequeno, maisseco. Que
homens do seu corpanzil, necessitando muita comezaina, e muita vinhaça, não
aguentam a África, rebentam!

— O
Gonçalo sim! É chupado, é rijo; não carrega na aguardente; está na conta
paraafricanista… E sempre te digo! Carreira bem mais decente que essa outra
porque tens mania, de deputado! Para quê? Para palmilhar na Arcada, para
bajular Conselheiros. Barrolo concordou, com alarido. Também não compreendia a
teima de Gonçaloem ser deputado! Que maçada! Eram logo as intrigas, e as
desandas nos jornais, e os enxovalhos. E sobretudo aturar os eleitores.- Eu,
nem que me nomeassem depois Governador Civil, com um título e umagrã-cruz a
tiracolo, como o Freixomil!

Gonçalo
escutara, num silêncio risonho e superior, enrolando laboriosamente umcigarro
com o tabaco do Barrolo: — Vocês não compreendem… Vocês não conhecem a
organização de Portugal.Perguntem aí ao Gouveia… Portugal é uma fazenda, uma
bela fazenda, possuída por uma parceria. Como vocês sabem há parcerias
comerciais e parcerias rurais. Esta de Lisboa é uma parceria política, que
governa a herdade chamada Portugal… Nós osPortugueses pertencemos todos a
duas classes: uns cinco a seis milhões que trabalham na fazenda, ou vivem nela
a olhar, como o Barrolo, e que pagam; e uns trinta sujeitosem cima, em Lisboa,
que formam a parceria, que recebem e que governam. Ora eu, porgosto, por
necessidade, por hábito de família, desejo mandar na fazenda. Mas, para entrar
na parceria política, o cidadão português precisa uma habilitação — ser
deputado.Exactamente como, quando pretende entrar na magistratura, necessita
uma habilitação — ser bacharel. Por isso procuro começar como deputado, para
acabar como parceiro egovernar… Não é verdade, João Gouveia?

O
Administrador voltara à bandeja das sangrias, de que saboreava outro copo,
agora lentamente, aos goles:- Sim, com efeito, essa é a carreira… Candidato,
Deputado, Político, Conselheiro, Ministro, Mandarim. É a carreira… E melhor
que a de África. Por fim na Arcada, emLisboa, também cresce cacau e há mais
sombra!

Barrolo,
no entanto, abraçara o ombro possante do Titó, com quem mergulhou no vão da
janela, numa confraternidade de ideias, gracejando:- Pois eu, sem ser dos tais
Parceiros, também mando nos bocados de Portugal que mais me interessam, porque
me pertencem!… E sempre queria ver que esse S.Fulgêncio, ou o Brás Vitorino,
ou lá os políticos do Terreiro do Paço, se metessem a dispor nas minhas terras,
na Ribeirinha, ou na Murtosa… Era a tiro!

Encostado
à vidraça, Titó coçava a barba, impressionado:- Pois sim, Barrolo! Mas você na
Ribeirinha e na Murtosa tem de pagar as contribuições que eles mandarem. E
nesses concelhos tem de aguentar as autoridadesque eles nomearem. E goza para
lá de estradas se eles lhas fizerem. E vende o carro depão e a pipa de vinho
com mais ou menos proveito, segundo as leis que eles votarem… E assim tudo. O
Gonçalo não deixa de acertar. É o diabo! Quem manda é quem lucra…Olhe! o
maroto do meu senhorio em Vila Clara, agora para o S. Miguel, aumenta a renda
da casa em que eu moro, um cochicho que ninguém quer, porque mataram lá
ocarrasco, que ainda lá aparece… E o Cavaleiro, esse, como parceiro, vive de
graça nestebelo palácio de S. Domingos, com cocheira, com jardim, com horta…

Barrolo
atirou um chuta, de mão espalmada, abafando o vozeirão do Titó, commedo que as
regalias do Cavaleiro, assim proclamadas, renovassem as fúrias de Gonçalo. Mas
o Fidalgo não percebera, atento ao João Gouveia, que, enterrado nocanapé depois
da sangria, novamente contava o seu assombro, ao encontrar no Chafariz, em Vila
Clara, o rapazola do Gago, com o recado da grande festa na Torre:

— E
cheguei a desconfiar que realmente você desse festa, quando bateram as
nove,depois as nove e meia, e o Titó sem chegar para a ceia da D. Casimira!…
Bem, pensei, também recebeu recado e abalou para a Torre! Por fim, apenas ele
apareceu, decarapuço e de jaqueta, percebi que fora troça do Sr. D. Gonçalo…

Então o
Fidalgo pasmou com uma inesperada, estranha suspeita:

— De
carapuço e jaqueta? O Titó andava nessa noite de cara puço e de jaqueta?…Mas
bruscamente Barrolo, da funda janela, lançou para dentro, para a sala, um brado
de pavor:- Oh! rapazes! Santo Deus! Aí vêm as Lousadas!

João
Gouveia saltou do canapé, como num perigo, reabotoando arrebatadamente a
sobrecasaca; Gonçalo, atarantado, esbarrou com o Titó e o Barrolo que recuavam,
noterror de serem apercebidos através dos vidros largos; até Padre Soeiro,
prudente, abandonou o seu recanto, onde corria os óculos pela Gazeta do Porto.
E todos, de entrea fenda das cortinas, como soldados na fresta de uma cidadela,
espreitavam o Largo, que o sol das quatro horas dourava, por sobre os telhados
musgosos da cordoaria. Do lado da Rua das Pegas, as duas Lousadas, muito
esgalgadas, muito sacudidas, ambascom manteletes curtos de seda preta e
vidrilhos, ambas com guarda -sóis de xadrezinho desbotado, avançavam, estirando
pelo largo empedrado duas sombras agudas.As duas manas Lousadas! Secas, escuras
e gárrulas como cigarras, desde longos anos, em Oliveira, eram elas as
esquadrinhadoras de todas as vidas, as espalhadoras de todas as maledicências,
as tecedeiras de todas as intrigas. E na desditosa cidade nãoexistia nódoa,
pecha, bule rachado, coração dorido, algibeira arrasada, janela entreaberta,
poeira a um canto, vulto a uma esquina, chapéu estreado na missa,
boloencomendado nas Matildes, que os seus quatro olhinhos furantes de azeviche
sujo não descortinassem — e que a sua solta língua, entre os dentes ralos, não
comentasse com malícia estridente! Delas surdiam todas as cartas anónimas que
infestavam o Distrito; aspessoas devotas consideravam como penitências essas
visitas, em que elas durante horas galravam, abanando os braços escanifrados; e
sempre, por onde elas passassem, ficavalatejando um sulco de desconfiança e
receio. Mas quem ousaria rechaçar as duas manas Lousadas? Eram filhas do
decrépito e venerando general Lousada; eram parentas do Bispo; eram poderosas
na poderosa confraria do Senhor dos Passos da Penha. E depoisduma castidade tão
rígida, tão antiga e tão ressequida, e por elas tão espaventosamente alardeada
— que o Marcolino do Independente as alcunhara de Duas Mil Virgens.- Não vêm para
cá! — trovejou o Titó, com imenso alívio.

Com
efeito no meio do Largo, rente à grade que circunda o antigo relógio -de-sol,
as duas manas, paradas, erguiam o bico escuro, farejando e espiando a igrejinha
de S.Mateus, onde o sino lançara um repique de baptizado.

— Oh, com
os diabos, que é para cá!As Lousadas, decididas, investiam contra o portão dos
Cunhais! Então foi um pânico! As gordas pernas do Barrolo, fugindo, abalaram,
quase derrubaram sobre os contadores, os potes bojudos da Índia. Gonçalo
bradava que se escondessem no pomar.Desconcertado, o Gouveia rebuscava com
desespero o seu chapéu -coco. Só o Titó, que as abominava e a quem elas
chamavam o Polifemo, retirou com serenidade, abrigando oPadre Soeiro sob o seu
braço forte. E já o bando espavorido se arremessara sobre o reposteiro — quando
Gracinha apareceu, com um fresco vestido de sedinha cor de morango, sorrindo,
pasmada, para o tropel que rolava:- Que foi? Que foi?…

Um clamor
abafado envolveu a doce senhora ameaçada:- As Lousadas! — Oh! Fugidiamente o
Titó e João Gouveia apertaram a mão que ela lhes abandonou,esmorecida. A sineta
do portão tilintara temerosa! E a fila acavalada, onde Padre Soeiro rebolava a
reboque, enfiou para a livraria que o Barrolo aferrolhou, gritando ainda
aGracinha, com uma inspiração:

— Esconde
as sangrias!

Pobre
Gracinha! Atarantada, sem tempo de chamar o escudeiro, carregou ela parauma
banqueta do corredor, num esforço desesperado, a pesada salva — com que as
Lousadas, se a descortinassem, edificariam por sobre a cidade, e mais alta que
a Torrede S. Mateus, uma história pavorosa de «vinhaça e bebedeira». Depois,
ofegando, relanceou no espelho o penteado. E direita como numa arena, com a
temeridade simples e risonha dos antigos Ramires, esperou a arremetida das
manas terríveis.

No outro
domingo, depois do almoço, Gonçalo acompanhou a irmã a casa da tiaArminda
Vilegas, que na véspera, ao tomar (como costumava todos os sábados) o seu banho
aos pés, se escaldara e recolhera à cama, apavorada, reclamando uma junta dos
cinco cirurgiões de Oliveira. Depois acabou o charuto sob as acácias do
Terreiro daLouça, pensando na sua novela abandonada na Torre durante essas
semanas, e no lance famoso do Capítulo II que o tentava e que o assustava — o
encontro de LourençoRamires com Lopo de Baião, o Bastardo, no vale fatal de
Canta Pedra. E recolhia aosCunhais (porque prometera ao Barrolo uma trotada a
cavalo, até ao Pinhal de Estevinha, para aproveitar a doçura do domingo
enevoado), quando, na Rua das Velas, avistou otabelião Guedes, que sala da
confeitaria das Matildes com um grosso embrulho de pastéis. Ligeiramente, o
Fidalgo atravessou logo a rua — enquanto o Guedes, da bordado passeio, pesado e
barrigudo, na ponta dos botins miudinhos gaspeados de verniz, descobria, numa
cortesia imensa, a calva, emplumada ao meio pelo famoso tufo de cabelo
grisalho, que lhe valera a alcunha de «Guedes Popa»:- Por quem é, meu caro
Guedes, ponha o chapéu! Como está? Sempre fero e moço. Ainda bem!… Falou com
o meu Padre Soeiro? O Pereira da Riosa, por fim, sóvem à cidade na
quarta-feira…

Sim! Sim!
O Sr. Padre Soeiro passara pelo cartório, para avisar — e ele apresentava os
parabéns a Sua Ex-a pelo seu novo rendeiro…- Homem muito competente, o
Pereira! Já há vinte anos que o conheço… E olhe

V. Ex-a a
propriedade do Conde de Monte Agra! Ainda me lembro dela, um chavascal;hoje que
primor! Só a vinha que ele tem plantado! Homem muito competente… E V. Ex-a
com demora?

— Dois a
três dias… Não se atura este calor de Oliveira. Hoje, felizmente,refrescou. E
que há de novo? Como vai a política? O amigo Guedes sempre bom regenerador,
leal e ardente, hem?Subitamente o tabelião, com o seu embrulho de doces
conchegado ao colete de seda preta, agitou o braço gordo e curto, numa
indignação que lhe esbraseou de sangue o pescoço, as orelhas cabeludas, a face
rapada, toda a testa até às abas do chapéu brancoorlado de fumo negro:

— E quem
o não há -de ser, Sr. Gonçalo Mendes Ramires? Quem o não há -deser?… Pois
este último escândalo! Os risonhos olhos de Gonçalo logo se alargaram, sérios:
— Que escândalo?O tabelião recuou. Pois S. Ex-a não sabia da última prepotência
do Governador

Civil, do
Sr. André Cavaleiro?- O quê, caro amigo?…

O Guedes
cresceu todo sobre o bico dos botins pequeninos, e bojou, e inchou, para exclamar:-
A transferência do Noronha!… A transferência do desgraçado Noronha!

Mas uma
senhora, também obesa, de buço carregado, toda a estalar em ricas erugidoras
sedas de missa, arrastando severamente pela mão um menino que rabujava, parou,
fitou o Guedes porque o digno homem com o seu ventre, o seu embrulho, a sua
indignação, atravancava a entrada das Matildes. Apressadamente, o Fidalgo
levantou,para ela entrar, o fecho da porta envidraçada. Depois, num alvoroço:

— O amigo
Guedes naturalmente vai para casa. É o meu caminho. Andamos econversamos… Ora
essa! Mas o Noronha… Que Noronha? — O Ricardo Noronha… V. Ex-a conhece. O
pagador das Obras Públicas! — Ah! sim, sim… Então transferido? Transferido
arbitrariamente?Na Rua das Brocas por onde desciam, no silêncio e solidão das
lojas cerradas, a cólera do Guedes ressoou, mais solta:- Infamemente, Sr.
Gonçalo Mendes Ramires, infamissimamente! E para Almodôvar, para os confins do
Alentejo! Para uma terra sem recursos, sem distracções, sem famílias!…Parara,
com os doces contra o coração, os olhinhos esbugalhados para o Fidalgo,
coriscando. O Noronha! Um empregado trabalhador, honradíssimo! E sem
política,absolutamente sem política. Nem dos Históricos, nem dos Regeneradores.
Só da família, das três irmãs que sustentava, três flores… E homem
estimadíssimo na cidade, cheio de prendas ! Um talento imenso para a música!…
Ah! o Sr. Gonçalo Ramires nãosabia? Pois compunha ao piano coisas lindas!
Depois precioso para reuniões, para anos.

Era ele
quem organizava sempre em Oliveira as representações de curiosos…- Porque,
como ensaiador, creia V. Ex-a que não há outro, mesmo na capital!… Não há
outro! E, zás, de repente, para Almodôvar, para o Inferno, com as irmãs, com os
tarecos! Só o piano!… Veja V. Ex-a só o transporte do piano!Gonçalo
resplandecia:

— É um
belo escândalo. Ora que felicidade esta de o ter encon trado, meu
caroGuedes!… E não se sabe o motivo? De novo caminhavam demoradamente pelo
passeio estreito. E o tabelião encolhia os ombros, com amargura. O motivo!
Publicamente, como sempre nestas prepotências,o motivo era a conveniência do
serviço…

— Mas
todos os amigos do Noronha, por toda a cidade, conhecem o verdadeiromotivo… o
intimo, o secreto, o medonho! — Então? Guedes relanceou a rua, com prudência.
Uma velha atravessava, coxeando,segurando uma bilha. E o tabelião segredou
cavamente, junto à face deslumbrada do fidalgo. — É que o Sr. André Cavaleiro,
esse infame, se encantara com a mais velha dasirmãs Noronhas, a D. Adelina,
formosíssima rapariga, alta e morena, uma estátua!… E repelido (porque a
menina, cheia de juízo, uma pérola, percebera a intenção vilíssima) em quem se
vinga, por despeito, o Sr. Governador Civil? No pagador! Para Almodôvarcom as
meninas, com os tarecos!…. Era o pagador quem pagava!

— É uma
bela maroteira! — murmurou Gonçalo, banhado de gosto e riso.- E note V. Ex-a! —
exclamava o Guedes, com a mão gorda a tremer por cima do chapéu. — Note V. Ex-a
que o pobre Noronha, na sua inocência, tão bom homem, gostando sempre de agradar
aos seus chefes, ainda há semanas dedicara ao Cavaleirouma valsa linda!… A
Mariposa, uma valsa linda!

Gonçalo
não se conteve, esfregou as mãos num triunfo:- Mas que preciosa maroteira!… E
não se tem falado? Esse jornal de oposição, o Clarim de Oliveira, nem uma
denúncia, nem uma alusão?

O Guedes
pendeu a cabeça, descoroçoado. O Sr. Gonçalo Ramires conhecia bemessa gente do
Clarim… Estilo — e estilo brincado, opulento… Mas para assoalhar, assim num
caso gravíssimo como o do Noronha, a verdade bem nua — pouco nervo,
nenhumavalentia. E depois o Biscainho, o redactor principal, andava a passar
sorrateiramente para os Históricos. Ah! O Sr. Gonçalo Mendes Ramires não se
inteirara? Pois esse torpíssimo Biscainho bolinava. Decerto o Cavaleiro lhe acenara
com posta… Alémdisso, como provar a infâmia? Coisas íntimas, coisas de
família. Não se podia apresentar a declaração da D. Adelina, menina
virtuosíssima — e com uns olhos!… Ah!se fosse no tempo do Manuel Justino e da
Aurora de Oliveira!… Esse era homem para estampar logo na primeira página, em
letra graúda: «Alerta! que a autoridade superior do Distrito tentou levar a
desonra ao seio da família Noronha!»- Esse era um homem! Coitado, lá está no
cemitério de S. Miguel… E agora, Sr.

Gonçalo
Ramires, o despotismo campeia, desenfreado!Bufava, arfava, esfalfado daquele
fogoso desabafo. Dobraram calados a esquina das Brocas para a bela rua,
novamente calçada, da Princesa D. Amélia. E logo na segunda porta, parando,
tirando da algibeira o trinco, o Guedes, que ainda resfolegava,ofereceu a S.
Ex-a para descansar.

— Não,
não, obrigado, meu caro amigo. Tive imenso, imenso prazer, em oencontrar…
Essa história do Noronha é tremenda!… Mas nada me espanta do Sr. Governador
Civil. Só me espanta que o não tenham corrido de Oliveira, como ele merece, com
pancada e assuada… Enfim, nem toda a gente boa jaz no cemitério de
S.Miguel… Até amanhã, meu Guedes. E obrigado!

Da Rua da
Princesa D. Amélia até o Largo de El-Rei, Gonçalo correu com odeslumbramento de
quem descobrisse um tesouro e o levasse debaixo da capa! E aí levava com efeito
o «escândalo, o rico escândalo», que tanto farejara, porque tanto almejara,
para desmantelar o Sr. Governador Civil na sua fiel cidade de Oliveira, quelhe
levantava arcos de buxo! E, por uma mercê de Deus, o «rico escândalo» demoliria
também o homem no coração de Gracinha, onde, apesar do antigo ultraje,
elepermanecia como um bicho num fruto, esburacando e estragando… E não
duvidava da eficácia do escândalo! Toda a cidade se revoltaria contra a
autoridade femeeira, que oprime, desterra um funcionário admirável — porque a
irmã do pobre senhor se recusouà baba dos seus beijos. E Gracinha?… Como
resistiria Gracinha àquele desengano — o seu antigo André abrasado pela menina
Noronha e por ela repelido com nojo e commofa? Oh! o escândalo era soberbo! Só
restava que estalasse, bem ruidoso, sobre os telhados de Oliveira e sobre o
peito de Gracinha, como trovão benéfico que limpa ares corrompidos. E desse
trovão, rolando por todo o Norte, se encarregava ele com delicia.Libertava a
cidade dum Governador detestável, Gracinha dum sonho errado. E assim, com uma
certeira penada, trabalhava pro patria et pro domo!Nos Cunhais correu ao quarto
do Barrolo, que se vestia trauteando o Fado dos Ramires, e gritou através da
porta com uma decisão flamejante:

— Não te
posso acompanhar à Estevinha. Tenho que escrever urgentemente. E nãosubas, não
me perturbes. Necessito sossego!

Nem
atendeu aos protestos desolados com que o Barrolo acudira ao corredor, emceroulas.
Galgou a escada. No seu quarto, depois de despir rapidamente o casaco, de
excitar a testa com um borrifo de água -de-colónia, abancou à mesa — onde
Gracinha colocava sempre entre flores, para ele trabalhar, o monumental
tinteiro de prata quepertencera ao tio Melchior. E sem emperrar, sem rascunhar,
num desses soltos fluxos de prosa que brotam da paixão, improvisou uma
correspondência rancorosa para a Gazeta do Porto contra o Sr. Governador Civil.
Logo o título fulminava Monstruoso atentado!Sem desvendar o nome da família
Noronha, contava miudamente, como um acto certo e por ele testemunhado, «a
tentativa viloa e baixa da primeira autoridade do Distritocontra a pudicícia, a
paz do coração, a honra de uma doce rapariga e dezasseis primaveras!» Depois era
a resistência desdenhosa -«que a nobre criança opusera ao D.João
administrativo, cujos belos bigodes são o espanto dos povos!» Por fim vinha —
«a desforra torpe e sem nome que S. Ex-a tomara sobre o zeloso empregado (que é
também um talentoso artista), obtendo deste nefasto Governo que fosse
transferido, ou antesarrojado, cruelmente exilado, com a família de três
delicadas senhoras, para os confins do Reino, para a mais árida e escassa das
nossas províncias, por o não poder empacotarpara África no porão sórdido duma
fragata!» Lançava ainda alguns rugidos sobre «a agonia política de Portugal».
Com pavor triste, recordava os piores tempos do Absolutismo, a inocência
soterrada nas masmorras, o prazer desordenado do Príncipe,sendo a expressão
única da Lei! E terminava perguntando ao Governo se cobriria este seu agente —
«este grotesco Nero que, como outrora o outro, o grande, em Roma,tentava levar
a sedução ao seio das famílias melhores, e cometia esses abusos de poder,
motivados por lascívias de temperamento, que foram sempre, em todos os séculos
e todas as civilizações, a execração do justo!» — E assinava Juvenal.Eram quase
seis horas quando desceu à sala, ligeiro e resplandecente. Gracinha martelava o
piano, estudando o Fado dos Ramires. E Barrolo (que não se arriscara a
umpasseio solitário) folheava, estendido no canapé, uma famosa História dos
Crimes da Inquisição, que começara ainda em solteiro.

— Estou a
trabalhar desde as duas horas! — exclamou logo Gonçalo, escancarandoa janela. —
Fiquei derreado. Mas, louvado seja Deus, fiz obra de Justiça… Desta vez o

Sr. André
Cavaleiro vai abaixo do seu cavalo!Barrolo fechou imediatamente o livro, com o
cotovelo nas almofadas, inquieto:

— Houve
alguma coisa? E Gonçalo, plantado diante dele, com um risinho suave, um risinho
feroz,remexendo na algibeira o dinheiro e as chaves:

— Oh!
quase nada. Uma bagatela. Apenas uma infâmia… Mas para o nossoGovernador
Civil, infâmias são bagatelas. Sob os dedos de Gracinha o Fado dos Ramires
esmoreceu, apenas roçado, num murmúrio incerto.O Barrolo esperava, esgazeado:


Desembucha!E Gonçalo desabafou, com estrondo: — Pois uma maroteira imensa,
homem! O Noronha, o pobre Noronha, perseguido, espezinhado, expulso! Com a
família… Para o inferno, para o Algarve!- O Noronha pagador?

— O
Noronha pagador. Foi o infeliz pagador que pagou!E, regaladamente, desenrolou a
história lamentável. O Sr. André Cavaleiro namoradíssimo, todo em chamas pela
irmã mais velha do Noronha. E atacando a rapariga com ramos, cartas, versos,
estrupidos cada manhã por diante da janela, a ladearna pileca! Até lhe soltara,
ao que parece, uma velha marafona, uma alcoviteira… E a rapariga, um anjo
cheio de dignidade, impassível. Nem se revoltava, apenas se ria. Erauma troça
em casa das Noronhas, ao chá, com a leitura da versalhada ardente em que ele a
tratava de «Ninfa, de estrela da tarde…». Enfim, uma sordidez funambulesca!

O pobre
Fado dos Ramires debandou pelo teclado, num tumulto de gemidosdesconcertados e
ásperos.

— E eu
não ter ouvido nada! — murmurava o Barrolo, assombrado. — Nem noClube, nem na
Arcada… — Pois, meu amiguinho, quem ouviu, e um famoso estampido, foi o pobre
Noronha. Arremessado para o fundo do Alentejo, para um sítio doentio, coalhado
depântanos. É a morte… É uma condenação à morte!

A esta
aparição da Morte, surdindo dos pântanos, Barrolo atirou uma palmada aojoelho,
desconfiado: — Mas quem diabo te contou tudo isso?

O Fidalgo
da Torre encarou o cunhado com desdém, com piedade:- Quem me contou!? E quem me
contou que D. Sebastião morreu em Alcácer Quibir?… São os factos. É a
História. Toda Oliveira sabe. Por acaso ainda esta manhã oGuedes e eu
conversámos sobre o caso. Mas eu já sabia!… E tenho tido pena. Que diabo! Não
há crime em se estar apaixonado como o pobre André. Louco, perdido! Até a
chorar na Repartição, diante do Secretário -Geral. E a rapariga às
gargalhadas!… Agoraonde há crime, e horrendo, é na perseguição ao irmão, ao
pagador, empregado excelente, dum talento raro… E o dever de todo o homem de
bem, que preze a dignidadeda Administração e a dignidade dos costumes, é
denunciar a infâmia… Eu, pela minha parte, cumpri esse bom dever. E com certo
brilho, louvado Deus!

— Que
fizeste?- Enterrei na ilharga do Sr. Governador Civil a minha boa pena de
Toledo, até à rama! O Barrolo, impressionado, beliscava a pele do pescoço. O
piano emudecera: mas Gracinha não se movia do mocho, com os dedos entorpecidos
nas teclas, como esquecida diante da larga folha onde se enfileiravam, na letra
apurada do Videirinha, asquadras triunfais dos Ramires. E subitamente Gonçalo
sentiu, naquela imobilidade sufocada, o despeito que a trespassava.
Sensibilizado, para a libertar, lhe poupar algumsoluço, escapando
irresistivelmente, correu ao piano, bateu com carinho nos pobres ombros
vergados que estremeceram:

— Tu não
dás conta desse lindo fado, rapariga! Deixa, que eu cantarolo umaquadra, à boa
moda do Videirinha… Mas primeiramente sê um anjo… Grita aí no corredor que
me tragam um copo de água bem fresca do Poço Velho.Ensaiou as teclas, entoou versos,
ao acaso, num esforço esganiçado:

Ora na
grande batalha, Quatro Ramires valentes…

Gracinha
desaparecera por uma fenda do reposteiro, sem rumor. Então o bomBarrolo, que
diante da sua terrina da índia enrolava um cigarro com pensativo cuidado,
correu, desafogou, debruçado sobre Gonçalo, da certeza que lentamente o
invadira:- Pois, menino, sempre te digo… Essa irmã do Noronha é um mulherão
soberbo! Mas o que eu não acredito é que ela se fizesse arisca. Com o
Cavaleiro, bonito rapaz,Governador Civil?… Não acredito. O Cavaleiro
saboreou!

E com as
bochechas luzidias de admiração: — Aquele velhaco! Para cavalos e para
mulheres, não há outro em Oliveira!

 

Capítulo V

 

A Gazeta
do Porto , com a correspondência vingadora, devia desabar sobre Oliveira na quarta
-feira de manhã, dia dos anos da prima Maria Mendonça. Mas Gonçalo, ainda que
não temesse (ressalvado pelo seu pseudónimo de Juvenal) umabriga grosseira com
o Cavaleiro nas ruas da cidade, nem mesmo com algum dos seus partidários servis
e façanhudos, como o Marcolino do Independente — recolheudiscretamente a Santa
Ireneia na terça -feira, a cavalo, acompanhado pelo Barrolo até à Vendinha,
onde ambos provaram o vinho branco celebrado pelo Titó. Depois, para recordar
os lugares memoráveis em que na sua novela se encontravam, com desastradochoque
de armas, Lourenço Ramires e o Bastardo de Baião — tomou o caminho que,
atravessando os pomares da espalhada aldeia de Canta Pedra, entronca na estrada
dosBravais.

Num trote
folgado passara à Fábrica de Vidros, depois o Cruzeiro sempre coberto pelas
pombas que esvoaçam do pombal da fábrica. E entrava no lugar de Nacejas
-quando, à janela duma casinha muito limpa, rodeada de parreiras, apareceu uma
linda rapariga, morena e fina, com jaqué de pano azul e lenço de cambraieta
bordada sobrefartos bandós ondeados. Gonçalo, sopeando a égua, saudou, sorriu
suavemente:

— Perdão,
minha menina… Vou bem por aqui, para Canta Pedra? — Vai, sim senhor. Em
baixo, à ponte, mete para a direita, para os álamos. E ésempre a seguir…

Gonçalo
suspirou, gracejando:- Antes desejava ficar! A moça corou. E o Fidalgo ainda se
torceu no selim para gozar a fina face morena, entre os dois craveiros da
janelinha, na casa tão bem caiada.Nesse momento, ao lado duma quelha enramada,
desembocava um caçador do campo, de jaleca e barrete vermelho, com a espingarda
atravessada nas costas, seguidopor dois perdigueiros. Era um latagão airoso,
que todo ele, no bater dos sapatões brancos, no menear da cinta enfaixada em
seda, no levantar da face clara de suíças loiras, transbordava de presunção e
pimponice. Num relance surpreendeu o sorriso, aatenção galante do Fidalgo. E
estacou, pregando sobre ele, com lenta arrogância, os belos olhos pestanudos.
Depois passou desdenhosamente, sem se arredar da égua naladeira estreita, quase
raspando pela perna do Fidalgo o cano da caçadeira. Mas adiante ainda atirou
uma tossidela seca e de chasco com um bater mais petulante dos tacões.

Gonçalo
picou a égua, colhido logo por aquele desgraçado temor, aqueledesmaiado arrepio
da carne, que sempre, ante qualquer risco, qualquer ameaça, o forçava
irresistivelmente a encolher, a recuar, a abalar. Em baixo, na ponte,
desesperadocontra a sua timidez, deteve o trote, espreitou para trás, para a
branca casa florida. O mocetão parara, encostado à espingarda, sob a janela
onde a rapariga morena se debruçava entre os dois vasos de cravos. E assim
encostado, depois de rir para a moça,acenou ao Fidalgo, num desafio largo, com
a cabeça alta, a borla do barrete toda espetada como uma crista flamante.Gonçalo
Mendes Ramires meteu a galope pelo copado caminho de álamos, que acompanha o
riacho das Donas. Em Canta Pedra nem se demorou a estudar (como tencionava para
proveito da sua novela) o vale, a ribeira espraiada, as ruínas do mosteirode
Recadães sobre a colina, e no cabeço fronteiro o moinho que assenta sobre as
denegridas pedras da antiga e tão falada Honra de Avelãs. De resto o céu,
cinzento eabafado desde manhã, entenebrecia para os lados de Craquede e de Vila
Clara. Um bafo morno remexeu a folhagem sedenta. E já gotas pesadas se
esmagavam na poeira quandoele, sempre galopando, entrou na estrada dos Bravais.

Na Torre
encontrou uma carta do Castanheiro. O Patriota ansiava por saber «seessa Torre
de D. Ramires se erguia enfim para honra das letras, como a outra, a genuína,se
erguera outrora, em séculos mais ditosos, para orgulho das armas E acrescentava
num pós-escrito — «Planeio imensos cartazes, pregados a cada esquina de cada
cidade dePortugal, anunciando em letras de côvado a aparição salvadora dos
ANAIS! E, como tenciono prometer neles aos povos a sua preciosa novelazinha,
desejo que o amigoGonçalo me informe se ela tem, à moda de 1830, um saboroso
subtítulo, como Episódios do século XII, ou Crónica do Reinado de Afonso II ,
ou Cenas da Meia Idade Portuguesa… Eu voto pelo subtítulo. Como o subsolo num
edifício, o subtítulo numlivro alteia e dá solidez. À obra, pois, meu Ramires,
com essa sua imaginação feracíssima!»Esta invenção de imensos cartazes, com o
seu nome e o título da sua novela em letras de cores estridentes, enchendo cada
esquina de Portugal, deleitou o Fidalgo. E logo nessa noite, ao rumor da chuva
densa que estalava na folhagem dos limoeiros,retomou o seu manuscrito, parado
nas primeiras linhas, amplas e sonoras, do Capítulo II… Através delas, e na
frescura da madrugada, Lourenço Mendes Ramires, com o troço de cavaleiros e
peonagem da sua mercê, corria sobre Montemor em socorro das senhoras Infantas.
Mas, ao penetrar no vale de Canta Pedra, eis que o esforçado filho deTructesindo
avista a mesnada do Bastardo de Baião, esperando desde alva (como anunciara
Mendo Pais) para tolher a passagem. — E então, nesta sombria novela desangue e
homizios, brotava inesperadamente, como uma rosa na fenda dum bastião, um lance
de amor, que o tio Duarte cantara no Bardo com dolente elegância.

Lopo de
Baião, cuja beleza loira de fidalgo godo era tão celebrada por toda a terrade
Entre Minho e Douro, que lhe chamavam o Claro Sol, amara arrebatadamente D.
Violante, a filha mais nova de Tructesindo Ramires. Em dia de S. João, no solar
deLanhoso, onde se celebravam lides de touros e jogos de tavolagem, conhecera
ele a donzela esplêndida, que o tio Duarte, no seu poemeto, louvava com
deslumbrado encanto:

Que
líquido fulgor dos negros olhos! Que fartas tranças de lustroso ébano!

E ela,
certamente, rendera também o coração àquele moço resplandecente de corde ouro,
que, nessa tarde de festa, arremessando o rojão contra os touros, ganhara duas
faixas bordadas pela nobre Dona de Lanhoso — e à noite, no sarau, se requebrara
comtão repicado garbo, na dança dos Marchatins… Mas Lopo era bastardo, dessa
raça de Baião, inimiga dos Ramires por velhíssimas brigas de terras e
precedências desde o conde D. Henrique — ainda assanhadas depois, durante as
contendas de D. Teresa e deAfonso Henriques, quando na cúria dos Barões, em
Guimarães, Mendo de Baião, bandeado com o Conde de Trava, e Ramires o Cortador,
colaço do moço Infante, searrojaram às faces os guantes ferrados. E, fiel ao
ódio secular, Tructesindo Ramires recusara com áspera arrogância a mão de
Violante ao mais velho dos de Baião, um dos valentes de Silves, que pelo Natal,
na Alcáçova de Santa Ireneia, lha pedira para Lopo,seu sobrinho, o Claro Sol,
oferecendo avenças quase submissas de aliança e doce paz. Este ultraje
revoltara-o solar de Baião — que se honrava em Lopo, apesar de bastardo,pelo
lustre da sua bravura e graça galante. E então Lopo, ferido doridamente no seu
coração, mais furiosamente no seu orgulho, para fartar o esfaimado desejo, para
infamar o claro nome dos Ramires — tentou raptar D. Violante. Era na Primavera,
com todas asveigas do Mondego já verdes. A donosa senhora, entre alguns
escudeiros da Honra e parentes, jornadeava de Treixedo ao mosteiro de Lorvão,
onde sua tia D. Branca eraabadessa… Languidamente, no Bardo, descantara o tio
Duarte o romântico lance:

Junto à
fonte mourisca, entre os ulmeiros, A cavalgadura pára…

E junto
aos ulmeiros da fonte surgira o Claro Sol — que, com os seus, espreitavadum
cabeço! Mas, logo no começo da curta briga, um primo de D. Violante, o
agigantado senhor dos Paços de Avelim, o desarmou, o manteve um
momentoajoelhado sob o lampejo e gume da sua adaga. E com vida perdoada,
rugindo de surda raiva, o Bastardo abalou entre os poucos solarengos que o
acompanhavam nesta afoitaarremetida. Desde então mais fero ardera o rancor
entre os de Baião e os Ramires. E eis agora, nesse começo da Guerra das
Infantas, os dois inimigos rosto a rosto no vale estreito de Canta Pedra! Lopo,
com um bando de trinta lanças e mais de cem besteirosda hoste real. Lourenço
Mendes Ramires com quinze cavaleiros e noventa homens de pé do seu
pendão.Agosto findava: e o demorado Estio amarelecera toda a relva, as
pastagens famosas do vale, até a folhagem de amieiros e freixos pela beira do riacho
das Donas que se arrastava entre as pedras lustrosas, em tios escassos, com
dormido murmúrio.Sobre um outeiro, dos lados de Ramilde, avultava, entre
possantes ruínas eriçadas de sarças, a denegrida Torre Redonda, resto da velha
Honra de Avelãs, incendiada duranteas cruas rixas dos de Salzedas e dos de
Landim, e agora habitada pela alma gemente de Guiomar de Landim, a Malcasada.
No cabeço fronteiro e mais alto, dominando o vale, o mosteiro de Recadães
estendia as suas cantarias novas, com o forte torreão, asseteadocomo o duma
fortaleza — de onde os monges se debruçavam, espreitando, inquietos com aquele
coriscar de armas que desde alva enchia o vale. E o mesmo temor acossara
asaldeias chegadas — porque, sobre a crista das colinas, se apressavam para o santo
e murado refúgio do convento gentes com trouxas, carros toldados, magras filas
de gados.

Ao
avistar tão rijo troço de cavaleiros e peões, espalhado até à beira do riacho
porentre a sombra dos freixos, Lourenço Ramires sofreou, susteve a leva, junto
dum montão de pedras onde apodrecia, encravada, uma tosca cruz de pau. E o seu
esculca,que largara rédeas soltas, estirado sob o escudo de couro, para
reconhecer a mesnada — logo voltou, sem que frecha. ou pedra de funda o
colhessem, gritando:

— São
homens de Baião e da hoste real!Tolhida pois a passagem! E em que desigualado
recontro! Mas o denodado

Ramires
não duvidou avançar, travar peleja. Sozinho que assomasse ao vale, com
umaquebradiça lança de monte, arremeteria contra todo o arraial do Bastardo…
— No entanto já o adail de Baião se adiantara, curveteando no rosilho magro,
com a espada atravessada por cima do morrião que penas de garça emplumavam. E
pregoava, atroavao vale com o rouco pregão:

— Deter,
deter! que não há passagem! E o nobre senhor de Baião, em recado deEl-Rei e por
mercê de Sua Senhoria, vos guarda vidas salvas se volverdes costas sem rumor e
tardança!

Lourenço
Ramires gritou:- A ele, besteiros!

Os
virotes assobiaram. Toda a curta ala dos cavaleiros de Santa Ireneia
tropeoupara dentro do vale, de lanças ristadas. E o filho de Tructesindo,
erguido nos estribões de ferro, debaixo do pano solto do seu pendão que
apressadamente o alferes sacara da funda, descerrou a viseira do casco para que
lhe mirassem bem a face destemida, elançou ao Bastardo injúrias de furioso
orgulho:

— Chama
outros tantos dos vilões que te seguem que, por sobre eles e por sobre
ti,chegarei esta noite a Montemor! E o Bastardo, no seu fouveiro, que uma rede
de malha cobria, toda acairelada de ouro, atirava a mão calçada de ferro,
clamava:- Para trás, de onde vieste, voltarás, burlão traidor, se eu por mercê
mandar a teu pai o teu corpo numas andas!Estes feros desafios rolavam em versos
serenamente compassados no poemeto do tio Duarte. E depois de os reforçar,
Gonçalo Mendes Ramires (sentindo a alma enfunada pelo heroísmo da sua raça,
como por um vento que sopra de funda campina), arrojou umcontra o outro os dois
bandos valorosos. Grande briga, grande grita…

— Ala!
Ala!- Rompe! Rompe! — Cerra por Baião! — Casca pelos Ramires!Através da grossa
poeirada e do alevanto zunem os garruchões, as rudes balas de barro despedidas
das fundas. Almogavres de Santa Ireneia, almogavres da hoste real,em turmas
ligeiras, carregam, topam, com baralhado arremesso de ascumas que se partem, de
dardos que se cravam; e ambas logo refogem, refluem enquanto, no chão revolto,
algum malferido estrebucha aos urros, e os atordoados cambaleando buscam,sob o
abrigo do arvoredo, a fresquidão do riacho. Ao meio, no embate mais nobre da
peleja, por cima dos corcéis que se empinam, arfando ao peso das coberturas de
malha,as lisas pranchas dos montantes lampejam, retinem, embebidas nas chapas
de broquéis: — e já, dos altos arções de couro vermelho, desaba algum hirto e
chapeado senhor, com um baque de ferragens sobre a terra mole. Cavaleiros e
infanções, porém, como numtorneio, apenas terçam lanças para se derribarem,
abolados os arneses, com clamores de excitada ufania; e sobre a vilanagem
contrária, em quem cevam o furor da matança, seabatem os seus espadões, se despenham
as suas achas, esmigalhando os cascos de ferro como bilhas de greda.

Por entre
a. peonagem de Baião e da hoste real, Lourenço Ramires avança maislevemente que
ceifeiro apressado entre erva tenra. A cada arranque do seu rijo murzelo,
alagado de espuma, que sacode furiosamente a testeira rostrada — sempre, entre
pragasou gritos por Jesus! um peito verga trespassado, braços se retorcem em
agonia. Todo oseu afã era chocar armas com Lopo. Mas o Bastardo, tão
arremessado e afrontador em combate, não se arredara nessa manhã da lomba do
outeiro, onde uma fila de lanças oguardava, como uma estacada; e com brados,
não com golpes, aquentava a lide! No ardor desesperado de romper a viva cerca,
Lourenço gastava as forças, berrandoroucamente pelo Bastardo, com os duros
ultrajes de churdo! e marrano! já de entre a trama falseada do camalho lhe
borbulhavam do ombro, pela loriga, fios lentos de sangue. Um lanço de virotão,
que lhe partira as charneiras da greva esquerda, fendera aperna de onde mais
sangue brotava, ensopando o forro de estopa. Depois, varado por uma frecha na
anca, o seu grande ginete abateu, rolou, estalando no escoucear as
cilhaspregueadas. E, desembrulhado dos loros com um salto, Lourenço Ramires
encontrou em roda uma sebe eriçada de espadas e chuços, que o cerraram —
enquanto do outeiro, debruçado na sela, o Bastardo bramava:- Tende! tende! para
que o colhais às mãos!

Trepando
por cima de corpos, que se estorcem sob os seus sapatos de ferro, ovalente moço
arremete, a golpes arquejados, contra as pontas luzentes que recuam, se
furtam… E, triunfantes, redobram os gritos de Lopo de Baião:

— Vivo,
vivo! tomade-lo vivo!- Não, se me restar alma, vilão! — rugia Lourenço, E mais
raivosamente investia, quando um calhau agudo lhe acertou no braço — quelogo amorteceu,
pendeu, com a espada arrastando, presa ainda ao punho pelo grilhão, mas sem
mais servir que uma roca. Num relance ficou agarrado por peões que lhe filavam
a gorja, enquanto outros com varadas de ascuma lhe vergavam as pernasretesadas.
Tombou por fim direito como um madeiro; — e nas cordas com que logo o
amarraram, jazeu hirto, sem elmo, sem cervilheira, os olhos duramente cerrados,
oscabelos presos numa pasta de poeira e de sangue.

Eis pois
cativo Lourenço Ramires! E, diante das andas feitas de ramos e franças de faias
em que o estenderam, depois de o borrifarem à pressa com a água fresca doriacho
— o Bastardo, limpando às costas da mão o suor que lhe escorria pela face
formosa, pelas barbas douradas, murmurava, comovido:- Ah! Lourenço, Lourenço, grande
dor, que bem pudéramos ser irmãos e amigos.

Assim,
ajudado pelo tio Duarte, por Walter Scott, por notícias do Panorama, compusera
Gonçalo a mal -aventurada lide de Canta Pedra. E com este desabafo deLopo, onde
perpassava a mágoa do amor vedado, fechou o Capítulo II, sobre que labutara
três dias -tão embrenhadamente que em torno o Mundo como que se calara e
sefundira em penumbra.

Uma
girândola de foguetes estourou ao longe, para o lado dos Bravais, onde no
domingo se fazia a romaria celebrada da Senhora das Candeias. Depois da
chuvadaqueles três dias, uma frescura descia do céu, amaciado e lavado sobre os
campos mais verdes. E como ainda restava meia hora farta antes de jantar, o
Fidalgo agarrou ochapéu, e mesmo na sua velha quinzena de trabalho, com uma
bengalinha de cana, desceu à estrada, tomou pelo caminho que se estreita entre
o muro da Torre e as terras de centeio onde assentavam no século XII as
barbacãs da Honra de Santa Ireneia.Pela silenciosa vereda, ainda húmida,
Gonçalo pensava nos seus avós formidáveis. Como eles ressurgiam, na sua novela,
sólidos e ressoantes! E realmenteuma compreensão tão segura daquelas almas
Afonsinas mostrava que a sua alma conservava o mesmo quilate e saíra do mesmo
rico bloco de ouro. Porque um coração mole, ou degenerado, não saberia narrar
corações tão fortes, de eras tão fortes: -e nuncao bom Manuel Duarte ou o
Barrolo excelente entenderiam, bastante para lhes reconstruir os altos
espíritos, Martim de Freitas ou Afonso de Albuquerque… Nesta finaverdade
desejaria ele que os críticos insistissem ao estudar depois a Torre de D.
Ramires — pois que o Castanheiro lhe assegurara artigos consideráveis nas
Novidades e na Manhã. Sim! eis o que convinha marcar com relevo (e ele o
lembraria aoCastanheiro!) — que os Ricos-Homens de Santa Ireneia reviviam no
seu neto, senão pela continuação heróica das mesmas façanhas, pela mesma
alevantada compreensão doheroísmo… Que diabo! sob o reinado do horrendo S.
Fulgêncio, ele não podia desmantelar o solar de Baião, desmantelado há seiscentos
anos por seu avô Leonel Ramires — nem retomar aos Mouros essa torreada
Monforte, onde o Antoninho Morenoera o lânguido Governador Civil! Mas sentia a
grandeza e o préstimo histórico desse arrojo, que outrora impelia os seus a
arrasar solares rivais, a escalar vilas mouriscas;ressuscitava pelo Saber e
pela Arte, arrojava para a vida ambiente, esses varões temerosos, com os seus
corações, os seus trajes, as suas imensas cutiladas, as suas bravatas sublimes;
dentro do espírito e das expressões do seu século era pois um bomRamires — um
Ramires de nobres energias, não façanhu das, mas intelectuais, como competia
numa idade de intelectual descanso. E os jornais, que tanto motejam adecadência
dos fidalgos de Portugal, deveriam em justiça afirmar (e ele o lembraria ao
Castanheiro!):

— «Eis aí
um, e o maior, que, com as formas e os modos do seu tempo, continua ehonra a
sua raça!» Através destes pensamentos, que mais lhe enrijavam as passa das
sobre chão tãocalcado pelos seus — o Fidalgo da Torre chegara à esquina do muro
da quinta, onde uma ladeirenta e apertada azinhaga a divide do pinheiral e da
mata. Do portão nobre, que outrora se erguera nesse recanto com lavores e
brasão de armas, restam apenas os doisumbrais de granito, amarelados de musgo,
cerrados contra o gado por uma cancela de tábuas mal pregadas, carcomidas da
chuva e dos anos. E nesse momento, da azinhagafunda, apagada em sombra, subia
chiando, carregado de mato, um carro de bois, que uma linda boieirinha guiava.

— Nosso
Senhor lhe dê muito boas -tardes!- Boas-tardes, florzinha!

O carro
lento passou. E logo atrás surdiu um homem, esgrou viado e escuro,trazendo ao
ombro o cajado, de onde pendia um molho de cordas. O Fidalgo da Torre
reconheceu o José Casco dos Bravais. E seguia, como desatento, pela orla do
pinheiral, assobiando, ras pando com a bengalinha as silvasfloridas do vaiado.
O outro, porém, estugou o passo esgalgado, lançou duramente, no silêncio do
arvoredo e da tarde, o nome do Fidalgo. Então, com um pulo do coração,Gonçalo
Mendes Ramires parou, forçando um sorriso afável:

— Olá! É
você, José! Então que temos? O Casco engasgara, com as costelas a arfar sob a
encardida camisa de trabalho.Por fim, desenfiando das cordas o marmeleiro que
cravou, no chão pela choupa:

— Temos
que eu falei sempre claro com o Fidalgo, e não era para que depois mefaltasse à
palavra! Gonçalo Ramires levantou a cabeça com uma dignidade lenta e custosa —
como se levantasse uma maça de ferro:- Que está você a dizer, Casco? Faltar à
palavra! em que lhe faltei eu à palavra?…

Por causa
do arrendamento da Torre? Essa é nova! Então houve por acaso escrituraassinada
entre nós? Você não voltou, não apareceu…

O Casco
emudecera, assombrado. Depois, com uma cólera em que lhe tremiam os beiços
brancos, lhe tremiam as secas mãos cabeludas, fincadas ao cabo do varapau:- Se
houvesse papel assinado, o Fidalgo não podia recuar!… Mas era como se
houvesse, para gente de bem!… Até V. S.a disse, quando eu aceitei: «viva!
estátratado!…» O Fidalgo deu a sua palavra!

Gonçalo,
enfiado, aparentou a paciência dum senhor benévolo: — Escute, José Casco. Aqui
não é lugar, na estrada. Se quer conversar comigo,apareça na Torre. Eu lá estou
sempre, como você sabe, de manhã… Vá amanhã, não me incomoda.E endireitava
para o pinhal, com as pernas moles, um suor arrepiado na espinha — quando o
Casco, num rodeio, num salto leve, atrevidamente se lhe plantou diante,
atravessando o cajado:- O Fidalgo há -de dizer aqui mesmo! O Fidalgo deu a sua
palavra!… A mim não se me fazem dessas desfeitas… O Fidalgo deu a sua
palavra!Gonçalo relanceou esgazeadamente em redor, na ânsia dum socorro. Só o
cercava solidão, arvoredo cerrado. Na estrada, apenas clara sob um resto de
tarde, o carro de lenha, ao longe, chiava, mais vago. As ramas altas dos
pinheiros gemiam com umgemer dor mente e remoto. Entre os troncos já se a
densava sombra e névoa. Então, estarrecido, Gonçalo tentou um refúgio na ideia
de justiça e de Lei, que aterra oshomens do campo. E como amigo que aconse lha
um amigo, com brandura, os beiços ressequidos e trémulos:

— Escute,
Casco, escute, homem! As coisas não se arranjam assim, a gritar. Podehaver
desgosto, aparecer o regedor. Depois é o tribunal, é a cadeia. E você tem
mulher, tem filhos pequenos… Escute! Se descobriu motivo para se queixar, vá
à Torre, conver-samos. Pacatamente tudo se esclarece, homem… Com berros, não!
Vem o cabo, vem a enxovia…

Então de
repente o Casco cresceu todo, no solitário caminho, negro e alto comoum
pinheiro, num furor que lhe esbugalhava os olhos esbraseados, quase sangrentos:

— Pois o
Fidalgo ainda me ameaça com a justiça!… Pois ainda por cima de mefazer a
maroteira, me ameaça com a cadeia!… Então, com os diabos! primeiro que entre
na cadeia lhe hei-de eu esmigalhar esses ossos!…

Erguera o
cajado… — Mas, num lampejo de razão e respeito, ainda gritou, com acabeça a
tremer para trás, através dos dentes cerrados:

— Fuja,
Fidalgo, que me perco!… Fuja que o mato e me perco!Gonçalo Mendes Ramires
correu à cancela entalada nos velhos umbrais de granito, pulou por sobre as
tábuas mal pregadas, enfiou pela latada que orla o muro, numa carreira furiosa
de lebre acossada! Ao fim da vinha, junto aos milheirais, umafigueira brava,
densa em folha, alastrara dentro dum espigueiro de granito destelhado e
desusado. Nesse esconderijo de rama e pedra se alapou o Fidalgo da Torre,
arquejando.O crepúsculo descera sobre os campos — e com ele uma serenidade em
que adormeciam frondes e relvas. Afoitado pelo silêncio, pelo sossego, Gonçalo
abandonou o cerrado abrigo, recomeçou a correr, num correr manso, na ponta das
botas brancas, sobre o chãomole das chuvadas, até ao muro da Mãe -d’água. De
novo estacou, esfalfado. E julgando entrever, longe, à orla do arvoredo, uma
mancha clara, algum jornaleiro em mangas decamisa, atirou um berro ansioso: —
«Oh! Ricardo! Oh! Manuel! Eh lá, alguém! Vai aí alguém?…» — A mancha indecisa
fundira na indecisa folhagem. Uma rã pinchou num regueiro. Estremecendo,
Gonçalo retomou a carreira até ao canto do pomar — ondeencontrou fechada uma
porta, velha porta mal segura, que abanava nos gonzos ferrugentos. Furioso,
atirou contra ela os ombros, que o terror enrijara como trancas.Duas tábuas
cederam, ele furou através, esgaçando a quinzena num prego. — E respirou enfim
no agasalho do pomar murado, diante das varandas da casa abertas à frescura da
tarde, junto da Torre, da sua Torre, negra e de mil anos, mais negra e como
maiscarregada de anos contra a macia claridade da lua nova que subia.

Com o
chapéu na mão, enxugando o suor, entrou na horta, costeou o feijoal. Eagora
subitamente sentia uma cólera amarga pelo desamparo em que se encontrara, numa
quinta tão povoada, enxameando de gentes e dependentes! Nem um caseiro, nem um
jornaleiro, quando ele gritara, tão aflito, da borda da Mãe -d’água! De cinco criadosnenhum
acudira — e ele perdido, ali, a uma pedrada da eira e da abegoaria! Pois que
dois homens corressem com paus ou enxadas — e ainda colhiam o Casco na estrada,
omalhavam como uma espiga.

Ao pé do
galinheiro, sentindo uma risada fina de rapariga, atravessou o pátio para a
porta alumiada da cozinha. Dois moços da horta, a filha da Crispola,
Rosa,tagarelavam, regaladamente sentados num banco de pedra sob a fresca
escuridão da latada. Dentro o lume estralejava — e a panela do caldo, fervendo,
rescendia. Toda acólera do Fidalgo rompeu:

— Então,
que sarau é este? Vocês não me ouviram chamar?… Pois encontrei lá em baixo,
ao pé do pinheiral, um bêbedo, que me não conheceu, veio para mim com uma
foice!… Felizmente levava a bengala. E chamo, grito… Qual! Tudo aqui de
palestra, e a ceia a cozer! Que desaforo! Outra vez que suceda, todos para a
rua… E quemresmungar, a cacete!

A sua
face chamejava, alta e valente. A pequena da Crispola logo se
escapulira,encolhida, para o recanto da cozinha, para trás da masseira. Os dois
moços, erguidos, vergavam como duas espigas sob um grande vento. E enquanto a
Rosa, aterrada, sebenzia, se derretia em lamentações sobre «desgraças que assim
se armam!» Gonçalo, deleitado pela submissão dos dois homens, ambos tão rijos, com
tão grossos varapaus encostados à parede, amansava:- Realmente! sois todos
surdos, nesta pobre casa!… Além disso a porta do pomar fechada! Tive de lhe
atirar um empurrão. Ficou em pedaços.Então um dos moços, o mais alentado,
ruivo, com um queixo de cavalo, pensando que o Fidalgo censurava a frouxidão da
porta pouco cuidada, coçou a cabeça, numa desculpa:- Pois, com perdão do
Fidalgo!… Mas já depois da saída do Relho se lhe pôs uma travessa e fechadura
nova… E valente!- Qual fechadura! — gritou o Fidalgo soberbamente. —
Despedacei a fechadura, despedacei a travessa… Tudo em estilhas!

O outro
moço, mais desembaraçado e esperto, riu, para agradar:- Santo nome de Deus!…
Então, é que o Fidalgo lhe atirou com força!

E o
companheiro, convencido, espetando o queixo enorme: — Mas que força! amatar!
Que a porta era rija… E fechadura nova, já depois do Relho! A certeza da sua
força, louvada por aqueles fortes, reconfortou inteiramente o Fidalgo da Torre,
já brando, quase paternal:- Graças a Deus, para arrombar uma porta, mesmo nova,
não me falta força. O que eu não podia, por decência, era arrastar ai por essas
estradas um bêbedo com umafoice até casa do Regedor… Foi para isso que
chamei, que gritei. Para que vocês o agarrassem, o levassem ao Regedor!… Bem,
acabou. Oh! Rosa, dê a estes rapazes, para a ceia, mais uma caneca de vinho…
A verse para a outra vez se afoitam, se aparecem…Era agora como um antigo
senhor, um Ramires de outros séculos, justo e avisado, que repreende uma
fraqueza dos seus solarengos — e logo perdoa por conta e amor dasfaçanhas
próximas. Depois, com a bengala ao ombro, como uma lança, subiu pela lôbrega
escada da cozinha. E em cima, no quarto, apenas o Bento entrara para o vestir,
recomeçou a sua epopeia, mais carregada, mais terrífica — assombrando o
sensívelhomem, estacado rente da cómoda, sem mesmo pousar a infusa de água
quente, as botas envernizadas, a braçada de toalhas que o ajoujavam…. O
Casco! O José Casco dosBravais, bêbedo, rompendo para ele, sem o conhecer, com
uma foice enorme, a berrar — «Morra, que é marrão!…» E ele na estrada, diante
do bruto, de bengalinha! Mas atira um salto, a foiçada resvala sobre um tronco
de pinheiro… Então arremete desabaladamente,brandindo a bengala, gritando
pelo Ricardo e pelo Manuel, como se ambos o escoltassem — e ataranta o Casco,
que recua, se some pela azinhaga, a cambalear, agrunhir…

— Hem,
que te parece? Se não é a minha audácia, o homem positivamente me ferra um tiro
de espingarda!O Bento, que quase se babava, com o jarro esquecido a pingar no
tapete, pestanejou, confuso, mais atónito:- Mas o Sr. Doutor disse que era uma
foice!

Gonçalo
bateu o pé, impaciente: — Correu para mim com uma foice. Mas vinha atrás do
carro… E no carro traziauma espingarda. O Casco é caçador, anda sempre de
espingarda… Enfim estou aqui vivo, na Torre, por mercê deDeus. E também
porque, felizmente, nestes casos, não me falta decisão!

E
apressou o Bento — porque, com o abalo, o esforço, positivamente lhe tremiamas
pernas de cansaço e de fome… Além da sede! — Sobretudo sede! Esse vinho que
venha bem fresco… Do verde e do alvarelhão,para misturar. O Bento, com um
trémulo suspiro da emoção atravessada, enchera. a bacia, estendia as toalhas.
Depois, gravemente:- Pois, Sr. Doutor, temos esse andaço nos sítios! Foi o
mesmo que sucedeu ao Sr.

Sanches
Lucena, na Feitosa…- Como, ao Sr. Sanches Lucena?

O Bento
desenrolou então uma tremenda história trazida à Torre, durante a estada do Sr.
Doutor em Oliveira, pelo cunhado da Crispola, o Rui carpinteiro, que
trabalhavanas obras da Feitosa. O Sr. Sanches Lucena descera uma tarde, ao
lusco -fusco, à porta do mirante, quando passam na estrada dois jornaleiros,
bêbedos ou facínoras, queimplicam com o excelente senhor. E chufas, risinhos,
momices… O Sr. Sanches, com paciência, aconselhou os homens que seguissem,
não se desmandassem. De repente um deles, um rapazola, sacode a jaqueta do
ombro, ergue o cajado! Felizmente ocompanheiro, que se afirmara, ainda gritou:
— «Ai! rapaz, que ele é o nosso deputado!». O rapazola abalou, espavorido. O
outro até se atirou de joelhos diante do Sr. SanchesLucena… Mas o pobre
senhor, com o abalo, recolheu à cama!

Gonçalo
acompanhara a história, secando vagarosamente as mãos à toalha, impressionado:-
Quando foi isso?

— Pois
disse ao Sr. Doutor… Quando o Sr. Doutor estava em Oliveira. Um diaantes ou
um dia depois dos anos da Sr a D. Graça. O Fidalgo arremessou a toalha, limpou
pensativamente as unhas. Depois com um risinho incerto e leve:- Enfim, sempre
serviu de alguma coisa ao Sanches Lucena ser deputado por Vila

Clara…E
já vestido, abastecendo a charuteira (porque resolvera passar a noite na vila,
a desabafar com o Gouveia) — de novo se voltou para o Bento, que arrumava a
roupa:

— Então o
bêbedo, quando o outro lhe gritou «Ai, que é o nosso deputado», caiuem si,
fugiu, hem?… Ora vê tu! Ainda vale ser deputado! Ainda inspira respeito,
homem! Pelo menos inspira mais respeito que descender dos reis de Leão!…
Paciência,toca a jantar.

Durante o
jantar, misturando copiosamente o verde e o alvarelhão, Gonçalo nãocessou de
ruminar a ousadia do Casco. Pela primeira vez, na história de Santa Ireneia, um
lavrador daquelas aldeias, crescidas à sombra da Casa ilustre, por tantos
séculossenhora em monte e vale, ultrajava um Ramires! E brutalmente, alçando o
cajado, diante dos muros da quinta histórica!… Contava seu pai que, em vida
do bisavô Inácio, ainda desde Ramilde até Corinde, os homens dobravam o joelho
nos caminhos quandopassava o senhor da Torre. E agora levantavam a foice!… E
porquê? Porque ele não se desfalcara submissamente das suas rendas, em proveito
dum façanhudo! — Em temposdo avô Tructesindo, vilão de tal atentado assaria,
como porco -montês, numa ruidosa fogueira, diante das barbacãs da Honra. Ainda
em dias do bisavô Inácio apodreceria numa masmorra. E o Casco não podia escapar
sem castigo. A impunidade só lheincharia a audácia; e assomado, rancoroso,
noutro encontro, sem mais falas, desfechava a caçadeira. Oh! não lhe desejava
um mal durável, coitado, com dois filhos pequeninos- um que mamava. Mas que o
arrastassem à Administração, algemado, entre dois cabos-de-polícia — e que na
triste saleta, de onde se avistam as grades da cadeia, apanhasse uma repreensão
tremenda do Gouveia, do Gouveia muito seco, muitoesticado na sobrecasaca
negra… Assim se devia resguardar, por meios tortuosos — pois que não era
deputado, e que, com o seu talento, o seu nome, essa espantosa linhagem deavós
que edificara o Reino, carecia o prestígio dum Sanches Lucena, o precioso
prestígio que suspende no ar os varapaus atrevidos!

Apenas
findou o café, mandou pelo Bento avisar os dois moços da horta, oRicardo e o
outro de queixo de cavalo, que o esperassem no pátio, armados. Porque na

Torre
ainda sobrevivia uma «sala de armas» — cacifro tenebroso, junto ao arquivo
ondese amontoavam peças aboladas de armaduras, um lorigão de malha, um broquel
mourisco, alabardas, espadões, polvorinhos, bacamartes de 1820, e entre esta
poeirenta ferralhagem negra três espingardas limpas com que os moços da quinta,
na romaria deS. Gonçalo, atiravam descargas em louvor do Santo.

Depois,
ele, encafuou o revólver na algibeira, desenterrou do armário do corredorum
velho bengalão de cabo de chumbo entrançado, agarrou um apito. E assim
precavido, aquecido pelo verde e pelo alvarelhão, com os dois criados de
caçadeira ao ombro, importantes e tesos, partiu para Vila Clara, procurar o Sr.
Administrador doConcelho. A noite envolvia os campos em sossego e frescura. A
lua nova, que limpara o tempo, roçava a crista dos outeiros de Valverde, como a
roda lustrosa dum carro deouro. No silêncio os rijos sapatões pregueados dos
dois jornaleiros ressoavam em cadência. E Gonçalo adiante, de charuto flamante,
gozava aquela marcha, em que de novo um Ramires trilhava os caminhos de Santa
Ireneia, com homens da sua mercê esolarengos armados.

Ao começo
da vila, porém, recolheu discretamente a escolta na taberna da Serena;e ele
cortou para o Mercado da Erva, para a Tabacaria do Simões, onde o Gouveia,
àquela hora, antes da partida da Assembleia, costumava pousar, comprar uma
caixa de fósforos, considerar pensativamente na vidraça as cautelas da lotaria.
Mas nessa noite oSr. Administrador faltara ao Simões costumado. Largou então
para a Assembleia; e logo em baixo, no bilhar, um sujeito calvo, que contemplava
as carambolas solitárias domarcador, espapado na bancada, de colete
desabotoado, mascando um palito — informou o Fidalgo da doença do amigo
Gouveia:

— Coisa
leve, inflamação de garganta… V. Ex-a a decerto o encontra em casa. Nãoarreda
do quarto desde domingo.

Outro
cavalheiro, porém, que remexia o seu café à esquina duma mesa atulhada
degarrafas de licor, afiançou que o Sr. Administrador já espairecera nessa
tarde. Ainda pelas cinco horas ele o encontrara na Amoreira, com o pescoço
atabafado numa manta de lã. Gonçalo, impaciente, abalou para a Calçadinha. E
atravessava o largo do Chafariz, quando descortinou o desejado Gouveia, à porta
muito alumiada da loja de panos doRamos, conversando com um homenzarrão de
forte barba retinta e de guarda -pó alvadio.

E foi o
Gouveia, que, de dedo espetado, investiu para Gonçalo:- Então, já sabe?

— O quê?-
Pois não sabe, homem?… O Sanches Lucena! — O quê? — Morreu!O Fidalgo
embasbacou para o Administrador, depois para o outro cavalheiro, que repuxava
na mão enorme, com um esforço inchado, uma luva preta apertada e curta.- Santo
Deus!… Quando?

— Esta
madrugada. De repente. «Angina pectoris», não sei quê no coração… Derepente,
na cama. E ambos se consideraram, em silêncio, no espanto renovado daquela morte
queimpressionava Vila Clara. Por fim Gonçalo: — E eu ainda há bocado, na Torre,
a falar dele! E, coitado, como sempre, com pouca admiração…- E eu! — exclamou
o Gouveia. — Eu, que ainda ontem lhe escrevi!… E uma carta comprida, por
causa dum empenho do Manuel Duarte… Foi o cadáver que recebeu acarta.

— Boa
piada! — rosnou o sujeito obeso, que se debatia ferrenhamente contra a luva. —
O cadáver recebeu a carta… Boa piada!O Fidalgo torcia o bigode, pensativo:

— Ora,
ora… E que idade tinha ele?O Gouveia sempre o imaginara um completo velho, de
setenta invernos. Pois não! apenas sessenta, em Dezembro. Mas consumido
arrasado. Casara tarde, com fêmea forte…- E aí temos a bela D. Ana, viúva aos
vinte e oito anos, sem filhos, naturalmente herdeira, com o seu mealheiro de
duzentos contos … Talvez mais!- Boa maquia! — roncou de novo o opado homem
que enfiara a luva, e agora gemia, com as veias túmidas, para lhe apertar o
colchete.

Aquele
cavalheiro constrangia o Fidalgo — ansioso por desafogar com o Gouveiasobre «a
vacatura política», assim inesperadamente aberta, no circulo de Vila Clara,
pela brusca desaparição do chefe tradicional. E não se conteve, puxou o
Administrador,pelo botão da sobrecasaca, para a sombra favorável da parede:

— Oh!
Gouveia! então agora, hem?… Temos eleição suplementar… Quem virá pelo
círculo?E o Administrador, muito simplesmente, sem se resguardar do homenzarrão
de guarda-pó, que, enfim enluvado, acendera o charuto, se acercava com
familiaridade -deduziu os factos.

— Agora, meu
amigo, com o tio do Cavaleiro ministro da justiça e o José Ernesto ministro do
Reino, vai deputado pelo círculo quem o André Cavaleiro mandar. É claro…O
Sanches Lucena manteve sempre o seu lugar em S. Bento, por uma indicação
natural do partido. Era aqui o primeiro homem, o grande homem dos Históricos…
Bem! Hoje,para decidir o Governo, como falta a indicação natural do partido,
que resta? O desejo pessoal do Cavaleiro. Você sabe como o Cavaleiro é
regionalista. Pelo círculo pois, logicamente, sai quem se apresente ao
Cavaleiro como um bom continuador do Lucena,pela influência e pela estabilidade
territorial… Noutro círculo ainda se podia encaixar à pressa um deputado
fabricado em Lisboa, nas secretarias. Aqui não! O deputado tem deser local e
Cavaleirista. E o próprio Cavaleiro, acredite você, está a esta hora
embaraçado.

O
gordalhufo murmurou com importância, através do imenso charuto quemamava:

— Amanhã
já estou com ele, já sei…Mas o Administrador emudecera, coçava o queixo,
cravando em Gonçalo os olhos espertos, que rebrilhavam, como se uma ditosa
ideia, quase uma inspiração, o iluminasse. E de repente, para o outro, que
cofiava a barba retinta:- Pois, meu caro senhor, até além de amanhã. Ficamos
entendidos. Eu remeto o cestinho dos queijos directamente ao Sr. Conselheiro.

Tomou o
braço de Gonçalo, que apertou com impaciência. E sem atender mais
aohomenzarrão, que saudava rasgadamente, arrastou o Fidalgo para a Calçadinha
silenciosa:- Oh, Gonçalo, ouça lá… Você agora tinha uma ocasião soberba! Você,
se quisesse, dentro de poucos dias, estava deputado por Vila Clara!

O Fidalgo
da Torre estacara — como se uma estreia de repente se despenhasse narua mal
alumiada.

— Ora
escute! — exclamou o Administrador, largando o braço de Gonçalo, paradesenrolar
mais livremente a sua ideia. — Você não tem compromissos sérios com os
Regeneradores. Você deixou Coimbra há um ano, tenta agora a vida pública, nunca
fez acto definitivo de partidário. Lá uma ou outra correspondência para os
jornais,histórias!…

— Mas…-
Escute, homem! Você quer entrar na Política? Quer. Então, pelos Históricos ou
pelos Regeneradores, pouco importa. Ambos são constitucionais, ambos são
cristãos… A questão é entrar, é furar. Ora você, agora, inesperadamente,
encontra uma portaaberta. O que o pode embaraçar? As sua inimizades
particulares com o Cavaleiro?

Tolices!Atirou
um gesto, largo e seco, como se varresse essas puerilidades:


Tolices! Entre vocês não há morte de homem. Nem vocês, no fundo, são inimigos.
O Cavaleiro é rapaz de talento, rapaz de gosto… Não vejo outro, aqui
nodistrito, com quem você tenha mais conformidade de espírito, de educação, de
maneiras, de tradições… Numa terra pequena, mais dia menos dia, fatalmente,
se impunha areconciliação. Então seja agora, quando a reconciliação o leva às
Câmaras!… E repito. Pelo círculo de Vila Clara sai deputado quem o Cavaleiro
mandar!

O Fidalgo
da Torre respirou, com esforço, na emoção que o sufocava. E depoisdum silêncio
em que tirava o chapéu, abanara com ele, pensativamente, a face descaída:

— Mas o
Cavaleiro, como você disse, é todo local, todo regional… Não quereráimpor
senão um homem como o Lucena, com fortuna, com influência… O outro parou,
alargou os braços: — E então, você?… Que diabo! Você tem aqui propriedade.
Tem a Torre, te mTreixedo. Sua irmã hoje é rica, mais rica que o Lucena. E
depois o nome, a família…

Vocês, os
Ramires, estão estabelecidos, com solar em Santa Ireneia, há mais deduzentos
anos.

O Fidalgo
da Torre ergueu com viveza a cabeça: — Duzentos?… Há mil, há quase mil!- Ora
aí tem! Há mil anos. Uma casa anterior à monarquia. Pelo menos coeva.

Você é
portanto mais fidalgo que o Rei! E então, isso não é uma situação muito
superiorà do Lucena? Sem contar a inteligência… Oh! diabo!

— Que
foi? — A garganta… Uma picadita na garganta. Ainda não estou consolidado.E
decidiu logo recolher, gargarejar, porque o Dr. Macedo proibira as noitadas
festivas. Mas Gonçalo acompanhava até à porta o amigo Gouveia. E, conchegando
oabafo de lã, o Administrador resumiu a sua ideia.

— Pelo
círculo de Vila Clara, Gonçalinho, sai quem o Cavaleiro mandar. Ora o
Cavaleiro, creia você, tem imenso empenho de o eleger, de o lançar na Política.
Se vocêportanto estender a mão ao Cavaleiro, o círculo é seu. O Cavaleiro tem o
maior, o maioríssimo empenho, Gonçalinho!- Isso é que eu não sei, João
Gouveia…

— Sei eu!
E em confidência, na solidão da Calçadinha, João Gouveia revelou ao Fidalgo
queo Cavaleiro ansiava pela ocasião de reatar a velha fraternidade com o seu
velho Gonçalo! Ainda na semana passada o Cavaleiro lhe afirmara (palavras
textuais): -«Entre os rapazes desta geração, nenhum com mais seguro e mais
largo futuro na Política que o Gonçalo. Tem tudo! grande nome, grande talento,
a sedução, a eloquência… Tem tudo! E eu, que conservo pelo Gonçalo todo o
carinho antigo, gostavaardentemente, ardentissimamente, de o levar às Câmaras».


Palavras textuais, meu amigo!… Ainda há seis ou sete dias, em Oliveira,
depoisdo jantar, a tomarmos ambos café no quintal. A face de Gonçalo ardia na
sombra, devorando as revelações do Administrador. Depois, com lentidão, como
descobrindo candidamente todos os recantos da sua alma:- Eu, na realidade,
também conservo a antiga simpatia pelo Cavaleiro. E certas questões íntimas,
adeus!… Envelheceram, caducaram, tão obsoletas hoje como osagravos dos
Horácios e dos Curiácios… Como você lembrou há pouco, com razão, nunca se
ergueu entre nós morte de homem. Que diabo! Eu fui educado com o Cavaleiro,
éramos como irmãos… E acredite você, Gouveia! Sempre que o vejo, sintoum
apetite doido, mas doido, de correr para ele, de lhe gritar: «Oh! André! nuvens
passadas não voltam, atira para cá esses ossos !» Creia você, não o faço por
timidez… Étimidez… Oh! não, lá por mim, estou pronto à reconciliação, todo
o coração ma pede! Mas ele?… Porque, enfim, Gouveia, eu, nas minhas
correspondências para a Gazeta do Porto, tenho sido feroz com o Cavaleiro!João
Gouveia parou, de bengala ao ombro, considerando o Fidalgo com um sorriso
divertido:- Nas correspondências? Que lhe tem você dito nas correspondências?
Que o Sr. Governador Civil é um déspota e um D. João?… Meu caro amigo, todo o
homem gosta que, por oposição política, lhe chamem déspota e D. João. Você
imagina que ele seafligiu? Ficou simplesmente babado!

O Fidalgo
murmurou, inquieto:- Sim! Mas as alusões à bigodeira, à guedelha… — Oh!
Gonçalinho! Belos cabelos anelados, belos bigodes torcidos, não são defeitos de
que um macho se envergonhe… Pelo contrário! Todas as mulheres admiram.Você
pensa que ridicularizou o Cavaleiro? Não! anunciou simplesmente às madamas e
meninas, que lêem a Gazeta do Porto, a existência dum mocetão esplêndido que
éGovernador Civil de Oliveira.

E parando
de novo (porque defronte, na esquina, luziam as duas janelas abertas da sua
casa), o Administrador estendeu o dedo firme para um conselho supremo:- Gonçalo
Mendes Ramires, você amanhã manda buscar a parelha do Torto, salta para a sua
caleche, corre à cidade, entra pelo Governo Civil de braços abertos, e gritasem
outro prólogo: «André, o que lá vai, lá vai, venham essas costelas! E como o
círculo está vago, venha também esse círculo!» — E você, dentro de cinco ou
seis semanas, é o Sr. Deputado por Vila Clara, com todos os sinos a repicar…
Quer tomarchá?

— Não,
obrigado.- Bem, então viva! Tipóia amanhã e Governo Civil. Está claro, é
necessário arranjar um pretexto…

O Fidalgo
acudiu, com alvoroço:- Eu tenho um pretexto! Não!… Quero dizer, tenho
necessidade real, absoluta, de falar com o Cavaleiro ou com o Secretário
-Geral. E uma questão de caseiro… Até porcausa dessa infeliz trapalhada o
procurava eu hoje a você, Gouveia! E aldravou a aventura do Casco, com traços
mais pesados que a enegreciam.Durante semanas, aferradamente, esse fatal Casco
o torturara para lhe arrendar a Torre. Mas ele tratara com o Pereira, o Pereira
Brasileiro, por urna renda esplendidamentesuperior à que o Casco oferecia a
gemer. Desde então o Casco rugia, ameaçava, por todas as tabernas da freguesia.
E, nessa tarde, surde duma azinhaga, rompe para ele, de varapau erguido! Mercê
de Deus, lá se defendera, lá sacudira o bruto, com a bengala.Mas agora, sobre o
seu sossego, sobre a sua vida, pairava a afronta daquele cajado. E, se o
assalto se renovasse, ele varava o Casco com uma bala, como um bicho montês…Urgia,
pois, que o amigo Gouveia chamasse o homem, o repreendesse rijamente, o
entaipasse mesmo por algumas horas na cadeia…

O
Administrador, que escutara palpando a garganta, atalhou logo, com a
mãoespalmada:

— Governo
Civil, caro amigo, Governo Civil! Esses casos de prisão preventivapertencem ao
Governo Civil. Repreensão não basta, com tal fera!… Só cadeia, um dia de
cadeia, a meia ração… O Governo Civil que me mande um oficio ou telegrama.
Você realmente corre perigo. Nem um instante a perder!… Amanhã tipóia e
Governo Civil.Mesmo por amor da Ordem Pública!

E
Gonçalo, compenetrado, com os ombros vergados, cedeu ante esta soberanarazão da
Ordem Pública: — Bem, João Gouveia, bem!… Com efeito é uma questão de Ordem
Pública. Vou amanhã ao Governo Civil.- Perfeitamente — concluiu o Administrador
puxando o cordão da campainha. -Dê recados meus ao Cavaleiro. E só lhe digo que
havemos de arranjar uma votaçãotremenda, e foguetório, e Vivas, e ceia magna no
Gago… Você não quer tomar chá, não? Então, boas -noites… E olhe! Daqui a
dois anos, quando você for ministro, Gonçalo Mendes Ramires, recorde esta nossa
conversa, à noite, na Calçadinha de Vila Clara!Gonçalo seguiu pensativamente
por defronte do Correio; torneou a branca escadaria da igreja de S. Bento;
meteu, alheado e sem reparar, pela estrada plantada deacácias que conduz ao
cemitério. E, naquele alto da vila, de onde, ao desembocar da Calçadinha, se
abrange a largueza rica dos campos desde Valverde a Craquede — sentiu que
também na sua vida, apertada e solitária como a Calçadinha, se alargara um
arejadoespaço cheio de interessante bulício e de abundância. Era o muro, em que
sempre se imaginara irreparavelmente cerrado, que de repente rachava. Eis a
fenda facilitadora!Para além reluziam todas as belas realidades, que desde
Coimbra apetecera! Mas… — Mas no atravessar da fenda fragosa decerto se
rasgaria a sua dignidade ou se rasgaria o seu orgulho. Que fazer?… Sim!
seguramente! Estendendo os braços ao animal doCavaleiro, conquistava a sua
eleição. O círculo, enfeudado aos Históricos, elegeria submissamente o deputado
que o chefe histórico ordenasse com indolente aceno. Masessa reconciliação
importava a entrada triunfal do Cavaleiro na quieta casa de Barrolo… Ele
vendia, pois, o sossego da irmã, por uma cadeira em S. Bento! Não! não podia
por amor de Gracinha! — E Gonçalo suspirou, com ruidoso suspiro, no luminoso
silêncio daestrada.

Agora,
porém, durante três, quatro anos, os Regeneradores não trepavam aoGoverno. E
ele, ali, através desses anos, no buraco rural, jogando voltaretes sonolentos
na Assembleia da vila, fumando cigarros calaceiros nas varandas dos Cunhais,
sem carreira, parado e mudo na vida, a ganhar musgo, como a sua caduca, inútil
Torre!Caramba! era faltar cobardemente a deveres muito santos para consigo e
para com o seu nome!… Em breve os seus camaradas de Coimbra penetrariam nos
altos empregos, nasricas companhias; muitos nas Câmaras por vacaturas
abençoadas, como a do Sanches; um ou outro mesmo, mais audaz ou servil, no
Ministério. Só ele, com talentos superiores, um tal brilho histórico, jazeria
esquecido e resmungando como um coxonuma estrada, quando passa a romaria. E
porquê? Pelo receio pueril de pôr a bigodeira atrevida, do Cavaleiro, muito
perto dos fracos lábios de Gracinha… E por fim essereceio constituía uma
injúria, uma nojenta injúria, à seriedade da irmã. Porque Portugal não se
honrava com mulher mais rigidamente séria, de mais grave e puro pensar! Aquele
corpinho ligeiro, que o vento levava, continha uma alma heróica. O
Cavaleiro?…Podia S. Ex. a sacudir a guedelha com graça fatal, jorrar dos
olhos pestanudos a languidez às ondas — que Gracinha permaneceria tão
inacessível e sólida na sua virtude,como se fosse insexual e de mármore. Oh,
realmente, por Gracinha, ele abriria ao Cavaleiro todas as portas dos Cunhais
-mesmo a porta do quarto dela, e bem larga, como uma solidão bem preparada!…
E depois não se cuidava de uma donzela, mas deuma viúva. Na casa do Largo de El
-Rei governava, mercê de Deus, marido brioso, marido rijo. A esse, só a esse,
competia escolher as intimidades do seu lar — e nelemanter quietação e recato.
Não! esse receio de uma imaginável fragilidade de Gracinha, da sua honrada,
altiva Gracinha — esse receio, perverso e louco, certamente o devia varrer, com
o coração desafogado e sorrindo. — E, na clara solidão da estrada,
GonçaloMendes Ramires atirou um gesto decidido e terminante que varria.

Restava,
porém, a sua própria humilhação. Desde anos, ruidosamente,conversando e
escrevendo, em Coimbra, em Vila Clara, em Oliveira, na Gazeta do Porto — ele
demolira o Cavaleiro! E subiria agora, de espinhaço vergado, as escadarias do
Governo Civil, murmurando o seu — peccavi, mea culpa, mea maxima culpa? …
Queescândalo na cidade! — «O Fidalgo da Torre lá precisou e lá veio…». Era o
transbordante triunfo do Cavaleiro. O único homem que no Distrito se conservava
erguido, pelejando,trovejando as verdades — desarmava, emudecia, e
encolhidamente se enfileirava no séquito louvaminheiro de S. Ex-a! Bem duro!…
Mas, que diabo, havia superiormente o interesse do país! — E, tão admirável lhe
apareceu esta razão, que a bradou com ardor namudez da estrada: — «Há o país!»

Sim, o
país! Quantas reformas a proclamar, a realizar! Em Coimbra, no QuintoAno, já se
ocupara da Instrução Pública duma remodelação do Ensino, todo industrial, todo
colonial, sem latim, sem ociosas belas-letras, criando um povo formigueiro de
Produtores e de Exploradores… E os camaradas, nos sonhos ondeantes de
Futuro,quando repartiam os Ministérios, concordavam sempre: — «O Gonçalo para a
Instrução

Pública!»
Por essas ideias poderosas, pelo saber acumulado, todo ele se devia à Nação
-como outrora pela força, os grandes Ramires armados. E pela Nação cumpria que
o seu orgulho de homem cedesse ante a sua tarefa de cidadão…

Depois,
quem sabe? Entre o Cavaleiro e ele afogadamente se enroscava todo umpassado de
camaradagem, apenas entorpecido -que talvez revivesse nesse encontro, os
enlaçasse logo num abraço penetrante, onde os antigos agravos se sumiriam como
umpó sacudido… Mas para que imaginar, remoer? Uma necessidade se sobrepunha,
iniludível — a de comparecer — logo de manhã em Oliveira, no Governo Civil,
requerendo a supressão do Casco. Dessa pressa dependia o seu sossego de vida e
deinteligência. Nunca ele lograria trabalhar na novela, trilhar folgadamente a
estrada de

Vila
Clara, sabendo que em torno o outro, pelas quelhas e sombras, rondava com
aespingarda. E para não regressar aos costumes bravios dos seus avós,
circulando através do Concelho entre as carabinas dos criados, necessitava o
Casco domado, imobilizado. Era pois inadiável correr ao Governo Civil, para bem
da Ordem. E depois, quando ele seencontrasse no gabinete do Cavaleiro, diante
da mesa do Cavaleiro — a Providência decidiria… «A Providência decidirá!»E
ancorado nesta resolução, o Fidalgo da Torre parou, olhou. Levado pela quente
rajada de pensamentos, chegara à grade do cemitério da vila, que o luar
branqueava como um lençol estendido. Ao fundo da alameda que o divide, clara na
claridade triste,o escarnado Cristo chagado e lívido, sobre a sua alta cruz
negra, pendia, mais dolorido e lívido no silêncio e na solidão, com uma
tristíssima lâmpada aos pés esmorecendo. Emtorno eram ciprestes, sombras de
ciprestes, brancuras de lápides, as cruzes rasteiras das campas pobres, uma paz
morta pesando sobre os mortos; e no alto a Lua amarela e parada. Então o
Fidalgo sentiu um arrepiado medo do Cristo, das lousas, dos defuntos,da Lua, da
solidão. E despediu numa carreira até avistar as casas da Calçadinha, por onde
descambou como uma pedra solta. Quando se deteve no Largo do Chafariz, ummocho
piava na torre da Câmara, melancolizando o repouso de Vila Clara apagada e
adormecida. Mais impressionado, Gonçalo correu à taberna da Serena, recolheu os
criados que esperavam jogando a bisca lambida. E com eles atravessou de novo a
vilaaté à cocheira do Torto — para recomendar que lhe mandassem à Torre, às
nove horas da manhã, a parelha ruça.Através do postigo, que se abrira com
cautela no portão chapeado, a mulher do Torto gemeu, indecisa:

— Ai, meu
Deus, não sei se poderá… Ele às nove tem um serviço… Pois não fariamais
conta ao Fidalgo aí pela volta das onze?

— Às
nove! — berrou Gonçalo.Desejava apear cedo ao portão do Governo Civil, para
evitar a curiosidade daqueles cavalheiros de Oliveira — que, depois do meio
-dia, se juntavam na Praça, vadiando por debaixo da Arcada.

Mas às
nove e meia Gonçalo, que até ao luzir da madrugada se agitara peloquarto, num
tumulto de esperanças e receios — ainda se barbeava, em camisa, diante do vasto
espelho de colunas douradas. Depois aproveitou a caleche para deixar na Feitosa
os seus bilhetes de pêsames à bela viúva, à D. Ana. Ao meio -dia, esfaimado,
almoçouna Vendinha, enquanto a parelha resfolegava. E batia a meia depois das
duas, quando enfim se apeou em Oliveira diante do portão do antigo convento de
S. Domingos, aofundo da Praça, onde seu pai, quando chefe do Distrito,
instalara faustosamente as repartições do Governo Civil.

Àquela
hora, já na frescura e sombra da Arcada, que orla um lado da Praça(outrora
Praça da Prataria, hoje Praça da Liberdade), os cavalheiros de Oliveira mais
desocupados, os «rapazes», preguiçavam, em cadeiras de verga, à porta da
TabacariaElegante e da loja de Leão. Gonçalo, cautelosamente, baixara as
cortinas verdes da caleche. Mas no pátio do Governo Civil, ainda guarnecido de
bancos monumentais do tempo dos frades, esbarrou com o primo José Mendonça, que
descia a escadaria,fardado. Foi um assombro para o alegre capitão, moço
esbelto, de bigode curto, picado levemente de bexigas.- Tu por aqui,
Gonçalinho! E de chapéu alto! Caramba, deve ser coisa gorda!

O Fidalgo
da Torre confessou, corajosamente. Chegava nesse instante de Santa Ireneia para
falar ao André Cavaleiro…- Está ele cá, esse ilustre senhor?

O outro
recuou, quase aterrado:- Ao Cavaleiro?! E ao Cavaleiro que vens falar?!…
Santíssima Virgem! Então desabou Tróia!

Gonçalo
gracejou, corando. Não! não se passara desgraça épica como a de Tróia…De
resto podia revelar, ao amigo Mendonça, o caso que o arrastava à presença
augusta de S. Ex-a o Sr. Governador Civil. Era um homem dos Bravais, um Casco,
que, furiosopor não conseguir o arrendamento da Torre, o ameaçara, rondava
agora a estrada de Vila Clara de noite, à espreita, com uma espingarda. E ele,
não ousando «fazer alta e boa justiça» pelas mãos dos seus criados, como os
Ramires feudais — reclamavamodestamente da autoridade superior uma ordem para
que o Gouveia mantivesse, dentro da legalidade e dos Mandamentos de Deus, o
façanhudo dos Bravais…- Só isto, uma pequenina questão de paz pública… E
então o grande homem está lá em cima? Bem, até logo, Zezinho… A prima, de
saúde? Eu naturalmente janto nos Cunhais. Aparece!Mas o capitão não despegava
do degrau de pedra, abrindo pachorrentamente a cigarreira de couro:- E que me
dizes tu à novidade? O pobre Sanches Lucena?…

Sim,
Gonçalo soubera na Assembleia. Um ataque, hem? Mendonça acendeu, chupou o
cigarro:- De repente, com um aneurisma, a ler o Notícias!… Pois ainda há três
dias a Maricas e eu jantámos na Feitosa. Até eu toquei a duas mãos, com a D.
Ana, o quartetodo Rigoleto. E ele bem, conversando, tomando a sua
aguardentezinha de cana…Gonçalo esboçou um gesto de piedade e tristeza:


Coitado… Também há semanas o encontrei na Bica Santa. Bom homem,
bemeducado… E aí temos agora a bela D. Ana vaga. — E o círculo!- Oh, o
círculo! — murmurou o Fidalgo da Torre com risonho desdém. — A mim antes me
convinha a viúva. É Vénus com duzentos contos! Infelizmente tem um a voz
medonha…O primo Mendonça acudiu, com interesse, uma convicção dedicada:

— Não!
não! na intimidade, perde aquele tom empapado… Não imaginas! até umtimbre
natural, agradável… E depois, menino, que corpo! que pele! — Deve ficar
esplêndida agora com o luto! — concluiu Gonçalo. — Bem, adeusinho! Aparece nos
Cunhais… Eu corro ao Cavaleiro, para que S. Ex-a me salve com o seubraço
forte!

Sacudiu a
mão do Mendonça, galgou a escadaria de pedra.Mas o capitão, que metera para a
travessa de S. Domingos, desconfiou daquela história de ameaças, de
espingardas… «Qual! Aqui anda política!» E quando, passada uma hora lenta,
repenetrou na Praça e avistou a caleche da Torre ainda encalhada àporta do
Governo Civil — correu à Arcada, desabafou logo com os dois Vila -Velhas, ambos
pensativamente encostados aos dois umbrais da Tabacaria Elegante:- Vocês sabem
quem está no Governo Civil?… O Gonçalo Ramires!… Com o Cavaleiro!

Todos em
roda se mexeram, como acordando, nas gastas cadeiras de verga — ondeos
estendera sonolentamente o silêncio e a ociosidade da arrastada tarde de Verão.
E o

Mendonça,
excitado, contou que desde as duas horas e meia Gonçalo Mendes Ramires,«em
carne e osso», se conservava fechado com o Cavaleiro, no Governo Civil, numa
conferência magna! O espanto e a curiosidade foram tão ardentes, que todos se
ergueram, se arremessaram para fora dos Arcos, a espiar a bojuda varanda do
convento,sobre o portão -que era a do gabinete de Sua Excelência.

Precisamente,
nesse momento, José Barrolo, a cavalo, de calça branca, de rosabranca na
quinzena de alpaca, dobrava a esquina da Rua das Vendas. E o interesse todo
daqueles cavalheiros se precipitou para ele, na esperança duma revelação:

— Ó
Barrolo!- Ó Barrolinho, chega cá!


Depressa, homem, que é caso rijo!Barrolo, ladeando, abeirou da Arcada; e os
amigos imediatamente lhe atiraram a nova formidável, apertados em volta da
égua. O Gonçalo e o Cavaleiro cochichando secretamente, toda a manhã! A caleche
da Torre à espera, com a parelha adormecida! Ejá começavam a repicar os sinos da
Sé!

Barrolo,
num pulo, desmontou. E enquanto um garoto lhe passeava a égua -estacou entre os
amigos, com o chicote detrás das costas, pasmando também para a varanda de
pedra do Governo Civil.

— Pois eu
não sei nada! O Gonçalo a mim não me disse nada! — afirmava ele,assombrado. —
Também já há dias não vem à cidade… Mas não me disse nada! E da última vez
que cá esteve, nos anos da Graça, ainda destemperou contra o Cavaleiro!A todos
o caso parecia «de estrondo!» E subitamente um silêncio esmagou a Arcada,
trespassada de emoção. Na varanda, entre as vidraças abertas vagarosamente,
aparecera o Cavaleiro com o Fidalgo da Torre, conversando, risonhos, de
charutosacesos. Os largos olhos do Cavaleiro pousaram logo, com malícia, sobre
os «rapazes» apinhados em pasmo à borda dos Arcos. Mas foi um lampejar de
visão. S. Ex-aremergulhara no gabinete — o Fidalgo também, depois de se
debruçar da varanda, espreitar a caleche da Torre. Entre os amigos rompeu um
clamor:

— Viva!
Reconciliação!- Acabou a guerra das Rosas!

— E as
correspondências da Gazeta do Porto?…- É que houve peripécia tremenda! —
Temos o Gonçalinho administrador de Oliveira! — Upa, Ex.mo Senhor, upa!Mas de
novo emudeceram. O cavaleiro e o Fidalgo reapareciam, numa enfronhada conversa,
que os deteve um momento esquecidos, na evidência da varanda escancarada.Depois
o Cavaleiro, com uma familiaridade carinhosa, bateu nas costas de Gonçalo —
como se publicasse a sua reconciliação diante da Praça maravilhada. E outra vez
se sumiram, nesse passear conversado e intimo, que os trazia da sombra do
gabinete para aclaridade da janela, roçando as mangas, misturando o fumo leve
dos charutos. Em baixo o bando crescia, mais excitado. Passara o Melo Alboim, o
Barão das Marges, o Dr.Delegado; e, chamados com ânsia, cada um correra,
devorara esgazeadamente a novidade, embasbacara para o velho balcão de pedra
que o sol dourava. Os grossos ponteiros do relógio do Governo Civil, já se
acercavam das quatro horas. Os doisVila-Velhas, outros «rapazes», estafados,
retrocederam às cadeiras de verga da

Tabacaria.
O Dr. Delegado, que jantava às quatro e sofria do estômago,
despegoudesconsoladamente dos Arcos, suplicando ao Pestana seu vizinho «que
aparecesse ao café, para contar o resto…». Melo Alboim, esse, enfiara para
casa, defronte do Governo Civil, na esquina do Largo; e da janela, disfarçado
por trás da mulher e da cunhada,ambas de chambres brancos e de papelotes,
sondava o gabinete de S. Ex. a com um binóculo. Por fim bateram, com estendida
pancada, as quatro horas. Então o Barão dasMarges, na sua impaciência
borbulhante, decidiu subir ao Governo Civil, «para farejar!…»

Mas nesse
momento André Cavaleiro assomava de novo à varanda -sozinho, comas mãos
enterradas no jaquetão de flanela azul. E quase imediatamente a caleche da

Torre
largou da porta do Governo Civil, atravessou a Praça, com os estores verdes
meiocorridos, descobrindo apenas, àqueles cavalheiros ávidos, as calças claras
do Fidalgo.

— Vai
para os Cunhais! Lá o apanhava pois o Barrolo! E todos apressaram o bom Barrolo
a que montasse,recolhesse, para ouvir do cunhado os motivos e os lances daquela
paz histórica! O Barão das Marges até lhe segurou o estribo. Barrolo,
alvoroçadamente, trotou para olargo de El-Rei.

 Mas Gonçalo Mendes Ramires, sem parar nos
Cunhais, seguia para a Vendinha,onde decidira jantar, dando um descanso à
parelha esfalfada. E logo depois das últimas casas da cidade subiu os estores,
respirou deliciosamente, com o chapéu sobre osjoelhos, a luminosa frescura da
tarde — mais fresca e de uma claridade mais consoladora que todas as tardes da
sua vida… Voltava de Oliveira vencedor! Furara enfim através da fenda,
através do muro! E sem que a sua honra ou o seu orgulho se esgaçassem
nasasperezas estreitas da fenda!… Abençoado Gouveia, esperto Gouveia! E
abençoada a esperta conversa, na véspera, pela Calçadinha de Vila Clara!…Sim,
decerto, fora custoso aquele mudo momento em que se sentara secamente,
hirtamente, à borda da poltrona, junto da pesada mesa administrativa de S. Ex-a
Mas mantivera muita dignidade e muita simplicidade… — «Sou forçado (dissera)
a dirigir -meao Governador Civil, à autoridade, por um motivo de ordem
pública…». E a primeira avença partira logo do Cavaleiro, que torcia a
bigodeira, pálido: -, Sinto profundamenteque não seja ao homem, ao velho amigo,
que Gonçalo Mendes Ramires se dirija…». Ele ainda se conservara retraído,
resistente, murmurando com uma frieza triste: — «As culpas não são decerto
minhas…». E então o Cavaleiro, depois de um silêncio em quelhe tremera o
beiço: — «Ao cabo de tantos anos, Gonçalo, seria mais caridoso não aludir a
culpas, lembrar somente a antiga amizade, que, pelo menos em mim, se conservou
amesma, leal e séria». A esta sensibilizada invocação, ele volvera, com doçura,
com indulgência: — «Se o meu antigo amigo André recorda a nossa antiga amizade,
eu não posso negar que em mim também ela nunca inteiramente se apagou…».
Ambosbalbuciaram ainda alguns confusos lamentos sobre os desacordos da vida. E
quase insensivelmente se trataram por tu! Ele contou ao Cavaleiro a torpe
ousadia do Casco. Eo Cavaleiro, indignado como amigo, mais como autoridade,
telegrafara logo ao Gouveia um mandado forte para inutilizar o valentão dos
Bravais… Depois conversaram da morte do Sanches Lucena, que impressionava o Distrito.
Ambos louvaram a beleza daviúva, os seus duzentos contos. O Cavaleiro recordou
a manhã, na Feitosa, em que entrando pela porta pequena do jardim, a
surpreendera, dentro dum caramanchão derosas, a apertar a liga. Uma perna
divina! Ambos se recusaram, rindo, a casar com a D.

Ana,
apesar dos duzentos contos e da divina perna… — já entre eles se
restabelecera a antiga familiaridade de Coimbra. Era «tu Gonçalo, tu André, oh
menino, oh filho!»E fora André, naturalmente, que aludira à desaparição do deputado
do Governo, à surpresa do circulo vago… Ele então, com indiferença, estirado
na poltrona, rufandocom os dedos na borda da mesa, murmurara:

— Sim,
com efeito… Vocês agora devem estar embaraçados, assim de repente… Mais
nada! apenas estas indolentes palavras, murmuradas através do rufo. E
oCavaleiro, logo, sem preparação, apressadamente, empenhadamente, lhe oferecera
o círculo! — Pousara os olhos nele com lentidão, como para o penetrar, o
escutar… Depois,insinuante e grave:

— Se tu
quisesses, Gonçalo, não estávamos embaraçados… Ele ainda exclamara, com
surpresa e riso:- Como, se eu quisesse?

E o
André, sempre com os olhos nele cravados, os largos olhos lustrosos,
tãopersuasivos: — Se tu quisesses servir o país, ser deputado por Vila Clara,
já não estávamos embaraçados, Gonçalo!

Se tu
quisesses… E perante esta insistência que rogava, tão sincera e comovida, em
nome do país, ele consentira, vergara os ombros:- Se te posso ser útil, e ao
país, estou às vossas ordens.

E eis a
fenda transposta, a áspera fenda, sem rasgão no seu orgulho ou na suadignidade!
Depois conversaram desafogadamente, passeando pelo gabinete, desde a estante
carregada de papéis até à varanda — que André abrira, por causa dum
cheiropersistente de petróleo entornado na véspera. André tencionava partir
nessa noite para Lisboa — para conferenciar com o Governo, depois daquela
inesperada desaparição do Lucena. E, agora em Lisboa, imporia o querido Gonçalo
como único deputado, depoisdo Sanches de Lucena, seguro e substancial — pelo nome,
pelo talento, pela influência, pela lealdade. E eis a eleição consumada! De
resto (declarara o Cavaleiro, rindo) aquelecírculo de Vila Clara constituía uma
propriedade sua — tão sua como Corinde. Livremente, poderia eleger o servente
da Repartição, que era gago e bêbado. Prestava pois um serviço esplêndido ao
Governo, à Nação, apresentando um moço de tão altaorigem e de tão fina
inteligência… Depois acrescentara:

— Não
tens a pensar mais na eleição. Vais para a Torre. Não contas a ninguém, anão
ser ao Gouveia. Esperas lá, muito quietinho, telegrama meu de Lisboa. E,
recebido ele, estás deputado por Vila Clara, anuncias a teu cunhado, aos
amigos… Depois, no domingo, vens almoçar comigo a Corinde, às onze.Então
ambos se apertaram num abraço que fundiu de novo, e para sempre, as duas almas
apartadas. Depois, ao cimo da escadaria de pedra onde o acompanhara,
André,repenetrando timidamente no Passado, murmurou com um riso pensativo: —
«Que tens tu feito ultimamente, nessa querida Torre?» E, ao saber da novela
para os ANAIS, suspirou com saudade dos tempos de Imaginação e de Arte em
Coimbra, quando eleamorosamente lapidava o primeiro canto dum poema heróico, o
Fronteiro de Ceuta. Enfim outro abraço — e ali voltava deputado por Vila
Clara.Todos esses campos, esses povoados que avistava da portinhola da caleche,
era ele que os representava em Cortes, ele, Gonçalo Mendes Ramires… E
superiormente os representaria, mercê de Deus! Porque já as ideias o invadiam,
viçosas e férteis. NaVendinha, enquanto esperava que lhe frigissem um chouriço
com ovos e duas postas de sável, meditou, para a Resposta ao Discurso da Coroa,
um esboço sombrio e áspero daNossa Administração na África. E lançaria então um
brado à Nação, que a despertasse, lhe arrastasse as energias para essa África
portentosa, onde cumpria, como glória suprema e suprema riqueza, edificar de
costa a costa um Portugal maior!… A noitecerrara, ainda outras ideias o
revolviam, vastas e vagas — quando o trote esfalfado da parelha estacou no
portão da Torre.Ao outro dia (terça -feira) às dez horas, o Bento entrou no
quarto do Fidalgo c om um telegrama, que chegara à vila de madrugada. Gonçalo
pensou com um deslumbrado pulo do coração: — «É do Governo!» — Era do Pinheiro,
gritando pela novela. Gonçaloamarrotou o telegrama. A novela! Como poderia
labutar na novela, agora, todo na impaciência e no esforço da sua eleição?…
Nem almoçou sossegadamente — retendo,através dos pratos que arredava, um desejo
desesperado de «contar ao Bento». E, sorvido o café num sorvo impaciente,
atirou para Vila Clara, a desafogar com o Gouveia. O pobre Administrador jazia
de novo no canapé de palhinha, com papas nagarganta. E toda a tarde, na
estreita sala forrada de papel verde -gaio, Gonçalo exaltou os talentos do
André, «homem de governo e de ideias, Gouveia!» — celebrou o
MinistérioHistórico, «o único capaz de salvar esta choldra, Gouveia!» —
desenrolou vistosos projectos de Lei que meditava sobre a África, «a nossa
esperança magnífica, Gouveia!» — Enquanto o Gouveia, estirado, só rompia a
mudez e a imobilidade, para murmurarchochamente, apalpando o calor das papas:

— E a
quem deve você tudo isso, Gonçalinho? Cá ao «meco»!Na quarta -feira, ao
acordar, tarde, o seu pensamento saltou logo sofregamente para o André
Cavaleiro, que a essa hora, em Lisboa, almoçava no Hotel Central (sempre, desde
rapaz, André se conservara fiel no Hotel Central). E todo o dia,
fumandocigarros insaciavelmente através do silêncio da casa e da quinta, seguiu
o Cavaleiro nos seus giros de chefe de Distrito, pela Baixa, pela Arcada, pelos
Ministérios…Naturalmente jantaria com o tio Reis Gomes, Ministro da justiça.
Outro convidado certamente seria o José Ernesto, Ministro do Reino,
condiscípulo do Cavaleiro, seu confidente político… Nessa noite, pois, tudo
se decidia!- Amanhã, pelas dez horas, tenho cá telegrama do André.

Nenhuma
notícia chegou à Torre: — e o Fidalgo passou a lenta quinta -feira àjanela,
vigiando a estrada poeirenta por onde surdiria o moço do telégrafo, um rapaz
gordo que ele conhecia pelo boné de oleado e pela perna manca. À noitinha,
intoleravelmente inquieto, mandou um moço a Vila Clara. Talvez o
telegramaarrastasse, esquecido, pela mesa daquele «besta do Nunes do
Telégrafo!» Não havia telegrama para o Fidalgo. Então ficou certo de surgirem em
Lisboa dificuldades! E todaa noite, sem sossego, numa indignação que rolava e
crescia, imaginou o Cavaleiro cedendo molemente a outras exigências do Ministro
-aceitando com servilismo para Vila Clara a candidatura de algum imbecil da
Arcada, de algum chulo escrevinhador doPartido!

Pela
manhã injuriou o Bento, por lhe trazer tão tarde os jornais e o chá:- E não há
telegrama, nem carta? — Não há nada. Bem, fora traído! Pois nunca, nunca,
aquele infame Cavaleiro transporia a portados Cunhais! De resto, que lhe
importava a burlesca eleição? Mercê de Deus que lhe sobravam outros meios de
provar soberbamente o seu valor — e bem superiores a umaensebada cadeira em S.
Bento! Que miséria, na verdade, curvar o seu espírito e o seu nome ao rasteiro
serviço do S. Fulgêncio, o obeso e horrendo careca! E resolveu logo regressar
aos cimos puros da Arte, ocupar altivamente todo o dia no nobre e
elegantetrabalho da sua novela.

Depois de
almoço ainda abancou, com esforço, remexeu nervosamente as tiras depapel. E de
repente agarrou o chapéu, abalou para Vila Clara, para o telégrafo. O Nunes não
recebera nada para S. Ex-a! — Correu, coberto de suor e pó, à Administração do
Concelho. O Sr. Administrador partira para Oliveira!… Positivamente vencera
outracombinação… eis a sua confiança burlada! E recolheu à Torre, decidido a
tomar um desforço tremendo do Cavaleiro por tanta injúria amontoada sobre o seu
nome, sobre asua dignidade! Toda a abafada e enevoada sexta -feira a consumiu
amargamente meditando esta vingança, que queria bem pública e bem sangrenta. A
mais saborosa, mais simples, seria rasgar a bigodeira do infame com chicotadas,
na escadaria da Sé, umdomingo, à saída da missa! Ao escurecer, depois do jantar
que mal debicara, naquele despeito e humilhação que o pungiam, envergou o
casaco para voltar a Vila Clara. Nãoentraria no Telégrafo… já com Vergonha do
Nunes. Mas gastaria a noite na Assembleia, jogando o bilhar, tomando um alegre
chá, lendo risonhamente os jornais Regeneradores, para que todos recordassem a
sua indiferença — se por acaso, mais tarde, conhecessem atrama em que
resvalara.

Desceu ao
pátio, onde as árvores adensavam a sombra do crepúsculo, carregadode fuscas
nuvens. E abria o portão, quando esbarrou com um rapaz que se esbaforia sobre a
perna manca e gritava: — «É um telegrama!» Com que voracidade lho arrancou das
mãos! Correu à cozinha, ralhou desabridamente à Rosa pela falta da luz tardia!
E,com um fósforo a arder nos dedos, devorou, num lampejo, as linhas benditas: –

«Ministro
aceita, tudo arranjado …». O resto era o Cavaleiro lembrando que nodomingo o
esperava em Corinde, às onze, para almoçarem e conversarem…

 Gonçalo Mendes Ramires deu cinco tostões ao
moço do telégrafo -galgou asescadas. Na livraria, à claridade mais segura do
candeeiro, releu o telegrama delicioso. Ministro aceita, tudo arranjado!… Na
sua transbordante gratidão pelo Cavaleiro, ideoulogo um jantar soberbo,
oferecido nos Cunhais pelo Barrolo, cimentando para sempre a reconciliação das
duas Casas. E recomendaria a Gracinha que, para mais honrar a doce festa, se
decotasse, pusesse o seu colar magnífico de brilhantes, a derradeira
jóiahistórica dos Ramires.

— Aquele
André! que flor, que rapaz!O relógio de charão, no corredor, rouquejou as nove
horas. E só então Gonçalo percebeu a densa chuva que alagava a quinta, e a que
ele, embebido na sua glória, passeando pela livraria num luminoso rolo de
imaginações, não sentira o rumor sobre apedra da varanda, nem sobre a folhagem
dos limoeiros.

Para se
calmar, ocupar a noite encerrada, deliberou trabalhar na novela. Erealmente
agora convinha que terminasse essa Torre de D. Ramires antes do afã daeleição —
para que em janeiro, ao abrir das Cortes, surgisse na Política com o seu velho
nome aureolado pela Erudição e pela Arte. Envergou o roupão de flanela. E à
banca,com o costumado bule de chá inspirador, repassou lentamente o começo do
Capítulo II — que o não contentava.Era no castelo de Santa Ireneia, naquele dia
de Agosto em que Lourenço Ramires caíra no vale de Canta Pedra, malferido e
cativo do Bastardo de Baião. Pelo Almocadém dos peões, que, com o braço varado
por uma chuçada, voltara em desesperada carreiraao castelo, já Tructesindo
Ramires conhecia o desventuroso desfecho da lide. — E neste lance o tio Duarte,
no seu poemeto do Bardo, com um lirismo mole, mostrava o enormeRico-Homem
gemendo derramadamente através da sala de armas, na saudade desse filho, flor
dos Cavaleiros de Riba Cávado, derrubado, amarrado numas andas, à mercê da
gente de Baião…

Lágrimas
irrepresas lhe rebentam, Arfa o arnês c’o soluçar ardente!…

Ora,
levado no harmonioso sulco do tio Duarte, também ele, nas linhas primeirasdo
capítulo, esboçara o velho abatido sobre um escanho, com lágrimas reluzentes
sobre as barbas brancas, as duras mãos descaídas como as de lânguida Dona —
enquanto quenas lajes, batendo a cauda, os seus dois lebréus o contemplam numa
simpatia ansiada e quase humana. Mas, agora, este choroso desalento não lhe
parecia coerente com a alma tão indomavelmente violenta do avô Tructesindo. O
tio Duarte, da casa das Balsas, nãoera um Ramires, não sentia hereditariamente
a fortaleza da raça: e, romântico plangente de 1848, inundara logo de prantos
românticos a face férrea de um lidador do século XII,dum companheiro de Sancho
I! Ele, porém, devia restabelecer os espíritos do senhor de Santa Ireneia,
dentro da realidade épica. E, riscando logo esse descorado e falso começo de
capítulo, retomou o lance mais vigorosamente, enchendo todo o castelo de Santa
Ireneia duma irada e rija alarma. Na sua lealdade sublime e simples Tructesindo
não cuida do filho — adia a desforra do amargo ultraje. E o seu esforço todo se
comete aapressar os aprestos da mesnada, para correr ele sobre Montemor, e
levar às senhoras Infantas os socorros de que as privara a emboscada de Canta Pedra!
Mas quando o impetuoso Rico-Homem com o adail, na sala de armas, regia a ordem
da arrancada — eisque os esculcas, abrigados do calor de Agosto nos miradouros,
enxergam ao longe, para além do arvoredo da Ribeira, coriscos de armas, uma
cavalgada subindo para Santa Ireneia. O vílico, o gordo e azafamado Ordonho,
galga arquejando aos eirado,” da torre albarrã — e reconhece o pendão de
Lopo de Baião, o seu toque de trompas à mourisca, arrastado e triste no
silêncio do, campos. Então arqueia as cabeludas mãos na boca, atirao alarido:

— Armas,
armas! que é gente de Baião!… Besteiros, às quadrelas! Homens emchusma às
levadiças da carcova! E Gonçalo, coçando a testa com a rama da pena, rebuscava
ainda outros verídicos brados, de bravo som Afonsino — quando a porta da
livraria abriu cautelosamente,através daquele perro rangido que o desesperava.
Era o Bento, em mangas de camisa:

— O Sr.
Doutor não poderia descer cá abaixo à cozinha?Gonçalo embasbacou para o Bento,
pestanejando, sem compreender: — À cozinha?… — É que está lá a mulher do
Casco a levantar uma celeuma. Parece que lheprenderam o homem esta tarde…
Apareceu ai por baixo de água, com os pequenos, até um de mama. Quer por força
falar com o Sr. Doutor. E não se cala, lavada em lágrimas,de joelhos com os
filhos, que é mesmo uma Inês de Castro!

Gonçalo
murmurou — «que maçada!» E que contrariedade! A mulher, numa agonia, entre
gritos, arrastando os filhos suplicantes até ao portão da Torre! E ele,
nasvésperas da sua eleição, aparecendo a todas as freguesias enternecidas como
um fidalgo desumano!… — Atirou a pena furiosamente:- Que maçada! Diz à
criatura que me deixe, que se não aflija… O Sr. Administrador amanhã manda
soltar o Casco. Eu mesmo vou a Vila Clara, antes de almoço, para pedir. Que se
não aflija, que não aterre os pequenos… Corre, diz, homem!Mas o Bento não
despegava da porta:

— Pois a
Rosa e eu já lhe dissemos… Mas a mulherzinha não acredita, quer pedirao Sr.
Doutor! Veio por baixo de água. Até um dos pequenitos está bem doentinho, ainda
não fez senão tremer…

Então
Gonçalo, sensibilizado, atirou à mesa um murro que tresmalhou as tiras
danovela.

— Ora se
uma coisa destas se atura! Um homem que me quis matar! E agora, porcima, é
sobre mim que desabam as lágrimas, e as cenas, e a criança doente! Não se pode
viver nesta terra! Um dia vendo casa e quinta, emigro para Moçambique, para o
Transval, para onde não haja maçadas… Bem, diz à mulher que já desço.O Bento
aprovou, com efusão:

— Pois se
o Sr. Doutor lhe não custa… E como é para dar uma boa nova… Sempreconsola a
pobre mulherzinha!… — Lá vou, homem, lá vou! Não me maces também…
Impossível trabalhar nesta casa! Outra noite perdida!Enfiou violentamente para
o quarto, atirando as portas — com a ideia de meter na algibeira do roupão duas
notas de dez tostões que consolariam os pequenos. Mas, dianteda gaveta, recuou,
vexado. Que brutalidade, compensar com dinheiro criancinhas — a quem ele
arrancara o pai, algemado, para o trancar numa enxovia! Agarrou simplesmente
numa boceta de alperces secos — dos famosos alperces do Convento deSanta
Brígida de Oliveira, que na véspera lhe mandara Gracinha. E, cerrando
lentamente o quarto, já se arrependia da sua severidade, tão estouvada, que
assimdesmanchava a quietação de um casal. Depois no corredor, ante a chuva
clamorosa que dos telhados se despenhava nas lajes do pátio, ainda mais
doridamente se impressionou, com a imagem da pobre mulher, tresloucada pela
negra estrada, puxando os filhinhosencharcados, moídos, contra a tormenta
solta. E ao penetrar no corredor da cozinha — tremia como um culpado.Através da
porta envidraçada sentiu logo a Rosa e o Bento consolando a mulher, com
palradora confiança, quase risonhos. Mas os «ais>, dela, os ruidosos
lamentos pelo «seu rico homem», ressoavam, mais agudos, como a rebater e a
abafar toda aconsolação. E apenas Gonçalo empurrou timidamente a porta — quase
acuou no espanto e medo daquela aflição estridente que se arremessava para ele
e para a sua misericórdia!De rojos nas lajes, torcendo as magras mãos sobre a
cabeça, toda de negro, parecendo mais negra e dolorosa contra a vermelhidão do
lençol estendido que secava ao lume forte da lareira — a criatura estalara num
tumulto de súplicas e gritos:- Ai, meu rico senhor, tenha compaixão! Ai, que me
prenderam o meu homem, que mo vão mandar para a África degredado! Jesus, meus
filhinhos da minha alma queficam sem pai! Ai, pelas suas almas meu senhor, e
por toda a sua felicidade!… Eu sei que ele teve culpa! Aquilo foi perdição
que lhe deu! Mas tenha piedade destas criancinhas! Ai, o meu pobre homem que
está a ferros! Ai, meu rico senhor, por quemé!

Com as
pálpebras humedecidas, agarrando desesperadamente a boceta dealperces, Gonçalo
balbuciava, através da emoção que o estrangulara: — Oh mulher, sossegue, já o
vão soltar! Sossegue ! já dei ordem! já o vão soltar! E dum lado a Rosa,
debruçada sobre a escura criatura que gemia, recomeçavadocemente: — «Pois foi o
que lhe dissemos, tia Mana! Logo pela manhã, o vão soltar!» –

E do
outro o Bento, batendo na coxa, com impaciência: — «Oh mulher, acabe com
esseescarcéu! Pois se o Sr. Doutor prometeu! Logo pela manhã o vão soltar!»

Mas ela
não se calmava, com o lenço da cabeça desmanchado, uma trança desprendida,
soluçando e clamando através dos soluços:- Ai que eu morro, se o não vejo
solto! Ai perdão, meu rico senhor da minha alma!…Então Gonçalo, que aquele
infindável e obtuso queixume torturava, como um ferro cravado e recravado,
bateu o chinelo nas lajes, berrou:

— Escute,
mulher! E olhe para mim! Mas de pé, de pé!… E olhe bem, olhe
direita!Hirtamente erguida, atirando as mãos para as costas como a escapar de
algemas que também a ameaçassem — ela arregalou para o Fidalgo os olhos
espavoridos, fundosolhos pretos, de fundas olheiras tristes, que lhe enchiam a
face rechupada e morena.

— Bem,
perfeitamente! — exclamava Gonçalo. — E agora diga! Acha que tenho bojo de lhe
mentir, quando vossemecê está nessa aflição? Pois então sossegue, acabe com
osgritos, que, sob minha palavra, amanhã cedo, o seu homem está solto!

E a Rosa
e o Bento, ambos triunfando:- Pois que lhe dizia a gente, criatura de Deus? Se
o Sr. Doutor tinha prometido… Amanhã lá tem o homem!

Lentamente
ela limpava as lágrimas, já silenciosas, à ponta do avental negro. Masainda
desconfiada, com os tenebrosos olhos mais arregalados, devorando Gonçalo. E o

Fidalgo
mandava com certeza a ordem, cedinho, de madrugada?… — Foi o Bento que
aconvenceu, com violência:

— Oh
mulher, você até parece atrevida! Ora essa! Pois duvida da palavra do Sr.
Doutor?Ela soltou o avental, baixou a cabeça, suspirou simplesmente:

— Ai,
então muito obrigada, seja pela felicidade de todos…E agora a curiosidade de
Gonçalo procurava os pequenos que ela acarretara desde os Bravais através da
chuva cerrada. A pequenina de mama dormia com beatitude sobre a tampa de uma
arca, onde a boa Rosa a aconchegara entre mantas e fronhas. Mas opequeno, de
sete anos, encolhido numa cadeira diante do lume, rente ao lençol que secava,
secando também, com a carinha afogueada de febre, tossia despedaçadamente,num cabecear
de sono e cansaço, a arquejar, a gemer contra a tosse que o esfalfava. Gonçalo
pousou a boceta de alperces na arca, palpou a mão com que ele, sem
cessar,raspava pela abertura da camisa encardida o peito ainda mais encardido.

— Mas
esta criança tem febre!… E você, com uma noite destas, traz o pequenoassim
desde os Bravais, mulher? Da cadeirinha baixa, onde se sentara prostrada, ela
murmurou, sem erguer a magra face, torcendo a ponta do avental:- Ai! era para
que eles também pedissem, que estavam sem pai, coitadinhos!


Vossemecê é doida, mulher! E pretende talvez voltar para os Bravais, debaixode
água, com as crianças? Ela suspirou: — Ai! volto, volto… Não posso deixar
sozinha a mãe do meu homem, que temoitenta anos e está entrevada…

Então o
Fidalgo cruzou descoroçoadamente os braços — no embaraço daquelaaventura, em
que, por culpa da sua ferocidade, se arriscavam duas crianças. Mas a Rosa
entendia que a pequenina, a de mama, não sofreria com a caminhada, bem
chegadinha ao colo da mãe, debaixo de uma manta grossa. Agora o outro, com a
tosse, com afebre…

— Esse
fica cá! — exclamou logo Gonçalo, decidido. — Como se chama ele?Manuel… Bem!
O Manuel fica cá. E vá descansada, que a Srª Rosa toma cuidado. Precisa uma boa
gemada, depois um bom suadouro. Um destes dias lá lhe aparece nos Bravais,
curado e mais gordo… Vá sossegada!De novo a mulher suspirou, nó cansaço
imenso que a invadira, e amolecia. E sem resistir, no seu longo e abatido
hábito de submissão:- Pois sim senhor, se o Fidalgo manda, está muito bem…

O Bento,
entreabrindo a porta do pátio, anunciava uma «aberta», o negrume a levantar.
Gonçalo imediatamente apressou a volta aos Bravais:- E não tenha medo, mulher.
Vai um moço da quinta com uma lanterna, e um guarda-chuva para abrigar a pequena…
Escute! Vossemecê até podia levar uma capa deborracha!… Oh Bento, corre,
desce a minha capa de borracha. A nova, a que comprei em Lisboa…

E quando
o Bento trouxe o «impermeável» de longa romeira, o lançou por sobreos ombros da
mulher, que o estofo rico intimidava, com o seu ruge -ruge de seda — foi na
cozinha uma divertida risada. O pranto passara, como a chuva. Agora era uma
visitaamorável, findando num arranjo alegre de agasalhos. A Rosa apertava as
mãos, banhada de gosto:

— Assim é
que vossemecê fica uma bonita madama, hem!… Se fosse de dia, olheque se
juntava gente!

A mulher
sorria enfim, descoradamente, sem interesse:- Ai! nem sei que pareço… Que
avantesma! Através do pátio, onde as acácias gotejavam docemente, Gon çalo ac
ompanhou o rancho até à porta do pomar, gritando ainda — «Agasalhem bem a
pequena!» quando já alanterna do moço se fundia na húmida espessura da noite
acalmada. Depois, na cozinha, batendo contra as lajes as solas dos chinelos
molhados, apalpou novamente oManuelzinho, que adormecera num sono rouquejado,
torcido sobre as costas da cadeira.

— Tem
pouca febre… Mas precisa um suadouro forte. E, antes de o cobrirem bem, um
leite quente, quase a ferver, com conhaque… O que ele precisava, também, era
seresfregado a coco… Que porcaria de gente! Enfim fica para mais tarde,
quando se curar…

E agora,
oh Rosa, mande acima alguma coisa para eu cear, coisa sólida, que não jantei,e
o sarau foi tremendo!

Na
livraria, depois de mudar os chinelos, descansar, Gonçalo escreveu ao Gouveiauma
carta, reclamando com comovida urgência a liberdade do Casco. E acrescentava: —
«É o primeiro pedido que lhe faz o deputado por Vila Clara (cumprimente!),
porqueacabo de receber telegrama do nosso André, anunciando que tudo feito,
ministro concorda, etc.». De sorte que precisamos comunicar! Queira pois Vossa
Mercê vir jantar amanhã a esta sua Torre, à sombra do Titó e com acompanhamento
de Videirinha.Estes dois beneméritos são indispensáveis para que haja apetite e
harmonia. E rogo, Gouveia amigo, que os avise do festim, para me evitar a
remessa de circulareseloquentes…».

Lacrada a
carta, retomou languidamente o manuscrito da novela. E, trincando a rama da
pena, ainda procurou vozes, de bom sabor medieval, para aquele lance em queo
vílico e as roldas enxergaram a cavalgada do Bastardo, pela encosta da Ribeira,
com refulgidos de armas, sob o rijo sol de Agosto…Mas a sua imaginação, desde
a carta escrita ao Gouvela pelo «Deputado de Vila Clara», escapava
desassossegadamente da velha Honra de Santa Ireneia — esvoaçava teimosamente
para os lados de Lisboa, da Lisboa do S. Fulgêncio. E o eirado da torrealbarrã,
onde o gordo Ordonho gritava esbaforido — incessantemente se desfazia como
névoa mole, para sobre ele surgir, apetitoso e mais interessante, um quarto do
HotelBragança com varanda sobre o Tejo… Foi um alívio quando o Bento o
apressou para a ceia. E à mesa espalhou livremente a imaginação por Lisboa,
pelos corredores de S. Carlos, por sob as árvores da Avenida, através dos
antiquados palácios dos seusparentes em S. Vicente e na Graça, através das
salas mais modernas de cultos e alegres amigos parando às vezes diante de
visões que considerava com um riso deleitado emudo. Alugaria aos meses,
certamente, uma carruagem da Companhia. E para as sessões de S. Bento sempre
luvas cor de pérola, uma flor no peito. Por comodidade levava o Bento, bem
apurado, com casaca nova…O Bento entrou com a garrafa do conhaque numa salva.
Dera a carta ao Joaquim da Horta, com a recomendação de correr logo às seis
horas a casa do Sr. Administrador,de se demorar na vila por diante da cadeia
até soltarem o Casco.

— E já
deitámos o pequeno no quarto verde. Fica perto de mim, que tenho o sono leve,
se ele berrar… Mas já dorme regaladamente.- Está sossegado, hem? — acudiu Gonçalo,
sorvendo à pressa o cálice de conhaque. — Vamos ver esse cavalheiro!E tomou um
castiçal, subiu ao quarto verde com o Bento, sorrindo, abafando os passos pela
estreita escada. No corredor, junto da porta, num desbotado canapé de damasco
verde, a Rosa dobrara carinhosamente a roupa trapalhona do pequeno, o
coleteesgaçado, as calças enormes, só com um botão. Dentro o leito de pau
-preto, vasto leito de cerimónia, atravancava a parede forrada dum velho papel
aveludado de ramagensverdes. Ao lado dos dois postes torneados, à cabeceira,
pendiam dois painéis, retratos de antigos Ramires, um Bispo obeso folheando um
fólio, um formoso cavaleiro de Malta, de barba ruiva, apoiado à espada, com um
laçarote de rendas sobre a couraça polida. Enos altos colchões o Manuelzinho
ressonava, sem tosse, quieto, abafado pela grossura dos cobertores, humedecido
por um suor fresco e sereno.Gonçalo, caminhando sempre de leve, repuxou
cuidadosamente a dobra do lençol. Desconfiado das janelas decrépitas,
experimentou que não entrasse traiçoeiro ar pelas gretas. Mandou pelo Bento
buscar uma lamparina, que arranjou sobre o lavatório, com aluz esbatida por
trás duma vasilha. Ainda atentamente relanceou os olhos lentos pelo quarto,
para se assegurar do sossego, do silêncio, da penumbra, do conforto. E
saiu,sempre na ponta dos pés, sorrindo, deixando o filho do Casco velado pelos
dois nobres Ramires — o Bispo com o seu Tratado, o cavaleiro de Malta com a sua
pura espada.

Recolhendo
do Tanque Velho, do fundo da quinta, onde passara a calma, depois do almoço, na
frescura do arvoredo, entre sussurros de águas correntes, a folhear umvolume do
Panorama — Gonçalo encontrou sobre a mesa da livraria, com o correio
deOliveira, uma carta que o surpreendeu, enorme, em papel almaço, fechada por uma
obreia. E dentro a assinatura, desenhada a tinta azul, era um coração
chamejante.Num relance devorou as linhas, pautadas a lápis, duma letra gorda,
arredondada com esmero:

«Caro e
Ex.mo Sr. Gonçalo Ramires. «O galante Governador Civil do Distrito, o nosso
atiradiço André Cavaleiro, passeava agora constantemente por diante dos
Cunhais, olhando com ternura para as janelas e para o honrado brasão dos
Barrolos. Como não era natural que andasse a estudar a arquitectura do palacete
(que nada tem de notável), concluiu agente séria que o digno chefe do Distrito
esperava que V. Ex. a aparecesse a alguma das janelas do Largo, ou das que
deitam para a Rua das Tecedeiras, ou sobretudo no mirante do jardim, para
reatar com V. Ex-a a antiga e quebrada amizade. Por isso muito acertadamente
procedeu V. Ex-a em correr pessoalmente ao Governo Civil, e propor a
reconciliação, e abrir os braços generosos ao velho amigo, evitando assim que a
primeira autoridade do Distrito continuasse a esbanjar um tempo precioso
naqueles passeios, de olhos pregados no palacete dos fidalguíssimos Barrolos.
Enviamos portanto a V. Ex-a os nossos sinceros parabéns por esse acertado
passo, que deve calmar as impaciências do fogoso Cavaleiro e redondar em
benefício dos serviços públicos!»

Revirando
o papel nas mãos, Gonçalo pensou: — É das Lousadas!Ainda estudou a letra, as
expressões, descortinando que redundar fora escrito comum O, arquitectura sem
C. E rasgou furiosamente a grossa folha, rosnando no silêncio da livraria:-
Aquelas bêbedas!

Sim, era e
as, as odiosas Lousadas! E essa origem mais o aterrava — porquemaledicência,
lançada por tão ardentes espalhadoras de maledicências, já certamente penetrara
em todas as casas de Oliveira, mesmo na cadeia, mesmo no hospital! E agora a
cidade divertida, lambendo o escândalo, relacionava perfidamente os rodeios
doAndré pelos Cunhais com essa sua visita ao Governo Civil, que assombrara a
Arcada.

Na ideia,
pois, de Oliveira, e sob a inspiração das Lousadas — fora ele, ele,
GonçaloMendes Ramires, que arrancara o Cavaleiro à sua Repartição, o conduzira
serviçalmente ao Largo de El-Rei, lhe escancarara as portas do palacete até aí
rondadas e miradas sem proveito, e com sereno descaro alcovitara os amores da
irmã! Se tais desavergonhadasnão mereciam que lhes arregaçassem as sujas saias
no meio da Praça, em manhã de missa, e lhes fustigassem as nádegas meladas,
furiosamente, até que o sangue ensopasseas lajes!…

E, para
maior dano, as aparências todas se combinavam contra ele, traidoramente! Essa
insistência de André, cocando Gracinha, estrondeando a calçada em torno
dopalacete, crescera, impressiofiava, justamente agora, neste Agosto, nas
vésperas dessa sua aparição à janela do Governo Civil, que Oliveira comentava
como um mistériohistórico. Que inoportunamente morrera o animal do Sanches de
Lucena! Meses antes, nem mesmo a malícia das Lousadas ligaria a sua
reconciliação com André a um cerco amoroso que não começara, ou não andava tão
murmurado. Três ou quatro mesesdepois, André, sem esperança ante o palacete
inacessível, certamente findaria os seus giros pelo Largo, de rosa ao peito!
Mas não! infelizmente, quando esse André, commaior estrépito, ronda a porta é
que ele acode, e abraça o rondador, e lhe facilita a porta! assim a
maledicência das Lousadas encontrava uma base, a que todos na cidade podiam
palpar a substância e a solidez, e sobre ela se erigia como Verdade Pública!
InfamesLousadas!

Mas
agora! O quê! manter rigidamente as suas relações com o Cavaleiro dentro
daPolítica, evitando escorregadias intimidades que o tornassem logo nos.
Cunhais, como outrora na Torre, o conviva desejado? Como poderia? Desde que ele
se reconciliava com André, logo e tão naturalmente como a sombra segue a
inclinação do ramo, sereconciliava também o Barrolo, seu cunhado e sua sombra…
Mas como impor ao

Barrolo
que a sua renovada familiaridade, com o Cavaleiro, se realizasse
unicamentedentro da Política, como dentro dum lazareto? — «Eu sou outra vez o
velho amigo do André, tu, Barrolo, também — mas nunca o convides para a tua
mesa, nem lhe abras a tua porta!» — imposição desconcertada de dura
impertinência — e que, na pequenaOliveira, logo os fáceis encontros, a
simplicidade hospitaleira do Barrolo, quebrariam como um barbante puído… E
depois que grotesca atitude a sua, hirto diante do portão dopalacete, como um
Arcanjo S. Miguel, de bengala de fogo na mão, para sustar a intrusão de
Satanás, chefe do Distrito! Mas também que toda a cidade largasse a cochichar
pelos cantos o nome de Gracinha embrulhado ao nome de André, com o nome dele,
Gonçalo,emaranhado através como o fio favorável que os atara — era horrível.

E na
impaciência desta dificuldade, de malhas tão ásperas, que tanto o
feriam,terminou por esmurrar a mesa, revoltado: — Irra, que maçada! São tudo
maçadas, nestas terras pequenas e coscuvilheiras… Em Lisboa quem se
importaria que o Sr. Governador Civil passeasse num certoLargo — e que certo
Fidalgo da Torre se reconciliasse com o Sr. Governador Civil?…

Pois
acabou! Romperia soberbamente para diante, como se habitasse Lisboa,desafogado
de mexericos e de malignos olhinhos a cocar. Era Gonçalo Mendes Ramires, da
casa de Ramires! Mil anos de nome e de solar! Dominava bem acima de Oliveira,
de todas as suas Lousadas. E não só pelo nome, louvado Deus, mas
peloespírito… O André era seu amigo, entrava em casa de sua irmã — e Oliveira
que estoirasse!E nem consentiu que a suja carta das Lousadas desmanchasse a
quieta manhã de trabalho, para que se preparara desde o almoço, relendo trechos
do poemeto do tio Duarte, folheando artigos do Panorama sobre as guerras de
muralhas no século XII.Com um -esforço de atenção erudita abancou, mergulhou a
pena no tinteiro de latão que servira a três gerações de Ramires. E enquanto
repassava as tiras trabalhadas, nunca ocastelo de Santa Ireneia lhe parecera
tão heróico, de tão soberana estatura, sobre tamanha colina de história,
sobranceando o Reino, que em torno dele se alargava, se cobria de vilas e
meses, pelo esforço dos seus castelões!Temerosa, com efeito, se erguia a antiga
Honra de Santa Ireneia, nessa Afonsina manhã de Agosto e rijo sol, em que o
pendão do Bastardo surgira, entre fúlgidos dearmas, para além dos arvoredos da
Ribeira! já por todas as ameias se apinhavam os besteiros, espiando, encurvadas
as bestas. Das torres e adarves subia o fumo grosso do breu, fervendo nas
cubas, para despejar sobre os homens de Baião, que tentassem aescalada. O adail
corria pelas quadrelas, relembrando as traças de defesa, revistando os feixes
de virotões, os pedregulhos de arremesso. E no imenso terreiro, por entre
osalpendres colmados, surdiam velhos solarengos, servos do forno, servos da
abegoaria, que se benziam com terror, puxavam pelo saião de algum apressado
homem de rolda, para saberem da hoste que avançava. No entanto a cavalgada
passara a Ribeira sobre arude ponte de pau — já, por entre os álamos,
serenamente se acercava do Cruzeiro de granito, outrora erguido nos confins da
Honra por Gonçalo Ramires, o Cortador. E, nosossego da manhã abrasada, mais
fundamente ressoaram as buzinas do Bastardo, e o seu toque lento e triste à
mourisca…

Mas
quando Gonçalo, enlevado no trabalho, tentava reproduzir, com termos
bemsonoros, avidamente rebuscados no Dicionário dos Sinónimos, o toar arrastado
das buzinas de Baião — sentiu realmente, do lado da Torre, um gemer de sons
graves quecrescia através dos limoeiros. Deteve a pena — e eis que o Fado dos
Ramires se elevaofertadamente da horta, em serenada, para a varanda florida de
madressilva:

Ora, quem
te vê solitária, Torre de Santa Ireneia…

O
Videirinha! — Correu alvoroçadamente à janela. Um chapéu -coco tremulou entre
os ramos, um brado estrugiu, aclamador:- Viva o deputado por Vila Clara! Viva o
ilustre deputado Gonçalo Ramires!

No violão
rompera triunfalmente o Hino da Carta. Videirinha, alçado na biqueiradas botas
gaspeadas de verniz, gritava: — «Viva a ilustre casa de Ramires!» E por baixo
do chapéu-coco, sacudido com delírio, João Gouveia, sem poupar a garganta,
urrava — «Viva o ilustre deputado por Vila Clara! Viva!»Majestosamente,
Gonçalo, alagado de riso, estendeu da varanda o braço eloquente:- Obrigado,
meus queridos concidadãos! Obrigado!… A honra que me fazeis, vindo assim,
nesse formoso grupo, o chefe glorioso da Administração, o inspirado
Farmacêutico, o…Mas reparou… E o Titó?

— O Titó
não veio?… Oh João Gouveia, você não avisou o Titó?Respondo sobre a orelha o
chapéu -coco, o Administrador, que arvorara uma gravata de cetim escarlate,
declarou o Titó «um animal»:

— Estava
combinado virmos todos três. Até ele devia trazer uma dúzia de foguetes,para
estalar aqui com o Hino… A reunião era ao pé da ponte… Mas o animal não
apareceu. Em todo o caso ficou avisado, avisadíssimo… E se não vier, é
traidor.- Bem, subam vocês! — gritou Gonçalo. — Eu num instante me visto. E,
para aguçar o apetite, proponho um vermute, depois uma volta pela quinta até ao
pinhal!…

Imediatamente
Videirinha, teso, empinando o violão, meteu pela rua larga dahorta, recoberta
de parreira; e atrás João Gouveia atirava os passos em cadência nobre, alçando
o guarda -sol como um pendão. Quando Gonçalo entrou no quarto, berrandopelo
Bento e por água quente — o Fado dos Ramires soava, em trinados
heróicos,através do feijoal, por sob a janela aberta onde secava o lençol do
banho. E eram as quadras preferidas do Fidalgo, as quadras em que o grande avô
Rui Ramires, sulcandoos mares de Mascate numa urca, encontra três fortes naus
inglesas, e, do alto do seu castelo de proa, vestido de grã vermelha, com a mão
no cinto de anta tauxiado de ouro epedras, soberbamente as intima a que se rendam…

Todo
alegre, e a mão no cinto. Junto da Signa Real, Gritando às naus — «Amainai Por
El-Rei de Portugal!…» Gonçalo abotoava à pressa os suspensórios, retomara o
canto glorificador — Todo alegre, e a mão no cinto… Junto da Signa Real… —
E, através do esforço esganiçado, pensava que, com tal linha de avós, bem podia
desprezar Oliveira e as suas Lousadashorrendas. Mas o trovão lento de Titó
retumbou no corredor:

— Então
esse deputado de Vila Clara?… já está a vestir a farda? Gonçalo correu à
porta do quarto, radiante:- Entra, Titó! Os deputados já não usam farda, homem!
Mas se a tivesse, com os diabos, ia hoje farda, e espadim e chapéu armado, para
honrar hóspedes tão ilustres!O outro avançara vagarosamente, com as mãos nas
algibeiras da rabona de veludo cor de azeitona, o vasto chapéu braguês atirado
para a nuca, desafogando a honesta face barbuda, vermelha de saúde e sol:- Eu,
por farda, queria dizer libré… Libré de lacaio.

— Ora
essa!?E o outro mais retumbante: — Pois o que vais tu ser, homem, senão um
sujeito às ordens do S. Fulgêncio, do horrendo careca? Não lhe serves o chá,
quando ele te mandar; mas, quando ele temandar votar, votas! Ali, direitinho,
às ordens! «Oh Ramires, vote lá!» E Ramires, zás, vota… É de escudeiro,
homem, é de escudeiro de libré…Gonçalo sacudiu os ombros, impaciente:

— Tu és
uma criatura das selvas, lacustre, quase pré -histórica… Não entendes nada
das realidades sociais!… Na sociedade não há princípios absolutos!…Mas o
Titó, imperturbável:

— E esse
Cavaleiro? Também já é rapaz de talento? Também já governa bem oDistrito? Então
Gonçalo protestou, picado, com uma roseta forte na face. quando negara ele ao
André talento ou jeito de governar? Nunca! Só rira, gracejando, da sua pompa,
dabigodeira lustrosa… E de resto, o serviço do país exigia que, por vezes, se
aliassem homens que nem partilhavam os mesmos gostos, nem procuravam os
mesmosinteresses!

— E enfim
o Sr. António Vilalobos vem hoje um moralista muito terrível, um Catão com quem
se não pode jantar!… Ora foi sempre o costume dos Filósofos muitoríspidos
fugir da sala do banquete, onde triunfa o devasso, e protestar comendo na
cozinha!Titó, serenamente, virou as costas majestosas.

— Onde
vais, ó Titó? — Para a cozinha!E como Gonçalo ria, Titó, junto da porta,
girando como uma torre que gira, encarou o seu amigo:- Sério, sério, Gonçalo!
Eleição, reconciliação, submissão, e tu em Lisboa às cortesias ao S. Fulgêncio,
e em Oliveira de braço dado com o André, tudo isso parece que destoa… Mas
enfim se a Rosa hoje se apurou, não aludamos mais a coisas tristes!E Gonçalo
bracejava, de novo protestava — quando o violão ressoou no corredor, com as
patadas bem marchadas do Gouveia, e o Fado recomeçou, mais meigo,
maisglorificador:

— Velha
casa de Ramires, Honra e flor de Portugal!

 

Capítulo VI

 

A casa do
Cavaleiro em Corinde era uma edificação dos fins do século XVIII,sem elegância
e sem arte, pintada de amarelo, lisa e vasta, com catorze janelas de frente,
quase ao meio duma quinta chá, toda de terras lavradas. Mas uma avenida
decastanheiros conduzia, com alinhada nobreza, ao pátio da frente, ornado por
dois tanques de mármore. Os jardins conservavam a abundância esplêndida de
rosas que ostornara famosos — e lhes merecera em tempos do avô de André, o
Desembargador Martinho, uma visita da Srª D. Maria II. E dentro todas as salas
reluziam de asseio e ordem, pelos cuidados da velha governanta, uma parenta
pobre do Cavaleiro, a Sr a D.Jesuína Rolim.

Quando
Gonçalo, que viera da Torre na égua, atravessou a antessala, aindareconheceu um
dos painéis da parede, fumarento combate de galeões, que ele uma tarde rasgara
jogando o espadão com André. Sob esse painel, à borda do canapé de palhinha,
esperava melancolicamente um amanuense do Governo Civil, com a sua pasta
vermelhasobre os joelhos. E duma porta remota, ao fundo do corredor, André,
avisado pelo criado, o fiel Mateus, gritou alegremente:- Oh Gonçalo, entra para
cá, para o quarto! Saí da tina… Ainda estou em ceroulas!

E em
ceroulas o abraçou, num generoso abraço de parabéns. Depois, enquanto se
vestia, por entre as cadeiras atravancadas com o recheio das malas — gravatas,
peúgas deseda, garrafas de perfumes -conversaram do calor, da jornada
enfadonha, de Lisboa despovoada…- Um horror! — exclamava o Cavaleiro,
aquecendo um ferro de frisar à lâmpada de álcool. — Todas as ruas da Baixa em
obras, cobertas de caliça, de poeirada. O Central infestado de mosquitos. Muito
mulato. Uma Tunes, Lisboa!… Mas enfim, lácombatemos bravamente o bom combate!

Gonçalo
sorria, do canto do divã onde se acomodara, entre uma pilha de camisasde cor e
outra de ceroulas com monograma flamante: — E então, Andrezinho, tudo
arranjado, hem? O Cavaleiro, diante do toucador, frisava com enlevado esmero as
pontas grossasdo bigode. E só depois de o ensopar em brilhantina, de acamar as
ondas da cabeleira rebelde, de se mirar, de se requebrar, assegurou a Gonçalo,
já inquieto, que a eleiçãoficara sólida…

— Mas
imagina tu! Quando apareci em Lisboa, no Ministério do Reino, encontrei o
círculo prometido ao Pita, ao Teotónio Pita, o grande homem da Verdade…O
Fidalgo pulou, despenhando a ruma de camisas:

— E
então?…- E então ele mostrara muito asperamente, ao José Ernesto, a
inconveniência de dispor do circulo como dum charuto, sem o consultar, a ele,
Governador Civil — e dono do círculo… E como o José Ernesto se arrebitava,
aludia à conveniência superior doGoverno, ele logo, estendendo o dedo firme: —
«Pois Zezinho, flor, ou trago o Ramires por Vila Clara, ou me demito, e arde
Tróia!…» Espantos, escarcéus, berreiros — mas oJosé Ernesto cedera, e tudo
findou jantando ambos em Algés com o tio Reis Gomes, onde à noite, ao «bluff»,
as senhoras lhe arrancaram catorze mil -réis.

— Em
resumo, Gonçalinho, precisamos conservar os olhos atentos. O José Ernestoé
rapaz leal, meu velho amigo. E depois conhece o meu génio… Mas há os
compromissos, as pressões… E agora a novidade pitoresca. Sabes quem se
propõecontra ti, pelos Regeneradores?… Adivinha… O Julinho!

— Que
Julinho?… O Júlio das fotografias?

— O Júlio
das fotografias.- Diabo! O Cavaleiro encolheu os ombros, com piedade:- Arranja
dez votos à porta da quinta, tira o retrato a todos os taberneiros do círculo
em mangas de camisa, e continua a ser o Julinho… Não! só Lisboa me inquieta,
a canalha política de Lisboa!Gonçalo torcia o bigode, desconsolado:


Imaginei tudo mais sólido, mais inabalável… Assim com todas essas
intrigas,ainda surde trapalhada… Ainda lá não vou! O Cavaleiro, ao espelho,
esticava o fraque — que experimentara abotoado, depois repuxadamente aberto
sobre o colete de fustão cor de azeitona, onde, no trespasse largo,tufava a
gravata de sedinha clara, prendida por uma safira. Por fim, encharcando o lenço
com essência de feno:- Nós estamos bem aliados, bem congraçados, não é verdade?
Então, meu caro Gonçalo, sossega, e almocemos regaladamente!… Creio que este
fraque do nosso Amieiro assenta com certa graça, hem?- Magnífico! — afirmou
Gonçalo.

— Bem.
Então agora desçamos ao jardim, para tu reveres os velhos poisos e teflorires
com uma rosa de Corinde. E logo no corredor, ornado de jarrões da índia, de
arcas de charão, enlaçando o braço de Gonçalo, do seu recuperado Gonçalo:-
Pois, meu filho, aqui pisamos ambos de novo os nobres soalhos de Corinde, como
há cinco anos… E nada mudou, nem um criado, nem uma cortina! Agora, umdestes
dias, preciso visitar a Torre.

Gonçalo
acudiu ingenuamente: — Oh! a Torre está muito mudada… Muito mudada!E um
embaraçado silêncio pesou — como se entre eles surgisse a imagem entristecida
da antiga quinta, no tempo dos amores e das esperanças, quando André eGracinha
procuravam as últimas violetas de Abril.- sob o sorriso tutelar de missRhodes,
rente aos húmidos muros da Mãe -d’água. Ainda em silêncio desceram a escada de
caracol — por onde ambos outrora se despenhavam cavalgando o corrimão. E
embaixo, numa sala abobadada, rodeada de bancos de madeira com as armas dos
Cavaleiros nas espaldas, André quedou diante da porta envidraçada do jardim,
ondeouum gesto desconsolado e lânguido:

— Eu
também, agora, pouco apareço em Corinde. E, compreendes bem, que não me retêm
em Oliveira os cuidados da Administração… Mas este casarão arrefeceu,alargou,
desde a morte da mamã. Ando aqui como perdido. E acredita, quando cá me demoro,
são uns passeios tristonhos por esses jardins, pela Rua Grande… Ainda
telembras da Rua Grande?… Vou envelhecendo muito solitariamente, meu Gonçalo!

Gonçalo
murmurou, por concordância, simpatia renovada: — Eu também me aborreço na
Torre…- Mas tens outro génio!… E eu realmente sou um elegíaco.

Correu,
com um esforço, o fecho perro da porta envidraçada. E limpando os dedosao lenço
perfumado: — Eu creio que Corinde, agora, só me encantava com grandes cerros
escalvados, grandes rochedos agrestes… As vezes, cá dentro de alma, necessito
o ermo de S.Bruno…

Gonçalo
sorria daquele apetite ascético, murmurado com preciosidade, através
dabigodeira torcida a ferro, resplandecente de brilhantina. E no terraço, junto
à balaustrada de pedra enramada de hera, galhofou, louvando o areado alinho, o
reluzente viço dojardim:

— Com
efeito, para um discípulo de S. Bruno, que escândalo, todo este asseio!Mas para
um pecador como eu, que delicia!… O jardim da Torre anda um chavascal. — A
prima Jesuína gosta de flores. Tu não conheces a prima Jesuína? Uma velha
parenta da mamã, que governa agora a casa. Coitada! e com um escrúpulo, com
umamor… Se não fosse a santa criatura, os porcos fossavam nos canteiros…
Meu filho, onde não há saia, não há ordem!Desceram a escadaria redonda, por
entre os vasos de louça azul que trasbordavam de gerânios, de sécias, de
canas-da-índia. Gonçalo recordou a véspera de S. João em que rolara por aqueles
degraus, num trambolhão tremendo, com os braços carregados defoguetes. E
lentamente, através do jardim, evocavam memórias da camaradagem antiga.

Lá se
conservava o trapézio, dos tempos em que ambos cultivavam a religião heróica
daforça, da ginástica, do banho frio… Naquele banco, sob a magnólia, lera uma
tarde André o primeiro canto do seu poema, o Fronteiro de Arzila. E o alvo? O
alvo onde se exerciam à pistola, para os futuros duelos, inevitáveis na
campanha que ambosmeditavam contra o velho Sindicato Constitucional?… — Oh!
toda essa parte do muro, que pegava com o lavadouro, fora derrubada depois da
morte da mamã, para alargar aestufa…

— De
resto o alvo era inútil! — acrescentou o Cavaleiro. — Eu logo por esse tempo
entrei também no Sindicato… E agora entras tu, pela porta que eu te abro!- E
eu desejo entrar, e ardentemente, bem sabes. Mas tu afianças a eleição, com
segurança? Não surgirá dificuldade, Andrezinho?… Esse Pita é um hábil!O
Cavaleiro murmurou apenas, mergulhando os dedos nas cavas do colete:

— Da
habilidade dos Pitas se ri a força dos Cavaleiros… Por três degraus de tijolo
baixaram ao outro jardim, desafogado de arvoredo esombra, onde desabrochava
desde Maio, com esplendor, o tão celebrado bosque de roseiras, orgulho da
quinta de Corinde, que deleitara uma Rainha. Aquele fácil desdémpelo Pita
confirmava a segurança da eleição. Gonçalo, caminhando respeitosamente como num
Museu, regou de louvores deslumbrados as rosas do Cavaleiro:

— Uma
beleza, André, uma maravilha! Tens aqui rosas sublimes… Aquelasrepolhudas,
além, que luxo! E estas amarelas? Deliciosas!… Olha este encanto! O
ruborzinho a surdir, a raiar, do fundo das pétalas brancas… Oh, que
escarlate! Oh, quedivino escarlate!

O
Cavaleiro cruzara os braços, com gracejadora melancolia: — Pois vê tu! Tal é, a
minha solidão social e sentimental que, com todas estas rosasabertas, não tenho
a quem mandar um ramo!… Estou reduzido a florir as Lousadas!

Um
escarlate, mais vivo do que as rosas que gabava, cobriu as faces do Fidalgo:-
As Lousadas! Oh, que desavergonhadas! André atirou ao seu amigo os lustrosos
olhos, num inquieto reparo de curiosidade: — Porquê?… Desavergonhadas,
porquê?- Porquê? Porque o são! Pela sua natureza, e pela vontade de Deus!…
São desavergonhadas como estas rosas são vermelhas.E o Cavaleiro,
tranquilizado:

— Ah,
genericamente… Com efeito têm imensa peçonha. Por isso eu as cubro de rosas.
E em Oliveira, todas as semanas, meu filho, tomo com elas um chá respeitoso!-
Pois não as amansas — rosnou o Fidalgo.

Mas o
Mateus aparecera nos degraus de tijolo com o guardanapo na mão, a
calvarebrilhando ao sol. Era o almoço. O Cavaleiro colheu para Gonçalo uma
«rosa triunfal» — e para si um «botão inocente…». E, enflorados, subiam para
o terraço entre o brilho eo perfume de outras roseiras -quando o Cavaleiro
parou com uma ideia:

— A que
horas vais tu para Oliveira, Gonçalinho?O Fidalgo hesitou. Para Oliveira?…
Não tencionava aparecer em Oliveira, toda essa semana…

— Porquê?
É urgente que vá a Oliveira?- Pois certamente, filho! Amanhã mesmo precisamos
conversar com o Barrolo, combinarmos, por causa dos votos da Murtosa!… Meu
querido Gonçalo, não podemosadormecer. Não é pelo Júlio, é pelo Pita!

— Bem!
bem! — acudiu logo Gonçalo, assustado. — Parto para Oliveira. — Porque então —
continuava André — vamos ambos logo, a cavalo. É um bonitopasseio pelos
Freixos, sempre com sombra… Tens talvez de mandar à Torre, por causa de
roupa…Não! Gonçalo, para evitar a importunidade de malas, conservava nos
Cunhais um bragal inteiro, desde a chinela, até à casaca. E entrava em Oliveira
como o filósofo Bias em Atenas — com uma simples bengala e paciência
infinita…- Delicioso! — declarou André. — Fazemos então logo a nossa entrada
oficial em

Oliveira.
É o começo da campanha.O Fidalgo torcia o bigode, consternado, pensando nos
risinhos perversos das Lousadas, de toda a cidade, perante uma entrada tão
aparatosamente fraternal. E, quando o Cavaleiro recomendou ao Mateus que
mandasse aprontar o Rossilho e a éguado Fidalgo para as quatro horas e meia,
Gonçalo exagerou o seu receio do calor, da poeira. Antes partissem às sete,
pela fresca! (Assim esperava penetrar em Oliveiradesapercebidamente, esbatido
no crepúsculo). Mas André protestou:

— Não, é
uma seca, chegamos à noite. Precisamos entrar com solenidade, à hora da música
no Terreiro… Às cinco, hem?E Gonçalo, vergando os ombros sob a Fatalidade:

— Pois
sim, às cinco.Na sala de jantar, esteirada, com denegridos painéis de flores 4
frutas sobre um papel vermelho imitando damasco, André ocupou a veneranda
cadeira de braços do avô Martinho. O brilho das pratas, a frescura das rosas
numa floreira de Saxe, revelavam osdesvelos da prima Jesuína — que, com dor de
entranhas nessa manhã, não se vestira, almoçava no quarto. Gonçalo louvou
aquela elegante ordem, tão rara numa casa desolteirão, lamentando a falta de
uma prima Jesuína na Torre… E André sorria deliciadamente, desdobrando o
guardanapo, com a esperança que Gonçalo contasse aos Barrolos o confortável
luxo de Corinde. Depois, picando com o garfo uma azeitona:- Pois é verdade, meu
querido Gonçalo, lá estive nessa grande Capital, depois um dia em Sintra…O
Mateus entreabriu a porta para recordar a S. Ex-a o amanuense do Governo Civil,
que esperava.

— Pois
que espere! — gritou S. Ex-a.Gonçalo lembrou que talvez o digno homem se
impacientasse, com fome…

— Pois
que almoce! — gritou S. Ex-a.Aquele seco desprezo de André pelo pobre
empregado, esquecido no banco de entrada, com a sua pasta sobre os joelhos
constrangia o Fidalgo. E espetando também uma azeitona:- Dizias então,
Sintra…

— Sem
sabor — resumiu André. — Poeirada horrenda, femeaço medíocre… E já
meesquecia. Sabes quem lá encontrei, na estrada de Colares? O Castanheiro, o
nosso Castanheiro, o dos ANAIS, de chapéu alto. Ergueu logo os braços ao céu,
desolado: «E então esse Gonçalo Mendes Ramires não me manda o romance?» Parece
que o primeironúmero da revista sai em Dezembro, e ele precisa o original em
começos de Outubro… Lá me suplicou que te sacudisse, que te recordasse a
glória dos Ramires. E tu deviasacabar a novela… Até convém que, antes de
entrares na Câmara, apareça um trabalho teu, um trabalho sério, de erudição
forte, bem português…

— Pois
convém! — concordou vivamente Gonçalo. — E à novela só falta o Capítuloquarto.
Mas esse justamente demanda mais preparação, mais pesquisas… Para o acabar
precisava o espírito bem sossegado, a certeza desta infernal eleição… Não é o
animal doJúlio que me inquieta. Mas a canalha intrigante de Lisboa… Que te
parece?

Cavaleiro
riu, estendendo de novo o garfo para as azeitonas — Que me parece, Gonçalinho?
Que estás como uma criança pequena, aflita, commedo que te não chegue o prato
de arroz -doce. Sossega, menino, apanhas o teu arroz-doce!… Mas com efeito,
encontrei o José Ernesto muito teimoso. já existiamcompromissos antigos com o
Pita. A Verdade tem sido furiosamente ministerial… Eesse Pita, agora quando
souber que lhe tapei Vila Clara, arde em furor contra mim. O que me é
soberanamente indiferente; colerazinhas ou piadinhas do Pita não me tiram
oapetite… Mas o José Ernesto admira o Pita, necessita do Pita, está empenhado
em pagar ao Pita com um círculo… Ainda no último dia me disse na Secretaria,
até lhe acheigraça: — «Eu vejo que os deputados por Vila Clara morrem; ora se,
por esse bom costume, o teu Ramires morrer em breve, então entra o Pita».

Gonçalo
recuou a cadeira:- Se eu morrer!… Que animal!

— Oh, se
morreres para o círculo! — atalhou o Cavaleiro rindo. — Por exemplo, senos
zangássemos, se amanhã entre nós surgisse uma dissidência… Enfim o
impossível! O Mateus entrava com a terrina do caldo de galinha, que rescendia.
— A ele! — exclamou André. — E não se fale mais de círculos, nem de Pitas, nem
deJúlios, nem da negregada Política!… Conta antes o enredo da tua novela…
Histórica, hem?… Meia Idade? D. João V?… Eu, se tentasse agora um romance,
escolhia umaépoca deliciosa, Portugal sob os Filipes…

Os três
quartos, depois das seis, batiam no relógio sempre adiantado da Igreja deS.
Cristóvão, em Oliveira, quando André Cavaleiro e Gonçalo, descendo da Rua
Velha, penetraram no Terreiro da Louça (agora Largo do Conselheiro Costa
Barroso).Todos os domingos, tocando num coreto que o Conselheiro, quando
Presidente da Câmara, mandara construir sobre o velho pelourinho demolido, a
charanga do regimento ou a filarmónica Lealdade, tornavam aquele Largo o centro
mais sociável daquieta e caseira cidade. Nessa tarde, porém, como começara no
Convento de Santa

Brígida o
bazar patrocinado pelo Bispo, as senhoras rareavam nos bancos de pedra e
nascadeiras do asilo espalhadas por sob as acácias. As Lousadas faltavam no seu
pouso reservado, superiormente escolhido para espiarem todo o Terreiro, as
casas que o cerram do lado de S. Cristóvão e do lado das Trinas, a Rua Velha e
a Rua das Velas, abarraca da limonada, e até outro retiro pudicamente
disfarçado por uma caniçada de heras. E o único rancho conhecido, D. Maria
Mendonça, a Baronesa das Marges, asduas Alboins, conversavam com as costas para
o Terreiro, junto da grade de ferro que o limita sobre a antiga muralha — de
onde se dominam campos, a cerca do Seminário Novo, todo o pinhal da Estevinha e
as voltas lustrosas da ribeira de Crede.Mas entre os cavalheiros que trilhavam
vagarosamente a álea do Largo denominada o «Picadeiro», gozando a Marcha do
Profeta, o espanto reviveu (apesar detodos conhecerem a reconciliação famosa do
Governo Civil), quando os dois amigos apareceram, ambos de chapéus de palha,
ambos de polainas altas, ao passo solene das duas éguas — a de Gonçalo airosa e
baia de cauda curta à inglesa, a do Cavaleiro pesadae preta, de pescoço
arqueado, a cauda farta rojando as lajes. Melo Alboim, o Barão das Marges, o
Dr. Delegado, pararam numa fila pasmada, a que se juntou um dosVila-Velhas,
depois o morgado Pestana, depois o gordo major Ribas com a farda desabotoada,
rebolando e galhofando sobre «aquela amigação…». O tabelião Guedes, o
Guedespopa, derrubou a cadeira no alvoroço com que se ergueu, indignado
masrespeitoso, descobrindo a calva numa cortesia imensa, em que o chapéu branco
lhe tremia. E o velho Cerqueira, o advogado, que saía do retiro encaniçado de
hera e seabotoava, embasbacou, com os óculos na ponta do nariz alçado, os dedos
esquecidos nos botões das calças.

No
entanto os dois amigos, gravemente, seguiam pela correnteza de casas que
opalacete de D. Arminda Vilegas domina, com o pesado brasão dos Vílegas na
cimalha, as suas dez nobres varandas de ferro opulentadas por cortinas de
damasco amarelo. Navaranda de esquina, o Barrolo e José Mendonça fumavam,
sentados em mochos de palhinha. E ao sentir as patas lentas das éguas, ao
avistar tão inesperadamente o cunhado — o bom Barrolo quase se despenhou da
varanda:- Oh Gonçalo! Oh Gonçalo!… Vais lá para casa?

E nem
esperou uma certeza, berrou de novo, bracejando:- Nós já vamos! jantamos cá
esta tarde… A Gracinha está lá em cima, com a tia Arminda. Vamos já também! É
um momento!

O
Cavaleiro acenou. risonhamente ao capitão Mendonça. Já Barrolo mergulharacom
entusiasmo para dentro dos damascos amarelos. E os dois amigos, deixando pelo

Terreiro
aquele sulco de espanto, penetraram na Rua das Velas, onde um polícia
seperfilou com a mão no boné — o que foi agradável ao Fidalgo da Torre.

O
Cavaleiro acompanhou Gonçalo ao Largo de El-Rei. Diante do palacete um homem de
boina vermelha remoía no seu realejo o coro nupcial da Lúcia, espiando
asjanelas desertas. O Joaquim da Porta correu do pátio a segurar a égua do
Fidalgo. Com um mudo sorriso, o tocador estendera a boina. E depois de lhe
atirar um punhado decobre — Gonçalo hesitou, murmurou enfim, com embaraço e
corando:

— Não
queres entrar e descansar, André?… — Não, obrigado… Então amanhã às duas,
no Governo Civil, com o Barrolo, paracombinarmos sobre os votos da Murtosa…
Adeus, minha flor! Demos um belo passeio e espantámos Os povos!E S. Ex-a,
envolvendo o palacete num demorado olhar, desceu pela Rua das Tecedeiras.

No seu
quarto (sempre preparado, com a cama feita) Gonçalo acabava de se lavar,de se escovar,
quando Barrolo se precipitou pelo corredor, esbofado, sôfrego — e atrás dele
Gracinha, ofegante também, desapertando nervosamente as fitas escarlates
dochapéu. Desde a tarde em que Barrolo «presenciara com os olhos bem
acordados!» a palestra de Gonçalo e de André na varanda do Governo Civil —
fervera nele e em Gracinha uma impaciência desesperada por penetrar os motivos,
a encoberta históriadaquela reconciliação surpreendente. Depois a fuga de
Gonçalo na caleche para a Torre, sem parar nos Cunhais; a repentina jornada do
Cavaleiro a Lisboa; o silêncio que sobreaquele caso se abatera mais pesado que
uma tampa de ferro -quase os aterrou. Gracinha à noite, no oratório, murmurava
através das rezas distraídas: — «Oh, minha rica Nossa Senhora, que será?» —
Barrolo não ousara correr à Torre; mas até sonhava com avaranda do Governo
Civil, que lhe aparecia enorme, crescendo, atravancando Oliveira, roçando já as
janelas dos Cunhais, de onde ele a repelia com o cabo duma vassoura… Eeis
agora Gonçalo e André que entram na cidade a cavalo, muito serenamente, ambos
de chapéus de palha, como companheiros constantes recolhendo dum passeio!

Logo à
porta do quarto, Barrolo atirou os braços, rompeu aos brados:- Então que tem
sido tudo isto?… Não se fala noutra coisa!… Tu com o André! Gracinha,
arfando, tão vermelha como as fitas do chapéu, só balbuciava:- E não vens, nem
escreves… Nós com tanto cuidado… E mesmo rente da porta aberta, sem se
sentarem, o Fidalgo aclarou o «Mistério», com a toalha ainda nas mãos:- Uma
coisa muito inesperada, mas muito natural. O Sanches Lucena morreu, como vocês
sabem. Ficou vago o círculo de Vila Clara. É um círculo por onde só podesair um
homem da terra, com propriedade, com influência. O Governo imediatamente me
mandou perguntar, pelo telégrafo, se eu me desejava propor… Ora eu, no fundo,
estou de bem com os Históricos, sou amigo do José Ernesto… Estimava entrar
naCâmara… Aceitei.

O Barrolo
esmagou a coxa com uma palmada triunfal:- Então era certo, caramba! O Fidalgo
continuava, enxugando interminavelmente as mãos: — Aceitei, está claro, com
condições; e muito fortes. Mas aceitei… Neste caso,como vocês sabem, convém
que o candidato se entenda com o Governador Civil. Eu, ao princípio, não queria
renovar relações. Instado, porém, muito instado de Lisboa, e porconsiderações
superiores de Política, consenti nesse sacrifício. Nas dificuldades em que se
encontra o país, todos devem fazer sacrifícios. Eu fiz esse… O André, de
resto, foi muito amável, muito afectuoso. De sorte que estamos outra vez
amigos. Amigospolíticos: mas muito bem, muito lealmente… Almocei hoje com ele
em Corinde, viemos juntos pelos Freixos. Uma tarde linda!… Enfim renasceu a
antiga harmonia. E a eleiçãoestá segura.

— Venham
de lá esses ossos! — berrou o Barrolo, transportado. Gracinha terminara por se
sentar à borda do leito, com o chapéu no regaço,enlevada para o irmão, num
silencioso enternecimento em que os seus doces olhos se humedeciam e riam. O
Fidalgo, que se desprendera do abraço do Barrolo, dobrava a.toalha com um vagar
distraído:

— A
eleição está segura, mas precisamos trabalhar. Tu, Barrolo, tens de conversar
também com o Cavaleiro. já combinei. Amanhã no Governo Civil, às duas horas.
Énecessário que vocês se entendam, por causa dos votos da Murtosa…

— Pronto,
menino! o que vocês quiserem! Votos, dinheiro…E Gonçalo, borrifando vagamente
o jaquetão com água -de-colónia que pingava no soalho:

— Desde o
momento em que eu me reconciliei com o André, tudo acabou. Tu,Barrolo,
imediatamente te reconcilias também…

Barrolo
quase pulou, no seu deslumbramento:- Pois está claro! E ainda bem, que eu gosto
imensamente do Cavaleiro! Até sempre teimava com Gracinha… «Oh senhores, esta
tolice, por causa da Política!…»

— Bem! —
concluiu o Fidalgo. — A Política nos separou, a Política nos reúne… É oque se
chama a inconstância dos Tempos e dos Impérios.

E agarrou
Gracinha pelos ombros, com um beijo brincalhão, estalado em cadaface: — A tia
Arminda? Boa, da escaldadela? já voltou às façanhas de Leandro o Belo? Gracinha
resplandecia, com o lento sorriso que se não desfizera, a envolvia todaem
claridade e doçura:

— A tia
Arminda está melhor, já anda. Perguntou por ti… Mas, oh Gonçalo, tudecerto
queres jantar!

— Não,
almocei tremendamente em Corinde… Vocês, como jantaram à hora antigada tia
Arminda, ceiam, hem? Então logo ceio… Agora apenas uma chávena de chá, muito
forte!Gracinha correu, no alvoroço de servir o herói querido. E pela escada,
descendo com Barrolo que o contemplava, o Fidalgo da Torre lamentou os seus
sacrificios:

— E
verdade, menino, é uma maçada… Mas que diabo! todos devemos concorrerpara
tirar o país do atoleiro!

Barrolo,
maravilhado, murmurava:- E sem dizeres nada… Assim à capucha! Assim à
capucha!… — E agora outra coisa, Barrolo. Amanhã, no Governo Civil, deves
convidar o André a jantar…- Com certeza! — gritou o Barrolo. — jantar de
estrondo?

— Não,
homem! jantar muito quieto, muito intimo. Unicamente o André e o JoãoGouveia.
Telegrafas ao João Gouveia. Também podes convidar os Mendonças… Mas jantar
muito discreto, só para conversarmos, para firmar a reconciliação dum modo mais
sociável, mais elegante.Ao outro dia, no Governo Civil, Barrolo e o Cavaleiro
apertaram as mãos com tanta singeleza, como se ambos, ainda na véspera, andassem
jogando o bilhar ecaturrando no clube da Rua das Pegas. De resto conversaram
sumariamente sobre a eleição. Apenas o Cavaleiro aludira com indolência aos
votos de Murtosa — o bom Barrolo quase se engasgou, na ânsia de os oferecer:E o
que vocês quiserem… Votos, dinheiro, o que vocês quiserem!… Vocês digam!

Eu vou
para a Murtosa, e é comezaina, e pipa de vinho aberta, e a freguesia inteira
avotar no meio de foguetório…

O
Cavaleiro, rindo, amansou aquele fervor faustoso: — Não, meu caro Barrolo, não!
Nós preparamos uma eleição muito sóbria, muitosossegada. Vila Clara elege
Gonçalo Mendes Ramires deputado, naturalmente, como o seu melhor homem. Não há
combate, o Julinho é uma sombra. Portanto…O Barrolo persistia, radiante,
gingando:

— Perdão,
André, perdão! Lá isso vinhaça, e vivório, e foguetório, e festança magna…Mas
Gonçalo, embaraçado, ansioso por suster a garrulice do Barrolo, as palmadas
carinhosas com que ele se atufava na intimidade do Cavaleiro, apontou para a
mesa deS. Ex-a:

— Tu tens
que fazer, André. Vejo aí uma papelada pavorosa… Não roubemos mais tempo ao
chefe ilustre do Distrito! Ao trabalho!

Trabalhar,
meu irmão, que o trabalho É André, é virtude, é valor!…

Agarrara
o chapéu, acenando ao cunhado. Então Barrolo, com bochechas a estalarde gosto,
balbuciou o convite que firmaria a reconciliação dum modo sociável e elegante:-
Cavaleiro, para conversarmos melhor, se você nos quiser dar o gosto de vir
jantar… Quinta-feira, às seis e meia… N ós, quando cá está o Gonçalo,
jantamos sempre mais tarde.O Cavaleiro, que corara, agradeceu com discreta
cerimónia:

— É para
mim um imenso prazer, uma imensa honra…

E à porta
da antessala onde os acompanhara, segurando o pesado reposteiro de baeta
escarlate com as armas reais bordadas — suplicou ao Barrolo que pusesse os seus
respeitos aos pés da Sr a D. Graça…Barrolo, descendo a larga escadaria de
pedra, limpava a testa, o pescoço, humedecidos pela emoção. E no pátio
desabafou:

— Muito
simpático este André! Rapaz franco, de quem sempre gostei… Realmenteestava
morto que acabassem estas histórias… E mesmo lá para os Cunhais, para a
companhia, para o cavaco, que bela aquisição!

Quinta-feira
de manhã depois do almoço, no terraço do jardim onde tomav am café, Gonçalo
recomendou ao Barrolo que «para acentuar mais completamente aintimidade simples
do jantar, não pusesse casaca…».

— E tu,
Gracinha, vestido afogado. Mas vestidinho claro, alegre…Gracinha sorriu,
indecisamente, continuando a folhear um Almanaque de Lembranças estendida numa
cadeira de verga, com um gatinho branco no regaço.

Depois do
alvoroço e pasmo de domingo, ela aparentava agora um desinteressesilencioso
pela reconciliação que ainda abalava Oliveira, pela eleição, pelo jantar. Mas
nesses dias não sossegara tão impaciente e sensível que o bom
Barrolo,incessantemente, lhe aconselhava o grande remédio da mamã contra os
nervos, «flores de alecrim, cozidas em vinho branco».

Gonçalo
percebia claramente a perturbação em que a lançava aquela entradatriunfal de
André, do antigo André, na sua casa de casada, nos Cunhais. E para se
tranquilizar evocava (como na estrada do cemitério em Vila Clara) a seriedade
deGracinha, o seu rígido e puro pensar, a altivez da sua almazinha heróica.
Nessa manhã mesmo, todo no fresco e sôfrego cuidado da sua eleição, só receava
que Gracinha, por embaraço ou cautela, acolhesse secamente o Cavaleiro, o
esfriasse no seu renovadofervor pela casa de Ramires, no seu patrocinato
político. E insistiu, gracejando:

Ouviste,
Gracinha? Um vestido branco. Um vestidinho alegre, que sorria aoshóspedes…
Ela murmurou, mergulhada no seu Almanaque: — Sim, realmente, com este
calor…Mas Barrolo bateu uma palmada na coxa. Que pena! que pena não ter em

Oliveira,
«para o brinde de reconciliação», um famoso vinho do Porto, da garrafeira
damamã, preciosíssimo, velhíssimo, do tempo de D. João II…

— D. João
II? — rosnou Gonçalo. — Está estragado! Barrolo hesitou:- D. João II ou D. João
VI… Um desses Reis. Enfim um vinho único, do século passado! Só restam à mamã
oito ou dez garrafas… E hoje, era dia para uma, hem?O Fidalgo deu um sorvo
lento ao café:

— O
André, antigamente, também gostava muito de ovos queimados… Bruscamente
Gracinha fechou o Almanaque — e, com uma fuga e um silêncio queemudeceram
Gonçalo, sacudiu do colo o gato dorminhoco, atravessou o terraço, desapareceu
entre os teixos altos do jardim.Mas à tarde, quando o Fidalgo ocupou o seu
lugar na mesa oval, junto da prima Maria Mendonça — logo notou, entre duas
compoteiras, uma travessa de ovos queimados. Apesar de jantar tão íntimo
serviam, com a louça da China, os famosostalheres dourados da baixela do tio
Melchior. E duas jarras de Saxe transbordavam de alvos brancos e amarelos,
cores heráldicas dos Ramires.

D. Maria,
que não encontrara o querido primo desde os anos de Gracinha,murmurou com um
sorriso, uma grave cortesia, naquele cerimonioso silêncio em que se desdobravam
os guardanapos:- Ainda lhe não dei os parabéns, primo Gonçalo…

Ele
acudiu, mexendo nervosamente nos copos: — Psiu! prima, psiu! Hoje aqui, já está
decidido, não se alude quer a política… Estámuito calor para política.

Ela
suspirou de leve, como desfalecida: Ai, o calor… Que horrível calor! Desdeque
entrara nos Cunhais com aquele vestido preto que «era o seu pálio rico» — ainda
não cessara de invejar a frescura do vestido branco de Gracinha…

— Que bem
que lhe fica! Está hoje linda!Era um vestido liso de crépon branco, que
aclarava, remoçava a sua graça quase virginal. E nunca realmente tanto
prendera, assim clara e fina, com os verdes olhosrefulgindo como esmeraldas
lavadas, uma ondulação mais lustrosa nos pesados cabelos, um macio rubor
transparente, todo um fresco brilho de flor regada, de flor revivida, apesar do
acanhamento que lhe imobilizava os dedos ao erguer a colher de pratadourada. E
ao lado, superiormente robusto e largo, com o peitilho arqueado como uma
couraça e cravejado de duas safiras, uma rosa branca desabrochada na lapela,
AndréCavaleiro, que recusara a sopa (oh, no Verão nunca comia sopa!) dominava a
mesa, levemente comovido também, passando sobre o reluzente bigode um lenço tão
perfumado que afogava o perfume dos cravos. Mas foi ele que encadeou a
animaçãocom risonhos queixumes sobre o calor — o escandaloso calor de
Oliveira… Ah! que

Purgatório
abrasado — depois dos seus dois dias de Paraíso, na frescura deliciosa
deSintra!

D. Maria
Mendonça adoçou os espertos olhos para o Sr. Governador Civil. — E então
Sintra? Animada? Muitos ranchos à tarde, em Seteais? Encontrara a Condessa
deChelas — a prima Chelas?…

Sim, na
Pena, na sua visita à Rainha, Cavaleiro conversara durante um momentocom a Srª
Condessa de Chelas… — Ah! e a Rainha?… — Oh, sempre encantadora…- A Srª
Condessa de Chelas, essa, um pouco magra. Mas tão amável, tão inteligente, tão
verdadeiramente grande dame — não é verdade? E, como se inclinarapara Gracinha,
com uma doçura infinita no simples mover da cabeça — ela, perturbada, mais
vermelha, balbuciou que não conhecia a Condessa de Chelas… D. Maria Mendonça
acusou logo a inércia dos primos Barrolos, sempre encafurnados nosCunhais, sem
nunca se aventurarem a Lisboa no Inverno, para conviver, para conhecer os
parentes…- E a culpa é do primo José, que detesta Lisboa…

Oh, não!
Barrolo não detestava Lisboa! Se pudesse acarretar para Lisboa as suas
comodidades, o seu quarto, a sua cocheira, a boa água do pomar, a rica varanda
sobre ojardim — até se regalava!

— Mas
entalado naqueles quartinhos do Bragança… E depois a má comida, obarulho… A
Gracinha em Lisboa nunca dorme… E a maçada das manhãs?… Não há nada que
fazer em Lisboa, de manhã!

O
Cavaleiro sorria para o Barrolo, como enlevado na sua graça e razão.
Depoisconfessou que ele, apesar de habitar também (mercê do Estado!) um
palacete confortável, e gozar também uma água excelente, a finíssima água do
Poço de S.Domingos, lamentava que os deveres de Política, a disciplina de
Partido o amarrassem a Oliveira. E toda a sua esperança era a queda do
Ministério, para se libertar, passar trêsmeses divinos em Itália…

Do outro
lado de Gracinha, João Gouveia (sempre acanhado e mudo diante desenhoras)
exclamou, num impulso de amizade, de convicção: — Pois, Andrezinho, vai
perdendo a esperança! O S. Fulgêncio não arreia! Ainda cá te apanhamos uns três
ou quatro anos!E insistiu, debruçado sobre Gracinha, num esforço de amabilidade
que o esbraseava:O S. Fulgêncio não arreia. Ainda cá temos o nosso André mais
três ou quatro anos.

André
protestava, com um requebro, as espessas pestanas quase cerradas:- Oh meu João!
não me queiras mal, não me queiras mal!…

E
teimava. Ah, com certeza! ainda que desertasse o seu partido (e que importa
emhoste poderosa uma lança ferrugenta?) esses meses de Itália no Inverno já os
sonhara, já os preparava… — E a Srª a D. Graça não permitia que ele a
servisse dum pouco de vinho branco?Barrolo estendeu o braço, com efusão:

Oh
Cavaleiro! eu tenho empenho em que você prove esse vinho com cuidado… Eda
minha propriedade do Corvelo… Faço muito gosto nele. Mas prove com atenção!
S. Ex-a provou com devoção, como se comungasse. E com uma cortesia compenetrada
para Barrolo que reluzia de gosto:- Uma delícia! uma verdadeira delícia!

— Hem?
Não é verdade? Eu, para mim, prefiro este vinho do Corvelo a todos osvinhos
franceses, os mais finos… Até ali o nosso amigo Padre Soeiro, que é um santo,
o aprecia!

Silencioso,
esbatido por trás duma das altas jarras de cravos, Padre Soeiro corou,sorriu:

— Com
muita água, infelizmente, Sr. José Barrolo… O gosto pede, mas oreumatismo não
consente. Pois José Mendonça, que não temia reumatismos, atacava sempre bravamente
aquele bendito Corvelo…- Que lhe parece a você, João Gouveia?

Oh! João
Gouveia já o conhecia, louvado Deus! E certamente nunca encontraraem Portugal,
como vinho branco, nenhum comparável pela frescura, pelo aroma, pela seiva…

— E cá
lhe vou atiçando com fervor, Barrolo amigo! Esta bela garrafa de cristal vaide
vencida!

Barrolo
exultava. O seu desgosto era que Gonçalo nunca honrasse «aquelenéctar». — Não!
Gonçalo não tolerava vinhos brancos… — E então hoje estou com uma destas
sedes que só me satisfaz vinho verde, assim um pouco espumante, e com gelo…
Que este de Vidainhos também é do Barrolo. Oh, eunão desprezo os vinhos da
família… Este Vidainhos sinceramente o considero sublime.

Então
Cavaleiro desejou provar esse sublime vinho verde da quinta de Vidainhos,em
Amarante. O escudeiro, a um aceno entusiasmado do Barrolo, apresentou a S. Ex-a
um copo esguio, especial para aquele vinho que espumava. Mas o Cavaleiro,
acariciando o fresco copo sem o erguer, repisou a ideia de férias, de viagens,
comoacentuando o seu cansaço e fastio de Oliveira. — E sabia a Sr a D. Graça
para onde ele seguiria, depois da Itália, nesse Inverno, se por caridade de
Deus o Ministério caísse?…Para a Ásia Menor.

— E era
uma viagem para que eu, com certeza, tentava o nosso Gonçalo… Tãofácil,
agora, com os caminhos -de -ferro!… De Veneza a Constantinopla um mero
passeio. Depois, de Constantinopla a Esmirna, um dia, dois dias, num vapor
excelente.E daí numa boa caravana, por Trípoli, pela antiga Sidónia,
penetrávamos em Galileia… Galileia! Hem, Gonçalo? Que beleza!

Padre
Soeiro, suspendendo o garfo, lembrou timidamente que em Galileia o Sr.Gonçalo
Ramires pisaria terra que outrora, por pouco, pertencera à sua Casa:

— Um dos
antepassados de V. Ex-a, Gutierres Ramires, companheiro de Tancredona primeira
Cruzada, recusou o ducado de Galileia e de Além-Jordão… — Fez pessimamente! —
gritou Gonçalo, rindo. — Oh, esse avô Gutierres andou pessimamente! Porque não
existia agora, neste mundo, disparate mais divertido do queeu Duque de
Galileia! O Sr. Gonçalo Mendes Ramires, Duque de Galileia e de

Além-Jordão!…
Era simplesmente de rebentar!Cavaleiro protestou, com simpatia:

— Ora
essa! Porquê? — Não acredite! — acudiu, com os olhos coruscantes, D. Maria
Mendonça. — Oprimo Gonçalo, com todas estas graças, no fundo, é muitíssimo
aristocrata… Mas terrivelmente aristocrata!O Fidalgo da Torre pousou o copo
de Vidainhos, depois dum trago saboreado e fundo:


Aristocrata… Está claro que sou aristocrata. Sentiria com efeito certo desgostoem
ter nascido, como uma erva, de outras ervas vagas. Gosto de saber que nasci de
meu pai Vicente, que nasceu de seu pai Damião, que nasceu de seu pai Inácio, e
assimsempre até não sei que Rei Suevo…


Recesvinto! — informou respeitosamente Padre Soeiro. — Pois até esse
Recesvinto. O pior é que o sangue de todos esses pais não difere,realmente, do
sangue dos pais do Joaquim da Porta. E que depois do Recesvinto, para trás, até
Adão, não tenho mais pais!E, enquanto todos riam, D. Maria Mendonça, debruçada
para ele, por trás do leque largamente aberto, murmurou:

— O primo
está com esses desprezos… Pois eu sei duma senhora que tem a maioradmiração
pela casa de Ramires e pelo seu representante.

Gonçalo
enchia de novo o copo, com amor, atento à espuma:- Bravo! Mas «convém
distinguir», como diz o Manuel Duarte. Por quem tem ela a verdadeira admiração,
por mim ou pelo Suevo, pelo Recesvinto?

— Por
ambos.- Diabo!

Depois,
pousando a garrafa, mais sério:- Quem é? Oh! ela não podia confessar. Não era
ainda bastante velha para andar com recadinhos de sentimento. Mas Gonçalo
dispensava o nome — só desejava asqualidades… Nova? Bonita?

— Bonita?
— exclamou D. Maria. — É uma das mulheres mais formosas dePortugal! Espantado,
Gonçalo lançou o nome: — A D. Ana Lucena!- Porquê?

— Porque
mulher assim tão formosa, e vivendo nestes sítios, e tão conhecida daprima que
lhe faz confidências, só a D. Ana.

D. Maria,
ajeitando as duas rosas que lhe alegravam o corpete de seda preta,sorria: —
Talvez seja, talvez seja…- Pois estou imensamente lisonjeado. Mas ainda
distingo, como o Manuel Duarte. Se, da parte dela, essa simpatia toda é para o
bom fim, não! Não, Santo Deus, não!… Mas se é para o mau fim, então, prima,
cumprirei honradamente o meu dever, dentrodas minhas forças…

D. Maria
escondeu a face no leque, escandalizada. Depois, espreitando, com osagudos
olhos a faiscar: — Oh primo, mas o bom fim é que convinha, porque a coisa é a
mesma e são duzentos contos a mais!Gonçalo gritou de admiração:

— Oh!
esta prima Maria! Não há em toda a Europa ninguém mais esperto!Todos
curiosamente ansiaram por saber a nova graça da Srª D. Maria. Mas Gonçalo
deteve as curiosidades:

— Não se
pode contar. É casamento.Então José Mendonça recordou a novidade picante, que
desde a véspera remexia

Oliveira:-
Por casamento!… Que me dizem ao casamento da D. Rosa Alcoforado?

Barrolo,
depois o Gouveia, até Gracinha, todos o proclamaram «um horror». Aquela
perfeita rapariga, de pele tão cor-de-rosa de cabelo tão cor de ouro, amarrada
aoTeixeira de Carredes, um patriarca carregado de netos… Que desastre!

Pois ao
Cavaleiro o casamento não parecia assim «desastrado». O Teixeira deCarredes,
além de muito fino, de muito inteligente, era um velho verdejante, quase sem
rugas — até bonito com aquele contraste do bigode escuro e da grenha riçada e
branca. E na Srª D. Rosa, com todas as rosas da sua pele e todo o ouro dos
cabelos, dominava «umnão sei quê» de amolentado e de sorvado… Depois pouco
esperta. E pouco cuidadosa — sempre mal penteada, sempre mal pregada…- Enfim,
V. Ex-a perdoem… Mas quem faz um casamento muito desenxabido, é o pobre
Teixeira de Carredes.

D. Maria
Mendonça considerava o Governador Civil com um espanto amável:- Pois se o Sr.
Cavaleiro não admira a Rosinha Alcoforado, não sei então que rapariga admire
dentro do seu Distrito…Ele, logo, com galante rasgo:

— Mas,
além de V. Ex. as, não admiro ninguém! Realmente eu governo, em Portugal, o
Distrito mais desprovido de beleza…Todos protestaram. E a Maria Marges? E a
pequena Reriz, da Riosa? E a

Melozinho
Alboim, com aqueles olhos?… Mas o Cavaleiro não consentia, a todasdemolia com
um sarcasmo leve, ou pela pele sem frescura, ou pelo pisar desairoso, ou pelo
provincianismo de gosto e modos, sempre pela carência das belezas e graças que
ornavam Gracinha — lançando assim disfarçadamente, aos pés de Gracinha, um rolo
desenhoras vencidas e amarfanhadas. Ela percebera a subtil adulação, os seus
olhos alumiaram com um fulgor mais enternecido o rubor que a afogueava. Desejou
repartirincenso tão acumulado — lembrou timidamente outra beleza de que se
orgulhava o Distrito:

— A filha
do Visconde de Rio Manso, a Rosinha Rio Manso… É linda!O Cavaleiro triunfou
com facilidade:

— Mas tem
doze anos, minha senhora! Nem é rosinha, é botãozinho de rosa!…Quase
humildemente, Gracinha recordou a Luísa Moreira, filha dum lojista, muito
admirada aos domingos na missa da Sé e no Terreiro da Louça:

— É uma
bela rapariga… Sobretudo a figura…Cavaleiro triunfou ainda, com requebrada
segurança: — Sim, mas os dentes tortos, Srª D. Graça! Os dentes acavalados! V.
Ex-a nuncareparou… Oh! uma boca muito desagradável! E, além dos dentes, o
irmão, o Evaristo, com aquela cara mais chata que a alma, e a caspa, e a
porcaria, e o jacobinismo… Não há mulher bonita com irmão tão feio!Mendonça
estendera o braço, com outra curiosidade que ocupava Oliveira:

— E por
Evaristo!… Ele sempre funda o novo jornal republicano, o Rebate?O Sr.
Governador Civil encolheu os ombros com uma ignorância superior e risonha. Mas
João Gouveia, vermelho e luzidio depois da sua garrafa de Corvelo e da sua
garrafa de Douro, afiançou que o Rebate aparecia em Novembro. Até ele conhecia
opatriota que esportulava a «massa». E a campanha do Rebate começava com cinco
artigos esmagadores, sobre a Tomada da Bastilha.O espanto de Gonçalo era como o
Republicanismo alastrara em Portugal -até na velhota, na devota Oliveira…

— Quando
eu andava em preparatórios existiam simplesmente dois republicanosem Oliveira,
o velho Salema, lente de Retórica, e eu. Agora há partido, há comité, há dois
jornais… E há mesmo o Barão das Marges com a Voz Pública na mão, debaixo
daArcada…

Mendonça
não receava a República, gracejava: — Ainda vem longe, muito longe… Ainda nos
dá tempo de comermos estes belosovos queimados.


Deliciosos — murmurou o Cavaleiro.- Sim — concordou Gonçalo — ainda temos tempo
para os ovos… Mas que rebente uma revolução em Espanha, ou que morra o
Reizinho na sua menoridade, que naturalmente morre…- Credo! Coitadinho! Pobre
mãe! — murmurou Gracinha sensibilizada.

Imediatamente
o Cavaleiro a tranquilizou. Porquê, morrer o Reizinho de Espanha?Os
republicanos espalhavam boatos sombrios sobre os males da excelente criança.
Mas ele conhecia a realidade — assegurava à Srª D. Graça que, felizmente para a
Espanha, ainda reinaria um Afonso XIII e mesmo um Afonso XIV. Enquanto aos
nossosrepublicanos, esses… Meu Deus! mera questão de guarda municipal!
Portugal, nas suas massas profundas, permanecia monárquico, de raiz. Apenas ao
de cima, na burguesia enas escolas, flutuava uma escuma ligeira, e bastante
suja, que se limpava facilmente com um sabre…

— V. Ex-a
Srª D. Graça, que é uma dona de casa perfeita, conhece esta operação quese faz
à panela do caldo… Escumar a panela. É com uma colher. Aqui é com um sabre.

Pois
assim, com toda a simplicidade, se clarifica Portugal. E foi isto que
aindaultimamente eu declarei a El-Rei.

Alteara a
cabeça — o seu peitilho resplandecia, mais largo, como couraça bastante rija
para defender toda a Monarquia. E, no compenetrado silêncio que se alargou,
duasrolhas de champanhe estalaram, por trás do biombo, na copa.

Apenas o
escudeiro, apressado, enchera as taças — o Fidalgo da Torre, com umagravidade
que o sorriso adoçava: — André, à tua saúde. Não é ao Governador Civil, é ao
amigo! Todos os copos se ergueram num sussurro acariciador. João Gouveia agitou
o seu,com especial efusão, gritando: — «Andrezinho, meu velho!» S. Ex-a apenas
tocou de leve no cálice de Gracinha. Padre Soeiro murmurou as «graças». E
Barrolo, atirando oguardanapo:

— Café
aqui ou na sala?… Na sala estamos mais frescos.

Na sala
grande, a sala dos veludos vermelhos, o lustre rebrilhava solitariamente;pelas
três janelas abertas penetrava a serenidade da noite quente, o recolhido
silêncio de Oliveira; e em baixo, no Largo, alguns sujeitos, mesmo duas
senhoras de manta de lãbranca pela cabeça, pasmavam para aquela claridade de
festa que jorrava dos Cunhais. O Cavaleiro e Gonçalo acenderam os charutos na
varanda, respirando a frescura escassa. E o Cavaleiro, com beatitude:- Pois
sempre te digo, Gonçalinho, que se janta sublimemente em casa de teu
cunhado!…Gonçalo desejou que, no domingo, ele jantasse na Torre. Ainda
restavam umas garrafas de Madeira, do tempo do avô Damião — a que se daria, com
socorro do Gouveia e do Titó, um assalto heróico.O Cavaleiro prometeu, já
deliciado — tomando da pesada bandeja de prata, que derreava o escudeiro, a sua
chávena de café, sem açúcar.- E tu, com efeito, Gonçalo, agora não deves
arredar da Torre. O teu papel é todo de presença na localidade. O Fidalgo da
Torre está no meio das suas terras, por onde vai ser eleito para as Cortes. É o
teu papel…O Barrolo, com um riso enlevado, surdiu entre os dois amigos, que
enlaçou ternamente pela cinta:- E nós cá ficamos, ambos a trabalhar, o
Cavaleiro e eu!..

Mas D.
Maria, do canapé onde se enterrara, reclamou o primo Gonçalo «para negócios».
junto duma console, João Gouveia e Padre Soeiro, remexendo o seu
café,concordavam na necessidade dum Governo forte. E Gracinha, com o primo
Mendonça, revolvia as músicas sobre a tampa do piano, procurando o Fado dos
Ramires.Mendonça tocava com corredio brilho, compusera valsas, um hino ao
coronel Trancoso, o herói de Machumba — e mesmo o primeiro acto duma ópera, A
Pegureira. E como não descortinavam o Fado com as quadras do Videirinha — foi
justamente uma das suasvalsas, a Pérola, duma cadência amorosa e cansada
lembrando a valsa do Fausto, que ele atacou, sem largar o charuto.Então André
Cavaleiro, que repenetrara vagarosamente na sala, repuxou o colete, afagou o
bigode, e avançando para Gracinha, com um modo meio grave, meio folgazão:

— Se V.
Ex-a me quer dar a grande honra?…Oferecia, abria os braços. E Gracinha, toda
escarlate, cedeu, levada logo nos largos passos deslizados que o Cavaleiro
lançou sobre o tapete. Barrolo e João Gouveiacorreram a afastar as poltronas,
clareando um espaço, onde a valsa se desenrolou com o suave sulco branco do
vestido de Gracinha. Pequenina e leve, toda ela se perdia, como se fundia, na
força máscula do Cavaleiro, que a arrebatava em giros lentos, com a
facependida, respirando os seus cabelos magníficos.

Da borda
do canapé, com os finos olhos a fuzilar, D. Maria Mendonça pasmava:- Mas que
bem que valsa, que bem que valsa o Sr. Governador Civil!… Ao lado Gonçalo
torcia nervosamente o bigode, na surpresa daquela familiaridade, assim renovada
pelo Cavaleiro com tão serena confiança, por Gracinhacom tanto abandono… Eles
torneavam, enlaçados. Dos lábios do Cavaleiro escorregava um sorriso, um
murmúrio. Gracinha arfava, os seus sapatos de verniz reluziam sob asaia que se
enrolava nas calças do Cavaleiro. E Barrolo, em êxtase, quando eles o roçavam,
atirava palmas carinhosas, bradava:

— Bravo!
Bravo! Lindamente!… Bravíssimo!

 

Capítulo VII

 

Gonçalo
recolhia para o almoço depois dum passeio no pomar percorrendo aGazeta do
Porto, quando avistou no banco de pedra, rente à porta da cozinha, onde a Rosa
mudava o painço na gaiola do seu canário, o Casco, o José Casco dos Bravais,
queesperava, pensativo e abatido, com o chapéu sobre os joelhos. Vivamente,
para se esquivar, remergulhou no jornal. Mas percebeu a esgalgada magreza do
homem, quesurdia da sombra da latada, avançava na claridade faiscante do pátio,
hesitando, como assustado… E, animado pela vizinhança da Rosa, parou,
forçando um sorriso enquanto o Casco enrolava nas mãos trémulas a aba dura do
chapéu, balbuciava:- Se o Fidalgo me fizesse a esmola de uma palavra…

— Ah! é
você, Casco! Homem, não o conheci… E então?Dobrou o jornal, tranquilizado —
gozando mesmo a submissão daquele valente que tanto o apavorara, erguido e
negro como um pinheiro, na solidão do pinheiral. E o Casco, engasgado,
repuxava, esticava o pescoço de dentro dos grossos colarinhosbordados — até que
atirou toda a alma numa súplica soluçada, retendo as lágrimas que marejavam:-
Ai, meu Fidalgo, perdoe por quem é! Perdoe, que eu nem lhe sei pedir perdão!

Gonçalo
atalhou o homem, com generosidade e doçura. Ele bem o avisara! Nada se emenda,
a gritar, com o pau alçado…- E olhe, Casco! Quando você me saiu ao pinhal, eu
levava um revólver na algibeira… Trago sempre um revólver. Desde que uma
noite em Coimbra, no Choupal,dois bêbados me assaltaram, ando sempre à cautela
com o revólver… Pense você agora que desgraça se o revólver, se desfecho!…
Que desgraça, hem?… Felizmente, num relance, pensei que me perdia, que o
matava, e fugi. Foi por isso que fugi, para nãodesfechar o revólver… Enfim
tudo passou. E eu não sou homem de rancores, já esqueci.

Contento
que você, agora sossegado e no seu juízo, esqueça também.O Casco amassava as
abas do chapéu, com a cabeça derrubada. E sem a erguer, sem ousar, rouco dos
soluços que o entalavam:

— Pois
agora é que eu me lembro, meu Fidalgo! Agora é que me ralo por aqueladoidice!
Agora! depois do que o Fidalgo fez pela mulher e pelo pequeno!…

Gonçalo
sorriu, encolheu os ombros:- Que tolice, Casco!… Pois a sua mulher aparece ai
numa noite de água… E o pequenito doente, coitadito, com febre… Como vai
ele, o Manelzinho?

O Casco
murmurou do fundo da sua humildade:- Louvado seja Deus, meu senhor, muito
sãozinho, muito rijinho.

— Ainda
bem… Ponha o chapéu. Ponha o chapéu, homem! E adeus!… Você nãotem que
agradecer, Casco… E olhe! Traga c à um dia o pequeno. Eu gostei do pequeno. É
espertinho.

Mas o
Casco não se arredava, pregado às lajes. Por fim, num soluço que rebentou:- E
que eu não sei como hei -de dizer, meu Fidalgo… Lá o dia de cadeia, acabou!

Tenho
génio, fiz a asneira, com o corpo a paguei. E pouco paguei, graças ao Fidalgo…Mas
depois quando saí, quando soube que a mulher viera de noite à Torre, e que o
Fidalgo até a embrulhara numa capa, e que não deixara sair o pequeno…

Estacou,
afogado pela emoção. E como Gonçalo, também comovido, lhe batiarisonhamente no
ombro, «para acabar, não se falar mais nessas bagatelas…» — o Casco rompeu,
numa grande voz dolorosa e quebrada:- Mas é que o Fidalgo não sabe o que é para
mim aquele pequeno!… Desde que Deus mo mandou tem sido uma paixão cá por
dentro, que até parece mentira!… Olhe que na noite que passei na cadeia da
vila não dormi… E Deus me perdoe, não pensei namulher, nem na pobre da velha,
nem na pouquita terra que amanho, tudo ao desamparo. Toda a noite se foi a
gemer: — «ai o meu querido filhinho! ai o meu querido filhinho!…»Depois
quando a mulher, logo pela estrada, me diz que o Fidalgo ficara com ele na
Torre, e o deitara na melhor cama, e mandara recado ao médico… E depois,
quando soube pelo Sr. Bento que o Fidalgo de noite subia a ver se ele estava
bem coberto, e lheentalava a roupa, coitadinho…

E
arrebatadamente, num choro solto, gritando: — «Ai meu Fidalgo! meuFidalgo!…»
— o Casco agarrou as mãos de Gonçalo, que beijava, rebeijava, alagava de
grossas lágrimas.

— Então,
Casco! Que tolice!… Deixe, homem!Pálido, Gonçalo sacudia aquela gratidão
furiosa — até que ambos se encararam, o

Fidalgo
com as pestanas molhadas e trémulas, o lavrador dos Bravais soluçando,
numaconfusão. E foi ele por fim que, recalcando um derradeiro soluço, se
recobrou, desabafou da ideia que o trouxera, que decerto fundamente o
trabalhara e que, agora, lhe enrijava a face e o gesto numa determinação que
nunca vergaria:- Meu Fidalgo, eu não sei falar, não sei dizer… Mas se de hoje
em diante, seja para que for, o Fidalgo necessitar da vida dum homem, tem aqui
a minha!Gonçalo estendeu a mão ao lavrador, muito simplesmente — como um
Ramires de outrora recebendo a preitesia dum vassalo.


Obrigado, José Casco.- Entendido, meu Fidalgo, e que Deus Nosso Senhor o
abençoe!

Gonçalo,
perturbado, galgou pela escadinha da varanda enquanto o Cascoatravessava o
pátio vagarosamente, com a cabeça bem erguida, como homem que devera e que
pagara.

E em
cima, na livraria, Gonçalo pensava com espanto: — «Aí está como nestemundo
sentimental se ganham dedicações gratuitamente!…» Porque enfim! Quem não
impediria que uma criancinha com febre afrontasse de noite uma estrada negra,
sob achuva e vendaval? Quem a não deitaria, não lhe adoçaria um grogue, não lhe
entalaria os cobertores para a conservar bem abafada? E por esse grogue e por
essa cama — corre o pai, tremendo e chorando, a oferecer a sua vida! Ah! como
era fácil ser Rei — e ser Reipopular!

E esta
certeza mais o animava a obedecer às recomendações do Cavaleiro — acomeçar
imediatamente as suas visitas aos influentes eleitorais, essas aduladoras
visitas que assegurariam à eleição uma arrogante. Logo ao fim do almoço, mesmo
sobre a toalha, arredando os pratos, copiou a lista desses magnates — por um
rascunho anotadoque lhe fornecera o João Gouveia. Era o Dr. Alexandrino; o
velho Gramilde, de

Ramilde;
o Padre José Vicente, da Finta; outros menores; — e o Gouveia marcara comuma
cruz, como o mais poderoso e mais difícil, o Visconde de Rio Manso, que
dispunha da imensa freguesia de Canta Pedra. Gonçalo conhecia esses senhores,
homens de propriedade e de dinheiro (com todos outrora o papá andara
endividado) — mas nuncaencontrara o Visconde de Rio Manso, um velho brasileiro,
dono da quinta da

Varandinha,
onde vivia solitariamente com uma neta de onze anos, essa linda Rosinhaque
chamavam «o botão de Rosa», a herdeira mais rica de toda a Província. E logo
nessa tarde, em Vila Clara, reclamou ao João Gouveia uma carta de apresentação
para o Rio Manso.O Administrador hesitou:

— Você
não precisa carta… Que diabo! Você é o Fidalgo da Torre! Chega,
entra,conversa… Além disso na eleição passada o Rio Manso ajudou os
Regeneradores; de modo que estamos um pouco secos. O Rio Manso é um casmurro…
Mas com efeito,Gonçalinho, convém começar essa caça à popularidade!

Nessa
noite, na Assembleia, o Fidalgo, encetando a «caça à popularidade»,aceitou um
convite do Comendador Romão Barros (do maçador, do burlesco Barros) para o
bródio faustoso com que ele celebrava, na sua quinta da Roqueira, a festa de S.
Romão. E essa semana inteira, depois outra, as gastou assim por Vila Clara,
amimandoeleitores — a ponto de comprar horrendas camisas de chita na loja do
Ramos, de encomendar um saco de café na mercearia do Telo, de oferecer o braço
no Largo doChafariz à nojenta mulher do bebedíssimo Marques Rosendo, e de
frequentar, de chapéu para a nuca, o bilhar da Rua das Pretas. João Gouveia não
aprovava estes excessos — aconselhando antes «boas visitas, com todo o chique,
aos influentes sérios». MasGonçalo bocejava, adiava, na insuperável preguiça de
afrontar a maledicência rabugenta do velho Gramilde, ou a solenidade forense do
Dr. Alexandrino.Agosto findava: — e por vezes, na livraria, Gonçalo, coçando
desconsoladamente a cabeça, considerava as brancas tiras de almaço, o Capítulo
III da Torre de D. Ramires encalhado… Mas quê! não podia, com aquele calor,
com o afã da eleição, remergulharnas eras Afonsinas!

Quando
refrescavam as tardes lentas, montava, alongava o passeio pelasfreguesias, não
se descuidando das recomendações do Cavaleiro -enchendo sempre o bolso de
rebuçados de avenca para atirar às crianças. Mas, numa carta ao querido André,
já confessara que

«a sua
popularidade não crescia, não enfunava…» — «Não! positivamente, velho amigo,
não tenho o dom! Sei apenas palestrar familiarmente com os homens, cumprimentar
pelo seu nome as velhas às soleiras das portas, gracejar com a pequenada, e se
encon tro uma boieirinha de saiazita rota, dar cinco tostões à boieirinha para
uma saiazita nova… Ora todas estas coisas tão naturais sempre as fiz
naturalmente, desde rapaz, sem que me conquistassem influência sensível…
Necessito portanto que essa querida Autori dade me empurre com o seu braço
possante e destro…»

Todavia
já uma tarde, encontrando junto da Torre o velho Cosme de Nacejas, e depois,
num domingo, cruzando as Ave-Marias na Bica Santa o Adrião Pinto do lugarda
Levada, ambos lavradores considerados e remexedores de eleições — lhes pedira
os votos, desprendidamente e rindo. E quase se assombrara da prontidão, do
fervor, com que ambos se ofereceram. — «Para o Fidalgo? Pois isso está
entendido! Ainda que sevotasse contra o Governo, que é pai!» — E em Vila Clara,
com o Gouveia, Gonçalo deduzia destas ofertas tão acaloradas «a inteligência
política da gente do campo»:- Está claro que não é pelos meus lindos olhos! Mas
sabem que eu sou homem para falar, para lutar pelos interesses da terra…
Sanches Lucena não passava dum Conselheiro muito rico e muito mudo! Esta gente
quer deputado que grite, que lide, queimponha Votam por mim porque sou uma
inteligência.

E o
Gouveia volvia, contemplando pensativamente o Fidalgo:- Homem! quem sabe? —
Você nunca experimentou, Gonçalo Mendes Ramires. Talvez seja realmente pelos
seus lindos olhos!

Num
desses passeios, numa abrasada sexta -feira, com o Sol ainda alto,
Gonçaloatravessava o lugarejo da Veleda, no caminho de Canta Pedra. Ao fim dos
casebres que se apertam à orla da estrada alveja, muito caiada, num terreiro
defronte da igreja, ataberna famosa «do Pintainho», onde os caramanchões do
quintal e a nomeada do coelho guisado, atraem vasto povo nos dias da feira da
Veleda. Nessa manhã o Titó, depois duma madrugada às perdizes, em Valverde,
aparecera na Torre para almoçar,urrando, de esfomeado. Era sexta -feira -a Rosa
preparara uma pescada com tomates, depois um bacalhau assado, formidáveis. E
Gonçalo, toda a tarde torturado com sede,mais ressequido pela poeira da
estrada, parou avidamente diante do portão da venda, gritou pelo Pintainho.

— Oh meu
Fidalgo!…- Oh Pintainho! depressa! Uma sangria! Uma grande sangria bem
fresca, que morro…O Pintainho, velhote roliço de cabelo amarelo, não tardou
com o copo apetitoso e fundo onde boiava, na espumazinha do açúcar, uma rodela
de limão. E Gonçalo saboreava a sangria com inefável delícia — quando da janela
térrea da venda partiu umassobio lento, fino e trinado, como os dos arrieiros
que animam as bestas a beber nos riachos. Gonçalo deteve o copo, varado. À
janela assomara um latagão airoso, de faceclara e suíças louras, que, com os
punhos sobre o peitoril e a cabeça levantada, num descarado modo de pimponice e
desafio, o fitava atrevidamente. E num lampejo o Fidalgo reconheceu aquele
caçador que já uma tarde, no lugar de Nacejas, ao pé dafábrica de vidros, o
mirara com arrogância, lhe raspara a espingarda pela perna, e ainda depois,
parado sob a varanda duma rapariga de jaqué azul, lhe acenara
chasqueandoenquanto ele descia a ladeira… Era esse! Como se não percebesse o
ultraje — Gonçalo bebeu apressadamente a sangria, atirou uma placa ao pobre
Pintainho enfiado, e picou a fina égua. Mas então da janela rolou uma
risadinha, cacarejada e troçante, que o colheupelas costas como o estalo de uma
vergasta. Gonçalo soltou a galope. E adiante, sopeando a égua no refúgio duma
azinhaga, pensava, ainda trémulo: — «Quem será odesavergonhado?… E que lhe
fiz eu, Santo Deus? que lhe fiz eu?…» Ao mesmo tempo todo o seu ser se
desesperava contra aquele desgraçado medo, encolhi mento da carne, arrepio da
pele, que sempre, ante um perigo, uma ameaça, um vulto surdindo dumasombra, o
estonteava, o impelia furiosamente a abalar, a escapar! Porque à sua alma, Deus
louvado, não faltava arrojo! Mas era o corpo, o traiçoeiro corpo, que num
arrepio,num espanto, fugia, se safava, arrastando a alma enquanto dentro a alma
bravejava!

Entrou na
Torre, mortificado, invejando a afoiteza dos seus moços da quinta, remoendo um
rancor soturno contra aquele bruto de suíças louras, que certamentedenunciaria
ao Cavaleiro e enterraria numa enxovia! — Mas, logo no corredor, o Bento lhe
debandou os pensamentos, aparecendo com uma carta «que trouxera um moço da
Feitosa -».- Da Feitosa? — Sim, senhor, da quinta do Sr. Sanches Lucena, que
Deus haja. Diz que vinha demandado das senhoras…

— Das
senhoras!… Que senhoras?Sem tarja de luto, a carta não era da bela D. Ana…
Mas era de D. Maria Mendonça, que assinava — «prima muito amiga, Maria
Severim». Num relance a leu, colhido logo por esta surpresa nova, distraído da
venda do Pintainho e da afronta:

«Meu
querido Primo. «Estou há três dias aqui com a minha amiga Anica, e como passou
o mês inteiro do nojo e ela já pode sair (e até precisa porque tem andado
fraca) eu aproveito a ocasião para percorrer estes arredores que dizem tão
bonitos, e pouco conheço. Tencionamos no domingo visitar Santa Maria de Craquede,
onde estão os túmulos dos antigos tios Ramires. Que impressão me vai fazer!…
Mas, ao que parece, além dos túmulos do claustro, há outros, ainda mais
antigos, que foram arrombados no tempo dos Franceses, e que ficam num
subterrâneo, onde se não pode entrar sem licença e sem que tragam a chave. Peço
pois, querido Primo, que dê as suas ordens para que no domingo possamos descer
ao subterrâneo, que todos afiançam muito interessante, porque ainda lá restam
ossos e armas. Se na Torre houvesse uma senhora, eu mesma iria, para lhe fazer
este pedido. .. Mas não se pode visitar um solteirão tão perigoso. Case
depressa!… De Oliveira boas notícias, Creia-me sempre, etc.».

Gonçalo
encarou o Bento — que esperava, interessado com aquele assombro do Sr.Doutor: —
Tu sabes se em Santa Maria de Craquede há outros túmu los, num subterrâneo? O
assombro então saltou para o Bento:- Num subterrâneo?… Túmulos?

— Sim,
homem! Além dos que estão no claustro parece que há outros, maisantigos,
debaixo da terra… Eu nunca vi, não me lembro. Também há que anos não entro em
Santa Maria de Craquede! Desde pequeno!… Tu não sabes?

O Bento
encolheu os ombros.- E a Rosa não saberá?

O Bento
abanou a cabeça, duvidando.- Também vocês nunca sabem nada! Bem! Amanhã cedo
corre a Santa Maria de Craquede e pergunta na igreja, ao sacristão, se existe
esse subterrâneo. Se existir que o mostre no domingo a umas senhoras, à Srª D.
Ana Lucena, e à Sr a D. Maria Mendonça,minha prima Maria… E que tenha tudo
varrido, tudo decente!

Mas,
repassando a carta, reparou num pós -escrito em letra mais miudinha, aocanto da
folha: — «No domingo, não se esqueça, a visita será «entre as cinco e cinco e
meia da tarde!»

Gonçalo
pensou: — «Será uma entrevista?» E na livraria, atirando para umacadeira o
chapéu e o chicote, assentou que era uma entrevista, bem clara, bem marcada!

E talvez
nem existisse esse subterrâneo — e Maria Mendonça, com a sua tortuosaesperteza,
o inventasse, como natural motivo de lhe escrever, de lhe anunciar que no
domingo, às cinco e meia, a bela D. Ana e os seus duzentos contos, o esperavam
em Santa Maria de Craquede. Mas então a prima Maria não gracejara, em
Oliveira?Gostava dele, realmente, essa D. Ana?… E uma emoção, uma curiosidade
voluptuosa atravessaram Gonçalo à ideia de que tão formosa mulher o desejava. —
Ali! mascertamente o desejava para marido, porque se o apetecesse para amante
não se socorria dos serviços da D. Maria Mendonça — nem a prima Maria, apesar
de tão sabuja com as amigas ricas, os prestaria assim descaradamente como uma alcoviteira
de comédia! Ecaramba! casar com a D. Ana — não!

E
subitamente ansiou por conhecer a vida da D. Ana! Aturara ela tantos anos,
emsevera fidelidade, o velho Sanches? Sim, talvez, na Feitosa, na solidão dos
grandesmuros da Feitosa — porque nunca sobre ela esvoaçara um rumor, em
terriolas tão gulosas de rumores malignos. Mas em Lisboa?… Esses «amigos
estimabilíssimos» deque se ufanava o pobre Sanches, o D. João não sei quê, o
pomposo Arronches

Manrique,
o Filipe Lourençal com o seu cornetim?… Algum decerto a atacara — talvez oD.
João, por dever tradicional do nome. E ela?… Quem o informaria sobre a
história sentimental da D. Ana?

Depois,
ao jantar, de repente, pensou no Gouveia. Uma irmã do Gouveia, casadaem Lisboa
com certo Cerqueira (arranjador de mágicas e empregado na Misericórdia),
costumava mandar ao mano Administrador relatórios íntimos sobre todas as
pessoasconhecidas de Oliveira, de Vila Clara, que se demoravam em Lisboa — e
que interessavam o mano ou por política, ou por mexeriquice. E decerto, pela
irmã Cerqueira, o querido Gouveia conhecia miudamente os anais da D. Ana,
durante os seusinvernos de Lisboa, nas delícias da sua roda fina».

Nessa
noite, porém, o Administrador não aparecera na Assembleia. E
Gonçalo,desconsolado, recolhia à Torre — quando no Largo do Chafariz o
encontrou com o Videirinha, ambos sentados num banco, sob as olaias escuras.

— Chegou
lindamente! — exclamou o Gouveia. — Estávamos mesmo a marcharpara minha casa,
tomar chá. Quer você, também?… Você costuma gostar das minhas torradinhas.O
Fidalgo aceitou — apesar de cansado. E logo pela Calçadinha, enlaçando o braço
do Administrador, contou que recebera uma carta de Lisboa, dum amigo, com uma
nova estupenda… O quê? O casamento de D. Ana Lucena.O Gouveia parou, assombrado,
atirando o coco para a nuca:

— Com
quem?!Gonçalo, que inventara a carta — inventou o noivo: — Com um vago parente
meu, ao que parece, um D. João Pedroso ou da Pedrosa. Muitas vezes o Sanches
Lucena me falou nele… Conviviam muito em Lisboa…Gouveia bateu com a ponta
da bengala nas pedras:

— Não
pode ser!… Que disparate! A D. Ana não ajustava casamento sete semanasdepois
de lhe morrer o marido… Olhe que o Lucena morreu no meado de julho, homem!
Ainda nem teve tempo de se acostumar à sepultura!

— Sim,
com efeito! — murmurou Gonçalo.E sorria, sob uma doce baforada de vaidade —
pensando que, sete semanas depois de viúva, ela, sem resistir, calcando
decência e luto, lhe oferecia a ele uma entrevistanas ruínas de Craquede.

A mentira
de resto, apesar de disparatada, aproveitara — porque, depois de subirem à
saleta verde do Administrador, o espanto recomeçou. Videirinha esfregava as
mãos,divertido:

— Oh Sr.
Doutor, olhe que tinha graça!… Se a Srª D. Ana, depois de apanhar osduzentos
contos do velhote, logo passadas semanas, zás, se engancha com um rapazote
novo…

Não,
não!… Gonçalo agora, reparando, também considerava despropositada anoticia do
casamento, assim com o pobre Sanches ainda morno…


Naturalmente entre ela e esse D. João havia namorico, olhadela… Por
issoimaginaram. Com efeito, alguém me contou, há tempos, que o tal D. João se
atirava valentemente, como cumpre a um D. João, e que ela…


Mentira! — atalhou o Administrador, debruçado sobre a chaminé do candeeiropara
acender o cigarro. — Mentira! Sei perfeitamente, e por excelente canal…
Enfim, sei por minha irmã! Nunca, em Lisboa, a D. Ana deu azo a que se
rosnasse. Muito séria,muitíssimo séria. Está claro, não faltou por lá maganão
que lhe arrastasse a asa lânguida… Talvez esse D. João, ou outro amigo do
marido, segundo a boa lei natural. Mas ela, nada! Nem olho de lado! Esposa
romana, meu amigo, e dos bons temposromanos!

Gonçalo,
enterrado no canapé, torcia lentamente o bigode, regalado, recolhendo
asrevelações. E o Gouveia, no meio da sala, com um gesto convencido e superior:
— Nem admira! Estas mulheres muito formosas são insensíveis. Belos mármores,
mas frios mármores… Não, Gonçalinho, lá para o sentimento, e para a alma, e
mesmopara o resto, venham as mulheres pequeninas, magrinhas, escurinhas! Essas
sim!… Mas os grandes mulherões brancos, do género Vénus, só para vista, só
para museu.Videirinha arriscou uma dúvida:

— Uma
senhora tão bonita como a Srª D. Ana, e com aquele sangue, assim casadacom um
velhote… — Há mulheres que gostam de velhotes porque elas mesmas têm
sentimentosvelhotes! — declarou o Gouveia, de dedo erguido, com imensa
autoridade e imensa filosofia.

Mas a
curiosidade de Gonçalo não se contentava. E na Feitosa? Nunca se rosnarade
alguma aventura escondida? Parece que com o Dr. Júlio…

De novo o
Fidalgo inventava. De novo Gouveia repeliu a «mentira»:- Nem na Feitosa, nem em
Oliveira, nem em Lisboa… De resto, é o que lhe digo,Gonçalo Mendes. Mulher de
mármore!

Depois,
saudando, em submissa admiração:- Mas, como mármore… Vocês, meninos, não
imaginam a beleza daquela mulher decotada!Gonçalo pasmou:

— E onde
a viu você decotada? — Onde a vi decotada? Em Lisboa, num baile do Paço… Até
foi justamente oLucena que me arranjou o convite para o Paço. Lá me espanejei,
de calção… Uma sensaboria. E mesmo uma vergonha, toda aquela turba acavalada
por cima dos bufetes,aos berros, a agarrar furiosamente pedaços de peru…

— Mas
então, a D. Ana? — Pois a D. Ana uma beleza! Vocês não imaginam!… Santo nome
de Deus! queombros! que braços! que peito! E a brancura, a perfeição… De
endoidecer! Ao princípio, como havia muita gente, e ela estava para um canto,
acanhadota, não fez sensação. Masdepois lá a descobriram. E eram correrias,
magotes embasbacados… E «quem será?» E «que encanto!» Todo o mundo
perdidinho, até o Rei!

E um
momento os três homens emudeceram na impressão do formoso corpoevocado, que
entre eles surgia, quase despido, inundando com o esplendor da sua brancura a
modesta sala mal alumiada. Por fim Videirinha acercou a cadeira, emconfidência,
para fornecer também a sua informação:

— Pois,
por mim, o que posso afirmar é que a Srª D. Ana é uma mulher muito asseada,
muito lavada…E como os outros se espantavam, rindo, de uma certeza tão intima
-Videirinha contou que todas as semanas aparecia um moço da Feitosa, na botica
do Pires, acomprar três e quatro garrafas de água -de-colónia portuguesa, da
receita do Pires.

— Até o
Pires dizia sempre, a esfregar as mãos, que na Feitosa regavam as terras com
água-de-colónia. Depois é que soube mos pela criada… A Sr. a D. Ana toma
todosos dias um grande banho, que não é só para lavar, mas para prazer. Fica
uma hora dentro da tina. Até lê o jornal dentro da tina. E em cada banho, zás,
meia garrafa deágua-de-colónia… já é luxo!

Então
Gonçalo sentiu como um aborrecimento de todas aquelas revelações do
Administrador, do ajudante de Farmácia, sobre os decotes e as lavagens da linda
mulherque o esperava entre os túmulos dos Ramires seculares. Sacudiu o jornal
com que se abanava, exclamou:- Bem! E passando a cantiga mais séria… Oh
Gouveia, você que tem sabido do Dr. Júlio? O homem trabalha na eleição?

A criada
entrara com a bandeja do chá. E em torno da mesa, trincando as torradasfamosas,
conversaram sobre a eleição, sobre os informes dos regedores, sobre a reserva
do Rio Manso — e sobre o Dr. Júlio, que Videirinha encontrara nos Bravais
pedinchandovotos pelas portas, acompanhado por um moço com a máquina
fotográfica às costas.

Depois do
chá, Gonçalo, cansado e já provido «de revelações», acendeu o charutopara
recolher à Torre. — Você não acompanha, Videirinha?- Hoje, Sr. Doutor, não
posso. Parto de madrugada para Oliveira, na diligência. — Que diabo vai você
fazer a Oliveira? — Por causa duns sapatos de praia e dum fato de banho lá da
minha patroa, da D.Josefa Pires… Tenho de os trocar nos Emílios, levar as
medidas.

Gonçalo
ergueu os braços, desolado:- Ora vejam este pais! Um grande artista, como o
Videirinha, a carregar para Oliveira com os sapatos de banho da patroa
Pires!… Oh Gouveia! quando eu for deputado precisamos arranjar um bom lugar
para o Videirinha, no Governo Civil. Umlugar fácil e com vagares, para ele não
esquecer o violão!

Videirinha
corou de gosto e de esperança — correndo a despendurar do cabide ochapéu do Fidalgo.
Pela estrada da Torre, os pensamentos de Gonçalo esvoaçaram logo, com
irresistida tentação, para D. Ana — para os seus decotes, para os lânguidos
banhos emque se esquecia lendo o jornal. Por fim, que diabo!… Essa D. Ana
assim tão honesta, tão perfumada, tão esplendidamente bela, só apresentava,
mesmo como esposa, um feio senão — o papá carniceiro. E a voz também — a voz
que tanto o arrepiara na Bica Santa…Mas o Mendonça assegurava que aquele
timbre rolante e gordo, na intimidade, se abatia, liso e quase doce… Depois,
meses de convivência habituam às vozes maisdesagradãveis -e ele mesmo, agora,
nem percebia quanto o Manuel Duarte era fanhoso! Não! mancha teimosa,
realmente, só o pai carniceiro. Mas nesta humanidade nascidatoda dum só homem,
quem, entre os seus milhares de avós até Adão, não tem algum avô carniceiro?
Ele, bom fidalgo, duma casa de Reis de onde dinastias irradiavam, certamente,
escarafunchando o Passado, toparia com o Ramires carniceiro. E que ocarniceiro
avultasse logo na primeira geração, num talho ainda afreguesado, ou que apenas
se esfumasse, através de espessos séculos, entre os trigésimos avós — lá
estava,com a faca, e o cepo, e as postas de carne, e as nódoas de sangue no
braço suado!…

E este
pensamento não o abandonou até à Torre — nem ainda depois, à j anela do quarto,
acabando o charuto, escutando o cantar dos ralos. já mesmo se deitara, e
aspestanas lhe adormeciam, e ainda sentia que os seus passos impacientes se
embrenhavam para trás, para o escuro passado da sua Casa, por entre a
emaranhadaHistória, procurando o carniceiro… Era já para além dos confins do
Império Visigodo, onde reinava, com um globo de ouro na mão, o seu barbudo avô
Recesvinto. Esfalfado, arquejando, transpusera as cidades cultas, povoadas de
homens cultos — penetrara nasflorestas que o mastodonte ainda sulcava. Entre a
húmida espessura já cruzara vagos

Ramires,
que carregavam, grunhindo, reses mortas, molhos de lenha. Outros surdiam
detocas fumarentas, arreganhando agudos dentes esverdeados para sorrir ao neto
que passava. Depois, por tristes ermos, sob tristes silêncios, chegara a uma
lagoa enevoada. E à beira da água limosa, entre os canaviais, um homem
monstruoso, peludo como umafera, agachado no lodo, partia a rijos golpes, com
um machado de pedra, postas de carne humana. Era um Ramires. No céu cinzento
voava o açor negro. E logo, de entre aneblina da lagoa, ele acenava para Santa
Maria de Craquede, para a formosa e perfumada D. Ana, bradando por cima dos
Impérios e dos Tempos: — «Achei o meu avô carniceiro!»No domingo, Gonçalo
acordou com uma «esperta ideia!» Não correria a Santa

Maria de
Craquede com uma pontualidade sôfrega, às cinco horas (as cinco horasmarcadas
no pós-escrito da prima Maria) -mostrando o seu alvoroço em encontrar a tão
bela e tão rica D. Ana Lucena! Mas às seis horas, quando findasse a romaria das
senhoras aos túmulos, apareceria ele indolentemente, como se, recolhendo dum
passeiopelas frescas cercanias, se recordasse, parasse nas ruínas para
conversar com a prima Maria.Logo às quatro horas porém se começou a vestir com
tantos esmeros, que o Bento, cansado das gravatas que o Sr. Doutor
experimentava e arremessava amarfanhadas para o divã, não se conteve:- Ponha a
de sedinha branca, Sr. Doutor! Ponha a branca, que lhe fica melhor! E refresca
mais, com este calor.Na escolha dum ramo para o casaco ainda requintou,
Juntando as cores heráldicas dos Ramires, um cravo amarelo com um cravo branco.
Ao portão, apenas montara na égua, temeu que as senhoras (não o encontrando no
claustro) encurtassem a visita,estugou o trote pelo atalho da Portela. Depois
adiante, ao desembocar na antiga estrada real, soltou num galope impaciente,
que o branqueou de poeira.Só retomou um passo indiferente, ao acercar da linha
do caminho -de-ferro, onde um carro de lenha e dois homens esperavam diante da
cancela, que se fechara para a lenta passagem dum trem carregado de pipas. Um
desses homens, de alforge aosombros, era o Mendigo — o vistoso Mendigo, que
passeava por aquelas aldeias a rendosa majestade das suas barbaças de deus
fluvial. Erguendo gravemente o chapéu devastas abas, desejou ao Fidalgo a
companhia de Nosso Senhor.

— Então
hoje a ganhar a rica vida por Craquede?… — Cá me arrasto às vezes para a
passagem do comboio de Oliveira, meu Fidalgo.Os passageiros gostam de me ver de
pé no talude, correm sempre às janelas…

Gonçalo,
rindo, recordou que o encontro daquele ancião precedia sempre umencontro seu
com a bela D. Ana. — «Quem sabe? pensou. E talvez o Destino! Os antigos
pintavam assim o Destino, com longas barbas e longas guedelhas, e o alforge às
costas contendo as sortes humanas…» — E com efeito ao cabo do pinheiral
silencioso, queestiradas réstias de sol docemente douravam — avistou a caleche
da Feitosa, parada sob uma carvalha, com o cocheiro fardado de negro dormitando
na almofada. A estrada realde Oliveira costeia aí o antigo adro do mosteiro de
Craquede, queimado pelo fogo do céu, naquela irada tempestade que chamam de S.
Sebastião, e que aterrou Portugal em 1616. Uma erva agora alfombra o chão, crescida
e verde, entre os poderosos troncos doscastanheiros velhíssimos. A igrejinha
nova alveja, bem caiada, ao fundo da ramaria; e, ligada a ela por um muro
esbrechado que densa hera veste, tomando todo o ladonascente do Terreiro —
sobe, enche ainda magnificamente o céu lustroso, a fachada da igreja do vetusto
mosteiro, suavemente amarelecida e brunida pelos tempos, com o seu imenso
portal sem portas, a rosácea desmantelada, e esvaziados os nichos
deenterramento, onde outrora se estiraçavam as imagens dos fundadores, Froilas
Ramires e a sua mulher Estevaninha, condessa de Orgaz, por alcunha a
Queixa-perra. Duas casastérreas povoam o lado fronteiro do adro — uma limpa,
com as ombreiras das janelas pintadas de azul estridente, a outra deserta,
quase sem telhado, afogada na verdura dum quinteiro bravo, onde girassóis
resplandecem. Um pensativo silêncio envolvia oarvoredo, as altivas ruínas. E
nem o quebrava, antes serenamente o embalava, o sussurro duma fonte, que a
estiagem adelgaçara em fio lento, e mal enchia o seu tanque de pedra,toldada
pela pálida e rala folhagem dum chorão muito alto.

O
trintanário da Feitosa, ao enxergar o Fidalgo, saltou risonhamente da borda do
tanque onde picava tabaco, para segurar a égua. E Gonçalo, que desde pequeno
nãopenetrava nas ruínas de Craquede, seguia por um carreirinho cortado na
relva, atentamente, encantado com aquela romântica solidão de lenda e verso,
quando, sob oarco do portal, apareceram as duas senhoras voltando do velho
claustro. D. Maria Mendonça, com a sua sacudida vivacidade, agitou logo o
guarda -sol de xadrezinho, semelhante ao vestido, cujas mangas, tufando
desmedidamente nos ombros, lhevincavam mais a elegância esgalgada. E ao lado,
na claridade, D. Ana era uma silenciosa e esbelta forma negra, de lã negra e de
escumilha negra, onde apenastransparecia, suavizada sob o véu negro, a brancura
esplêndida da sua face sensual e séria.

Gonçalo
correra, erguendo o chapéu de palha, balbuciando o seu «prazer poraquele
encontro…». Mas já D. Maria o repreendia, sem lhe consentir a fábula do

«encontro»:-
O primo não é nada amável, nada amável…

— Oh
prima!… — Pois sabia que vínhamos, pela minha carta! E nem está à hora
aprazada, parafazer as honras, como devia…

Ele,
rindo, com o seu desembaraço airoso, negou esse dever! Aquela casa não erasua,
mas do Bom Deus! Ao Bom Deus competia «fazer as honras» — acolher tão doces
romeiras com algum milagre amável…

— E
então, gostaram? V. Ex-a Srª D. Ana, gostou das ruínas?… Muito
interessantes,não é verdade?

Através
do véu, com uma lentidão que a espessa renda negra tornava mais grave,ela
murmurou: — Eu já conhecia… Vim cá uma tarde, com o pobre Sanches que Deus
haja. — Ali…Àquela evocação do pobre morto, Gonçalo sumira todo o sorriso,
com polida tristeza. Mas D. Maria Mendonça acudiu, atirando um dos seus magros
gestos, comopara arredar a sombra importuna:

— Ai! não
imagina o que gostei, primo! É de apetite todo o claustro. .. Logo aquela
espada enferrujada, chumbada por cima do túmulo. .. Não há nada que
impressionecomo estas coisas antigas… Oh primo, e pensar que estão ali
antepassados nossos!

O sorriso
de Gonçalo de novo lampejou, alegre e acolhedor, como sempre queMaria se
empurrava com desesperada gula para dentro da casa de Ramires. E gracejou,
afavelmente. Oh, antepassados… Simples punhados de cinza vã! — Pois não era
verdade, S-a D. Ana?… Realmente! quem conceberia que a prima Maria, tão viva,
tão sociável, tãoengraçada, descendesse duma poeira tristonha guardada dentro
duma pia de pedra? Não! não se podia ligar tanto ser a tanto não-ser… — E
como D. Ana sorria, numa vagaconcordância, encostando as duas mãos fortes e
muito apertadas na pelica negra ao alto cabo de aljôfar da sombrinha, ele
atalhou com interesse:

— V. Ex-a
está talvez cansada, Srª D. Ana?- Não, não estou cansada… Ainda vamos mesmo
entrar na capela, um bocadinho… Eu nunca me canso.E pareceu a Gonçalo que a
voz da formosa criatura não rolava do papo, tão grossa e gorda — mas que se
afinara, adoçada e velada pelo luto de escomilha e lã, como esses grossos e
rolantes rumores que a noite e o arvoredo adelgaçam. Mas D. Maria confessouo
seu imenso cansaço! Nada a esfalfava como visitar curiosidades… E além disso
a emoção, a ideia de heróis tão antigos!- Se nos sentássemos naquele banco,
hem? É muito cedo para recolhermos, não é verdade, Anica? E está tão agradável
neste sossego, nesta frescura…

Era um
banco de pedra, rente ao muro esbrechado que a hera afogava. Em torno arelva
crescia, mais silvestre e florida com os derradeiros malmequeres e botões
-de-ouro que o sol de Agosto poupara. Um aromazinho fino, de algum jasmineiro
emaranhado nahera, errava, adocicava a serena tarde. E na rama dum álamo,
defronte do portão da capela, duas vezes um melro cantara. Gonçalo sacudiu todo
o banco cuidadosamente, com o lenço. E sentado na ponta, junto de D. Maria,
louvou também a frescura, orecolhimento daquele cantinho de Craquede… E ele
que nunca se aproveitara de refúgio tão santo, e quase seu, nem mesmo para um
almoço bucólico! Pois agora certamentevoltaria a fumar um charuto, revolver
ideias de paz sob a paz das carvalheiras, na vizinhança dos vovós mortos…
Depois, com uma curiosidade:

— É
verdade, prima! E o subterrâneo?Oh! não existia subterrâneo!… Sim, existia —
mas entulhado, sem sepulturas, sem antiguidades. E o sacristão logo lhes
afiançara que «não valia a pena sujarem as saias…»- É verdade, oh Anica,
deste alguma coisa ao sacristão?

— Oh
filha, dei cinco tostões… Não sei se foi bastante. Gonçalo assegurou que se
pagara sumptuosamente ao sacristão. E, se prevessetamanha generosidade da Srª
D. Ana, agarrava ele um molho de chaves, até enfiava uma opa preta, para
mostrar — e para embolsar…- Pois é o que devia ter feito! — exclamou D.
Maria, com um corisco nos espertos olhos. — E decerto se lhe davam os cinco
tostões! Porque sempre seria mais instrutivo que o homenzinho, que mascava, não
sabia nada!… Semelhante morcão! E eu com tantacuriosidade por aquele túmulo
aberto, com a tampa rachada… O mono só soube resmungar que «eram histórias muito
antigas lá do Fidalgo da Torre……Gonçalo ria:

— Pois
essa história por acaso sei eu, prima Maria! Sei agora pelo Fado dos Ramires, o
fado do Videirinha…D. Maria Mendonça levantou as compridas mãos aos céus,
revoltada com aquela indiferença pelas tradições heróicas da Casa. Conhecer
somente os seus anais, desde queeles andavam repicados num fado!… O primo
Gonçalo não se envergonhava?

— Mas
porquê prima, porquê? O fado do Videirinha está fundado em documentos
autênticos que o Padre Soeiro estudou. Todo o recheio histórico foi fornecido
peloPadre Soeiro. O Videirinha só pôs as rimas. Além disso antigamente, prima,
a História era perpetuada em verso e cantada ao som da lira… Enfim quer saber
esse caso dotúmulo aberto, segundo as quadras do Videirinha? Eu sempre conto!
Mas só para a S-a D. Ana, que não sofre desses escrúpulos…

— Não! —
acudiu D. Maria. — Se o Videirinha tem essa autoridade histórica, entãoconte
também para mim, que sou da Casa!.

Gonçalo,
por gracejo, tossiu, passou o lenço pelos beiços:- Pois eis o caso! Nesse
túmulo habitava, naturalmente morto, um dos meus avós… Não me lembro o nome,
Gutierres ou Lopo. Creio que Gutierres… Enfim, lá jazia quando foi da batalha
das Navas de Tolosa… A prima Maria conhece a batalha dasNavas, os cinco reis
mouros, etc… Como o tal Gutierres soube da batalha, não contam os versos do
Videirinha. Mas, apenas lá dentro lhe cheirou a carnificina, arromba otúmulo,
sai por este pátio como um desesperado, desenterra o seu cavalo que fora
enterrado no adro onde agora crescem estes carvalhos, monta nele todo armado,
e, cavaleiro morto sobre cavalo morto, larga a galope através da Espanha, chega
às Navas,arranca a espada, e destroça os mouros… Que lhe parece, S-a D. Ana?

Dedicara
a história a D. Ana, procurando nos seus belos olhos a atenção e ointeresse. E
ela, que a furto, através do decoro melancólico a que se esforçava, adoçara o
sorriso, atraída e levada, murmurou apenas: — «Tem graça!» — D. Maria, porém,
quase esvoaçou sobre o banco de pedra, num êxtase: — «Lindo! Lindo! Que
poesia!… Oh! umalenda de todo o apetite!» — E, para que Gonçalo desenrolasse
ainda a graça do seu dizer, outras maravilhas da sua crónica:- Conte, primo,
conte… E voltou para Craquede esse tio Ramires?

— Quem,
prima, o Gutierres?… Ou fosse ele tolo! Apenas se apanhou livre damaçada da
sepultura, não apareceu mais em Santa Maria de Craquede. O túmulo vazio, como
está, e ele por Espanha numa pândega heróica!… Imagine! um defunto que
pormilagre se safa do seu jazigo, daquela postura eterna, tão apertada, tão
esticada!…

Subitamente
emudeceu, lembrando o Sanches Lucena, também esticado no seu caixote de chumbo,
sob o seu vistoso jazigo de Oliveira… — D. Ana baixara a face, maissumida no
véu, esfuracando a erva com a ponta da sombrinha. E a esperta D. Maria, para
desfazer a sombra impertinente que de novo os roçara, rompeu noutra
curiosidade,que ainda se encadeava na nobreza dos Ramires:

— É
verdade! Sempre me esquece de lhe perguntar. O primo ainda tem muitos parentes
em França… Talvez também não saiba?Sim! Gonçalo, casualmente, conhecia essa
história dos seus parentes de França — apesar de que o Videirinha os não
cantara no Fado!- Então conte! Mas que seja história alegre!

Oh, não
era prodigiosamente divertida! Um avô Ramires, Garcia Ramires, acompanhara nas
suas famosas jornadas o Infante D. Pedro, o filho de El-Rei D. JoãoI… A prima
Maria sabia — o Infante D. Pedro, o que correu as Sete Partidas do mundo…

Pois o
Infante D. Pedro e os seus fidalgos, de volta da Palestina, pousaram um
anointeiro na Flandres, com o Duque de Borgonha. Até se celebraram então festas
maravilhosas, com um banquete que durou sete dias, e que anda nos compêndios da
História de França. Onde há danças há amores. Ao avô Ramires sobejava imaginação
earrojo… Fora ele que diante de Jerusalém, no vale de Josafat, lembrara que
se erguesse um sinal para que o Infante e os seus companheiros de romagem se
reconhecessem nogrande Dia de Juízo. Depois, naturalmente, belo mocetão, de
barba negra e cerrada à Portuguesa… Enfim casara com uma irmã do Duque de
Cleves, uma tremenda senhora, sobrinha do Duque de Borgonha e Brabante. Mais
tarde, através dessas ligações, umaavó Ramires, já viúva, casou também em
França com o Conde de Tancarville. Esses

Tancarvilles,
Grão -Mestres de França, possuíam o mais formidável castelo da Europa,e…

D. Maria
bateu as palmas, rindo: — Bravo! lindamente! Sim, senhor!… Então o primo que
se gaba de não saber nadade fidalguias… Olhe como conhece pelo miúdo a
história desses grandes casamentos!

Hem,
Anica?… É uma crónica viva!Gonçalo vergou os ombros, confessou que se ocupara
de toda essa heráldica histórica por um motivo bem rasteiro — por miséria!…

— Por
miséria?- Sim, prima Maria, por penúria de moeda, de cobres…

— Conte!
conte! Olhe, a Anica está ansiosa…- Quer saber, Sr a D. Ana? Pois foi em
Coimbra, no meu segundo ano de Coimbra. Os companheiros e eu chegámos a não
juntar entre todos um vintém. Nem para cigarros! Nem para o sagrado decilitro
de carrascão e as três azeitonas do dever…Um deles então, rapaz muito
engraçado, de Melgaço, surdiu com a ideia estupenda de que eu escrevesse aos
meus parentes de França, a esses Cleves, a esses Tancarvilles,senhores decerto
imensamente ricos, e solicitasse com desembaraço, um emprestimozinho de
trezentos francos.

D. Ana
não conteve um riso, sinceramente divertido:- Ai! tem muita graça!

— Mas não
teve resultado, minha senhora… já não existem Cleves, nemTancarvilles! Todas
essas grandes famílias feudais findaram, se fundiram noutras casas, até na Casa
de França. E o meu Padre Soeiro, apesar de todo o seu saber genealógico, nunca
conseguiu descobrir quem as representava com bastante afinidade para
meemprestar, a mim parente pobre de Portugal, esses trezentos francos.

Aquela
penúria de Gonçalo, de tamanho fidalgo, quase enternecera D. Ana:- Ora estarem
assim sem vintém! Quem soubesse… Mas tem graça! Essas histórias de Coimbra
têm sempre muita graça. O D. João da Pedrosa, em Lisboa, também contava
muitas…D. Maria Mendonça, porém, através dessa facécia de estudantes,
descortinara outra prova inesperada da grandeza dos Ramires. E imediatamente a
estendeu diante deD. Ana com habilidade:

— Ora
vejam!… Todas essas grandes casas de França, tão ricas, tão poderosas,
acabaram, desapareceram. E cá. no nosso Portugalzinho ainda dura a casa de
Ramires!Gonçalo acudiu:

— Acaba
agora, prima!… Não olhe para mim assim espantada. Acaba agora… Poisse eu
não caso! Então D. Maria recuou o magro peito — como se esse casa mento do
primo dependesse de doces influências, que convinha se trocassem bem
chegadamente, semMarias Mendonças, de per meio no estreito banco, com mangas
bufantes, tolhendo as correntes de eflúvio. E sorria, quase languidamente:- Ora
não casa… Mas porquê, primo, porquê?

— Porque
não tenho jeito, prima. O casamento é uma arte muito delicada que necessita
vocação, génio especial. As Fadas não me concederam esse génio. E se
mededicasse a semelhante obra, ai de mim! com certeza a estragava.

D. Ana,
como se outra ideia a ocupasse, puxara lentamente do cinto o relógiopreso por
uma fita de cabelo. E D. Maria insistia, recusava os motivos do Fidalgo: — São
tolices. O primo que gosta tanto de crianças… — Gosto, gosto muito de
crianças, até de criancinhas de mama. As crianças são osúnicos seres divinos
que a nossa pobre humanidade conhece. Os outros anjos, os de asas, nunca
aparecem. Os santos, depois de santos, ficam na Bem -Aventurança apreguiçar,
ninguém mais os enxerga. E, para concebermos uma ideia das coisas do Céu, só
temos realmente as criancinhas… Sim, com efeito, prima, gosto muito de
crianças. Mas também gosto de flores, e não sou jardineiro, nem tenho jeito
para a jardinagem.E D. Maria com uma faísca no olhar prometedor:


Sossegue, que ainda vem a aprender!Depois, para D. Ana que se esquecera na
contemplação do relógio: — Achas que vão sendo horas? Então, se queres,
entramos na capela… Oh primo, veja se está aberta.Gonçalo correu, empurrou a
porta da capela. Depois acompanhou as duas senhoras pela pequenina nave
soalhada, entre delgados pilares recobertos de uma caláspera e crua — que
recamava também as paredes lisas, apenas guarnecidas, na sua rígida nudez, por
litografias de santos dentro de caixilhos de pinho. Diante do altar as senhoras
ajoelharam — a prima Maria enterrando a face nas mãos juntas, como num vasode
Piedade. Gonçalo dobrou o joelho de leve, engrolou uma Ave -Maria.

Depois
voltou para o adro, acendeu um cigarro. E, pisando lentamente a
relva,considerava quanto a viuvez melhorara D. Ana. Sob o negrume do luto, como
numa penumbra que esfuma a grosseira deselegância das coisas, todos os seus
defeitos se fundiam — os defeitos que tanto o horripilavam na tarde da Bica
Santa, o rolar gordo davoz, o peito empinado, a ostentação de burguesa ricaça
pinguemente repimpada na vida.

Até já
nem dizia — «o cavalheiro!» E ali, no adro melancólico de Craquede,
certamenteparecia interessante e desejável.

As
senhoras desciam os dois degraus da capela. Um melro esvoaçou na ramagemdos
álamos. E Gonçalo encontrou o lampejo dos olhos sérios de D. Ana, que o
procuravam.- Peço perdão de não lhes ter oferecido água benta à saída, mas a
concha está seca…

— Jesus,
primo, que igreja tão feia!D. Ana arriscou, com timidez:

— Depois
das ruínas e dos túmulos, até parece pouco religiosa.A observação impressionou
Gonçalo, como muito fina. E junto dela, demorando os passos com agrado, sentia,
esparzido pelos seus movimentos, pelo roçar do vestido, um aroma também fino,
que não era o da horrenda água -de-colónia da botica do Pires.Em silêncio, sob
a ramagem das carvalhas, caminharam para a caleche, onde o cocheiro se
aprumara, bem estilado, tirando o chapéu. Gonçalo notou que ele rapara o
bigode. E aparelha reluzia, atrelada com esmero.

— E
então, prima Maria, ainda se demora pelos nossos sítios? — Sim, primo, mais uns
quinze dias… A Anica é tão amável, quis que eu trouxesseos pequenos. O que
eles se têm divertido na quinta, não imagina!

D. Ana
murmurou, sempre séria:- São muito engraçados, fazem muita companhia… Eu
também gosto muito de crianças.

— Ai, a
Anica adora crianças! — acudiu D. Maria com fervor. — O que ela atura
ospequenos! Até joga com eles o mafarrico.

Perto da
caleche, Gonçalo pensou que outra volta pelo adro, mais lenta, com a D.Ana e o
seu fino aroma, seria doce, naquele sossego da tarde que findava, tingida de
tão lindas cores -de-rosa sobre os pinheiros escurecidos. Mas já o trintanário
se acercava, segurando a sua égua. E D. Maria, depois de admirar e acariciar a
égua, chamou o primodiscretamente — para saber a distância da Feitosa a
Treixedo, a outra quinta histórica dos Ramires.- A Treixedo, prima?… Cinco
léguas fartas, com maus caminhos.

E
imediatamente se arrependeu, antevendo um passeio, um novo encontro: — Mas na
estrada ultimamente andaram obras. E é muito bonito sítio, num alto,com um
resto de muralhas… Treixedo era um castelo enorme… Na quinta há uma lagoa
entre arvoredo antigo… Oh! sítio delicioso para um piquenique!D. Maria
hesitou:

— É um
pouco longe, veremos, talvez. E como D. Ana esperava em silêncio — Gonçalo
abriu a portinhola, tomou aotrintanário as rédeas da égua. D. Maria Mendonça,
no seu contentamento por tão proveitosa tarde, sacudiu ardentemente a mão do
primo, jurando «que ia apaixonada porCraquede!» D. Ana mal roçou os dedos de
Gonçalo, acanhada e corando.

Sozinho,
com a rédea da égua enfiada no braço, Gonçalo sorria. Na verdade, nessa tarde,
D. Ana não lhe desagradara. Outros modos, outra singeleza grave, outra doçura
nasua possante beleza de Vénus rural… E aquela observação sobre a capela, «pouco
religiosa» depois das ruínas seculares do claustro, era uma observação fina.
Quem sabe?Talvez sob carne tão sensual se escondesse uma natureza delicada.
Talvez a influência de outro homem, que não o estupidíssimo Sanches,
desenvolvesse na filha esplêndida do carniceiro, qualidades de muito encanto…
Oh, evidentemente, a observação sobre ostúmulos e a sua religiosidade, emanando
da Lenda e da História — era fina.

E então
também o tomou a curiosidade de visitar esse claustro, onde não entraradesde
pequeno — quando ainda a Torre conser vava as suas carruagens montadas e a
romântica miss Rhodes esco lhia sempre o passeio de Craquede, para as tardes
pensativas de Outono. Puxou a égua, transpôs o portal, atravessou o espaço
descobertoque fora a nave — atulhado de caliça, de cacos, de pedras despegadas
da abóbada e afogadas nas ervas bravas. E pela brecha dum muro a que ainda se
amparava um pedaçode altar penetrou na silenciosa crasta Afonsina. Só dela
restam duas arca das em ângulo, atarracadas sobre rudes pilares, lajeadas de
pode rosas lajes puídas, que nessa manhã o sacristão cuidadosamente varrera. E
contra o muro, onde rijas nervuras desenham outrosarcos, avultam os sete
imensos túmulos dos antiquíssimos Ramires, denegridos, lisos, sem um lavor,
como toscas arcas de granito, alguns pesadamente encravados no lajedo,outros
pousando sobre bolas que os séculos lascaram. Gonçalo seguia um carreiro de
tijolo, rente aos arcos, recordando quando ele outrora e Gracinha pulavam
ruidosamente por sobre essas campas, enquanto no pátio do claustro, entre as
pilastras tombadas e averdura das ruínas, a boa miss Rhodes, agachada,
procurava florinhas silvestres. Na abóbada, sobre o mais vasto túmulo, lá
negrejava chumbada a espada, a famosa espada,com a sua corrente de ferro
pendendo do punho, a folha roída pela ferrugem das longas idades. Sobre outro
lá ardia a lâmpada, a estranha lâmpada mourisca, que não se apagara desde a
tarde remota em que algum monge, com uma tocha de saimento,silenciosamente a
acendera… Quando se acen dera ela, a eterna lâmpada? Que Ramires jazeriam
nesses cofres de granito, a que o tempo raspara as inscriçães e as datas,
paraque nelas toda a História se sumisse, e mais escuramente se volvessem em
leve pó sem nome, aqueles homens de orgulho e de força? Depois, na ponta do
claustro, era o túmulo aberto, e ao lado, derrubada em dois pedaços, a tampa
que o esqueleto de LopoRamires arrombara para correr às Navas de Tolosa e bater
os cinco Reis mouros.

Gonçalo
espreitou para dentro, curiosamente. A um canto da funda arca alvejava ummontão
de ossos, limpos e bem arrumados! Esquecera o velho Lopo, na sua pressa
heróica, esses poucos ossos, já despegados do seu esqueleto?… O crepús culo
cerrara, e com ele uma melancólica sombra que se adensava sobre as abóbadas da
crasta, cobriade tristeza morta aquela jazida de mortos. Então Gonçalo sentiu a
desolada solidão que o envolvia, o separava da vida, ali desgarrado, e sem
socorro entre a poeira e a almaerrante dos seus avós temerosos! E de repente
estremeceu, no arrepiado medo de que outra tampa estalasse com fragor e através
da fenda surdissem lívidos dedos sem carne! Repuxou desesperadamente a égua
pelo muro desmantelado, nas ruínas da nave puloupara o selim, e varou num trote
o portal, galgou o adro com ânsia — só sossegou ao avistar, ao fim do pinhal, a
cancela do caminho-de-ferro aberta, e uma velha que apassava, tangendo o seu
burro carregado de erva.

 

Capítulo VIII

 

Ao fim da
semana Gonçalo, que desde a visita a Santa Maria de Craquedearrastava o remorso
incómodo da sua preguiça, do tão longo abandono da novela — recebeu de manhã,
ao sair do banho, uma carta do Castanheiro. Era curta: — e declaravaao amigo
Gonçalo que, se em meado de Outubro, não chegassem a Lisboa três capítulos do
original, ele, com pesar seu e da Arte, publicaria no primeiro número dos
ANAIS,em vez da Torre de D. Ramires, um drama do Nuno Carreira num acto,
intitulado Em Casa do Temerário…

«Apesar
de drama e de fantasia (acrescentava) convém à índole erudita dos ANAIS por que
este Temerário é Carlos o Temerário, e a acção toda, fortemente tecida, se
passa no castelo de Peronne, onde se encontram nada menos que Luís XI de
França, e o nosso pobre Afonso V, e Pêro da Covilhã que o acompanhava, e outros
figurões de rija estatura histórica. Imagine!… Está claro, o chique supremo
seriaTructesindo Mendes Ramires, contado pelo nosso Gonçalo Mendes Ramires!
Mas, pelo que vejo, esse chique supremo está impedido por uma indolência
suprema. SuntLacrymae Revistarum!»

Gonçalo
atirou a carta, gritou pelo Bento:- Leva para a livraria chá verde, forte, com
torradas. Hoje só almoço tarde, às duas… Talvez nem almoce!E, enfiando o
roupão de trabalho, decidiu amarrar à banca, como um cativo ao remo, até que
rematasse esse difícil Capítulo III, onde ressaltava o bárbaro e sublime rasgo
do avô Tructesindo. Não, que diabo! não lhe convinha perder a aparição da
novelaem tão proveitoso momento, nas vésperas da sua chegada a Lisboa, quando
para a influência política e para o prestígio social necessitava desse brilho
que, segundo ovelho Vigny, «uma pena de aço acrescenta a um elmo dourado de
Fidalgo…». Felizmente, nessa luminosa manhã, em que as águas da horta
fartamente cantavam, ele sentia também a veia borbulhando, contente em se
soltar e correr. Depois da visita àcrasta de Craquede, a sua imaginação
concebia menos enevoadamente os seus avós

Afonsinos:
— e como que os palpava enfim no seu viver e pensar, desde quecontemplara os
grandes túmulos, onde se desfaziam as suas grandes ossadas.

Na
livraria retomou com apetite, depois de lhes sacudir a poeira, as tiras da
novela sobre que emperrara, naquele atarantado lance de susto e alarme — quando
o vílico, ovelho Ordonho, reconhecia o pendão do Bastardo surgindo à borda da
Ribeira do

Couce,
entre o coriscar de lanças empinadas, passando a antiga ponte de madeira, e,
ummomento sumido na verdura dos álamos, de novo avançando, alto e tendido, até
ao rude Cruzeiro de Pedra de Gonçalo Ramires o Cortador… O gordo Ordonho
então, atirando o brado de — «Prestes, prestes! que é gente de Baião!»
descambava pelo escalão damuralha, como um fardo que rola.

No
entanto Tructesindo Ramires, no empenho de aprestar a sua mesnada e abalarsobre
Montemor, regera já com o adail a ordem da arrancada, mandando que as buzinas
soassem mal o sol batesse na margela do Poço grande. E agora, na sala alta da
Alcáçova, conversava com o seu primo de Ribacávado e costumado camarada de
armas,D. Garcia Viegas — ambos sentados nos poiais de pedra duma funda janela,
onde uma bilha de água, com o seu púcaro, refrescava entre vasos de manjericão.
D. GarciaViegas era um velho esgalgado e ágil, de escuro carão rapado, com uns
miúdos olhos coruscantes — que merecera a alcunha de Sabedor pela viveza e
suculência do seu dizer, as suas infinitas manhas de guerra, e a prenda de
falar latim mais doutamente que umclérigo da cúria. Convocado por Tructesindo,
como os outros parentes do solar, para engrossar a mesnada dos Ramires em
serviço das Infantas, correra logo a Santa Ireneia,fielmente, com o seu pequeno
poder de dez lanças — começando por saquear no caminho a herdade de Palha Cá,
dos de Severosa, que andavam com pendão alto na hoste real contra as Donas
oprimidas. Tão rijamente se apressara que, desde amadrugada, apenas comera
sobre a sela, em Palha Cã, duas rodelas dos chouriços roubados. E com a sede da
afogueada correria, ainda na emoção de tão amarga nova, aderrota de Lourenço
Ramires, seu afilhado, novamente enchia de água o púcaro de barro — quando pela
porta da sala de armas, que três cabeças de javali dominavam, rompeu o velho
Ordonho esbaforido:- Sr. Tructesindo! Sr. Tructesindo Ramires! o Bastardo de
Baião passou a Ribeira, vem sobre nós com grande troço de lanças!O velho rico
-homem saltou do poial. E arremessando a mão cabeluda, cerrada com sanha, como
se já pela gorja empolgasse o Bastardo:

— Pelo
sangue de Cristo! em boa hora vem que nos poupa caminho! Hem, GarciaViegas? A
cavalo e sobre ele…?

Mas,
rente aos trôpegos calcanhares de Ordonho, correra um coudel de besteiros,que
gritou dos umbrais, sacudindo o capelo de couro: — Senhor! Senhor! A gente de
Baião parou ao Cruzeiro! E um cavaleiro moço, com um ramo verde, está diante
das barbacãs, como trazendo mensagem…Tructesindo bateu o sapato de ferro
sobre as lajes, indignado com tal embaixada, mandada por tal vilão… — Mas
Garcia Viegas, que dum sorvo enxugara o púcaro,recordou serenamente e lealmente
os preceitos:

— Tende,
tende, primo e amigo! Que, por uso e lei de aquém e de além -serras, sempre
mensageiro com ramo se deve escutar…- Seja pois! — bradou Tructesindo. — Ide
vós fora às barreiras com duas lanças, Ordonho, e sabei do recado!O vílico
rebolou pela denegrida escada de caracol, até ao patim da Alcáçova. Dois
acostados, de lança ao ombro, recolhendo de alguma rolda, conversavam com o
armeiro, que sarapintara de amarelo e escarlate cabos de ascumas novas e as
enfileiravacontra o muro para secarem.

— Por
ordem do Senhor! — gritou Ordonho. — Lança direita, e comigo às barbacãs,a
receber mensagem!… Ladeado pelos dois homens que se aprumaram, atravessou as
barreiras; e pelo postigo da barbacã, que uma quadrilha de besteiros guardava,
saiu ao terreiro da Honra,largueza de terra calcada, sem relva ou árvore, onde
se erguiam ainda as traves carcomidas duma antiga forca, e se amontoavam agora,
para os consertos da Alcáçova,ripas de madeira, e grossas cantarias lavradas.
Depois, sem arredar do umbral, empinando o ventre entre os dois acostados,
bradou ao moço cavaleiro, que esperava sob o rijo Sol, sacudindo os moscardos
com o seu ramo de amoreira:- Dizei de que gente sois! e a que vindes! e que
credência trazeis!…

E como
arqueara logo a mão inquieta sobre a orelha — o cavaleiro,
serenamente,entalando o ramo entre o coxote e o arção, arqueou também os dois
guantes reluzentes de escamas na abertura do casco, bradou:


Cavaleiro do solar de Baião!… Credência não trago que não trago
embaixada…Mas o Sr. D. Lopo ficou além ao Cruzeiro, e deseja que o nobre
Senhor da Honra, o Sr.

Tructesindo
Ramires, o escute do eirado da barbacã…O vílico saudou — recolheu pela
poterna abobadada da torre albarrã, murmurando para os dois acostados:

— O
Bastardo vem a tratar o resgate do Sr. Lourenço Ramires…Ambos rosnaram: —
Feio feito.Mas, quando Ordonho ofegante se apressava para a Alcáçova, encontrou
no pátio Tructesindo Ramires — que, na irada impaciência daquelas delongas do
Bastardo, descera, todo armado. Sobre o comprido brial de lã verde -negra, que
recobria avestidura de malha, as suas barbas rebrilhavam, mais brancas, atadas
num grosso nó, como a cauda dum corcel. Do cinturão tauxiado de prata pendia a
um lado o punhalrecurvo, a buzina de marfim -ao outro uma espada goda, de folha
larga, com alto punho dourado, onde cintilava uma pedra rara trazida outrora da
Palestina por Gutierres Ramires, o de Ultramar. Um sergente conduzia sobre uma
almofada de couro os seusguantes, o seu capelo redondo, de viseira gradada,
como usara El-Rei D. Sancho; outro carregava o imenso broquel, da forma dum
coração, revestido de couro escarlate, com oaçor negro rudemente pintado,
esgalhando as garras furiosas. E o alferes, Afonso Gomes, seguia com o guião
enrolado na funda de lona.

Com o
velho rico-homem descera D. Garcia Viegas, e os outros parentes do solar- o
decrépito Ramiro Ramires, um veterano da tomada de Santarém, torcido pelos
reumatismos como a raiz de um roble, e arrimando os passos trémulos, não a um
bastão,mas a um chuço; o formoso Leonel, o mais moço dos Samoras de Cendufe, o
que matara os dois ursos nos brejos de Cachamuz e que tão bem trovava; Mendo de
Briteiros, o das barbas vermelhas, grande queimador de bruxas, ledo arranjador
defolgares e danças; e o agigantado Senhor dos Paços de Avelim, todo coberto,
como um peixe fabuloso, de escamas que reluziam. Como o sol se acercava da
margela do Poçogrande, marcando a hora da arrancada sobre Montemor — já, dos
fundos alpendres que escondiam os campos do tavolado, os cavalariços puxavam os
ginetes de guerra, com as suas altas selas pregueadas de prata, as ancas e os
peitos resguardados por coberturas decouro franjado, que rojavam nas lajes. Por
todo o castelo se espalhara que o Bastardo, depois da lide fatal aos Ramires,
correra de Canta Pedra, ameaçava a Honra; — edebruçados dos passadiços que
ligavam a muralha aos contrafortes da Alcáçova, ou metidos por entre os engenhos
de arremesso que atulhavam as corredouras, os moços da ucharia, os servos das
hortas, os vilões acolhidos para dentro das barbacãs, espreitavamo Senhor de
Santa Ireneia e aqueles cavaleiros fortes, com ansiedade, tremendo do assalto
dos de Baião e dessas horrendas bolas de ferro, cheias de fogo que, agora,
asmesnadas cristãs arrojavam tão destramente como as hordas sarracenas. — No
entanto, com a sua gorra esmagada contra o peito, Ordonho, arfando, apresentava
a Tructesindo o recado do Bastardo:- É cavaleiro moço, não traz credência… O
Sr. Bastardo espera ao Cruzeiro… E pede que o atendais da quadrela das
barbacãs…- Que se acerque, pois! — gritou o velho. — E com quantos queira dos
vilões que o seguem!

Mas
Garcia Viegas, o Sabedor, sempre avisado, com a sua esperta mansidão:- Tende,
primo e amigo, tende! Não subais vás à tranqueira, antes que eu me assegure se
Baião nos vem com arteirice ou falsura.E entregando a sua pesada lança de faia
a um donzel, enfiou pela escada soturna da torre albarrã. Em cima, no eirado,
sussurrando um chuta! chuta! à fila de besteiros que guarnecia as ameias,
atenta e com a besta encurvada — penetrou no miradouro,espiou pela seteira. O
arauto de Baião galopara para o Cruzeiro, que uma selva movediça de lanças
rodeava coriscando. E curto recado lançou — porque logo, no seufouveiro
acobertado por uma rede de malha acairelada de ouro, Lopo de Baião despegou do
denso troço de cavaleiros, com a viseira erguida, sem lança ou ascuma de monte,
e ociosas sobre o arção da sela mourisca as mãos, onde se enrodilhavam as
bridas decouro escarlate. Depois, a um toque arrastado de buzina, avançou para
as barbacãs da Honra, vagarosamente, como se acompanhasse um saimento. Não
movera o seu pendãoamarelo e negro. Apenas seis infanções o escoltavam, também
sem lança ou broquel, com sobrevestes de pano roxo sobre os saios de malha.
Atrás, quatro alentados besteiros carregavam aos ombros umas andas, toscamente
armadas com troncos de árvores, ondeum homem jazia estirado, como morto,
coberto, contra o calor e os moscardos, por leves folhagens de acácia. E um
monge seguia numa mula branca, segurandomisturadamente com as rédeas um
crucifixo de ferro, sobre que pendia a orla do seu capuz e uma ponta de barba
negra.

Da
seteira, mesmo sem descortinar, por entre a camada de ramagens, a face dohomem
estendido nas andas, o Sabedor adivinhou Lourenço Ramires, o doce afilhado que
tanto amara, que tão bem ensinara a terçar lanças e a treinar falcões. E
cerrando ospunhos, gritando surdamente. — «Bem prestos! besteiros, bem
prestos!» — desceu a escura escadaria, tão arremessado pela cólera e pela mágoa
que o seu elmo cavamente bateu contra o arco da porta, onde o esperava
Tructesindo com os cavaleiros parentes.- Senhor primo! — bradou. — Vosso filho
Lourenço está diante das barreiras da

Honra,
deitado sobre umas andas!Com um rosnar de espanto, um atropelo dos sapatos de
ferro sobre as lajes sonoras, todos seguiram pela poterna da albarrã o rico
-homem -até ao escadão de madeira que se empurrava contra a quadrela das barbacãs.
E, quando o enorme velhosurdiu no eirado, um silêncio pesou, tão ansioso, que
se sentia para além do vergel o chiar triste e lento da nora e o latir dos
mastins.No terreiro, em frente à cancela gateada, o Bastardo esperava, imóvel
sobre o seu ginete, com a formosa face bem levantada, a face de Claro Sol, onde
as barbas aneladas, caindo nas solhas do arnês, rebrilhavam como ouro novo.
Vergando o capelo deouropel, saudou Tructesindo com gravidade e preito. Depois
alçou a mão, que descalçara do guante. E num considerado e sereno falar:-
Senhor Tructesindo Ramires, nessas andas vos trago vosso filho Lourenço, que em
lide leal, no vale de Canta Pedra, colhi prisioneiro e me pertence pelo foro
dos ricos-homens de Espanha. E de Canta Pedra caminhei com ele para vos pedir
que entrenós findem estes homizios e estas feias brigas, que malbaratam sangue
de bons cristãos… Senhor Tructesindo Ramires, como vós venho de Reis. De D.
Afonso dePortugal recebi a pranchada de cavaleiro. Toda a nobre raça de Baião
se honra em mim… Consenti em me dar a mão de vossa filha D. Violante, que eu
quero e que me quer, e mandai erguer a levadiça para que Lourenço ferido entre
no seu solar e eu vosbeije a mão de pai.

Das
andas, que estremeceram sobre os ombros dos besteiros, um desesperadobrado
partiu: — Não, meu pai! E hirto na borda do eirado, sem descruzar os braços, o
velho Tructesindo retomouo brado — que por todo o terreiro da Honra rolou, mais
arrogante e mais cavo:

— Meu
filho, antes de mim, te respondeu, vilão!Como se uma pontoada de lança lhe
topasse o peito, o Bastardo vacilou na alta sela; e, colhido pelo repuxão das
rédeas, o seu fouveiro recuou alteando a testeira dourada. Mas, a um novo
arremesso, repulou contra a cancela. E Lopo de Baião,erguido sobre os estribos,
gritava com ânsia, com furor:

— Sr.
Tructesindo Ramires, não me tenteis!…

— Arreda,
vilão e filho de viloa, arreda! — clamou soberba mente o velho, semdesprender
os braços de sobre o levantado peito, na sua rija imobilidade e teima, como se
todo o corpo e alma fossem de rijo ferro.Então o Bastardo, arrojando o guante
contra o muro da barbacã, rugiu chamejante e rouco:

— Pois
pelo sangue de Cristo e pela alma de todos os meus te juro, que se me nãodás
neste instante essa mulher que eu quero e que me quer, sem filho ficas, que por
minhas mãos, diante de ti e nem que todo o Céu acuda, lhe acabo o resto da
vida!Já na mão lhe lampejava um punhal. Mas num ímpeto de sublime orgulho, um
ímpeto sobre-humano, em que cresceu como outra escura torre entre as torres da
Honra, Tructesindo arrancara a espada:- Com esta, covarde! com esta! Para que
seja puro, não vil como o teu, o ferro que atravessar o coração de meu
filho!Furiosamente, com as duas possantes mãos, arremessou a espada, que
rodopiou silvando e faiscando, se cravou no duro chão, onde tremia, ainda
faiscava, como se uma cólera heróica também a animasse. E no mesmo relance, com
um urro, um salto doginete, o Bastardo, debruçado do arção, enterrara o punhal
na garganta de Lourenço — em golpe tão cravado, que o esguicho do sangue lhe
salpicou a clara face, as barbas deouro.

Depois
foi uma bruta abalada. Os quatro besteiros sacudiram para o chão as andas, o
corpo morto enrodilhado nos ramos — e atiraram pelo terreiro, como lebres
emclareira, atrás do monge que se agachava agarrado às crinas da mula. Numa
curta desfilada o Bastardo, os seis cavaleiros, gritando o alarme, mergulharam
no arraial, queestacara ao Cruzeiro. Um tumulto remoinhou em torno ao devoto
pilar. E em rodilhado tropel a mesnada desenfreou para a Ribeira, varou a velha
ponte, logo enublada em pó e sumida para além do arvoredo, num fugidio coriscar
de capelinas e de lanças apinhadas.Uma alta grita, no entanto, atroara as
muralhas de Santa Ire neia! Virotes, flechas, balas de fundas assobiavam,
despedidas no mesmo furioso repente, sobre o bando deBaião; — mas apenas um dos
besteiros que carregara as andas tombou, estrebuchando, com uma flecha na
ilharga. Pela cancela das barreiras já cavaleiros e donzéis de armas se
empurravam desesperadamente, para recolher o corpo de Lourenço Ramires. EGarcia
Viegas, os outros parentes, galgaram ao eirado da barbacã, de onde Tructesindo
se não arredara, rígido e mudo, fitando as andas e seu filho, estatelado com
elas sobre oterreiro da sua Honra. Quando, ao rumor, ele pesadamente se voltou
— todos emudeceram ante a serenidade da sua face, mais branca que as brancas
barbas, duma morta brancura de lápide, com os olhos ressequidos e cor de brasa,
a latejar, a refulgir,como os dois buracos dum forno. Com a mesma sinistra serenidade,
tocou no ombro do velho Ramiro, que tremia arrimado ao seu chuço. E numa
vagarosa e vasta voz:- Amigo! cuida tu do corpo de meu filho, que a alma ainda
hoje, por Deus! lha vou eu sossegar!…

Afastou
aqueles senhores emudecidos de assombro e de emoção — e baixou pelagasta escada
de madeira, que rangia sob o peso do enorme rico -homem, carregado de ira e
dor. Nesse momento, entre besteiros e serviçais que se atropelavam — o corpo de
Lourenço Ramires transpunha o portelo das barbacãs, segurado pelo formoso
Leonel e por Mendo de Briteiros, ambos afogueados de lágrimas e rouquejando
ameaças furiosascontra a raça de Baião. Atrás, o trôpego Ordonho gemia,
abraçado à espada de

Tructesindo,
que apanhara no chão do Terreiro e que beijava como para a consolar. Àborda do
fosso uma aveleira espalhava a sombra leve num bronco tabuão pregado sobre
toros de onde, aos domingos, com o adanel dos besteiros, Lourenço dirigia os
jogos de besta e frecha, distribuindo fartamente as recompensas de bolos de mel
e de vinho empichéis. Sobre essas tábuas o estiraram — recuando todos depois,
enquanto aterradamente se benziam. Um cavaleiro de Briteiros, temendo por
aquela almadesamparada e sem confissão, correra à capela da Alcáçova procurar
Frei Múncio. Outros, rodeando toda a muralha até ao Baluarte Velho, gritavam,
com desesperados acenos, para o torreão escalavrado, onde, como um mocho,
habitava o físico. Mas ocerteiro punhal do Bastardo acabara o denodado
Lourenço, flor e regra de cavaleiros por toda a terra de Ribacávado… E que
lastimoso e desfeito — com suja terra na face, agarganta empastada de sangue
negro, as malhas do saio rotas sobre os ombros e embebidas nas carnes
retalhadas, e nua, sem greva, toda inchada e roxa, a perna ferida em Canta
Pedra, onde mais sangue e lama se empastavam!Tructesindo descia, lento e
rígido. E as secas brasas dos seus olhos mais se incendiam, enquanto, através
do dorido silêncio, se acercava do corpo de seu filho.Diante do banco ajoelhou,
agarrou a arrefecida mão que pendia; e, junto à face manchada de sangue e
terra, segredou, de alma para alma, num abafado murmúrio, que não era de
despedida mas de alguma suprema promessa, e que findou num beijodemorado sobre
a testa, onde uma réstia de sol rebrilhou, dardejada de entre as folhas da
aveleira. Depois, erguido num arrebate, atirando o braço como para nele
recolher toda aforça da sua raça, gritou:

— E
agora, senhores, a cavalo, e vingança brava! Já pelos pátios, em torno da
Alcáçova, corria um precipitado fragor de armas. Aosásperos comandos dos almocadéns,
as filas de besteiros, de archeiros, de fundibulários, rolavam dos adarves dos
muros para cerrar as quadrilhas. Rapidamente, os cavalariçosda carga amarravam
sobre o dorso das mulas os caixotes do armazém, os alforges da trebalha. Pelas
portas baixas da cozinha, peões e sergentes, antes de largar, bebiam à pressa
uma conca de cerveja. E no campo das barreiras os cavaleiros, chapeados
deferro, carregadamente se içavam, com a ajudados donzéis, para as altas selas
dos ginetes

— logo
ladeados pelos seus infanções e acostados, que aprumavam a lança sobre ocoxote
assobiando aos lebréus.

Enfim o
alferes, Afonso Gomes, sacou da funda e desfraldou o pendão num embalanço
largo, em que as asas do açor negrejaram, abertas, como soltando o
vooenfurecido. O grito agudo do adail ressoara por toda a cerca — ala! ala! De
cima de um marco de pedra, junto ao postigo da barbacã, Frei Múncio estendia as
magras mãosainda trémulas, abençoava a hoste. Então Tructesindo, sobre o seu
murzelo, recebeu do velho Ordonho a espada, de que tão terrivelmente se
apartara. E estendendo a reluzente folha para as torres da sua Honra como para
um altar, bradou:- Muros de Santa Ireneia, não vos torne eu a ver, se em três
dias, de Sol a Sol, ainda restar sangue maldito nas veias do traidor de
Baião!E, escancaradas as barreiras, a cavalgada tropeou em torno ao pendão
solto — enquanto, na torre de Almenara, sob o parado esplendor da sesta de
Agosto, o sino grande começava a tanger a finados.Quando Gonçalo à tarde,
enterrado na poltrona à varanda, releu este capítulo de sangue e furor sobre
que se esfalfara durante a semana, pensou «que o lanceimpressionaria».

Sentiu
então o apetite de recolher sem demora os louvores merecidos -e de mostrar a
Gracinha e ao Padre Soeiro os três capítulos completos, antes de remeter
omanuscrito para os ANAIS. E mesmo lhe convinha -porque a erudição arqueológica
do

Padre
Soeiro forneceria talvez algum traço novo, bem Afonsino, que mais
avivasseaquela ressurreição da Honra de Santa Ireneia e dos seus senhores formidáveis.
Imediatamente resolveu partir de manhã para Oliveira com o seu trabalho — que,
depois de esmiuçado pelo Padre Soeiro, confiaria ao procurador de D. Arminda
Viegas, paraele o copiar naquela sua formosa letra, tão celebrada em todo o
Distrito, e apenas igualada (nas maiúsculas) pela do escrivão da Câmara
Eclesiástica.Sacudia já da poeira uma antiga pasta de marroquim para
transportar a obra amada — quando o Bento empurrou a porta, ajoujado com uma
cesta de vime que uma toalha de rendas cobria.- Um presente.

— Um
presente… De quem?- Da Feitosa, das senhoras.- Bravo!

— E com
uma carta, que vem pregada na toalha.Com que curiosidade Gonçalo despedaçou o
sobrescrito! Mas, apesar de lacrado com um pomposo selo de armas, apenas
continha linhas a lápis num bilhete -de-visita daprima Maria Mendonça:

«Ontem ao
jantar contei quanto o primo Gonçalo gosta de pêssegos, sobretudo aboborados em
vinho, e a Anica toma por isso a liberdade de lhe mandar esse cestinho de
pêssegos da Feitosa que, como sabe, são falados em todo o Portugal… Mil
saudades.»

Gonçalo
imaginou logo no fundo da cesta, debaixo dos pêssegos, docementeescondida, uma
cartinha da D. Ana! — Bem! São pêssegos… Deixa aí sobre uma cadeira…- Era
melhor que os levasse já para a copa, Sr. Doutor, para os arrumar na
prateleira…

— Deixa
sobre a cadeira!Apenas o Bento cerrara a porta, estendeu no chão a toalha,
entornou cuidadosamente por cima os pêssegos formosos, que perfumavam a
livraria. No fundoda cesta encontrou apenas folhas de parra. Levemente desconsolado,
cheirou um pêssego. Depois considerou que os pêssegos arranjados por ela, com
parra que ela apanhara na latada, sob toalha que ela escolhera no armário,
formavam na sua mudezcheirosa um recadinho sentimental. Ainda agachado na
esteira, comeu o pêssego; — e recolocou os outros na cesta para os levar a
Gracinha.Mas, ao outro dia, às duas horas, já com a parelha do Torto engatada,
à caleche, já com as luvas calçadas para a jornada de oliveira, recebeu uma
inesperada visita — a visita do Sr. Visconde de Rio Manso. Descalçando as
luvas, o Fidalgo pensava: — «ORio Manso! Que me quererá esse casmurro?» — Na
sala, pousado à beira do canapé de veludo verde e esfregando os joelhos, o
Visconde contou que de volta de Vila Clara ediante do portão da Torre, vencera
o seu teimoso acanhamento, para apresentar os seus respeitos ao Sr. Gonçalo
Ramires. E não só para esse gostoso dever — mas também (como soubera que S.
Ex-a se propunha deputado pelo círculo), para lhe oferecer nafreguesia de Canta
Pedra o seu préstimo e os seus votos…

Gonçalo,
risonho e pasmado, saudava, torcia embaraçadamente o bigode. E oVisconde de Rio
Manso não estranhava aquele pasmo, porque decerto o Sr. Gonçalo Ramires o
conhecera sempre como ferrenho Regenerador… mas então! Ele pertencia à
geração, agora bem rareada, que antepunha aos deveres da Política os deveres
dagratidão; -e além da simpatia que lhe merecia o Sr. Gonçalo Ramires (pelo que
constava em todo o Distrito do seu talento, da sua afabilidade, da sua
caridade), tambémconservava para com S. Ex-a a uma dívida de gratidão, ainda
aberta, não por indiferença, mas por timidez…

— V. Ex-a
não adivinha, Sr. Gonçalo Mendes Ramires?… Não se lembra?- Não, realmente,
Sr. Visconde, não me. Pois uma tarde o Sr. Gonçalo Mendes Ramires passava a
cavalo pela quinta da Varandinha, quando a sua neta, brincando no terraço
(aquele terraço gradeado de ondese curva uma magnólia), deixou escapar uma péla
para a estrada. O Sr. Gonçalo Mendes

Ramires,
rindo, apeou imediatamente, apanhou a péla, e, para a restituir à
meninadebruçada da grade, abeirou a égua do muro depois de montar — e com que
ligeireza e garbo!…- V. Ex-a não se lembrava?

— Sim,
sim, agora… Pois no ladrilho do terraço rente da grade, pousava um jarro
cheio de cravos. O Sr.Gonçalo Mendes, depois de gracejar com a menina (que,
louvado Deus, não era acanhada!), pediu um cravo, que ela escolheu — e que lhe
deu, toda séria, como umasenhora. E ele, que observara da janela do seu quarto,
pensava: — «Ora aí está! Este Fidalgo da Torre, um tão grande Fidalgo, que
amável!» — Oh, S. Ex-a não tinha que rir e corar… A gentileza fora grande — e
a ele, avo, parecera imensa! Mas não ficara somentena péla apanhada…

— O Sr.
Gonçalo Mendes Ramires não se recorda?…- Sim, Sr. Visconde, com efeito agora…
Pois, logo no outro dia, o Sr. Gonçalo Mendes Ramires mandara da Torre um
precioso cesto de rosas, com o seu bilhete, e numa linha este gracejo: —
«Emagradecimento dum cravo, rosas à Srª D. Rosa».

Gonçalo
quase pulou na cadeira, divertido:- Sim, sim, Sr. Visconde, perfeitamente!…
Agora me recordo! Pois desde essa tarde, ele sempre almejara por uma
oportunidade de mostrar ao Sr. Gonçalo Mendes Ramires o seu reconhecimento, a
sua simpatia. Mas quê! eratímido, vivia muito retirado… Nessa manhã, porém,
em Vila Clara, soubera pelo

Gouveia
que S. Ex-a se apresentava deputado pelo círculo. Apesar de ser eleição
tãosegura, já pela influência do Sr. Ramires, já pela influência do Governo,
logo pensara: — «Bem, aí está a ocasião!» E, agora, oferecia a S. Ex-a, na
freguesia de Canta Pedra, o seu préstimo e os seus votos.Gonçalo murmurou,
enternecido:


Realmente, Sr. Visconde, nada me podia sensibilizar mais do que uma oferta
tãoespontânea, tão… — Sou eu que me sensibilizo por V. Ex-a aceitar. E agora
não falemos mais nesse meu pobre préstimo e nesses meus pobres votos… Pois V.
Ex-a tem aqui uma venerávelvivenda.

E como o
Visconde aludia ao desejo, já nele antigo, de admirar de perto a famosaTorre,
mais velha que Portugal — ambos desceram ao pomar. O Visconde, com o guarda-sol
ao ombro, pasmou em silêncio para a Torre; reconheceu (apesar de liberal) o
prestígio que resulta duma tão alta linhagem como a dos Ramires; e gabou
sinceramenteo laranjal. Depois, sabendo que o Pereira da Riosa arrendara a
quinta, invejou ao Sr.

Ramires
tão cuidadoso e honrado rendeiro… — Diante do portão, o char-à-bancs
doVisconde esperava, atrelado de duas mulas lustrosas e nédias. Gonçalo admirou
as mulas. E, abrindo a portinhola, suplicou ao Sr. Visconde que beijasse por
ele a mãozinha da Srª D. Rosa. Comovido, o Visconde confessou uma ousadia,
umaesperança — e era que S. Ex-a um dia, à sua escolha, parasse em Canta Pedra,
jantasse na quinta, para conhecer mais intimamente a menina da péla e do
cravo…- Mas com imensa honra!… E desde já me proponho a ensinar À Srª D.
Rosa, se ela não sabe, o jogo da péla à antiga portuguesa.

O Sr.
Visconde saudou, banhado de gosto e riso, com a mão sobre o coração.Gonçalo
trepando as escadas, murmurava: — «Oh senhores, que simpático homem! E que
generoso homem, que paga rosas com votos! Ora vejam como às vezes, por
umapequenina atenção, se ganha um amigo! Com certeza, para a semana vou a Canta
Pedra jantar!… Homem encantador!»

E foi num
ditoso estado de alma que acomodou na caleche a pasta de marroquimcom o
manuscrito, o cesto sentimental dos pêssegos da D. Ana — e acendeu um charuto,
e saltou à almofada, e tomou as rédeas para lançar, num trote alegre até
Oliveira, aparelha branca do Ruço.

No largo
de El-Rei, antes de apear, perguntou logo ao Joaquim da Porta notícias dos
senhores. Os senhores todos muito bem, graças a Deus… O Sr. José Barrolo
partirade manhã a cavalo para a quinta do Sr. Barão das Marges, só recolhia à
noite…

— E o Sr.
Padre Soeiro?- O Sr. Padre Soeiro, creio que está para casa da Srª D.
Arminda… — E a Sr a D. Graça? — A Sr. a D. Graça desceu há um bocadinho
grande para o mirante, de chapéu…Naturalmente ia à igreja das Mónicas.

— Bem.
Leva esse cesto de pêssegos e diz ao Joaquim da Copa que os ponha namesa, assim
mesmo no cesto, com as folhas… E que me subam ao quarto água quente. O
relógio da parede, na sala de espera, gemia preguiçosamente as cinco horas. O
palacete repousava num claro silêncio. E depois da poeira e dos solavancos da
estrada,pareceu mais doce a Gonçalo a frescura do seu quarto, com as quatro
janelas abertas sobre o jardim regado e sobre a cerca das Mónicas.
Cuidadosamente, guardou logonuma gaveta da cómoda a pasta preciosa de
marroquim. Uma criada de olhos repolhudos entrara com o jarrão de água quente:
— e o Fidalgo, como sempre, chasqueou a moça sobre os lindos sargentos de
Cavalaria, cujo quartel tentador dominava olavadouro da quinta, e retinha as
raparigas da casa ensaboando todo o dia com paixão.

Depois
ainda se demorou, mudando o fato empoeirado, assobiando vagamente,encostado à
varanda sobre a calada Rua das Tecedeiras. O sino das Mónicas lançou um lindo
repique… E Gonçalo, enfastiado da sua solidão, decidiu descer pelo terraço do
jardim, e surpreender Gracinha nas suas devoções, na igrejinha.Em baixo, no
corredor, cruzou o Joaquim da Copa:

— Então o
Sr. Barrolo hoje não janta?- O Sr. Barrolo foi jantar com o Sr. Barão das
Marges, na quinta… São os anos da menina. Naturalmente só recolhe à noite.

Gonçalo,
no jardim, ainda tardou por entre os alegretes, compondo para o casacoum ramo
de flores ligeiras. Depois rodeou a estufa, sorrindo da porta com que o Barrolo
a enriquecera, uma porta envidraçada, arqueada em ferradura, com um monograma
decores rutilantes; e meteu pela rua que conduzia ao repuxo, coberta de
silêncio e penumbra pela rama enlaçada dos seus altos loureiros. Adiante,
circundado de bancos de pedra, de árvores de aroma e flor, cantava
dormentemente o fino repuxo num tanqueredondo, de borda larga, onde se
espaçavam grossos vasos de louça branca, com o brasão ramalhudo dos Sãs.
Certamente na véspera ou de manhã se lavara o tanque,porque na água muito
transparente, sobre as lajes muito claras, nadavam com redobrada vivacidade, em
lampejos rosados, os peixes que Gonçalo assustou mergulhando e agitando a
bengala. E daquela borda do tanque já ele avistava ao fundo de outra
rua,debruada de dálias abertas, o mirante — uma construção do século XVIII,
simulando um templozinho grego, cor -de-rosa desbotada, com um gordo Cupido
sobre a cúpu la, ejanelinhas de rocalha entre o meio -relevo das colunas
caneladas, por onde trepavam jasmineiros. Gonçalo arrancou, como costumava,
folhas dum ramo de lúcia-lima, para esmagare perfumar as mãos; e continuou para
o mirante, vagarosamente, por entre as dálias apinhadas. Na álea, novamente
ensaibrada, os sapatos finos de verniz que calçarapousavam sem rumor no saibro
mole. E assim, num silêncio de sombra indolente, se acercou do mirante — e duma
das janelinhas que, mal cerrada, conservava corrida por dentro a persiana de
tabuinhas verdes. Rente dessa janela era a escada de pedra, que, doelevado e
comprido terraço sobre que se estendia o jardim, comunicava com a encovada Rua
das Tecedeiras, quase em frente à capela das Mónicas. E Gonçalo, sem
pressa,descia — quando, através da persiana rala, sentiu dentro do mirante um
sussurro, um cochichar perturbado. Sorrindo, pensou que alguma das criadas da
casa se refugiara nesse templozinho de Amor, com um dos sargentos terríveis de
Cavalaria… Mas, não!impossível! Pois se, momentos antes Gracinha roçara
aquela janela e pisara aquela escada, no seu caminho para as Mónicas! E então
outra ideia o varou como uma espada- e tão dolorosa que recuou com terror da
beira do mirante, de onde ela perversamente o assaltara. já porém uma
desesperada curiosidade o agarrara, o empurrava — e colou a face à persiana com
a cautela dum espião. O mirante recaíra em silêncio -Gonçalotemia que o
traíssem as pancadas do seu coração… Santo Deus! De novo o murmúrio
recomeçara, mais apressado, mais turbado. Alguém suplicava, balbuciava: — «Não,
não,que loucura!» — Alguém urgia, impaciente e ardente: — «Sim, meu amor! sim,
meu amor!» E a ambos os reconheceu — tão claramente como se a persiana se
erguesse e por ela entrasse toda a vasta claridade do jardim. Era Gracinha! Era
o Cavaleiro!Colhido por uma imensa vergonha, no atarantado pavor de que o
surpreendessem junto do mirante e da torpeza escondida enfiou pela rua das
dálias, encolhido, com ossapatos leves no saibro mole, costeou o repuxo por sob
a ramaria dos arbustos, remergulhou na escuridão dos loureiros, deslizou
sorrateiramente por trás da estufa — penetrou no sossego do palacete. Mas o
murmúrio do mirante ainda o envolvia, maisdesfalecido, mais rendido: — «Não,
não, que loucura!… Sim, sim, meu amor!…»

Abalou
através das salas desertas, como uma sombra acossada; escorregouabafadamente
pela escadaria de pedra, varou o portão numa carreira, espreitando, com medo do
Joaquim da Porta. No Largo parou, diante da grade do relógio -de-sol. Mas o sussurro
do mirante errava por todo o Largo como um vento enroscado, raspando aslajes,
batendo as barbas dos santos sobre o portal da igreja de S. Mateus,
redemoinhando nos telhados musgosos da Cordoa ria… — «Não, não, que loucura!
Sim,sim! meu amor!» Então Gonçalo sentiu a ansiedade desesperada de escapar
para longe, para imensamente longe do Largo, do palacete, da cidade, de toda
aquela vergonha que o trespassava. Mas uma carruagem?… Pensou na alquilaria
do Maciel, a mais retirada,para além das últimas casas, na estrada do
Seminário. E cosido com os muros baixos dessas ruas pobres, correu, mandou
engatar uma caleche fechada.Enquanto esperava à porta, num banco, passou pela
estrada uma lenta carroça com móveis, panelas de cozinha, um grande colchão
onde se alastrava uma nódoa. Bruscamente, Gonçalo recordou o divã que guarnecia
o mirante. Era enorme, de mogno,todo coberto de riscadinho, com molas lassas
que rangiam. E de repente o murmúrio recomeçou, cresceu, rolando com fragor de
trovão por sobre os casebres vizinhos, porsobre a cerca do Seminário, por sobre
Oliveira espantada: — «Não, não, que loucura! Sim, sim, meu amor!»

Com um
salto, Gonçalo gritou para dentro, para a cavalariça escura:- Então, que
inferno! não acaba, essa carruagem?

— Já a
largar, meu Fidalgo.No relógio da Piedade sete horas batiam — quando ele se
atirou para a caleche, e fechou os estores perros, e se enterrou no fundo, bem
sumido, esmagado, com a sensação que o mundo tremera, e as mais fortes almas se
abatiam, e a sua Torre, velhacomo o Reino, rachava, mostrando dentro um montão
ignorado de lixo e de saias sujas.

 

Capítulo IX

 

À porta
da cozinha, sacudindo um sobrescrito já amarrotado, Gonçalo ralhavacom a Rosa
cozinheira: — Oh Rosa! pois tanto lhe recomendei que não escrevesse à mana
Graça?… Que teimosa! Então não arranjávamos a pequena, sem essas lamúriaspara
Oliveira? Graças a Deus, a Torre é larga bastante para mais uma criancinha.

É que
morrera a Crispola — a desgraçada viúva, vizinha da Torre que, com umrancho
miúdo de dois pequenos, três raparigas, definhava no catre desde a Páscoa. E
agora Gonçalo, que mantivera o casebre em fartura, andava acomodando as pobres
crianças — já por cuidado dele muito asseadamente vestidas de luto. A rapariga
maisvelha (também Crispola), sempre encafuada na cozinha da Torre, passava
regularmente a «ajudanta da Rosa», com soldada. Um dos rapazes, de doze anos,
espigado e esperto,também Gonçalo o empregava na Torre como andarilho, para os
recados, com fardeta de botões amarelos. O outro, mole e ranhoso, mas com o
jeito e o amor de carpinteirar, já Gonçalo, sob o patrocínio da tia Louredo, o
colocara em Lisboa, na Oficina de S.José. Duma das outras raparigas se
encarregava a mãe de Manuel Duarte, amorável senhora que habitava uma quinta
formosa junto a Treixedo, e adorava Gonçalo, dequem se considerava « vassala».
Mas para a mais novinha e a mais fraquinha, não searranjava amparo sólido. A
Rosa lembrara então — «que certamente a Sr a D. Maria da

Graça
recolheria a criaturinha…». Gonçalo rosnara com secura: — «Oh! por uma
côdeamais de pão não se necessita incomodar a cidade de Oliveira !» Rosa,
porém, enlevada na obra, desejando para pequerrucha tão franzina e loura o
agasalho duma senhora,escrevera a Gracinha, pela esmerada letra do Bento, uma
verbosa carta com o pedido, e toda a história lamentosa da Crispola, e louvores
devotos à caridade do Sr. Doutor. E era a resposta de Gracinha, demorada mas
enternecida, com a recomendação «de lhemandarem logo a pobre criança» — que
impacientava o Fidalgo.

Porque,
desde a tarde abominável do mirante, estranhamente se apoderara deleuma
repugnância quase pudica em comunicar com os Cunhais! Era como se esse mirante
e a torpeza abrigada dentro das suas paredes cor-de-rosa, empestassem o jardim,
o palacete, o Largo de El-Rei, toda a cidade de Oliveira, e ele agora, por
asseio moral,recuasse ante essa região empestada, onde o seu coração e o seu
orgulho sufocavam…

Logo
depois da sua fuga, recebera do bom Barrolo uma carta espantada:

«Que
telha foi essa? Porque não esperaste? Eu, quando voltei à noite da quinta do
Marges, até fiquei com cuidado. E não imaginas como a Gracinha anda nervosa!
Soubemos da partida, por acaso, por um cocheiro do Maciel. Já hoje comemos os
pêssegos, mas não compreendemos!…»

Gonçalo
respondeu secamente num bilhete: — «Negócios». Depois recordou que deixara na
gaveta do seu quarto o manuscrito da novela; e mandou um moço da quinta,de
madrugada, com um recado quase secreto ao Padre Soeiro, «para que entregasse a
pasta ao portador, bem embrulhada, sem contar aos senhores…». Entre a Torre e
osCunhais só desejava separação e silêncio.

E nos
encerrados dias que passou na Torre (sem se arriscar a Vila Clara, no terror de
que a vergonha do seu nome já andasse rosnada pelo estanco do Simões ou peloarmazém
do Ramos), não cessou de vibrar numa cólera espalhada que a todos varava…

Cólera
contra a irmã que, calcando pudor, altivez de raça, receio dos escárnios
deOliveira, tão fácil e estouvadamente como se calcam as flores desbotadas dum
tapete, correra ao mirante, ao macho da bigodeira, apenas ele lhe acenara com o
lenço almiscarado! Cólera contra o Barrolo, o bochechudo bacoco, que empregava
os seusbacocos dias celebrando o Cavaleiro, arrastando o Cavaleiro para o Largo
de El-Rei, escolhendo na adega os vinhos mais finos para que o Cavaleiro
aquecesse o sangue,ajeitando as almofadas de todos os canapés para que o
Cavaleiro saboreasse estiradamente o seu charuto e a graça presente de
Gracinha! Enfim cólera contra si, que, pela baixa cobiça de uma cadeira em S.
Bento, abatera a única muralha segura entre airmã e o homem da marrafa luzente
— que era a sua inimizade, aquela escarpada inimizade, sempre, desde Coimbra,
tão rijamente reforçada e recaiada!… Ah! todos trêshorrendamente culpados!

Depois uma
tarde, enfastiado da solidão, ousou um passeio por Vila Clara. E reconheceu que
na Assembleia, no estanco do Simões, na loja do Ramos, os amores deGracinha
eram certamente tão ignorados como se se passassem nas profundidades da

Tartária.
Imediatamente a sua alma doce, agora sossegada, se abandonou à doçura detecer
desculpas subtis para todos os culpados daquela queda triste… Gracinha,
coitada, sem filhos, com tão molengo e ensosso marido, alheia a todos os
interesses da inteligência, indolente mesmo para uma costura ou bordado —
cedera, que mulher nãocederia? à crédula e primitiva paixão que lhe brotara na
alma, nela se enraizara, lhe dera as suas únicas alegrias do mundo e
(influência ainda mais poderosa!) lhe arrancara assuas únicas lágrimas! O Barrolo,
coitado, era o Bacoco — e como o «pilriteiro» da cantiga, incapaz de mais
nobres frutos, só produzia os «pilritos» da sua Bacoquice. E ele, coitado dele,
pobre, ignorado, irresistivelmente se rendera à fatal Lei deAcrescentamento,
que o levara, como a todos leva na ânsia de fama e fortuna, a furar
precipitadamente pela porta casual que se abre, sem reparar na estrumeira que
atravancaos umbrais… Ah, realmente, todos bem pouco culpados diante de Deus
que nos criou tão variáveis, tão frágeis, tão dependentes de forças por nós
ainda menos governadas do que o vento ou do que o Sol!Não, irremissivelmente
culpado — só o outro, o malandro da grenha ondeada!

Esse, em
toda a sua conduta com Gracinha, desde estudante, mostrara sempre umegoísmo
atrevido, só punível como puniam os antigos Ramires, com a morte depois dos
tormentos, e a carcaça posta aos corvos. Enquanto lhe agradou, na ociosidade
dos longos estios, um namoro bucólico sob os arvoredos da Torre namorara.
Quandoconsiderou que uma mulher e filhos lhe atravancariam a vida ligeira —
traíra. Logo que a antiga bem-amada pertenceu a outro homem — recomeçara o
cerco lânguido para colher,sem os encargos da paternidade, as emoções do
sentimento. E apenas esse marido lhe entreabre a sua porta — não se demora,
fende brutalmente sobre a presa! Ah, como o avô Tructesindo trataria vilão de
tal vilania! Certamente o assava numa rugidora fogueiradiante das barbacãs —
ou, nas masmorras da Alcáçova, lhe entupia as goelas falsas com bom chumbo
derretido…Pois ele, neto de Tructesindo, nem sequer podia, quando encontrasse
o Cavaleiro nas ruas de Oliveira, carregar o chapéu sobre a testa e passar! A
menor diminuição nessa intimidade tão desastradamente reatada — seria como a
revelação da torpeza aindaabafada nas paredes do mirante! Toda Oliveira
cochicharia, riria. — «Olha o Fidalgo da

Torre!
Mete o Cavaleiro nos Cunhais com a irmã, e logo, passadas semanas, rompe denovo
com o Cavaleiro! Houve escândalo, e gordo!» — Que delícia para as Lousadas!
Não, ao contrário! agora devia ostentar pelo Cavaleiro uma fraternidade tão
larga e tão ruidosa -que, pela sua largueza e o seu ruído, inteiramente tapasse
e abafasse o sujoenredo que por trás latejava. Fingimento torturante — e
imposto pela honra do nome! O sujo enredo bem guardado entre os mais densos
arvoredos do jardim, na mais cerradapenumbra do mirante! — e por fora, ao sol,
nas praças de Oliveira, ele sempre com o braço carinhosamente enlaçado no braço
do Cavaleiro!

Os dias
rolavam — e no espírito de Gonçalo não se estabelecia serenidade. Esobretudo o
amargurava sentir que era forçado a essa intimidade vistosa com o Cavaleiro —
tanto pelo cuidado do seu nome, como pela conveniência da sua eleição.Toda a
sua altivez por vezes se revoltava: — «Que me importa a eleição! Que valor tem uma
encardida cadeira em S. Bento?…» Mas logo a seca realidade o emudecia. A
eleição era a única fenda por onde ele lograria escapar do seu buraco rural; e,
serompesse com o Cavaleiro, esse vilão, vezeiro a vilanias, imediatamente, com
o apoio da horda intrigante de Lisboa, improvisaria outro candidato por Vila
Clara…Desgraçadamente ele era um desses seres vergados que dependem. E a
tristedependência de onde provinha? Da pobreza — dessa escassa renda de duas
quintas, abastança para um simples, mas pobreza para ele, com a sua educação,
os seus gostos,os seus deveres de fidalguia, o seu espírito de sociabilidade.

E estes
pensamentos lenta e capciosamente o empurraram a outro pensamento — àD. Ana
Lucena, aos seus duzentos contos… Até que uma manhã encarou corajosamente
urna possibilidade perturbadora: -casar com a D. Ana! — Por que não? Ela
claramente lhe mostrara inclinação, quase consentimento… Por que não casaria
com a D. Ana?Sim! o pai carniceiro, o irmão assassino… Mas também ele, entre
tantos avós até aos Suevos ferozes, descortinaria algum avô carniceiro; e a
ocupação dos Ramires,através dos séculos heróicos, consistira realmente em
assassinar. De resto o carniceiro e o assassino, ambos mortos, sombras remotas,
pertenciam a uma lenda que se apagava. D. Ana, pelo casamento, subiria da
Populaça para a Burguesia. Ele não a encontrava notalho do pai, nem no
valhacouto do irmão — mas na quinta da Feitosa, já Rica -Dona, com procurador,
com capelão, com lacaios, como uma antiga Ramires. Ah!sinceramente, toda a
hesitação era pueril — desde que esses duzentos contos, de dinheiro muito
limpo, de bom dinheiro rural, os trazia com o seu corpo, mulher tão formosa e
séria. Com esse puro ouro, e o seu nome, e o seu talento, não necessitaria,
para dominarna Política, a refalsada mão do Cavaleiro… E depois que vida
nobre e completa! A sua velha Torre restituída ao esplendor sóbrio de outras
eras; uma lavoura de luxo nohistórico terrão de Treixedo; as viagens fecundas
às terras que educam!… E a mulher que fornecia estes regalos não lhes
amargava o gozo, como em tantos casamentos ricos, com a sua fealdade, os seus
agudos ossos, ou a sua pele relentada… Não! Depois dobrilho social do dia não
o esperava na alcova um mostrengo — mas Vénus.

E assim,
lentamente trabalhado por estas tentações, mandou uma tarde um bilheteà prima
Maria, à Feitosa, pedindo — «para se encontrarem, sós, nalgum passeio
dosarredores, porque desejava ter com ela uma conversazinha séria e íntima…».
Mas três imensos dias se arrastaram — e não apareceu a almejada carta da
Feitosa. Gonçaloconcluiu que a prima Maria, tão esperta, farejando a natureza
da conversazinha e sem uma certeza para o alegrar, retardava, se recusava.
Atravessou então uma desoladasemana, remoendo a melancolia duma vida que sentia
oca e toda feita de incertezas. O orgulho, um pudor complicado, não lhe
consentiam voltar a Oliveira, ao quarto de onde implacavelmente avistaria, por
sobre o arvoredo, a cúpula do mirante com o seu gordoCupido; — e quase o
arrepiava a ideia de beijar a irmã na face que o outro babujara!

Sobre a
eleição descera um silêncio de abóbada — e outra repugnância, mais acerba,
lhevedava escrever ao Cavaleiro. João Gouveia gozava as suas férias na Costa,
de sapatos brancos, apanhando conchinhas na praia. E Vila Clara não se tolerava
nesse meado ardente de Setembro — com o Titó no Alentejo, onde o levara uma
doença do velhomorgado de Cidadelhe, o Manuel Duarte na quinta da mãe dirigindo
as vindimas, e a

Assembleia,
deserta e adormecida sob o inumerável sussurro das moscas…Para se ocupar e
atulhar as horas, mais que por dever ou gosto de Arte, retomou a sua novela.
Mas sem fervor, sem veia ágil. Agora era a sanhuda arrancada de Tructesindo e
dos seus cavaleiros, correndo sobre o Bastardo de Baião. Lancedificultoso —
reclamando fragor, um rebrilhante colorido medieval. E ele tão mole e tão
apagado!… Felizmente, no seu poemeto, o tio Duarte recheara esse violento
trecho debem apinceladas paisagens, de interessantes rasgos de guerra.

Logo na
Ribeira do Couce, Tructesindo encontrava cortada a machado a decrépita ponte,
cujos rotos barrotes e tabuões carcomidos entulhavam no fundo a
correnteescassa. Na sua fuga o Bastardo acauteladamente a desmantelara, para
deter a cavalgada vingadora. Então a pesada hoste de Santa Ireneia avançou pela
esguia ourela, ladeandoos renques de choupos em demanda do vau do Espigal…
Mas que tardança! Quando as derradeiras mulas de carga choutaram na terra de
além -ribeira, já a tarde se adoçava, e nas poças de água, entre as poldras, o
brilho esmorecia, umas ainda de ouro pálido,outras apenas rosadas.
Imediatamente D. Garcia Viegas, o Sabedor, aconselhou que a mesnada se
dividisse: — a peonagem e a carga avançando para Montemor, esgueirada ecalada,
para esquivar recontros; os senhores de lança e os besteiros de cavalo
arrancando em dura carreira para colher o Bastardo. Todos louvaram o ardil do
Sabedor; e a cavalgada, aligeirada das filas tardas de archeiros e
fundibulários, largou,soltas as rédeas, através de terras ermas, depois por
entre barrocais, até aos Três Caminhos, desolada chá onde se ergue
solitariamente aquele carvalho velhíssimo queoutrora, antes de exorcizado por
S. Froalengo, abrigava no sábado mais negro de janeiro, ao clarão de archotes
enxofrados, a Grande Ronda de todas as bruxas de Portugal. junto do carvalho
Tructesindo sopeou a arrancada; e, alçado nos estribos,farejava as três sendas
que se trifurcam e se encovam entre ásperos, lôbregos cerros de bravio e de
tojo. Passara aí o Bastardo malvado?… Ah! por certo passara e toda a
suamaldade — porque no respaldo duma fraga, junto a três cabras magras
retouçando o mato, jazia, com os braços abertos, um pobre pastorinho morto,
varado por uma frecha! Para que o triste cabreiro não soprasse novas da gente
de Baião — uma bruta seta lheatravessara o peito escarnado de fome, mal coberto
de trapos. Mas por qual das sendas se embrenhara o malvado? Na terra solta,
raspada pelo vento suão que rolava de entremontes, não apareciam pegadas
revoltas de tropel fugindo. E, em tal solidão, nem choça ou palhoça de onde
vilão ou velha alapada espreitassem a levada do bando… Então, ao mando do
alferes Afonso Gomes, três almogavres despediram pelos três caminhos
àdescoberta enquanto os cavaleiros, sem desmontar, desafivelavam os morriões
para limpar nas faces barbudas o suor que os alagava, ou abeiravam os ginetes
dum sumidofio de água que à orla da chá se arrastava entre raio caniçal.
Tructesindo não se arredou de sob a ramaria do carvalho de S. Froalengo, imóvel
sobre o murzelo imóvel, todo cerrado no ferro da sua negra armadura, as mãos
juntas sobre a sela e o elmopesadamente inclinado como em mágoa e oração. E ao
lado, com as coleiras eriçadas de pregos, as sangrentas línguas penduradas,
arquejavam, estirados, os seus dois mastins.Já no entanto a espera se alongava,
inquieta, enfadonha — quando o almogavre que metera pela senda de Nascente,
reapareceu num rolo de poeira, atirando logo o alarde de longe, corri a ascuma
alta. A hora escassa de carreira avistara num cabeço uma hosteacampada, em arraial
seguro, rodeado de estaca e vala!…

— Que
pendão?- As treze arruelas. — Deus louvado! — gritou Tructesindo, que
estremeceu como acordando. — E D. Pedro de Castro, o Castelão, que entrou com
os leoneses e vem pelas senhoras Infantas!Por esse caminho, pois, não se
atrevera o Bastardo!… Mas já pela senda de Poente recolhia outro almogavre
contando que entre cerros, num pinhal, topara um bando debufarinheiros
genoveses, retardados desde alva, porque um deles esmorecera com mal de febres.
E então?… — Então, pela borda do pinheiral apenas passara m todo o dia (no
jurar dos genoveses) uma companhia de truões, voltando da feira de Grajelos.
Sórestava pois o trilho do meio, pedregoso e esbarrancado como o leito enxuto
duma torrente. E por ele, a um brado de Tructesindo, tropeou a cavalgada. Mas
já ocrepúsculo tristíssimo descia — e sempre o caminho se estirava, agreste,
soturno, infindável, entre os cerros de urze e rocha, sem uma cabana, um muro,
uma sebe, rasto de rês ou homem. Ao longe, mais ao longe, enfim, enxergaram a
campina árida, cobertade solidão e penumbra, dilatada na sua mudez até a um céu
remoto, onde já se apagava uma derradeira tira de poente cor de cobre e cor de
sangue. Então Tructesindo deteve aabalada, rente de espinheiros que se torciam nas
lufadas mais rijas do suão:

— Por
Deus, senhores, que. corremos em pressa vã e sem esperança!… Que pensais,
Garcia Viegas?Todo o bando se apinhara; e uma fumarada subia dos ginetes
arquejantes, sob as coberturas de malha. O Sabedor estendeu o braço:- Senhores!
O Bastardo, antes de nós, galgou de escapada essa campina além, e meteu a Vale
Murtinho para pernoitar na Honra de Agredel, que é bem afortalezada e parenta
de Baião…- E nós, pois, D. Garcia?

— Nós,
senhores e amigos, só nos resta também pernoitar. Voltemos aos Três Caminhos. E
de lá, em boa avença, ao arraial do Sr. D. Pedro de Castro, a pediragasalho…
A par de tamanho senhor encontraremos mais fartamente que nos nossos alforges o
que todos, cristãos e brutos, vamos necessitando, cevada, um naco de vianda,e
de vinhos três golpes rijos…

Todos
bradaram com alvoroço: — «Bem traçado! bem traçado!…» — E de novo,pelo
barranco pedregoso, a cavalgada trotou pesadamente para os Três Caminhos — onde
já dois corvos se encarniçavam sobre o corpo do pastorinho morto.

Em breve,
ao cabo do caminho do Nascente, no cabeço alto, alvejaram as tendasdo arraial,
ao clarão das fogueiras que por todo ele fumegavam. O adail de Santa Ireneia
arrancou da buzina três sons lentos anunciando filho de algo. Logo de dentro
daestacada outras buzinas soaram, claras e acolhedoras. Então o adail galopou
até ao valado, a anunciar às atalaias postadas nas barreiras, entre luzentes
fogos de almenara, a mesnada amiga dos Ramires. Tructesindo parara no córrego
escuro, que o pinheiralcerrado mais escurecia, movendo e gemendo no vento. Dois
cavaleiros, de sobreveste negra e capuz, logo correram pelo pendor do outeiro —
bradando que o Sr. D. Pedro deCastro esperava o nobre senhor de Santa Ireneia e
muito se aprazia para todo o seu regalo e serviço! Silenciosamente, Tructesindo
desmontou; e com D. Garcia Viegas, e Leonel de Samora e Mendo de Briteiros e
outros parentes do solar, todos sem lança oubroquel, descalçados os guantes,
galgaram o cabeço até à estacada, cujas cancelas se escancararam, mostrando, na
claridade incerta dos fogaréus sombrios, magotes de peõesonde, por entre os
bacinetes de ferro, surdiam toucas amarelas de mancebas e gorros enguizalhados
de jograis. Apenas o velho assomou aos barrotes, dois infanções, sacudindo a espada,
bradaram:- Honra! honra! aos ricos-homens de Portugal!

As
trompas misturavam o clangor ríspido aos rufos lassos dos tambores. E porentre
a turba, que caladamente recuara em alas lentas, avançou, precedido por quatro
cavaleiros que erguiam archotes acesos, o velho D. Pedro de Castro, o Castelão,
o homem das longas guerras e dos vastos senhorios. Um corselete de anta com
lavores deprata cingia o seu peito já curvado, como consumido por tamanhas
fadigas de pelejar e tamanhas cobiças de reinar. Sem elmo, sem armas, apoiava a
mão cabeluda de rijasveias a um bastão de marfim. E os olhos encovados
faiscavam, com afável curiosidade, na requeimada magreza da face, de nariz mais
recurvo que o bico dum falcão, repuxadoa um lado por um fundo gilvaz que se
sumia na barba crespa, aguda e quase branca.

Diante do
senhor de Santa Ireneia alargou vagarosamente os braços. E com umgrave riso que
mais lhe recurvou, sobre a barba espetada, o nariz de rapina: — Viva Deus!
Grande é a noite que vos traz, primo e amigo! Que não a esperava eu de tanta
honra, nem sequer de tanto gosto!…Ao rematar este duro capítulo, depois de
três manhãs de trabalho, Gonçalo arrojou a pena com um suspiro de cansaço. Ali!
já lhe entrava a fartura dessa interminávelnovela, desenrolada como um novelo
solto — sem que ele lhe pudesse encurtar os fios, tão cerradamente os
emaranhara no seu denso poema o tio Duarte, que ele seguia gemendo! E depois,
nem o consolava a certeza de construir obra forte. EssesTructesindos, esses
Bastardos, esses Castros, esses Sabedores, eram realmente varões Afonsinos, de
sólida substância histórica?… Talvez apenas ocos títeres, mal engonçadosem
erradas armaduras, povoando inverídicos arraiais e castelos, sem um gesto ou
dizer que datassem das velhas idades!

E ao
outro dia não reuniu em todo o seu ser coragem para retomar aquela
sôfregacorreria dos de Santa Ireneia sobre o bando escapadiço de Baião. De
resto já remetera três capítulos da novela — já calmara as ânsias do
Castanheiro. Mas a ociosidade maislhe pesou nessa semana, arrastada pelos
canapés ou por entre os buxos do jardim, fumando e tristemente sentindo que a
vida lhe fugia em fumo. Para o enervar acrescia um aborrecimento de dinheiro
uma letra de seiscentos mil -réis, do derradeiro ano deCoimbra, sempre
reformada, sempre avolumada, e que, agora, o emprestador, um certo

Leite, de
Oliveira, reclamava com dureza. O seu alfaiate de Lisboa também oimportunava
com uma conta pavorosa, atulhando duas laudas. Mas sobretudo o desolava a
solidão da Torre. Todos os alegres amigos dispersos pela beira -mar ou nas
quintas. A eleição encalhada como uma barca no lodo. A irmã decerto com o outro
nomirante. Até a prima Maria, desatendendo ingratamente o seu tímido pedido
duma

«conversazinha».
E ele no seu quente casarão, sem energia, imobilizado numa inérciacrescente,
como se cordas o travassem, cada dia mais apertadas — e de homem se volvesse em
fardo.

Uma tarde
no seu quarto, vagaroso e sombrio, sem mesmo parolar com o Bento,acabava de se
vestir para montar a cavalo, espairecer num galope pelos caminhos de

Valverde
— quando o pequeno da Crispola (já estabelecido na Torre como pajem, defardeta
de botões amarelos) bateu esbaforidamente à porta. — Era uma senhora que parara
ao portão, dentro duma carruagem, pedia ao Fidalgo para descer…

— Não
disse o nome?- Não, senhor. É uma senhora magra, puxada a dois cavalos, com
redes…

A prima
Maria! Com que alvoroço correu, agarrando no cabide do corredor umvelho chapéu
de palha! E em baixo foi como se contemplasse a deusa da Fortuna, na sua roda
ligeira.

— Oh
prima Maria, que surpresa!… Que felicidade!Debruçada da portinhola da
carruagem (a caleche azul da Feitosa), D. Maria Mendonça, com um chapéu novo
enramalhetado de lilases, desculpou atrapalhadamentee rindo o seu silêncio.
Recebera a carta do primo muito atrasada… Sempre o fatal carteiro, trôpego e
bêbado… Depois uns dias muito atarefados em Oliveira com a Anica, que
preparava para o Inverno a casa da Rua das Velas.- E finalmente, como devia uma
visita em Vila Clara à pobre Venância Rios, que tem estado doente, achei mais
simples e mais completo parar na Torre… E então?Gonçalo sorria, embaraçado:

— Então,
nada de grave, mas… É que desejava conversar consigo… Por que nãoentra?
Abrira a portinhola. Ela preferia passear na estrada. E ambos se
encaminharampara o velho banco de pedra, que os álamos abrigavam em frente ao
portão da Torre. Gonçalo sacudiu com o lenço a ponta do banco.

— Pois,
prima Maria, eu desejava conversar… Mas é difícil, tão difícil!… Talvez
omelhor seja atacar a questão brutalmente.


Ataque.- Então lá vai!… A prima acha que eu perco o meu tempo se me dedicar à
sua amiga D. Ana?

Pousada
de leve à borda do banco, enrolando atentamente a seda preta doguarda-solinho,
Maria Mendonça tardou, murmurou:

— Não,
acho que o primo não perde o seu tempo…- Ah! acha? Ela considerava Gonçalo,
gozando a sua perturbação e ansiedade. — Jesus, prima!… Diga alguma coisa
mais!- Masque quer que lhe diga mais lá lhe declarei em Oliveira. Ainda sou
muito nova para andar com recadinhos de sentimento. Mas acho que a Anica é
bonita, é rica, éviúva…

Gonçalo
arrancou do banco, erguendo os braços, em desolação. E, como D. Maria também se
erguera, ambos seguiram pela tira de relva que orla os álamos. Ele quasegemia
desconsolado:

— Ora bonita,
viúva, rica… Para conhecer esses grandes segredos não aincomodava eu,
prima!… Que diabo! seja boa rapariga, seja franca. A prima sabe, decerto já
ambas conversaram… Seja franca. Ela tem por mim alguma simpatia?

D. Maria
parou, murmurou, riscando com a ponta do guarda -solinho o trilhoamarelado da
relva:

— Pois
está claro que tem…- Bravo! Então, se daqui a um tempo, passados estes
primeiros meses de luto, eu me declarasse, me…

Ela
dardejou a Gonçalo os espertos olhos:- Santo Deus, como o primo por aí vai, a
galope… Então é uma paixão?

Gonçalo
tirou o seu velho chapéu de palha, passou lentamente os dedos peloscabelos. E
num imenso e triste desabafo: — Olhe, prima! É sobretudo a necessidade de me
acomodar na vida! Pois não lhe parece?- Tanto me parece que lhe indiquei o bom
pouso… E agora adeus, passa das cinco horas. Não me quero demorar por causa
dos criados.Gonçalo protestou, suplicou:

— Mais um
bocadinho!… É tão cedo! Só outra coisa, com franqueza. Ela é boa rapariga?D.
Maria voltara, ao cabo do renque de álamos, recolhendo à caleche:

— Uma
pontinha de génio, para animar a existência. Mas muito boa rapariga… Euma
dona de casa admirável! O primo não imagina como anda a Feitosa. A ordem,
oasseio, a regularidade, a disciplina… Ela olha por tudo, até pela adega, até
pela cocheira!

Gonçalo
esfregou radiantemente as mãos:- Pois se daqui a um ano se realizar o grande
acontecimento, hei -de gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou
a casa dos Ramires!- Por isso eu trabalho, para servir o brasão e o nome!
exclamou ela, saltando ligeiramente para a caleche, como se fugisse,
arremessada aquela clara confissão. O trintanário trepara à almofada. E
enquanto os cavalos folgados largavam, aoscorcovos, D. Maria ainda gritou: —
Sabe quem encontrei em Vila Clara? O Titó!- O Titó?… — Chegou do Alentejo,
vem jantar consigo. Eu não o trouxe na carruagem por decência, para o não
comprometer…E a caleche rolou — entre os risos e os doces acenos com que
ambos se afagavam, naquela nova concordância mais calorosa duma conspiração
sentimental.Gonçalo largou logo alegremente para Vila Clara, ao encontro do
Titó. E já o alvoroçava a ideia de colher do Titó, íntimo da Feitosa,
informações sobre a D. Ana, o seu génio, os seus modos. A prima Maria, por amor
dos Ramires (sobretudo, coitada,para proveito dos Mendonças!) idealizava a
noiva. Mas o Titó, o homem mais verídico do Reino, amando a verdade com a
antiga devoção de Epaminondas, apresentaria D.Ana sem um enfeite nem um
desenfeite. E o Titó… Ali, sob o seu vozeirão troante, a sua indolência
bovina, o Titó possuía um espírito muito atento, muito penetrante.

Logo à
Portela os dois amigos se encontraram. E, apesar de separação tão curta,
oabraço foi estrondoso.

— Oh sô
Gonçalão!…- Oh Titózinho querido! tens feito cá uma falta enorme!… E teu
irmão? . O mano melhor, mas arrasado. Muito cartapácio e muita fêmea para velho
de sessenta anos. E ele lá o avisara: — «Mano João, mano João! olhe que assim
sempreagarrado aos papéis velhos e às cachopas novas, o mano rebenta!»

— E por
cá? Essa eleição?- A eleição agora para Outubro, nos começos de Outubro… De
resto, sensaboria universal. Gouveia na Costa, Manuel Duarte na vindima… Eu
secadote, murchote, sem veia, até sem apetite.- Olha que eu venho jantar e convidei
o Videirinha.

— Bem
sei, já medisse a prima Maria, que parou um bocado na Torre… Ela está na
Feitosa com a D. Ana.Durante um momento repisou sobre a intimidade da prima
Maria na Feitosa, com a tentação de desabafar, logo ali na estrada, sobre o inesperado
romance quedesabrochara. Mas não ousou! Era um angustiado acanhamento, como a
vergonha de cobiçar assim todos os restos do pobre Lucena — o circulo e a
viúva.Então, conversando do Alentejo e do mano João (que contara muitas
antigualhas maçadoras sobre a genealogia dos Ramires), desceram da Portela à
Torre, com tenção de estirar o passeio até aos Bravais. Mas, na Torre, Gonçalo
desejou avisar a Rosa dosdois convivas inesperados, senhores de tão poderoso
garfo. Entraram pela porta do pomar, onde um fio lento de água se atardava nos
regueiros. Aos brados galhofeiros doFidalgo a Rosa acudiu, limpando as mãos ao
avental. O quê! dois convidados! Mesmo quatro, e mais valentes, que graças a
Deus Nosso Senhor o jantarinho sobrava! Ainda de tarde comprara a uma mulher da
Costa um cesto de sardinhas, graúdas e gordas queregalavam!… O Titó reclamou
logo uma fritada tremenda de sardinha e ovos. E os dois amigos atravessavam o
pátio — quando Gonçalo reparou no Bento, escarranchado nobanco da latada,
diante duma tigela, e areando com entusiasmo um castão de prata lavrada, que
emergia de dentro duma toalha enrolada, como duma bainha.

— Que
castão é esse, Bento? assim embrulhado?O Bento lentamente sacou da toalha
torcida um chicote, escuro e comprido, com três arestas afiadas como as dum
florete.

— Nem o
Sr. Doutor sabia! Estava no sótão. Agora de tarde andava lá aescarafunchar por
causa de uma ninhada de gatos, e detrás dum baú dou com umas esporas de
prateleira e com este arrocho…Gonçalo estudou o maciço castão de prata,
sacudiu a fina vara que zinia:


Esplêndido chicote… Oh Titó, hem?… Afiado como um cutelo. E antigo, muito
antigo, como as minhas armas… De que diabo é feito? baleia?- De cavalo
-marinho… Uma arma terrível. Mata um homem… O mano João tem um, mas com
castão de metal… Mata um homem!- Bem — rematou Gonçalo. — Limpa e põe no meu
quarto Bento! Passa a ser o meu chicote de guerra!

À porta
do pomar ainda encontraram o Pereira da Riosa, de quinzena de cotimdeitada aos
ombros. Em breve, no dia de S. Miguel, o Pereira tomava enfim a lavra da

Torre. E
Gonçalo gracejou, mostrando ao Titó o lavrador famoso. Eis o homem! eis ogrande
homem que se preparava a tornar a Torre uma falada maravilha de seara, vinha e
horta! O Pereira coçava a barba rala:

— E
também a enterrar bom dinheiro! Enfim um gosto sempre valeu mais que umvintém!
E o Fidalgo, como patrão, merece terra em que os olhos se esqueçam de
regalados!…- Oh, Sr. Pereira! — ribombou o Titó. — Então não se esqueça de
cuidar dos melões. É uma vergonha! Nunca na Torre se comeu um bom melão!

— Pois
para o ano, assim Deus nos conserve, já V. Ex-a comerá na Torre um bommelão!

Gonçalo
abraçou ainda o esperto lavrador — e apressou para a estrada, decidido
adesenrolar toda a confidência ao Titó, na solidão favorável do arvoredo dos
Bravais. Mas, apenas recomeçaram a caminhada, o mesmo enleio o travou — quase
temendo agora as informações do Titó, homem tão severo, de moral tão escarpada.
E todo odemorado giro pelos Bravais o findaram, sem que Gonçalo desafogasse. O
crepúsculo descera, mole e quente, quando recolheram — conversando sobre a
pesca do sável noGuadiana.

Defronte
do portão da Torre, Videirinha esperava, dedilhando o violão na penumbra dos
álamos. Como a noite se conservava abafada, sem uma aragem, jantaramna varanda,
com dois candeeiros acesos. Logo ao desdobrar o guardanapo, o Titó, vermelho e
espraiado sobre a cadeira, declarou «que graças ao Senhor da Saúde, a sedeera
boa!» Ele e Gonçalo praticaram as usadas façanhas de garfo e de copo. Quando o
Bento serviu o café, uma imensa e lustrosa lua nova surgia, ao fundo da quinta
escura, por trás dos outeiros de Valverde. Gonçalo, enterrado numa cadeira de
vime, acendeu ocharuto com beatitude. Todos os tédios e incertezas dessas
semanas se despegavam da sua alma como cinza apagada, brevemente varrida. E foi
sentindo menos a doçura danoite, que um sabor melhor à vida desanuviada, que
exclamou:

— Pois,
senhores, agora, está uma delícia!… Videirinha, depois dum curto cigarro,
retomara o violão. Através da quinta,pedaços de muros caiados, algum trilho de
rua mais descoberto, a água do Tanque

Grande,
rebrilhavam ao luar que resvalava dos cerros; e a quietação do arvoredo,
daclaridade, da noite, penetravam na alma com adormecedora carícia. Titó e
Gonçalo soboreavam o famoso conhaque de Moscatel, preciosa antigualha da Torre,
silenciosamente enlevados no Videirinha — que recuara para o fundo da varanda,
seenvolvera em sombra. Nunca o bom cantador ferira as cordas com inspiração
mais enternecida. Até os campos, o céu inclinado, a lua cheia sobre as colinas,
escutavam osqueixumes do fado da Areosa. E no escuro, sob a varanda, o pigarro
da Rosa, os passos abafados dos criados, algum sumido riso de rapariga, o bater
das orelhas dum perdigueiro — eram como a presença dum povo suavemente atraído
pelo descanteformoso.

Assim a
noite se alongou, a Lua subiu com solitário fulgor. Titó, pesado dobródio,
adormecera. E como sempre, para findar, Videirinha atacou ardentemente o Fado
dos Ramires:

Quem te
verá sem que estremeça, Torre de Santa Ireneia, Assim tão negra e calada, Por
noites de lua cheia…

E lançou
então uma quadra nova, que trabalhara nessa semana com amor, sobre uma erudita
nota do bom Padre Soeiro. Era a glória magnífica de Paio Ramires, Mestredo
Templo — a quem o Papa Inocêncio, e a Rainha Branca de Castela, e todos os

Príncipes
da Cristandade suplicam que se arme, e corra em dura pressa, e liberte S. Luís
Rei de França, cativo nas terras do Egipto…

Que só em
Paio Ramires Põe agora o mundo a esperança… Que junte os seus cavaleiros E
que salve o Rei de França!

E por
este avô e -tal façanha até Gonçalo se interessou acompanhando o canto,num
trémulo esganiçado, de braço erguido:

Ai, que
junte os seus cavaleiros E que salve o Rei de França!…

Ao rolar mais
forte do coro, Titó descerrou as pálpebras, arrancou do canapé ocorpanzil
imenso — e declarou que marchava para Vila Clara: — Estou derreado! Sempre em
jornada e sem dormir, desde ontem às quatro damanhã que larguei de Cidadelhe…
Caramba, dava agora, como aquele rei grego, um cruzado por um burro!Então
Gonçalo, animado pelo conhaque, também se ergueu com uma resolução quase
alegre:

— Oh
Titó, antes de saíres, anda, cá dentro que quero falar contigo a respeito
dumcaso!

Agarrara
um dos candeeiros, penetrou na sala de jantar, onde errava o cheiro demagnólias
morrendo num vaso. E aí, sem preparação, com os olhos bem decididos, bem
cravados no Titó — que o seguira arrastadamente, ainda se espreguiçava:

— Oh.
Titó, ouve lá e sê franco. Tu ias muito à Feitosa… Que te parece aquela
D.Ana?

Titó, que
despertara como ao rebentar dum morteiro, considerou Gonçalo comassombro: — Ora
essa! Mas a que propósito?… Gonçalo atalhou, na pressa de colher rapidamente
uma certeza:- Olha! Eu para ti não tenho segredos. Nestas últimas semanas
houveram aí umas conversas, uns encontros… Enfim, para resumir, se daqui a
tempos eu pensasse em casarcom a D. Ana, creio que ela, por seu lado, não
recusava. Tu ias à Feitosa. Tu sabes…Que tal rapariga é ela?

Titó
cruzara os braços violentamente:- Pois tu vais casar com a D. Ana? — Homem, não
vou casar. Não sigo esta noite para a Igreja. Por ora quero sóinformações… E
de quem as posso ter, mais Francas e mais seguras, do que de ti, que és meu
amigo e que a conheces?

Titó não
descruzara os braços — levantando para o Fidalgo da Torre a face honestae
severa:

— Pois tu
pensas em casar com a D. Ana, tu, Gonçalo Mendes Ramires?…Gonçalo atirou um
gesto de impaciência e fartura: — Oh! se me vens com a fidalguia e com o Paio
Ramires… O Titó quase berrou, na sua indignação:- Qual fidalguia! É que um
homem de bem, como tu, não pensa em casar com uma criatura como ela!…
Fidalguia?… Sim! Mas fidalguia de alma e de coração!Gonçalo emudeceu,
trespassado. Depois, com uma serenidade a que se forçara, argumentou, deduziu:

— Bem! tu
então sabes outras coisas… Eu por mim sei que ela é bonita e rica; seitambém
que é séria, porque nunca sobre ela se rosnou nem aqui nem em Lisboa; são
qualidades para se casar com uma mulher… Tu agora afianças que se não pode
casarcom ela. Portanto sabes outras coisas… Diz.

Foi então
o Titó que emudeceu, imóvel diante do Fidalgo, como se o laço duma corda o
colhesse e o travasse. Por fim, soprando, com um esforço enorme:- Tu não me
chamaste para eu depor como testemunha… Em princípio, sem explicações,
perguntas se podes casar com essa mulher. E eu, sem explicações, emprincípio,
declaro que não… Que diabo queres mais?

Gonçalo
exclamou, revoltado: — Que quero? Pelo amor de Deus, Titó!… Supõe tu que
estou doidamenteapaixonado pela D. Ana, ou que tenho um interesse imenso em
casar com ela… Que não estou, nem tenho: mas supõe! Nesse caso não se desvia
um amigo dum acto em que eleestá tão fundamente empenhado, sem lhe apresentar
uma razão, uma prova…

Assim apertado,
Titó baixou a cabeça, que coçou com desespero. Depois acobardadamente, para
escapar, adiou a contenda:- Olha, Gonçalo, eu estou muito estafado. Tu não vais
a esta hora para a Igreja; e ela menos, que o outro marido ainda não arrefeceu
na cova. Então amanhãconversamos.

Atirou
duas passadas enormes, empurrou a porta da varanda, berrando pelo Videirinha:-
São que horas, Videira! Toca a abalar, que não dormi desde Cidadelhe.

Videirinha,
que preparava com esmero um grogue frio, esvaziouatabalhoadamente o copo,
recolheu o violão precioso. E Gonçalo não os deteve, esfregando silenciosamente
as mãos, amuado com aquela recusa do Titó tão desamiga e teimosa. Como sombras
atravessaram uma sala onde dormia, esquecida desde osRamires do século XVIII,
uma espineta de charão. No patamar da escada que conduzia à portinha verde,
Gonçalo, para os alumiar, erguera um castiçal. Titó acendeu umcigarro à vela. A
sua mão cabeluda tremia.

— Então,
entendido… Apareço amanhã, Gonçalo. — Quando quiseres, Titó.E no seco assentimento
do Fidalgo transparecia tanto despeito — que Titó hesitou nos estreitos degraus
que atulhava. Por fim desceu pesadamente.Videirinha, já na estrada, considerava
o céu, a luminosa serenidade:

— Que
linda noite, Sr. Doutor!

— Linda,
Videirinha… E obrigado. Você hoje tocou divinalmente.Gonçalo entrara na sala
dos retratos, ousara apenas o castiçal — quando, por baixo da varanda aberta, o
vozeirão do Titó retumbou:- Oh Gonçalo, desce cá abaixo.

O Fidalgo
rolou pelos degraus com sofreguidão. Para além dos álamos, no luar da estrada,
Videirinha afinava o violão. E apenas a face do Fidalgo surdiu na claridade
daporta, o Titó, que esperava com o chapéu para a nuca, desabafou:

— Oh
Gonçalo, tu ficaste amuado… É tolice! E entre nós não quero sombras. Entãolá
vai! Tu não podes casar com essa mulher, porque ela teve um amante. Não sei se
antes ou depois desse teve outro. Não há criatura mais manhosa, nem mais
disfarçada. Não me venhas agora com perguntas. Mas fica certo que ela teve um
amante. Sou euque to afirmo; e tu sabes que eu nunca minto!

Bruscamente
meteu à estrada, com os possantes ombros vergados. Gonçalo não semovera de
sobre os degraus de pedra, diante mudos álamos, como ele imóveis. Uma palavra
passara, irreparável, no macio silêncio da noite e da Lua — e eis o alto sonho
que construíra sobre a D. Ana e a sua beleza e os seus duzentos contos
despenhado no lodo!Lentamente subiu, repenetrou na sala. Por cima da chama alta
da vela, num painel fusco, uma face acordara, uma seca, amarelada face, de
altivos bigodes negros, queinclinava atenta como reparando. E longe, Videirinha
espalhava, pelos campos adormecidos, os ingénuos versos celebrando a tamanha da
Casa ilustre:

Que só em
Paio Ramires Põe agora o mundo esperança… Que junte os seus cavaleiros E que salve
o Rei de França!…

 

Capítulo X

 

Até noite
alta Gonçalo, passeando pelo quarto, remoeu a amarga certeza de quesempre,
através de toda a sua vida (quase desde o colégio de S. Fiel!), não cessara de
padecer humilhações. E todas lhe resultavam de intentos muito simples, tão
segurospara qualquer homem como o voo para qualquer ave — só para ele
constantemente rematados por dor, vergonha ou perda! A entrada da vida escolhe
com entusiasmo umconfidente, um irmão, que traz para a quieta intimidade da
Torre — e logo esse homem se apodera ligeiramente do coração de Gracinha e
ultrajosamente a abandona! Depois concebe o desejo tão corrente de penetrar na
vida política e logo o acaso o força a que serenda e se acolha à influência
desse mesmo homem, agora autoridade poderosa, por ele durante todos esses anos
de despeito tão detestada e chasqueada! Depois abre ao amigo,agora
restabelecido na sua convivência, a porta dos Cunhais, confiado na seriedade,
no rígido orgulho da irmã — e logo a irmã se abandona ao antigo enganador, sem
luta, na primeira tarde em que se encontra com ele na sombra favorável dum
caramanchão!Agora pensa em casar com uma mulher que lhe oferecia com uma grande
beleza uma grande fortuna — e imediatamente um companheiro de Vila Clara passa
e segreda: — «Amulher que escolheste, Gonçalinho, é uma marafona cheia de
amantes!» Decerto essa mulher não a amava com um amor nobre e forte! Mas
decidira acomodar nos formosos braços dela, muito confortavelmente, a sua sorte
insegura — e eis que logo desaba, comesmagadora pontualidade, a humilhação costumada.
Realmente o Destino malhava sobre ele com rancor desmedido!- E porquê? —
murmurava Gonçalo, despindo melancolicamente o casaco. — Em vida tão curta,
tanta decepção… Porquê? Pobre de mim!

Caiu no
vasto leito como numa sepultura — enterrou a face no travesseiro com umsuspiro,
um enternecido suspiro de piedade por aquela sua sorte tão contrariada, tão sem
socorro. E recordava o presunçoso verso do Videirinha, ainda nessa noite
proclamadoao violão:

Velha
casa de Ramires Honra e flor de Portugal!

Como a
flor murchara! Que mesquinha honra! E que contraste o do derradeiroGonçalo,
encolhido no seu buraco de Santa Ireneia, com esses grandes avós Ramires
cantados pelo Videirinha — todos eles, se a História e Lenda não mentiam, de
vidas tãotriunfais e sonoras! Não! nem sequer deles herdara a qualidade por
todos herdada através dos tempos — a valentia fácil. Seu pai ainda fora o bom
Ramires destemido -quena falada desordem da romaria da Riosa avançava com um
guarda -sol contra três clavinas engatilhadas. Mas ele… Ali, no segredo do
quarto apagado, bem o podia livremente gemer — ele nascera com a falha, a falha
de pior desdouro, essa irremediávelfraqueza da carne, que, irremediavelmente,
diante de um perigo, uma ameaça, uma sombra, o forçava a recuar, a fugir… A
fugir dum Casco, A fugir dum malandro desuiças loiras que, numa estrada e
depois numa venda o insulta sem motivo, para meramente ostentar pimponice e
arreganho. Ah, vergonhosa carne, tão espantadiça!

E a
alma… Nessa calada treva do quarto bem o podia reconhecer também,gemendo. A
mesma fraqueza lhe tolhia a alma! Era essa fraqueza que o abandonava a qualquer
influência, logo por ela levado como folha seca por qualquer sopro. Porque
aprima Maria uma tarde adoça os espertos olhos e lhe aconselha, por trás do
leque, que se interesse pela D. Ana — logo ele, fumegando de esperança, ergue
sobre o dinheiro e a beleza de D. Ana uma presunçosa torre de ventura e luxo. E
a eleição? essa desgraçadaeleição? Quem o empurrara para a eleição, e para a
reconciliação indecente com o e para os desgostos daí emanados? O Gouveia, só
com argúcias, murmuradas por cima docachené, desde a loja do Íamos até à
esquina do Correio! Mas quê! mesmo dentro da sua Torre era governado pelo
Bento, que superiormente lhe impunha gostos, dietas, passeios, e opiniões e
gravatas! — Homem de tal natureza, por mais bem dotado nainteligência, é massa
inerte a que o Mundo constantemente imprime formas várias e contrárias. O João
Gouveia fizera dele um candidato servil. O Manuel Duarte poderiafazer dele um
beberrão imundo. O Bento facilmente o levaria a atar ao pescoço, em vez duma
gravata de seda, uma coleira de couro! Que miséria! E todavia o Homem só vale
pela Vontade só no exercício da Vontade reside o gozo da Vida. Porque se a
Vontadebem exercida encontra em torno submissão — então é a delícia do domínio
sereno; se encontra em torno resistência então é a delícia maior da luta
interessante. Só não saigozo forte e viril da inércia que se deixa arrastar
mudamente, num silêncio e macieza de cera… Mas ele, ele, descendendo de
tantos varões famosos pelo Querer — não conservaria, escondida algures no seu
Ser, dormente e quente como uma brasa sobcinza, uma parcela dessa energia
hereditária?… Talvez! nunca, porém, nesse peco e encafuado viver de Santa
Ireneia, a fagulha despertaria, ressaltaria em chama intensa eútil. Não! pobre
dele! Mesmo nos movimentos da Alma onde todo o homem realiza a liberdade pura —
ele sofreria sempre a opressão da Sorte inimiga!

Com outro
suspiro mais se enterrou, se escondeu sob a roupa. Não adormecia, anoite
findava — já o relógio de charão, no corredor, batera cavamente as quatro
horas. E então, através das pálpebras cerradas, no confuso cansaço de tantas
tristezas revolvidas,Gonçalo percebeu, através da treva do quarto, destacando
palidamente da treva, faces lentas que passavam…

Eram
faces muito antigas, com desusadas barbas ancestrais, com cicatrizes deferozes
ferros, umas ainda flamejando como no fragor de uma batalha, outras sorrindo
majestosamente como na pompa duma gala — todas dilatadas pelo uso soberbo
demandar e vencer. E Gonçalo, espreitando por sobre a borda do lençol,
reconhecia nessas faces as verídicas feições de velhos Ramires, ou já assim
contempladas em denegridos retratos, ou por ele assim concebidas, como
concebera as de Tructesindo, emconcordância com a rijeza e esplendor dos seus
feitos.

Vagarosas,
mais vivas, elas cresciam de entre a sombra que latejava espessa ecomo povoada.
E agora os corpos emergiam também, robustíssimos corpos cobertos de saios de malha
ferrugenta apertados por arneses de aço lampejante, embuçados em fuscos mantos
de revoltas pregas, cingidos por faustosos gibões de brocado, ondecintilavam as
pedrarias de colares e cintos; — e armados todos, com as armas todas da

História,
desde a clava goda de raiz de roble eriçada de puas, até ao espadim de
sarauenlaçarotado de seda e ouro.

Sem
temor, erguido sobre o travesseiro, Gonçalo não duvidava da realidade
maravilhosa! Sim! eram os seus avós Ramires, os seus formidáveis avós
históricos, que,das suas tumbas dispersas corriam, se juntavam na velha casa de
Santa Ireneia nove vezes secular e formavam em torno do seu leito, do leito em
que ele nascera, como aAssembleia majestosa da sua raça ressurgida. E até mesmo
reconhecia alguns dos mais esforçados que, agora, com o repassar constante do
poemeto do tio Duarte e o Videirinha gemendo fielmente o seu «fado», lhe
andavam sempre na imaginação…Aquele além, com o brial branco a que a cruz
vermelha enchia o peitoral, era certamente Gutierres Ramires, o de Ultramar,
como quando corria da sua tenda para aescalada de Jerusalém. No outro, tão
velho e formoso, que estendia o braço, ele adivinhava Egas Ramires, negando
acolhida no seu puro solar a El-Rei D. Fernando e à adúltera Leonor! Esse, de
crespa barba ruiva, que cantava sacudindo o pendão real deCastela, quem, senão
Diogo Ramires, o Trovador, ainda na alegria da, radiosa manhã de Aljubarrota?
Diante da incerta claridade do espelho tremiam as fofas plumas escarlatesdo
morrião de Paio Ramires, que se armava para salvar S. Luís, Rei de França.

Levemente
balançado, como pelas ondas humildes dum mar vencido, Rui Ramires sorria às
naus inglesas que, ante a proa da sua capitânia, submissamente amainavam
porPortugal. E, encostado ao poste do leito, Paulo Ramires, pajem do guião de
El-Rei nos campos fatais de Alcácer, sem elmo, rota a clinava para ele a sua
face de donzel, com adoçura grave couraça, in dum avô enternecido…

Então,
por aquela ternura atenta do mais poético dos Ramires, Gonçalo sentiu que a sua
ascendência toda o amava — e da escuridão das tumbas dispersas acudira para
ovelar e socorrer na sua fraqueza. Com um longo gemido, arrojando a roupa,
desafogou, dolorosamente contou aos seus avós ressurgidos a arrenegada Sorte
que o combatia eque, sobre a sua vida, sem descanso, amontoava tristeza,
vergonha e perda! E eis que subitamente um ferro faiscou na treva, com um
abafado brado: — «Neto, doce neto, toma a minha lança nunca partida!…» E logo
o punho duma clara espada lhe roçou o peito,com outra grave voz que o animava:
— «Neto, doce neto, toma a espada pura que lidou em Ourique!…» E depois, uma
acha de coriscante gume bateu no travesseiro, ofertadacom altiva certeza: —
«Que não derribará essa acha, que derribou as portas de Arzila!…»

Como
sombras levadas num vento transcendente, todos os avós formidáveis perpassavam
— e arrebatadamente lhe estendiam as suas armas, rijas e provadas armas,todas,
através de toda a História, enobrecidas nas arrancadas contra a moirama, nos
trabalhados cercos de castelos e vilas, nas batalhas formosas com o
Castelhanosoberbo… Era, em torno do leito, um heróico reluzir e retinir de
ferros. E todos soberbamente gritavam: — «Oh neto, toma as nossas armas e vence
a Sorte inimiga!…» Mas Gonçalo, espalhando os olhos tristes pelas sombras
ondeantes, volveu: — «Oh avós,de que me servem as vossas armas — se me falta a
vossa alma?…»

Acordou,
muito cedo, com a enredada lembrança dum pesadelo em que falara amortos: — e,
sem a preguiça, que sempre o amolecia nos colchões, enfiou um roupão,
escancarou as vidraças. Que formosa manhã! uma manhã dos fins de Setembro,
macia, lustrosa e fina; nem uma nuvem lhe desmanchava o vasto, o imaculado
azul; e o sol jápousava nos arvoredos, nos outeiros distantes, com uma doçura
outonal. Mas, apesar de lhe respirar lentamente o brilho e a pureza, Gonçalo
permaneceu toldado de sombras,das sombras da véspera, retardadas no seu
espírito oprimido, como névoas em vale muito fundo. E foi ainda com um suspiro,
arrastando tristonhamente as chinelas, que puxou o cordão da campainha. O Bento
não tardou com a infusa da água quente para abarba. E acostumado ao alegre
acordar do Fidalgo, tanto estranhou aquele silencioso e enrugado mover pelo
quarto, que desejou saber se o Sr. Doutor passara mal a noite…- Pessimamente!

Bento
declarou logo, com vivacidade e reprovação — que certamente fizera mal ao Sr.
Doutor tanto conhaque de moscatel. Conhaque muito adocicado, muito
excitante…Bom para o Sr. D. António, homenzarrão pesado. Mas o Sr. Doutor,
assim nervoso, nunca devia tocar naquele conhaque. Ou então, meio cálice
escasso.Gonçalo ergueu a cabeça, na surpresa de encontrar logo ao começo do seu
dia e tão flagrante, aquele domínio que todos sobre ele se arrogavam — e de que
tanto se lastimava, através de toda a amarga noite! Eis aí o Bento mandando —
marcando a suaração de conhaque! E justamente o Bento insistia:

— O Sr.
Doutor bebeu mais de três cálices. Assim não convém… Eu também tive culpa em
não tirar a garrafa…Então, perante despotismo tão declarado, o Fidalgo da
Torre teve uma bruscarevolta:

— Homem,
não dês tantas leis. Bebo o conhaque que preciso e que quero!Ao mesmo tempo,
com a ponta dos dedos, experimentava a água na infusa: — Esta água está morna!
— exclamou logo. — já me tenho fartado de dizer! Para a barba, preciso sempre
água a ferver.O Bento, gravemente, mergulhou também o dedo na água:

— Pois
esta água está quase a ferver… Nem para a barba se necessita água maisquente.
Gonçalo encarou o Bento com furor. O quê! mais objecções, mais leis! — Pois vá
imediatamente buscar outra água! Quando eu peço água quente,pretendo que venha
em cachão. Irra! tanta sentença!… Eu não quero moral, quero obediência!O
Bento considerou Gonçalo através dum espanto que lhe inchara a face. Depois,
lentamente, com magoada dignidade, empurrou a porta, levando a infusa. E já
Gonçalo se arrependia da sua violência. Coitado, não era culpa do Bento se a
vida lhe andava aele tão estragada e sacudida! Depois, em casa tão antiga, não
destoava a tradição dos antigos aios. E o Bento com perfeito rigor lhes
reproduzia a rabugice e a lealdade! Masascendência, e livre falar bem lhe
cabiam — bem os merecia por tão longa, tão provada dedicação…

O Bento,
ainda vermelho e inchado, voltava com a infusa fumegante. E Gonçalologo
docemente, para o adoçar:

— Dia
muito bonito, hem, Bento?O velho rosnou, ainda amuado: — Muito bonito. Gonçalo
ensaboava a face, rapidamente, na impaciência de reatar com o Bento, delhe
restabelecer a supremacia amorável. E por fim mais doce, quase humilde:

— Pois se
achas o dia assim bonito, dou um passeio a cavalo antes de almoço. Quete
parece? Talvez me faça bem aos nervos… Com efeito, aquele conhaque não me
convém… Então, Bento, faz o favor, grita aí ao Joaquim que me tenha a égua
pronta imediatamente. Com certeza me acalma, uma galopada… E no banho agora a
água bemesperta, bem quente. Também me acalma a água quente. Por isso necessito
sempre água bem quente, a ferver. Mas tu, com essas tuas velhas ideias… Pois
todos os médicos odeclaram. Para a saúde água quente, bem quente, a sessenta
graus!

E depois
do rápido banho, enquanto se vestia, abriu mais familiarmente ao velho aio a
intimidade das suas tristezas:- Ah! Bento, Bento, o que eu verdadeiramente
precisava para me calmar, não era um passeio, era uma jornada… Trago a alma
muito carregada, homem! Depois estoufarto desta eterna Vila Clara, da eterna
Oliveira. Muito mexerico, muita deslealdade. Precisava terra grande, distracção
grande.

O Bento,
já reconciliado, enternecido, lembrou que o Sr. Doutor brevemente, emLisboa,
encontraria uma linda distracção, nas Cortes.

— Eu sei
lá se vou às Cortes, homem! Não sei nada, tudo falha… Qual Lisboa!… Oque eu
necessito é uma viagem imensa, à Hungria, à Rússia, a terras onde haja
aventuras.

O Bento
sorriu superiormente daquela imaginação. E apresentando ao Fidalgo ojaquetão de
velvetina cinzenta: — Com efeito, na Rússia, parece que não faltam aventuras.
Anda tudo a chicote,diz o Século… Mas aventuras, Sr. Doutor, até a gente as
encontra na estrada… Olhe! opaizinho de V. Ex-a, que Deus haja, foi lá em
baixo diante do portão que teve a bulha com o Dr. Avelino Riosa, e que lhe
atirou a chicotada, e que levou com o punhal nobraço…

Gonçalo
calçava as luvas de anta, mirando o espelho:- Pobre papá, coitado, também teve
pouca sorte… E por chicote, 6 Bento, dá cá aquele chicote de cavalo-marinho
que tu ontem areaste. Parece que é uma boa arma.

Ao sair o
portão, o Fidalgo da Torre meteu a égua, sem destino, num passoindolente, pela
estrada costumada dos Bravais. Mas no Casal Novo, onde dois pequenos jogavam à
bola debaixo das carvalheiras, pensou em visitar o Visconde de Rio
Manso.Certamente lhe consertaria os nervos a companhia de tão sereno e generoso
velho. E, se ele o convidasse a almoçar, gastaria os seus cuidados visitando
essa falada quinta da Varandinha e cortejando «o botão de Rosa».Gonçalo
recordava apenas confusamente que o terraço da Varandinha dominava uma estrada
plantada de choupos, algures, entre o lugar da Cerda e a espalhada aldeia
deCanta Pedra. E tomou o caminho velho que desce das carvalheiras do Casal
Novo, e penetra no vale, entre o cabeço de Avelã e as ruínas do mosteiro de
Ribadais, no solo histórico onde Lopo de Baião derrotara a mesnada de Lourenço
Ramires… Oraenterrada entre valados, ora entre toscos muros de pedra solta, a
vereda seguia sem beleza, e cansativa; mas as madressilvas nas sebes, por entre
as amoras maduras,rescendiam; o fresco silêncio recebia mais frescura e graça
dos frémitos de asa que o roçavam; e tanto era o radiante azul nos céus
serenos, que um pouco do seu rebrilho e serenidade se instilava na alma.
Gonçalo, mais desanuviado, não se apressava; na igrejados Bravais, quando ele
passara ao Casal Novo, batiam apenas as nove horas; e depois de costear um
lameiro de erva magra parou a acender pachorrentamente um charuto,rente da
velha ponte de pedra que galga o riacho das Donas. Quase seca pela estiagem, a
água escura mal corria, sob as folhas largas dos nenúfares, por entre os
juncais que a atulhavam. Adiante, à orla dum ervaçal, no abrigo duma moita de
álamos, reluziam aspedras dum lavadouro. Na outra margem, dentro dum velho bote
encalhado, um rapazito, uma rapariguinha conversavam profundamente, com dois
molhos de alfazemaesquecidos nos regaços. Gonçalo sorriu do idílio — depois
teve uma surpresa descobrindo, no cunhal da ponte, rudemente entalhado, o seu
Brasão de Armas, um açor enorme, que alargava as garras ferozes. Talvez aquelas
terras outrora pertencessem àCasa; — ou algum dos seus avós benéficos
construíra a ponte, sobre torrente então mais funda, para segurança dos homens
e dos gados. Quem sabe se o avô Tructesindo, emmemória piedosa de Lourenço
Ramires, vencido e cativo nas margens daquela Ribeira!

O
caminho, para além da ponte, alteava entre campos ceifados. As medas
lourejavam, pesadas e cheias, por aquele ano de fartura. Ao longe, dos telhados
baixosdum lugarejo, vagarosos fumos subiam, logo desfeitos no radiante céu. E
lentamente, como aqueles fumos distantes, Gonçalo sentia que todas as suas
melancolias lheescapavam da alma, se perdiam também no azul lustroso… Uma
revoada de perdizes ergueu voo de entre o restolho. Gonçalo galopou sobre elas,
gritando, sacudindo o seu forte chicote de cavalo-marinho, que zunia como uma
fina lâmina.Em breve o caminho torceu, costeando um souto de sobreiros, depois
cavado entre silvados com largos pedregulhos aflorando na poeira; — e ao fundo
o sol faiscava sobre acal fresca duma parede. Era uma casa térrea, com porta
baixa entre duas janelas envidraçadas, remendos novos no telhado e um quinteiro
que uma escura e imensa figueira assombreava. Numa esquina pegava um muro baixo
de pedra solta, continuadopor uma sebe, onde adiante uma velha cancela abria
para a sombra duma ramada.

Defronte,
no vasto terreiro que se alargava, jaziam cantarias, uma pilha de
traves;passava uma estrada, lisa e cuidada, que pareceu a Gonçalo a de Ramilde.
Para além até a um distante pinheiral, desciam chás e lameiros.

Sentado
num banco, junto da porta, com uma espingarda encostada ao muro, umrapaz
grosso, de barrete de lã verde, acariciava pensativamente o focinho dum
perdigueiro. Gonçalo parou:- Tem a bondade… Sabe por acaso qual é o bom
caminho para a quinta do Sr. Visconde de Rio Manso, a Varandinha?

O
rapazote ergueu a face morena, de buço leve, remexendo vagamente nocarapuço.

— Para a
quinta do Rio Manso… siga pela estrada até à pedreira, depois à esquerdaa
seguir, sempre rente da várzea… Mas nesse instante assomava à porta um
latagão de suíças loiras, em mangas de camisa, a cinta enfaixada em seda. E
Gonçalo, com um sobressalto, reconheceu logo ocaçador que o injuriara na
estrada de Nacejas, o assobiara na venda do Pintainho. O homem relanceou
superiormente o Fidalgo. Depois, com a mão encostada à ombreira,chasqueou o
rapazote:

— Oh
Manuel, que estás tu aí a ensinar o caminho, homem! Este caminho por aqui não é
para asnos!Gonçalo sentiu a palidez que o cobriu — e todo o sangue do coração,
num tumulto confuso, que era de medo e de raiva. Um novo ultraje, do mesmo
homem, semprovocação! Apertou os joelhos no selim para galopar. E a tremer, num
esforço que o engasgava:

— Você é
muito atrevido! E já pela terceira vez! Eu não sou homem para levantardesordens
numa estrada… Mas fique certo que o conheço, e que não escapa sem lição…

Imediatamente,
o outro agarrou um cajado curto e saltou à estrada, afrontando aégua, com as
suíças erguidas, um riso de imenso desafio: — Então cá estou! Venha agora a
lição… E para diante é que você já não passa, seu Ramires de merd…Uma névoa
turvou os olhos esgazeados do Fidalgo. E de repente, num inconsciente arranque,
como levado por uma furiosa rajada de orgulho e força, que sedesencadeava do
fundo do seu ser, gritou, atirou a fina égua num galão terrível! E nem
compreendeu! O cajado sarilhara! A égua empinava, numa cabeçada furiosa! E
Gonçalo entreviu a mão do homem, escura, imensa, que empolgava a camba do
freio.Então, erguido nos estribos, por sobre a imensa mão, despediu uma
vergastada do chicote silvante de cavalo-marinho, colhendo o latagão na face,
de lado, num golpe tãovivo da aresta aguda, que a orelha pendeu despegada, num
borbotar de sangue. Com um berro o homem recuou, cambaleando. Gonçalo galgou
sobre ele, noutro arremesso, com outra fulgurante chicotada, que o apanhou pela
boca, lhe rasgou a boca, decerto lheespedaçou dentes, o atirou, urrando, para o
chão.. As patas da égua machucavam as grossas coxas estendidas — e, debruçado,
Gonçalo ainda vergastou, cortoudesesperadamente face, pescoço, até que o corpo
jazeu mole e como morto, com jorros de sangue escuro ensopando a camisa.

Um tiro
atroou o terreiro! E Gonçalo, com um salto no selim, avistou o rapazotemoreno
ainda com a espingarda erguida, a fumegar, mas já hesitando aterrado.

— Ah,
cão!Lançou a égua, com o chicote alto: o rapaz, espavorido, corria lestamente
através do terreiro, para saltar o valado, escapar para as várzeas ceifadas!

— Ah cão,
ah cão — berrava Gonçalo.Estonteado, o rapaz tropeçara numa viga solta. Mas já
se endireitava, quando o

Fidalgo o
alcançou com uma cutilada do chicote no pescoço, logo alagado de
sangue.Estendeu as mãos incertas, ainda cambaleou, abateu, estalou contra a
aresta dum pilar, a cabeça mais sangue jorrou. Então Gonçalo, a arquejar,
deteve a égua. Ambos os homens jaziam imóveis! Santo Deus! Mortos? De ambos
corria o sangue sobre a terra seca. OFidalgo da Torre sentia uma alegria
brutal. Mas um grito espantado soou do lado do quinteiro.- Ai que mataram o meu
rapaz!

Era um
velho que corria da cancela, numa carreira agachada, rente com a sebe, para a
porta da casa. Tão certeiramente o Fidalgo arremessou a égua, para o deter —
queo velho esbarrou contra o peitoril, que arfava coberto de suor e de espuma.
E ante o inquieto animal escarvando, e Gonçalo alçado nos estribos, com a face
chamejante, ochicote a descer — o velho, num terror, desabou sobre os joelhos,
gritou ansiadamente:

— Ai, não
me faça mal, meu Fidalgo, por alma de seu pai Ramires. Gonçalo ainda o manteve
assim um momento, suplicante, a tremer, sob ojusticeiro faiscar dos seus olhos:
— e gozava soberbamente aquelas calosas mãos que se erguiam para a sua
misericórdia, invocavam o nome de Ramires, de novo temido,repossuído do seu
prestígio heróico. Depois, recuando a égua:

— Esse
malandro do rapazola desfechou a caçadeira!… Você também não tem boa cara!
Que ia você correndo para casa? Buscar outra espingarda?O velho alargou
desesperadamente os braços, oferecia o peito, em testemunho da sua verdade:- Oh
meu Fidalgo, não tenho em casa nem um cajado!… Assim Deus me ajude e me salve
o rapaz!

Mas
Gonçalo desconfiava. Quando descesse agora pela estrada de Ramilde, bempoderia
o velho correr ao casebre, agarrar outra caçadeira, desfechar traiçoeiramente.
E então, com a presteza de espírito que a luta afiara concebeu, contra qualquer
emboscada,um ardil seguro. E até num relance sorriu recordando «traças de
guerra», de D. Garcia Viegas, o Sabedor.

— Marche
lá diante de mim, sempre a direito, pela estrada!O velho tardou, sem se erguer,
aterrado. E batia com as grossas mãos nas coxas, numa ânsia que o engasgava:-
Oh meu Fidalgo, oh meu Fidalgo! mas deixar assim o rapaz sem acordo?…

— O rapaz
está só atordoado, já se mexeu… E o outro malandro também… Marche você! E
ao irresistível mando de Gonçalo, o velho, depois de sacudir demoradamente as
joelheiras, começou a avançar pela estrada, vergado diante da égua, como um
cativo,com os longos braços a bambolear, rosnando, num rouco assombro: — Ai
como elas se armam! Ai Santo nome de Deus, que desgraça! A espaços estacava,
esgazeando para Gonçalo um olhar torvo onde negrejava medo e ódio… Mas logo o
comando forte oempurrava: «Marche!…» E marchava. Adiante, onde se erguia um
cruzeiro em memória do Abade Paguim, assassinado, Gonçalo reconheceu um largo
atalho para a estrada dosBravais, que chamavam o Caminho da Moleira. E para aí
enfiou o velho, que nó pavordaquela azinhaga solitária, pensando que Gonçalo o
afastava de caminhos trilhados para o matar comodamente, rompeu a gemer: «Ai
que isto é o fim da minha vida! Ai NossaSenhora, que é o fim da minha vida!» E
não cessou de gemer, emaranhando os passos trôpegos, até que desembocaram na
estrada alta entre taludes escarpados, revestidos degiesta brava. Então de
repente, com outro terror, o homem bruscamente revirou, atirando as mãos ao
barrete:

— Oh meu
senhor, o Fidalgo não me leva preso?…- Marche! Corra! Que, agora a égua
trota!

A égua
trotou — o velho correu, desengonçado, arquejando como um fole de forja.Uma
milha galgada, Gonçalo parou, farto do cativo, da lenta marcha. De resto antes
que o homem agora corresse a casa, e agarrasse uma arma, e virasse para o
alcançar, se desforrar — entraria ele, num galope solto, o portão da Torre!
Então bradou, com osobrolho duro:

— Alto!
Agora pode voltar para trás… Mas, antes: Como se chama aquele seulugar? — A
Grainha, meu Fidalgo. — E você como se chama, e o rapaz?O velho, com a boca
aberta, esperou, hesitou:

— Eu sou
João, o meu rapaz Manuel… Manuel Domingues, meu Fidalgo.- Você naturalmente
mente. E o outro malandro, de suíças loiras) Dum fôlego o velho gritou: — Esse
é o Ernesto de Nacejas, o valentão de Nacejas, que chamam oCaça-abraços, e que
tanto me desencaminhou o rapaz…

— Bem!
Pois diga lá a esses dois marotos que me atacaram a pau e a tiro, que nãoficam
quites somente com a sova, e que agora têm de se entender com a justiça… Ela
lá irá! Largue!

Do meio
da estrada, Gonçalo ainda vigiou o velho que abalara, forçando aspassadas
derreadas, limpando o suor que lhe pingava. Depois, pela conhecida estrada,
galopou para a Torre.E ia levado, galopando numa alegria tão fumegante, que o
lançava em sonho e devaneio. Era como a sensação sublime de galopar pelas
alturas, num corcel de lenda, crescido magnificamente, roçando as nuvens
lustrosas… E por baixo, nas cidades, oshomens reconheciam nele um verdadeiro
Ramires, dos antigos na História, dos que derrubavam torres, dos que mudavam a
configuração dos Reinos — e erguiam essemaravilhado murmúrio que é o sulco dos
fortes passando! Com razão! com razão! Que ainda de manhã, ao sair da Torre,
não ousaria marchar para um rapazola decidido que brandisse um varapau… E
depois, de repente, na solidão daquela casa térrea, quando obruto das suíças
louras lhe atira a suja injúria — eis um não sei quê que se desprende dentro do
seu ser, e trasborda, e lhe enche cada veia de sangue ardido, e lhe enrija
cadanervo de força destra, e lhe espalha na pele o desprezo e a dor, e lhe
repassa fundamente a alma de fortaleza indomável… E agora ali voltava, como
um varão novo, soberbamente virilizado, liberto enfim da sombra que tão
dolorosamente assombreara asua vida, a sombra mole e torpe do seu medo! Porque
sentia que, agora, se todos os valentões de Nacejas o afrontassem num rijo
erguer de cajados — esse não sei quê, ládentro, no seu ser, de novo se
soltaria, e o arremessaria, com cada veia inchada, cada nervo retesado, para o
delicioso fragor da briga! Enfim era um homem! Quando em Vila Clara o Manuel
Duarte, o Titó com o peito alto, contassem façanhas, já ele não
enrolariaencolhidamente o cigarro — encolhido, mudo, não somente pela ausência
desconsoladora das valentias, mas sobretudo pela humilhante recordação das
fraquezas. E galopava,galopava apertando furiosamente o cabo do chicote, como
para investidas mais belas. Para além dos Bravais, mais galopou, ao avistar a
Torre. E singularmente lhe pareceu, de repente, que a sua Torre era agora mais
sua, e que uma afinidade nova, fundada emglória e força, o tornava mais senhor
da sua Torre!

Como para
acolher Gonçalo mais dignamente, o portão grande, sempre cerrado,oferecia uma
entrada triunfal com os dois pesados batentes escancarados. Ele atirou a égua
para o meio do pátio, bradando- Oh Joaquim! Oh Manuel! Eh lá! um de vocês!

O Joaquim
surdiu da cavalariça, de mangas arregaçadas, com uma esponja namão.

— Oh
Joaquim, depressa! Aparelha o Rocilho, corre a um sítio na estrada deRamilde, a
que chamam a Grainha… Tive agora lá uma grande desordem! Creio que dei cabo
de dois homens… Ficaram numa poça de sangue! Não digas que vais da Torre,
quete podem atacar! Mas sabe o que sucedeu, se estão mortos!… Depressa,
depressa!

O Joaquim,
estonteado, remergulhou na cavalariça escura. E de cima duma das varandas do
corredor, partiram exclamações assombradas:- Oh Gonçalo, o que foi?! Santo
Deus! o que foi?!

Era o
Barrolo. Sem desmontar, sem surpresa ante a aparição do Barrolo, Gonçaloatirou
logo para a varanda a história da bulha, tumultuosamente. Um malandro que o
insultara… Depois outro, que desfechou a caçadeira… E ambos derribados sob
as patas da égua numa poça de sangue…O Barrolo despegou da varanda — e noutro
relance, investia pelo pátio, com os curtos braços a boiar, enfiado. Mas então?
mas então?… E Gonçalo, desmontando.-trémulo agora do cansaço e da emoção,
esmiuçou mais lances… Na estrada de Ramilde! Um valentão que o injuriou! A
esse rasgara a boca, decepara a orelha… Depois o outro, um rapazola, desfecha
uma carabina… Ele corre, tão vivamente o colhe com umacutilada que o estira,
para cima duma pedra, como morto…

— Uma
cutilada?- Com este chicote, Barrolo! Arma terrível!… Bem dizia o Titó!…
Estou perdido se não levo este chicote.

Esgazeado,
Barrolo remirava o chicote. Sim, com efeito, ainda manchado desangue. — Então
Gonçalo atentou no chicote, no sangue… Sangue de gente! sangue fresco, que
ele arrancara!… E por entre o seu orgulho, uma piedade passou que
oempalideceu:

— Que
desgraça, vejam que desgraça! Esquadrinhou vivamente o fato, as botas, no
horror de nódoas de sangue, que osalpicassem. Sim, santo Deus! sangue na
polaina!… E imediatamente ansiou por se despir, se lavar — galgou a escada,
com o Barrolo que enxugava o suor, balbuciava: -«Ora uma dessas! E de repente!
Assim na estrada!…» Mas no corredor, subindo numa carreira da cozinha,
apareceu Gracinha, pálida, com a Rosa atrás, que enterrava os dedos entre o
lenço e o cabelo num pavor mudo.- Que foi, Gonçalo? Jesus, que foi?!

Então,
encontrando Gracinha junto dele, na Torre, nesse momento magnífico doseu
orgulho, depois de tão rijo perigo vencido, Gonçalo esqueceu o André, o
mirante, as sombrias humilhações, e no abraço em que a colheu, nos fortes
beijos que atirou à face querida, todo o seu amor se fundiu em ternura. Com ela
ainda chegada ao coração,suspirou de leve, como uma criança cansada. Depois,
apertando as duas pobres mãos trémulas, com um lento, enternecido sorriso,
enquanto os olhos se lhe humedeciam deconfusa emoção, de confusa alegria:

— Pois
foi o diabo, filha! Uma desordem horrível, eu que sou tão pacato! imagina tu…
E pelo corredor recomeçou para Gracinha, que arfava, e para a Rosa,
estarrecida, a história do encontro, e o sujo ultraje, o tiro que falhara, e os
malandros lacerados achicote, e o velho marchando como um cativo, a gemer pela
estrada de Ramilde. Apertando o peito, num desmaio, Gracinha murmurou:

— Ai,
Gonçalo! E se um dos homens estivesse morto!O Barrolo, mais vermelho que uma
peónia, berrou logo que tais malandros mereciam ricamente a morte! E mesmo
feridos, ainda necessitavam castigo tremendo deÁfrica! O Gouveia! era
necessário mandar a Vila Clara, avisar o Gouveia!… Mas largas passadas ávidas
abalaram o soalho — e foi o Bento, que se ergueu diante de Gonçalo,bracejando
numa ânsia:

— Então,
Sr. Doutor?… Diz que uma grande desordem?…E à porta do escritório, onde
todos pararam, novamente atentos, a história recomeçou, especialmente para o
Bento, que a bebia, num lento riso de gosto, crescendo, inchando com os
olhinhos húmidos a reluzir, como se também triunfasse.Por fim, triunfou com
estrondo:

— Foi o
chicote, Sr. Doutor! O que serviu ao Sr. Doutor, foi o chicote que eu lhedei!
Era verdade. E Gonçalo, comovido, abraçou o velho aio, que numa excitação,
gritava para a Rosa, para Gracinha, para o Barrolo:- O Sr. Doutor deu cabo
deles!… Aquele chicote mata um homem!… Os malvados estão mortos!… E foi o
chicote! Foi o chicote que eu dei ao Sr. Doutor!Mas Gonçalo reclamava água
quente para se lavar da poeira, do suor, do sangue… E o Bento correu,
berrando ainda pelo corredor! depois pelas escadas da cozinha — «que fora o
chicote! o chicote, que ele dera ao Sr. Doutor!» Gonçalo entrara no
quarto,acompanhado pelo Barrolo. E pousou o chapéu sobre o mármore da cómoda,
com um imenso ah consolado! Era o consolo imenso de se encontrar, depois de tão
violentamanhã, entre as doces coisas costumadas, pisando o seu velho tapete
azul, roçando o leito de pau-preto em que nascera, respirando pelas vidraças
abertas, onde as ramagens familiares das faias se empurravam na aragem para o
saudar. Com que gosto se acercoudo espelho de colunas douradas, se mirou e se
remirou, como a um Gonçalo novo e tão melhorado, que nos ombros reconhecia mais
largueza, e até no bigode um arquear maiscrespo.

E foi ao
arredar do espelho, topando com o Barrolo, que subitamente despertou numa
curiosidade imensa:- Mas, oh Barrolo, como é que vos encontro esta manhã na
Torre?

Resolução
da véspera, ao chá. Gonçalo não aparecia, não escrevia… Gracinha amatutar,
inquieta. Ele também espantado daquele sumiço depois do cesto dos pêssegos. De
modo que ao chá, pensando também que a parelha necessitava uma trotada,
lembrara a Gracinha: — Vamos nós amanhã à Torre? no faeton?»- Além disso
precisava falar contigo, Gonçalo… Tenho andado aborrecido.

O Fidalgo
juntou duas almofadas no divã, onde se enterrou:- Como aborrecido?…
Aborrecido porquê?… Barrolo, com as mãos nos bolsos da rabona de flanela, que
lhe cingia as ancas gordas, considerou as flores do tapete, melancolicamente:-
É uma grande seca! A gente não pode confiar em ninguém… Nem ter
familiaridades!…Num lampejo Gonçalo imaginou o Cavaleiro e Gracinha mostrando
estouvadamente nos Cunhais, como outrora entre os arvoredos da Torre, o
sentimento que os dominava. E pressentiu um desabafo, alguma queixa triste do
pobre Barrolo,amargurado por suspeitas, talvez por intimidades que espreitara.
Mas a emoção suprema da sua batalha, sumira para uma sombra inferior os cuidados
que, ainda na véspera, ooprimiam: todas as dificuldades da vida lhe apareciam
agora, de repente, naquele frescor da sua coragem nova, tão fáceis de abater
como os desafios dos valentões; e não se assustou com as confidências do
cunhado, bem seguro de impor àquela almasubmissa de bacoco a confiança e a
quietação. Até sorriu, com indolência:

— Então,
Barrolinho? Sucedeu alguma peripécia?- Recebi uma carta. — Ah!

Gravemente
Barrolo desabotoou o jaquetão, puxou do bolso interior uma largacarteira, de
couro verde e lustroso, com monograma de ouro. E foi a carteira que ele mostrou
a Gonçalo, com satisfação.- Bonita, hem? Presente do André, coitado… Creio
que até a mandou vir de Paris. O monograma tem muito chique.

Gonçalo
esperava, espantado. Enfim o bom Barrolo tirou da carteira uma carta -já
amarrotada, depois alisada. Era, num papel pautado, uma letra miudinha que o
Fidalgo apenas relanceou, declarando logo com segurança:- É das Lousadas.

E leu,
vagarosamente, serena mente, com o cotovelo enterrado na almofada: «Ex.mo Sr.
José Barrolo. «V. Ex. -a apesar de todos os seus amigos o alcunharem de Zé
bacoco, mostrou agora muita esperteza, chamando de novo para a sua intimidade e
de sua digna esposa o gentil André Cavaleiro, nosso Governador Civil. Com
efeito a esposa de V. Ex-a, a linda Gracinha, que nestes últimos tempos andava
tão murcha e até desbotada (o que a todos nos inquietava), imediatamente
refloriu, e ganhou cores, desde que possui a valiosa companhia da primeira
autoridade do distrito. Portou -se pois V. Ex. a como marido zeloso, e desejoso
da felicidade e boa saúde de sua interessante esposa. Nem parece rasgo daquele
que toda a Oliveira considera como o seu mais ilustre pateta! Os nossos
sinceros parabéns!»

Gonçalo
guardou muito sossegadamente na algibeira aquela carta que, dias antes,o
lançaria em infinita amargura e fúria: — É das Lousadas… E tu deste
importância a semelhante baboseira?O Barrolo repontou, com as bochechas
abrasadas: — Se te parece! Sempre embirrei com bilhetinhos anónimos… E depois
essainsolência a respeito dos amigos me chamarem Bacoco… Grande infâmia, hem?
Tuacreditas?… Eu não acredito! mas lança cizânia entre mim e os rapazes…
Nem voltei ao

Clube…-
Bacoco! Porquê? Porque eu sou simples, sempre franco, disposto a arranchar…
Não! se os rapazes no Clube me chamam bacoco pelas costas, caramba,
mostramingratidão! Mas eu não acredito!

Rebolou
pelo quarto, desconsoladamente, as mãos cruzadas sobre as gordas nádegas.
Depois, estacando diante do divã, de onde Gonçalo o considerava, compiedade:


Enquanto ao resto da carta é tão estúpido, tão atrapalhado, que a princípio
nemcompreendi. Agora percebo… Querem dizer que a Gracinha e o Cavaleiro têm
namoro… É o que me parece que querem dizer! Ora vê tu que disparate! Até a
intimidade do Cavaleiro é mentira. O pobre rapaz, desde que lá jantou, só
apareceu três ou quatrovezes, à noite, para a manilha, com o Mendonça… E
agora abalou para Lisboa.

Então o
Fidalgo pulou, de surpresa.- O quê! o Cavaleiro foi para Lisboa? — Pois partiu
há três dias! — Com demora?- Com demora, com grande demora… Só volta no meado
de Outubro para a eleição.- Ah!

 Mas o Bento rompeu pelo quarto, com o jarro de
água quente, duas toalhas derendas, ainda numa excitação que o azafamava.
Diante do espelho, lentamente, o Barrolo reabotoava o jaquetão:- Bem, até logo,
Gonçalinho. Eu desço à cavalariça, visitar a parelha. Não imaginas! desde
Oliveira, sem descanso, numa trotada esplêndida. E nem um pêlo suado! Tu
guardas a carta?…- Guardo, para estudar a letra.

Apenas
Barrolo cerrara a porta — o Fidalgo recomeçou com o Bento a deliciosahistória
da briga, revivendo as surpresas e os rasgos, simulando os arremessos da égua,
arrebatando o chicote para representar as cutiladas silvantes, que arrancavam
febra e sangue… E de repente, em ceroulas:- Oh Bento, traz o meu chapéu…
Estou desconfiado que a bala roçou pelo chapéu.

Ambos
remiraram, esquadrinharam o chapéu. O Bento, no seu encarecimento dafaçanha,
achava a copa amolgada — até chamuscada. — A bala passou de raspão, Sr. Doutor!
O Fidalgo negou, com a modéstia grave dum forte:- Não! Nem de raspão!… Quando
o malandro desfechou já o braço lhe tremia…

Devemos
agradecer a Deus, Bento. Mas eu realmente não corri grande perigo!Depois de
vestido, Gonçalo, passeando no quarto, releu a carta. Sim, era certamente das
Lousadas. Mas agora essa maledicência, soprada com tão sórdida maldade sobre as
pobres bochechas do Barrolo, não causava dano — antes servia,
quasebeneficamente, como a brasa dum ferro, para sarar um dano. O pobre Barrolo
apenas se impressionara com a revelação da sua bacoquice, essa ingrata alcunha
posta pelosrapazes amigos, em galhofas ingratas do Clube e debaixo dos arcos. A
outra insinuação terrível, Gracinha reverdecendo ao calor amoroso do Cavaleiro,
essa mal a compreendera, escassamente a atendera num desdém distraído e
cândido. Mas a cartaque assim silvava por sobre o bom Barrolo, como flecha
errada — acertava em Gracinha, feriria Gracinha no seu orgulho, no seu
impressionável pudor, mostrando à pobre tontacomo o seu :,nome e mesmo o seu
coração, já arrastavam enxovalhadamente, pela rasteira mexeriquice das
Lousadas!… Certeza tão humilhadora não apagaria um sentimento — que se não
apagava com humilhações mais íntimas, tanto mais dolorosas.Mas estimularia a
sua reserva e o seu desconfiado recato; — e agora que André se afastara para
Lisboa, operaria nela, surdamente, solitariamente, sem que a presençatentadora
lhe desmanchasse a influência sossegadora e salutar. Assim o torpe papel
aproveitava a Gracinha, como um aviso temeroso pregado na parede. E
rancorosamente preparada pelas duas fêmeas, para desencadear nos Cunhais
escândalo e dor — talvezrestabelecesse, na ameaçada casa, quietação e
gravidade. — Gonçalo esfregou as mãos pensando — que em tão ditosa manhã talvez
esse mal redundasse em bem!- Oh Bento, onde está a Srª D. Graça?

— A
menina subiu agora há pouco para o seu quarto, Sr. Doutor. Era o seu quarto de
solteira, claro e fresco sobre o pomar, onde ainda seconservava o seu leito de
linda madeira embutida, um toucador ilustre que pertencera à

Rainha D.
Maria Francisca de Sabóia, e o sofá, as cadeiras de casimira clara em
queGracinha bordara, num arrastado labor de anos, o açor negro dos Ramires. E
sempre que voltava à Torre, Gracinha gostava de reviver, no seu quarto, as
horas de solteira, remexendo as gavetas, folheando velhos romances ingleses na
estantezinha envidraçada,ou simplesmente da varanda contemplando a querida
quinta estendida até aos outeiros de Valverde, a verde quinta, tão misturada à
sua vida, que cada árvore lhe sussurrava,cada recanto de verdura era como um
recanto do seu pensamento.

Gonçalo
subiu — bateu à porta cerrada com o antigo aviso: «Licença para omano!» Ela
correu da varanda, onde regava, nos seus antigos vasos vidrados, plantas sempre
renovadas e cuidadas pela Rosa com carinho. E desabafando logo dopensamento que
a enchia:

— Oh
Gonçalo! mas que felicidade nós virmos à Torre, justamente hoje, que te sucedeu
coisa tamanha!- É verdade, Gracinha, grande sorte! E não me admirei nada de te
ver… Era como se ainda vivesses na Torre e te encontrasse no corredor. ..
Quem estranhei foi o Barrolo!E no primeiro momento depois de desmontar, pensava
assim, vagamente: «mas que diabo faz aqui o Barrolo? como diabo se acha aqui o
Barrolo?…» Curioso, hem? Foi talvez que, depois da desordem, me senti
remoçado, com um sangue novo, e me julgueino tempo em que desejávamos uma
guerra em Portugal, e nós cercados na Torre, sob o nosso pendão, o nosso terço
atirando bombardas aos Espanhóis…Ela ria, lembrada dessas imaginações
heróicas. E com o vestido entalado entre os joelhos, recomeçou a lenta rega dos
seus vasos enquanto Gonçalo, encostado à varanda, considerando a Torre, era
retomado pela ideia duma concordância mais íntima, quedesde essa manhã se
estabelecera entre ele e aquele heróico resto da Honra de Santa

Ireneia,
como se a sua força, tanto tempo quebrada, se soldasse enfim firmemente àforça
secular da sua raça.

— Oh
Gonçalo i tu deves estar muito cansado! Depois dessa verdadeira batalha… —
Não, cansado não… Mas com fome. Com fome, e com uma sede esplêndida!Ela
pousou logo o regador, sacudindo as mãos alegremente:

— Pois o
almoço não tarda!… já andei a trabalhar na cozinha, com a Rosa, numapescada à
espanhola… É uma receita nova do Barão das Marges. — Então ensossa, como ele.
— Não! até picante: foi o Sr. Vigário -Geral que lha ensinou.E como, diante do
toucador da Rainha Maria Francisca, ela arranjava a pressa os ganchos do
cabelo, para aproveitar a solidão favorável, apressou, com um esforço,
aconfidência que o comovia:

— E em
Oliveira? Lá por Oliveira? — Em Oliveira, nada… Muito calor!Gonçalo, movendo
os dedos lentos pela moldura do espelho, fino entrelaçamento de açucenas e
louros, murmurou:- Eu sei apenas das Lousadas, das tuas amigas Lousadas.
Continuam em plena actividade…

Gracinha
negou candidamente:- As Lousadas? Não! Nem têm aparecido.

— Mas têm
tecido!E como os verdes olhos de Gracinha se alargaram, sem compreender,
Gonçalo arrancou vivamente da algibeira a carta que guardara, que, agora, lhe
pesava como uma chapa de ferro:- Olha, Gracinha! Mais vale desabafarmos! Aí
tens o que elas há dias escreveram a teu marido…Num relance, Gracinha devorou
as linhas terríveis. E com ondas de sangue nas faces, apertando as mãos numa
aflição, um desespero, em que o papel amarfanhou:

— Oh
Gonçalo! pois…Gonçalo acudiu:

— Não! o
Barrolo não se importou! Até se riu! E eu também, quando ele meentregou esse
papelucho… E a prova que ambos o consideramos uma mexeriquice insensata, é
que eu to mostro tão francamente.

 Ela esmagava a carta nas mãos juntas e
trémulas, pálida agora e emudecida peloespanto, retendo grandes lágrimas que
rebrilhavam. E Gonçalo comovido, com gravidade, com ternura:- Mas tu, Gracinha,
sabes o que são terras pequenas. Sobretudo Oliveira! Precisas muito cuidado,
muita reserva… Ai de mim! De mim vem a culpa. Reatei relações que nunca se
deviam reatar… Bem me tenho arrependido! E acredita! por causa dessasituação
tão falsa e tão perigosa, que eu criei, levianamente, por ambição tola, passei
aqui na Torre dias amargurados… Até nem me atrevi a voltar a Oliveira. Hoje,
não seiporquê, depois desta aventura, parece que tudo se esbateu, se afundou
para uma grande sombra… Enfim já não me arde tão em brasa no coração… Por
isso desabafo assim, serenamente.Ela desatou num solto, doloroso choro em que a
sua fraca alma se desfazia. Com redobrada ternura, Gonçalo abraçou os pobres
ombros vergados que os soluçosespedaçavam. E foi com ela toda refugiada no seu
peito, que ainda a aconselhou, docemente:


Gracinha, o passado morreu, e todos precisamos, para honra de todos,
quecontinue morto. Pelo menos que por fora, em cada gesto teu, pareça bem
morto! Sou eu que to peço, pelo nosso nome….De entre os braços do irmão, ela
gemeu com infinita humildade:

— Mas ele
até foi embora!… Nem quis estar mais em Oliveira! Gonçalo acariciou a
acabrunhada cabeça, que de novo se escondera contra o seupeito, contra ele se
apertava, como procurando a fresca misericórdia que dentro sentiu brotar:- Bem
sei. E isso me mostra que tens sido forte… Mas precisas muita reserva, muita
vigilância, Gracinha!… E agora sossega. Não falemos mais, nunca mais, neste
incidente… Porque foi apenas um incidente. E que eu provoquei, ai de mim,
porleviandade, por ilusão. Passou, está esquecido! Sossega, descansa. E quando
desceres traz os olhos bem secos.Lentamente a desprendera dos braços, onde ela
se arraigava como ao abrigo mais certo e à consolação mais desejada. E saía,
engasgado pela emoção, recalcando também as lágrimas… Um gemido tímido,
suplicante, ainda o reteve.- Gonçalo! mas tu pensas…

Ele
voltou, de novo a abraçou, e beijou na testa lentamente:- Eu penso que tu,
agora bem avisada, bem aconselhada, vais mostrar muita dignidade, muita
firmeza.

Rapidamente
abalou, cerrou a porta. E na escada estreita, escassamente alumiadapor uma
clarabóia baça, limpava as pálpebras, quando esbarrou com o Barrolo, que
procurava Gracinha, para apressar o almoço.- A Gracinha já desce! — atabalhoou
o Fidalgo. — Está a lavar as mãos! já desce!… Mas antes do almoço vamos à
cavalariça. Devemos uma visita à égua, essa querida égua que me salvou!- É
verdade, caramba! — concordou logo Barrolo revirando nos degraus, com
entusiasmo. — Precisamos visitar a égua… Grande, briosa, hem? Mas aposto que
ficoumais suada que as minhas… Imagina! uma trotada daquelas, desde Oliveira,
e nem um pêlo molhado! Grandes éguas! Também, o que eu as olho, o que as trato!

Na
cavalariça, ambos afagaram a égua. Barrolo lembrou que se mimoseasse comuma
ração larga de cenoura. Depois — para que Gracinha, com vagar, se calmasse — o

Fidalgo
arrastou o Barrolo ao pomar e à horta…- Tu não vens à Torre há perto de seis
meses, Barrolinho! Precisas ver, admirar progressos. Anda agora por aqui a mão
forte do Pereira da Riosa…


Imagino! grande homem, o Pereira! Mas eu tenho uma fome, Gonçalinho!- Também
eu! Uma hora batia quando entraram na varanda onde a mesa esperava, florida e
emfesta — e Gracinha, à beira do divã, percorria pensativamente a velha Gazeta
do Porto.Apesar de muito banhados, os seus belos olhos conservavam um ardor; e
para o justificar, o seu modo abatido, logo se lastimou, corando, duma
enxaqueca. Eram asemoções, o perigo de Gonçalo…

— Também
eu tenho dor de cabeça! — declarou o Barrolo, rondando a mesa. — Masa minha vem
da fome… Oh filhos, é que estou desde as sete da manhã com uma chávena de
café e um ovo quente!

Gonçalo
repicou a campainha. Mas quem rompeu pela porta envidraçada,esbaforido,
escancarando a boca num riso imenso, foi o Joaquim, o moço da cavalariça que
voltava da Grainha.Gonçalo atirou os braços, sôfrego:

— Então?!
então?! — Pois lá estive, meu Fidalgo! — exclamou o Joaquim com o peito a
estalar deimportância. — E vai por lá um povoléu, todos já bem! Uma rapariga
dos Bravais espreitou tudo, de dentro do quinteiro… Depois correu, badalou…
Mas o velho, o talDomingues que mora na casa, e o filho, abalaram ambos. E o
rapaz, ao que dizem, pouco ferido. Se caiu, sem sentidos, foi com o susto. O
Ernesto de Nacejas, esse sim, santo nome de Deus, apanhou. Lá o levaram em
braços para casa dum compadre ali aopé, na Arribada. Parece que fica sem
orelha, e que fica sem boca!… Pois por todos aqueles sítios era o ai -jesus
das moças!… E logo lá o carrega m para o Hospital de VilaClara, que na casa
do compadre não pode sarar. Um povoléu, e todos dão razão ao Fidalgo. O tal
Domingues era malandro. E o Ernesto, esse ninguém o podia enxergar! Mas todos
lhe tinham medo… O Fidalgo fez uma limpeza!Gonçalo resplandecia. Ali! Ainda bem!
Que não passara dano mais forte, que beleza perdida do D. Juan de Nacejas!- E
então o povo por lá, a falar, a olhar para o sítio?

— Pois o
povo não se arreda! E a mostrar o sangue, no chão, e as pedras por onde se
atirou a égua do Fidalgo… E agora até contam que foi uma espera, e que
desfecharamtrês tiros ao Fidalgo, e que depois adiante no pinhal ainda saltaram
três homens mascarados, que o Fidalgo escangalhou…Eis a lenda que se forma! —
declarou Gonçalo.

O Bento
aparecera com uma larga travessa fumegante. O Fidalgo afagou risonhamente o
ombro do Joaquim. E em baixo a Rosa que abrisse, para o almoço dafamília, duas
garrafas de vinho do Porto, velho. Depois com a mão nas costas da cadeira,
murmurou gravemente:- Pensemos um momento em Deus, que me tirou hoje dum grande
perigo!

Barrolo
pendeu a cabeça, reverente. Gracinha, através dum leve suspiro, pensou uma leve
oração. E desdobravam os guardanapos; Gonçalo aclamava a travessa depescada à
espanhola — quando o pequeno da Crispola empurrou ainda a porta envidraçada
«com um telegrama, que viera da vila!» Uma inquietação deteve os garfos.A manhã
correra com tantas agitações e espantos! Mas já um sorriso de gosto, de
triunfo, se espalhara na fina face de Gonçalo:

— Não é
nada… É do Castanheiro, por causa dos capítulos do romance que eu
lhemandei… Coitado! Bom rapaz!

E,
recostado na cadeira, recitou vagarosamente o telegrama, que os seus
olhosafagavam: — «Capítulos romance recebidos. Leitura feita amigos.
Entusiasmo! Verdadeira obra-prima! Abraço!…» Barrolo, com a boca cheia, bateu
as palmas. E Gonçalo, sem reparar na travessada pescada que Bento lhe
apresentava, mas enchendo o copo de vinho verde, com uma vaga tremura, um
sorriso ditoso que não se dissipava:- Enfim, boa manhã… Grande manhã!

Gonçalo,
apesar das insistências de Gracinha e do Barrolo, não os acompanhoupara
Oliveira — no desejo de acabar, durante essa semana, o derradeiro capítulo da
novela, e depois cerrar o preguiçoso giro de visitas aos influentes eleitorais
do círculo.Assim rematava a Obra de Arte e a obra de Política — e cumpria, Deus
louvado, a tarefa desse Verão fecundo!

Logo
nessa noite retomou o manuscrito da novela — e na margem larga lançou adata,
uma nota: — Hoje, na freguesia da Grainha, tive uma briga terrível com dois
homens que me assaltaram a pau e tiro, e que castiguei severamente… Depois,
comfacilidade, atacou o lance de tanto sabor medieval, em que Tructesindo
Ramires, correndo no rasto do Bastardo, penetrava, ao espalhado e fumarento
clarão dos archotes, no arraial de D. Pedro de Castro.Com grave amizade acolhia
o velho homem de guerra aquele seu primo de

Portugal,
que lhe trouxera a sua forte mesnada, de Santa Ireneia, quando os
Castroscombateram um grande poder de Mouros em Enxarez de Sandornin. Depois, na
vasta tenda, reluzente de armas, tapizada de peles de leão e de urso,
Tructesindo contava, ainda a arfar de dor represa, a morte de seu filho
Lourenço, ferido na lide de CantaPedra, acabado à punhalada pelo Bastardo de
Baião, diante das muralhas de Santa

Ireneia,
com o Sol no céu alto a olhar a traição! Indignado, o velho Castro esmurraçou
amesa, onde um rosário de ouro se misturava a grossas peças de xadrez; jurou
pela vida de Cristo, que, em sessenta anos de armas e surpresas, nunca soubera
de feito mais vil! E agarrando a mão do senhor de Santa Ireneia, ardentemente
lhe ofereceu, para aempresa da santa vingança, a sua hoste inteira -trezentas e
trinta lanças, vasta e rija peonagem.- Por Santa Maria! Formosa arrancada! —
bradou Mendo de Briteiros com as vermelhas barbas a flamejar de gosto.

Mas D.
Garcia Viegas, o Sabedor, entendia que para colherem o Bastardo vivo,como
convinha a uma vingança vagarosa e bem gozada, mais utilmente serviria uma
calada e curta fila de cavaleiros, com alguns homens de pé…- Porquê, D. Garcia?

— Porque
o Bastardo, depois de se aligeirar, junto da Ribeira, da peonada e carriagem
correra, com a mira em Coimbra, para se acolher à força da hoste real.
Nessanoite, com o seu esfalfado bando de lanças, pernoitara certamente no solar
de Landim. E com o luzir da.alva, para encurtar, certamente retomava a galopada
pelo velho caminhode Miradães, que trepa e foge através das lombas do Caramulo.
Ora ele, Garcia Viegas, conhecia para diante do Poço da Esquecida, certo passo,
onde poucos cavaleiros, e alguns besteiros, bem postados por entre o bravio,
apanhariam Lopo de Baião comolobo em fojo…

Tructesindo,
incerto e pensativo, metia os dedos lentos pelos fios da barba. Ovelho Castro
duvidava, preferindo que se pusesse batalha ao Bastardo em campo bem liso onde
se avantajassem tantas lanças já aprestadas, que depois correriam em alegre
levada a assolar as terras de Baião. Então Garcia Viegas rogou aos seus primos
deEspanha e de Portugal que saíssem ao terreiro, diante da tenda, com fartura
de tochas para bem se alumiarem. E aí, no meio dos cavaleiros curiosos, à
claridade dos lumesinclinados, D. Garcia vergou o joelho, riscou sobre a terra,
com a ponta duma adaga, o roteiro da sua caçada para lhe comprovar a beleza…
De além -castelo de Landim, largaria com a alva o Bastardo. Por aqui, quando a
Lua nascesse, abalariam eles, comvinte cavaleiros dos Ramires e dos Castros,
para que lidadores de ambas as mesnadas gozassem a lide. Além, se postariam,
alapados no matagal, besteiros e peões de frecha.Por trás, deste lado, para
entaipar o Bastardo, o Senhor D. Pedro de Castro, se com tão gostosa ajuda ele
honrasse o senhor de Santa Ireneia. Adiante, acolá, para colher pela gorja o
vilão, o Sr. D. Tructesindo que era o pai e Deus mandava fosse o vingador. E
ali,na estreitura o derrubariam e o sangrariam como um porco — e como o sangue
era vil, a um tiro de besta encontrariam água farta para lavar as mãos, a água
do pego das Bichas!….- Famosa traça! — murmurou Tructesindo convencido.

E D.
Pedro de Castro bradou, atirando um faiscante olhar aos cavaleiros deEspanha: —
Vida de Cristo, que se meu tio -avô Gutierres tivera por coudel aqui o Sr.
D.Garcia, não lhe escapavam os de Lara quando levaram o Rei -Menino, na grande
carreira, para Santo Estêvão de Gurivaz!… Entendido pois, primo e amigo! E a
cavalo, para a montaria, mal reponte a Lua!E recolheram às tendas — que já nas
fogueiras lourejavam os cabritos da ceia, e os uchões acarretavam, de entre os
carros da sarga, os pesados odres de vinho deTordesilhas.

Com a
ceia no arraial (grave e sem ruído, porque um luto velava o coração dos
hóspedes) Gonçalo terminou, nessa noite, o seu Capítulo IV, lançando à margem
outranota: — «Meia-noite… Dia cheio. Batalhei, tr abalhei». — Depois no seu
quarto, enquanto se despia, traçou todo o alvoroto da briga curta em que o
Bastardo como lobo em fojoquedaria cativo, à mercê vingadora dos de Santa
Ireneia… Mas de manhã, antes de almoço, ao abancar com gosto para o trabalho
— recebeu dois telegramas, que o desviaram deliciosamente da ardente correria
contra o Bastardo de Baião.Eram dois telegramas de Oliveira, um do Barão das
Marges, outro do capitão

Mendonça
— ambos com parabéns ao Fidalgo «por assim escapar de tão terrível
espera,destroçando os valentões de Nacejas». O Barão das Marges acrescentava:

«Bravíssimo!
E de herói!»

Gonçalo,
enternecido, mostrou os telegramas ao Bento. A nova da sua façanha,pois, já se
espalhara, impressionara Oliveira.

— Foi o
Sr. José Barrolo que contou! — acudiu o Bento. — E o Sr. Doutor verá! oSr.
Doutor verá… Até no Porto se vão assombrar! Ao bater meio -dia, rompeu pelo
corredor, com estrondo, o imenso Titó, acompanhado pelo João Gouveia que
chegara na véspera à tarde da Costa, soubera daaventura na Assembleia, corria à
Torre, como amigo, para o abraço, antes de comparecer, como autoridade, para o
auto. Então Gonçalo, ainda nos braços doGouveia, pediu generosamente, «que se
não procedesse contra os bandidos…». O Administrador recusou, decidido e
seco, proclamando o princípio da Ordem, e necessidade dum escarmento rijo, para
que Portugal não recuasse aos tempos bárbarosdo João Brandão de Midões. Ele e
Titó almoçaram na Torre; — e Titó, à sobremesa, lembrou galhofeiramente a
conveniência dum brinde, e bramou ele o brinde,comparando Gonçalo ao elefante,
«sempre bom, que tanto aguenta, e de repente, zás, esmaga o mundo!»

Depois
João Gouveia, acendendo um grande charuto, reclamou a representaçãoverídica da
desordem, com os pulos, os gritos, para ele se compenetrar como autoridade.

Então,
através da varanda, reviveu a história heróica, simulando com o chicote sobre
odivã (que terminou por esgaçar) os golpes que arremessara, imitando os tombos
meio desmaiados do valentão de Nacejas, quando já o sangue o alagava. O
Administrador e o Titó visitaram na cavalariça a égua histórica; e no pátio,
Gonçalo ainda lhes mostrou asduas polainas de couro secando ao sol, lavadas do
sangue que as salpicara.

Diante do
portão João Gouveia bateu gravemente no ombro do Fidalgo:- Gonçalo, você deve
aparecer esta noite na Assembleia… Apareceu — e foi acolhido como o vencedor
duma batalha ilustre. No bilhar, por proposta do velho Ribas, flamejou um
grande punch — e o Comendador Barros,afogueado, teimava que no domingo se
celebrasse em S. Francisco um Te-Deum de graças, de que ele custearia as
despesas, com orgulho, caramba! À salda, acompanhadopelo Titó, pelo Gouveia,
pelo Manuel Duarte, por outros sócios, encontraram o

Videirinha
— que não pertencia à Assembleia, mas rondava, esperando o Fidalgo para lhe
lançar duas trovas do Fado, improvisadas nessa tarde, em que o exaltava acima
dosoutros Ramires, da História e da Lenda!

O rancho
quedou no Chafariz. O violão gemeu, com amor. E o cantar doVideirinha, elevado
da alma, varou a muda ramagem das olaias:

Os
Ramires doutras eras Venciam com grandes lanças, Este vence com um chicote,
Vede que estranhas mudanças!

É que os
Ramires famosos, Da passada geração, Tinham a força nas armas E estea tem no
coração! A tão requebrado conceito — os amigos romperam em vivas a Gonçalo, à
casa deRamires. E o Fidalgo recolhendo à Torre, comovido, pensava: — É curioso!
Esta gente toda parece gostar de mim!… Mas que emoção quando, de manhã cedo,
o Bento o acordou com um telegramade Lisboa! Era do Cavaleiro — que, «soubera
pelos jornais atentado, lhe mandava entusiástico abraço pela felicidade e pela
valentia!» Gonçalo berrou, sentado na cama:- Caramba! então os jornais de
Lisboa já falam, Bento! o caso anda celebrado!

Certamente
celebrado! — porque durante o delicioso dia, o moço do Telégrafo, esbaforido
sobre a perna manca, não cessou de empurrar o portão da Torre, com
outrostelegramas, todos de Lisboa, da Condessa de Chelas; de Duarte Lourençal;
dos

Marqueses
de Coja felicitando; da tia Louredo com «parabéns ao destemido sobrinho»;da
marquesa de Esposende «esperando que o caro primo tivesse agradecido a
Deus!…» E o último do Castanheiro, com exclamações: — Magnífico! Digno de
Tructesindo! — Gonçalo, pela livraria, erguia os braços, estonteado:- Santo
nome de Deus! mas que terão dito os jornais?

E, por
entre os telegramas, acudiam os cavalheiros dos arredores, os influentes — oDr.
Alexandrino, aterrado, antevendo um regresso ao Cabralismo; o velho Pacheco
Valadares de Sã, que não se espantara do seu nobre primo, porque sangue de
Ramires, como sangue de Sãs, sempre ferve; o Padre Vicente da Finta que, com os
seus parabéns,ofereceu um cestinho de cachos do seu famoso moscatel tinto; e
por fim o Visconde de

Rio
Manso, que agarrado a Gonçalo, soluçou, no enternecimento quase ufano de que
abriga assim rompesse, na estrada, quando «o querido amigo, o amigo da sua
Rosa» se encaminhava para a Varandinha. Gonçalo, afogueado, banhado de riso,
abraçava, recontava pacientemente a façanha, acompanhava até ao portão aqueles
cavalheiros, queao montar as éguas, ao entrar nas caleches, sorriam para a
velha Torre, escura e rígida, na doce claridade da tarde de Setembro, como
saudando, depois do herói, o secularfundamento do seu heroísmo.

E o
Fidalgo, galgando as escadas para a livraria, de novo murmurava, estonteado:

— Que
terão dito os jornais de Lisboa? Nem dormiu, na ansiedade de os devorar. Quando
o Bento, em alvoroço, rompeu pelo quarto com o correio — Gonçalo saltou,
arrojou o lençol, como se abafasse. E logono Século, sofregamente percorrido,
encontrou o telegrama de Oliveira, contando o assalto! os tiros disparados! a
imensa coragem do Fidalgo da Torre que, com um simples chicote… O Bento quase
arrebatou o Século das mãos trémulas do Fidalgo, paracorrer à cozinha, bramar à
Rosa a notícia gloriosa!

De tarde,
Gonçalo correu a Vila Clara, à Assembleia, para devorar os outrosjornais de
Lisboa, os do Porto. Todos contavam, todos celebravam! A Gazeta do
Porto,atribuindo o atentado à Política, ultrajava furiosamente o Governo. O
Liberal Portuense, porém, relacionava «com certas vinganças dos republicanos de
Oliveira, opavoroso atentado que quase causara a morte dum dos maiores fidalgos
de Portugal e de

Espanha e
dum dos mais pujantes talentos da nova geração!» Os jornais de
Lisboa,glorificavam sobretudo «a coragem esplêndida do Sr. Gonçalo Ramires». E
o mais ardente era a Manhã, num verboso artigo (decerto escrito pelo
Castanheiro), recordando as heróicas tradições da Casa ilustre, esboçando as
belezas do castelo de Santa Ireneia eterminando por afirmar que, «agora, se
esperava com redobrada ansiedade a aparição da novela de Gonçalo Ramires,
fundada sobre um feito de seu avô Tructesindo no séculoXII, e prometida para o
primeiro número dos ANAIS DE LITERATURA E DE HISTÓRIA, a nova revista do nosso
querido amigo Lúcio Castanheiro, esse benemérito restaurador da consciência
heróica de Portugal!» — As mãos de Gonçalo, ao desdobraros jornais, tremiam. E
o João Gouveia, também sôfrego, devorando também os artigos, por sobre o ombro
do Fidalgo, murmurava, impressionado:- Você, Gonçalinho, vai ter uma votação
tremenda!

Depois
nessa noite, recolhendo à Torre, Gonçalo encontrou uma carta que o perturbou.
Era de Maria de Mendonça, num papel perfumado, com o mesmo perfumeque tão
docemente espalhava D. Ana, pelo adro de Santa Maria de Craquede:

«Só esta
manhã soubemos o grande perigo que passou, e ficámos ambas muito comovidas. Mas
ao mesmo tempo eu (e não só eu) muito vaidosa da magnífica coragem do primo. É
dum verdadeiro Ramires! Eu não vou aí abraçá-lo (com risco de me comprometer e
fazer invejas), porque um dos meus pequenos, o Neco, anda muito constipado.
Felizmente não é coisa de cuidado… Mas aqui todos, até os pequenos, ansiamos
por ver o herói, e não creio que houvesse nada de extraordinário, nem dumlado
nem do outro, em que o primo por aqui aparecesse além de amanhã (quinta -feira)
pelas três horas. Dávamos um passeio na quinta, e até se merendava, à boa e
velha moda dos nossos avós. Está dito? Muitos cumprimentos, muitos, da Anica, e
o primo creia-me, etc.»

Gonçalo
sorriu, pensativamente, considerando a carta, recebendo o aroma. Nunca a prima
Maria lhe empurrara, tão claramente, a D. Ana para os braços… E como D. Anase
deixava empurrar, pronta, e de olhos cerrados… Ah, se fosse somente para a
alcova!

Mas ai!
era também para a Igreja. E de novo sentia aquele vozeirão do Titó, nos
degrausda portinha verde, com a lua cheia por cima dos olmos negros: «Essa
criatura teve um amante, e tu sabes que eu nunca minto!»

Então
tomou lentamente a pena, respondeu a D. Maria Men donça:

«Querida
prima:

 «Fiquei muito enternecido com o seu cuidado, e
os seus entusias mos. Não exageremos! Eu não fiz mais que correr a chicote uns
valentões que me assaltaram a tiro. É façanha fácil para quem tenha, como eu,
um chicote excelente. Enquanto à visita à Feitosa, que me seria tão agradável,
não a posso realizar com fundo pesar meu, nem na quinta-feira, nem mesmo por
todo este mês… Ando ocupadíssimo com o m eu livro, a minha eleição, a minha
mudança para Lisboa. A era dos cuidados sérios soou severamente para mim —
cerrando a doce era dos passeios e dos sonhos. Peço que apresente à Srª D. Ana
os meus profundos respeitos. E com muitas amizades para si , e bons desejos
pelo restabelecimento desse querido Neco, espero me creia sempre seu dedicado e
grato primo, etc.»

Fechou
vagarosamente a carta. E batendo o seu sinete de armas sobre o lacre verde,
pensava:- Assim aquele maroto do Titó me rouba duzentos contos!…

Durante
toda essa macia semana dos fins de Setembro, Gonçalo trabalhou no capítulo
final da sua novela.Era enfim a madrugada vingadora em que os cavaleiros de
Santa Ireneia, reforçados pelas mais nobres lanças da mesnada dos Castros,
surpreendiam, no braviodesfiladeiro marcado por Garcia Viegas, o Sabedor, o
bando de Baião, na sua açodadacorrida sobre Coimbra… Briga curta e falsa, sem
destro e brioso terçar de armas, mais semelhante a montaria contra um lobo do
que a arremetida contra um filho de algo. Eassim a desejara Tructesindo, com
ruidosa aprovação de D. Pedro de Castro, porque não se cuidava de combater um
inimigo, mas de colher um matador.Antes do luzir de alva, o Bastardo abalara do
castelo de Landim, em dura pressa e com tão descuidada segurança, que nem
almogávar nem coudel lhe atalaiavam os trilhos. As cotovias cantavam quando
ele, em áspero trote, penetrou por essa brecha,entalada entre escarpas de
penedia e urze, que chamam a Racha do Mouro, desde que Maforna a fendeu para
que escapassem às adagas cristãs de El-Rei Fernando, o Magno, o alcaide mouro
de Coimbra e a monja que ele arrebatara à garupa. E apenas pela esguiagreta
enfiara a derradeira lança da fila — eis que da outra embocadura do vale, surde
o cerrado troço dos cavaleiros de Santa Ireneia, que Tructesindo guia, com a
viseiraerguida, sem broquei, sacudindo apenas uma ascuma de monte como se
folgadamente andasse em caçada. Da selva arredada que os encobria, rompem por
trás as lanças dosCastros, ristadas e cerrando a brecha mais densamente que as
puas duma levadiça. Do recosto dos cerros rola, como represa solta, uma rude e
escura peonagem! Colhido, perdido, o Bastardo terrível! Ainda arranca
furiosamente a espada, que redemoinhandoo coroa de coriscos. Ainda com um fero
grito arremete contra Tructesindo… Mas bruscamente, de entre um escuro magote
de fundeiros baleares, parte ondeando umacorda de cânave, que o laça pela
gargalheira, o arranca num brusco sacão da sela mourisca, o derriba sobre
pedregulhos em que a sua larga espada se entala e se parte rente ao punho
dourado. E enquanto os cavaleiros de Baião aguentam assombradamenteo denso cerco
de lanças, que os envolvera — um rolo de peões, em dura grita, como mastins
sobre um cerdo, arrasta o Bastardo para a lomba do outeiro, onde lhe
arrancambroquei e adaga, lhe despedaçam o brial de lã roxa, lhe quebram os
fechos do elmo, para lhe cuspirem na face, nas barbas cor de ouro, tão belas e
de tanto orgulho!

Depois a
mesma bruta matula o iça, amarrado, para sobre o dorso duma possantemula de
carga, o estende entre dois esguios caixotes de virotões, como rês apanhada ao
recolher da montaria. E servos da carriagem ficam guardando o cavaleiro
soberbo, o Claro Sol que alumiava a casa de Baião, agora entaipado entre dois
caixotes de pau, com cordas nos pés, e cordas nas mãos, e nelas espetado um
triste ramo de cardo -emblema da sua traição.

No entanto
os seus quinze cavaleiros juncavam o chão, esmagados sob o furiosocerco de
lanças que os investira — uns hirtos, como adormecidos, dentro das negras
armaduras, outros torcidos, desfeitos, com as carnes retalhadas, pendendo
horrendamente entre malhas rotas dos lorigais. Os escudeiros, colhidos,
empurrados apontoada de chuço para a boca duma barroca, sem resgate ou mercê,
como alcateia imunda de roubadores de gado, acabaram, decepados a macheta pelos
barbudosestafeiros leoneses. Todo o vale cheirava a sangue como um pátio de
magarefes. Para reconhecer os companheiros do Bastardo, uma turma de cavaleiros
desafivelava os gorjais, as viseiras, arrancando furtivamente as medalhas de
prata, os bentos, saquinhosde relíquias, que todos traziam como bem -tementes.
Numa face, de fina barba negra, que uma espuma sangrenta manchava, Mendo de
Briteiros reconheceu seu primo Soeirode Lugilde com quem, pela fogueira de S.
João, folgara tão docemente e bailara no castelo de Unhelo — e vergado sobre a
alta sela rezou, pela pobre alma sem confissão, uma devota Ave -Maria. Fuscas,
tristonhas nuvens, abafavam a manhã de Agosto. Eafastados à entrada do vale,
sob a ramagem dum velho azinheiro, Tructesindo, D. Pedro de Castro, e Garcia
Viegas, o Sabedor, decidiam que morte lenta, e bem dorida eviltosa, se daria ao
Bastardo, vilão de tão negra vilta.

Contando
assim a sombria emboscada com o gemente esforço de quem empurra um arado por
terra pedreira — gastara Gonçalo essa doce semana de Setembro. E nosábado,
cedo, na livraria, com os cabelos ainda molhados do banho de chuva, esfregava
as mãos diante da banca — porque certamente com duas horas de atento
trabalho,findaria antes de almoço a sua novela, a sua obra! E todavia esse
final, quase o repelia, com o seu sujo horror. O tio Duarte no seu poemeto
apenas o esboçara, com esquiva indecisão, como nobre lírico que ante uma visão
de bruta ferocidade solta um lamento,resguarda a lira, e desvia para sendas
mais doces. E, ao tomar a pena, Gonçalo também, realmente, lamentava que seu
avô Tructesindo não matasse outrora o Bastardo, nofragor da briga, com uma
dessas cutiladas maravilhosas, e tão doces de celebrar, que racham o cavaleiro
e depois racham o ginete, e para sempre retinem na História.

Mas não!
Sob a folhagem do azinheiro, os três cavaleiros combinavam comlentidão uma
vingança terrífica. Tructesindo desejara logo recolher a Santa Ireneia, alçar
uma forca diante das barbacãs, no chão em que seu filho rolara morto, e
nelaenforcar, depois de bem açoitado, como vilão, o vilão que o matara. O velho
D. Pedro de Castro, porém, aconselhava despacho mais curto, e também gostoso.
Para que rodear por Santa Ireneia, desbaratar esse dia de Agosto na arrancada
que os levava aMontemor, a socorro das Infantas de Portugal? Que se estendesse
o Bastardo amarrado sobre uma trave, aos pés de D. Tructesindo, como porco pelo
Natal, e que um cavalariçolhe chamuscasse as barbas, e depois outro, com
facalhão de ucharia, o sangrasse no pescoço, pachorrentamente.

— Que vos
parece, Sr. D. Garcia?O Sabedor desafivelara o casco de ferro, limpava nas
rugas o suor e a poeira da lide; — Senhores e amigos! Temos melhor, e perto
também, sem delongas de cavalgada, logo adiante destes cerros, no Pego das
Bichas… E nem torcemos caminho, que de lá, por Tordezelo e Santa Maria da
Varge, endireitamos a Montemor, tão direitos como voao corvo… Confiai em mim,
Tructesindo! Confiai em mim, que eu arranjarei ao Bastardo tal morte e tão vil,
que de outra igual se não possa contar desde que Portugal foicondado.

— Mais
vil que forca, para cavaleiro, meu velho Garcia?

— Lá
vereis, senhores e amigos, lá vereis!- Seja! Mandai dar às buzinas. Ao comando
de Afonso Gomes, o alferes, as buzinas soaram. Um troço debesteiros e de
estafeiros leoneses rodearam a mula que carregava o Bastardo amarrado e
entalado entre dois caixotes. E acaudilhada por D. Garcia, a curta hoste meteu
para o Pego das Bichas, em desbando, com os senhores de lança espalhados, como
em marchade folgança e paz (?), e todos numa rija falada recordando, entre
gabos e risos, as proezas da lide.A duas léguas de Tordezelo e do seu castelo
formoso, se escondia entre os cerros o Pego das Bichas. Era um lugar de eterno
silêncio e de eterna tristeza. Em esmerados versos lhe marcara o tio Duarte a
desolada asperidão:

Nem trilo
de ave em balançado ramo! Nem fresca flor junto de fresco arroio! Só rocha,
matagal, ribas soturnas, E em meio o Pego, tenebroso e morto!…

E quando
os primeiros cavaleiros, galgada a lomba dum cerro, o avistaram, namelancolia
da manhã nevoenta, emudeceram da larga falada, repuxaram os freios, assustados
ante tão áspero ermo, tão propício a bruxas, a avantesmas e a almas penadas.
Diante do escalavrado barranco, por onde os ginetes escorregavam, ondulava
umaribanceira, aberta com charcos lamacentos, quase chupados pela estiagem,
luzindo pardamente, por entre grossos pedregulhos e o tojo rasteiro. Ao fundo,
a meio tiro debesta, negrejava o Pego, lagoa estreita, lisa, sem uma ruga na
água, duramente negra,com manchas mais negras, como lâmina de estanho onde
alastrasse a ferrugem do tempo e do abandono. Em torno subiam os cerros,
eriçados de mato bravio e alto,sulcados por trilhos de saibro vermelho como por
fios de sangue que escorresse, e rasgados no alto por penedias lustrosas, mais
brancas que ossadas. Tão pesado era osilêncio, tão pesada a soledade, que o
velho D. Pedro de Castro, homem de tanta jornada, se espantou:

— Feia
paragem! E voto a Cristo, a Santa Maria, que nunca antes de nós, nelaentrou
homem remido pelo baptismo.

— Pois,
Sr. D. Pedro de Castro! — acudiu o Sabedor — já por aqui se moveu muitalança, e
luzida, e ainda em tempos do Conde D. Soeiro, e de vosso rei D. Fernando, se
erguia, naquela beira de água, uma castelania famosa! Vede além! — e mostrava
na ponta do pego fronteira ao barranco, dois rijos pilares de pedra, que
emergiam da águanegra, e que chuva e vento poliram como mármores finos. Um
passadiço de traves, sobre estacas limosas e meio apodrecidas, atava a margem
ao mais grosso dos pilares. Ea meio desse rude esteio, pendia uma argola de
ferro.

No
entanto já o tropel da peonagem se espalhara pela ribanceira. D. Garcia Viegas
desmontou, bradando por Pêro Ermigues, o coudel dos besteiros de Santa Ireneia.
E, aolado do ginete de Tructesindo, risonho e gozando a surpresa, ordenou ao
coudel que seis dos seus rijos homens descessem o Bastardo da mula, o
estirassem no chão, odespissem, todo nu, como sua mãe barregã o soltara à negra
vida…

Tructesindo
encarou o Sabedor, franzindo as sobrancelhas hirsutas: — Por Deus, D. Garcia!
que me ides simplesmente afogar o vilão, e sujar essa águainocente!…

E alguns
cavaleiros, em redor, murmuraram também contra morte tão quieta esem malícia.
Mas os miúdos olhos de D. Garcia giravam, lampejavam de triunfo e gosto:


Sossegai, sossegai! Velho estou certamente, mas ainda o Senhor Deus meconsente
algumas traças. Não! Nem enforcado, nem degolado, nem afogado… Mas chupado,
senhores! Chupado em vida, e devagar, pelas grandes sanguessugas queenchem toda
essa água negra!

D. Pedro
de Castro, maravilhado, bateu o guante nas solhas do coxote: — Vida de Cristo!
Que ter numa hoste o Sr. D. Garcia, é ter juntamente, paramarchas e conselho,
enrolados num só, Aníbal e Aristóteles!

Um rumor
de admiração correu pela hoste:- Boa traça, boa traça! E Tructesindo, radiante,
bradava: — Andar, andar, besteiros! E vós, senhores, recuai para a lomba do
cerro, comopara palanque, que vai ser grande a vista!

Já seis
besteiros descarregavam da mula o Bastardo amarrado. Outros cercavam,com molhos
de cordas. E, como magarefes para esfolar uma rês, toda a rude turma se abateu
sobre o malfadado, arrancando por cordas que desatavam a cervilheira, o saio,
as grevas, os sapatões de ferro, depois a grossa roupa de linho encardido.
Agarrado peloscompridos cabelos, filado pelos pés, onde se cravavam agudas
unhas no furor de o manter, com os braços esmagados sob outros grossos braços
retesos, o possanteBastardo ainda se estorcia, urrando, cuspindo contra as
faces confusas da matulagem um cuspo avermelhado, que espumava!

Mas, por
entre o escuro tropel que o cobria, o seu corpo, todo despido,branquejava,
atado com cordas mais grossas. Lentamente o seu furioso urrar esmorecia,
arquejado e rouquenho. E um após outro se erguiam os besteiros, esfalfados,
bufando,limpando o suor do esforço.

No
entanto os cavaleiros de Espanha, de Santa Ireneia, desmontavam, cravando o
conto das lanças entre o tojo e as pedras. Todos os recostos dos outeiros se
cobriam damesnada espalhada, como palanques em tarde de justa. Sobre uma rocha
mais lisa, que dois magros espinheiros toldavam de folha rala, um pajem
estendera peles de ovelhapara o Sr. D. Pedro de Castro, para o senhor de Santa
Ireneia. Mas só o velho Castelãose acomodou, para uma repousada delonga,
desafivelando o seu corselete de ferro tauxiado de ouro.Tructesindo permanecera
erguido, mudo, com os guantes apoiados ao punho da sua alta espada, os olhos
fundos avidamente cravados na tenebrosa lagoa que, commorte tão fera e tão
suja, vingaria seu filho… E pela borda do Pego, peões, e alguns cavaleiros de
Espanha, remexiam com virotões, com os contos das ascumas, a água lodosa na
curiosidade das negras bichas escondidas, que a povoavam.Subitamente a um brado
de D. Garcia, que rondava, toda a chusma de peões amontoada em torno ao
Bastardo se arredou: — e o forte corpo apareceu, nu e branco,sobre a terra
negra, com um denso pêlo ruivo nos peitos, a sua virilidade afogada noutra mata
de pêlo ruivo, e todo ligado por cordas de cânave que o inteiriçavam. Naquela
rigidez de fardo, nem as costelas arfavam — apenas os olhos refulgiam, ensanguentados,horrendamente
esbugalhados pelo espanto e pelo furor. Alguns cavaleiros correram a mirar a
aviltada nudez do homem famoso de Baião. O senhor dos Paços de Argelimmofou,
com estrondo:

— Bem o
sabia, por Deus! Corpo de manceba, sem costura de forida!… Leonel de Samora
raspou o sapato de ferro pelo ombro do malfadado:- Vede este Claro Sol, tão
claro, que se apaga agora, em água tão negra! O Bastardo cerrava duramente as
pálpebras — de onde duas grossas lágrimasescaparam, lentamente rolaram… Mas
um agudo pregão ressoou pela ribanceira:


Justiça! justiça!

Era o
adail de Santa Ireneia, que marchava, sacudia uma lança, atroava os cerros:-
Justiça! justiça que manda fazer o senhor de Treixedo e de Santa Ireneia, num
perro matador!… justiça num perro, filho de perra, que matou vilmente, e
assim morravilmente por ela!…

Três
vezes pregoou por diante da hoste apinhada nos cerros. Depois quedou, saudou
humildemente Tructesindo Ramires, o velho Castro -como a julgadores no
seuestrado de julgamento.

— Aviai,
aviai! — bradava o senhor de Santa Ireneia.Imediatamente, a um comando do
Sabedor, seis besteiros, com as pernasembrulhadas em mantas da carga, ergueram
o corpo do Bastardo como se ergue um morto enrolado no seu lençol, e com ele
entraram na água, até ao mais alto pilar, degranito, Outros, arrastando molhos
de cordas, correram pelo limoso passadiço de traves. Com um alarido de aguenta!
endireita! alça! num desesperado esforço, o robusto corpobranco foi mergulhado
na água até às virilhas, arrimado ao mais alto pilar, depois nele atado com um
longo calabre que, passando pela argola de ferro, o suspendia, sem escorregar,
tão seguro e colado como um rolo de vela que se amarra ao mastro.Rapidamente os
besteiros fugiram da água, desentrapando logo as pernas, que palpavam, raspavam
no horror das bichas sugadoras. Os outros recolheram pelopassadiço, numa fila
que se empurrava. No Pego ficava Lopo de Baião bem arranjado para a vistosa
morte lenta, com a água que já o afogava até às pernas, com cordas que o enroscavam
até ao pescoço, como a um escravo no poste; e uma espessa mecha doscabelos
louros laçada na argola de ferro, repuxando a face clara, para que todos nela
gozassem largamente a humilhada agonia do Claro Sol.Então o atento da hoste,
esperando espalhada pelos recostos dos cerros, mais entristeceu o enevoado
silêncio do ermo. A água jazia sem um arrepio, com as suas manchas, negras como
uma lâmina de estanho enferrujado. Entre as cristas das rochas,archeiros
postados pelo Sabedor, atalaiavam, para além, os descampados. Um alto voo de
gralha atravessou grasnando. Depois um bafo lento agitou as flâmulas das
lançascravadas no tojo denso.

Para
despertar, aviar a lentidão das bichas, alguns peões atiravam pedras à água
lodosa. já alguns cavaleiros espanhóis rosnavam impacientes com a delonga,
naquelacova abafada. Outros, descendo agachados a borda da lagoa, para mostrar
que as faladas bichas nunca acudiriam, mergulhavam lentamente, na água negra,
as mãos descalçadas,que depois sacudiam, rindo, e mofando o Sabedor… Mas de
repente um estremeçãosacudiu o corpo do Bastardo; os seus rijos músculos, no
furioso esforço de se desprenderem, inchavam entre as cordas, como cobras que
se arqueiam; dos beiçosarreganhados romperam, em rugidos, em grunhidos,
ultrajes e ameaças contra Tructesindo covarde, e contra toda a raça de Ramires,
que ele emprazava, dentro do ano,para as labaredas do Inferno! Indignado, um
cavaleiro de Santa Ireneia agarrou uma besta de garruncha, a que retesou a
corda.

Mas D.
Garcia deteve o arremesso:- Por Deus, amigo! Não roubeis às sanguessugas nem
uma pinga daquele sangue fresco!… Vede como vêm! vede como vêm!Na água
espessa, em torno às coxas mergulhadas do Bastardo, um frémito corria, grossas
bolhas empolavam — e delas, molemente, uma bicha surdiu, depois outra e outra,
luzidias e negras, que ondulavam, se colavam à branca pele do ventre, de
ondependiam, chupando, logo engrossadas, mais lustrosas com o lento sangue que
já escorria. O Bastardo emudecera — e os seus dentes batiam estridentemente. Enojados,até
rudes peões desviaram a face cuspindo para as urzes. Outros, porém,
chasqueavam, assuavam as bichas, gritando — a ele, donzelas! a ele! E o gentil
Samora de Cendufe, clamava rindo contra tão ensossa morte! Por Deus! Uma
apostura de bichas, como aenfermo de almorreimas. Nem era sentença de rico
-homem — mas receita de herbanista mouro!- Pois que mais quereis, meu Leonel? —
acudiu alegremente o Sabedor,resplandecendo. — Morte é esta para se contar em
livros! E não tereis este Inverno serão à lareira, por todos os solares de
Minho a Douro, em que não volte a história deste pego,e deste feito! Olhai
nosso primo Tructesindo Ramires! Formosos tratos presenciou decerto em tão
longo lidar de armas!… E como goza! tão, atento! tão maravilhado!Na encosta
do outeiro, junto do seu balsão, que o alferes cravara entre duas pedras, e
como ele tão quedo, o velho Ramires não despregava os olhos do corpo do
Bastardo, com deleite bravio, num fulgor sombrio. Nunca ele esperava vingança
tãomagnífica! O homem que atara o seu filho com cordas, o arrastara numas
andas, o retalhara a punhal diante das barbacãs da sua Honra — agora, vilmente
nu, amarradotambém como cerdo, pendurado dum pilar, emergido numa água suja, e
chupado por sanguessugas, diante de duas mesnadas, das melhores de Espanha, que
miravam, que mofavam! Aquele sangue, o sangue da raça detestada, não o bebia a
terra revolta numatarde de batalha, escorrendo de ferida honrada, através de
rija armadura — mas, gota a gota, escuramente e molemente se sumia, sorvido por
nojentas bichas, que surdiamfamintas do lodo e no lodo recaíam fartas, para
sobre o lodo bolsar o orgulhoso sangue que as enfartara. Num charco, onde ele o
mergulhara, viscosas bichas bebiam sossegadamente o cavaleiro de Baião! Onde
houvera homizio de solares fundado emdesforra mais doce?

E a fera
alma do velho acompanhava, com inexorável gozo, as sanguessugassubindo,
espalhadamente alastrando por aquele corpo bem amarrado, como seguro rebanho
pela encosta da colina onde pasta. O ventre já desaparecia sob uma camada
viscosa e negra, que latejava, reluzia na humidade morna do sangue. Uma fila
sugava acinta, encovada pela ânsia, de onde sangue se esfiava, numa franja
lenta. O denso pêlo ruivo do peito, como a espessura duma selva, detivera
muitas, que ondulavam, com umrasto de lodo. Um montão enovelado sangrava um
braço. As mais fartas, já inchadas, mais reluzentes, despegavam, tombavam
molemente; mas logo outras, famintas, se aferravam. Das chagas abandonadas o
sangue escorria delgado, represo nas cordas, deonde pingava como uma chuva
rala. Na escura água boiavam gordas postemas de sangue esperdiçado. E assim
sorvido, ressumando sangue, o malfadado ainda rugia,através ultrajes imundos,
ameaças de mortes, de incêndios, contra a raça dos Ramires! Depois, com um
arquejar em que as cordas quase estalavam, a boca horrendamente escancarada e
ávida, rompia aos roucos urros, implorando água, água! No seu furor asunhas,
que uma volta de amarras lhe colara contra as fortes coxas, esfarrapavam a
carne, cravavam-se na fenda esfarrapada, ensopadas de sangue.E o furioso
tumulto esmorecia num longo gemer cansado — até que parecia adormecido nos
grossos nós das cordas, as barbas reluzindo sob o suor que as alagara como sob
um grosso orvalho, e entre elas a espantada lividez dum sorriso delirado.No
entanto já na hoste derramada pelos cerros, como por um palanque, se embotara a
curiosidade bravia daquele suplício novo. E, se acercava a hora da ração
demeridiana. O adail de Santa Ireneia, depois o almocadém espanhol, mandaram
soar os anafis. Então todo o áspero ermo se animou com uma faina de arraial. O
armazém das duas mesnadas parara por detrás dos morros, numa curta almargem de
erva, onde umregato claro se arrastava nos seixos, por entre as raízes de
amieiros e chorões. Numa pressa esfaimada, saltando sobre as pedras, os peões
corriam para a fila dos machos decarga, recebiam dos uchões e estafeiros a
fatia de carne, a grossa metade dum pão escuro; e, espalhados pela sombra do
arvoredo, comiam com silenciosa lentidão, bebendo da água do regato pelas
concas de pau. Depois preguiçavam, estirados na relva- ou trepavam em bando
pela outra encosta dos morros, através do mato, na esperança de atravessar com
um virote alguma caça erradia. Na ribanceira, diante da lagoa, oscavaleiros,
sentados sobre grossas mantas, comiam também, em roda dos alforges abertos,
cortando com os punhais nacos de gordura nas grossas viandas de porco,
empinando, em longos tragos, as bojudas cabaças de vinho.Convidado por D- Pedro
de Castro, o velho Sabedor descansava, partilhando duma larga escudela de
barro, cheia de bolo papal, dum bolo de mel e flor de farinha,onde ambos
enterravam lentamente os dedos, que depois limpavam ao forro dos morriões. Só o
velho Tructesindo não comia, não repousava, hirto e mudo diante do seu pendão,
entre os seus dois mastins, naquele fero dever de acompanhar, sem que
lheescapasse um arrepio, um gemido, um fio de sangue, a agonia do Bastardo.
Debalde o

Castelão,
estendendo para ele um pichel de prata, gabava o seu vinho de Tordesilhas,fresco
como nenhum de Aquilat ou de Provins, para a sede de tão rija arrancada. O
velho rico-homem nem atendera; — e D. Pedro de Castro, depois de atirar dois
pães aos alões fiéis, recomeçou discorrendo com Garcia Viegas sobre aquele
teimoso amor doBastardo por Violante Ramires que arrastara a tantos homizios e
furores.

— Ditosos
nós, Sr. D. Garcia! Nós a quem a idade e o quebranto e a fartura jáarredam
dessas tentações… Que a mulher, como me ensinava certo físico quando eu
andava com os Mouros, é vento que consola e cheira bem, mas tudo enrodilha e
esbandalha. Vede como os meus por elas penaram! Só meu pai, com aquela
desvairançade zelos, em que matou a cutelo minha doce madre Estevaninha. E ela
tão santa, e filha do Imperador! A tudo, tudo leva, a tonta ardência! Até a
morrer, como este, sugado porbichas, diante duma hoste que merenda e mofa. E
por Deus, quanto tarda em morrer, Sr. D. Garcia!


Morrendo está, Sr. D. Pedro de Castro. E já com o demo ao lado para o levar!O
Bastardo morria. Entre os nós das cordas ensanguentadas todo ele era uma
ascorosa avantesma escarlate e negra com as viscosas pastas de bichas que o
cobriam,latejando com os lentos fios de sangue, que de cada ferida escorriam,
mais copiosos que os regos de humidade por um muro denegrido.

O
desesperado arquejar cessara, e a ânsia contra as cordas, e todo o furor. Mole
einerte como um fardo, apenas a espaços esbugalhava horrendamente os olhos
vagarosos, que revolvia em torno com enevoado pavor. Depois a face abatia,
lívida e flácida, com obeiço pendurado, escancarando a boca em cova negra, de
onde se escoava uma baba ensanguentada. E das pálpebras novamente cerradas,
entumecidas, um muco gotejava, também como de lágrimas engrossadas com sangue.A
peonagem, no entanto, voltando da ração, reatulhava a ribanceira, pasmava, com
rudes chufas, para o corpo pavoroso que as bichas ainda sugavam. já os
pajensrecolhiam manéis e alforges. D. Pedro de Castro descera do cabeço com o
Sabedor até àborda da água lodosa, onde quase mergulhava os sapatos de ferro,
para contemplar, mais de cerca, o agonizante de tão rara agonia! E alguns
senhores, estafados com adelonga, afivelando os gibanetes, murmuravam: — «Está
morto! Está acabado!»

Então
Garcia Viegas gritou ao coudel dos besteiros:- Ermigues, ide ver se ainda resta
alento naquela postema. O coudel correu pelo passadiço de traves, e arrepiado
de nojo palpou a lívida carne, acercou da boca, toda aberta, a lâmina clara da
adaga que desembainhara.- Morto! morto! — gritou.

Estava
morto. Dentro das cordas que o arroxeavam, o corpo escorregava,engelhado,
chupado, esvaziado. O sangue já não manava, havia coalhado em postas escuras,
onde algumas bichas teimavam latejando, reluzindo, E outras ainda subiam,
tardias. Duas, enormes, remexiam na orelha. Outra tapava um olho. O Claro Sol
não eramais que uma imundície que se decompunha. Só a madeixa dos cabelos
louros, repuxada, presa na argola, reluzia com um lampejo de chama, como rastro
deixado pelaardente alma que fugira.

Com a
adaga ainda desembainhada, e que sacudia, o coudel avançou para o senhor de
Santa Ireneia, bradou:- Justiça está feita, que mandastes fazer no perro
matador que morreu!

Então o
velho rico -homem atirando o braço, o cabeludo punho, com possanteameaça,
bradou, num rouco brado que rolou por penhascos e cerros: — Morto está! E assim
morra de morte infame quem traidoramente me afronte a mim e aos da minha
raça!Depois, cortando rigidamente pela encosta do cerro, através do mato, e com
um largo aceno ao alferes do pendão:- Afonso Gomes, mandai dar as buzinas. E a
cavalo, se voz apraz, Sr. D. Pedro de Castro, primo e amigo, que leal e bom me
fostes!…

O
Castelão ondeou risonhamente o guante:- Por Santa Maria, primo e amigo! que
gosto e honra os recebi de vós. A cavalo, pois, se vos apraz! Que nos promete
aqui o Sr. D. Garcia vermos ainda, com Sol muitoalto, os muros de Montemor.

Já a
peonagem cerrava as quadrilhas, os donzéis de armas puxavam para a ribanceira
os ginetes folgados que a vasta água escura assustava. E, com os dois
balsõestendidos, o açor negro, as treze arruelas, a fila da cavalgada atirou o
trote pelo barranco empinado, de onde as pedras soltas rolavam. No alto, alguns
cavaleiros ainda se torciamnas selas, para silenciosamente remirarem o homem de
Baião, que lá ficava, amarrado ao pilar, na solidão do pego, a apodrecer. Mas
quando a ala dos besteiros e fundibulários de Santa Ireneia desfilou, uma rija
grita rompeu, com chufas, sujasinjurias ao «perro matador». A meio da escarpa,
um besteiro, virando, retesou furiosamente a besta. A comprida garrucha apenas
varou a água. Outra logo zuniu, euma bala de funda, e uma seta ervada — que se
espetou na ilharga do Bastardo, sobre um negro novelo de bichas. O coudel
berrou: «cerra! anda!» A récua das azémolas de carga avançava, sob o estalar
dos látegos; os moços da carriagem apanhavam grossospedregulhos, apedrejavam o
morto. Depois os servos carreteiros marcharam, nos seus curtos saios de couro
cru, balançando um chuço curto; — e o capataz apanhousimplesmente esterco das
bestas, que chapou na face do Bastardo, sobre as finas barbas de ouro.

 

 

Capítulo XI

 

Quando
Gonçalo, estafado e já todo o ardor bruxuleando, retocou este derradeirotraço
da afronta — a sineta no corredor repicava para o almoço. Enfim! Deus louvado!
eis finda essa eterna Torre de Ramires! Quatro meses, quatro penosos meses
desdejunho, trabalhara na sombria ressurreição dos seus avós bárbaros. Com uma
grossa e carregada letra, traçou no fundo da tira Finis. E datou, com a hora,
que era do meio -diae catorze minutos.

Mas
agora, abandonada a banca onde tanto labutara, não sentia o contentamento
esperado. Até esse suplício do Bastardo lhe deixara uma aversão por aquele
remotomundo Afonsino, tão bestial, tão desumano! Se ao menos o consolasse a
certeza de que reconstituíra, com luminosa verdade, o ser moral desses avós
bravios… Mas quê! bemreceava que sob desconcertadas armaduras, de pouca
exactidão arqueológica, apenas se esfumassem incertas almas de nenhuma
realidade histórica!… Até duvidava que sanguessugas recobrissem, trepando dum
charco, o corpo dum homem, e o sugassemdas coxas às barbas, enquanto uma hoste
mastiga a ração!… Enfim, o Castanheiro louvara os primeiros capítulos. A
multidão ama, nas novelas, os grandes furores, osangue pingando; e em breve os
ANAIS espalhariam, por todo o Portugal, a fama daquela Casa ilustre, que armara
mesnadas, arrasara castelos, saqueara comarcas por orgulho de pendão, e
afrontara arrogantemente os Reis na cúria e nos campos de lide. Oseu Verão,
pois, fora fecundo. E para o coroar, eis agora a eleição, que o libertava das
melancolias do seu buraco rural…Para não retardar as visitas ainda devidas
aos influentes, e também para espairecer, logo depois de almoço montou a cavalo
apesar do calor, que desde a véspera, e naquele meado de Outubro, esmagava a
aldeia com o refulgente peso dumacanícula de Agosto. Na volta da estrada dos
Bravais um homem gordo, de calça branca enxovalhada, que se apressava, bufando,
sob o seu guarda -sol de paninho vermelho,deteve o Fidalgo com uma cortesia
imensa. Era o Godinho, amanuense da Administração. Levava um oficio urgente ao
Regedor dos Bravais, e agora corria à Torre de mandado do Sr.
Administrador…Gonçalo recuou a égua para a sombra duma carvalha:

— Então
que temos, amigo Godinho?O Sr. Administrador anunciava a S. Ex-a que o maroto
do Ernesto, o valentão de Nacejas, em tratamento no Hospital de Oliveira,
melhorara consideravelmente. já lhe repegara a orelha, a boca soldava.. E, como
se procedeu à querela, o patife passava daenfermaria para a cadeia…

Gonçalo
protestou logo, com uma palmada no selim:- Não senhor! Faça o obséquio de dizer
ao Sr. João Gouveia, que não quero que se prenda o homem! Foi atrevido, apanhou
uma dose tremenda, estamos quites.

— Mas,
Sr. Gonçalo Mendes…- Pelo amor de Deus, amigo Godinho! Não quero, e não
quero… Explique bem ao

Sr. João
Gouveia… Detesto vinganças. Não estão nos meus hábitos, nem nos hábitos
daminha família. Nunca houve um Ramires que se vingasse… Quero dizer, sim,
houve, mas… Enfim explique bem ao Sr. João Gouveia. De resto eu logo o
encontro, na Assembleia… Bem basta ao homem ficar desfeado. Não consinto que,
o apoquentemmais!… Detesto ferocidades.

— Mas…-
Esta é a minha decisão, Godinho! — Lá darei o recado de V. Ex-a


Obrigado. E adeus!… Que calor, hem!- De rachar, Sr. Gonçalo Mendes, de
rachar! Gonçalo seguiu, revoltado pela ideia de que o pobre valentão de
Nacejas, aindamoído, com a orelha mal soldada, baixasse à sórdida enxovia de
Vila Clara, para dormir sobre uma tábua. Pensou mesmo em galopar para Vila Clara,
reter o zelo legal do João Gouveia. Mas perto, adiante do lavadouro, era a casa
dum influente, o João Firmino,carpinteiro e seu compadre. E para lá trotou,
apeando ao portal do quinteiro. O compadre Firmino largara cedo para a
Arribada, onde trabalhava nas obras do lagar doSr. Esteves. E foi a comadre
Firmina que correu da cozinha, obesa e luzidia, com dois pequenos dependurados
das saias e mais sujos que esfregões. O Fidalgo beijou ternamente as duas faces
ramelosas:- E que rico cheiro a pão fresco, oh comadre! Foi a fornada, hem?
Pois então grande abraço ao Firmino. E que se não esqueça! A eleição vem para o
outro domingo.Lá conto com o voto dele. E olhe que não é pelo voto, é pela
amizade.

A comadre
arreganhava os dentes magníficos, num regalado e gordo riso: — «Ai o Fidalgo
podia ficar seguro! Que o Firmino já jurara, até ao Sr. Regedor, que para
oFidalgo era todo o sítio a votar, e quem não fosse a amor ia a pau». O Fidalgo
apertou a mão da comadre — que do degrau do quinteiro, com os dois pequenos
enrodilhados nassaias, e o gordo riso mais embevecido, seguiu a poeira da égua
como o sulco dum Rei benéfico.

E depois
nas outras visitas, ao Cerejeira, ao Ventura da Chiche, encontrou omesmo
fervor, os mesmos sorrisos luzindo de gosto. «O quê! para o Fidalgo! Isso tudo!

E nem que
fosse contra o Governo!» -Na tasca do Manuel da Adega, um rancho
detrabalhadores bebia, já ruidoso, com as jaquetas atiradas para cima dos
bancos; o Fidalgo bebeu com eles, galhofando, gozando sinceramente a pinga
verde e o barulho. O mais velho, um avejão escuro, sem dentes, e a face mais
engelhada que uma ameixaseca, esmurrou com entusiasmo o balcão: -«Isto,
rapazes, é Fidalgo que, quando um pobre de Cristo escalavra a perna, lhe
empresta a égua, e vai ele ao lado mais dumalégua a pé, como foi com o Solha!
Rapazes, isto é Fidalgo para a gente ter gosto!» As saúdes atroaram a venda. E
quando Gonçalo montou, todos o cercavam como vassalos ardentes, que a um aceno
correriam a votar — ou a matar!Em casa do Tomás Pedra, a avó Ana Pedra, uma
velha entrevada, muito velha e trémula, rompeu a choramingar por o seu Tomás
andar para o Olival, quando o Fidalgoo visitava. «Que aquilo era como visita de
santo!»

— Ora
essa, tia Pedra! Pecador, grande pecador! Dobrada na cadeirinha baixa, com as farripas
brancas descendo do lenço, pelaface toda chupada de gelhas e peluda, a tia Ana
bateu no joelho agudo:

— Não
senhor! não senhor! que quem mostrou aquela caridade pelo filho doCasco, merece
estar em altar! O Fidalgo ria, beijocava pequenadas encardidas, apertava mãos
ásperas e rugosas como raízes, acendia o cigarro à brasa das lareiras,
conversando, com intimidade, dasmoléstias e dos derriços. Depois, no calor e pó
da estrada, pensava: — «E curioso! parece haver amizade, nesta gente!»Às quatro
horas, derreado, decidiu cessar o giro, recolher à Torre pela estrada mais
fresca da Bica Santa. E passara o lugarejo do Cerdal, quando na volta aguda do
caminho, rente ao souto de azinheiros, quase esbarrou com o Dr. Júlio, também
acavalo, também no seu giro, de quinzena de alpaca, alagado em suor, debaixo
dum guarda-sol de seda verde. Ambos detiveram as éguas, se saudaram
amavelmente.- Muito gosto em o ver, Sr. Dr. Júlio…


Igualmente, com muita honra, Sr. Gonçalo Ramires…

— Então
também na tarefa?…O Dr. Júlio encolheu os ombros: — Que quer V. Ex-a? Se me
meteram nesta! E sabe V. Ex-a como isto acaba?…Acaba em eu mesmo, no outro
domingo, votar em V. Ex-a. O Fidalgo riu. Ambos se debruçaram, para se
apertarem as mãos com alegria, com estima.- Que calor este, Sr. Dr. Júlio!


Horroroso, Sr. Gonçalo Ramires… E que maçada!Assim o Fidalgo empregou essa
semana nas visitas aos eleitores «os grandes e os miúdos». E dois dias antes da
eleição, numa sexta -feira à tarde, com um tempo já maci o e fresco, partiu para
Oliveira — onde chegara, na véspera, o André Cavaleiro, depois dasua tão longa,
tão falada demora em Lisboa.

Nos
Cunhais, apenas saltara da caleche, logo se enfureceu ao saber, pelo bomJoão da
Porta — «que as Sr. as Lousadas estavam em cima, de visita, com a Srª D.
Graça…».

— Há
muito?- Já lá estão pegadas há meia hora boa, meu senhor.

Gonçalo
enfiou sorrateiramente para o seu quarto, pensando: — «Quedesavergonhadas!
Chegou o André, vêm logo cocar!» E já se lavara, mudara o fato cinzento —
quando o Barrolo apareceu, esbaforido, desusadamente radiante, de. sobrecasaca,
de chapéu alto, com as bochechas acesas, alvoroçadamente radiantes:- Eh, seu
Barrolo, que janota!

— Parece
bruxedo! — gritou o Barrolo, depois dum abraço, que repetiu, comdesacostumado
fervor. — Estava agora mesmo para te mandar um telegrama, que viesses…

— Para
quê?O Barrolo gaguejou, com um riso reprimido que o iluminava, o inchava:

— Para
quê? Para nada… Quero dizer, para a eleição! Pois a eleição é além deamanhã,
menino! O Cavaleiro chegou ontem. Agora volto eu do Governo Civil. Estive no
Paço com o Sr. Bispo, depois passei pelo Governo Civil… óptimo, o André!
Aparou o bigode, parece mais moço. E traz novidades… Traz grandes novidades!E
o Barrolo esfregava as mãos, num tão faiscante alvoroço, com tanto riso
escapando dos olhos e da face reluzente, que o Fidalgo o encarou
curioso,impressionado:

— Ouve
lá, Barrolinho! Tu tens alguma coisa boa para me anunciar? Barrolo recuou,
negou com estrondo. como quem bruscamente fecha uma porta.Ele? Não! Não sabia
nada! Só a eleição! Na Murtosa votação tremenda…

— Ah!
pensei — murmurou Gonçalo. — E a Gracinha?- A Gracinha também não! — Também não
quê, homem? Como está? Simplesmente como está? — Ah! está com as Lousadas. Há
mais de meia hora, aquelas bêbedas!…Naturalmente por causa do Bazar do Asilo
Novo… Esta maçada dos Bazares… E ouve lá, Gonçalinho! Tu ficas até
domingo?- Não, volto amanhã para a Torre.

— Oh!…
— Pois dia de eleição, homem! devo estar em casa, no meu centro, no meio dasminhas
freguesias…

— É pena
— murmurou o Barrolo. — Logo se sabia juntamente com a eleição… Eu dava um
jantar tremendo… — Logo se sabia, o quê?

O Barrolo
emudeceu, com outro riso nas bochechas, que eram duas brasasgloriosas. Depois
novamente gaguejou, gingando: — Logo se sabia… Nada! O resultado, o
apuramento. E grande bródio, grandefoguetório. Eu, na Murtosa, abro pipa de
vinho. Então Gonçalo, risonhamente, prendeu o Barrolo pelos ombros: — Diz lá,
Barrolinho. Diz lá. Tu tens uma coisa boa para contar ao teu cunhado.O outro
escapou, protestando com alarido: Que teima, que tolice. Ele não sabia nada. O
André não lhe contara nada!- Bem — concluiu o Fidalgo, certo de um amável
mistério, que pairava. -Então descemos. E se essas carraças das Lousadas ainda
estiverem lá pegadas, manda dizer pelo escudeiro à sala, bem alto, à Gracinha,
que cheguei, que lhe desejo falarimediatamente no meu quarto; com esses
monstros não há considerações.

O Barrolo
balbuciou, hesitando:- O Sr. Bispo gosta delas… Muito amável comigo, ainda há
pouco, o Sr. Bispo. Mas, logo nas escadas, sentiram o piano, Gracinha
cantarolando. já se libertara das Lousadas. Era uma antiga canção patriótica de
Vendeia, que outrora na Torre, ela eGonçalo entoavam com emoção, quando os
inflamava o amor fidalgo e romântico dos

Borbons e
dos Stuarts:

Monsieur
de Charette a dit à ceux d’Ancenes

«Mes
Amis!…» Monsieur de Charette a dit…

Gonçalo
franziu vagarosamente o reposteiro da sala, rematando a estrofe, com obraço
erguido como uma bandeira:

«Mes
Amis! Le Roy va rammener les Fleurs de Lys!»

Gracinha
saltou do mocho, numa surpresa. — Não te esperávamos! Imaginei que passavas a
eleição na Torre… E por lá?- Na Torre, tudo bem, com a ajuda de Deus… Mas
eu com trabalho imenso.

Acabei o
meu romance; depois visitas aos eleitores.Barrolo, que não sossegava pela sala,
rompeu para eles, com o mesmo riso sufocado:

— Queres
tu saber, Gracinha? Tem estado este homem, desde que chegou, numacuriosidade, a
ferver. Imagina que eu tenho uma boa nova, uma grande nova para lhe contar…
Eu não sei nada, a não ser a eleição! Pois não é verdade, Gracinha?Gonçalo,
muito sério, prendeu o queixo da irmã:

— Sabes
tu, diz lá. Ela sorriu, corada… Não, não sabia nada, só a eleição.- Diz lá!

— Não
sei… São tolices do José.Mas então, ante aquele sorriso fraco, rendido, que
confessava — o Barrolo não se conteve, desafogou como um morteiro estoura. —
Pois bem! sim! com efeito! — Grande novidade! Mas o André, que a trouxera de
Lisboa, fresquinha a saltar, queria ele, só ele,causar a surpresa a Gonçalo…

— De modo
que eu não posso! jurei ao André. A Gracinha sabe, que eu já lhecontei ontem…
Mas também não pode, também jurou. Só o André. Ele vem logo tomar chá, e
rebenta a bomba… Que é uma bomba! e graúda!

Gonçalo, roído
de curiosidade, murmurou simplesmente, encolhendo os ombros:- Bem, já sei, é
uma herança! Tens quinze tostões de alvíssaras, Barrolo. Mas durante o jantar e
depois na sala tomando café, enquanto Gracinharecomeçara as velhas canções
patrióticas, agora as jacobitas, em louvor dos Stuarts — Gonçalo ansiou pela
aparição do Cavaleiro. Nem receava que a esse encontro se misturasse amargura,
despeito sufocado. Todo o seu furor contra o Cavaleiro, aceso nadolorosa tarde
do mirante, revolvido na Torre durante torturados dias, logo se dissipara
lentamente, depois da sua tocante conversa com a irmã, na manhã histórica da
briga daGrainha. Gracinha então, com grandes lágrimas de pureza e de verdade,
jurara reserva, retraimento. Gonçalo, abandonando Oliveira, mostrava também uma
resistência louvável contra o sentimento ou a vaidade que o transviara. Demais
ele não podiaromper novamente com o Cavaleiro, andando ainda nos mexericos e
espantos de

Oliveira
aquela reconciliação ruidosa que chamara o Cavaleiro à intimidade dosCunhais. E
por fim de que valiam furores ou mágoas? Nenhum rugir ou gemer seu anulariam o
mal que se consumara no mirante — se porventura se consumara. E assim toda a
cólera contra o André se dissipara naquela sua leve e doce alma, onde
ossentimentos, sobretudo os mais escuros, os mais carregados, sempre facilmente
se desfaziam como nuvens em céu de Estio…Mas quando, perto das nove horas, o
Cavaleiro penetrou na sala, vagaroso e magnífico, com o bigode encurtado mas
mais retorcido, uma gravata vermelha entufando estridentemente no largo peito
que entufava, Gonçalo sentiu uma renovadaaversão por toda aquela petulância
recheada de falsidade — e apenas pôde bater molemente, desenxabidamente, nas
costas do velho amigo, que o apertava num abraçode aparatosa ternura. E
enquanto André, torcendo as luvas claras, languidamente enterrado na poltrona
que o Barrolo lhe achegou com carinho, contava de Lisboa e de Cascais, tão
alegre, e partidas de bridge e da Parada e de El-Rei — Gonçalo revivia atarde
do mirante, o seu pobre coração a bater contra a persiana mal fechada, a bruta
súplica murmurada através daqueles bigodes atrevidos, e emudecera,
comoempedernido, esmigalhando nervosamente entre os dentes o charuto apagado.
Mas Gracinha conservava uma serenidade atenta, sem nenhum dos seus chamejantes
rubores, dos seus desgraçados enleios de modo e gesto, apenas levemente seca,
duma securapreparada e posta. Depois André aludira muito desprendidamente ao
seu regresso a

Lisboa,
depois da eleição, «porque o tio Reis Gomes, o José Ernesto, esses
cruéisamigos, lhe andavam atirando para os ombros todo o trabalho da Nova
Reforma Administrativa».

Entre ele
e Gracinha, separados por um curto tapete, parecia cavada uma fundalégua de
fosso, onde rolara, se afundara todo aquele romance do Verão, sem que na face
de ambos restasse um afogueado vestígio do seu ardor, E Gonçalo,
insensivelmentecontente pela aparência, terminou por abandonar a cadeira onde
se empedernira, acendeu o charuto na vela do piano, perguntou pelos amigos de
Lisboa. Todos (segundo o Cavaleiro) ansiavam pela chegada de Gonçalo.- Lá
encontrei também o Castanheiro… Entusiasmado com o teu romance. Parece que
nem no Herculano, nem no Rebelo existe nada tão forte, como
reconstruçãohistórica. O Castanheiro prefere mesmo o teu realismo épico ao do
Flaubert, na Salambô. Enfim, entusiasmado! E nós, está claro, ardendo porque
apareça a sublime obra. O Fidalgo corou profundamente, murmurando: — «Que
tolice!» Depois roçou pela poltrona em que se enterrava o André, afagou suavemente
o largo ombro do André:- Pois, tens feito cá muita falta, meu velho! Há dias
passei em Corinde, tive saudades…

Então o
Barrolo, que não sossegava, vermelho, a estourar, rebolando pela sala,espiando
ora o Cavaleiro, ora o Gonçalo, com um riso mudo e ávido, não se conteve mais,
gritou:- Bem, basta de prólogos… Vamos lá agora à grande surpresa. André! Eu
tenho estado toda a tarde a rebentar… Mas enfim, jurei e calei! Agora não
posso… Vamos lá. E tu, Gonçalinho, vai preparando os quinze tostões.Gonçalo,
com a curiosidade de novo refervendo, apenas sorria, desprendidamente:

— Com
efeito! Parece que tens uma bela novidade.O Cavaleiro alargou lentamente os
braços, sempre enterrado na vasta poltrona, sem pressa:

— Oh! é a
coisa mais simples, mais natural… A Srª D. Graça já sabe, não éverdade?…
Não há motivo para surpresa… Tão legítima, tão natural!

Gonçalo
exclamou, já impaciente:- Mas enfim, venha lá, diz. O Cavaleiro insistia,
indolente. Todo o espanto era que só agora se pensasse em a realizar, coisa tão
devida, tão adequada. Pois não lhe parecia à Sr a D. Graça?Gonçalo, numa brasa,
berrou:

— Mas
quê? que diabo?O Cavaleiro, que se despegara vagarosamente da poltrona, puxou
os punhos, e diante de Gonçalo, no silêncio atento, alteando o peito, grave,
quase oficial, começou:

— Meu tio
Reis Gomes, e o José Ernesto, tiveram uma ideia muito natural, quecomunicaram a
El-Rei, e que El-Rei aprovou… Que aprovou mesmo ao ponto de a apetecer, de se
assenhorear dela, de desejar que fosse só sua. E hoje é só de El-Rei. El-Rei
pois pensou, como nós pensámos, que um dos primeiros fidalgos de Portugal,
decerto mesmo o primeiro, devia ter um titulo que consagrasse bem a antiguidade
ilustre da Casa, e consagrasse também o mérito superior de quem hoje a
representa…Por isso, meu querido Gonçalo, já te posso anunciar, e quase em
nome de El-Rei, que vais ser Marquês de Treixedo. — Bravo! bravo! — bramou o
Barrolo, com palmasdelirantes. Saltem para cá os quinze tostões, Sr. Marquês de
Treixedo!

— Bravo!
Bravo! — bramou o Barrolo, com palmas delirantes. — Saltem para cá os quinze
tostões, Sr. Marquês de Treixedo!Uma onda de sangue cobria a fina face de
Gonçalo. Num relance sentiu que o título era um dom do Cavaleiro, não ao chefe
da casa de Ramires mas ao irmãocomplacente de Gracinha Ramires… E sobretudo
sentia a incoerência de que, ao chefe duma Casa dez vezes secular, mãe de
dinastias, edificadora do Reino, com mais de trinta dos seus varões mortos sob
a armadura, se atirasse agora um oco título, oco título,através do Diário do
Governo, como a um tendeiro enriquecido que subsidiou eleições. Todavia saudou
o Cavaleiro, que esperava a efusão, os abraços. — Oh! Marquês deTreixedo!
certamente muito elegante, muito amável… Depois, esfregando as mãos, com um
sorriso de graça e de espanto… Mas, meu caro André, com que autoridade me faz
El-Rei Marquês de Treixedo?O Cavaleiro levantou vivamente a cabeça numa
ofendida surpresa:

— Com que
autoridade? Simplesmente com a autoridade que tem sobre nós todos,como Rei de
Portugal que ainda é, Deus louvado! E Gonçalo, muito simplesmente, sem fumaça
ou pompa, com o mesmo sorriso de suave gracejo:- Perdão, Andrezinho. Ainda não
havia Reis de Portugal, riem sequer Portugal, e já meus avós Ramires tinham
solar em Treixedo! Eu aprovo os grandes dons entre osgrandes fidalgos; mas
cumpre aos mais antigos começarem. El-Rei tem uma quinta ao pé de Beja, creio
eu, o Roncão. Pois diz tu a El-Rei, que eu tenho imenso gosto em ofazer, a ele,
Marquês do Roncão.

O Barrolo
embasbacara, sem compreender, com as bochechas descaídas emurchas. Da beira do
canapé, Gracinha, toda corada, faiscava de gosto, por aquele lindo orgulho que
tão bem condizia com o seu, mais lhe fundia a alma com a alma do irmão amado. E
André Cavaleiro, furioso, mas vergando os ombros com irónica submissão,apenas
murmurou: — «Bem, perfeitamente!… Cada um se entende a seu modo…».

O
escudeiro entrava com a bandeja do chá.E no domingo foi a eleição. Ainda com
uma desconfiança, uma reserva supersticiosa, o Fidalgo desejou atravessar esse
dia muito solitariamente, quase escondido, e no sábado, enquanto todosos amigos
de Vila Clara, mesmo os de Oliveira, o consideravam estabelecido nos

Cunhais,
e em comunicação azafamada com o Governo Civil, montou a cavalo aoescurecer, e
trotou sorrateiramente para Santa Ireneia.

Mas o
Barrolo (ainda abalado com «aquele despautério de Gonçalo, que era uma ofensa
para o Cavaleiro! até para El-Rei») ficara com a missão de telegrafar para
aTorre as notícias sucessivas das assembleias, à maneira que elas acudissem ao
Governo

Civil. E,
com ruidoso zelo, logo depois da missa, estabeleceu entre os Cunhais e o
velhoConvento de S. Domingos um serviço de criados formigando sem repouso.
Gracinha, na sala de jantar, ajudada por Padre Soeiro, copiava com amor, numa letra
muito redonda, os telegramas mandados pelo Cavaleiro, que ajuntava a lápis
alguma nota amável -«

Tudo
optimamente! — Vitória cresce. — Parabéns a V. Ex.as».

Pela
estrada de Vila Clara à Torre, incessantemente, o moço do Telégrafo seesbaforia
sobre a perna manca. O Bento rompia pela livraria, berrando: «outro telegrama,
Sr. Doutor». Gonçalo, nervoso, com um imenso bule de chá sobre a banca, a
bandeja já alastrada de cigarros meio fumados, lia o telegrama ao Bento. O
Bento, com vivas pelo corredor, corria a bramar o telegrama à Rosa.

E assim,
quando cerca das oito horas, o Fidalgo consentiu em jantar — já conheciao seu
triunfo esplêndido. E o que o impressionava, relendo os telegramas, era o
entusiasmo carinhoso daqueles influentes, povos que ele mal rogava, e que
convertiam o acto da eleição quase num acto de amor. Toda a freguesia dos
Bravais marchara para aigreja, cerrada como uma hoste, com o José Casco na
frente erguendo uma enorme bandeira, entre dois tambores que estouravam. O
Visconde de Rio Manso entrara noadro da igreja de Ramilde na sua vitória, com a
neta toda vestida de branco, seguido por um vistosa fila de char-à-bancs, onde
se apinhavam eleitores sob toldos de verdura. Na Finta todos os casais se
esvaziavam, as mulheres carregadas de ouro, os rapazes de florna orelha,
correndo à eleição do Fidalgo entre o repenicar das violas, como à romaria de
um santo. E diante da taberna do Pintainho, em face à igreja, a gente da
Veleda, daRiosa, do Cercal, erguera um arco de buxo, com dístico vermelho, sobre
paninho: — «Viva o nosso Ramires, flor dos homens!»

Depois,
enquanto jantava, um moço da quinta voltou de Vila Clara, alvoroçado,contando o
delírio, as filarmónicas pelas ruas, a Assembleia toda embandeirada, e na casa
da Câmara, sobre a porta, um transparente com o retrato de Gonçalo, que
umamultidão aclamava.

Gonçalo
apressou o café. Por timidez, receoso dos vivórios, não ousava correr a Vila
Clara — a espreitar. Mas acendeu o charuto, passou à varanda, para respirar a
docenoite de festa, que andava tão cheia de clarões e rumores em seu louvor. E
ao abrir a porta envidraçada quase recuou, com outro espanto. A Torre
iluminara! Das suas fundasfrestas, através das negras rexas de ferro, saía um
clarão; e muito alta, sobre as velhas ameias, refulgia uma serena coroa de
lumes! Era uma surpresa, preparada, com delicioso mistério, pelo Bento, pela
Rosa, pelos moços da quinta — que, agora, todos, noescuro, por baixo da
varanda, contemplavam a sua obra, alumiando o céu sereno. Gonçalo percebeu os
passos abafados, o pigarro da Rosa. Gritou alegremente da bordada varanda:

— Oh,
Bento! Oh, Rosa!… Está aí alguém? Um risinho esfuziou. A jaqueta branca do
Bento surdiu da sombra.- O Sr. Doutor queria alguma coisa?

— Não,
homem! Queria agradecer… Foram vocês, hem? Está linda a iluminação!Mas linda.
Obrigado, Bento. Obrigado, Rosa! Obrigado, rapazes! De longe deve fazer um
efeito soberbo.

Mas o
Bento ainda se não contentava com aquelas lamparinas frouxas. A Torre,para
sobressair, necessitava chamas fortes de gás. O Sr. Doutor nem imaginava a
altura, depois em cima, a imensidão do eirado.Então de repente, Gonçalo sentiu
um desejo de subir a esse imenso eirado da Torre. Não entrara na Torre desde
estudante — e sempre ela lhe desagradara por dentro, tão escura, de tão duro
granito, com a sua nudez, silêncio e frialdade de jazigo, e logono pavimento
térreo os negros alçapões chapeados de ferro, que levavam às masmorras.

Mas agora
as luzes nas frestas aqueciam, reviviam aquela derradeira ossada, Honra
deOrdonho Mendes. E de entre as suas ameias, mais alto que da varanda, lhe
parecia interessante respirar aquela rumorosa simpatia esparsa, que em to pelas
freguesias, rolava, subindo para ele, através da noite, como um incenso. Enfiou
um paletó, desceu àcozinha. O Bento, o Joaquim da horta, divertidos, agarraram
grandes lanternas. E com eles atravessou o pomar, penetrou pela atarracada
poterna, de funda ombreira, começoua trepar a esguia escadaria de pedra, que
tanta sola de ferro polira e puíra.

Já desde
séculos se perdera a memória do lugar que ocupava aquela torre, nas complicadas
fortificações da Honra e Senhorio de Santa Ireneia. Não era decerto(segundo
Padre Soeiro) a nobre torre albarrã, nem a de Alcáçova, onde se guardava o
tesouro, o cartório, os sacos tão preciosos das especiarias do Oriente — e
talvez, obscurae sem nome, apenas defendesse algum ângulo de muralha, para os
lados em que o castelo enfrentava com as terras semeadas e os olmedos da
Ribeira. Mas, sobrevivente às outras mais altivas, compreendida nas construções
do Paço formoso que se erguerade entre o sombrio castelo Afonsino, e que
dominava Santa Ireneia durante a dinastia de

Avis,
ligada ainda por claras arcarias dum terraço ao palácio de gosto italiano, em
queVicente Ramires converteu o Paço manuelino, depois da sua campanha de
Castela; isolada no pomar, mas sobranceando o casarão que, lentamente, se
edificara depois do incêndio do palácio em tempo de El-Rei D. José, e a
derradeira certamente onderetiniram armas e circularam os homens do Terço dos
Ramires — ela ligava as idades e como que mantinha, nas suas pedras eternas, a
unidade da longa linhagem. Por isso opovo lhe chamara vagamente a «Torre de D.
Ramires». E Gonçalo, ainda sob a impressão dos avós e dos tempos que
ressuscitara na sua novela, admirou com um respeito novo a sua vastidão, a sua
força, os seus empinados escalões, os seus muros tãoespessos, que as frestas
esguias na espessura se alongavam como corredores, escassamente alumiadas pelas
tigelinhas de azeite, com que o Bento as despertara. Emcada um dos três
sobrados parou, penetrando curiosamente, quase com uma intimidade, nas salas
nuas e sonoras, de vasto lajedo, de tenebrosa abóbada, com os assentos de
pedra, estranho buraco ao meio, redondo como o dum poço e ainda pelas
paredesriscadas de sulcos de fumos, os anéis dos tocheiros. Depois em cima, no
imenso eirado que a fieira de lamparinas, cingindo as ameias, enchia de
claridade, Gonçalo, erguendoa gola do paletó na aragem mais fina, teve a
dilatada sensação de dominar toda a província, e de possuir sobre ela uma
supremacia paternal, só pela soberana altura e velhice da sua Torre, mais que a
Província e que o Reino. Lentamente caminhou emroda das ameias, até ao
miradouro, a que um candeeiro de petróleo, sobre uma cadeira de palhinha posta
em frente à fresta, estragava o entono feudal. No céu macio, maslevemente
enevoado, raras estrelas luziam, sem brilho. Por baixo a quinta, toda a
largueza dos campos, a espessura dos arvoredos se fundiam em escuridão. Mas na
sombra e silêncio, por vezes além, para o lado dos Bravais, lampejavam
foguetesremotos. Um clarão amarelado e fumarento, caminhando mais longe,
entestando para a

Finta,
era decerto um rancho com archotes festivos. Na alta igreja da Veleda
tremeluziauma iluminação vaga, rala. Outras luzes, incertas através do
arvoredo, riscavam o velho arco do Mosteiro, em Santa Maria de Craquede. Da
terra escura subia, por vezes, um errante som de tambores. E lumes, fachos,
abafados rufos, eram dez freguesiascelebrando amoravelmente o Fidalgo da Torre,
que lhes recebia o amor e o preito no eirado da sua torre, envolto em silêncio
e sombra.O Bento descera, com o Joaquim, para reforçar as lamparinas nas
frestas dos muros, onde elas esmoreciam na espessura. E Gon çalo sozinho,
acabando o charuto, recomeçou a rolda, lento, em tomo às ameias, perdido num
pensamento que já o agitaraestranhamente, através daquele sobressaltado
domingo… Era pois popular! Por todas essas aldeias, estendidas à sombra longa
da Torre, o Fidalgo da Torre era pois popular!E esta certeza não o penetrava de
alegria, nem de orgulho — antes o enchia agora, naquela serenidade da noite, de
confusão, de arrependimento! Ah! se adivinhasse — se ele adivinhasse!… Como
caminharia, com a cabeça bem levantada, com os braços bemestendidos, sozinho,
em confiança risonha para todas essas simpatias que o esperavam, tão certas,
tão dadas. Mas não! Sempre se julgara cercado da indife rença daquelasaldeias,
onde, ele apesar do antiquíssimo nome, era o costumado moço, que volta de
Coimbra e vive silenciosamente da sua renda, passeando na sua égua. A essas
indiferenças tão naturais nunca ele imaginara arrancar o punhado de votos, o
punhadode papelinhos que necessitava para entrar na Política, onde ele con
quistara pela destreza o que os velhos Ramires recebiam por herança, fortuna e
poder. Por isso se agarrara tãoavidamente à mão do Cavaleiro, à mão do Sr.
Governador Civil — para que S. Ex-a, o bom amigo, o mostrasse, o impusesse como
o homem necessário, o querido do Governo, o melhor entre os bons, a quem as freguesias
deviam oferecer num domingo opunhado de votos.

E na
impaciência desse favor, abafara a memória de amargos agravos; diante
deOliveira pasmada, abraçara o homem detestado desde anos, que andava
chasqueando e demolindo, por praças e jornais; facilitara a ressurreição de
sentimentos, que para sempre deviam jazer enterrados; e envolvera o ser que
mais amava, a sua pobre e fracairmãzinha, em confusão e miséria moral…
Torpezas e danos — e para quê? Para surripiar um punhado de votos que dez
freguesias lhe trariam correndo, gratuitamente,efusivamente, entre vivas e
foguetes, se ele acenasse e lhos pedisse…Ah! eis aí… Fora a desconfiança,
essa encolhida desconfiança de si mesmo — que desde o colégio, através da vida,
lhe estragara a vida. Era a mesma desgraçadadesconfiança, que ainda semanas
antes, diante de uma sombra, um pau erguido, uma risada numa taberna, o forçava
a abalar, a fugir, arrepiado e praguejando contra a suafraqueza. Por fim, um
dia, numa volta de estrada, avança, ergue o chicote — e descobre a sua força! E
agora, penetra por entre o povo, agarrado timidamente à mão poderosa, por se
imaginar impopular — e descobre a sua popularidade imensa. Que vida enganada,
etanto a sujara — por não saber!

O Bento
não aparecia, ainda azafamado em iluminar condignamente as rexas daTorre.
Gonçalo atirou a ponta do charuto, e com as mãos nas algibeiras do paletó,
parou junto do miradouro, olhou vagamente para as estrelas. A névoa adelgaçara
quase sumida lumes mais vivos palpitavam no céu mais profundo. De lumes e céus
descia essasensação de infinidade, de eternidade, que penetra, como uma
surpresa, nas almas desacostumadas da sua contemplação. Na alma de Gonçalo
passou, muito fugidamente,o espanto dessas eternas imensidades sob que se
agita, tão vaidosa da sua agitação, a rasteira, a sombria poeira humana. Longe,
algum derradeiro foguete ainda lampejava, logo apagado na escuridão serena. As
luzinhas sobre a capela de Veleda, sobre o arco deSanta Maria de Craquede,
esmoreciam, já ralas. Todo o remoto rumor de musicatas se perdera, na mudez
mais funda dos campos adormecidos. O dia de triunfo findava, brevecomo os
luminares e os foguetes. — E Gonçalo, parado, rente do miradouro, considerava
agora o valor desse triunfo por que tanto almejara, por que tanto sabujara.
Deputado! Deputado por Vila Clara, como o Sanches Lucena. E ante esse
resultado, tão miúdo, tãotrivial — todo o seu esforço tão desesperado, tão sem
escrúpulos, lhe parecia ainda menos imoral que risível. Deputado! Para quê?
Para almoçar no Bragança, galgar detipóia a ladeira de S. Bento, e dentro do
sujo convento, escrevinhar na carteira do Estado alguma carta ao seu alfaiate,
bocejar com a inanidade ambiente dos homens e das ideias, e distraidamente
acompanhar, em silêncio ou balando, o rebanho de S. Fulgêncio, porter desertado
o rebanho idêntico do Brás Vitorino. Sim, talvez um dia, com rasteiras intrigas
e sabujices a um chefe e à senhora do chefe, e promessas e risos através
deredacções, e algum discurso esbraseadamente berrado — lograsse ser ministro.
E então? Seria ainda a tipóia pela calçada de S. Bento, com o correio atrás na
pileca branca, e a farda malfeita, nas tardes de assinatura, e os recurvados
sorrisos de amanuenses pelosescuros corredores da Secretaria, e a lama
escorrendo sobre ele de cada gazeta da oposição… Ah! que peca,
desinteressante vida, em comparação de outras cheias desoberbas vidas, que tão
magnificamente palpitavam sob o tremeluzir dessas mesmas estrelas! Enquanto ele
se encolhia no seu paletó, deputado por Vila Clara, e no triunfo dessa miséria.
— Pensadores completavam a explicação do Universo; Artistas realizavamobras de
beleza eterna; Reformadores aperfeiçoavam a harmonia social; Santos melhoravam
santamente as almas; Fisiologistas diminuíam o velho sofrer humano;Inventores alargavam
a riqueza das raças; Aventureiros magníficos arrancavam mundos de sua
esterilidade e mudez… Ah! esses eram os verdadeiramente homens, os que viviam
deliciosas plenitudes de vida, modelando com as suas mãos incansadas
formassempre mais belas ou mais justas da humanidade. Quem fora como eles, que
são os sobre-humanos! E tal acção tão suprema requeria o Génio, o dom que, como
a antigachama, desce de Deus sobre um eleito? Não! Apenas o claro entendimento
das realidades humanas — e depois o forte querer.

E o
Fidalgo da Torre, imóvel no eirado da Torre, entre o céu todo estrelado, e
aterra toda escura, longamente revolveu pensamentos da vida superior — até que
enlevado, e como se a energia da longa raça, que pela Torre passara, refluísse
ao seucoração, imaginou a sua própria encaminhada enfim para uma acção vasta e
fecunda, em que soberbamente gozasse o gozo do verdadeiro viver, e em torno de
si criasse vida, e acrescentasse um lustre novo ao velho lustre de seu nome, e
riquezas puras odourassem e a sua terra inteira o bem-louvasse, porque ele
inteiro e num esforço pleno bem servira a sua terra…O Bento surdiu da
portinha baixa do eirado, com a lanterna: — O Sr. Doutor ainda se demora?

— Não. A
festa acabou, Bento.

Nos
começos de Dezembro, com o primeiro numero dos ANAIS, apareceu a Torre de D.
Ramires. E todos os jornais, mesmo os da oposição, louvaram «esse
estudomagistral (como afirmou a Tarde) que, revelando um erudito e um artista,
continuava, com uma arte mais moderna e colorida, a obra de Herculano e de
Rebelo, areconstituição moral e social do velho Portugal heróico». Depois das
festas de Natal, que ele passou alegremente nos Cunhais, ajudando Gracinha a
cozinhar bolos debacalhau por uma receita sublime do Padre José Vicente, da
Finta, os amigos de Oliveira, os rapazes do Clube e da Arcada ofereceram ao
deputado por Vila Clara, na sala da Câmara, adornada de buxos e bandeiras, um
banquete, a que assistia o Cavaleiro,de grã-cruz, e em que o Barão das Marges
(que presidia) saudou «o prestigioso moço que, talvez em breve, nas cadeiras do
Poder, levantasse do marasmo este brioso país,com a pujança, a valentia, que
são próprias da sua raça nobilíssima!»

No meado
de janeiro, por uma agreste noite de chuva, Gonçalo partiu para Lisboa;e
através do Inverno, em Lisboa, andou sempre nos Carnet-Mondain e High-Life dos
jornais, nas notícias de jantares, do raouts, de tiros aos pombos, de caçadas
de El-Rei,tão notado nos movimentos mais simples da sua elegância, que os
Barrolos assinaram o

Diário
Ilustrado, para saber quando ele passeava na Avenida. Em Vila Clara, na
Assembleia, o João Gouveia já encolhia os ombros, rosnando: — «Desandou em
janota!»- Mas nos fins de Abril uma notícia de repente alvoroçou Vila Clara,
espantou na quieta

Oliveira
os rapazes do Clube e da Arcada, perturbou tão inesperadamente Gracinha,então
em Amarante com o Barrolo, que nessa noite ambos abalaram para Lisboa — e na
Torre atirou a Rosa para um banco de pedra da cozinha, lavada em lágrimas, sem
compreender, gemendo:- Ai o meu rico menino, o meu rico menino, que o não torno
mais a ver!

Gonçalo
Mendes Ramires, silenciosamente, quase misteriosamente, arranjara aconcessão
dum vasto prazo de Macheque, na Zambézia, hipotecara a sua quinta histórica de
Treixedo, e embarcava em começos de junho no paquete Portugal, com o Bento,
para a África.

 

Capítulo XII

 

Quatro
anos passaram ligeiros e leves sobre a velha Torre, como de ave.Numa doce tarde
dos fins de Setembro, Gracinha, que chegara na véspera de Oliveira acompanhada
pelo bom Padre Soeiro, descarisava na varanda da sala de jantar,estendida sobre
o canapé de palhinha, ainda com um grande avental branco, tapando o vestido até
ao pescoço, um velho avental do Bento. Todo o dia, de avental, através
docasarão, ajudada pela Rosa e pela filha da Crispola, se esfalfara, arrumando
e limpando, com tanto gosto e fervor no trabalho, que ela mesma sacudira o pó a
todos os livros da livraria, o seu sossegado pó de quatro anos. O Barrolo
também se ocupara, dandosentenças nas obras da cavalariça, que a valente égua
da briga da Grainha em breve partilharia com uma égua inglesa, de meio sangue,
comprada em Londres. TambémPadre Soeiro remexera, pelo Arquivo, zelosamente,
com um espanejador. E até o Pereira da Riosa, o bom rendeiro, apressava de
madrugada dois moços na final limpeza da horta, agora muito cuidada, já com
meloal, já com morangal, e duas novas ruas,ambas bordadas de roseiras e
recobertas de latada que a parra densa já recobria.

Com
efeito a Torre, entre a alvoroçada alegria de todos, enfeitava a sua velhice
-porque no domingo, depois dos seus quatro anos de África, Gonçalo regressava à
Torre. E Gracinha, estendida no canapé com o seu velho avental branco, sorrindo
pensativamente para a quinta silenciosa, para o céu todo corado sobre
Valverde,recordava esses quatro anos, desde a manhã em que abraçara Gonçalo,
sufocada e a tremer, no beliche do Portugal… Quatro anos! Assim passados, e
nada mudara nomundo, no seu curto mundo de entre os Cunhais e a Torre, e a vida
rolara, e tão sem história como rola um rio lento numa solidão; Gonçalo na
África, na vaga África, mandando raras cartas, mas alegres, e com um entusiasmo
de fundador de Império; elanos Cunhais, e o seu Barrolo, num tão quieto e
costumado viver, que eram quase de agitação os jantares em que reuniam os
Mendonças, os Marges, o coronel do 7, outrosamigos, e à noite na sala se abriam
duas mesas de pano verde para o voltarete e para o boston.

E neste
manso correr de vida se desfizera mansamente, quase insensivelmente, asombria
tormenta do seu coração. Nem ela agora compreendia como um sentimento, que
através das suas ansiedades ela justificava, quase secretamente santificava por
osaber único, e o desejar eterno, assim se sumira, insensivelmente, sem
dilacerações,deixara apenas um leve arrependimento, alguma esfumada saudade,
também estranheza e confusão, restos de tanto que ardera, formando uma cinza
fina… A sucessão das coisasrolara, como o vento às lufadas num campo, e ela
rolara, levada com a inércia duma folha seca.Logo depois do derradeiro Natal passado
com Gonçalo, André, que ainda os acompanhara à Missa do Galo e consoara nos
Cunhais, voltou para Lisboa, para essa «Reforma», de que se lastimava… No
silêncio que entre ambos então se alargou, corriajá uma frialdade de
abandono… E quando André recolheu a Oliveira, ao seu Governo

Civil,
partia ela para Amarante, onde a santa mãe do Barrolo adoecera, com umavagarosa
doença de anemia e velhice, que em Maio a levou para o Senhor.

Em junho
fora o comovido embarque de Gonçalo para a África — e no tombadilho do paquete,
entre o barulho e as bagagens, um encontro com André, que chegara deOliveira,
dias antes, e contou muito alegremente do casamento da Mariquinhas Marges.

Todo esse
Verão, como o Barrolo decidira fazer obras consideráveis no velho palacetedo Largo
de El-Rei, o passaram na quinta da Murtosa, que ela escolhera por causa dalinda
mata, dos altos muros de convento. A essa solidão atribuiu logo o Barrolo a sua
melancolia, a sua magreza, aquele cansado cismar a que se abandonava, pelos
bancosmusgosos da mata, com um romance esquecido no regaço. Para que ela se
distraísse, se fortificasse com banhos do mar, alugou em Setembro, na Costa, o
vistoso chalé docomendador Barros. Ela não tomou banhos, nem aparecia na praia,
à fresca hora das barracas, entre as senhoras sentadas em cadeirinhas baixas; —
e só à tarde passeava pelo comprido areal, rente à vaga, acompanhada por dois
enormes galgos que lhe deraManuel Duarte. Uma manhã ao almoço, ao abrir as
Novidades, Barrolo pulou, com um berro, um espanto. Era a queda inesperada do
Ministério do S. Fulgêncio! AndréCavaleiro apresentava logo a sua demissão pelo
telégrafo. E ainda pelas Novidadessouberam na Costa que S. Ex-a partira para
uma «longa e pitoresca viagem», a viagem a

Constantinopla,
à Ásia Menor, que ele anunciara ao jantar nos Cunhais. Ela abrira umAtlas: com
o dedo lento caminhou desde Oliveira até à Síria, por sobre fronteiras e
montes; já André lhe parecia desvanecido, nesses horizontes mais luminosos;
fechou oAtlas, pensando simplesmente «como a gente muda!»

Em
Novembro, voltaram a Oliveira, num sábado de chuva, e ela na carruagem sentia
toda a melancolia e a frialdade do céu penetrar no seu coração. Mas no
domingoacordou com um lindo sol nas vidraças. Para a missa das onze na Sé, ela
estreou um chapéu novo;. depois no caminho para casa da tia Arminda, levantou
os olhos para ocasarão do Governo Civil: agora habitava lá outro Governador
Civil, o Sr. Santos Maldonado, um moço louro que tocava piano.

Na outra
Primavera o Barrolo, agora escravizado pela paixão de obras, imaginoudemolir o
mirante para construir outra estufa, mais vasta, com um repuxo entre palmeiras,
que formaria «um jardim de Inverno catita».Os trabalhadores começaram por
esvaziar o mirante da velha mobília, que o guarnecia desde o tempo do tio
Melchior; o imenso divã jazeu dois dias no jardim, encalhado contra uma sebe de
buxo, e o Barrolo, impaciente com aquele desusadotraste, de molas quebradas,
nem o consentiu nas arrecadações do sótão, mandou que o queimassem com outras
cadeiras partidas, numa fogueira de festa, na noite dos anos deGracinha. E ela
andou em torno da fogueira. O estofo puído flamejou, depois o mogno pesado mais
lentamente, com um leve fumo, até que uma brasa ficou latejando, e a brasa
escureceu em cinza.Logo nessa semana as Lousadas, mais agudas, mais escuras,
invadiram uma tarde os Cunhais — e apenas espetadas no sofá, logo lhe contaram,
com um riso feroz nosolhinhos furantes, do grande escândalo, o Cavaleiro! em
Lisboa sem rebuço! com a mulher do Conde S. Romão! um fazendeiro de Cabo Verde!

Nessa
noite, ela escreveu a Gonçalo uma carta muito longa que começava: — «Porcá
estamos todos bem, e neste ramerrão costumado…». E com efeito a vida
recomeçara, no seu ramerrão, simples, contínua, e sem história, como corre um
rio claro numasolidão.

À porta
envidraçada da varanda o filho da Crispola, espreitou — o filho da Crispola,
que ficara sempre na Torre, como «andarilho», mas crescera muito para forada
sua antiga jaqueta de botões amarelos, usava agora jaquetões velhos do Sr. Doutor,
e já repuxava o buço:- É que está lá em baixo o Sr. António Vilalobos, com o
Sr. Gouveia e outro senhor, o Videirinha, e perguntam se podem falar à
senhora…

— O Sr.
Vilalobos! Sim! que subam, que entrem para aqui, para a varanda!Ao atravessar a
sala, onde dois esteireiros de Oliveira pregavam uma esteira nova, o vozeirão
do Titó já ribombava, notando os «preparativos da festa…». E quando entrouna
varanda, a sua face mais barbuda, mais requeimada, rebrilhava com a alegria de
encontrar enfim a Torre despertando daquela modorra, em que tudo dentro
pareciatristemente apagado, até o lume das caçarolas:

— Peço
desculpa da invasão, prima Graça. Mas passamos, de volta dum passeiodos
Bravais, soubemos que a prima viera com o Barrolo… — Oh! gosto imenso, primo
António. Eu é que peço desculpa desta figura, assim despenteada, de grande
avental… Mas todo o dia em arranjos, a preparar a casa… E o Sr.Gouveia,
como tem passado? Não o vejo desde a Páscoa.

O
Administrador, que não mudara nesses quatro anos, escuro, seco, como feito
demadeira, sempre esticado na sobrecasaca preta, apenas com o bigode mais
amarelado do cigarro, agradeceu à Srª D. Graça… E passara menos mal, desde a
Páscoa. A não ser a desavergonhada da garganta…- E então o nosso grande homem?
quando chega? quando chega?

— No
domingo. Estamos em alvoroço… Então não se senta Sr. Videira? Olhe,
puxeaquela cadeira de vime. A varanda por ora não está arranjada. Videirinha,
logo depois da eleição, recebera de Gonçalo o lugar prometido, fácil e com
vagares, para não esquecer o violão. Era amanuense na Administração do
Concelhode Vila Clara. Mas convivia ainda na intimidade do seu Chefe, que o
utilizava para todos os serviços, mesmo de enfermeiro, e o mandava sempre com
uma autoridade seca,mesmo ceando ambos no Gago.

Timidamente
arrastou a cadeira de vime, que colocou, com respeito, atrás da cadeira do seu
Chefe. E depois de tirar as luvas pretas que, agora, sempre trazia pararealçar
a sua posição, lembrou que o comboio chegava ao apeadeiro de Craquede às dez e
quarenta, não trazendo atraso. Mas talvez o Sr. Doutor apeasse em Corinde, por
causadas bagagens…

— Duvido
— murmurou Gracinha. — Em todo o caso o José está com tenção de partir de
madrugada, para o encontrar na bifurcação, em Lamelo.- Nós não! — acudiu o
Titó, que se sentara familiarmente no rebordo da varanda. –

Cá o
nosso rancho vai simplesmente a Craquede. Já é terra da família, é sitio
maissossegado para o vivório… Mas então esse homem não se demorou em Lisboa,
prima Graça?

— Desde
domingo, primo António. Chegou no domingo, de Paris, pelo Sud-Express. E teve
uma chegada brilhante… Oh! muito brilhante! Ontem recebi eu uma carta da
Maria Mendonça, uma grande carta em que conta…- O quê? A prima Maria Mendonça
está em Lisboa?

— Sim,
desde os fins de Agosto, numa visita a D. Ana Lucena… Vivamente, João Gouveia
puxou a cadeira, numa curiosidade que decerto oremoera:

— É
verdade, Srª D. Graça! — Então parece que a D. Ana Lucena comprou umacasa em
Lisboa, anda em arranjos de mobília?… V. Ex-a ouviu, Srª D. Graça? Não,
Gracinha não sabia. Mas era natural, agora que tanto se demorava em Lisboa,
pouco se aproveitava da Feitosa, tão linda quinta…- Então casa! — exclamou o
Gouveia, com imensa convicção. — Se anda em arranjos de mobília, então casa. É
natural, quer posição. Depois, já lá vão quatro anos deviuvez, e…

Gracinha
sorriu. Mas o Titó, que coçava lentamente a barba, voltou à carta da prima
Maria Mendonça, contando a chegada.- Sim! — acudiu Gracinha — conta, esteve na
estação, no Rossio. Parece que o

Gonçalo
óptimo, mais forte..; Olhe, primo António, leia a carta. Leia alto! Não
temsegredos. E toda sobre o Gonçalo…

Tirara do
bolso um pesado envelope, com sinetes de armas no lacre. Mas a primaMaria
escrevia sempre depressa, numa letra atabalhoada, com as linhas cruzadas.
Talvez o primo António não compreendesse… — E com efeito, diante das quatro
folhas de papeleriçadas de negras linhas, parecendo uma sebe espinhosa, o Titó
recuou, aterrado. Mas o João Gouveia imediatamente se ofereceu, com a sua
perícia em decifrar ofícios de regedores… Não havendo segredos.- Não, não há
segredos — afiançou Gracinha, rindo. — É unicamente sobre o

Gonçalo,
como num jornal.O Administrador folheou a imensa carta, passou os dedos sobre o
bigode, com certa solenidade:

«Minha
querida Graça: A costureira do Silva diz que o vestido…» Não! — acudiu
Gracinha. — É na outra página, no alto. Volte a página.Mas o Administrador
gracejou, ruidosamente. Oh! está claro, carta de senhora, logo os trapos… E a
Srª D. Graça a assegurar que era toda sobre Gonçalo. Pois já veriamse pelo meio
se não falava ainda em vestidos… Ali! estas senhoras, com os trapos!… —
Depois recomeçou, na outra página, com lentidão e gravidade:

«…Deves
agora estar ansiosa por saber da grande chegada do primo Gonçalo. Foi realmente
brilhante, e parecia uma recepção de pessoa real. Éramos mais de trinta amigos.
Está claro, apareceu toda a roda da nossa parentela; e se rebentasse de repente
nessa manhã uma revolução, os Republicanos apanhavam ali junta, na estação do
Rossio, toda a flor da nobreza de Portugal, da velha, da boa. De senhoras, era
a prima Chelas, a tia Louredo, as duas Esposendes (com o tio Esposende, que
apesar do reumatismo e da vindima, veio expressamente da quinta de Torres), e
eu. Homens, todos. E como estava o Conde de A rega, que é secretário de El-Rei,
e o primo Olhalvo, que é o seu Mordomo -mor, e o Ministro da Marinha e o
Ministro das Obras Públicas, ambos condiscípulos e íntimos de Gonçalo, as
pessoas na estação deviam imaginar que chegava El-Rei. O Sud-Express trouxe
quarenta minutos de demora. De modo que parecia um salão, com toda aquela gente
da sociedade, muito alegre, e o primo A rega, sempre tão amável e engraçado, e
fazendo já convites para um jantar (que depois deu) ao primo Gonçalo. Lá fui a
esse jantar com o meu vestido verde, novo, que ficou bem…».

Gouveia
gritou, triunfando:- Hem? que disse eu?! cá está vestido. Vestido verde! — Lê
para diante, homem! — bramou o Titó.

E o
Administrador, realmente interessado, recomeçou, com entono:

«… com
o meu vestido verde novo, excepto a saia, um pouco pesadota. Creio que fui eu a
primeira que avistou o primo Gonçalo, na plataforma do Sud-Express. Não
imaginas como vem… óptimo! A té mais bonito, e sobretudo mais homem. A África
nem de leve lhe tostou a pele. Sempre a mesma brancura. E duma elegância dum
apuro! Prova de como se adianta a civilização de África! dizia o primo A rega,
este é estilo novo de tangas em Macheque!… Como imaginas, muito abraço, muita
beijoca. A tia Louredo choramingou. Ah, já esquecia! Estava também o Visconde
de Rio Manso, com a filha, a Rosinha. Muito linda ela, com um vestido do
Redfern, fez sensação. Todos me perguntavam quem era, e o conde de A rega, está
claro, logo com apetite de ser apresentado. O Rio Manso também choramingou ao
abraçar o primo Gonçalo. E ali viemos todos, em nobre séquito, pela estação
fora, entre o pasmo dos povos. Mas imediatamente uma cena. De repente, no meio
de toda aquela nata de brasões, o primo Gonçalo rompe e cai nos braços do
homenzinho de boné agaloado que recebia à porta os bilhetes. Sempre o mesmo
Gonçalo! Parece que o conheceu ao chegar a Lourenço Marques, onde o homem
tratava de se estabelecer como fotógrafo. Mas já esquecia o melhor — o Bento!
Não imaginas o Bento… Magnífico! Deixou crescer um bocado de suíça. É um
modelo, vestido em Londres, de grande casaco de viagem de pano claro, até aos
pés, luvas amareladas, gravidade imensa. Gostou de me ver na estação —
perguntou logo, com o olho húmido, pela Srª D. Graça, e pela Rosa. À noite, o
José e eu jantámos em família, com o primo Gonçalo, no Bragança, para conversar
da Torre e dos Cunhais. Ele contou muitas coisas interessantes de África. Traz
notas para um livro, e parece que o prazo prospera. Nestes poucos anos plantou
dois mil coqueiros. Tem também muito cacau, muita borracha. Galinhas são aos
milhares. É verdade que uma galinha gorda em Macheque vale um pataco. Que
inveja! Aqui em Lisboa custa seis tostões, só com ossos — porque tendo também
alguma carne no peito, salta para cá dez tostões, e agradece! No prazo já se
construiu uma grande casa, próximo do rio, com vinte janelas e pintada de azul.
E o primo Gonçalo declara que já não vende o prazo nem por oitenta contos. Para
felicidade completa, até achou um excelente administrador. Eu todavia duvido
que ele volte para a África. Tenho agora cá a minha linda ideia sobre o futuro
do primo Gonçalo. Talvez te rias. E não adivinhas… com efeito, eu mesma só
nessa noite em que jantámos no Bragança, recebi de repente a inspiração. O Rio
Manso está também no Bragança. Quando descíamos para o jantar, para um
gabinete, encontrámos no corredor o velho com a pequena. O homem tornou logo a
abraçar Gonçalo com uma ternura de pai. E a Rosinha tão vermelha se fez, que até
Gonçalo, apesar de excitado e distraído, notou e corou de leve. Parece que já
há entre eles um conhecimento antigo, por causa dum cesto de rosas, e que,
desde anos, o destino os anda sorrateiramente chegando. Ela é realmente uma
beleza. E tão simpática, tão bem educada!… Diferença de idade, apenas onze
anos; e o dote tremendo. Falam em quinhentos contos. Há apenas a questão de
sangue e o dela coitadinha… Enfim, como se diz em heráldica, — o Rei faz a
pastora Rainha. E os Ramires, não só vêm dos Reis, mas os Reis vêm dos Ramires.
— E agora passando a assunto menos interessante…»

Discretamente
João Gouveia dobrou a carta, que entregou a Gracinha, louvando aSrª D. Maria
Mendonça como um «repórter» precioso. Depois, com um cumprimento: — E, minha
senhora, se as previsões dela se realizam…Mas não! Gracinha não acreditava!
Ora! imaginações da Maria Mendonça. — O primo António bem a conhece, sabe como
ela é casamenteira… — Pois se até a mim me quis casar — ribombou o Titó,
saltando do rebordo davaranda. — Imagine a prima… Até a mim! Com a viúva
Pinho, da loja de panos.


Credo!Mas o Gouveia insistia, com superioridade, um sentimento verdadeiro da
vida positiva:

— Olhe,
Sr a D. Graça, acredite V. Ex-a, sempre era melhor arranjo para o Gonçaloque a
África… Eu não acredito nesses prazos… Nem na África. Tenho horror à
África.

Só serve
para nos dar desgostos. Boa para vender, minha senhora! A África é comoessas
quintarolas, meio a monte, que a gente herda duma tia velha, numa terra muito
bruta, muito distante, onde não se conhece ninguém, onde não se encontra sequer
umestanco; só habitada por cabreiros, e com sezões todo o ano. Boa para vender.

Gracinha
enrolava lentamente nos dedos a fita do avental:- O quê! vender o que tanto
custou a ganhar, com tantos trabalhos no mar, tanta perda de vida e fazenda?!

O
Administrador protestou logo, com calor, já enristado para a controvérsia:-
Quais trabalhos, minha senhora? Era desembarcar ali na areia, plantar umas
cruzes de pau, atirar uns safanões aos pretos… Essas glórias de África são
balelas. Estáclaro, V. Ex-a fala como fidalga, neta de fidalgos. Mas eu como
economista. E digo mais…

O seu
dedo agudo ameaçava argumentos agudos.Titó acudiu, salvou Gracinha:

— Oh
Gouveia, nós estamos a tirar o tempo à prima Graça, que anda nos seusarranjos.
Essas questões de África são para depois, com o Gonçalo, à sobremesa… E
então, minha querida prima, até domingo, em Craquede. Lá comparece o rancho
todo. E quem atira os foguetes sou eu!Mas Gouveia, cofiando o coco com a manga,
ainda esperava converter a Sr a D.

Graça às
ideias sãs, sobre Política Colonial.- Era vender, minha senhora, era vender! —
Ela sorria, já consentia — tomando a mão do Videirinha, que hesitava, com os
dedos espetados:

— E
então, Sr. Videira, tem agora algumas quadras novas para o Fado?Corando,
Videirinha, balbuciou que «arranjara uma coisita, também num fado, para a volta
do Sr. Doutor». Gracinha prometeu decorar, para cantar ao piano.- Muito
agradecido a V. Ex-a… Criado de V. Ex-a…

— Então
até domingo, primo António… Está uma tarde linda. — Até domingo, em Craquede,
prima.Mas à porta envidraçada, João Gouveia parou mais teso, bateu na testa:

— Já me
esquecia, desculpe V. Ex-a! Recebi uma carta do André Cavaleiro, daFigueira da
Foz. Manda muitas saudades ao Barrolo. E quer saber se o Barrolo lhe poderia
ceder daquele vinho verde de Vidainhos. É também para um africanista, para o
conde de S. Romão… Parece que a Sr a Condessa se péla por vinho verde!E os
três amigos, em fila, atravessaram a sala de jantar, onde o vozeirão do Titó
ainda ribombou, louvando a esteira nova de cores. No corredor, Videirinha
espreitoupara a livraria, notou o molho de penas de pato espetado no velho
tinteiro de latão, que esperava, rebrilhando solitariamente sobre a mesa nua
sem papéis nem livros. Depois a Rosa apareceu à porta do quarto de Gonçalo,
ajoujada de roupa, com um riso em cadaruga da sua face redonda e cor de tijolo,
que o farto lenço de cambraia, muito branco, circundava como um nimbo. O Titó
afagou carinhosamente o ombro da boa cozinheira:- Então, tia Rosa, agora
recomeçam essas grandes petisqueiras, hem?

— Louvado
seja Deus, Sr. D. António! Que imaginei que não tornava a ver o meu rico
senhor. Também já tinha decidido… Se me enterrassem o corpo aqui em Santa
Ireneia, antes de eu ver o menino, a alma com certeza ia à África para lhe
fazer uma visita.Os seus miúdos olhos piscaram, lagrimejando de gosto — e
seguiu pelo corredor, tesa e decidida com a sua trouxa, que rescendia a maçã
camoesa. O Gouveia murmurava com uma careta: «Safa!» E os três amigos desceram
ao pátio onde, por curiosidade doTitó, visitaram as obras da cavalariça.

— Veja
você! — exclamou ele para o Gouveia, que acendia o charuto. — Você anegar!…
Mobílias, obras, égua inglesa… Tudo já dinheiro de África. O Administrador
encolheu os ombros:

— Veremos
depois como ele traz o fígado…Diante do portão o Titó ainda parou a colher,
na roseira costu mada, uma rosinha para florir o jaquetão de veludilho. E justa
mente entrava o Padre Soeiro, recolhen doduma volta pelos Bra vais, com o seu
grande guarda -sol de paninho e o seu breviário. Todos acolheram com carinho o
santo e douto velho, tão raro agora na Torre.

— E então
no domingo, cá temos o nosso homem, Padre Soeiro!O capelão achatou sobre o
peito a mão gorda, com reverência, com gratidão…

— Deus
ainda me quis conceder, na minha velhice, mais esse grande favor… Poismal o
esperava. Terras tão ásperas, e ele tão delicado… E para conversar de
Gonçalo, da espera em Craquede, acompanhou aqueles senhores até à ponte da
Portela. João Gouveia manquejava, aperrado por umas infamesbotas novas que
nessa manhã estreara. E descansaram um momento no belo banco de pedra que o pai
de Gonçalo mandara colocar, quando Governador Civil de Oliveira. Eraesse o doce
sítio de onde se avista Vila Clara, tão asseada, sempre tão branca, àquela hora
toda rosada, desde o vasto convento de Santa Teresa até ao muro novo do
cemitério no alto, com os seus finos ciprestes.Para além dos outeiros de
Valverde, longe, sobre a Costa, o Sol descia, vermelho como um metal candente
que arrefece, entre nuvens vermelhas, acendendo ainda, emouro coruscante, as
janelas da vila.

Ao fundo
do vale, uma claridade nimbava as altas ruínas de Santa Maria de Craquede,
entre o seu denso arvoredo. Sob o arco, o rio cheio corria sem um rumor,
jádormente na sombra dos choupos finos, onde ainda pássaros cantavam. E na
volta da estrada, por cima dos álamos que escondiam o casarão, a velha Torre,
mais velha que avila e que as ruínas do Mosteiro, e que todos os casais
espalhados, erguia o seu esguio miradouro, envolto no voo escuro dos morcegos,
espreitando silenciosamente a planície e o Sol sobre o mar, como em cada tarde,
desses mil anos, desde o Conde OrdonhoMendes.

Um
pequeno com uma alta aguilhada passou, recolhendo duas vacas lentas. Dolado da
vila, o Padre José Vicente da Finta trotou na sua égua branca, saudou o Sr.
Administrador, o amigo Soeiro, abençoando também a chegada do Fidalgo, para
quem já preparara uma bela cesta da sua uva moscatel. Três caçadores, com uma
matilha decoelheiros, atravessaram a estrada, descendo pelo portelo à quelha
que contorna o casal do Miranda.Um silêncio ainda claro, de imenso repouso, tão
doce como se descesse do Céu, cobria a largueza povoada dos campos, onde não se
movia uma folha, na macia transparência do ar de Setembro. Os fumos das
lareiras acesas já se escapavam, lentos eleves, de entre a telha rala. Na loja
do João ferreiro, adiante da Portela, o clarão da forja avivou, mais vermelho.
Um bumbum de tambor bateu festivamente para o lado dosBravais, cresceu
apressado, marchando; nalgum cabeço, depois lentamente se afastou, esmoreceu,
logo sumido, em arvoredos ou no vale mais fundo.

João
Gouveia, que se recostara no canto do largo assento de pedra, com o seucoco
sobre os joelhos, acenou para o lado dos Bravais:

— Estou a
lembrar aquela passagem do romance do Gonçalo, quando os Ramiresse preparam
para socorrer as Infantas, andam a reunir a mesnada. E assim, a estas horas da
tarde, com tambores: e por sítios… «Na frescura do vale…» Não! «Pelo vale
de Craquede…» Também não! Esperem vocês, que eu tenho boa memória… Ah! «E
portodo o fresco vale até Santa Maria de Craquede, os tambores mouriscos
abafados no arvoredo, tarará! tarará! ou mais vivos nos cerros, rataplã! rataplã!
convocavam àmesnada dos Ramires, na doçura da tarde…» E lindo!

Por sobre
as costas do Titó que, debruçado, riscava pensativamente com obengalão a poeira
da estrada, Videirinha adiantou para o seu chefe a face estendida, com um
sorriso de finura:- Oh Sr. Administrador, olhe que talvez seja ainda mais
bonito, quando os Ramires largam a perseguir o Bastardo! Cá para mim, tem mais
poesia. Quando o velho faz aquela jura com a espada e depois lá na Torre, muito
devagar, começa a tocar afinados… É de apetite!

À borda
do assento, encolhido contra o Titó, para que o Sr. Administrador sealastrasse
confortavelmente, Padre Soeiro, com as mãos no cabo do seu guarda -sol,
concordou:

— Com
certeza! são lances interessantes… Com certeza! Naquela novela háimaginação
rica, muito rica; e há saber, há verdade.

O Titó,
que depois de Simão de Nantua, em pequeno, não abrira mais as folhasdum livro,
e não lera a Torre de D. Ramires, murmurou, com um risco mais largo napoeira:


Extraordinário, aquele Gonçalo!O Videirinha não findara o seu enlevado sorriso:
— Tem muito talento… Ali! o Sr. Doutor tem muito talento.- Tem muita graça! —
exclamou o Titó, levantando a cabeça. — E é o que o salva dos defeitos… Eu
sou amigo de Gonçalo, e dos firmes. Mas não o escondo, nem a ele… Sobretudo a
ele. Muito leviano, muito incoerente… Mas tem a raça que o salva.- E a
bondade, Sr. António Vilalobos! — atalhou docemente Padre Soeiro. — A bondade,
sobretudo como a do Sr. Gonçalo, também salva… Olhe, às vezes há umhomem
muito sério, muito puro, muito austero, um Catão que nunca cumpriu senão o
dever e a lei… E todavia ninguém gosta dele, nem o procura. Porquê? Porque
nunca deu, nunca perdoou, nunca acarinhou, nunca serviu. E ao lado outro
leviano, descuidado, quetem defeitos, que tem culpas, que esqueceu mesmo o
dever, que ofendeu mesmo a lei…

Mas quê?
E amorável, generoso, dedicado, serviçal, sempre com uma palavra doce,sempre
com um rasgo carinhoso… E por isso todos o amam, e não sei mesmo, Deus me
perdoe, se Deus também o não prefere…

A curta
mão que acenara para o Céu, recaiu sobre o cabo de osso do guarda -sol.Depois,
e corado com a temeridade de pensamento tão espiritual, acudiu cautelosamente:-
Que esta não é propriamente doutrina da Igreja!… Mas anda nas almas; anda já
em muitas almas.

Então
João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na estrada,com o coco
à banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que estabelecia um resumo:-
Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe
o Sr. Padre Soeiro quem ele me lembra?


Quem?Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a
franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o Sr. Padre
Soeiro… Osfogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita
persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia… A generosidade, o
desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra,
uns escrúpulos, quase pueris,não é verdade?… A imaginação que o leva sempre a
exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à
realidade útil. A viveza, a facilidade emcompreender, em apanhar… A esperança
constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as
dificuldades… A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma
simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo… Um fundo
demelancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de
si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um
herói, que tudoarrasa… Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua
velha Torre, há mil anos… Até agora aquele arranque para a África… Assim
todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?- Quem?


Portugal.Os três amigos retomaram o caminho de Vila Clara. No céu branco uma
estrelinha tremeluzia sobre Santa Maria de Craquede. E Padre Soeiro, com o seu
guarda -sol sob o braço, recolheu à Torre vagarosamente, no silêncio e doçura
da tarde, rezando as suas Ave-Marias, e pedindo a paz de Deus para Gonçalo,
para todos os homens, para campos e casais adormecidos, e para a terra formosa
de Portugal, tão cheia de graça amorável,que sempre bendita fosse entre as
terras.

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