Ler online: A ESCRAVA ISAURA, Bernardo Guimarães

 

A ESCRAVA ISAURA

Bernardo Guimarães

 

© Copyright 2017, VirtualBooks Editora e Livraria Ltda. 1ª edição:Publicado pela primeira vez em 1875 Capa: Ruhendes Modell, de
Toulouse-Lautrec, 1896 Todos os direitos reservados, protegidos pela lei
9.610/98. Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (1825 —1884) A ESCRAVA ISAURA,
Bernardo Guimarães. Pará de Minas, MG, Brasil: VirtualBooks Editora,  2017.  ISBN:
9781521904558 CDD- B869 Literatura brasileira. Romance.

 

I

 

Era
nos primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II.

No
fértil e opulento município de Campos de Goitacazes, à margem do Paraíba, a
pouca distância da vila de Campos, havia uma linda e magnífica fazenda.

Era
um edifício de harmoniosas proporções, vasto e luxuoso, situado em aprazível
vargedo ao sopé de elevadas colinas cobertas de mata em parte devastada pelo machado
do lavrador. Longe em derredor a natureza ostentava-se ainda em toda a sua
primitiva e selvática rudeza; mas por perto, em torno da deliciosa vivenda, a
mão do homem tinha convertido a bronca selva, que cobria o solo, em jardins e
pomares deleitosos, em gramais e pingues pastagens, sombreadas aqui e acolá por
gameleiras gigantescas, perobas, cedros e copaíbas, que atestavam o vigor da
antiga floresta. Quase não se via aí muro, cerca, nem valado; jardim, horta,
pomar, pastagens, e plantios circunvizinhos eram divididos por viçosas e
verdejantes sebes de bambus, piteiras, espinheiros e gravatás, que davam ao
todo o aspecto do mais aprazível e delicioso vergel.

A
casa apresentava a frente às colinas. Entrava-se nela por um lindo alpendre
todo enredado de flores trepadeiras, ao qual subia-se por uma escada de
cantaria de seis a sete degraus. Os fundos eram ocupados por outros edifícios
acessórios, senzalas, pátios, currais e celeiros, por trás dos quais se
estendia o jardim, a horta, e um imenso pomar, que ia perder-se na barranca do
grande rio.

Era
por uma linda e calmosa tarde de outubro. O Sol não era ainda posto, e parecia boiar
no horizonte suspenso sobre rolos de espuma de cores cambiantes orlados de feveras
de ouro. A viração saturada de balsâmicos eflúvios se espreguiçava ao longo das
ribanceiras acordando apenas frouxos rumores pela copa dos arvoredos, e fazendo
farfalhar de leve o tope dos coqueiros, que miravam-se garbosos nas lúcidas e
tranquilas águas da ribeira.

Corria
um belo tempo; a vegetação reanimada por moderadas chuvas ostentava-se fresca,
viçosa e luxuriante; a água do rio ainda não turvada pelas grandes enchentes,
rolando com majestosa lentidão, refletia em toda a pureza os esplêndidos
coloridos do horizonte, e o nítido verdor das selvosas ribanceiras. As aves,
dando repouso ás asas fatigadas do contínuo voejar pelos pomares, prados e
balsedos vizinhos, começavam a preludiar seus cantos vespertinos.

O
clarão do Sol poente por tal sorte abraseava as vidraças do edifício, que esse
parecia estar sendo devorado pelas chamas de um incêndio interior. Entretanto,
quer no interior, quer em derredor, reinava fundo silêncio, e perfeita tranquilidade.
Bois truculentos, e médias novilhas deitadas pelo gramal, ruminavam tranquilamente
à sombra de altos troncos. As aves domésticas grazinavam em tomo da casa,
balavam as ovelhas, e mugiam algumas vacas, que vinham por si mesmas procurando
os currais; mas não se ouvia, nem se divisava voz nem figura humana. Parecia
que ali não se achava morador algum. Somente as vidraças arregaçadas de um
grande salão da frente e os batentes da porta da entrada, abertos de par em
par, denunciavam que nem todos os habitantes daquela suntuosa propriedade se
achavam ausentes.

A
favor desse quase silêncio harmonioso da natureza ouvia-se distintamente o
arpejo de um piano casando-se a uma voz de mulher, voz melodiosa, suave,
apaixonada, e do timbre o mais puro e fresco que se pode imaginar.

Posto
que um tanto abafado, o canto tinha uma vibração sonora, ampla e volumosa, que
revelava excelente e vigorosa organização vocal.

O
tom velado e melancólico da cantiga parecia gemido sufocado de uma alma solitária
e sofredora.

Era
essa a única voz que quebrava o silêncio da vasta e tranquila vivenda. Por fora
tudo parecia escutá-la em místico e profundo recolhimento.

As
coplas, que cantava, diziam assim:

 

Desd’o berço respirando

Os ares da escravidão,

Como semente lançada

Em terra de maldição,

A vida passo chorando

Minha triste condição.

Os meus braços estão presos,

A ninguém posso abraçar,

Nem meus lábios, nem meus olhos

Não podem de amor falar;

Deu-me Deus um coração

Somente para penar.

Ao ar livre das campinas

Seu perfume exala a flor;

Canta a aura em liberdade

Do bosque o alado cantor;

Só para a pobre cativa

Não há canções, nem amor.

Cala-te, pobre cativa;

Teus queixumes crimes são;

E uma afronta esse canto,

Que exprime tua aflição.

A vida não te pertence,

Não é teu coração.

 

As
notas sentidas e maviosas daquele cantar escapando pelas janelas abertas e
ecoando ao longe em derredor, dão vontade de conhecer a sereia que tão
lindamente canta. Se não é sereia, somente um anjo pode cantar assim.

Subamos
os degraus, que conduzem ao alpendre, todo engrinaldado de viçosos festões e
lindas flores, que serve de vestíbulo ao edifício.

Entremos
sem cerimônia. Logo à direita do corredor encontramos aberta uma larga porta,
que dá entrada à sala de recepção, vasta e luxuosamente mobiliada. Acha-se ali
sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de moça. As linhas do perfil
desenham-se distintamente entre o ébano da caixa do piano, e as bastas madeixas
ainda mais negras do que ele. São tão puras e suaves essas linhas, que fascinam
os olhos, enlevam a mente, e paralisam toda análise. A tez é como o marfim do
teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não
sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. O colo donoso e do
mais puro lavor sustenta com graça inefável o busto maravilhoso. Os cabelos
soltos e fortemente ondulados se despenham caracolando pelos ombros em espessos
e luzidios rolos, e como franjas negras escondiam quase completamente o dorso
da cadeira, a que se achava recostada. Na fronte calma e lisa como mármore
polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di-la-íeis misteriosa
lâmpada de alabastro guardando no seio diáfano o fogo celeste da inspiração.
Tinha a face voltada para as janelas, e o olhar vago pairava-lhe pelo espaço.

Os
encantos da gentil cantora eram ainda realçados pela singeleza, e diremos quase
pobreza do modesto trajar. Um vestido de chita ordinária azul-clara
desenhava-lhe perfeitamente com encantadora simplicidade o porte esbelto e a
cintura delicada, e desdobrando-se-lhe em roda amplas ondulações parecia uma
nuvem, do seio da qual se erguia a cantora como Vênus nascendo da espuma do
mar, ou como um anjo surgindo dentre brumas vaporosas. Uma pequena cruz de
azeviche presa ao pescoço por uma fita preta constituía o seu único ornamento.

Apenas
terminado o canto, a moça ficou um momento a cismar com os dedos sobre o
teclado como escutando os derradeiros ecos da sua canção.

Entretanto
abre-se sutilmente a cortina de cassa de uma das portas interiores, e uma nova
personagem penetra no salão. Era também uma formosa dama ainda no viço da
mocidade, bonita, bem feita e elegante. A riqueza e o primoroso esmero do
trajar, o porte altivo e senhoril, certo balanceio afetado e langoroso dos
movimentos davam-lhe esse ar pretensioso, que acompanha toda moça bonita e
rica, ainda mesmo quando está sozinha. Mas com todo esse luxo e donaire de
grande senhora nem por isso sua grande beleza deixava de ficar algum tanto
eclipsada em presença das formas puras e corretas, da nobre singeleza, e dos
tão naturais e modestos ademanes da cantora. Todavia Malvina era linda,
encantadora mesmo, e posto que vaidosa de sua formosura e alta posição,
transluzia-lhe nos grandes e meigos olhos azuis toda a nativa bondade de seu coração.

Malvina
aproximou-se de manso e sem ser pressentida para junto da cantora, colocando-se
por detrás dela esperou que terminasse a última copia.


Isaura!… disse ela pousando de leve a delicada mãozinha sobre o ombro da
cantora.


Ah! é a senhora?! – respondeu Isaura voltando-se sobressaltada.


Não sabia que estava aí me escutando.


Pois que tem isso?.., continua a cantar… tens a voz tão bonita!…mas eu
antes quisera que cantasses outra coisa; por que é que você gosta tanto dessa
cantiga tão triste, que você aprendeu não sei onde?…


Gosto dela, porque acho-a bonita e porque… ah! não devo falar…


Fala, Isaura. Já não te disse que nada me deves esconder, e nada recear de
mim?…


Porque me faz lembrar de minha mãe, que eu não conheci, coitada!… Mas se a
senhora não gosta dessa cantiga, não a cantarei mais.


Não gosto que a cantes, não, Isaura. Hão de pensar que és maltratada, que és
uma escrava infeliz, vítima de senhores bárbaros e cruéis. Entretanto passas
aqui uma vida que faria inveja a muita gente livre. Gozas da estima de teus
senhores. Deram-te uma educação, como não tiveram muitas ricas e ilustres damas
que eu conheço. És formosa, e tens uma cor linda, que ninguém dirá que gira em
tuas veias uma só gota de sangue africano. Bem sabes quanto minha boa sogra
antes de expirar te recomendava a mim e a meu marido. Hei de respeitar sempre
as recomendações daquela santa mulher, e tu bem vês, sou mais tua amiga do que
tua senhora. Oh! não; não cabe em tua boca essa cantiga lastimosa, que tanto
gostas de cantar. – Não quero, – continuou em tom de branda repreensão, – não
quero que a cantes mais, ouviste, Isaura?… se não, fecho-te o meu piano.


Mas, senhora, apesar de tudo isso, que sou eu mais do que uma simples escrava?
Essa educação, que me deram, e essa beleza, que tanto me gabam, de que me
servem?… são trastes de luxo colocados na senzala do africano. A senzala nem
por isso deixa de ser o que é: uma senzala.


Queixas-te da tua sorte, Isaura?…


Eu não, senhora; não tenho motivo… o que quero dizer com isto é que, apesar
de todos esses dotes e vantagens, que me atribuem, sei conhecer o meu lugar.


Anda lá; já sei o que te amofina; a tua cantiga bem o diz. Bonita como és, não
podes deixar de ter algum namorado.


Eu, senhora!… por quem é, não pense nisso.


Tu mesmo; pois que tem isso?… não te vexes; pois é alguma coisa do outro
mundo? Vamos já, confessa; tens um amante, e é por isso que lamentas não teres
nascido livre para poder amar aquele que te agradou, e a quem caíste em graça,
não é assim?…


Perdoe-me, sinhá Malvina; – replicou a escrava com um cândido sorriso. – Está
muito enganada; estou tão longe de pensar nisso!


Qual longe!… não me enganas, minha rapariguinha!… tu amas, e és mui linda e
bem prendada para te inclinares a um escravo; só se fosse um escravo, como tu
és, o que duvido que haja no mundo. Uma menina como tu, bem pode conquistar o
amor de algum guapo mocetão, e eis aí a causa da choradeira de tua canção. Mas
não te aflijas, minha Isaura; eu te protesto que amanhã mesmo terás a tua
liberdade; deixa Leôncio chegar; é uma vergonha que uma rapariga como tu se
veja ainda na condição de escrava.


Deixe-se disso, senhora; eu não penso em amores e muito menos em liberdade; às
vezes fico triste à toa, sem motivo nenhum…


Não importa. Sou eu quem quero que sejas livre, e hás de sê-lo.

Neste
ponto a conversação foi cortada por um tropel de cavaleiros, que chegavam e
apeavam-se á porta da fazenda.

Malvina
e Isaura correram à janela a ver quem eram.

 

II

 

Os
cavaleiros, que acabavam de apear-se, eram dois belos e elegantes mancebos, que
chegavam da vila de Campos. Do modo familiar, por que foram entrando, logo se
depreendia que era gente de casa.

De
feito um era Leôncio, marido de Malvina; e outro Henrique, irmão da mesma.

Antes
de irmos adiante forçoso nos é travar conhecimento mais íntimo com os dois
jovens cavaleiros.

Leôncio
era filho único do rico e magnífico comendador Almeida, proprietário da bela e
suntuosa fazenda em que nos achamos. O comendador, já bastante idoso e cheio de
enfermidades depois do casamento de seu filho, que tivera lugar um ano antes da
época em que começa esta história, havia-lhe abandonado a administração e
usufruto da fazenda, e vivia na corte, onde procurava alivio ou distração aos
achaques que o atormentavam.

Leôncio
achara desde a infância nas larguezas e facilidades de seus pais amplos meios
de corromper o coração e extraviar a inteligência.

Mau
aluno e criança incorrigível, turbulento e insubordinado, andou de colégio em
colégio, e passou como gato por brasas por cima de todos os preparatórios,
cujos exames todavia sempre salvara à sombra do patronato. Os mestres não se
atreviam a dar ao nobre e mumifico comendador o desgosto de ver seu filho
reprovado. Matriculado na escola de medicina logo no primeiro ano enjoou-se
daquela disciplina, e como seus pais não sabiam contrariá-lo, foi-se para
Olinda a fim de frequentar o curso jurídico. Ali depois de ter dissipado não
pequena porção da fortuna paterna na satisfação de todos os seus vícios e
loucas fantasias, tomou tédio também aos estudos jurídicos, e ficou entendendo
que só na Europa poderia desenvolver dignamente a sua inteligência, e saciar a
sua sede de saber, em puros e abundantes mananciais. Assim escreveu ao pai, que
deu-lhe crédito e o enviou a Paris, donde esperava vê-lo voltar feito um novo
Humboldt. Instalado naquele vasto pandemônio do luxo e dos prazeres, Leôncio
raras vezes, e só por desfastio, ia ouvir as eloquentes preleções dos exímios
professores da época, e nem tampouco era visto nos museus, institutos e
bibliotecas. Em compensação era assíduo frequentador do Jardim Mabile, assim
como de todos os cafés e teatros mais em voga, e tomara-se um dos mais afamados
e elegantes leões dos bulevares. No fim de alguns anos, ora de residência em
Paris, ora de giros recreativos pelas águas e pelas principais capitais da
Europa, tinha ele tão copiosa e desapiedadamente sangrado a bolsa paterna, que
o comendador a despeito de toda a sua condescendência e ternura para com seu
único e querido filho, viu-se na necessidade de revocá-lo à sombra dos pátrios
lares a fim de evitar uma completa ruína. Mas, mesmo assim, para não magoá-lo
colhendo-lhe súbita e rudemente as rédeas na carreira dos desvarios e
dissipações, assentou de atraí-lo suavemente acenando-lhe com a perspectiva de
um rico e vantajosíssimo casamento.

Leôncio
pegou na isca e voltou à pátria um perfeito dândi, gentil e elegante como
ninguém, trazendo de suas viagens, em vez de conhecimentos e experiência,
enorme dose de fatuidade e petulância e um tão perfeito traquejo da alta
sociedade, que o tomaríeis por um príncipe.

Mas
o pior era que, se trazia o cérebro vazio, voltava com a alma corrompida e o
coração estragado por hábitos de devassidão e libertinagem. Alguns bons e
generosos instintos, de que o dotara a natureza, haviam-se apagado em seu
coração ao roçar de péssimas doutrinas confirmadas por exemplos ainda piores.

De
volta da Europa, Leóncio contava vinte e cinco anos. O pai advertiu-lhe com
palavras insinuantes e jeitosas, que já era tempo de empregar-se em alguma
coisa, de abraçar alguma carreira; que já se tinha aproveitado da bolsa paterna
mais do que era preciso para sua educação, e que era mister ir aprendendo se
não a aumentar, ao menos a conservar uma fortuna, à testa da qual teria de
achar-se mais tarde ou mais cedo. Depois de muita hesitação, Leôncio optou
enfim pela carreira do comércio que lhe pareceu ser a mais independente e
segura de todas; mas as suas ideias largas e audaciosas a este respeito
aterraram o bom do comendador. O comércio de importação e exportação de
gêneros, mesmo em larga escala, o próprio tráfego de africanos, lhe pareciam
especulações degradantes e impróprias de sua alta posição e esmerada educação.
O negócio de balcão e a retalho, esse inspirava-lhe asco e compaixão. Só lhe
convinham as altas especulações cambiais, as operações bancárias e transações
em que jogasse com avultados capitais. Só assim poderia duplicar em pouco tempo
a fortuna patema. Com o que tinha observado na Bolsa de Paris e em outras
praças européias, presumia-se com habilitação bastante para dirigir as
operações do mais importante estabelecimento bancário, ou as mais grandiosas
empresas industriais.

O
pai porém não se animou a confiar sua fortuna aos azares especulativos daquele
financeiro em botão, e que até ali só tinha dado provas de grande talento para
consumir, em pouco tempo e em pura perda, somas consideráveis. Resolveu
portanto a não tocar-lhe mais naquele assunto, esperando que o mancebo criasse
mais algum juízo.

Vendo
que seu pai esquecia-se completamente dos planos de criar-lhe um pecúlio
próprio, Leôncio olhou para o casamento como o meio suave e natural de adquirir
fortuna, como a única carreira que se lhe oferecia para ter dinheiro a esbanjar
a seu bel-prazer.

Malvina,
a formosa filha de um riquíssimo negociante da corte, amigo do comendador, já
estava destinada a Leôncio por comum acordo e aquiescência dos pais de ambos. A
família do comendador foi à corte; os moços viram-se, amaram-se e casaram; foi
coisa de poucos dias. Pouco tempo depois de seu casamento Leôncio passou pelo
desgosto de perder sua mãe por um golpe inesperado. Esta boa e respeitável
senhora não tinha sido muito feliz nas relações da vida íntima com seu marido,
que, como homem de coração árido e frio, desconhecia as santas e puras delícias
da afeição conjugal, e com suas libertinagens e devassidões dilacerava
cotidianamente o coração de sua esposa. Para cúmulo de males linha ela perdido
ainda na infância todos os seus filhos, ficando-lhe só Leôncio. Lastimava-se
principalmente por não ter-lhe deixado o céu ao menos uma filha, que lhe
servisse de companhia e consolação em sua desolada velhice. Quis entretanto a
sorte deparar-lhe em sua própria casa uma tal ou qual compensação a seus
infortúnios em uma frágil criatura, que veio de alguma sorte encher o vácuo que
sentia em seu bondoso e terno coração, e tornar menos triste e solitário o lar,
em que passava os dias tão monótonos e enfadonhos.

Havia
nascido em casa uma escravinha, que desde o berço atraiu por sua graça,
gentileza e vivacidade toda a atenção e solicitude da boa velha.

Isaura
era filha de uma linda mulata, que fora por muito tempo a mucama favorita e a
criada fiel da esposa do comendador. Este, que como homem libidinoso e sem
escrúpulos olhava as escravas como um serralho à sua disposição, lançou olhos
cobiçosos e ardentes de lascívia sobre a gentil mucama. Por muito tempo
resistiu ela ás suas brutais solicitações; mas por fim teve de ceder às ameaças
e violências. Tão torpe e bárbaro procedimento não pôde por muito tempo ficar
oculto aos olhos de sua virtuosa esposa, que com isso concebeu mortal desgosto.

Acabrunhado
por ela das mais violentas e amargas exprobrações, o comendador não ousou mais
empregar a violência contra a pobre escrava, e nem tampouco conseguiu jamais
por outro qualquer meio superar a invencível repugnância que lhe inspirava.
Enfureceu-se com tanta resistência, e deliberou em seu coração perverso
vingar-se da maneira a mais bárbara e ignóbil, acabrunhando-a de trabalhos e
castigos. Exilou-a da sala, onde apenas desempenhava levianos e delicados
serviços, para a senzala e os fragueiros trabalhos da roça, recomendando bem ao
feitor que não lhe poupasse serviço nem castigo. O feitor, porém, que era um
bom português ainda no vigor dos anos, e que não tinha as entranhas tão
empedernidas como o seu patrão, seduzido pelos encantos da mulata, em vez de
trabalho e surras, só lhe dava carícias e presentes, de maneira que daí a algum
tempo a mulata deu à luz da vida a gentil escravinha, de que falamos. Este fato
veio exacerbar ainda mais a sanha do comendador contra a mísera escrava.
Expeliu com impropérios e ameaças o bom e fiel feitor, e sujeitou a mulata a
tão rudes trabalhos e tão cruel tratamento, que em breve a precipitou no
túmulo, antes que pudesse acabar de criar sua tenra e mimosa filhinha.

Eis
aí debaixo de que tristes auspícios nasceu a linda e infeliz Isaura. Todavia,
como para indenizá-la de tamanha desventura, uma santa mulher, um anjo de bondade,
curvou-se sobre o berço da pobre criança e veio ampará-la à sombra de suas asas
caridosas. A mulher do comendador considerou aquela tenra e formosa cria como
um mimo, que o céu lhe enviava para consolá-la das angústias e dissabores, que
tragava em consequência dos torpes desmandos de seu devasso marido. Levantou ao
céu os olhos banhados em lágrimas, e jurou pela alma da infeliz mulata
encarregar-se do futuro de Isaura. criá-la e educá-la, como se fosse uma filha.

Assim
o cumpriu com o mais religioso escrúpulo. À medida que a menina foi crescendo e
entrando em idade de aprender, foi-lhe ela mesma ensinando a ler e escrever, a
coser e a rezar. Mais tarde procurou-lhe também mestres de música, de dança, de
italiano, de francês, de desenho, comprou-lhe livros, e empenhou-se enfim em
dar à menina a mais esmerada e fina educação, como o faria para com uma filha
querida. Isaura, por sua parte, não só pelo desenvolvimento de suas graças e
atrativos corporais, como pelos rápidos progressos de sua viva e robusta
inteligência, foi muito além das mais exageradas esperanças da excelente velha,
a qual em vista de tão felizes e brilhantes resultados, cada vez mais se
comprazia em lapidar e polir aquela joia, que ela dizia ser a pérola entrançada
em seus cabelos brancos. – O céu não quis dar-me uma filha de minhas entranhas,
– costumava ela dizer, – mas em compensação deu-me uma filha de minha alma.

O
que porém mais era de admirar na interessante menina, é que aquela predileção e
extremosa solicitude de que era objeto, não a tornava impertinente, vaidosa ou
arrogante nem mesmo para com seus parceiros de cativeiro. O mimo, com que era
tratada, em nada lhe alterava a natural bondade e candura do coração. Era
sempre alegre e boa com os escravos, dócil e submissa com os senhores.

O
comendador não gostava nada do singular capricho de sua esposa para com a
mulatinha, capricho que qualificava de caduquice.


Forte loucura! – costumava exclamar com acento de comiseração. – Está ai se
esmerando em criar uma formidável tafulona, que lá pelo tempo adiante há de lhe
dar água pela barba. As velhas, umas dão para rezar, outras para ralhar desde a
manhã até à noite, outras para lavar cachorrinhos ou para criar pintos; esta
deu para criar mulatinhas princesas. É um divertimento um pouco mais
dispendioso na verdade; mas.., que lhe faça bom proveito; ao menos enquanto se
entretém por lá com o seu embeleco, poupa-me uma boa dúzia de impertinentes e
rabugentos sermões… Lá se avenha!…

Poucos
dias depois do casamento de Leôncio, o comendador, com toda a família,
inclusive os dois novos desposados, transportou-se de novo para a fazenda de
Campos. Foi então que o comendador entregou a seu filho toda a administração e
usufruto daquela propriedade, com toda a escravatura e mais acessórios nela
existentes, declarando-lhe que achando-se já bastante velho, enfermo e cansado,
queria passar tranquilamente o resto de seus dias livre de afazeres e
preocupações, para o que bastavam-lhe com sobejidão as rendas que para si
reservava. Feita em vida esta magnífica dotação a seu filho, retirou-se para a
corte. Sua esposa porém preferiu ficar em companhia do filho, o que foi muito
do gosto e aprovação do marido.

Malvina,
que apesar da sua vaidade aristocrática tinha alma cândida e boa, e um coração
bem formado, não pôde deixar de conceber logo desde o principio o mais vivo
interesse e terna afeição pela cativa Isaura. Era esta com efeito de índole tão
bondosa e fagueira, tão dócil, modesta e submissa, que apesar de sua grande
beleza e incontestáveis dotes de espírito, conquistava logo ao primeiro
encontro a benevolência de todos.

Isaura
tornou-se imediatamente, não direi a mucama favorita, mas a fiel companheira, a
amiga de Malvina que, afeita aos prazeres e passatempos da corte, muito folgou
de encontrar tão boa e amável companhia na solidão que ia habitar.


Por que razão não libertam esta menina? – dizia ela um dia à sua sogra. – Uma
tão boa e interessante criatura não nasceu para ser escrava.


Tem razão, minha filha, – respondeu bondosamente a velha; – mas que quer
você?… não tenho ânimo de soltar este passarinho que o céu me deu para me
consolar e tornar mais suportáveis as pesadas e compridas horas da velhice.


E também libertá-la para quê? Ela aqui é livre, mais livre do que eu mesma,
coitada de mim, que já não tenho gostos na vida nem forças para gozar da
liberdade. Quer que eu solte a minha patativa? e se ela transviar-se por aí, e
nunca mais acertar com a porta da gaio-la?… Não, não, minha filha; enquanto
eu for viva, quero tê-la sempre bem pertinho de mim, quero que seja minha, e
minha só. Você há de estar dizendo lá consigo – forte egoísmo de velha! – mas
também eu já poucos dias terei de vida; o sacrifício não será grande. Por minha
morte ficará livre, e eu terei o cuidado de deixar-lhe um bom legado.

De
feito, a boa velha tentou por diversas vezes escrever seu testamento a fim de
garantir o futuro de sua escravinha, de sua querida pupila; mas o comendador,
auxiliado por seu filho com delongas e fúteis pretextos, conseguia ir sempre
adiando a satisfação do louvável e santo desejo de sua esposa, até o dia em
que, fulminada por um ataque de paralisia geral, ela sucumbiu em poucas horas
sem ter tido um só momento de lucidez e reanimação para expressar sua última
vontade.

Malvina
jurou sobre o cadáver de sua sogra continuar para com a infeliz escrava a mesma
proteção e solicitude que a defunta lhe havia prodigalizado. Isaura pranteou
por muito tempo a morte daquela que havia sido para ela mãe desvelada e
carinhosa; e continuou a ser escrava não já de uma boa e virtuosa senhora, mas
de senhores caprichosos, devassos e cruéis.

 

III

 

Falta-nos
ainda conhecer mais de perto a Henrique, o cunhado de Leôncio. Era ele um
elegante e bonito rapaz de vinte anos, frívolo, estouvado e vaidoso, como são
quase sempre todos os jovens, mormente quando lhes coube a ventura de terem
nascido de um pai rico. Não obstante esses ligeiros senões, tinha bom coração e
bastante dignidade e nobreza de alma. Era estudante de medicina, e como
estava-se em férias, Leôncio o convidara a vir visitar a irmã e passar alguns
dias em sua fazenda.

Os
dois mancebos chegavam de Campos, onde Leôncio desde a véspera linha ido ao
encontro do cunhado.


depois de casado Leôncio, que antes disso poucas e breves estadas fizera na
casa paterna, começou a restar atenção à extrema beleza e às graças
incomparáveis de Isaura. Posto que lhe coubesse em sorte uma linda e excelente
mulher, ele não se havia casado por amor, sentimento esse a que seu coração até
ali parecia absolutamente estranho. Casara-se por especulação, e como sua
mulher era moça e bonita, sentira apenas por ela paixão, que se ceva no gozo
dos prazeres sensuais, e com eles se extingue. Estava reservado à infeliz
Isaura fazer vibrar profunda e violentamente naquele coração as fibras que
ainda não estavam de todo estragadas pelo atrito da devassidão. Concebeu por
ela o mais cego e violento amor, que de dia em dia ia crescendo na razão direta
dos sérios e poderosos obstáculos que encontrava, obstá-culos a que não estava
afeito, e que em vão se esforçava para superar. Mas nem por isso desistia de
sua tresloucada empresa, porque em fim de contas, – pensava ele, – Isaura era
propriedade sua, e quando nenhum outro meio fosse eficaz, restava-lhe o emprego
da violência. Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus instintos e da
brutal devassidão do comendador.

Pelo
caminho, como sua mente andava sempre cheia da imagem de Isaura, Leôncio
conversara longamente com seu cunhado a respeito dela, exaltando-lhe a beleza,
e deixando transluzir com revoltante cinismo as lascivas intenções que abrigava
no coração. Esta conversação não agradava muito a Henrique, que às vezes corava
de pejo e de indignação por sua irmã, mas não deixou de excitar-lhe viva
curiosidade de conhecer uma escrava de tão extraordinária beleza.

No
dia seguinte ao da chegada dos mancebos às oito horas da manhã, Isaura, que
acabava de espanejar os móveis e arranjar o salão, achava-se sentada junto a
uma janela e entrelinha-se a bordar, à espera que seus senhores se levantassem
para servir-lhes o café. Leôncio e Henrique não tardaram em aparecer, e parando
à porta do salão puseram-se a contemplar Isaura, que sem se aperceber da
presença deles continuava a bordar distraidamente.


Então, que te parece? segredava Leôncio a seu cunhado. – Uma escrava desta
ordem não é um tesouro inapreciável? Quem não diria que uma andaluza de Cádiz,
ou uma napolitana?…


Não é nada disso; mas é coisa melhor, respondeu Henrique maravilhado; é uma
perfeita brasileira.


Qual brasileira! é superior a tudo quanto há. Aqueles encantos e aquelas
dezessete primaveras em uma moça livre, teriam feito virar o juízo a muita
gente boa. Tua irmã pretende com instância, que eu a liberte, alegando que essa
era a vontade de minha defunta mãe; mas nem tão tolo sou eu, que me desfaça
assim sem mais nem menos de uma joia tão preciosa. Se minha mãe teve o capricho
de criá-la com todo o mimo e de dar-lhe uma primorosa educação, não foi decerto
para abandoná-la ao mundo, não achas?… Também meu pai parece que cedeu às
instâncias do pai dela, que é um pobre galego, que por ai anda, e que pretende
libertá-la; mas o velho pede por ela tão exorbitante soma, que julgo nada dever
recear por esse lado. Vê lá, Henrique, se há nada que pague uma escrava
assim?…


É com efeito encantadora – replicou o moço, – se estivesse no serralho do
sultão, seria sua odalisca favorita. Mas devo notar-te, Leôncio, – continuou,
cravando no cunhado um olhar cheio de maliciosa penetração, – como teu amigo e
como irmão de tua mulher, que o teres em tua sala e ao lado de minha irmã uma
escrava tão linda e tão bem tratada não deixa de ser inconveniente e talvez
perigoso para a tranquilidade doméstica…


Bravo! – atalhou Leôncio, galhofando, – para a idade que tens, já estás um
moralista de polpa!… mas não te dê isso cuidado, meu menino; tua irmã não tem
dessas veleidades, e é ela mesma quem mais gosta de que Isaura seja vista e
admirada por todos. E tem razão; Isaura é como um traste de luxo, que deve
estar sempre exposto no salão. -Querias que eu mandasse para a cozinha os meus
espelhos de Veneza?…

Malvina,
que vinha do interior da casa, risonha, fresca e alegre como uma manhã de
abril, veio interromper-lhes a conversação.


Bom dia, senhores preguiçosos! – disse ela com voz Argentina e festiva como o
trino da andorinha. – Até que enfim sempre se levantaram!


Estás hoje muito alegre, minha querida, – retorquiu-lhe sorrindo o marido; –
viste algum passarinho verde de bico dourado?…


Não vi, mas hei de ver; estou alegre mesmo, e quero que hoje aqui em casa seja
um dia de festa para todos. Isto depende de ti, Leôncio, e estava aflita por te
ver de pé; quero dizer-te uma coisa; já devia tê-la dito ontem, mas o prazer de
ver este ingrato de irmão, que há tanto tempo não vejo, me fez esquecer…


Mas o que é?… fala, Malvina.


Não te lembras de uma promessa, que sempre me fazes, promessa sagrada, que há
muito tempo devia ter sido cumprida?… hoje quero absolutamente, exijo, o seu
cumprimento.


Deveras?.., mas que promessa?… não me lembro.


Ah! como te fazes de esquecido!… não te lembras, que me prometeste dar
liberdade a…


Ah! já sei, já sei; – atalhou Leôncio com impaciência. – Mas tratar disso aqui
agora? em presença dela?… que necessidade há de que nos ouça?


E que mal faz isso? mas seja como quiseres, – replicou a moça tomando a mão de
Leôncio e levando-o para o interior da casa; – vamos cá para dentro. Henrique,
espera aí um momento, enquanto eu vou mandar preparar-nos o café.


depois da chegada de Malvina, Isaura deu pela presença dos dois mancebos, que a
certa distância a contemplavam cochichando a respeito dela. Também pouco ouviu
ela e nada compreendeu do rápido diálogo que tivera lugar entre Malvina e seu
marido. Apenas estes se retiraram ela também se levantou e ia sair, mas
Henrique, que ficara só, a deteve com um gesto.


Que me quer, senhor? – disse ela baixando os olhos com humildade.


Espera ai, menina; tenho alguma coisa a dizer-te, – replicou o moço, e sem
dizer mais nada colocou-se diante dela devorando-a com os olhos, e como
extático contemplando-lhe a maravilhosa beleza.

Henrique
sentia-se acanhado diante daquela nobre figura radiante de beleza, e de
angélica serenidade. Por seu lado Isaura também olhava para o moço, atônita e
tolhida, esperando em vão que lhe dissesse o que queria. Por fim Henrique,
afoito, e estouvado como era, lembrando-se que Isaura, a despeito de toda a sua
formosura, não passava de uma escrava, entendeu que fazia um ridículo papel,
deixando-se ali ficar diante dela em muda e extática contemplação, e
chegando-se a ela com todo o desembaraço e petulância travou-lhe da mão, e…


Mulatinha, disse, – tu não fazes idéia de quanto és feiticeira. Minha irmã tem
razão; é pena que uma menina assim tão linda não seja mais que uma escrava. Se
tivesses nascido livre, serias incontestavelmente a rainha dos salões.


Está bem, senhor, está bem! replicou Isaura soltando-se da mão de Henrique; se
é só isso o que tinha a dizer-me, deixe-me ir embora.


Espera ainda um pouco; não sejas assim má; eu não te quero fazer mal algum. Oh!
quanto eu daria para obter a tua liberdade, se com ela pudesse obter também o
teu amor!… És muito mimosa e muito linda para ficares por muito tempo no
cativeiro; alguém impreterivelmente virá arrancar-te dele, e se hás de cair nas
mãos de algum desconhecido, que não saberá dar-te o devido apreço, seja eu,
minha Isaura, seja o irmão de tua senhora, que de escrava te haja de fazer uma
princesa…


Ah! senhor Henrique! retorquiu a menina com enfado; – o senhor não se peja de
dirigir esses galanteios a uma escrava de sua irmã? isso não lhe fica bem; há
por aí tanta moça bonita, a quem o senhor pode fazer a corte…


Não; ainda não vi nenhuma que te iguale, Isaura, eu te juro. Olha, Isaura;
ninguém mais do que eu está nas circunstâncias de conseguir a tua liberdade;
sou capaz de obrigar Leôncio a te libertar, porque, se me não engano, já lhe
adivinhei os planos e as intenções, e protesto-te que hei de burlá-los todos; é
uma infâmia em que não posso consentir. Além da liberdade terás tudo o que
desejares, sedas, joias, carros, escravos para te servirem, e acharás em mim um
amante extremoso, que sempre te há de querer, e nunca te trocará por quanta
moça há por esse mundo, por bonita e rica que seja, porque tu só vales mais que
todas elas juntas.


Meu Deus! – exclamou Isaura com um ligeiro tom de mofa; – tanta grandeza me
aterra; isso faria virar-me o juízo. Nada, meu senhor; guarde suas grandezas
para quem melhor as merecer; eu por ora estou contente com a minha sorte.


Isaura!… para que tanta crueldade!… escuta, – disse o moço lançando o braço
ao pescoço de Isaura.


Senhor Henrique! – gritou ela esquivando-se ao abraço, – por quem é, deixe-me
em paz!


Por piedade, Isaura! – insistiu o rapaz continuando a querer abraçá-la; –
oh!… não fales tão alto!… um beijo… um beijo só, e já te deixo…


Se o senhor continua, eu grito mais alto. Não posso aqui trabalhar um momento,
que não me venham perturbar com declarações que não devo escutar…


Oh! como está altaneira! – exclamou Henrique, já um tanto agastado com tanta
resistência. – Não lhe falta nada!… tem até os ares desdenhosos de uma grande
senhora!… não te arrufes assim, minha princesa…


Arre lá, senhor! – bradou a escrava já no auge da impaciência. – Já não bastava
o senhor Leôncio!… agora vem o senhor também…


Como?… que estás dizendo?… também Leôncio?… oh!… oh! bem o coração me
estava adivinhando!… que infâmia!… mas decerto tu o escutas com menos
impaciência, não é assim?


Tanto como escuto ao senhor.


Não duvido Isaura; a lealdade, que deves a tua senhora, que tanto te estima,
não te permite que dês ouvidos àquele perverso. Mas comigo o caso é diferente;
que motivo há para seres cruel assim?


Eu cruel para com meus senhores!!! Ora, senhor, pelo amor de Deus!… Não
esteja assim a escarnecer de uma pobre cativa.


Não! não escarneço… Isaura!… escuta, – exclamava Henrique forcejando para
abraçá-la e furtar-lhe um beijo.


Bravo!… bravíssimo! – retumbou pelo salão uma voz acompanhada de sardônica e
estrepitosa gargalhada.

Henrique
voltou-se sobressaltado. Toda a sua amorosa exaltação tinha-se-lhe gelado de
súbito no âmago do coração.

Leôncio
estava em pé no meio da porta, de braços cruzados e olhando para ele com sorriso
do mais insultante escárnio.


Bravo! muito bem, senhor meu cunhado! – continuou Leôncio no mesmo tom de mofa.
– Está pondo em prática belissimamente as suas lições de moral!…
requestando-me as escravas!… está galante!… sabe respeitar divinamente a
casa de sua irmã!…


Ah! maldito importuno! murmurou Henrique, trincando os dentes de cólera, e seu
primeiro impulso foi investir de punho fechado, e responder com cachações aos
insolentes sarcasmos do cunhado. Refletindo porém um momento, sentiu que lhe
seria mais vantajoso empregar contra o seu agressor a mesma arma de que se
servira contra ele, o sarcasmo, que as circunstâncias lhe permitiam vibrar de
modo vitorioso e decisivo. Acalmou-se, pois, e com sorriso de soberano desdém:


Ah! perdão, meu cunhado! – disse ele não sabia que a peregrina jóia do seu
salão lhe merecesse tanto cuidado, que o levasse a ponto de andá-la espionando;
creio que tem mais zelo por ela do que mesmo pelo respeito que se deve à sua
casa e à sua mulher. Pobre de minha irmã!… é bem simples, e admira que, há
mais tempo, não tenha conhecido o belo marido que possui!…


O que estás dizendo, rapaz? – bradou Leôncio com gesto ameaçador; – repete; que
estás dizendo?


O mesmo que o senhor acaba de ouvir, – redarguiu Henrique com firmeza, – e
fique certo que o seu indigno procedimento não há de ficar por muito tempo
oculto à minha irmã.


Qual procedimento!? tu deliras, Henrique?…


Faça-se de esquerdo!… pensa que não sei tudo?… enfim. adeus, senhor
Leôncio: eu me retiro, porque seria altamente inconveniente, indigno e ridículo
da minha parte estar a disputar com o senhor por amor de uma escrava.


Espera, Henrique… escuta…


Não, não; não tenho negócio nenhum com o senhor. Adeus! – disse e retirou-se
precipitadamente.

Leôncio
sentiu-se esmagado, e arrependeu-se mil e uma vezes de ter provocado tão
imprudentemente aquele leviano e estouvado rapaz. Ignorava que seu cunhado
estivesse ao fato da paixão que sentia por Isaura, e dos esforços que empregava
para vencer-lhe a isenção e lograr seus favores. verdade que lhe havia falado
sem muito rebuço a esse respeito; mas algumas palavras ditas entre rapazes, em
tom de mera chocarrice, não constituíam base suficiente para que sobre ela
Henrique pudesse articular uma acusação contra ele em face de sua mulher.
Decerto a rapariga lhe havia revelado alguma coisa, e isto o fazia espumar de
despeito e raiva contra um e outra. Bem pouco lhe importava a perturbação da
paz doméstica, o que o enfurecia era o perigo em que se colocara de ver
desconcertados os seus perversos desígnios sobre a gentil escrava.


Maldição! – rugia ele lá consigo. – Aquele maluco é bem capaz de desconcertar
todos os meus planos. Se sabe alguma coisa, como parece, não porá dúvida em
levar tudo aos ouvidos de Malvina…

Leôncio
ficou por alguns momentos em pé, imóvel, sombrio, carrancudo, com o espírito
entregue à cruel inquietação que o fustigava.

Depois,
pairando as vistas em derredor, deu com os olhos em Isaura, a qual, desde que
Leôncio se apresentara, corrida, trêmula e anelante, fora sumir-se em um canto
da sala; dali presenciara em silenciosa ansiedade a altercação dos dois moços,
como corça mal ferida escutando o rugir de dois tigres, que disputaram entre si
o direito de devorá-la. Por seu lado também se arrependia do intimo d’alma, e
raivava contra si mesma pela indiscreta e louca revelação, que em um assomo de
impaciência deixara escapar dos seus lábios. Sua imprudência ia ser causa da
mais deplorável discórdia no seio daquela família, discórdia, de que por fim de
contas ela viria a ser a principal vítima. A desavença entre os dois mancebos
era como o choque de duas nuvens, que se encontram e continuam a pairar tranquilamente
no céu; mas o raio desprendido de seu seio teria de vir certeiro sobre a fronte
da infeliz cativa.

 

IV

 


Ah! estás ainda ai?… fizeste bem, – disse Leôncio mal avistou Isaura, que
trêmula e confusa não ousara sair do cantinho, a que se abrigara, e onde fazia
mil votos ao céu para que seu senhor não a visse, nem se lembrasse dela naquele
momento. – Isaura, continuou ele, – pelo que vejo, andas bem adiantada em
amores!… estavas a ouvir finezas daquele rapazola…


Tanto como ouço as suas, meu senhor, por não ter outro remédio. Uma escrava,
que ousasse olhar com amor para seus senhores, merecia ser severamente
castigada.


Mas tu disseste alguma coisa àquele estouvado, Isaura?…


Eu?! – respondeu a escrava perturbando-se; – eu, nada que possa ofender nem ao
senhor nem a ele…


Pesa bem as tuas palavras, Isaura; olha, não procures enganar-me. Nada lhe
disseste a meu respeito?


Nada.


Juras?


Juro, – balbuciou Isaura.


Ah! Isaura, Isaura!… tem cuidado. Se até aqui tenho sofrido com paciência as
tuas repulsas e desdéns, não estou disposto a suportar que em minha casa, e
quase em minha presença, estejas a escutar galanteios de quem quer que seja, e
muito menos revelar o que aqui se passa. Se não queres o meu amor, evita ao
menos de incorrer no meu ódio.


Perdão, senhor, que culpa tenho eu de andarem a perseguir-me?


Tens alguma razão; estou vendo que me verei forçado a desterrar-te desta casa,
e a esconder-te em algum canto, onde não sejas tão vista e cobiçada…


Para quê, senhor…


Basta; não te posso ouvir agora, Isaura. Não convém que nos encontrem aqui
conversando a sós. Em outra ocasião te escutarei. – preciso estorvar que aquele
estonteado vã intrigar-me com Malvina – murmurava Leôncio retirando-se. – Ah!
cão! maldita a hora em que te trouxe à minha casa!


Permita Deus que tal ocasião nunca chegue! – exclamou tristemente dentro da
alma a rapariga, vendo seu senhor retirar-se. Ela via com angústia e mortal
desassossego as continuas e cada vez mais encarniçadas solicitações de Leôncio,
e não atinava com um meio de opor-lhes um paradeiro. Resolvida a resistir até à
morte, lembrava-se da sorte de sua infeliz mãe, cuja triste história bem
conhecia, pois a tinha ouvido, segredada a medo e misteriosamente, da boca de
alguns velhos escravos da casa, e o futuro se lhe antolhava carregado das mais
negras e sinistras cores.

Revelar
tudo a Malvina era o único meio, que se lhe apresentava ao espírito, para pôr
termo às ousadias do seu marido, e atalhar futuras desgraças. Mas Isaura amava
muito sua jovem senhora para ousar dar semelhante passo, que iria derramar-lhe
no seio um pego de desgostos e amarguras, quebrando-lhe para sempre a risonha e
doce ilusão em que vivia.

Preferia
antes morrer como sua mãe, vitima das mais cruéis sevícias, do que ir por suas
mãos lançar uma nuvem sinistra no céu até ali tão sereno e bonançoso de sua
querida senhora.

O
pai de Isaura, o único ente no mundo, que à exceção de Malvina se interessava
por ela, pobre e simples jornaleiro, não se achava em estado de poder
protegê-la contra as perseguições e violências de que se achava ameaçada. Em
tão cruel situação Isaura não sabia senão chorar em segredo a sua desventura, e
implorar ao céu, do qual somente podia esperar remédio a seus males.

Bem
se compreende pois agora aquele acento tão dorido, tão repassado de angústia,
com que cantava a sua canção favorita. Malvina enganava-se atribuindo sua
tristeza a alguma paixão amorosa. Isaura conservava ainda o coração no mais
puro estado de isenção. Com quanto mais dó não a teria lastimado sua boa e
sensível senhora, se pudesse adivinhar a verdadeira causa dos pesares que o
ralavam.

 

V

 

Isaura
despertando de suas pungentes e amargas preocupações. Tomou seu balainho de
costura e ia deixar o salão, resolvida a sumir-se no mais escondido recanto da
casa, ou amoitar-se em algum esconderijo do pomar. Esperava assim esquivar-se à
repetição de cenas indecentes e vergonhosas, como essas por que acabava de
passar. Apenas dera os primeiros passos foi detida por uma extravagante e
grotesca figura, que penetrando no salão veio postar-se diante de seus olhos.

Era
um monstrengo afetando formas humanas, um homúnculo em tudo mal construído, de
cabeça enorme, tronco raquítico, pernas curtas e arqueadas para fora, cabeludo
como um urso, e feio como um mono. Era como um desses truões disformes, que
formavam parte indispensável do séquito de um grande rei da Média Idade, para
divertimento dele e de seus cortesões. A natureza esquecera de lhe formar o
pescoço, e a cabeça disforme nascia-lhe de dentro de uma formidável corcova,
que a resguardava quase como um capuz. Bem reparado todavia, o rosto não era
muito irregular, nem repugnante, e exprimia muita cordura, submissão e bonomia.

Isaura
teria soltado um grito de pavor, se há muito não estivesse familiarizada com
aquela estranha figura, pois era ele, sem mais nem menos, o senhor Belchior,
fiel e excelente ilhéu, que há muitos anos exercia naquela fazenda mui digna e
conscienciosamente, apesar de sua deformidade e idiotismo, o cargo de
jardineiro. Parece que as flores, que são o símbolo natural de tudo quanto é belo,
puro e delicado, deviam ter um cultor menos disforme e repulsivo. Mas quis a
sorte ou o capricho do dono da casa estabelecer aquele contraste, talvez para
fazer sobressair a beleza de umas à custa da fealdade do outro.

Belchior
tinha em uma das mãos o vasto chapéu de palha, que arrastava pelo chão, e com a
outra empunhava. não um ramalhete, mas um enorme feixe de flores de todas as
qualidades, à sombra das quais procurava eclipsar sua desgraciosa e
extravagante figura. Parecia um desses vasos de louça, de formas fantásticas e
grotescas, que se enchem de flores para enfeitar bufetes e aparadores.


Valha-me Deus! – pensou Isaura ao dar com os olhos no jardineiro. – Que sorte é
a minha! ainda mais este!… este ao menos é de todos o mais suportável: os outros
me amofinam, e atormentam: este as vezes me faz rir.


Muito bem aparecido, senhor Belchior! então, o que deseja?


Senhora Isaura, eu… eu… vinha…, – resmungou embaraçado o jardineiro.


Senhora!… eu senhora!… também o senhor pretende caçoar comigo, senhor
Belchior?…

Eu
caçoar com a senhora!… não sou capaz… minha língua seja comida de bichos,
se eu faltar com o respeito devido à senhora… Vinha trazer-lhe estas froles,
se bem que a senhora mesma é uma frol…


Arre lá, senhor Belchior!… sempre a dar-me de senhora!… se continua por
essa forma, ficamos mal, e não aceito as suas froles… Eu sou Isaura, escrava
da senhora D. Malvina; ouviu, senhor Belchior!


Embora lá isso; e soverana cá deste coração, e eu, menina, dou-me por feliz se
puder beijar-te os pés. Olha, Isaura…


Ainda bem! Agora sim; trate-me desse modo.


Olha, Isaura, eu sou um pobre jardineiro, lá isso é verdade; mas sei trabalhar,
e não hás de achar vazio o meu mealheiro, onde já tenho mais de meio mil cruzados.
Se me quiseres, como eu te quero, arranjote a liberdade, e caso-me contigo, que
também não és para andar aí assim como escrava de ninguém.


Muito obrigada pelos seus bons desejos; mas perde seu tempo, senhor Belchior.
Meus senhores não me libertam por dinheiro nenhum.


Ah! deveras!… que malbados!… ter
assim no catibeiro a rainha da fermosura!… mas não importa, Isaura;
terei mais gosto em ser escravo de uma escrava como tu, do que em ser senhor
dos senhores de cem mil cativos. Isaura!… não fazes idéia de como te quero.
Quando vou molhar as minhas froles,
estou a lembrar-me de ti com uma soidade!…

Deveras!
ora viu-se que amor!…


Isaura! – continuou Belchior, curvando os joelhos, – tem piedade deste teu
infeliz cativo…


Levante-se, levante-se, – interrompeu Isaura com impaciência. – Seria bonito
que meus senhores viessem aqui encontrá-lo fazendo esses papéis!… que
estou-lhe dizendo?… ei-los aí!… ah! senhor Belchior!

De
feito, de um lado Leôncio, e de outro Henrique e Malvina, os estavam
observando.

Henrique,
tendo-se retirado do salão, despeitado e furioso contra seu cunhado, assomado e
leviano como era, foi encontrar a irmã na sala de jantar, onde se achava
preparando o café e ali em presença dela não hesitou em desabafar sua cólera,
soltando palavras imprudentes, que lançaram no espírito da moça o germe da
desconfiança e da inquietação.


Este teu marido, Malvina, não passa de um miserável patife – disse bufando de
raiva.


Que estás dizendo, Henrique?!… que te fez ele?… – perguntou a moça,
espantada com aquele rompante.


Tenho pena de ti, minha irmã… se soubesses… que infâmia!…


Estás doido, Henrique!… o que há então?


Permita Deus que nunca o saibas!… que vilania!…


O que houve então, Henrique?… fala, explica-te por quem és, – exclamou
Malvina, pálida e ofegante no cúmulo da aflição.


Oh! que tens?… não te aflijas assim, minha irmã, – respondeu Henrique, já
arrependido das loucas palavras que havia soltado. Tarde compreendeu que fazia
um triste e deplorável papel, servindo de mensageiro da discórdia e da
desconfiança entre dois esposos, que até ali viviam na mais perfeita harmonia e
tranquilidade. Tarde e em vão procurou atenuar o terrível efeito de sua fatal
indiscrição.


Não te inquietes, Malvina, continuou ele procurando sorrir-se; – teu marido é
um formidável turrão, eis aí tudo; não vás pensar que nos queremos bater em
duelo.


Não; mas vieste espumando de raiva, com os olhos em fogo, e com um ar…


Qual!… pois não me conheces?… sempre fui assim; por – dá cá aquela palha –
pego fogo, mas também é fogo de palha.


Mas pregaste-me um susto!…


Coitada!… toma isto, – disse-lhe Henrique, oferecendo-lhe uma xícara de café,
é a melhor coisa que há para aplacar sustos e ataques de nervos.

Malvina
procurou acalmar-se, mas as palavras do irmão tinham-lhe penetrado no âmago do
coração, como a dentada de uma víbora, aí deixando o veneno da desconfiança.

O
aparecimento de Leôncio, que vinha do salão, pôs termo a este incidente. Os
três tomaram café à pressa e sem trocarem palavras; estavam já ressabiados uns
com outros, olhavam-se com desconfiança, e de um momento para outro a discórdia
insinuara-se no seio daquela pequena família, ainda há pouco tão feliz, unânime
e tranquila. Tomado o café retiraram-se, mas todos por um impulso instintivo,
dirigiram seus passos para o salão, Henrique e Malvina de braços dados pelo
grande corredor da entrada, e Leôncio sozinho por compartimentos interiores,
que comunicavam com o salão. Era ali com efeito que se achava o pomo fatal, mas
inocente, que devia servir de instrumento da desunião e descalabro daquela
nascente família.

Chegaram
ainda a tempo de presenciar o final da cena ridícula, que Belchior representava
aos pés de Isaura. Leôncio, porém, que os espiava através das sanefas
entreabertas de uma alcova, não avistava Henrique e Malvina, que haviam parado
no corredor junto à porta da entrada.


Oh! oh! – exclamou ele no momento em que Belchior prostrava-se aos pés de Isaura.
Creio que tenho dentro de casa um ídolo, diante do qual todos vêm ajoelhar-se e
render adorações!… até o meu jardineiro!… Olá, senhor Belchior, está
bonito!… Continue com a farsa, que não está má… mas para tratar dessa flor
não precisamos de seus cuidados, não; tem entendido, senhor Belchior!…


Perdão, senhor meu, – balbuciou o jardineiro erguendo-se trêmulo e confuso; –
eu vinha trazer estas froles para os basos da sala…


E apresentá-las de joelhos!… essa é galante!… Se continua nesse papel de
galã, declaro-lhe que o ponho pela porta fora com dois pontapés nessa corcova.

Corrido,
confuso e azoinado, Belchior, cambaleando e esbarrando pelas cadeiras, lá se
foi às cegas em busca da porta da rua.


Isaura! ó minha Isaura! – exclamou Leôncio saindo da alcova, avançando com os
braços abertos para a rapariga, e dando à voz até ali áspera e rude, a mais
suave e tema inflexão.

Um
ai agudo e pungente, que ecoou pelo salão, o faz parar mudo, gélido e
petrificado. Tinha avistado no meio da porta Malvina, que, pálida e desfalecida,
ocultava a fronte no ombro de seu irmão, que a amparava nos braços.


Ah! meu irmão! – exclamou ela voltando de seu delíquio, – agora compreendo tudo
que ainda há pouco me dizias.

E
com uma das mãos comprimindo o coração, que parecia querer-lhe estalar de dor,
e com a outra escondendo no lenço as lágrimas, que dos formosos olhos lhe
brotavam aos pares, correu a encerrar-se em

seu
aposento.

Leôncio
desconcertado pelo terrível contratempo, de que acabava de ser vítima, ficou
largo tempo a passear, frenético e agitado, de um a outro lado, ao longo do
salão, furioso contra o cunhado, a cuja impertinente leviandade atribuía as
fatais ocorrências daquela manhã, que ameaçavam burlar todos os seus planos
sobre Isaura, e excogitando meios de safar-se das dificuldades em que se via
empenhado.

Isaura,
tendo resistido em menos de uma hora, a três abordagens consecutivas, dirigidas
contra o seu pudor e isenção, aturdida, cheia de susto, confusão e vergonha,
correu a esconder-se entre os laranjais como lebre medrosa, que ouve ladrarem
pelos prados os galgos encarniçados a seguirem-lhe a pista.

Henrique
altamente indignado contra o cunhado não lhe queria ver a cara; tomou sua
espingarda e saiu disposto a passar o dia inteiro passarinhando pelos matos, e
a retirar-se impreterivelmente para a corte ao romper do dia seguinte.

Os
escravos ficaram pasmos, quando à hora do almoço Leôncio achou-se sozinho à
mesa. Leôncio mandou chamar Malvina, mas esta, pretextando uma indisposição,
não quis sair de seu quarto. Seu primeiro movimento foi um ímpeto de cólera
brutal; esteve a ponto de atirar toalha, pratos, talheres e tudo pelos ares, e
ir esbofetear o desassisado e insolente rapaz, que em má hora viera à sua casa
para perturbar a tranquilidade do seu viver doméstico. Mas conteve-se a tempo,
e acalmando-se entendeu que melhor era não se dar por achado, e encarar com
ares da maior indiferença e mesmo de desdém, os arrufos da esposa, e o mau
humor do cunhado. Estava bem persuadido que lhe seria difícil, se não
impossível, dissimular mais aos olhos da esposa o seu torpe procedimento;
incapaz, porém, de retratar-se e implorar perdão, resolveu amparar-se da
tempestade, que ia despenhar-se sobre sua cabeça, com o escudo da mais cínica
indiferença. Inspiravam-lhe este alvitre o orgulho, e o mau conceito em que
tinha todas as mulheres, nas quais não reconhecia pundonor nem dignidade.

Depois
do almoço Leôncio montou a cavalo, percorreu as roças e cafezais, coisa que bem
raras vezes fazia, e ao descambar do Sol voltou para casa, jantou com o maior
sossego e apetite, e depois foi para o salão, onde, repoltreando-se em macio e
fresco sofá, pôs-se a fumar tranquilamente o seu havana.

Nesse
comenos chega Henrique de suas excursões venatórias, e depois de procurar em
vão a irmã por todos os cantos da casa, vai enfim encontrá-la encerrada em seu
quarto de dormir desfigurada, pálida, e com os olhos vermelhos e inchados de
tanto chorar.


Por onde andaste, Henrique?… estava aflita por te ver, – exclamou a moça ao
avistar o irmão. – Que má moda é essa de deixar a gente assim sozinha!…


Sozinha?!… pois até aqui não vivias sem mim na companhia de teu belo
marido?…


Não me fales nesse homem… eu andava iludida; agora vejo que andava pior do
que sozinha, na companhia de um perverso.


Ainda bem que presenciaste com teus próprios olhos o que eu não tinha ânimo de
dizer-te. Mas, vamos! que pretendes fazer?…


O que pretendo?… vais ver neste mesmo instante… Onde está ele?… viste-o
por ai?…

Se
me não engano, vi-o no salão; havia lá um vulto sobre um sofá.


Pois bem, Henrique, acompanha-me até lá.


Por que razão não vais só? poupa-me o desgosto de encarar aquele homem…


Não, não; é preciso que vás comigo; estava à tua espera mesmo para esse fim.
Preciso de uma pessoa que me ampare e me alente. Agora até tenho medo dele.


Ah! compreendo; queres que eu seja teu guarda-costas, para poderes descompor a
teu jeito aquele birbante. Pois bem; presto-me de boa vontade, e veremos se o
patife tem o atrevimento de te desrespeitar. Vamos!  

 

VI

 


Senhor Leôncio, – disse Malvina com voz alterada aproximando-se do sofá, em que
se achava o marido, – desejo dizer-lhe duas palavras, se isso não o incomoda.


Estou sempre às tuas ordens, querida Malvina, – respondeu levantando-se lesto e
risonho, e como quem nenhum reparo fizera no tom cerimonioso com que Malvina o
tratava. – Que me queres?…


Quero dizer-lhe, – exclamou a moça em tom severo, e fazendo vãos esforços para
dar ao seu lindo e mavioso semblante um ar feroz, – quero dizer-lhe que o
senhor me insulta e me atraiçoa em sua casa, da maneira a mais indigna e
desleal…


Santo Deus!… que estás aí a dizer, minha querida?… explica-te melhor, que
não compreendo nem uma palavra do que dizes…


É debalde, que o senhor se finge surpreendido; bem sabe a causa do meu
desgosto. Eu já devia ter pressentido esse seu vergonhoso procedimento; há
muito que o senhor não é o mesmo para comigo, e me trata com tal frieza e
indiferença…


Oh! meu coração, pois querias que durasse eternamente a lua-de-mel?… isso
seria horrivelmente monótono e prosaico.


Ainda escarneces, infame! – bradou a moça, e desta vez as faces se lhe
afoguearam de extraordinário rubor, e fuzilaram-lhe nos olhos lampejos de
cólera terrível.


Oh! não te exasperes assim, Malvina; estou gracejando – disse Leôncio
procurando tomar-lhe a mão.


Boa ocasião para gracejos!… deixe-me, senhor!… que infâmia!… que vergonha
para nós ambos!…


Mas enfim não te explicarás?


Não tenho que explicar; o senhor bem me entende. Só tenho que exigir…


Pois exige, Malvina.


Dê um destino qualquer a essa escrava, a cujos pés o senhor costuma vilmente
prostrar-se: liberte-a, venda-a, faça o que quiser. Ou eu ou ela havemos de
abandonar para sempre esta casa; e isto hoje mesmo. Escolha entre nos.


Hoje?!


E já!


És muito exigente e injusta para comigo, Malvina, – disse Leôncio depois de um
momento de pasmo e hesitação. – Bem sabes que é meu desejo libertar Isaura; mas
acaso depende isso de mim somente? É a meu pai que compete fazer o que de mim
exiges.


Que miserável desculpa, senhor! seu pai já lhe entregou escravos e fazenda, e
dará por bem feito tudo quanto o senhor fizer. Mas se acaso o senhor a prefere
a mim…


Malvina!… não digas tal blasfêmia!…


Blasfêmia!… quem sabe!… mas enfim dê um destino qualquer a essa rapariga,
se não quer expelir-me para sempre de sua casa. Quanto a mim, não a quero mais
nem um momento em meu serviço; é bonita demais para mucama.


O que lhe dizia eu, senhor Leôncio? acudiu Henrique, que já cansado e
envergonhado do papel de mudo guarda-costas, entendeu que devia intervir também
na querela. – Está vendo?.. eis aí o fruto que se colhe desses belos trastes de
luxo, que quer por força ter em seu salão…


Esses trastes não seriam tão perigosos, se não existissem vis mexeriqueiros,
que não hesitam em perturbar o sossego da casa dos outros para conseguir seus
fins perversos…


Alto lá, senhor!… para impedir que o senhor não transportasse o seu traste de
luxo do salão para a alcova, percebe?… o escândalo cedo ou tarde seria
notório, e nenhum dever tenho eu de ver de braços cruzados minha irmã
indignamente ultrajada.


Senhor Henrique! bradou Leôncio avançando para ele, hirto de cólera e com gesto
ameaçador.


Basta, senhores – gritou Malvina interpondo-se aos dois mancebos. – Toda a
disputa por tal motivo é inútil e vergonhosa para nós todos. Eu já disse a
Leôncio o que tinha de dizer; ele que se decida; faça o que entender. Se quiser
ser homem de brio e pundonor, ainda é tempo. Se não, deixe-me, que eu o
entregarei ao desprezo que merece.


Oh! Malvina! estou pronto a fazer todo o possível para te tranquilizar e
contentar: mas deves saber que não posso satisfazer o teu desejo sem primeiro
entender-me com meu pai, que está na corte. É preciso mais que saibas, que meu
pai nenhuma vontade tem de libertar Isaura, tanto assim, que para se ver livre
das importunações do pai dela, que também quer a todo custo libertá-la, exigiu
uma soma por tal forma exorbitante, que é quase impossível o pobre homem
arranjá-la.


O de casa!… dá licença? – bradou neste momento com voz forte e sonora uma
pessoa, que vinha subindo a escada do alpendre.


Quem quer que é, pode entrar, – gritou Leôncio dando graças ao céu, que tão a
propósito mandava-lhe uma visita para interromper aquela importuna e detestável
questão e livrá-lo dos apuros em que se via entalado.

Entretanto,
como se verá, não tinha muito de que congratular-se. O visitante era Miguel, o
antigo feitor da fazenda, o pai de Isaura, que havia sido outrora
grosseiramente despedido pelo pai de Leôncio.

Este,
que ainda o não conhecia, recebeu-o com afabilidade.


Queira sentar-se, – disse-lhe, – e dizer-nos o motivo por que nos faz a honra
de procurar,


Obrigado! – disse o recém-chegado, depois de cumprimentar respeitosamente
Henrique e Malvina. – V. S.a sem dúvida é o senhor Leôncio?…


Para o servir.


Muito bem!… é com V. S.ª que tenho de tratar na falta do senhor seu pai. O
meu negócio é simples, e julgo que o posso declarar em presença aqui do senhor
e da senhora, que me parecem ser pessoas de casa.


Sem dúvida! entre nós não há segredo, nem reservas.


Eis aqui ao que vim, senhor meu, – disse Miguel, tirando da algibeira de seu
largo sobretudo uma carteira, que apresentou a Leôncio; – faça o favor de abrir
esta carteira; aqui encontrará V. S.ª a quantia exigida pelo senhor seu pai,
para a liberdade de uma escrava desta casa por nome Isaura.

Leôncio
enfiou, e tomando maquinalmente a carteira, ficou alguns instantes com os olhos
pregados no teto.


Pelo que vejo, – disse por fim, – o senhor deve ser o pai… aquele que dizem
ser o pai da dita escrava. – é o senhor. – não me lembra o nome.


Miguel, um criado de V. S.a


É verdade; o senhor Miguel. Folgo muito que tenha arranjado meios de libertar a
menina; ela bem merece esse sacrifício.

Enquanto
Leôncio abre a carteira, e conta e reconta mui pausadamente nota por nota o
dinheiro, mais para ganhar tempo a refletir sobre o que deveria fazer naquelas
conjunturas, do que para verificar se estava exata a soma, aproveitemo-nos do
ensejo para contemplar a figura do bom e honrado português, pai da nossa
heroína, de quem ainda não nos ocupamos senão de passagem.

Era
um homem de mais de cinquenta anos; em sua fisionomia nobre e alerta
transpirava a franqueza, a bonomia, e a lealdade.

Trajava
pobremente, mas com muito alinho e limpeza, e por suas maneiras e conversação,
conhecia-se que aquele homem não viera ao Brasil, como quase todos os seus
patrícios, dominado pela ganância de riquezas. Tinha o trato e a linguagem de
um homem polido, e de acurada educação. De feito Miguel era filho de uma nobre
e honrada família de miguelistas, que havia emigrado para o Brasil. Seus pais,
vítimas de perseguições políticas, morreram sem ter nada que legar ao filho,
que deixaram na idade de dezoito a vinte anos. Sozinho, sem meios e sem
proteção, viu-se forçado a viver do trabalho de seus braços, metendo-se a
jardineiro e horticultor, mister este, que como filho de lavrador, robusto,
ativo e inteligente, desempenhava com suma perícia e perfeição.

O
pai de Leôncio, tendo tido ocasião de conhecê-lo, e apreciando o seu
merecimento, o engajou para feitor de sua fazenda com vantajosas condições. Ali
serviu muitos anos sempre mui respeitado e querido de todos, até que aconteceu-lhe
a fatal, mas muito desculpável fraqueza, que sabemos, e em consequência da qual
foi grosseiramente despedido por seu patrão. Miguel concebeu amargo
ressentimento e mágoa profunda, não tanto por si, como por amor das duas infelizes
criaturas, que não podia proteger contra a sanha de um senhor perverso e
brutal. Mas forçoso lhe foi resignar-se. Não lhe faltava serviço nem
acolhimento pelas fazendas vizinhas. Conhecedores de seu mérito, os lavradores
em redor o aceitariam de braços abertos; a dificuldade estava na escolha. Optou
pelo mais vizinho, para ficar o mais perto possível de sua querida filhinha.

Como
o comendador quase sempre achava-se na corte ou em Campos, Miguel tinha muita
ocasião e facilidade de ir ver a menina, à qual cada vez ia criando mais entranhado
afeto. A esposa do comendador, na ausência deste, dava ao português franca
entrada em sua casa, e facilitava-lhe os meios de ver e afagar a filhinha, com
o que vivia ele mui consolado e contente. De feito o céu tinha dado à sua filha
na pessoa de sua senhora uma segunda mãe tão boa e desvelada, como poderia ser
a primeira, e que mais do que esta lhe podia servir de amparo e proteção. A
morte inesperada daquela virtuosa senhora veio despedaçar-lhe o coração,
quebrando-lhe todas as suas lisonjeiras esperanças.

Muito
pode o amor paterno em uma alma nobre e sensível!… Miguel, sobrepujando todo
o ódio, repugnância e asco, que lhe inspirava a pessoa do comendador, não
hesitou em ir humilhar-se diante dele, importuná-lo com suas súplicas,
rogar-lhe com as lágrimas nos olhos, que abrisse preço à liberdade de Isaura.


Não há dinheiro que a pague; há de ser sempre minha, – respondia com orgulhoso
cinismo o inexorável senhor ao infeliz e aflito pai.

Um
dia enfim para se ver livre das importunações e súplicas de Miguel, disse-lhe
com mau modo:


Homem de Deus, traga-me dentro de um ano dez contos de réis, e lhe entrego
livre a sua filha e… deixe-me por caridade. Se não vier nesse prazo, perca as
esperanças.


Dez contos de réis! é soma demasiado forte para mim.. – mas não importa!… ela
vale muito mais do que isso. Senhor comendador, vou fazer o impossível para
trazer-lhe essa soma dentro do prazo marcado. Espero em Deus, que me há de
ajudar.

O
pobre homem, à força de trabalho e economia, impondo-se privações, vendendo
todo o supérfluo, e limitando-se ao que era estritamente necessário, no fim do
ano apenas tinha arranjado metade da quantia exigida. Foi-lhe mister recorrer à
generosidade de seu novo patrão, o qual, sabendo do santo e nobre fim a que se
propunha seu feitor, e do vexame e extorsão de que era vítima, não hesitou em
fornecer-lhe a soma necessária, a título de empréstimo ou adiantamento de
salários.

Leôncio,
que como seu pai julgava impossível que Miguel em um ano pudesse arranjar tão
considerável soma, ficou atônito e altamente contrariado, quando este se
apresentou para lhe meter nas mãos.


Dez contos, – disse por fim Leôncio acabando de contar o dinheiro. – É
justamente a soma exigida por meu pai. – Bem estólido e avaro é este meu pai,
murmurou ele consigo, – eu nem por cem contos a daria. – Senhor Miguel, –
continuou em voz alta, entregando-lhe a carteira, – guarde por ora o seu
dinheiro; Isaura não me pertence ainda; só meu pai pode dispor dela. Meu pai acha-se
na corte, e não deixou-me autorização alguma para tratar de semelhante negócio.
Arranje-se com ele.


Mas V. S.ª é seu filho e herdeiro único, e bem podia por si mesmo…


Alto lá, senhor Miguel! meu pai felizmente é vivo ainda, e não me é permitido
desde já dispor de seus bens, como minha herança.


Embora, senhor; tenha a bondade de guardar esse dinheiro e enviá-lo ao senhor
seu pai, rogando-lhe da minha parte o favor de cumprir a promessa que me fez de
dar liberdade a Isaura mediante essa quantia.


Ainda pões dúvida, Leôncio?! – exclamou Malvina impaciente e indignada com as
tergiversações do marido. – Escreve, escreve quanto antes a teu pai; não te
podes esquivar sem desonra a cooperar para a liberdade dessa rapariga.

Leôncio,
subjugado pelo olhar imperioso da mulher, e pela força das circunstâncias, que
contra ele conspiravam, não pôde mais escusar-se.

Pálido
e pensativo, foi sentar-se junto a uma mesa, onde havia papel e tinta, e de
pena em punho pôs-se a meditar em atitude de quem ia escrever. Malvina e
Henrique, debruçados a uma janela, conversavam entre si em voz baixa. Miguel,
sentado a um canto na outra extremidade da sala, esperava pacientemente, quando
Isaura, que do quintal, onde se achava escondida, o tinha visto chegar, entrando
no salão sem ser sentida, se lhe apresentou diante dos olhos. Entre pai e filha
travou-se a meia voz o seguinte diálogo:


Meu pai!… que novidade o traz aqui?… a modo que lhe estou vendo um ar mais
alegre que de costume.


Calada! – murmurou Miguel, levando o dedo à boca e apontando para Leôncio. –
Trata-se da tua liberdade.


Deveras, meu pai!… mas como pôde arranjar isso?


Ora como?!… a peso de ouro. Comprei-te, minha filha, e em breve vais ser
minha.


Ah! meu querido pai!… como vossemecê é bom para sua filha!… se soubesse
quantos hoje já me vieram oferecer a liberdade!… mas por que preço! meu
Deus!… nem me atrevo a lhe contar. Meu coração adivinhava, continuou beijando
com terna efusão as mãos de Miguel; – eu não devia receber a liberdade senão
das mãos daquele que me deu a vida!…


Sim, querida Isaura! – disse o velho apertando-a contra o coração. – O céu nos
favoreceu, e em breve vais ser minha, minha só, minha para sempre!…


Mas ele consente?… perguntou Isaura apontando para Leôncio.


O negócio não é com ele, é com seu pai, a quem agora escreve.


Nesse caso tenho alguma esperança; mas se minha sorte depender somente daquele
homem, serei para sempre escrava.


Arre! com mil diabos!… resmungou consigo Leôncio levantando-se, e dando sobre
a mesa um furioso murro com o punho fechado. – Não sei que volta hei de dar
para desmanchar esta inqualificável loucura de meu pai!


Já escreveste, Leôncio? – perguntou Malvina voltando-se para dentro.

Antes
que Leôncio pudesse responder a esta pergunta, um pajem, entrando rapidamente
pela sala, entrega-lhe uma carta tarjada de preto.


De luto!… meu Deus!… que será! – exclamou Leôncio, pálido e trêmulo,
abrindo a carta, e depois de a ter percorrido rapidamente com os olhos lançou-se
sobre uma cadeira, soluçando e levando o lenço aos olhos.


Leôncio! Leôncio!… que tem?… exclamou Malvina pálida de susto; e tomando a
carta que Leôncio atirara sobre a mesa, começou a ler com voz entrecortada:

“Leôncio,
tenho a dar-te uma dolorosa notícia, para a qual teu coração não podia estar
preparado. E um golpe, pelo qual todos nós temos de passar inevitavelmente, e
que deves suportar com resignação. Teu pai já não existe; sucumbiu anteontem
subitamente, vítima de uma congestão cerebral…”

 Malvina não pôde continuar; e nesse momento,
esquecendo-se das injúrias e de tudo que lhe havia acontecido naquele nefasto
dia, lançou-se sobre seu marido, e abraçando-se com ele estreitamente,
misturava suas lágrimas com as dele.


Ah! meu pai! meu pai!… tudo está perdido! – exclamou Isaura, pendendo a linda
e pura fronte sobre o peito de Miguel. – Já nenhuma esperança nos resta!…


Quem sabe, minha filha! – replicou gravemente o pai. – Não desanimemos; grande
é o poder de Deus!…

 

VII

 

Na
fazenda de Leôncio havia um grande salão toscamente construído, sem forro nem
soalho, destinado ao trabalho das escravas que se ocupavam em fiar e tecer lã e
algodão.

Os
móveis deste lugar consistiam em tripeças, tamboretes, bancos, rodas de fiar,
dobadouras, e um grande tear colocado a um canto.

Ao
longo do salão, defronte de largas janelas guarnecidas de balaústres, que davam
para um vasto pálio interior, via-se postada uma fila de fiandeiras. Eram de
vinte a trinta negras, crioulas e mulatas, com suas tenras crias ao colo ou
pelo chão a brincarem em redor delas. Umas conversavam, outras cantarolavam
para encurtarem as longas horas de seu fastidioso trabalho. Viam-se ali caras
de todas as idades, cores e feitios, desde a velha africana, trombuda e macilenta,
até à roliça e luzidia crioula, desde a negra brunida como azeviche até à
mulata quase branca.

Entre
estas últimas distinguia-se uma rapariguinha, a mais faceira e gentil que se
pode imaginar nesse gênero. Esbelta e flexível de corpo, tinha o rostinho mimoso,
lábios um tanto grossos, mas bem modelados, voluptuosos, úmidos, e vermelhos
como boninas que acabam de desabrochar em manhã de abril. Os olhos negros não
eram muito grandes, mas tinham uma viveza e travessura encantadoras. Os cabelos
negros e anelados podiam estar bem na cabeça da mais branca fidalga de
além-mar. Ela porém os trazia curtos e mui bem frisados à maneira dos homens.
Isto longe de tirar-lhe a graça, dava à sua fisionomia zombeteira e espevitada
um chispe original e encantador. Se não fossem os brinquinhos de ouro, que lhe
tremiam nas pequenas e bem molduradas orelhas, e os túrgidos e ofegantes seios
que como dois trêfegos cabritinhos lhe pulavam por baixo de transparente
camisa, tomá-la-íeis por um rapazote maroto e petulante. Veremos em breve de
que ralé era esta criança, que tinha o bonito nome de Rosa.

No
meio do sussurro das rodas, que giravam, das monótonas cantarolas das
fiandeiras, do compasso estrépito do tear, que traba-lhava incessantemente, dos
guinchos e alaridos das crianças, quem prestasse atento ouvido, escutaria a
seguinte conversação, travada timidamente e a meia voz em um grupo de
fiandeiras, entre as quais se achava Rosa.


Minhas camaradas, – dizia a suas vizinhas uma crioula idosa, matreira e sabida
em todos os mistérios da casa desde os tempos dos senhores velhos, – agora que
sinhô velho morreu, e que sinhá Malvina foi-se embora para a casa de seu pai
dela, é que nós vamos ver o que e rigor de cativeiro.


Como assim, tia Joaquina?!…


Como assim!… vocês verão. Vocês bem sabem, que sinhô velho não era de
brinquedo; pois sim; lá diz o ditado – atrás de mim virá quem bom me fará. –
Este sinhô moço Leôncio… hum!… Deus queira que me engane… quer-me parecer
que vai-nos fazer ficar com saudade do tempo de sinhô velho…


Cruz! ave Maria!… não fala assim, tia Joaquina!… então é melhor matar a
gente de uma vez…


Este não quer saber de fiados nem de tecidos, não; e daqui a pouco nós tudo vai
pra roça puxar enxada de sol a sol, ou pra o cafezal apanhar café, e o pirai do
feitor aí rente atrás de nós. Vocês verão. Ele o que quer é café, e mais café,
que é o que dá dinheiro.


Também, a dizer a verdade, não sei o que será melhor, – observou outra escrava,
– se estar na roça trabalhando de enxada, ou aqui pregada na roda, desde que
amanhece até nove, dez horas da noite. Quer-me parecer que lã ao menos a gente
fica mais à vontade.


Mais à vontade?!.., que esperança! – exclamou uma terceira.


Antes, aqui, mil vezes! aqui ao menos a gente sempre está livre do maldito
feitor.


Qual, minha gente! – ponderou a velha crioula – tudo é cativeiro. Quem teve a
desgraça de nascer cativo de um mau senhor, dê por aqui, dê por acolá, há de
penar sempre. Cativeiro é má sina; não foi Deus que botou no mundo semelhante
coisa, não; foi invenção do diabo. Não vê o que aconteceu com a pobre Juliana,
mãe de Isaura?


Por falar nisso, – atalhou uma das fiandeiras, – o que fica fazendo agora a
Isaura?… enquanto sinhá Malvina estava aí, ela andava de estadão na sala,
agora…


Agora fica fazendo as vezes de sinhá Malvina, – acudiu Rosa com seu sorriso
maligno e zombeteiro.


Cala a boca, menina! – bradou com voz severa a velha crioula. – Deixa dessas
falas. Coitada da Isaura. Deus te livre a você de estar na pele daquela pobrezinha!
se vocês soubessem quanto penou a pobre da mãe dela! ah! aquele sinhô velho foi
um home judeu mesmo, Deus te perdoe. Agora com Isaura e sinhô Leôncio a coisa
vai tomando o mesmo rumo. Juliana era uma mulata bonita e sacudida; era da cor
desta Rosa mas inda mais bonita e mais bem feita…

Rosa
deu um muxoxo, e fez um momo desdenhoso.


Mas isso mesmo foi a perdição dela, coitada! – continuou a crioula velha. – O
ponto foi sinhô velho gostar dela… eu já contei a vocês o que é que
aconteceu. Juliana era uma rapariga de brio, e por isso teve de penar, até
morrer. Nesse tempo o feitor era esse siô Miguel, que anda aí, e que é pai de
Isaura. Isso é que era feitor bom!… todo mundo queria ele bem, e tudo andava
direito. Mas esse siô Francisco, que ai anda agora, cruz nele!… é a pior
peste que tem botado os pés nesta casa. Mas, como ia dizendo, o siô Miguel
gostava muito de Juliana, e trabalhou, trabalhou até ajuntar dinheiro para
forrar ela. Mas nhonhô não esteve por isso, ficou muito zangado, e tocou o
feitor para fora.

Também
Juliana pouco durou; pirai e serviço deu co’ela na cova em pouco tempo. Picou
aí a pobre menina ainda de mama, e se não fosse sinhá velha, que era uma santa
mulher, Deus sabe o que seria dela!… também, coitada!… antes Deus a tivesse
levado!…


Por quê, tia Joaquina?…


Porque está-me parecendo, que ela vai ter a mesma sina da mãe…


E o que mais merece aquela impostora? – murmurou a invejosa e malévola Rosa. –
Pensa que por estar servindo na sala é melhor do que as outras, e não faz caso
de ninguém. Deu agora em namorar os moços brancos, e como o pai diz que há de
forrar ela, pensa que e uma grande senhora. Pobre do senhor Miguel!… não tem
onde cair morto, e há de ter para forrar a filha!


Que má língua é esta Rosa! – murmurou enfadada a velha crioula, relanceando um
olhar de repreensão sobre a mulata. – Que mal te fez a pobre Isaura, aquela
pomba sem fel, que com ser o que e, bonita e civilizada como qualquer moça
branca, não é capaz de fazer pouco caso de ninguém?… Se você se pilhasse no
lugar dela, pachola e atrevida como és, havias de ser mil vezes pior.

Rosa
mordeu os beiços de despeito, e ia responder com todo o atrevimento e desgarre,
que lhe era próprio, quando uma voz áspera e atroadora, que, partindo da porta
do salão, retumbou por todo ele, veio pôr termo à conversação das fiandeiras.


Silêncio! – bradava aquela voz. – Arre! que tagarelice!… parece que aqui só
se trabalha de língua!…

Um
homem espadaúdo e quadrado, de barba espessa e negra, de fisionomia dura e
repulsiva, apresenta-se à porta do salão, e vai entrando. Era o feitor.
Acompanhava-o um mulato ainda novo, esbelto e aperaltado, trajando uma bonita
libré de pajem, e conduzindo uma roda de fiar. Logo após eles entrou Isaura.

As
escravas todas levantaram-se e tomaram a bênção ao feitor. Este mandou colocar
a roda em um espaço desocupado, que infelizmente para Isaura ficava ao pé de
Rosa.


Anda cá, rapariga; – disse o feitor voltando-se para Isaura. – De hoje em
diante é aqui o teu lugar; esta roda te pertence, e tuas parceiras que te dêem
tarefa para hoje. Bem vejo que te não há de agradar muito a mudança; mas que
volta se lhe há de dar?… teu senhor assim o quer. Anda lá; olha que isto não
é piano, não; é acabar depressa com a tarefa para pegar em outra. Pouca conversa
e muito trabalhar…

Sem
se mostrar contrariada nem humilhada com a nova ocupação, que lhe davam, Isaura
foi sentar-se junto a roda, e pôs-se a prepará-la para dar começo ao trabalho.
Posto que criada na sala e empregada quase sempre em trabalhos delicados,
todavia era ela hábil em todo o gênero de serviço doméstico: sabia fiar, tecer,
lavar, engomar, e cozinhar tão bem ou melhor do que qualquer outra. Foi pois
colocar-se com toda a satisfação e desembaraço entre as suas parceiras; apenas
notava-se no sorriso, que lhe adejava nos lábios, certa expressão de
melancólica resignação; mas isso era o reflexo das inquietações e angústias,
que lhe oprimiam o coração, que não desgosto por se ver degradada do posto que
ocupara toda sua vida junto de suas senhoras. Cônscia de sua condição, Isaura
procurava ser humilde como qualquer outra escrava, porque a despeito de sua
rara beleza e dos dotes de seu espirito, os fumos da vaidade não lhe
intumesciam o coração, nem turvavam-lhe a luz de seu natural bom senso. Não
obstante porém toda essa modéstia e humildade transiuzia-lhe, mesmo a despeito
dela, no olhar, na linguagem e nas maneiras, certa dignidade e orgulho nativo,
proveniente talvez da consciência de sua superioridade, e ela sem o querer
sobressaía entre as outras, bela e donosa, pela correção e nobreza dos traços
fisionômicos e por certa distinção nos gestos e ademanes. Ninguém diria que era
uma escrava, que trabalhava entre as companheiras, e a tomaria antes por uma
senhora moça, que, por desenfado, fiava entre as escravas. Parecia a
garça-real, alçando o colo garboso e altaneiro, entre uma chusma de pássaros
vulgares.

As
outras escravas a contemplavam todas com certo interesse e comiseração, porque
de todas era querida, menos de Rosa, que lhe tinha inveja e aversão mortal. Em
duas palavras o leitor ficará inteirado do motivo desta malevolência de Rosa.
Não era só pura inveja; havia aí alguma coisa de mais positivo, que convertia
essa inveja em ódio mortal. Rosa havia sido de há muito amásia de Leôncio, para
quem fora fácil conquista, que não lhe custou nem rogos nem ameaças. Desde que,
porém, inclinou-se a Isaura, Rosa ficou inteiramente abandonada e esquecida. A
gentil mulatinha sentiu-se cruelmente ferida em seu coração com esse desdém, e
como era maligna e vingativa, não podendo vingar-se de seu senhor, jurou
descarregar todo o peso de seu rancor sobre a pessoa de sua infeliz rival.


Um raio que te parta, maldito! – Má lepra te consuma, coisa ruim! – Uma
cascavel que te morda a língua, cão danado! – Estas e outras pragas vomitavam
as escravas resmungando entre si contra o feitor, apenas este voltou-lhes as
costas. O feitor é o ente mais detestado entre os escravos; um carrasco não
carrega com tantos ódios. Abominado mais do que o senhor cruel, que o muniu do
azorrague desapiedado para açoitá-los e acabrunhá-los de trabalhos. É assim que
o paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença para revoltar-se contra o
algoz, que a executa.

Como
já dissemos, coube em sorte a Isaura sentar-se perto de Rosa. Esta assestou
logo contra sua infeliz companheira a sua bateria de ditérios e remoques
sarcásticos e irritantes.


Tenho bastante pena de você, Isaura. disse Rosa para dar começo às operações.


Deveras! – respondeu Isaura, disposta a opor às provocações de Rosa toda a sua
natural brandura e paciência.


Pois por quê, Rosa?…


Pois não é duro mudar-se da sala para a senzala, trocar o sofá de damasco por
esse cepo, o piano e a almofada de cetim por essa roda? Por que te enxotaram de
lá, Isaura?


Ninguém me enxotou, Rosa; você bem sabe. Sinhá Malvina foi-se embora em
companhia de seu irmão para a casa do pai dela.

Portanto
nada tenho que fazer na sala, e é por isso que venho aqui trabalhar com vocês.


E por que é que ela não te levou, você, que era o ai-jesus dela?… Ah! Isaura,
você cuida que me embaça, mas está muito enganada; eu sei de tudo. Você estava
ficando muito aperaltada, e por isso veio aqui para conhecer o seu lugar


Como és maliciosa! – replicou Isaura sorrindo tristemente, mas sem se alterar;
pensas então que eu andava muito contente e cheia de mim por estar lá na sala
no meio dos brancos?… como te enganas!… se me não perseguires com a tua má
língua, como principias a fazer, creio que hei de ficar mais satisfeita e
sossegada aqui.


Nessa não creio eu; como é que você pode ficar satisfeita aqui, se não acha
moços para namorar?


Rosa, que mal te fiz eu, para estares assim a amofinar-me com essas falas?…


Olhe a sinhá, não se zangue!… perdão, dona Isaura; eu pensei que a senhora
tinha esquecido os seus melindres lá no salão.


Podes dizer o que quiseres, Rosa; mas eu bem sei, que na sala ou na cozinha eu
não sou mais do que uma escrava como tu. Também deves-te lembrar, que se hoje
te achas aqui, amanhã sabe Deus onde estarás. Trabalhemos, que é nossa
obrigação. deixemos dessas conversas que não têm graça nenhuma.

Neste
momento ouvem-se as badaladas de uma sineta; eram três para quatro horas da
tarde; a sineta chamava os escravos a jantar. As escravas suspendem seus
trabalhos e levantam-se; Isaura porém não se move, e continua a fiar.


Então? – diz-lhe Rosa com o seu ar escarninho, – você não ouve, Isaura? são
horas; vamos ao feijão.


Não, Rosa; deixem-me ficar aqui; não tenho fome nenhuma.

Fico
adiantando minha tarefa, que principiei muito tarde.


Tem razão; também uma rapariga civilizada e mimosa como você não deve comer do
caldeirão dos escravos. Quer que te mande um caldinho, um chocolate?…


Cala essa boca, tagarela! – bradou a crioula velha, que parecia ser a priora
daquele rancho de fiandeiras. – Forte linguinha de víbora!… deixa a outra
sossegar. Vamos, minha gente.

As
escravas retiraram-se todas do salão, ficando só Isaura, entregue ao seu
trabalho e mais ainda às suas tristes e inquietadoras reflexões. O fio se
estendia como que maquinalmente entre seus dedos mimosos, enquanto o pezinho nu
e delicado, abandonando o tamanquinho de marroquim, pousava sobre o pedal da
roda, a que dava automático impulso. A fronte lhe pendia para um lado como
açucena esmorecida, e as pálpebras meio cerradas eram como véus melancólicos,
que encobriam um pego insondável de tristura e desconforto. Estava deslumbrante
de beleza naquela encantadora e singela atitude.


Ah! meu Deus! – pensava ela; nem aqui posso achar um pouco de sossego!… em
toda parte juraram martirizar-me!… Na sala, os brancos me perseguem e armam
mil intrigas e enredos para me atormentarem. Aqui, onde entre minhas parceiras,
que parecem me querer bem, esperava ficar mais tranquila, há uma, que por
inveja, ou seja lá pelo que for, me olha de revés e só trata de achincalhar-me.
Meu Deus! meu Deus!… já que tive a desgraça de nascer cativa, não era melhor
que tivesse nascido bruta e disforme, como a mais vil das negras, do que ter
recebido do céu estes dotes, que só servem para amargurar-me a existência?

Isaura
não teve muito tempo para dar larga expansão às suas angustiosas reflexões.
Ouviu rumor na porta, e levantando os olhos viu que alguém se encaminhava para
ela.


Ai! meu Deus! – murmurou consigo. – Aí temos nova importunação! nem ao menos me
deixam ficar sozinha um instante.

Quem
entrava era, sem mais nem menos, o pajem André, que já vimos em companhia do
feitor, e que mui ancho, empertigado e petulante se foi colocar defronte de Isaura.


Boa tarde, linda Isaura. Então, como vai essa flor? – saudou o pachola do pajem
com toda a faceirice.


Bem, respondeu secamente Isaura.


Estás amuada?… tens razão, mas é preciso ir-se acomodando com este novo modo
de vida. Deveras que para quem estava acostumada lá na sala, no meio de sedas e
flores e águas-de-cheiro, há de ser bem triste ficar aqui metida entre estas
paredes enfumaçadas que só tresandam a sarro de pito e morrão de candeia.


Também tu, André, vens por tua vez aproveitar-te da ocasião para me atirar lama
na cara?…


Não, não, Isaura; Deus me livre de te ofender; pelo contrário, dói-me deveras
dentro do coração ver aqui misturada com esta corja de negras beiçudas e
catinguentas uma rapariga como tu, que só merece pisar em tapetes e deitar em
colchões de damasco. Esse senhor Leôncio tem mesmo um coração de fera.


E que te importa isso? eu estou bem satisfeita aqui.


Qual!… não acredito; não é aqui teu lugar. Mas também por outra banda estimo
bem isso.


Por quê?


Porque, enfim, Isaura, a falar-te a verdade, gosto muito de você, e aqui ao
menos podemos conversar mais em liberdade…


Deveras!… declaro-te desde já que não estou disposta a ouvir tuas liberdades.


Ah! é assim! – exclamou André todo enfunado com este brusco desengano. – Então
a senhora quer só ouvir as finezas dos moços bonitos lá na sala!… pois olha,
minha camarada, isso nem sempre pode ser, e cá da nossa laia não és capaz de
encontrar rapaz de melhor figura do que este seu criado. Ando sempre engravatado,
enluvado, calçado, engomado, agaloado, perfumado, e o que mais e, – acrescentou
batendo com a mão na algibeira, – com as algibeiras sempre a tinir. A Rosa, que
também é uma rapariguinha bem bonita, bebe os ares por mim; mas coitada!… o
que é ela ao pé de você?… Enfim, Isaura, se você soubesse quanto bem te
quero, não havias de fazer tão pouco caso de mim. Se tu quisesses, olha…
escuta.

E
dizendo isto o maroto do pajem, avizinhando-se de Isaura, foi-lhe lançando
desembaraçadamente o braço em torno do colo, como quem queria falar-lhe em
segredo, ou talvez furtar-lhe um beijo.


Alto lá! – exclamou Isaura repelindo-o com enfado. – Está ficando bastante
adiantado e atrevido. Retire-se daqui, se não irei dizer tudo ao senhor
Leôncio.


Oh! perdoa, Isaura; não há motivo para você se arrufar assim. És muito má, para
quem nunca te ofendeu, e te quer tanto bem. Mas deixa estar, que o tempo há de
te amaciar esse coraçãozinho de pedra. Adeus; eu já me vou embora; mas olha lá,
Isaura; pelo amor de Deus, não vá dizer nada a ninguém. Deus me livre que sinhó
moço saiba do que aqui se passou; era capaz de me enforcar. O que vale, –
continuou André consigo e retirando-se, – o que vale é que neste negócio
parece-me que ele anda tão adiantado como eu.

Pobre
Isaura! sempre e em toda parte esta contínua importunação de senhores e de
escravos, que não a deixam sossegar um só momento! Como não devia viver aflito
e atribulado aquele coração! Dentro de casa contava ela quatro inimigos, cada
qual mais porfiado em roubar-lhe a paz da alma, e torturar-lhe o coração: três
amantes, Leôncio, Belchior, e André, e uma êmula terrível e desapiedada, Rosa.
Fácil lhe fora repelir as importunações e insolências dos escravos e criados;
mas que seria dela, quando viesse o senhor?!…

De
feito, poucos instantes depois Leôncio, acompanhado pelo feitor, entrava no
salão das fiandeiras. Isaura, que um momento suspendera o seu trabalho, e com o
rosto escondido entre as mãos se embevecia em amargas reflexões, não se
apercebera da presença deles.


Onde estão as raparigas que aqui costumam trabalhar?… perguntou Leôncio ao
feitor, ao entrar no salão.


Foram jantar, senhor; mas não tardarão a voltar.


Mas uma cá se deixou ficar… ah! é a Isaura… Ainda bem! – refletiu consigo
Leôncio, – a ocasião não pode ser mais favorável; tentemos os últimos esforços
para seduzir aquela empedernida criatura. Logo que acabem de comer, – continuou
ele dirigindo-se ao feitor, – leve-as para a colheita do café. Há muito que eu
pretendia recomendar-lhe isto e tenho-me esquecido. Não as quero aqui mais nem
um instante; isto é um lugar de vadiação, em que perdem o tempo sem proveito
algum, em continuas palestras. Não faltam por aí tecidos de algodão para se
comprar.

Mal
o feitor se retirou, Leôncio dirigiu-se para junto de Isaura.


Isaura! murmurou com voz meiga e comovida.


Senhor! – respondeu a escrava erguendo-se sobressaltada; depois murmurou
tristemente dentro d’alma: – meu Deus! é ele!… é chegada a hora do suplício.

 

VIII

 

Agora
nos é indispensável abandonar por alguns instantes Isaura em sua penível
situação diante de seu dissoluto e bárbaro senhor para informarmos o leitor
sobre o que ocorrera no seio daquela pequena família, e em que pé ficaram os
negócios da casa, depois que a notícia da morte do comendador, estalando como
uma bomba no meio das intrigas domésticas, veio dar-lhes dolorosa diversão no
momento em que elas, refervendo no mais alto grau de ebulição, reclamavam forçosamente
um desenlace qualquer.

Aquela
morte não podia senão prolongar tão melindrosa e deplorável situação, pondo nas
mãos de Leôncio toda a fortuna patema, e desatando as últimas peias que ainda o
tolhiam na expansão de seus abomináveis instintos.

Leôncio
e Malvina estiveram de nojo encerrados em casa por alguns dias, durante os
quais parece que deram tréguas aos arrufos e despeitos recíprocos. Henrique,
que queria absolutamente partir no dia seguinte, cedendo enfim aos rogos e
instâncias de Malvina, consentiu em ficar-lhe fazendo companhia durante os dias
de nojo.


Conforme for o procedimento de meu marido, disse-lhe ela, – iremos juntos. Se
por estes dias não der liberdade e um destino qualquer a Isaura, não ficarei
mais nem um momento em sua casa.

Leôncio
encerrado em seu quarto a ninguém falou, nem apareceu durante alguns dias, e
parecia mergulhado no mais inconsolável e profundo pesar. Entretanto, não era
assim. É verdade que Leôncio não deixou de sofrer certo choque, certa surpresa,
que não golpe doloroso, com a noticia do falecimento de seu pai; mas no fundo
d’alma, – força é dizê-lo, – passado o primeiro momento de abalo e consternação
chegou até a estimar aquele acontecimento, que tanto a propósito vinha livrá-lo
dos apuros em que se achava enleado em face de Malvina e de Miguel. Portanto,
durante a sua reclusão, em vez de entregar-se à dor que lhe deveria causar tão
sensível golpe, Leôncio, que por maneira nenhuma podia resignar-se a
desfazer-se de Isaura, só meditava os meios de safar-se das dificuldades, em
que se achava envolvido, e urdia planos para assegurar-se da posse da gentil
cativa. As dificuldades eram grandes, e constituíam um nó, que poderia ser
cortado, mas nunca desatado. Leôncio havia reconhecido a promessa que seu pai
fizera a Miguel, de alforriar Isaura mediante a soma enorme de dez contos de
réis. Miguel tinha pronta essa quantia, e lha tinha vindo meter nas mãos,
reclamando a liberdade de sua filha. Leôncio reconhecia também, e nem podia
contestar, que sempre fora voto de sua falecida mãe deixar livre Isaura por sua
morte. Por outro lado Malvina, sabedora de sua paixão e de seus sinistros
intentos sobre a cativa, justamente irritada, exigia com império a imediata
alforria da mesma. Não restava ao mancebo meio algum de se tirar decentemente
de tantas dificuldades senão libertando Isaura. Mas Leôncio não podia se
conformar com semelhante idéia. O violento e cego amor, que Isaura lhe havia
inspirado, o incitava a saltar por cima de todos os obstáculos, a arrostar
todas as leis do decoro e da honestidade, a esmagar sem piedade o coração de
sua meiga e carinhosa esposa, para obter a satisfação de seus frenéticos
desejos. Resolveu pois cortar o nó, usando de sua prepotência, e protelando
indefinidamente o cumprimento de seu dever, assentou de afrontar com cínica
indiferença e brutal sobranceria as justas exigências e exprobrações de
Malvina.

Quando
esta, depois de deixar passar alguns dias em respeito à dor de que julgava seu
marido acabrunhado, lhe tocou naquele melindroso negócio:


Temos tempo, Malvina, – respondeu-lhe o marido com toda a calma. – É-me preciso
em primeiro lugar dar balanço e fazer o inventário da casa de meu pai. Tenho de
ir à corte arrecadar os seus papéis e tomar conhecimento do estado de seus
negócios. Na volta e com mais vagar trataremos de Isaura.

Ao
ouvir esta resposta o rosto de Malvina cobriu-se de palidez mortal; ela sentiu
esfriar-lhe o coração apertado entre as mãos geladas do mais pungente dissabor,
como se ali se esmoronasse de repente todo o sonhado castelo de suas aventuras
conjugais. Ela esperava que o marido fulminado por tão doloroso golpe naqueles
dias de amarga meditação e abatimento, retraindo-se no santuário da
consciência, reconhecesse seus erros e desvanos, implorasse o perdão deles, e
se propusesse a entrar nas sendas do dever e da honestidade. As frias desculpas
e fúteis evasivas do marido vieram submergi-la de chofre no mais amargo e
profundo desalento.


Como?! – exclamou ela com um acento que exprimia a um tempo altiva indignação e
o mais entranhado desgosto. – Pois ainda hesitas em cumprir tão sagrado
dever?… se tivesses alma, Leôncio, terias considerado Isaura como tua irmã,
pois bem sabes que tua mãe a amava e idolatrava como a uma filha querida, e que
era seu mais ardente desejo libertá-la por sua morte e deixar-lhe um legado
considerável, que lhe assegurasse o futuro. Sabes também que teu pai havia
feito promessa solene ao pai de Isaura de dar-lhe alforria pela quantia de dez
contos de réis, e Miguel já te veio pôr nas mãos essa exorbitante quantia.
Sabes tudo isto, e ainda vens com dúvidas e demoras!… Oh! isto é muito!…
não vejo motivo nenhum para demorar o cumprimento de um dever de que há muito
tempo já devias ter-te desempenhado.


Mas para que semelhante pressa?… não me dirás Malvina? – replicou Leôncio com
a maior brandura e tranquilidade. – De que proveito pode ser agora a liberdade
para Isaura? porventura não está ela aqui bem? é maltratada?… sofre alguma
privação?… não continua a ser considerada antes como uma filha da família, do
que como uma escrava? queres que desde já a soltemos à toa por esse mundo?…
assim decerto não cumpriremos o desejo de minha mãe, que tão solicita se
mostrava pela sorte futura de Isaura. Não, minha Malvina; não devemos por ora
entregar Isaura a si mesma. É preciso primeiro assegurar-lhe uma posição decente,
honesta e digna de sua beleza e educação, procurando-lhe um bom marido, e isso
não se arranja assim de um dia para outro.


Que miserável desculpa, meu amigo!… Isaura por ora não precisa de marido para
protegê-la; tem o pai, que é homem muito de bem, e acaba de dar provas de
quanto adora sua filha. Entreguemo-la ao senhor Miguel, que ficará em muito
boas mãos, e debaixo de muito boa sombra.


Pobre do senhor Miguel! – replicou Leôncio com sorriso desdenhoso. – Terá bons
desejos, não duvido; mas onde estão os meios, de que dispõe, para fazer a
felicidade de Isaura, principalmente agora em que decerto empenhou os cabelos
da cabeça para arranjar a alforria da filha, se é que isso não proveio de
esmolas, que lhe fizeram, como me parece mais certo.

Por
única resposta Malvina abanou tristemente a cabeça e suspirou. Todavia quis
ainda acreditar na sinceridade das palavras de seu marido, fingiu-se satisfeita
e retirou-se sem dar mostras de agastamento. Não podia, porém, prolongar por
mais tempo aquela situação para ela tão humilhante, tão cheia de ansiedade e
desgosto, e no outro dia insistiu ainda com mais força sobre o mesmo objeto.
Teve em resposta as mesmas evasivas e moratórias. Leôncio afetava mesmo tratar
desse negócio com certa indiferença desdenhosa, como quem estava
definitivamente resolvido a fazer o que quisesse. Malvina desta vez não pôde
conter-se, e rompeu com seu marido. Este, como já friamente havia deliberado,
aparou os raios da cólera feminina no escudo de uma imprudência cínica e
galhofeira, o que levou ao último grau de exacerbação a cólera e o despeito de
Malvina.

No
outro dia Malvina, sem dar satisfação alguma a quem quer que fosse, deixava
precipitadamente a casa de Leôncio, e partia em companhia de seu irmão Henrique
a caminho do Rio de Janeiro, jurando no auge da indignação nunca mais pôr os
pés naquela casa, onde era tão vilmente ultrajada, e varrer para sempre da
lembrança a imagem de seu desleal e devasso marido. No assomo do despeito não
calculava se teria forças bastantes para levar a efeito aqueles frenéticos
juramentos, inspirados pela febre do ciúme e da indignação; ignorava que nas
almas tenras e bondosas como a sua o ódio se desvanece muito mais depressa do
que o amor; e o amor, que Malvina consagrava a Leôncio, a despeito de seus
desmandos e devassidões, era muito mais forte do que o seu ressentimento, por
mais justo que este fosse.

Leôncio
por seu lado, levando por diante o seu plano de opor aos assomos da esposa a
mais inerte e cínica indiferença, viu de braços cruzados e sem fazer a mínima
observação, os preparativos daquela rápida viagem, e recostado ao alpendre,
fumando indolentemente o seu charuto, assistiu à partida de sua mulher, como se
fora o mais indiferente dos hóspedes.

Entretanto,
essa indiferença de Leôncio nada tinha de natural e sincera; não que ele
sentisse pesar algum pela brusca partida de sua mulher; pelo contrário, era
júbilo, que sentia com a realização daquela caprichosa resolução de Malvina,
que assim lhe abandonava o campo inteiramente livre de embaraços, para
prosseguir em seus nefandos projetos sobre a infeliz Isaura. Com aquele fingido
pouco-caso, conseguia disfarçar o prazer e satisfação, em que lhe transbordava
o coração; e como era aforismo adotado e sempre posto em prática por ele, posto
que em circunstâncias menos graves, – que contra as cóleras e caprichos
femininos não há arma mais poderosa do que muito sangue-frio e pouco-caso,
Malvina não pôde descobrir no fundo daquela afetada indiferença o júbilo
intenso em que nadava a alma de seu marido.

O
que era feito porém da nobre e infeliz Isaura durante esses longos dias de
luto, de consternação, de ansiedade e dissabores?

Desde
que ouviu a leitura da carta, em que se noticiava a morte do comendador, Isaura
perdeu todas as lisonjeiras esperanças que um momento antes Miguel fizera
desabrochar em seu coração. Transida de horror, compreendeu que um destino
implacável a entregava vítima indefesa entre as mãos de seu tenaz e desalmado
perseguidor. Sabedora da miseranda sorte de sua mãe, não encontrava em sua
imaginação abalada outro remédio a tão cruel situação senão resignar-se e
preparar-se para o mais atroz dos martírios. Um cruel desalento, um pavor
mortal apoderou-se de seu espírito, e a infeliz, pálida, desfeita, e como que
alucinada, ora vagava à toa pelos campos, ora escondida nas mais espessas
moitas do pomar, ou nos mais sombrios recantos das alcovas, passava horas e
horas entre sustos e angústias, como a tímida lebre, que vê pairando no céu a
asa sinistra do gavião de garras sangrentas. Quem poderia ampará-la? onde
poderia encontrar proteção contra as tirânicas vontades de seu libertino e
execrável senhor? Só duas pessoas poderiam ter por ela comiseração e interesse;
seu pai e Malvina. Seu pai, obscuro e pobre feitor, não tendo ingresso em casa
de Leôncio, e só podendo comunicar-se com ela a custo e furtivamente, em pouco
ou nada podia valer-lhe. Malvina, que sempre a havia tratado com tanta bondade
e carinho, ai! a própria Malvina, depois da cena escandalosa em que colhera seu
marido, dirigindo a Isaura palavras enternecidas, começou a olhá-la com certa
desconfiança e afastamento, terrível efeito do ciúme, que torna injustas e
rancorosas as almas ainda as mais cândidas e benevolentes A senhora, com o
correr dos dias, tornava-se cada vez menos tratável e benig-na para com a
escrava, que antes havia tratado com carinho e intimidade quase fraternal.

Malvina
era boa e confiante, e nunca teria duvidado da inocência de Isaura, se não
fosse Rosa, sua terrível êmula e figadal inimiga. Depois do desaguisado, de que
Isaura foi causa inocente, Rosa ficou sendo a mucama ou criada da câmara de
Malvina, e esta às vezes desabafava em presença da maligna mulata os ciúmes e
desgostos que lhe ferviam e transvazavam do coração.


Sinhá está-se fiando muito naquela sonsa… – dizia-lhe a maliciosa rapariga. –
Pois fique certa que não são de hoje esses namoricos; há muito tempo que eu
estou vendo essa impostora, que diante da sinhá se faz toda simplória, andar-se
derretendo diante de sinhô moço. Ela mesmo é que tem a culpa de ele andar assim
com a cabeça virada.

Estes
e outros quejandos enredos, que Rosa sabia habilmente insinuar nos ouvidos de
sua senhora, eram bastantes para desvairar o espírito de uma cândida e
inexperiente moça como Malvina, e foram produzindo o resultado que desejava a
perversa mulatinha.

Acabrunhada
com aquele novo infortúnio, Isaura fez algumas tentativas para achegar-se de
sua senhora, e saber o motivo por que lhe retirava a afeição e confiança, que
sempre lhe mostrara, e a fim de poder manifestar sua inocência. Mas era
recebida com tal frieza e altivez, que a infeliz recuava espavorida para de
novo ir mergulhar-se mais fundo ainda no pego de suas angústias e desalentos.

Todavia,
enquanto Malvina se conservava em casa, era sempre uma salvaguarda, uma sombra
protetora, que amparava Isaura contra as importunações e brutais tentativas de
Leôncio. Por menor que fosse o respeito, que lhe tinha o marido, ela não
deixava de ser um poderoso estorvo ao menos contra os atos de violência, que
quisesse pôr em prática para conseguir seus execrandos fins. Isaura ponderava
isso tudo, e é custoso fazer-se idéia do estado de terror e desfalecimento em
que ficou aquela pobre alma quando viu partir sua senhora, deixando-a
inteiramente ao desamparo, entregue sem defesa aos insanos e bárbaros caprichos
daquele que era seu senhor, amante e algoz ao mesmo tempo.

De
feito, Leôncio mal viu sumir-se a esposa por trás da última colina, não podendo
conter mais a expansão de seu satânico júbilo, tratou logo de pôr o tempo em
proveito, e pôs-se a percorrer toda a casa em procura de Isaura. Foi enfim dar
com ela no escuro recanto de uma alcova, estendida por terra, quase exânime,
banhada em pranto e arrancando do peito soluços convulsivos.

Poupemos
ao leitor a narração da cena vergonhosa que aí se deu. Contentemo-nos com dizer
que Leôncio esgotou todos os meios brandos e suasivos ao seu alcance para
convencer a rapariga que era do interesse e dever dela render-se a seus
desejos. Fez as mais esplêndidas promessas, e os mais solenes protestos;
abaixou-se até às mais humildes súplicas, e arrastou-se vilmente aos pés da
escrava, de cuja boca não ouviu senão palavras amargas, e terríveis
exprobrações; e vendo enfim que eram infrutíferos todos esses meios, retirou-se
cheio de cólera, vomitando as mais tremendas ameaças.

Para
dar a essas ameaças começo de execução, nesse mesmo dia mandou pô-la
trabalhando entre as fiandeiras, onde a deixamos no capítulo antecedente. Dali
teria de ser levada para a roça, da roça para o tronco, do tronco para o
pelourinho, e deste certamente para o túmulo, se teimasse em sua resistência às
ordens de seu senhor.

 

IX

 

Leôncio
impaciente e com o coração ardendo nas chamas de uma paixão febril e delirante
não podia resignar-se a adiar por mais tempo a satisfação de seus libidinosos
desejos. Vagando daqui para ali por toda a casa como quem dava ordens para
reformar o serviço doméstico, que dai em diante ia correr todo por sua conta,
não fazia mais do que espreitar todos os movimentos de Isaura, procurando ocasião
de achá-la a sós para insistir de novo e com mais força em suas abomináveis
pretensões. De uma janela viu as escravas fiandeiras atravessarem o pátio para
irem jantar, e notou a ausência de Isaura.


Bom!… vai tudo às mil maravilhas, murmurou Leôncio com satisfação; nesse
momento passava-lhe pela mente a feliz lembrança de mandar o feitor levar as
outras escravas para o cafezal, ficando ele quase a sós com Isaura no meio
daqueles vastos e desertos edifícios.

Dir-me-ão
que, sendo Isaura uma escrava, Leôncio, para achar-se a sós com ela não
precisava de semelhantes subterfúgios, e nada mais tinha a fazer do que
mandá-la trazer à sua presença por bem ou por mal. Decerto ele assim podia
proceder, mas não sei que prestígio tem, mesmo em uma escrava, a beleza unida à
nobreza da alma, e à superioridade da inteligência, que impõe respeito aos
entes ainda os mais perversos e corrompidos. Por isso Leôncio, a despeito de
todo o seu cinismo e obcecação, não podia eximir-se de render no fundo d’alma
certa homenagem à beleza e virtudes daquela escrava excepcional, e de tratá-la
com mais alguma delicadeza do que às outras.


Isaura, – disse Leôncio, continuando o diálogo que deixamos apenas encetado, –
fica sabendo que agora a tua sorte está inteiramente entre as minhas mãos.


Sempre esteve, senhor, – respondeu humildemente Isaura.


Agora mais que nunca. Meu pai é falecido, e não ignoras que sou eu o seu único
herdeiro. Malvina por motivos, que sem dúvida terás adivinhado, acaba de
abandonar-me, e retirou-se para a casa de seu pai. Sou eu, pois, que hoje
unicamente governo nesta casa, e disponho do teu destino. Mas também, Isaura,
de tua vontade unicamente depende a tua felicidade ou a tua perdição.


De minha vontade!… oh! não, senhor; minha sorte depende unicamente da vontade
de meu senhor.


E eu bem desejo – replicou Leôncio com a mais terna inflexão de voz, – com
todas as forças de minha alma, tornar-te a mais feliz das criaturas; mas como,
se me recusas obstinadamente a felicidade, que tu, só tu me poderias dar?…


Eu, senhor?! oh! por quem é, deixe a humilde escrava em seu lugar; lembre-se da
senhora D. Malvina, que é tão formosa, tão boa, e que tanto lhe quer bem. É em
nome dela que lhe peço, meu senhor; deixe de abaixar seus olhos para uma pobre
cativa, que em tudo está pronta para lhe obedecer, menos nisso, que o senhor
exige…


Escuta, Isaura; és muito criança, e não sabes dar ás coisas o devido peso. Um
dia, e talvez já tarde, te arrependerás de ter rejeitado o meu amor.


Nunca! – exclamou Isaura. – Eu cometeria uma traição infame para com minha
senhora, se desse ouvidos às palavras amorosas de meu senhor.


Escrúpulos de criança!.., escuta ainda, Isaura. Minha mãe vendo a tua linda
figura e a viveza de teu espírito, – talvez por não ter filha alguma, –
desvelou-se em dar-te uma educação, como teria dado a uma filha querida. Ela
amava-te extremosamente, e se não deu-te a liberdade foi com o receio de
perder-te; foi para conservar-te sempre junto de si. Se ela assim procedia por
amor, como posso eu largar-te de mão, eu que te amo com outra sorte de amor
muito mais ardente e exaltado, um amor sem limites, um amor que me levará à
loucura ou ao suicídio, se não… mas que estou a dizer!… Meu pai, – Deus lhe
perdoe, – levado por uma sórdida avareza, queria vender tua liberdade por um
punhado de ouro, como se houvesse ouro no mundo que valesse os inestimáveis
encantos, de que os céus te dotaram. Profanação!… eu repeliria, como quem
repele um insulto, todo aquele que ousasse vir oferecer-me dinheiro pela tua
liberdade. Livre és tu, porque Deus não podia formar um ente tão perfeito para
votá-lo à escravidão. Livre és tu, porque assim o queria minha mãe, e assim o
quero eu. Mas, Isaura, o meu amor por ti é imenso; eu não posso, eu não devo
abandonar-te ao mundo. Eu morreria de dor, se me visse forçado a largar mão da joia
inestimável, que o céu parece ter-me destinado, e que eu há tanto tempo rodeio
dos mais ardentes anelos de minha alma…


Perdão, senhor; eu não posso compreendê-lo; diz-me que sou livre, e não permite
que eu vá para onde quiser, e nem ao menos que eu disponha livremente de meu
coração?!


Isaura, se o quiseres, não serás somente livre; serás a senhora, a deusa desta
casa. Tuas ordens, quaisquer que sejam, os teus menores caprichos serão
pontualmente cumpridos; e eu, melhor do que faria o mais terno e o mais leal
dos amantes, te cercarei de todos os cuidados e carinhos, de todas as
adorações, que sabe inspirar o mais ardente e inextinguível amor. Malvina me
abandona!… tanto melhor! em que dependo eu dela e de seu amor, se te possuo?!
Quebrem-se de uma vez para sempre esses laços urdidos pelo interesse!
esqueça-se para sempre de mim, que eu nos braços de minha Isaura encontrarei
sobeja ventura para poder lembrar-me dela.


O que o senhor acaba de dizer me horroriza. Como se pode esquecer e abandonar
ao desprezo uma mulher tão amante e carinhosa, tão cheia de encantos e
virtudes, como sinhá Malvina? Meu senhor, perdoe-me se lhe falo com franqueza;
abandonar uma mulher bonita, fiel e virtuosa por amor de uma pobre escrava,
seria a mais feia das ingratidões.

A
tão severa e esmagadora exprobração, Leôncio sentiu revoltar-se o seu orgulho.


Cala-te, escrava insolente! – bradou cheio de cólera. – Que eu suporte sem
irritar-me os teus desdéns e repulsas, ainda vá: mas repreensões!… com quem
pensas tu que falas?…


Perdão! senhor!… exclamou Isaura aterrada e arrependida das palavras que lhe
tinham escapado.


E, entretanto, se te mostrasses mais branda comigo… mas não, é muito aviltar-me
diante de uma escrava; que necessidade tenho eu de pedir aquilo que de direito
me pertence? Lembra-te, escrava ingrata e rebelde, que em corpo e alma me
pertences, a mim só e a mais ninguém. És propriedade minha; um vaso, que tenho
entre as minhas mãos e que posso usar dele ou despedaçá-lo a meu sabor,


Pode despedaçá-lo, meu senhor; bem o sei; mas, por piedade, não queira usar
dele para fins impuros e vergonhosos. A escrava também tem coração, e não é
dado ao senhor querer governar os seus afetos.


Afetos!… quem fala aqui em afetos?! Podes acaso dispor deles?…


Não, por certo, meu senhor; o coração é livre; ninguém pode escravizá-lo, nem o
próprio dono.


Todo o teu ser é escravo; teu coração obedecerá, e se não cedes de bom grado,
tenho por mim o direito e a força… mas para quê? para te possuir não vale a
pena empregar esses meios extremos. Os instintos do teu coração são rasteiros e
abjetos como a tua condição; para te satisfazer far-te-ei mulher do mais vil,
do mais hediondo de meus negros.


Ah! senhor! bem sei de quanto é capaz. Foi assim que seu pai fez morrer de
desgosto e maus-tratos a minha pobre mãe; já vejo que me é destinada a mesma
sorte. Mas fique certo de que não me faltarão nem os meios nem a coragem para
ficar para sempre livre do senhor e do mundo.


Oh! – exclamou Leôncio com satânico sorriso, – já chegaste a tão subido grau de
exaltação e romantismo!… isto em uma escrava não deixa de ser curioso. Eis o
proveito que se tira de dar educação a tais criaturas! Bem mostras que és uma
escrava, que vives de tocar piano e ler romances. Ainda bem que me preveniste;
eu saberei gelar a ebulição desse cérebro escaldado. Escrava rebelde e
insensata, não terás mãos nem pés para pôr em prática teus sinistros intentos.
Olá, André, – bradou ele e apitou com força no cabo do seu chicote.


Senhor! – bradou de longe o pajem, e um instante depois estava em presença de
Leôncio.


André, – disse-lhe este com voz seca e breve – traze-me já aqui um tronco de
pés e algemas com cadeado.


Virgem santa! – murmurou consigo André espantado. – Para que será tudo isto?…
ah! pobre Isaura!…


Ah! meu senhor, por piedade! – exclamou Isaura, caindo de joelhos aos pés de
Leôncio, e levantando as mãos ao céu em contorções de angústia; pelas cinzas
ainda quentes de seu pai, há poucos dias falecido, pela alma de sua mãe, que
tanto lhe queria, não martirize a sua infeliz escrava. Acabrunhe-me de
trabalhos, condene-me ao serviço o mais grosseiro e pesado, que a tudo me
sujeitarei sem murmurar; mas o que o senhor exige de mim, não posso, não devo
fazê-lo, embora deva morrer.


Bem me custa tratar-te assim, mas tu mesma me obrigas a este excesso. Bem vês
que me não convém por modo nenhum perder uma escrava como tu és. Talvez ainda
um dia me serás grata por ter-te impedido de matar-te a ti mesma.


Será o mesmo! – bradou Isaura levantando-se altiva, e com o acento rouco e
trêmulo da desesperação, – não me matarei por minhas próprias mãos, mas
morrerei às mãos de um carrasco.

Neste
momento chega André trazendo o tronco e as algemas, que deposita sobre um
banco, e retira-se imediatamente.

Ao
ver aqueles bárbaros e aviltantes instrumentos de suplício turvaram-se os olhos
a Isaura, o coração se lhe enregelou de pavor, as pernas lhe desfaleceram, caiu
de joelhos e debruçando-se sobre o tamborete, em que fiava, desatou uma
torrente de lágrimas.


Alma de minha sinhá velha! – exclamou com voz entrecortada de soluços, –
valei-me nestes apuros; valei-me lá do céu, onde estais, como me valíeis cá na
Terra.


Isaura, – disse Leôncio com voz áspera apontando para os instrumentos de
suplício, – eis ali o que te espera, se persistes em teu louco emperramento.
Nada mais tenho a dizer-te; deixo-te livre ainda, e fica-te o resto do dia para
refletires. Tens de escolher entre o meu amor e o meu ódio. Qualquer dos dois,
tu bem sabes, são violentos e poderosos. Adeus!…

Quando
Isaura sentiu que seu senhor se havia ausentado, ergueu o rosto, e levantando
ao céu os olhos e as mãos juntas, dirigiu à Rainha dos anjos a seguinte
fervorosa prece, exalada entre soluços do mais íntimo de sua alma:


Virgem senhora da Piedade, Santíssima Mãe de Deus!… vós sabeis se eu sou
inocente, e se mereço tão cruel tratamento. Socorrei-me neste transe aflitivo,
porque neste mundo ninguém pode valer-me. Livrai-me das garras de um algoz, que
ameaça não só a minha vida, como a minha inocência e honestidade. Iluminai-lhe
o espírito e infundi-lhe no coração brandura e misericórdia para que se
compadeça de sua infeliz cativa. É uma humilde escrava que com as lágrimas nos
olhos e a dor no coração vos roga pelas vossas dores sacrossantas, pelas chagas
de vosso Divino Filho: valei-me por piedade.

Quanto
Isaura era formosa naquela suplicante e angustiosa atitude! oh! muito mais bela
do que em seus momentos de serenidade e prazer!… se a visse então, Leôncio
talvez sentisse abrandar-se o férreo e obcecado coração. Com os olhos arrasados
em lágrimas, que em fio lhe escorregavam pelas faces desbotadas, entreaberta a
boca melancólica, que lhe tremia ao passar da prece murmurada entre soluços,
atiradas em desordem pelas espáduas as negras e opulentas madeixas, voltando
para o céu o busto mavioso plantado sobre um colo escultural, ofereceria ao
artista inspirado o mais belo e sublime modelo para a efígie da Mãe Dolorosa, a
quem nesse momento dirigia suas ardentes súplicas. Os anjos do céu, que por
certo naquele instante adejavam em torno dela agitando as asas de ouro e
carmim, não podiam deixar de levar tão férvida e dolorosa prece aos pés do
trono da Consoladora dos aflitos.

Absorvida
em suas mágoas Isaura não viu seu pai, que, entrando pelo salão a passos sutis
e cautelosos, encaminhava-se para ela.


Oh! felizmente ela ali está, – murmurava o velho, – o algoz aqui também andava!
oh! pobre Isaura!… que será de ti?!…


Meu pai por aqui!… – exclamou a infeliz ao avistar Miguel. – Venha, venha ver
a que estado reduzem sua filha.


Que tens, filha?… que nova desgraça te sucede?


Não está vendo, meu pai?… eis ali a sorte, que me espera, – respondeu ela
apontando para o tronco e as algemas, que ali estavam ao pé dela.


Que monstro, meu Deus!… mas eu já esperava por tudo isto…


É esta a liberdade que pretende dar àquela que a mãe dele criou com tanto amor
e carinho. O mais cruel e aviltante cativeiro, um martírio continuado da alma e
do corpo, eis o que resta à sua desventurada filha… Meu pai, não posso
resistir a tanto sofrimento!… restava-me um recurso extremo; esse mesmo
vai-me ser negado. Presa, algemada, amarrada de pés e mãos!… oh!… meu pai!
meu pai!… isto é horrível!…

Meu
pai, a sua faca, – acrescentou depois de ligeira pausa com voz rouca e olhar
sombrio, – preciso de sua faca.


Que pretendes fazer com ela, Isaura? que louco pensamento é o teu?…


Dê-me essa faca, meu pai; eu não usarei dela senão em caso extremo; quando o
infame vier lançar-me as mãos para deitar-me esses ferros, farei saltar meu
sangue ao rosto vil do algoz.


Não, minha filha; não serão necessários tais extremos. Meu coração já
adivinhava tudo isto, e já tenho tudo prevenido. O dinheiro, que não serviu
para alcançar a tua liberdade, vai agora prestar-nos para arrancar-te às garras
desse monstro. Tudo está já disposto, Isaura. Fujamos.


Sim, meu pai, fujamos; mas como? para onde?


Para longe daqui, seja para onde for; e já, minha filha, enquanto não suspeitem
coisa alguma, e não te carregam de ferros.


Ah! meu pai, tenho bem medo; se nos descobrem, qual será a minha sorte!…


A empresa é arriscada, não posso negar-te; mas ânimo. Isaura; é nossa única
tábua de salvação; agarremo-nos a ela com fé, e encomendemo-nos à divina
providência. Os escravos estão na roça; o feitor levou para o cafezal tuas
companheiras, teu senhor saiu a cavalo com o André; não há talvez em toda a
casa senão alguma negra lá pelos cantos da cozinha. Aproveitemos a ocasião, que
parece mesmo nos vir das mãos de Deus, no momento em que aqui estou chegando.
Eu já preveni tudo. Lá no fundo do quintal à beira do rio está amarrada uma
canoa; é quanto nos basta. Tu sairás primeiro e irás lá ter por dentro do
quintal; eu sairei por fora alguns instantes depois e lá nos encontraremos. Em
menos de uma hora estaremos em Campos, onde nos espera um navio, de que é
capitão um amigo meu, e que tem de seguir viagem para o Norte nesta madrugada.
Quando romper o dia, estaremos longe do algoz que te persegue. Vamo-nos,
Isaura; talvez por esse mundo encontremos alguma alma piedosa, que melhor do
que eu te possa proteger.


Vamo-nos, meu pai; que posso eu recear?… posso acaso ser mais desgraçada do
que já sou?…

Isaura,
cosendo-se com a sombra do muro, que rodeava o pátio, abriu o portão, que dava
para o quintal, e desapareceu. Momentos depois Miguel rodeando por fora os
edifícios costeava o quintal, e achava-se com ela à margem do rio.

A
canoa vogando sutilmente bem junto à barranca, impelida pelo braço vigoroso de
Miguel, em poucos minutos perdeu de vista a fazenda.

 

X

 


são passados mais de dois meses depois da fuga de Isaura, e agora, leitores,
enquanto Leôncio emprega diligências extraordinárias e meios extremos, e
desatando os cordões da bolsa, põe em atividade a polícia e uma multidão de
agentes particulares para empolgar de novo a presa, que tão sorrateiramente lhe
escapara, façamo-nos de vela para as províncias do Norte, onde talvez primeiro
que ele deparemos com a nossa fugitiva heroína.

Estamos
no Recife. É noite e a formosa Veneza da América do Sul, coroada de um diadema
de luzes, parece surgir dos braços do oceano, que a estreita em carinhoso
amplexo e a beija com amor. É uma noite festiva: em uma das principais ruas
nota-se um edifício esplendidamente iluminado, para onde concorre grande número
de cavalheiros e damas das mais distintas e opulentas classes. É um lindo
prédio onde uma sociedade escolhida costuma dar brilhantes e concorridos
saraus. Alguns estudantes dos mais ricos e elegantes, também costumam descer da
velha Olinda em noites determinadas, para ali virem se espanejar entre os
esplendores e harmonias, entre as sedas e perfumes do salão do baile; e aos
meigos olhares e angélicos sorrisos das belas e espirituosas pernambucanas,
esquecerem por algumas horas os duros bancos da Academia e os carunchosos
praxistas.

Suponhamos
que também somos adeptos daquele templo de Terpsícore, entremos por ele a
dentro, e observemos o que por aí vai de curioso e interessante. Logo na
primeira sala encontramos um grupo de elegantes mancebos, que conversam com
alguma animação. Escutemo-los.


É mais uma estrela que vem brilhar nos salões do Recife, – dizia Álvaro, – e
dar lustre a nossos saraus. Não há ainda três meses, que chegou a esta cidade,
e haverá pouco mais de um, que a conheço. Mas creia-me, Dr. Geraldo, é ela a
criatura mais nobre e encantadora que tenho conhecido. Não é uma mulher; é uma
fada, é um anjo, é uma deusa!…


Cáspite! – exclamou o Dr. Geraldo; fada! anjo! deusa!… São portanto três
entidades distintas, mas por fim de contas verás que não passa de uma mulher
verdadeira. Mas dize-me cá, meu Álvaro; esse anjo, fada, deusa, mulher ou o que
quer que seja, não te disse de onde veio, de que família é, se tem fortuna,
etc., etc., etc.?


Pouco me importo com essas coisas, e poderia responder-te que veio do céu, que
é da família dos anjos, e que tem uma fortuna superior a todas as riquezas do
mundo: uma alma pura, nobre e inteligente, e uma beleza incomparável. Mas
sempre te direi que o que sei de positivo a respeito dela é que veio do Rio
Grande do Sul em companhia de seu pai, de quem é ela a única família; que seus
meios são bastantemente escassos, mas que em compensação ela é linda como os
anjos, e tem o nome de Elvira,


Elvira! – observou o terceiro cavalheiro – bonito nome na verdade!… mas não
poderás dizer-nos, Álvaro, onde mora a tua fada?…


Não faço mistério disso; mora com seu pai em uma pequena chácara no bairro de
Santo Antônio, onde vivem modestamente, evitando relações, e aparecendo mui
raras vezes em público.
Nessa
chácara, escondida entre moitas de coqueiros e
arvoredos, vive ela como a violeta entre a folhagem, ou como fada misteriosa em
uma gruta encantada.


É célebre! – retorquiu o doutor – mas como chegaste a descobrir essa ninfa
encantada, e a ter entrada em sua gruta misteriosa?


Eu vos conto em duas palavras. Passando eu um dia a cavalo por sua chácara,
avistei-a sentada em um banco do pequeno jardim da frente. Surpreendeu-me sua
maravilhosa beleza. Como viu que eu a contemplava com demasiada curiosidade,
esgueirou-se como uma borboleta entre os arbustos floridos e desapareceu.
Formei o firme propósito de vê-la e de falar-lhe, custasse o que custasse. Por
mais, porém, que indagasse por toda a vizinhança, não encontrei uma só pessoa
que se relacionasse com ela e que pudesse apresentar-me. Indaguei por fim quem
era o proprietário da chácara, e fui ter com ele. Nem esse podia dar-me
informações, nem servir-me em coisa alguma. O seu inquilino vinha todos os
meses pontualmente adiantar o aluguel da chácara; eis tudo quanto a respeito
dele sabia. Todavia continuei a passar todas as tardes por defronte do jardim,
mas a pé para melhor poder surpreendê-la e admirá-la; quase sempre, porém, sem
resultado. Quando acontecia estar no jardim, esquivava-se sempre às minhas
vistas como da primeira vez. Um dia, porém, quando eu passava, caiu-lhe o lenço
ao levantar-se do banco; a grade estava aberta; tomei a liberdade de penetrar
no jardim, apanhei o lenço, e corri a entregar-lho, quando já ela punha o pé na
soleira de sua casa. Agradeceu-me com um sorriso tão encantador, que estive em
termos de cair de joelhos a seus pés; mas não mandou-me entrar, nem fez-me oferecimento
algum.


Esse lenço, Álvaro, – atalhou um cavalheiro, – decerto ela o deixou cair de
propósito, para que pudesses vê-la de perto e falar-lhe. É um apuro de
romantismo, um delicado rasgo de coquetterie.


Não creio; não há naquele ente nem sombra de coquetterie; tudo nela respira candura e singeleza. O certo é que
custei a arrancar meus pés daquele lugar, onde uma força magnética me retinha,
e que parecia rescender um misterioso eflúvio de amor, de pureza e de
aventura…

Álvaro
para em sua narrativa, como que embevecido em tão suaves recordações.


E ficaste nisso, Alvaro! – perguntava outro cavalheiro; – o teu romance
está-nos interessando; vamos por diante, que estou aflito por ver a
peripécia…


A peripécia?…oh! essa ainda não chegou, e nem eu mesmo sei qual será. Esgotei
enfim os estratagemas possíveis para ter entrada no santuário daquela deusa;
mas foi tudo baldado. O acaso enfim veio em meu socorro, e serviu-me melhor do
que toda a minha habilidade e diligência. Passeando eu uma tarde de carro no
bairro de Santo Antônio, pelas margens do Beberibe, passeio que se tornara para
mim uma devoção, avistei um homem e uma mulher navegando a todo pano em um
pequeno bote.

Instantes
depois o bote achou-se encalhado em um banco de areia. Apeei-me imediatamente,
e tomando um escaler na praia, fui em socorro dos dois navegantes que em vão
forcejavam por safar a pequena embarcação. Não podem fazer idéia da deliciosa
surpresa que senti, ao reconhecer nas duas pessoas do bote a minha misteriosa
da chácara e seu pai…


Por essa já eu esperava; entretanto o lance não deixa de ser dramático; a
história de seus amores com a tal fada misteriosa vai tomando visos de um poema
fantástico.


Entretanto, é a pura realidade. Como estavam molhados e enxovalhados,
convidei-os a entrarem no meu carro. Aceitaram depois de muita relutância, e
dirigimo-nos para a casa deles. É escusado pelo resto desde então, se bem que
com algum acanhamento foi-me franqueado o umbral da gruta misteriosa.


E pelo que vejo, – interrogou o doutor, – amas muito essa mulher?


Se amo! adoro-a cada vez mais, e o que é mais, tenho razões para acreditar que
ela… pelo menos não me olha com indiferença.


Deus queira que não andes embaído por alguma Circe de bordel, por alguma dessas
aventureiras, de que há tantas pelo mundo, e que, sabendo que és rico, arma
laços ao teu dinheiro! Esse afastamento da sociedade, esse mistério, em que
procuram tão cuidadosamente envolver a sua vida, não abonam muito em favor
deles.


Quem sabe se são criminosos que procuram subtrair-se às pesquisas da polícia? –
observou um cavalheiro.


Talvez moedeiros falsos, – acrescentou outro.


Tenho má-fé, – continuou o doutor – todas as vezes que vejo uma mulher bonita
viajando em países estranhos em companhia de um homem, que de ordinário se diz
pai ou irmão dela. O pai de tua fada, Álvaro, se é que é pai, é talvez algum
cigano, ou cavalheiro de indústria, que especula com a formosura de sua filha.


Santo Deus!… misericórdia! – exclamou Álvaro. – Se eu adivinhasse que veria a
pessoa daquela criatura angélica apreciada com tanta atrocidade, ou antes tão
impiamente profanada, quereria antes ser atacado de mudez, do que trazê-la à
conversação. Creiam, que são demasiado injustos para com aquela pobre moça,
meus amigos. Eu a julgaria antes uma princesa destronizada, se não soubesse que
é um anjo do céu. Mas vocês em breve vão vê-la, e eu e ela estaremos vingados;
pois estou certo que todos a uma voz a proclamarão uma divindade. Mas o pior é
que desde já posso contar com um rival em cada um de vocês.


Por minha parte, disse um dos cavalheiros, – pode ficar tranquilo, pois sempre
tive horror às moças misteriosas.


E eu, que não sou mais do que um simples mortal, tenho muito medo de fadas, –
acrescentou o outro.


E como é, perguntou o Dr. Geraldo, – que vivendo ela assim arredada da
sociedade, pôde resolver-se a deixar a sua misteriosa solidão, para vir a este
baile tão público e concorrido?…


E quanto não me custou isso, meu amigo! – respondeu Álvaro. – Veio quase
violentada. Há muito tempo que procuro convencê-la por todos os modos, que uma
senhora jovem e formosa, como é ela, escondendo seus encantos na solidão,
comete um crime, contrário às vistas do Criador, que formou a beleza para ser
vista, admirada e adorada; pois sou o contrário desses amantes ciumentos e
atrabiliários, que desejariam ter suas amadas escondidas no âmago da terra.
Argumentos, instâncias, súplicas, tudo foi perdido; pai e filha recusavam-se
constantemente a aparecerem em público, alegando mil diversos pretextos.
Vali-me por fim de um ardil; fiz-lhes acreditar que aquele modo de viver
retraído e sem contato com a sociedade em um país, onde eram desconhecidos, já
começava a dar que falar ao público e a atrair suspeitas sobre eles, e que até
a polícia começava a olhá-los com desconfiança: mentiras, que não deixavam de
ter sua plausibilidade…


E tanta, – interrompeu o doutor. – que talvez não andem muito longe da verdade.


Fiz-lhes ver, – continuou Álvaro, – que por infundadas e fúteis que fossem tais
suspeitas, era necessário arredá-las de si, e para isso cumpria-lhes
absolutamente frequentar a sociedade. Este embuste produziu o desejado efeito.


Tanto pior para eles, – retorquiu o doutor; – eis aí um indício bem mau, e que
mais me confirma em minhas desconfianças. Fossem eles inocentes, e bem pouco se
importariam com as suspeitas do público ou da policia, e continuariam a viver
como dantes.


Tuas suspeitas não têm o menor fundamento, meu doutor. Eles têm poucos meios, e
por isso evitam a sociedade, que realmente, impõe duros sacrifícios às pessoas
desfavorecidas da fortuna, e eles… mas ei-los, que chegam… Vejam e
convençam-se com seus próprios olhos.

Entrava
nesse momento na ante-sala uma jovem e formosa dama pelo braço de um homem de
idade madura e de respeitável presença.


Boa noite, senhor Anselmo!… boa noite, D. Elvira!… felizmente ei-los aqui!
– isto dizia Álvaro aos recém-chegados, separando-se de seus amigos, e
apressurando-se para cumprimentar a aqueles com toda a amabilidade e cortesia.
Depois oferecendo um braço a Elvira e outro ao senhor Anselmo, os vai
conduzindo para as salas interiores, por onde já turbilhona a mais numerosa e
brilhante sociedade. Os três interlocutores de Álvaro, bem como muitas outras
pessoas, que por ali se achavam, puseram-se em ala para verem passar Elvira,
cuja presença causava sensação e murmurinho, mesmo entre os que não estavam
prevenidos.


Com efeito!… é de uma beleza deslumbrante!


Que porte de rainha!…


Que olhos de andaluza!…


Que magníficos cabelos!


E o colo!… que colo!… não reparaste?…


E como se traja com tão elegante simplicidade! – Assim murmuravam entre si os
três cavalheiros como impressionados por uma aparição celeste.


E não reparaste, – acrescentou o Dr. Geraldo, – naquele feiticeiro sinalzinho,
que tem na face direita?… Álvaro tem razão; a sua fada vai eclipsar todas as
belezas do salão. E tem de mais a mais a vantagem da novidade, e esse prestígio
do mistério, que a envolve. Estou ardendo de impaciência por lhe ser
apresentado; desejo admirá-la mais de espaço.

Neste
tom continuaram a conversar, até que, passados alguns minutos, Álvaro, tendo
cumprido a grata comissão de apresentador daquela nova pérola dos salões,
estava de novo entre eles.


Meus amigos, – disse-lhes ele com ar triunfante. – convido-os para o salão.
Quero já apresentar-lhes D. Elvira para desvanecer de uma vez para sempre as
injuriosas apreensões, que ainda há pouco nutriam a respeito do ente o mais
belo e mais puro, que existe debaixo do Sol, se bem que estou certo que só com
a simples vista ficaram penetrados de assombro até a medula dos ossos.

Os
quatro cavalheiros se retiraram e desapareceram no meio do turbilhão das salas
interiores. Foram, porém, imediatamente substituídos por um grupo de lindas e
elegantes moças, que cintilantes de sedas e pedrarias como um bando de
aves-do-paraíso, passeavam conversando. O assunto da palestra era também D.
Elvira; mas o diapasão era totalmente diverso, e em nada se harmonizava com o
da conversação dos rapazes. Nenhum mal nos fará escutá-las por alguns
instantes.


Você não saberá dizer-nos, D. Adelaide, quem é aquela moça, que ainda há pouco
entrou na sala pelo braço do senhor Álvaro?


Não, D. Laura; é a primeira vez que a vejo, parece-me que não é desta terra.


Decerto; que ar espantado tem ela!… parece uma matuta, que nunca pisou em um
salão de baile; não acha, D. Rosalina?


Sem dúvida!.., e você não reparou na toilette
dela?… meu Deus!… que pobreza! a minha mucama tem melhor gosto para se
trajar. Aqui a D. Emília é que talvez saiba quem ela é.


Eu? por quê? é a primeira vez que a vejo, mas o senhor Álvaro já me tinha dado
notícias dela, dizendo que era um assombro de beleza. Não vejo nada disso; é
bonita, mas não tanto, que assombre.


Aquele senhor Álvaro sempre é um excêntrico, um esquisito; tudo quanto é
novidade o seduz. E onde iria ele escavar aquela pérola, que tanto o traz
embasbacado?…


Veio de arribação lá dos mares do Sul, minha amiga, e a julgar pelas aparências
não é de todo má.


Se não fosse aquela pinta negra, que tem na face, seria mais suportável.


Pelo contrário, D. Laura; aquele sinal é que ainda lhe dá certa graça
particular…


Ah! perdão, minha amiga; não me lembrava que você também tem na face um
sinalzinho semelhante; esse deveras fica-te muito bem, e dá-te, muita graça;
mas o dela, se bem reparei, é grande demais; não parece uma mosca, mas sim um
besouro, que lhe pousou na face.


A dizer-te a verdade, não reparei bem. Vamos, vamos para o salão; é preciso
vê-la mais de perto, estudá-la com mais vagar para podermos dar com segurança a
nossa opinião.

E,
dito isto, lá se foram elas com os braços enlaçados, forman-do como longa
grinalda de variegadas flores, que lá se foi serpeando perder-se entre a
multidão.

XI

 

Álvaro
era um desses privilegiados, sobre quem a natureza e a fortuna parece terem
querido despejar à porfia todo o cofre de seus favores. Filho único de uma
distinta e opulenta família, na idade de vinte e cinco anos, era órfão de pai e
mãe, e senhor de uma fortuna de cerca de dois mil contos.

Era
de estatura regular, esbelto, bem feito e belo, mais pela nobre e simpática
expressão da fisionomia do que pelos traços físicos, que entretanto não eram
irregulares. Posto que não tivesse o espírito muito cultivado, era dotado de
entendimento lúcido e robusto, próprio a elevar-se à esfera das mais
transcendentes concepções. Tendo concluído os preparatórios, como era filósofo,
que pesava gravemente as coisas, ponderando que a fortuna de que pelo acaso do
nascimento era senhor, por outro acaso lhe podia ser tirada, quis para ter uma
profissão qualquer, dedicar-se ao estudo do Direito. No primeiro ano, enquanto
pairava pelas altas regiões da filosofia do direito, ainda achou algum prazer
nos estudos acadêmicos; mas quando teve de embrenhar-se no intrincado labirinto
dessa árida e enfadonha casuística do direito positivo, seu espírito
eminentemente sintético recuou enfastiado, e não teve ânimo de prosseguir na
senda encetada. Alma original, cheia de grandes e generosas aspirações,
aprazia-se mais na indagação das altas questões políticas e sociais, em sonhar
brilhantes utopias, do que em estudar e interpretar leis e instituições, que
pela maior parte, em sua opinião, só tinham por base erros e preconceitos os
mais absurdos.

Tinha
ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era
liberal, republicano e quase socialista.

Com
tais ideias Álvaro não podia deixar de ser abolicionista exaltado, e não o era
em palavras.
Consistindo
em escravos uma não pequena porção da herança de
seus pais, tratou logo de emancipá-los todos. Como porém Álvaro tinha um
espírito nimiamente filantrópico, conhecendo quanto é perigoso passar
bruscamente do estado de absoluta submissão para o gozo da plena liberdade,
organizou para os seus libertos em uma de suas fazendas uma espécie de colônia,
cuja direção confiou a um probo e zeloso administrador. Desta medida podiam
resultar grandes vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o próprio
Álvaro. A fazenda lhes era dada para cultivar, a título de arrendamento, e eles
sujeitando-se a uma espécie de disciplina comum, não só preservavam-se de
entregar-se à ociosidade, ao vício e ao crime, tinham segura a subsistência e
podiam adquirir algum pecúlio, como também poderiam indenizar a Álvaro do
sacrifício, que fizera com a sua emancipação. Original e excêntrico como um
rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de um quaker. Todavia, como homem de
imaginação viva e coração impressionável, não deixava de amar os prazeres, o
luxo, a elegância, e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado,
certa pureza ideal, próprios das almas elevadas e dos corações bem formados.
Entretanto, Álvaro ainda não havia encontrado até ali a mulher que lhe devia
tocar o coração, a encarnação do tipo ideal, que lhe sorria nos sonhos vagos de
sua poética imaginação. Com tão excelentes e brilhantes predicados, Álvaro por
certo devia ser objeto de grande preocupação no mundo elegante, e talvez o
almejo secreto, que fazia palpitar o coração de mais de uma ilustre e formosa
donzela. Ele, porém, igualmente cortês e amável para com todas, por nenhuma
delas ainda havia dado o mínimo sinal de predileção.

Pode-se
fazer idéia do desencanto, do assombro, da terrível decepção que reinou nos
círculos das belas pernambucanas ao verem o vivo interesse e solicitude de que
Álvaro rodeava uma obscura e pobre moça; a deferência com que a tratava, e os
entusiásticos elogios que sem rebuço lhe prodigalizava. Juno e Palas não
ficaram tão despeitadas, quando o formoso Páris conferiu a Vênus o prêmio da
formosura. Já antes daquele sarau, Álvaro em alguns círculos de senhoras havia
falado de Elvira em termos tão lisonjeiros e mesmo com certa eloquência
apaixonada, que a todas surpreendeu e inquietou. As moças ardiam por ver aquele
protótipo de beleza, e já de antemão choviam sobre a desconhecida e o seu
campeão mil chascos e malignos apodos. Quando, porém, a viram, apesar dos
contrafeitos e desdenhosos sorrisos que apenas lhes roçavam a flor dos lábios,
sentiram uma desagradável impressão pungir-lhes no íntimo do coração. Peço
perdão às belas, de minha rude franqueza; a vaidade é, com bem raras exceções,
companheira inseparável da beleza e onde se acha a vaidade, a inveja, que
sempre a acompanha mais ou menos de perto, não se faz esperar por muito tempo.
A beleza da desconhecida era incontestável; sua modéstia e timidez em nada
prejudicavam a singela e nativa elegância de que era dotada; o traje simples e
mesmo pobre em relação ao luxo suntuoso, que a rodeava assentava-lhe
maravilhosamente, e realçava-lhe ainda mais os encantos naturais. O efeito
deslumbrante, que Elvira produziu logo ao primeiro aspecto, e o empenho com que
Álvaro procurava fazer sobressaltar os sedutores atrativos de Elvira, como de
propósito para eclipsar as outras belezas do salão, eram de sobejo para
irritar-lhes a vaidade e o amor-próprio. Uma e outra deviam ser naquela noite o
alvo de mil olhares desdenhosos, de mil sorrisos zombeteiros, e acerados
epigramas.

Álvaro
nem dava fé da mal disfarçada hostilidade com que ele e a sua protegida, –
podemos dar-lhe esse nome, – eram acolhidos naquela reunião; mas a tímida e
modesta Elvira, que em parte alguma encontrava lhaneza e cordialidade,
achava-se mal naquela atmosfera de fingida amabilidade e cortesania, e em cada
olhar via um escárnio desdenhoso, em cada sorriso um sarcasmo.


sabemos quem era Álvaro; agora travemos conhecimento com o seu amigo, o Dr.
Geraldo.

Era
um homem de trinta anos; bacharel em Direito e advogado altamente conceituado
no foro do Recife. Entre as relações de Álvaro era a que cultivava com mais
afeto e intimidade; uma inteligência de bom quilate, firme e esclarecida, um
caráter sincero, franco e cheio de nobreza, davam-lhe direito a essa predileção
da parte de Álvaro. Seu espírito prático e positivo, como deve ser o de um
consumado jurisconsulto, prestando o maior respeito às instituições e mesmo a
todos os preconceitos e caprichos da sociedade, estava em completo antagonismo
com as ideias excêntricas e reformistas de seu amigo; mas esse antagonismo,
longe de perturbar ou arrefecer a recíproca estima e afeição, que entre eles
reinava, servia antes para alimentá-las e fortalecê-las, quebrando a monotonia
que deve reinar nas relações de duas almas sempre acordes e uníssonas em tudo. Estas tais por
fim de contas, vendo que o que uma pensa, a outra também pensa, o que uma quer,
a outra igualmente quer, e que nada têm a se comunicarem, enjoadas de tanto se
dizerem – amém, – ver-se-ão forçadas a recolherem-se ao silêncio e a dormitarem
uma em face da outra; plácida, cômoda e sonolenta amizade!… De mais, a
contrariedade de tendências e opiniões são sempre de grande utilidade entre
amigos, modificando-se e temperando-se umas pelas outras. É assim que muitas
vezes o positivismo e o senso prático do Dr. Geraldo serviam de corretivo às
utopias e exaltações de Álvaro, e vice-versa.

Da
boca do próprio Álvaro já ouvimos por que acaso veio ele conhecer D. Elvira, e
como conseguiu levá-la ao sarau, a que ainda continuamos a assistir.


Meu pai, – dizia uma jovem senhora a um homem respeitável, em cujo braço se
arrimava, entrando na ante-sala, onde ainda nos conservamos de observação. –
Meu pai, fiquemos por aqui um pouco nesta sala, enquanto está deserta. Ah! meu
Deus! – continuou ela com voz abafada, depois de se terem sentado junto um do
outro; – que vim eu aqui fazer, eu pobre escrava, no meio dos saraus dos ricos
e dos fidalgos!… este luxo, estas luzes, estas homenagens, que me rodeiam, me
perturbam os sentidos e causam-me vertigem. É um crime que cometo,
envolvendo-me no meio de tão luzida sociedade; é uma traição, meu pai; eu o
conheço, e sinto remorsos… Se estas nobres senhoras adivinhassem que ao lado
delas diverte-se e dança uma miserável escrava fugida a seus senhores!…
Escrava! – exclamou levantando-se – escrava!… afigura-se-me que todos estão
lendo, gravada em letras negras em minha fronte, esta sinistra palavra!…
fujamos daqui, meu pai, fujamos! esta sociedade parece estar escarnecendo de
mim; este ar me sufoca… fujamos.

Falando
assim a moça, pálida e ofegante, lançava a cada frase olhares inquietos em roda
de si, e empuxava o braço de seu pai, repetindo sempre com ansiosa sofreguidão:


Vamo-nos, meu pai; fujamos daqui.


Sossega teu coração, minha filha, – respondeu o velho procurando acalmá-la. –
Aqui ninguém absolutamente pode suspeitar quem tu és. Como poderão desconfiar
que és uma escrava, se de todas essas lindas e nobres senhoras nem pela
formosura, nem pela graça e prendas do espirito nenhuma pode levar-te a palma?


Tanto pior, meu pai; sou alvo de todas as atenções, e esses olhares curiosos,
que de todos os cantos se dirigem sobre mim, fazem-me a cada instante
estremecer; desejaria até que a terra se abrisse debaixo de meus pés, e me
sumisse em seu seio.


Deixa-te dessas ideias; esse teu medo e acanhamento é que poderiam nos pôr a
perder, se acaso houvesse o mais leve motivo de receio. Ostenta com desembaraço
todos os seus encantos e habilidades, dança, canta, conversa, mostra-te alegre
e satisfeita, que longe de te suporem uma escrava, são capazes de pensar que és
uma princesa. Toma ânimo, minha filha, ao menos por hoje; esta também, assim
como é a primeira, será a derradeira vez que passaremos por este constrangimento;
não nos é possível ficar por mais tempo nesta terra, onde começamos a despertar
suspeitas.


É verdade, meu pai!… que fatalidade!… – respondeu a moça com uma triste
oscilação de cabeça. – Assim pois estamos condenados a vagar de pais em país,
sequestrados da sociedade, vivendo no mistério, e estremecendo a todo instante,
como se o céu nos tivesse marcado com um ferrete de maldição!… ah! esta
partida há de me doer bem no coração!… não sei que encanto me prende a este
lugar. Entretanto, terei de dizer adeus eterno a… esta terra, onde gozei
alguns dias de prazer e tranquilidade! Ah! meu Deus!… quem sabe se não teria
sido melhor morrer entre os tormentos da escravidão!…

Neste
momento entrava Álvaro na ante-sala percorrendo-a com os olhos, como quem
procurava alguém.


Onde se sumiriam? – vinha ele murmurando; – teriam tido a triste lembrança de
se irem embora?… oh! não; felizmente ei-los ali! – exclamou alegremente,
dando com os olhos nos dois personagens que acabamos de ouvir conversar. – D.
Elvira, V. Ex.ª. é modesta demais; vem esconder-se neste recanto, quando devia
estar brilhando no salão, onde todos suspiram pela sua presença. Deixe isso
para as tímidas e fanadas violetas; à rosa compete alardear em plena luz todos
os seus encantos.


Desculpe-me, – murmurou Isaura – uma pobre moça criada como eu na solidão da
roça, e que não está acostumada a tão esplêndidas reuniões, sente-se abafada e
constrangida…


Oh! não… há de acostumar-se, eu espero. As luzes, o esplendor, as harmonias,
os perfumes, constituem a atmosfera em que deve brilhar a beleza, que Deus
criou para ser vista e admirada. Vim buscá-la a pedido de alguns cavalheiros,
que já são admiradores de V. Ex.ª. Para interromper a monotonia das valsas e
quadrilhas, costumam aqui as senhoras encantar-nos os ouvidos com alguma
canção, ária, modinha, ou seja o que for. Algumas pessoas a quem eu disse, –
per-doe-me a indiscrição, filha do entusiasmo – que V. Ex.ª possui a mais linda
voz, e canta com maestria, mostram o mais vivo desejo de ouvi-la.


Eu, senhor Álvaro!… eu cantar diante de uma tão luzida reunião!… por favor,
queira dispensar-me dessa nova prova. É em seu próprio interesse, que eu lhe
digo: canto mal, sou muito acanhada, e estou certa que irei solenemente desmenti-lo.
Poupe-nos a nós ambos essa vergonha.


São desculpas, que não posso aceitar, porque já ouvi cantar, e creia-me, D.
Elvira, se eu não tivesse a certeza, de que a senhora canta admiravelmente, não
seria capaz de expô-la a um fiasco. Quem canta como V. Ex.a não deve
acanhar-se, e eu por minha parte peço-lhe encarecidamente, que não cante outra
coisa, senão aquela maviosa canção da escrava, que outro dia a surpreendi
cantando, e afianço a V. Ex.ª que arrebatará os ouvintes.


Por que razão não pode ser outra? essa desperta-me recordações tão tristes…


E é talvez por isso mesmo, que é tão linda nos lábios de V. Ex.ª.


Ai! triste de mim! – suspirou dentro da alma D. Elvira: – aqueles mesmos que
mais me amam, tomam-se, sem o saber, os meus algozes!…

Elvira
bem quisera escusar-se a todo transe; cantar naquela ocasião era para ela o
mais penoso dos sacrifícios. Mas não lhe era mais possível relutar, e
lembrando-se do judicioso conselho de seu pai, não quis mais ver-se rogada, e
aceitando o braço que Álvaro lhe oferecia, foi por ele conduzida ao piano, onde
sentou-se com a graça e elegância de quem se acha completamente familiarizada
com o instrumento.

Uma
multidão de cabeças curiosas, e de corações palpitando na mais ansiosa
expectação, se apinharam em volta do piano; os cavalheiros estavam ansiosos por
saberem se a voz daquela mulher correspondia à sua extraordinária beleza; se a
fada seria também uma sereia; as moças esperavam, que ao menos naquele terreno,
teriam o prazer de ver derrotada a sua formidável êmula, e já contavam
compará-la com o pavão da fábula, queixando-se a Juno que, o tendo formado a
mais bela das aves, não lhe dera outra voz mais que um guincho áspero e
desagradável.

A
conjuntura era delicada e solene; a moça achava-se na difícil situação de uma
prima-dona, que, precedida de uma grande reputação, faz a sua estreia perante
um público exigente e ilustrado. Em tomo dela fazia-se profundo silêncio; as
respirações estavam como que suspensas, ao passo que parecia ouvir-se o
palpitar de todos os corações no ofego da expectação. Álvaro, apesar de
conhecer já a excelência da voz de Elvira e sua maestria no canto, não deixava
de mostrar-se inquieto e comovido. Elvira por sua parte pouco se importaria de
cantar bem ou mal; desejaria até passar pela moça a mais feia, a mais
desengraçada e a mais tola daquela reunião, contanto que a deixassem a um canto
esquecida e sossegada. Dir-se-ia que estava debaixo do império de algum
terrível pressentimento. Mas Elvira amava a Álvaro, e grata ao delicado empenho,
com que este, cheio de solicitude e entusiasmo, se esforçava por apresentá-la
como um protótipo de beleza e de talento aos olhos daquela brilhante sociedade,
para satisfazê-lo, e não desmentir a lisonjeira opinião, que propalara a
respeito dela, desejava cantar o melhor que lhe fosse possível. Era ao triunfo
de Álvaro que aspirava mais do que ao seu próprio.

Uma
vez sentada ao piano, logo que seus dedos mimosos e flexíveis, pousando sobre o
teclado, preludiaram alguns singelos acordes, a moça sentiu-se outra, revelando
aos circunstantes maravilhados um novo e original aspecto de sua formosura. A
fisionomia, cuja expressão habitual era toda modéstia, ingenuidade e candura,
animou-se de luz insólita; o busto admiravelmente cinzelado, ergueu-se altaneiro
e majestoso; os olhos extáticos alçavam-se cheios de esplendor e serenidade; os
seios, que até ali apenas arfavam como as ondas de um lago em tranquila noite
de luar, começaram de ofegar, túrgidos e agitados, como oceano encapelado; seu
colo distendeu-se alvo e esbelto como o do cisne que se apresta a desprender os
divinais gorjeios. Era o sopro da inspiração artística, que, roçando-lhe pela
fronte, a transformava em sacerdotisa do belo, em intérprete inspirada das
harmonias do céu. Ali sentia-se ela rainha sobre seu trono ideal; ali era
Calíope sentada sobre a tripo de sagrada, avassalando o mundo ao som de
enlevadoras e inefáveis harmonias. Das próprias inquietações e angústias da
alma soube ela tirar alento e inspiração para vencer as dificuldades da árdua
situação em que se achava empenhada. Banhou os lábios com as lágrimas do
coração, e a voz lhe rompeu do peito com tão original e arrebatadora vibração,
em modulações tão puras e suaves, tão repassadas de sublime melancolia, que
mais de uma lágrima viu-se rolar pelas faces dos frequentadores daquele templo
dos prazeres, dos risos, e da frivolidade!

Elvira
acabava de alcançar um triunfo colossal. Mal terminara o canto, o salão
restrugiu entre os mais estrondosos aplausos, e parecia que vinha desabando ao
ruído atordoador das palmas e dos vivas!

A
fada de Álvaro é também uma sereia; – dizia o Dr. Geraldo a um dos cavalheiros,
em cuja companhia já o vimos. – Resume tudo em si… que timbre de voz tão puro
e tão suave; julguei-me arrebatado ao sétimo céu, ouvindo as harmonias dos
coros angélicos.


É uma consumada artista… no teatro faria esquecer a Malibran, e conquistaria
reputação europeia. Álvaro tem razão; uma criatura assim não pode ser uma
mulher ordinária, e muito menos uma aventureira… A música dando o sinal para
a quadrilha, interrompe a conversação ou não no-la deixa ouvir.


D. Elvira, – diz Álvaro dirigindo-se à sua protegida, que já se achava sentada
ao pé de seu pai, – lembre-se, que me fez a honra de conceder-me esta
quadrilha.

Elvira
esforçou-se por sorrir e combater o terrível abatimento, que ao deixar o piano
de novo se apoderara de seu espírito.

Tomou
o braço de Álvaro, e ambos foram ocupar o seu lugar na quadrilha.

 

XII

 

Agora
os leitores já sabem, se é que há mais tempo não adivinharam, que a suposta
Elvira não é mais do que a escrava Isaura, assim como Anselmo não passa do
feitor Miguel, ambos os quais são já nossos conhecidos antigos. Como também
sabem que Isaura não só era dotada de espírito superior, como também recebera a
mais fina e esmerada educação, não lhe estranharam a distinção das maneiras, a
elegância e elevação da linguagem, e outros dotes, que faziam com que essa
escrava excepcional pudesse aparecer e mesmo brilhar no meio da mais luzida e
aristocrática sociedade.

Foi
a situação desesperada, em que via sua querida filha, que inspirou a Miguel o
expediente extremo de uma fuga precipitada, exposta a mil azares e perigos.
Lembrava-se ele com horror do miserando destino de que em iguais circunstâncias
fora vítima a mãe de Isaura, e bem sabia que Leôncio, tão desalmado como o pai,
e ainda mais corrupto e libertino, era capaz de excessos e atentados ainda
maiores. Tendo perdido a esperança de libertar a filha, entendeu que podia
utilizar-se da soma, que para esse fim tinha agenciado, empregando-a em
arrancar a pobre vitima das mãos do algoz, por qualquer meio que fosse.

Bem
via que aos olhos do mundo tirar uma escrava da casa de seus senhores, e
proteger-lhe a fuga, além de ser um crime, era um ato desairoso e indigno de um
homem de bem; mas a escrava era uma filha idolatrada, e uma pérola de pureza,
prestes a ser poluída ou esmagada pela mão de um senhor verdugo, e esta
consideração o justificava aos olhos da própria consciência.

Bem
se lembrara o infeliz pai de dar denúncia do fato às autoridades, implorando a
proteção das leis em favor de sua filha para que não fosse vitima das
violências e sevícias de seu dissoluto e brutal senhor. Mas todos a quem
consultava respondiam-lhe a uma voz: – Não se meta em tal; é tempo perdido. As
autoridades nada têm que ver com o que se passa no interior da casa dos ricos.
Não caia nessa; muito feliz será, se somente tiver de pagar as custas, e não
lhe arrumarem por cima algum processo, com que tenha de ir dar com os costados
na cadeia. – Onde se viu o pobre ter razão contra o rico, o fraco contra o
forte?…

Miguel
entretinha relações ocultas com alguns dos antigos escravos da fazenda de
Leôncio, os quais, lembrando-se ainda com saudades do tempo de sua boa
administração, conservavam-lhe o mesmo respeito e afeição, e por meio deles
tinha exata informação do que se passava na fazenda. Sabendo dos cruéis apuros
a que sua filha se achava reduzida depois da morte do comendador, não hesitou
mais um instante, e tratou de tomar todas as providências e medidas de
segurança para roubar a filha, e pô-la fora do alcance de seu bárbaro senhor.
Na mesma madrugada, que seguiu-se à tarde, em que a raptou, fazia-se de vela
com Isaura para as províncias do Norte em um navio negreiro, de que era capitão
um português, antigo e dedicado amigo seu. Este chegando às alturas de
Pernambuco, como daí tinha de singrar para a costa da África, largou-os no
Recife, prometendo-lhes que dentro em três ou quatro meses estaria de volta e
pronto a conduzi-los para onde quisessem. Miguel que em sua profissão de
jardineiro ou de feitor havia passado a vida desde a infância dentro de um
horizonte acanhado e em círculo mui limitado de relações, tinha pouco
conhecimento e nenhuma experiência do mundo, e portanto não podia calcular
todas as consequências da difícil posição em que ia colocar a si e a sua filha.
Durante os longos anos que esteve feitorando a fazenda do comendador e de
outros, não se dera senão uma ou outra fuga insignificante de escravos, por
alguns dias e para alguma fazenda vizinha, e, portanto, não é para admirar que
ele quase completamente ignorasse a amplitude dos direitos, que tem um senhor
sobre o escravo, e os infinitos meios e recursos de que pode lançar mão para
capturá-los em caso de fuga. Entendeu, pois, que em Pernambuco poderia viver
com sua filha em plena seguridade, ao menos por três ou quatro meses, uma vez
que se afastassem da sociedade o mais que pudessem, e procurassem esconder sua
vida na mais completa obscuridade.

Isaura
também, se bem que tivesse o espírito mais atilado e esclarecido, longe do
objeto principal de seu terror e aversão, não deixava de sentir-se tranquila, e
até certo ponto descuidosa dos perigos a que vivia exposta. Mas essa tal ou
qual tranquilidade só durou até o dia em que pela primeira vez viu Álvaro.
Amou-o com esse amor exaltado das almas elevadas, que amam pela primeira e
única vez, e esse amor, como bem se compreende, veio tornar ainda mais crítica
e angustiosa a sua já tão precária e mísera situação.

Álvaro
tinha na fisionomia, nas maneiras, na voz e no gesto, um não sei quê de nobre,
de amável e profundamente simpático, que avassalava todos os corações. O que
não seria ele para aquela que única até ali lhe soubera conquistar o amor?
Isaura não pôde resistir a tão prestigiosa sedução; amou-o com o ardor e
entusiasmo de um coração virgem; e com a imprevidência e cegueira de uma alma
de artista, embora não visse nesse amor mais do que uma nova fonte de lágrimas
e torturas para seu coração.

Medindo
o abismo que a separava de Álvaro, bem sabia que de nenhuma esperança podia
alimentar-se aquela paixão funesta, que deveria ficar para sempre sepultada no
íntimo do coração, como um cancro a devorá-lo eternamente.

No
seu cálix de amarguras, já quase a transbordar, tinha de receber da mão do
destino mais aquele travo cruel, que lhe devia queimar os lábios e
envenenar-lhe a existência.


bastante lhe pesava andar enganando a sociedade a respeito de sua verdadeira
condição; alma sincera e escrupulosa, envergonhava-se consigo mesma de impor às
poucas pessoas que com ela tratavam de perto, um respeito e consideração a que
nenhum direito podia ter. Mas considerando que de tal disfarce nenhum grande
mal podia resultar à sociedade, conformava-se com sua sorte. Deveria, porém,
ela, ou poderia sem inconveniente manter o seu amante na mesma ilusão? Com seu
silêncio, conservando-o na ignorância de sua condição de escrava, deveria
deixar alimentar-se, crescer profunda e enérgica paixão, que o moço por ela
concebera?… não seria isto um vil embuste, uma indignidade, uma traição
infame? não teria ele o direito, ao saber da verdade, de acabrunhá-la de
amargas exprobrações, de desprezá-la, de calcá-la aos pés, de tratá-la enfim
como escrava abjeta e vil, que ficaria sendo?


Oh! isto para mim seria mais horrível que mil mortes! – exclamava ela no meio
do angustioso embate de idéias que se lhe agitavam no espírito. – Não, não devo
iludi-lo; isto seria uma infâmia… vou-lhe descobrir tudo; é esse o meu dever,
e hei de cumpri-lo. Ficará sabendo que não pode, que não deve amar-me; porém ao
menos não ficará com o direito de desprezar-me.. uma escrava, que procede com
lisura e lealdade, pode ao menos ser estimada. Não; não devo enganá-lo; hei de
revelar-lhe tudo.

Esta
era a resolução que lhe inspiravam seu natural pundonor e lealdade, e os
ditames de uma consciência reta e delicada, mas quando chegava o momento de
pô-la em prática fraqueava-lhe o coração. e Isaura ia diferindo de dia para dia
a execução de seu propósito.

Falecia-lhe
de todo a coragem para quebrar por suas próprias mãos a doce quimera, que tão
deliciosamente a embalava, e em que às vezes conseguia esquecer por longo tempo
sua mísera condição, para lembrar-se somente que amava e era amada.


Deixemos durar mais um dia – refletia consigo. – esta ilusória, mas inefável
ventura. Sou uma condenada, que arrancam da masmorra para subir ao palco e
fazer por momentos o papel de rainha feliz e poderosa; quando descer, serei de
novo sepultada em minha masmorra para nunca mais sair. Prolonguemos estes
instantes; não será lícito deixar passar ao menos em sonhos uma hora de
felicidade sobre a fronte do infeliz condenado?… sempre será tempo de quebrar
esta frágil cadeia de ouro, que me prende ao céu, e baquear de novo no inferno
de meus sofrimentos.

Nesta
indecisão, nesta luta interna, em que sempre a voz da paixão abafava os ditames
da razão e da consciência, passaram-se alguns dias até àquele, em que Alvaro os induziu
por meios quase violentos a aceitarem convite para um baile. Desde então Isaura
entendeu que seria uma deslealdade, uma infâmia inqualificável, conservar por
mais tempo o seu amante na ilusão a respeito de sua condição, e que não havia
mais meio de prolongar, sem desdouro para eles, tão falsa e precária situação.

Era
muito abusar da ignorância do nobre e generoso mancebo! Uma escrava fugida
apresentar-se em um baile, e apavonar-se em seu braço à face da mais brilhante
e distinta classe de uma importante capital!… era pagar com a mais feia
ingratidão e a mais degradante deslealdade os serviços, que com tanta
delicadeza e amabilidade lhe havia prestado. Isto repugnava absolutamente aos
escrúpulos da melindrosa consciência de Isaura. É verdade que Miguel, aterrado
pelas considerações que Álvaro lhe fizera, viu-se forçado a anuir ao seu gracioso
convite; Isaura porém guardara absoluto silêncio, o que ambos tomaram por um
sinal de aquiescência.

Enganavam-se.
Isaura recolhida ao silêncio não fazia mais do que tentar esforços supremos
para sacudir o fardo daquele disfarce, que tanto lhe pesava sobre a
consciência, rasgando resolutamente o véu que encobria aos olhos do amante sua
verdadeira condição. Por mais, porém, que invocasse toda a sua energia e
resolução, no momento decisivo a coragem a abandonava. Já a palavra lhe pairava
pelos lábios entreabertos, já tinha o passo formado para ir prostrar-se aos pés
de Álvaro, mas encontrando pousado sobre ela o olhar meigo e apaixonado do
mancebo, ficava como que fascinada; a palavra não ousava romper os lábios
paralisados e refluía ao coração, e os pés recusavam-se ao movimento como se
estivessem pregados no chão. Isaura estava como o desgraçado a quem
circunstâncias fatais arrastam ao suicídio, mas que ao chegar à borda do
precipício medonho em que deseja arrojar-se, recua espavorido.


Fraca e covarde criatura que eu sou! – pensou ela por fim esmorecida: – que
miséria! nem tenho coragem para cumprir um dever!

não
importa; para tudo há remédio; cumpre que ele ouça da boca de meu pai, o que eu
não tenho ânimo de dizer-lhe.

Esta
idéia luziu-lhe no espírito como uma tábua salvadora; agarrou-se a ela com
sofreguidão, e antes que de novo lhe fraqueasse o ânimo, tratou de pô-la em
execução.


Meu pai, – disse ela resolutamente apenas Álvaro transpôs o portão do pequeno
jardim, – declaro-lhe que não vou a esse baile; não quero, nem devo por forma
nenhuma lá me apresentar.


Não vais?! – exclamou Miguel atônito. – E por que não disseste isto há mais
tempo, quando o senhor Álvaro ainda aqui se achava? agora que já demos nossa
palavra…


Para tudo há remédio, meu pai, – atalhou a filha com febril vivacidade – e para
este caso ele é bem simples. Vá meu pai depressa à casa desse moço, e diga-lhe
o que eu não tive ânimo de dizer-lhe; declare-lhe quem eu sou, e está tudo
acabado.

Dizendo
isto, Isaura estava pálida, falava com precipitação, os lábios descarados lhe
tremiam, e as palavras, proferidas com voz convulsa e estridente, parecia que
lhe eram arrancadas a custo do coração. Era o resultado do extremo esforço que
fazia, para levar a efeito tão penível resolução. O pai olhava para ela com
assombro e consternação.


Que estás a dizer, minha filha! – replicou-lhe ele – estás tão pálida e
alterada!.. parece-me que tens febre… sofres alguma coisa?


Nada sofro, meu pai; não se inquiete pela minha saúde. O que eu estou lhe
dizendo é que é absolutamente necessário que meu pai vá procurar esse moço e
confessar-lhe tudo…


Isso nunca!… estás louca, menina?… queres que eu te veja encerrada em uma
cadeia, conduzida em ferros para a tua província, entregue a teu senhor, e por
fim ver-te morrer entre tormentos nas garras daquele monstro! oh! Isaura, por
quem és, não me fales mais nisso, Enquanto o sangue me girar nestas veias,
enquanto me restar o mais pequenino recurso, hei de lançar mão dele para te
salvar…


Salvar-me por meio de uma indignidade, de uma infâmia, meu pai!… retorquiu a
moça com exaltação. – Como posso eu, sem cometer a mais vil deslealdade,
aparecer apresentada por ele como uma senhora livre em uma sala de baile?…
Quando esse senhor e tantas outras ilustres pessoas souberem que ombreou com
elas, e a par delas dançou uma miserável escrava fugida…


Cala-te, menina! – interrompeu o velho, incomodado com a exaltação da filha. –
Não fales assim tão alto… tranquiliza-te; eles nunca saberão de nada. O mais
breve que puder ser deixaremos esta terra; amanhã mesmo, se for possível.
Embarcaremos em qualquer paquete, e iremos para bem longe, para os Estados
Unidos, por exemplo. Lá, segundo me consta, poderemos ficar fora do alcance de
qualquer perseguição. Eu com o meu trabalho, e tu com as tuas prendas e
habilitações, podemos viver sem sofrer necessidades em qualquer canto do mundo.


Ah! meu pai! essa idéia de irmos para tão longe, sem esperança de um dia
podermos voltar, me oprime o coração.


Que remédio, minha filha!.., já agora, ainda que tenhamos de ir parar ao fim do
mundo, nos é forçoso fugir às garras do monstro.


Mas esse moço, que tanto se interessa por nós, o senhor Álvaro, nobre e
generoso como é, sabendo da minha verdadeira condição, e das terríveis
circunstâncias que nos obrigam a andar assim fugitivos e disfarçados pelo
mundo, talvez queira e possa nos amparar e valer contra as perseguições…


E quem nos afiança isso?… o mais certo é ele entregar-te ao desprezo, logo
que saiba que não passas de uma escrava fugida, se, despeitado com o logro que
levou, não for o primeiro a denunciar-te à polícia. No transe em que nos
achamos, é de absoluta necessidade enganar a ele e a todos; se revelarmos a
quem quer que seja o segredo de nossa posição, estamos perdidos. Toma coragem,
e vamos ao baile, minha filha; é um sacrifício cruel, mas passageiro, a que
devemos nos sujeitar a bem de nossa segurança. Em breve estaremos longe, e se
algum dia souberem quem tu eras, que nos importa? nunca mais nos verão o rosto,
nem ouvirão nossos nomes. Tens a consciência escrupulosa em demasia. Se ignoram
quem tu és, a tua companhia em nada os pode infamar. Com isso não fazes mal a
ninguém; é uma medida de salvação, que todos te perdoariam.


Meu pai parece que tem razão; mas não sei por que, repugna-me absolutamente ao
coração dar esse passo.


Mas é preciso dá-lo, minha filha, se não queres para nós ambos a desgraça e a
morte. Se não formos a esse baile, e desaparecermos de um dia para outro, como
nos é forçoso, então as suspeitas que começamos a despertar tomarão muito maior
vulto, e a policia pôr-se-á à nossa pista, e nos perseguirá por toda parte. É
um sacrifício na verdade, mas não será ele muito mais suave do que as
perseguições da polícia, a prisão, as torturas e a morte, que é o que podes
esperar em casa de teu senhor?…

Isaura
não respondeu; seu espírito agitava-se entre as mais pungentes e amargas
reflexões.

As
palavras de seu pai a tinham abismado em glacial e profundo desalento. Aturdida
por tantos golpes, sua alma debatia-se em um mar de dúvidas e perplexidades,
como frágil barca em meio de um oceano irritado, sacudida aos boléus por
vagalhões desencontrados.

O
grito de sua consciência escrupulosa e delicada, a lisura e sinceridade de seu
coração, que não podia acomodar-se com o embuste e a mentira, e uma espécie de
vago pressentimento que lhe pesava sobre o espírito, a desviavam daquele baile,
e por momentos pareciam fixar definitivamente a sua resolução; e firme neste
propósito dizia consigo mesma: – não, não irei.

Por
outro lado as considerações de seu pai, que pareciam tão razoáveis, bem como o
desejo de ver Álvaro ainda uma vez, de gozar por algumas horas a sua presença,
faziam-lhe de novo flutuar o espírito no mar das irresoluções. A lembrança de
que em breve, talvez no dia seguinte, tinha de deixar aquela terra e separar-se
de Álvaro, sem esperança alguma de jamais tornar a vê-lo, sem poder dizer-lhe
um adeus, sem que ele pudesse saber quem ela era, nem para onde ia,
dilacerava-lhe o coração. Partir sem ter um ente a quem apertar nos braços na
hora da despedida, nem ter um seio onde verter as lágrimas da mais pungente
saudade; partir para levar uma vida errante e fugitiva, sem esperança nem
consolação alguma, através de mil trabalhos e perigos, para terminá-la talvez
entre os tormentos da mais atroz escravidão, oh!… isto era pavoroso! – e,
entretanto, era esse o único futuro que a pobre Isaura tinha diante dos olhos.
Mas não; tinha ainda diante de si uma noite inteira de prazer e de ventura, uma
noite esplêndida de baile e regozijo de seu amante, respirando o mesmo ar,
inebriando-se de sua voz, bebendo o seu hálito, recolhendo dentro d’alma seus
olhares apaixonados, sentindo na sua a pressão daquela mão adorada, contando as
pulsações daquele coração, que só por ela palpitava. Oh! uma noite assim valia
bem uma eternidade, viessem depois embora as angústias e perigos, a escravidão
e a morte!

Cândida
e modesta como era, nem por isso Isaura deixava de ter consciência do quanto
valia. Vendo-se o objeto do amor de um jovem de espírito elevado, e dotado de tão
nobres e brilhantes qualidades como Álvaro, ainda mais se confirmou na idéia
que de si mesma fazia.

Com
sua natural perspicácia e penetração, bem depressa convenceu-se de que o afeto
que o mancebo lhe consagrava não era simples e superficial homenagem rendida a
seus encantos e talentos, nem tampouco passageiro capricho de mocidade, mas
verdadeira paixão, sincera, enérgica e profunda. Era isso para ela motivo de um
orgulho íntimo, que a elevava a seus próprios olhos, e por momentos a fazia
esquecer-se que era uma escrava.


Estou convencida de que sou digna do amor de Álvaro, senão, ele não me amaria;
e se sou digna de seu amor, por que não o serei de me apresentar no seio da
mais brilhante sociedade? A perversidade dos homens pode acaso destruir o que
há de bom e de belo na feitura do Criador? Assim refletia Isaura, e exaltada
com estas ideias e com a sedutora perspectiva de algumas horas de inefável
ventura em companhia do amante exclamava dentro d’alma: – Hei de ir, hei de ir
ao baile!

Enquanto
Isaura, silenciosa e com a face na mão, se embebia em suas cismas, procurando
firmar-se em uma resolução, o pai, não menos inquieto e preocupado, passeava
distraído entre os canteiros do jardim, aguardando com ansiedade uma resposta
definitiva de sua filha.


Irei, meu pai, irei ao baile, – disse ela por fim levantando-se, mas vou
preparar-me para ele como a vítima que tem de ser conduzida ao sacrifício entre
cânticos e flores. Tenho um cruel pressentimento, que me acabrunha…


Pressentimento de quê, Isaura?…


Não sei, meu pai; de alguma desgraça.


Pois quanto a mim, Isaura, o coração como que está-me adivinhando que de ir a
esse baile resultará a nossa salvação.

 

XIII

 

Não
pense o leitor que já se acha terminado o baile a que estávamos assistindo. A
pequena digressão que por fora dele fizemos no capitulo antecedente, nos
pareceu necessária para explicar por que conjunto de circunstâncias fatais a
nossa heroína, sendo uma escrava, foi impelida a tomar a audaciosa resolução de
apresentar-se em um esplêndido e aristocrático sarau, – fraqueza de coração, ou
timidez de caráter, que pode ser desculpada, mas não plenamente justificada em
uma pessoa de consciência tão delicada e de tão esclarecido entendimento.

O
baile continua, mas já não tão animado e festivo como ao princípio. Os aplausos
frenéticos, a admiração geral, de que Isaura se havia tornado objeto da parte
dos cavalheiros, tinham produzido um completo resfriamento entre as mais belas e
espirituosas damas da reunião. Arrufadas com seus cavalheiros prediletos, em
razão das entusiásticas homenagens, que francamente iam render aos pés daquela
que implicitamente estavam proclamando a rainha do salão, já nem ao menos
queriam dançar, e em vez de tisos folgazões, e de uma conversação franca e
jovial, só se ouviam pelos cantos entre diversos grupos expansões
misteriosamente sussurradas, e cochichos segredados entre amarelas e
sarcásticas risotas.

Propagava-se
entre as moças como que um sussurro geral de descontentamento. Era como esses
rumores surdos e profundos, que restrugem ao longe pelo espaço, precedendo uma
grande tempestade. Dir-se-ia que já estavam adivinhando que aquela mulher, que
por seus encantos e dotes incomparáveis as estava suplantando a todas, não era
mais do que – uma escrava. Muitas mesmo se foram retirando, nomeadamente
aquelas que afagavam alguma esperança, ou se julgavam com algum direito sobre o
coração de Álvaro. Aniquiladas sob o peso dos esmagadores triunfos de Isaura, não
se achando com ânimo de manterem-se por mais tempo na liça, tomaram o prudente
partido de irem esconder no misterioso recinto das alcovas o despeito e
vergonha de tão cruel e solene derrota.

Não
diremos todavia que no meio de tantas e tão nobres damas, distintas pelos
encantos do espírito e do corpo, não houvesse muitas que, com toda a isenção e
sem a menor sombra de inveja, admirassem a beleza de Isaura, e aplaudissem de
coração e com sincero prazer os seus triunfos, e foram essas que conseguiram ir
dando alguma vida ao sarau, que sem elas teria esmorecido inteiramente. Todavia
não é menos certo que do belo sexo, sem distinção de classes, ao menos a metade
é ludibrio dessas invejas, ciúmes e rivalidades mesquinhas.

Deixamos
Isaura indo tomar parte em uma quadrilha, tendo Álvaro por seu par. Enquanto
dançam, entremos em uma saleta, onde há mesas de jogo, e bufetes guarnecidos de
licoreiras, de garrafas de cerveja e champanha. Esta saleta comunica
imediatamente com o salão onde se dança, por uma larga porta aberta. Acham-se
ai uma meia dúzia de rapazes, pela maior parte estudantes, desses com
pretensões a estroinas e excêntricos à Byron, e que já enfastiados da
sociedade, dos prazeres e das mulheres, costumam dizer que não trocariam uma
fumaça de charuto, ou um copo de champanha, pelo mais fagueiro sorriso da mais
formosa donzela; desses descridos, que vivem a apregoar em prosa e verso que na
aurora da vida já têm o coração mirrado pelo sopro do cepticismo, ou calcinado
pelo fogo das paixões, ou enregelado pela saciedade; desses misantropos enfim,
cheios de esplim, que se acham sempre no meio de todos os bailes e reuniões de
toda espécie, alardeando o seu afastamento e desdém pelos prazeres da sociedade
e frivolidades da vida.

Entre
eles acha-se um, sobre o qual nos é mister deter por mais um pouco a atenção,
visto que tem de tomar parte um tanto ativa nos acontecimentos desta história.
Este nada tem de esplenético nem de byroniano; pelo contrário o seu todo
respira o mais chato e ignóbil prosaísmo. Mostra ser mais velho que os seus
comparsas uma boa dezena de anos. Tem cabeça grande, cara larga, e feições
grosseiras. A testa é desmesuradamente ampla, e estofada de enormes protuberâncias,
o que, na opinião de Lavater, é indicio de espírito lerdo e acanhado a roçar
pela estupidez. O todo da fisionomia tosca e quase grotesca revela instintos
ignóbeis, muito egoísmo e baixeza de caráter. O que, porém, mais o caracteriza
é certo espírito de cobiça, e de sórdida ganância, que lhe transpira em todas
as palavras, em todos os atos, e principalmente no fundo de seus olhos pardos e
pequeninos, onde reluz constantemente um raio de velhacaria. É estudante, mas
pelo desalinho do trajo, sem o menor esmero e nem sombra de elegância, parece
mais um vendilhão. Estudava há quinze anos à sua própria custa, mantendo-se do
rendimento de uma taverna, de que era sócio capitalista. Chama-se Martinho.


Rapaziada, – disse um dos mancebos, – vamos nós aqui a uma partida de
lansquenê, enquanto esses basbaques ali estão a arrastar os pés e a fazer
mesuras.


Justo! – exclamou outro, sentando-se a uma mesa e tomando baralhos. – Já que
não temos coisa melhor a fazer, vamos às cartas.

Demais,
no baralho é que está a vida. A vista de uma sota me faz às vezes estremecer o
coração em emoções mais vivas do que as sentiria Romeu a um olhar de Julieta…
Afonso, Alberto, Martinho, nadem para cá; vamos ao lansquenê; duas ou três
corridas somente…


De boa vontade aceitaria o convite, – respondeu Martinho, – se não andasse
ocupado com um outro jogo, que de um momento para outro, e sem nada arriscar,
pode meter-me na algibeira não menos de cinco contos de réis limpinhos.


De que diabo de jogo estás aí a falar?… nunca deixarás de ser maluco?…
deixa-te de asneiras, e vamos ao lansquenê.


Quem tem um jogo seguro como eu tenho, há de ir meter-se nos azares do
lansquenê, que já me tem engolido bem boas patacas?…

Nem
tão tolo serei eu.


Com mil diabos, Martinho!… então não te explicarás?… que maldito jogo é
esse?…


Ora, adivinhem lá… Não são capazes. uma bisca de estrondo. Se adivinharem,
dou-lhes uma ceia esplêndida no melhor hotel desta cidade; bem entendido, se
encartar a minha bisca.


Dessa ceia estamos nós bem livres, pobre comedor de bacalhau ardido, e porque
não é possível haver quem adivinhe as asneiras que passam lá por esses teus miolos
extravagantes. O que queremos é o teu dinheiro aqui sobre a mesa do lansquenê.


Ora, deixem-me em paz, – disse Martinho, com os olhos atentamente dirigidas
para o salão de dança. – Estou calculando o meu jogo… suponham que é o
xadrez, e que eu vou dar xeque-mate à rainha… dito e feito, e os cinco contos
são meus…


Não há dúvida, o rapaz está doido varrido… Anda lá, Martinho; descobre o teu
jogo, ou vai-te embora, e não nos estejas a maçar a paciência com tuas
maluquices.


Malucos são vocês. O meu jogo é este… mas quanto me dão para descobri-lo?
olhem que é coisa curiosa.


Queres-nos atiçar a curiosidade para nos chuchar alguns cobres, não é assim?…
pois desta vez afianço-te da minha parte, que não arranjas nada. Vai-te aos
diabos com o teu jogo, e deixa-nos cá com o nosso. As cartas, meus amigos, e
deixemos o Martinho com suas maluquices.


Com suas velhacarias, dirás tu… não me pilha.


Ah! toleirões! – exclamou o Martinho, – vocês ainda estão com os beiços com que
mamaram. Andem cá, andem, e verão se é maluquice, nem velhacaria. Enfim quero
mostrar-lhes o meu jogo, porque desejo ver se a opinião de vocês estará ou não
de acordo com a minha. Eis aqui a minha bisca. – concluiu Martinho mostrando um
papel, que sacou da algibeira; – não é nada mais que um anúncio de escravo fugido.


Ah! ah! ah! esta não é má!…


Que disparate!… decididamente estás louco, meu Martinho.


A que propósito vem agora anúncio de escravo fugido?…


Foste acaso nomeado oficial de justiça ou capitão-do-mato?

Estas
e outras frases escapavam aos mancebos de envolta, em um coro de intermináveis
gargalhadas, que competiam com a orquestra do baile.


Não sei de que tanto se espantam, – replicou frescamente o Martinho; – o que
admira é que ainda não vissem este grande anúncio em avulso, que veio do Rio de
Janeiro, e foi distribuído por toda a cidade com o jornal do Comércio.


Porventura somos esbirros ou oficiais de justiça, para nos embaraçarmos com
semelhantes anúncios?


Mas olhem que o negócio é dos mais curiosos, e as alvíssaras não são para se
desprezarem.


Pobre Martinho! quanto pode em teu espírito a ganância de ouro, que faz-te
andar à cata de escravos fugidos em uma sala de baile! – pois é aqui que
poderás encontrar semelhante gente?…


Olé… quem sabe?!… tenho cá meus motivos para desconfiar que por aqui mesmo
hei de achá-la, assim como os cinco continhos que, aqui entre nós, vêm agora
mesmo ao pintar, pois que o armazém de meu sócio bem pouco tem rendido nestes
últimos tempos.

Martinho
chamava armazém à pequena taverna de que era sócio. Ditas aquelas palavras foi
postar-se junto à porta que dava para o salão e ali ficou por largo tempo a
olhar, ora para os que dançavam, ora para o anúncio, que tinha desdobrado na
mão, como quem averigua e confronta os sinais.


Que diabo faz ali o Martinho? – exclamou um dos mancebos que entretidos com as
mímicas do Martinho, tomando-as por palhaçadas, tinham-se esquecido de jogar.


Está doido, não resta a menor dúvida. – observou outro. – Procurar escravo
fugido em uma sala de baile!… Ora não faltava mais nada! Se andasse à cata de
alguma princesa, decerto a iria procurar no quilombos.


Mas talvez seja algum pajem, ou alguma mucama, que por ai anda.


Não me consta que haja nenhum pajem nem mucama ali dançando, e ele não tira os
olhos dos que dançam.


Deixá-lo; este rapaz, além de ser um vil traficante, sempre foi um maníaco de
primeira força.


É ela! – disse o Martinho, deixando a porta, e voltando-se para seus
companheiros; – é ela; já não tenho a menor dúvida; é ela, e está segura.


Ela quem, Martinho?…


Ora! pois quem mais há de ser?…


A escrava fugida?!…


A escrava fugida, sim, senhores!… e ela está ali dançando.


Ah! ah! ah! ora, vamos ver mais esta, Martinho!… até onde queres levar a tua
farsa? deve ser galante o desfecho. Isto é impagável, e vale mais que quantos
bailes há no mundo. – Se todos eles tivessem um episódio assim, eu não perdia
nem um. – Assim clamavam os moços entre estrondosas gargalhadas.


Vocês zombam? – olhem que a farsa cheira um pouco a tragédia.


Melhor! Melhor! – vamos com isso, Martinho!


Não acreditam?… pois escutem lá, e depois me dirão que tal é a farsa.

Dizendo
isto, Martinho sentou-se em uma cadeira, e desdobrando o anúncio, pôs-se em
atitude de lê-lo. Os outros se agruparam curiosos em torno dele.


Escutem bem, – continuou Martinho. – Cinco contos! – eis o título pomposo, que
em eloquentes e graúdos algarismos se acha no frontispício desta obra imortal,
que vale mais que a Ilíada de
Camões…


E que os Lusíadas de Homero, não é
assim, Martinho? deixa-te de preâmbulos asnáticos, e vamos ao anúncio.


Eu já lhes satisfaço, – disse Martinho, e continuou lendo:


Fugiu da fazenda do Sr. Leôncio Gomes da Fonseca, no município de Campos,
província do Rio de Janeiro, uma escrava por nome Isaura, cujos sinais são os
seguintes: Cor clara e tez delicada como de qualquer branca; olhos pretos e
grandes; cabelos da mesma cor, compridos e ligeiramente ondeados; boca pequena,
rosada e bem feita; dentes alvos e bem dispostos; nariz saliente e bem talhado;
cintura delgada, talhe esbelto, e estatura regular; tem na face esquerda um
pequeno sinal preto, e acima do seio direito um sinal de queimadura, mui
semelhante a uma asa de borboleta. Traja-se com gosto e elegância, canta e toca
piano com perfeição. Como teve excelente educação e tem uma boa figura, pode
passar em qualquer parte por uma senhora livre e de boa sociedade. Fugiu em
companhia de um português, por nome Miguel, que se diz seu pai. É natural que
tenham mudado o nome. Quem a preender, e levar ao dito seu senhor, além de se
lhe satisfazerem todas as despesas, receberá a gratificação de 5:OOO$OOO.


Deveras, Martinho? – exclamou um dos ouvintes, – está nesse papel o que acabo
de ouvir? acabas de nos traçar o retrato de Vênus, e vens dizer-nos que é uma
escrava fugida!…


Se não querem acreditar ainda, leiam com seus próprios olhos: aqui está o
papel…


Com efeito! acrescentou outro – uma escrava assim vale a pena apreendê-la, mais
pelo que vale em si, do que pelos cinco contos.

Se
eu a pilho, nenhuma vontade teria de entregá-la ao seu senhor.


Já não me admira que o Martinho a procure aqui; uma criatura tão perfeita só se
pode encontrar nos palácios dos príncipes.


Ou no reino das fadas; e pelos sinais e indícios estou vendo que não pode ser
outra senão essa nova divindade que hoje apareceu…


Sem mais nem menos; deu no vinte, atalhou Martinho, e chamando-os para junto da
porta: – Agora venham cá, – continuou, – e reparem naquela bonita moça, que
dança de par com Álvaro. Pobre Álvaro como está cheio de si! se soubesse com
quem dança, caía-lhe a cara aos pés. Reparem bem, meus senhores, e vejam se não
combinam perfeitamente os sinais?…


Perfeitamente! – acudiu um dos moços, – é extraordinário! lá vejo o sinalzinho
na face esquerda, e que lhe dá infinita graça. Se tiver a tal asa de borboleta
sobre o seio, não pode haver mais dúvida. Os céus! é possível que uma moça tão
linda seja uma escrava!


E que tenha a audácia de apresentar-se em um bailes destes? – acrescentou
outro. Ainda não posso capacitar-me.


Pois cá para mim, – disse o Martinho – o negócio é liquido, assim como os cinco
contos, que me parece estarem já me cantando na algibeira; e até logo, meus
caros.

E
dizendo isto dobrou cuidadosamente o anúncio, meteu-o na algibeira, e
esfregando as mãos com cínico contentamento, tomou o chapéu, e retirou-se.


Forte miserável… – disse um dos comparsas – que vil ganância de ouro a deste
Martinho! estou vendo que é capaz de fazer prender aquela moça aqui mesmo em
pleno baile.


Por cinco contos é capaz de todas as infâmias do mundo. Tão vil criatura é um
desdouro para a classe a que pertencemos; devemos todos conspirar para
expeli-lo da Academia. Cinco contos daria eu para ser escravo daquela rara
formosura.


É assombroso! Quem diria, que debaixo daquela figura de anjo estaria oculta uma
escrava fugida!


E também quem nos diz que no corpo da escrava não se acha asilada uma alma de
anjo?…

 

XIV

 

Havia
terminado a quadrilha. Álvaro ufano, e cheio de júbilo, conduzia o seu formoso
par através da multidão, através de uma viva fuzilaria de olhares de inveja e
de admiração, que se cruzavam em sua passagem; a pretexto de oferecer-lhe algum
refresco, a foi levando para uma sala dos fundos, que se achava quase deserta.
Até ali ainda ele não havia feito a Elvira uma declaração de amor em termos
positivos, se bem que esse amor se estivesse revelando a cada instante, e cada
vez mais ardente e apaixonado, em seus olhos, em suas palavras, em todos os
seus movimentos e ações. Álvaro julgava já ter adquirido completo conhecimento
do coração de sua amada, e nos dois meses durante os quais a havia estudado,
não havia descoberto nela senão novos encantos e perfeições. Estava plenamente
convencido que de todas as formosuras que até ali tinha conhecido, Elvira era
em tudo a mais digna de seu amor, e já nem por sombras duvidava da pureza de
sua alma, da sinceridade do seu afeto. Pensava portanto que, sem receio algum
de comprometer o seu futuro, podia abandonar o coração ao império daquela
paixão, que já não podia dominar. Quanto à origem e procedência de Elvira, era
coisa de que nem de leve se preocupava, e nunca se lembrou de indagar. A
distinção de classes repugnava a seus princípios e sentimentos filantrópicos.
Fosse ela uma princesa que o destino obrigava a andar foragida, ou tivesse o
berço na palhoça de algum pobre pescador, isso lhe era indiferente. Conhecia-a
em si mesma, sabia que era uma das criaturas mais perfeitas e adoráveis que se
pode encontrar sobre a Terra, e era quanto lhe bastava.

Observava
Alvaro em seus costumes, como já sabemos, a severidade de um quaker, e seria incapaz de abusar do
amor que havia inspirado à formosa desconhecida, aninhando em seu espírito um
pensamento de sedução.

Naquela
noite pois o apaixonado mancebo, rendido e deslumbrado mais que nunca pelos
novos encantos e atrativos que Elvira alardeava entre os esplendores do baile,
não pôde e nem quis dilatar por mais tempo a declaração, que a cada instante
lhe ardia nos olhos, e esvoaçava pelos lábios, e apenas achou-se em lugar onde
pudesse não ser ouvido senão de Elvira:


D. Elvira, – lhe disse com voz grave e comovida, – se a senhora é um anjo em
sua casa, nos salões do baile é uma deusa. O meu coração há muito já lhe
pertence; sinto que o meu destino de hoje em diante depende só da senhora.
Funesta ou propícia, a senhora será sempre a minha estrela nos caminhos da
vida. Creio que me conhece bastante para acreditar na sinceridade de minhas
palavras. Sou senhor de uma fortuna considerável; tenho posição honrosa e
respeitável na sociedade; mas não poderia jamais ser feliz, se a senhora não
consentir m partilhar comigo esses bens, que a fortuna prodigalizou-me.

Estas
palavras de Álvaro, tão meigas, tão repassadas do mais sincera e profundo amor,
que em outras condições teriam caído como bálsamo celeste sobre o coração de
Isaura a banhá-lo em inefáveis eflúvios de ventura, eram agora para ela como um
atroz e pungente sarcasmo do destino, um hino do céu ouvido entre as torturas
do inferno. Via de um lado um anjo, que, tomando-a pela mão com um suave
sorriso, mostrava-lhe um éden de delícias, ao qual se esforçava por conduzi-la,
enquanto de outro lado a hedionda figura de um demônio atava-lhe ao pé um
pesado grilhão, e com todo o seu peso a arrastava para um golfão de eternos
sofrimentos.

É
que a pobre Isaura, cheia de sustos e desconfianças, durante uma pausa tinha
notado os movimentos do infame Martinho, quando encostado ao umbral da saleta
com um papel na mão, parecia examiná-la com a mais minuciosa atenção. Aquela
vista produziu nela o efeito de um raio; não duvidou mais que estava
descoberta, e irremissivelmente perdida para sempre. Súbita vertigem lhe
escureceu os olhos, pareceu-lhe que o chão lhe faltava debaixo dos pés, e que
ia sendo tragada pelas fauces de um abismo imensurável. Para não cair foi-lhe
preciso agarrar-se fortemente com ambas as mãos ao braço de Álvaro arrimando-se
em seu peito.


Que tem, minha senhora? – perguntara-lhe este, assustado. – Está incomodada?…


Algum tanto, – respondeu Elvira com voz desfalecida e arquejante, e
reanimando-se pouco a pouco. – Foi uma dor aguda… uma pontada deste lado…
mas vai passando… não estou acostumada com este aperto… o remoinhar da
dança me fez mal.


Mas há de acostumar-se em pouco tempo – replicou-lhe Álvaro, segurando-lhe uma
das mãos e sustendo-a com um braço pela cintura. – A senhora nasceu para
brilhar nos salões… mas, se quer retirar-se…


Não, senhor; continuemos; já agora estamos na final…

Com
estas respostas evasivas Álvaro tranquilizou-se, e em razão dos movimentos
rápidos da quadrilha na marca final, que imediatamente seguiu-se, não pôde
notar a extrema palidez e profundo transtorno das feições de Elvira. A infeliz
já não dançava, arrastava-se automaticamente pela sala; seu espírito não estava
ali, não ouvia nem via outra coisa senão a figura repugnante do Martinho,
postada como esfinge ameaçadora junto à porta da saleta, para a qual ela volvia
de quando em quando olhos cheios de ansiedade e pavor. E o sangue todo lhe
refluía ao coração, que lhe tremia como o da pomba que sente estendida sobre o
colo a garra desapiedada do gavião.

Em
tal estado de susto e perturbação, Isaura não atinava com o que devia responder
àquela tão sincera e apaixonada declaração do mancebo. Guardou silêncio por
alguns instantes, o que Álvaro interpretou por timidez ou emoção.


Não me quer responder? – continuou com voz meiga, – uma só palavra é
bastante…


Ah! senhor, – murmurou ela suspirando, o que posso eu responder às doces
palavras que acabo de ouvir de sua boca? Elas me encantam, mas…

Elvira
interrompeu-se bruscamente; um súbito estremecimento agitando o braço de Álvaro
o fez olhar para ela com sobressalto e inquietação.


É ele!… – este som sussurrou-lhe pelos lábios como um gemido rouco e
convulsivo; acabava de avistar Martinho, entrando na sala em que se achavam, e
sentiu mortal calafrio percorrer-lhe todo o como.


Desculpe-me, senhor – continuou ela – não é possível por hoje ouvir suas doces
palavras; sinto-me mal; preciso retirar-me. Se o senhor tivesse a bondade de
levar-me onde está meu pai…


Por que não, D. Elvira?… mas oh!… como está pálida!… está sofrendo muito,
não é assim?… quer que eu a acompanhe?… que lhe chame um médico?… aqui
mesmo os há…


Obrigada, senhor Álvaro; não se inquiete; isto é um mal passageiro, cansaço
talvez; em chegando a casa ficarei boa.


E quer então retirar-se sem me deixar uma só palavra de consolação e de
esperança?…


De consolação talvez, mas de esperança…


Por que não?


Se nem eu mesma posso tê-la…


Então não me ama…


Amo-o muito.


Então será minha…


Isso é impossível…


Impossível!… que obstáculo pode haver?…


Não sei dizer-lhe, senhor; minha desgraça.

Esta
amorosa confidência no momento em que se achava no ponto mais interessante, foi
bruscamente interrompida pela presença de Martinho, que se lhes atravessou pela
frente, fazendo uma profunda reverência. Álvaro indignado carregou o sobrolho,
e esteve a ponto de enxotar o importuno, como quem enxota um cão. Elvira
estacou como que petrificada de pavor.


Senhor Álvaro, disse-lhe respeitosamente o Martinho, – com a permissão de V. Sa
preciso dizer duas palavras a esta senhora, a quem V. S.a dá o braço.


A esta senhora! – exclamou maravilhado o cavalheiro. – Que tem o senhor que ver
com esta senhora?


Negócio de suma importância; ela bem o sabe, melhor do que eu e o senhor.

Álvaro,
que bem conhecia o Martinho, e sabia quanto era abjeto e desprezível, julgando
ser aquilo manobra de algum rival invejoso, e covarde, que se servia daquele
miserável para ultrajá-lo ou expô-lo ao ridículo, teve um assomo de indignação,
mas contendo-se por um momento:


Tem a senhora algum negócio com este homem? – perguntou a Elvira.


Eu?!… nenhum, por certo; nem mesmo o conheço, – balbuciou a moça, pálida e a
tremer.


Mas, meu Deus! D. Elvira, por que treme assim? como está pálida!.., maldito
importuno, que assim a faz sofrer!… oh! pelo céu, D. Elvira, não se assuste
assim. Aqui estou eu a seu lado, e ai daquele que ousar ultrajar-nos!


Ninguém quer ultrajá-los, senhor Álvaro – replicou o Martinho; mas o negócio é
mais sério do que o senhor pensa.


Enfim, senhor Martinho, deixe-se de rodeios e diga-nos aqui mesmo o que quer
com esta senhora.


Posso dizê-lo; mas seria melhor que V. S.a o ignorasse.


Oh! temos mistério!… pois nesse caso declaro-lhe que não abandonarei esta
senhora um só instante, e se o senhor não quer dizer ao que veio, pode
retirar-se.


Nessa não caio eu, que não hei de perder o meu tempo, e o meu trabalho, e nem
os meus cinco contos. – Estas últimas palavras resmungou-as ele entre os
dentes.


Senhor Martinho, por favor queira não abusar mais da minha paciência. Se não
quer dizer ao que veio, ponha-se já longe da minha presença…


Oh! senhor! retorquiu Martinho, sem se perturbar; – já que a isso me força,
pouco me custa fazer-lhe a vontade, e com bastante pesar tenho de declarar-lhe,
que essa senhora a quem dá o braço, é uma escrava fugida!…

Álvaro,
se bem que conhecesse a vilania e impudência do caráter de Martinho, no
primeiro momento ficou pasmo ao ouvir aquela súbita e imprevista delação. Não
podia dar-lhe crédito, e refletindo um instante confirmou-se mais na idéia de
que tudo aquilo não passava de uma farsa posta em jogo por algum indigno rival,
com o fim de desgostá-lo ou insultá-lo. A pessoa do Martinho, que não poucas
vezes, na qualidade de truão ou palhaço, servia de instrumento às vinganças e
paixões mesquinhas de entes tão ignóbeis como ele, servia para justificar a
desconfiança de Álvaro, que acabou por não sentir senão asco e indignação por
tão infame procedimento.


Senhor Martinho, – bradou ele com voz severa, – se alguém pagou-lhe para vir
achincalhar-me a mim e a esta senhora, diga quanto ganha, que estou pronto a
dar-lhe o dobro para nos deixar em paz.

A
esta sanguinolenta afronta, a larga e impudente cara do Martinho nem de leve se
alterou, e por única resposta:


Torno a repetir, – bradou com todo o descaramento, – e em voz bem alta, para
que todos ouçam: esta senhora que aqui se acha, é uma escrava fugida, e eu
estou encarregado de apreendê-la e entregá-la a seu senhor.

Entretanto
Isaura, avistando seu pai, que também a procurava por toda a parte com os
olhos, largando o braço de Álvaro correu a ele, lançou-se-lhe nos braços, e
escondendo o rosto em seu ombro:


Que opróbrio, meu pai! – exclamou com voz sumida e a soluçar. – Eu bem estava
pressentindo!…


Este homem, se não é um insolente, ou está louco ou bêbado, – bradava Álvaro
pálido de cólera. – Em todo o caso deve ser enxotado como indigno desta
sociedade.


alguns amigos de Álvaro agarrando o Martinho pelo braço, se dispunham a pô-lo
pela porta a fora, como a um ébrio ou alienado.

Devagar,
meus amigos, devagar!.., disse-lhes ele com toda a calma. – Não me condenem sem
primeiro ouvirem-me. Escutem primeiro este anúncio que lhes vou ler, e se não
for verdade o que eu digo, dou-lhes licença para me cuspirem na cara, e me
atirarem da janela abaixo.

Entretanto,
esta pequena altercação começava a atrair a atenção geral, e numerosos grupos
movidos de curiosidade se apinhavam em torno dos contendores. A frase fatal –
esta senhora é uma escrava! – proferida em voz alta por Martinho, transmitida
de grupo em grupo, de ouvido em ouvido, já havia circulado com incrível
celeridade por todas as salas e recantos do espaçoso edifício. Um sussurro
geral se propagara por todo ele, e damas e cavalheiros, e tudo o que ali se
achava, inclusive músicos, porteiros e fâmulos, atropelando-se uns aos outros,
arrojavam-se afanosos para a sala, onde se dava o singular incidente que
estamos relatando. A sala estava literalmente apinhada de gente, que afiava o
ouvido e alongava o pescoço o mais que podia para ver e ouvir o que se passava.

Foi
no meio desta multidão silenciosa, imóvel, estupefata e anelante, que Martinho,
sacando tranquilamente da algibeira o anúncio, que nós já conhecemos,
desdobrou-o ante seus olhos, e em voz bem alta e sonora o leu de principio a
fim.


Bem se vê, – continuou ele concluída a leitura, – que os sinais combinam
perfeitamente, e só um cego não verá naquela senhora a escrava do anúncio. Mas
para tirar toda a dúvida, só resta examinar se ela tem o tal sinal de
queimadura acima do seio, e é coisa que desde já se pode averiguar com licença
da senhora.

Dizendo
isto, Martinho com impudente desembaraço se encaminhava para Isaura.


Alto lá, vil esbirro!… bradou Álvaro com força, e agarrando o Martinho pelo
braço, o arrojou para longe de Isaura, e o teria lançado em terra, se ele não
fosse esbarrar de encontro ao grupo, que cada vez mais se apertava em torno
deles. – Alto lá! nem tanto desembaraço! escrava, ou não, tu não lhe deitarás
as mãos imundas.

Aniquilada
de dor e de vergonha, Isaura erguendo enfim o rosto, que até ali tivera sempre
debruçado e escondido sobre o seio de seu pai, voltou-se para os circunstantes,
e ajuntando as mãos convulsas no gesto da mais violenta agitação:


Não é preciso que me toquem, – exclamou com voz angustiada. – Meus senhores, e
senhoras, perdão! cometi uma infâmia, uma indignidade imperdoável!… mas Deus
me é testemunha, que uma cruel fatalidade a isso me levou. Senhores, o que esse
homem diz, é verdade. Eu sou… uma escrava!…

O
rosto da cativa cobriu-se de lividez cadavérica, como lírio ceifado pendeu-lhe
a fronte sobre o seio, e o donoso corpo desabou como bela estátua de mármore,
que o furacão arranca do pedestal, e teria rojado pela terra, se os braços de
Álvaro e de Miguel não tivessem prontamente acudido para amparar-lhe a queda.

Uma
escrava!… estas palavras, soluçadas no peito de Isaura como o estertor do
arranco extremo, murmuradas de boca em boca pela multidão estupefata, ecoaram
largo tempo pelos vastos salões, como o rugir sinistro das lufadas da noite
pela grenha de fúnebre arvoredo.

Este
estranho incidente produziu no sarau o mesmo efeito que faria em um acampamento
a explosão de um paiol de pólvora; nos primeiros momentos, susto, pasmo e uma
espécie de estertor de angústia; depois, agitação, alarma, movimento e alarido.

Álvaro
e Miguel conduziram Isaura desfalecida ao boudoir das damas, e aí, ajudados por
algumas senhoras compassivas, prestaram-lhe os socorros que o caso reclamava, e
não a abandonaram enquanto não recobrou completamente os sentidos. Martinho,
inquieto e ressabiado, os seguia e espiava o mais de perto que lhe era
possível, com receio de que lhe roubassem a presa.

É
impossível descrever a celeuma que se levantou, a agitação que sublevou todos
os espíritos, e as diversas e opostas impressões que produziu nos ânimos aquela
inesperada revelação. Com que cara ficariam tantas belezas de primeira ordem,
tantas damas das mais distintas jerarquias sociais, ao saberem que aquela que as
havia suplantado a todas, em formosura, donaire, talentos e graças do espírito,
não era mais que uma escrava! eu mesmo não sei dizer; os leitores que façam
idéia. Entretanto em muitas delas o cruel desapontamento por que acabavam de
passar não deixava de ser mesclado de um certo contentamento íntimo, mormente
naquelas que se sentiam enfadadas pelas deferências e homenagens que certos
cavalheiros, tomados de entusiasmo, haviam francamente rendido à gentil
desconhecida. Estavam humilhadas, mas também vingadas. Quanto ás que tinham
esperanças ou pretensões ao amor de Alvaro, – e não eram poucas, – essas
exultaram de júbilo ao saberem do caso, e o nobre mancebo tornou-se o alvo de
mil desapiedados apodos e pilhérias.


O que me diz do escravo da escrava? – diziam elas – com que cara não ficaria o
pobre homem!…


Com a mesma. Decerto vai forrá-la e casar-se com ela. Aquilo é um maluco capaz
de todas as asneiras.


E que mau! Terá ao mesmo tempo mulher e talvez uma boa cozinheira.

Triste
consolação! o estigma do cativeiro não podia apagar da bela fronte de Isaura,
antes mais realçava o cunho de superioridade que o sopro divino nela havia
gravado em caracteres indeléveis.

Entre
os mancebos a impressão era bem diferente. Poucos, bem poucos, deixavam de
tomar vivo interesse e compaixão pela sorte da infeliz e formosa escrava. Por
todos os cantos falava-se e discutia-se com calor a respeito do caso. Alguns, a
despeito da evidência dos indícios e da confissão de Isaura, ainda duvidavam da
verdade que tinham diante dos olhos.


Não; aquela mulher não pode ser uma escrava, – diziam eles, – aqui há algum
mistério, que algum dia se desvendará.


Qual mistério? o caso é muito factível, e ela mesma o confessou. Mas quem será
esse bruto e desalmado fazendeiro, que conserva no cativeiro uma tão linda
criatura?


Deve ser algum lorpa de alma bem estúpida e sórdida.


Se não for algum sultãozinho de bom gosto, que a quer para o seu serralho.


Seja como for, esse bruto deve ser constrangido a dar-lhe a liberdade. Na senzala
uma mulher que merecia sentar-se num trono!…


Também só o infame do Martinho, com o seu satânico instinto de cobiça, poderia
farejar uma escrava na pessoa daquele anjo! que impudência! se o visse agora
aqui, era capaz de estrangulá-lo!

Entretanto,
Martinho, que se havia previamente munido de um mandado de apreensão, e se
fazia acompanhar de um oficial de justiça, exigia terminantemente que se lhe
fizesse entrega de Isaura. Álvaro, porém, interpondo o valimento e prestígio de
que gozava, opôs-se decididamente a essa exigência, e tomando por testemunhas
as pessoas que ali se achavam, constituiu-se fiador da escrava, comprometendo-se
a entregá-la a seu senhor, ou a quem por ordem dele a reclamasse. Em vão Martinho quis
insistir; uma multidão de vozes, que o apupavam e cobriam de injúrias,
forçaram-no a calar-se e desistir de sua pretensão.


Ah! malditos! querem-me roubar! – bradava Martinho como um possesso. – Meus
cinco contos! ai! meus cinco contos! lá se vão pela água abaixo.

E
dizendo isto procurou a escada, e saltando-a aos dois e três degraus, lá se foi
bramindo pela porta a fora.

 

XV

 


é passado cerca de um mês depois dos acontecimentos que acabamos de narrar.
Isaura e Miguel, graças à valiosa intervenção de Álvaro, continuam a habitar a mesma
pequena chácara no bairro de Santo Antônio. Já não lhes sendo mais possível
pensar em fugir para mais longe nem ocultarem-se, ali se conservam por conselho
de seu protetor, esperando o resultado dos passos que este se comprometera a
dar em favor deles, porém sempre na mais angustiosa inquietação, como Dâmocles
tendo sobre a cabeça aguda espada suspensa por um fio.

Álvaro
vai quase todos os dias à casa dos dois foragidos, e ali passa longas horas
entretendo-os sobre os meios de conseguir a liberdade de sua protegida, e
procurando confortá-los na esperança de melhor destino.

Para
nos inteirarmos do que tem ocorrido desde a fatal noite do baile, ouçamos a
conversação que teve lugar em casa de Isaura, entre Álvaro e o seu amigo Dr.
Geraldo.

Este,
na mesma manhã que seguiu-se á noite do baile, deixara o Recife e partira para
uma vila do interior, onde tinha sido chamado a fim de encarregar-se de uma
causa importante. De volta à capital no fim de um mês, um de seus primeiros
cuidados foi procurar Álvaro, não só pelo impulso da amizade, como também
estimulado pela curiosidade de saber do desenlace que tivera a singular
aventura do baile. Não o tendo achado em casa por duas ou três vezes que aí o
procurou, presumiu que o meio mais provável de encontrá-lo seria procurá-lo em
casa de Isaura, caso ela ainda se achasse no Recife residindo na mesma chácara;
não se iludiu.

Álvaro,
tendo reconhecido a voz de seu amigo, que da porta do jardim perguntava por
ele, saiu ao seu encontro; mas antes disso, tendo assegurado aos donos da casa
que a pessoa que o procurava era um amigo íntimo, em quem depositava toda
confiança, pediu-lhes licença para o fazer entrar.

Geraldo
foi introduzido em uma pequena sala da frente. Posto que pouco espaçosa e
mobiliada com a maior simplicidade, era esta salinha tão fresca, sombria e
perfumada, tão cheia de flores desde a porta da entrada, a qual bem como as
janelas estava toda entrelaçada de ramos e festões de flores, que mais parecia
um caramanchão ou gruta de verdura, do que mesmo uma sala. Quase toda a luz lhe
vinha pelos fundos através de uma larga porta dando para uma varanda aberta,
que olhava para o mar. Dali a vista, enfiando-se por entre troncos de
coqueiros, que derramavam sombra e fresquidão em tomo da casa, deslizava pela
superfície do oceano, e ia embeber-se na profundidade de um céu límpido e cheio
de fulgores.

Miguel
e Isaura depois de terem cumprimentado o visitante e trocado com ele algumas
palavras de mera civilidade, presumindo que queriam estar sós, retiraram-se
discretamente para o interior da casa.


Na verdade, Álvaro, – disse o doutor sorrindo-se, – é uma deliciosa morada
esta, e não admira que gostes de passar aqui grande parte do teu tempo. Parece
mesmo a gruta misteriosa de uma fada. É pena que um maldito nigromante
quebrasse de repente o encanto de tua fada, transformando-a em uma simples
escrava!


Ah! não gracejes, meu doutor; aquela cena extraordinária produziu em meu
espírito a mais estranha e dolorosa impressão: porém, francamente te confesso,
não mudou senão por instantes a natureza de meus sentimentos para com essa
mulher.


Que me dizes?… a tal ponto chegará a tua excentricidade?!..


Que queres? a natureza assim me fez. Nos primeiros momentos a vergonha e mesmo
uma espécie de raiva me cegaram; vi quase com prazer o transe cruel por que ela
passou. Que triste e pungente decepção! Vi em um momento desmoronar-se e
desfazer-se em lama o brilhante castelo que minha imaginação com tanto amor
tinha erigido!… uma escrava iludir-me por tanto tempo, e por fim ludibriar-me,
expondo-me em face da sociedade à mais humilhante irrisão! faze idéia de quanto
eu ficaria confuso e corrido diante daquelas ilustres damas, com as quais tinha
feito ombrear uma escrava em pleno baile, perante a mais distinta e brilhante
sociedade!…


E o que mais é, – acrescentou Geraldo, – uma escrava que as ofuscava a todas
por sua rara formosura e brilhantes talentos. Nem de propósito poderias
preparar-lhes mais tremenda humilhação, um crime, que nunca te perdoarão, posto
que saibam que também andavas iludido.


Pois bem, Geraldo; eu, que naquela ocasião, desairado e confuso, não sabia onde
esconder a cara, hoje rio e me aplaudo por ter dado ocasião a semelhante
aventura. Parece que Deus de propósito tinha preparado aquela interessante cena,
para mostrar de um modo palpitante quanto é vã e ridícula toda a distinção que
provém do nascimento e da riqueza, e para humilhar até o pó da terra o orgulho
e fatuidade dos grandes, e exaltar e enobrecer os humildes de nascimento,
mostrando que uma escrava pode valer mais que uma duquesa. Pouco durou aquela
primeira e desagradável impressão. Bem depressa a compaixão, a curiosidade, o
interesse, que inspira o infortúnio em u-ma pessoa daquela ordem, e talvez
também o amor, que nem com aquele estrondoso escândalo pudera extinguir-se em
meu coração, fizeram-me esquecer tudo, e resolvi-me a proteger francamente e a
todo o transe a formosa cativa. Apenas consegui que Isaura recobrasse os
sentidos, e a vi fora de perigo, corri à casa do chefe de polícia, e expondo-lhe
o caso, graças às relações de amizade, que com ele tenho, obtive permissão para
que Isaura e seu pai, – fica sabendo que é realmente seu pai, – pudessem
recolher-se livremente à sua casa, ficando eu por garantia de que não
desapareceriam; e assim se efetuou, a despeito dos bramidos do Martinho, que
teimava em não querer largar a presa. Todavia, no dia seguinte pela manhã, o
mesmo chefe, pesando a gravidade e importância do negócio, quis que ela fosse
conduzida à sua presença para interrogá-la e verificar a identidade de pessoa.
Encarreguei-me de conduzi-la. Oh! se a visses então!… Através das lágrimas,
que lhe arrancava sua cruel situação, transparecia, em todo o seu brilho, a
dignidade humana. Nada havia nela que denunciasse a abjeção do escravo, ou que
não revelasse a candura e nobreza de sua alma. Era o anjo da dor exilado do céu
e arrastado perante os tribunais humanos. Cheguei a duvidar ainda da cruel
realidade. O chefe de polícia, possuído de respeito e admiração diante de tão
gentil e nobre figura, tratou-a com toda a amabilidade, e interrogou-a com
brandura e polidez. Coberta de rubor e pejo confessou tudo com a ingenuidade de
uma alma pura. Fugira em companhia de seu pai, para escapar ao amor de um
senhor devasso, libidinoso e cruel, que a poder de violências e tormentos
tentava forçá-la a satisfazer seus brutais desejos. Mas Isaura, a quem uma
natureza privilegiada secundada pela mais fina e esmerada educação, inspirara
desde a infância o sentimento da dignidade e do pudor, repeliu com energia heroica
todas as seduções e ameaças de seu indigno senhor. Enfim, ameaçada dos mais
aviltantes e bárbaros tratamentos, que já começavam a traduzir-se em vias de
fato, tomou o partido extremo de fugir, o único que lhe restava.


O motivo da fuga, Álvaro, a ser verdadeiro, é o mais honroso possível para ela,
e a toma uma heroína; mas… enfim de contas ela não deixa de ser uma escrava
fugida.


E por isso mesmo mais digna de interesse e compaixão. Isaura tem-me contado
toda a sua vida, e segundo creio, pode alegar, e talvez provar direito à
liberdade. Sua senhora velha, mãe do atual senhor, a qual criou-a com todo o
mimo, e a quem ela deve a excelente educação que tem, tinha declarado por vezes
diante de testemunhas, que por sua morte a deixaria livre; a morte súbita e
inesperada desta senhora, que faleceu sem testamento, é a causa de Isaura
achar-se ainda entre as garras do mais devasso e infame dos senhores.


E agora, o que pretendes fazer?…


Pretendo requerer que Isaura seja mantida em liberdade, e que lhe seja nomeado
um curador a fim de tratar do seu direito.


E onde esperas encontrar provas ou documentos para provar as alegações que
fazes?


Não sei, Geraldo; desejava consultar-te, e esperava-te com impaciência
precisamente para esse fim. Quero que com a tua ciência jurídica me esclareças
e inspires neste negócio. Já lancei mão do primeiro e mais óbvio expediente que
se me oferecia, e logo no dia seguinte ao do baile escrevi ao senhor de Isaura
com as palavras as mais comedidas e suasivas, de que pude usar, convidando-o a
abrir preço para a liberdade dela. Foi pior; o libidinoso e ciumento Rajá
enfureceu-se e mandou-me em resposta esta carta insolente, que acabo de receber,
em que me trata de sedutor de escravas alheias, e protesta lançar mão dos meios
legais para que lhe seja entregue a escrava.


É bem parvo e descortês o tal sultanete, – disse Geraldo depois de ter
percorrido rapidamente a carta, que Álvaro lhe apresentou; – mas o certo é que,
pondo de parte a insolência…


Pela qual há de me dar completa e solene satisfação, eu o protesto.


Pondo de parte a insolência, se nada tens de valioso a apresentar em favor da
liberdade da tua protegida, ele tem o incontestável direito de reclamar e
apreender a sua escrava onde quer que se ache.


Infame e cruel direito é esse, meu caro Geraldo. É já um escárnio dar-se o nome
de direito a uma instituição bárbara, contra a qual protestam altamente a
civilização, a moral e a religião. Porém, tolerar a sociedade que um senhor
tirano e brutal, levado por motivos infames e vergonhosos, tenha o direito de
torturar uma frágil e inocente criatura, só porque teve a desdita de nascer
escrava, é o requinte da celeradez e da abominação.


Não é tanto assim, meu caro Álvaro; esses excessos e abusos devem ser coibidos;
mas como poderá a justiça ou o poder público devassar o interior do lar
doméstico, e ingerir-se no governo da casa do cidadão? que abomináveis e
hediondos mistérios, a que a escravidão dá lugar, não se passam por esses
engenhos e fazendas, sem que, já não digo a justiça, mas nem mesmo os vizinhos,
deles tenham conhecimento?… Enquanto houver escravidão, hão de se dar esses
exemplos. Uma instituição má produz uma infinidade de abusos, que só poderão
ser extintos cortando-se o mal pela raiz.


É desgraçadamente assim; mas se a sociedade abandona desumanamente essas
vítimas ao furor de seus algozes, ainda há no mundo almas generosas que se
incumbem de protegê-las ou vingá-las. Quanto a mim protesto, Geraldo, enquanto
no meu peito pulsar um coração, hei de disputar Isaura à escravidão com todas
as minhas forças, e espero que Deus me favorecerá em tão justa e santa causa.


Pelo que vejo, meu Álvaro, não procedes assim só por espírito de filantropia, e
ainda amas muito a essa escrava.


Tu o disseste, Geraldo; amo-a muito, e hei de amá-la sempre e nem disso faço
mistério algum. E será coisa estranha ou vergonhosa amar-se uma escrava? O
patriarca Abraão amou sua escrava Agar, e por ela abandonou Sara, sua mulher. A
humildade de sua condição não pode despojar Isaura da cândida e brilhante
auréola de que a via e até hoje a vejo circundada. A beleza e a inocência são
astros que mais refulgem quando engolfados na profunda escuridão do infortúnio.


É bela a tua filosofia, e digna de teu nobre coração; mas que queres? as leis
civis, as convenções sociais, são obras do homem, imperfeitas, injustas, e
muitas vezes cruéis. O anjo padece e geme sob o jugo da escravidão, e o demônio
exalça-se ao fastígio da fortuna e do poder.


E assim pois, – refletiu Álvaro com desânimo, – nessas desastradas leis nenhum
meio encontras de disputar ao algoz essa inocente vítima?


Nenhum, Álvaro, enquanto nenhuma prova puderes aduzir em prol do direito de tua
protegida. A lei no escravo só vê a propriedade, e quase que prescinde nele
inteiramente da natureza humana. O senhor tem direito absoluto de propriedade
sobre o escravo, e só pode perdê-lo manumitindo-o ou alheando-o por qualquer
maneira, ou por litígio provando-se liberdade, mas não por sevícias que cometa
ou outro qualquer motivo análogo.


Miserável e estúpida papelada que são essas vossas leis. Para ilaquear a
boa-fé, proteger a fraude, iludir a ignorância, defraudar o pobre e favorecer a
usura e rapacidade dos ricos, são elas fecundas em recursos e estratagemas de
toda a espécie. Mas quando se tem em vista um fim humanitário, quando se trata
de proteger a inocência desvalida contra a prepotência, de amparar o infortúnio
contra uma injusta perseguição, então ou são mudas, ou são cruéis. Mas não
obstante elas, hei de empregar todos os esforços ao meu alcance para libertar a
infeliz do afrontoso jugo que a oprime. Para tal empresa alenta-me não já
somente um impulso de generosidade, como também o mais puro e ardente amor, sem
pejo o confesso.

O
amigo de Álvaro arrepiou-se com esta deliberação tão franca e entusiasticamente
proclamada com essa linguagem tão exaltada, que lhe pareceu um deplorável
desvario da imaginação.


Nunca pensei, replicou com gravidade, – que a tal ponto chegasse a exaltação
desse teu excêntrico e malfadado amor. Que por um impulso de humanidade
procures proteger uma escrava desvalida, nada mais digno e mais natural. O mais
não passa de delírio de uma imaginação exaltada e romanesca. Será airoso e
digno da posição que ocupas na sociedade, deixares-te dominar de uma paixão
violenta por uma escrava?


Escrava! – exclamou Álvaro cada vez mais exaltado, – isso não passa de um nome
vão, que nada exprime, ou exprime uma mentira. Pureza de anjo, formosura de
fada, eis a realidade! Pode um homem ou a sociedade inteira contrariar as
vistas do Criador, e transformar em uma vil escrava o anjo que sobre a Terra
caiu das mãos de Deus?…


Mas por uma triste fatalidade o anjo caiu do céu no lodaçal da escravidão, e
ninguém aos olhos do mundo o poderá purificar dessa nódoa, que lhe mancha as
asas. Álvaro, a vida social está toda juncada de forcas caudinas, por debaixo
das quais nos é forçoso curvar-nos, sob pena de abalroarmos a fronte em algum
obstáculo, que nos faça cair. Quem não respeita as conveniências e até os
preconceitos sociais, arrisca-se a cair no descrédito ou no ridículo.


A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma úlcera hedionda na face da
nação, que a tolera e protege. Por minha parte, nenhum motivo enxergo para
levar a esse ponto o respeito por um preconceito absurdo, resultante de um
abuso que nos desonra aos olhos do mundo civilizado. Seja eu embora o primeiro
a dar esse nobre exemplo, que talvez será imitado. Sirva ele ao menos de um
protesto enérgico e solene contra uma bárbara e vergonhosa instituição.


És rico, Álvaro, e a riqueza te dá bastante independência para poderes
satisfazer os teus sonhos filantrópicos e os caprichos de tua imaginação
romanesca. Mas tua riqueza, por maior que seja, nunca poderia reformar os
prejuízos do mundo, nem fazer com que essa escrava, a quem segundo todas as
aparências quererias ligar o teu destino, fosse considerada, e nem mesmo
admitida nos círculos da alta sociedade…


E que me importam os círculos da alta sociedade, uma vez que sejamos bem acolhidos
no meio das pessoas de bom senso, e coração bem formado? Demais, enganas-te
completamente, meu Geraldo. O mundo corteja sempre o dinheiro, onde quer que
ele se ache. O ouro tem um brilho que deslumbra, e apaga completamente essas
pretendidas nódoas de nascimento. Não nos faltarão, nunca, eu te afianço, o
respeito, nem a consideração social, enquanto nos não faltar o dinheiro.


Mas, Álvaro, esqueces-te de uma coisa muito essencial; e se te não for possível
obter a liberdade de tua protegida?…

A
esta pergunta Álvaro empalideceu, e oprimido pela idéia de tão cruel como
possível alternativa, sem responder – palavra olhava tristemente para o
horizonte, quando o boleeiro de Álvaro, que se achava postado com sua caleça
junto à porta do jardim, veio anunciar-lhe que algumas pessoas o procuravam e
desejavam falar-lhe, ou ao dono da casa.


A mim! – resmungou Álvaro; porventura estou eu em minha casa?… mas como
também procuram o dono desta… faça-os entrar.


Álvaro, disse Geraldo espreitando por uma janela, – se me não engano, é gente
da polícia; parece-me que lá vejo um oficial de justiça. Teremos outra cena
igual à do baile?…


Impossível!.., com que direito virão tocar-me no depósito sagrado, que a mesma
polícia me confiou!…


Não te fies nisso. A justiça é uma deusa muito volúvel e fértil em patranhas. Hoje
desmanchará o que fez ontem.

 

XVI

 

O
primeiro cuidado de Martinho logo ao sair do baile, em que viu malograda a sua
tentativa de apreender Isaura, foi escrever ao senhor dela uma longa e
minuciosa carta, comunicando-lhe que tinha tido a fortuna de descobrir a
escrava que tanto procurava.

Contava
por miúdo as diligências que fizera para esse fim, até descobri-la em um baile
público e encarecia o seu próprio mérito e perspicácia para esbirro, dizendo
que a não ser ele, ninguém seria capaz de farejar uma escrava na pessoa de uma
moça tão bonita e tão prendada. Alterando os fatos e as circunstâncias do modo
o mais atroz e calunioso, dizia-lhe em frases de taverneiro, que Miguel se
estabelecera no Recife com Isaura a fim de especular com a formosura da filha,
a qual, a poder de armar laços à rapaziada vadia e opulenta, tinha por fim
conseguido apanhar um patinho bem gordo e fácil de depenar. Era este um
pernambucano por nome Álvaro, moço duas vezes milionário, e mil vezes
desmiolado, que tinha por ela uma paixão louca. Este moço, a quem ela trazia
iludido e engodado ao ponto de ele querer desposá-la, caiu na tolice de levá-la
a um baile, onde ele Martinho teve a fortuna de descobri-la, e a teria apreendido,
e estaria ela já de marcha para o poder de seu senhor, se não fosse a oposição
do tal senhor Álvaro, que apesar de ficar sabendo de que ralé era a sua
heroína, teve a pouca-vergonha de protegê-la escandalosamente. Prevalecendo-se
das valiosas relações, e da influência de que gozava no país em razão de sua
riqueza, conseguiu impedir a sua apreensão, e tornando-se fiador dela a
conservava em seu poder contra toda a razão e justiça, protestando não
entregá-la senão ao seu próprio senhor. Julga que a intenção de Álvaro é tentar
meios de libertá-la, a fim de fazê-la sua mulher ou sua amásia. Julgava de seu
dever comunicar-lhe tudo isso para seu governo.

Era
este em suma o conteúdo da carta de Martinho, a qual seguiu para o Rio de
Janeiro no mesmo paquete que levava a carta de Álvaro, fazendo proposições para
a liberdade de Isaura. Leôncio, contente com a descoberta, mas cheio de ciúme e
inquietação em vista das informações de Martinho, apressou-se em responder a
ambos, e o mesmo paquete que trouxe a resposta insolente e insultuosa que
dirigiu a Álvaro, foi portador da que se destinava a Martinho, na qual o autorizava
a apreender a escrava em qualquer parte que a encontrasse, e para maior
segurança remetia-lhe também procuração especial para esse fim, e mais algumas
cartas de recomendação de pessoas importantes para o chefe de policia, para que
o auxiliasse naquela diligência.

Martinho
mais que depressa dirigiu-se à casa da polícia, e apresentando ao chefe todos
esses papéis, requereu-lhe que mandasse entregar-lhe a escrava. O chefe em
vista dos documentos de que Martinho se achava munido, entendeu que não lhe era
possível denegar-lhe o que pedia, e expediu ordem por escrito, para que lhe
fosse entregue a escrava em questão. e deu-lhe um oficial de justiça e dois
guardas para efetuarem a diligência.

Foi,
portanto, o Martinho, que, munido de todos os poderes, competentemente
autorizado pela polícia, apresentou-se com sua escolta à porta da casa de
Isaura, para arrebatar a Alvaro a cobiçada presa.


Ainda este infame! – murmurou Álvaro entre os dentes ao ver entrar o Martinho.
– Era um rugido de cólera impotente, que o angustiado mancebo arrancara do
íntimo da alma.


Que deseja de mim o senhor? – perguntou Álvaro em tom seco e altivo.


V. S.ª que bem me conhece, – respondeu Martinho, – já pode presumir pouco mais
ou menos o motivo que aqui me traz.


Nem por sombras posso adivinhá-lo, antes me causa estran-heza esse aparato
policial, de que vem acompanhado.


Sua estranheza cessará, sabendo que venho reclamar uma escrava fugida, por nome
Isaura, que há muito tempo foi por mim apreendida no meio de um baile, no qual
se achava V. S.ª e devendo eu enviá-la a seu senhor no Rio de Janeiro, V. S.ª a
isso se opôs sem motivo algum justificável, conservando-a até hoje em seu poder
contra todo o direito.


Alto lá, senhor Martinho! penso que não é pessoa competente para dar ou tirar
direito a quem lhe parecer. O senhor bem sabe que eu sou depositário dessa
escrava, e que com todo o direito e consentimento da autoridade a tenho debaixo
de minha proteção.


Esse direito, se é que se pode chamar direito a uma arbitrariedade, cessou,
desde que V. S.ª nada tem alegado em favor da mesma escrava. E demais, –
continuou apresentando um papel, – aqui está ordem expressa e terminante do
chefe de polícia, mandando que me seja entregue a dita escrava. A isto nada se
pode opor legalmente.


Pelo que vejo, senhor Martinho, – disse Álvaro depois de examinar rapidamente o
papel que Martinho lhe entregara, – ainda não desistiu de seu indigno
procedimento, tornando-se por um pouco de dinheiro o vil instrumento do algoz
de uma infeliz mulher? Reflita, e verá que essa infame ação só pode inspirar
asco e horror a todo o mundo.

Martinho
achando-se acostado pela policia, julgou-se com direito de mostrar-se áspero e
arrogante, e, portanto, com imperturbável sangue-frio:


Senhor Álvaro, – respondeu, – eu vim a esta casa somente com o fim de exigir em
nome da autoridade a entrega de uma escrava fugida, que aqui se acha acoutada,
e não para ouvir repreensões, que o senhor não tem direito de dar-me. Trate de
fazer o que a lei ordena e a prudência aconselha, se não quer que use de meu
direito…


Qual direito?!…


De varejar esta casa e levar à força a escrava.


Retira-te, miserável esbirro! – bradou Álvaro com força, não podendo mais
sopear a cólera. – Desaparece de minha presença, se não queres pagar caro o teu
atrevimento!…


Senhor Álvaro!… veja o que faz!

O
Dr. Geraldo, não achando muita razão em seu amigo, por prudência até ali se
tinha conservado silencioso, mas vendo que a cólera e imprudência de Alvaro ia
excedendo os limites, julgou de seu dever intervir na questão, e aproximando-se
de Alvaro, e puxando-lhe o braço:


Que fazes, Álvaro? – disse-lhe em voz baixa. – Não vês que com esses
arrebatamentos não consegues senão comprometer-te, e agravar a sorte de Isaura?
mais prudência, meu amigo.


Mas… que devo eu fazer?… não me dirás?


Entregá-la.


Isso nunca!… – replicou Álvaro terminantemente.

Conservaram-se
todos silenciosos por alguns momentos. Álvaro parecia refletir.


Ocorre-me um expediente, – disse ele ao ouvido de Geraldo, – vou tentá-lo.

E
sem esperar resposta aproximou-se de Martinho.


Senhor Martinho, – disse-lhe ele, – desejo dizer-lhe duas palavras em
particular, com permissão aqui do doutor.


Estou às suas ordens, – replicou Martinho.


Estou persuadido, senhor Martinho, – disse-lhe Alvaro em voz baixa, tomando-o
de parte, – que a gratificação de cinco contos é o motivo principal que o leva
a proceder desta maneira contra uma infeliz mulher, que nunca o ofendeu. Está
em seu direito, eu reconheço, e a soma não é para desprezar. Mas se quiser
desistir completamente desse negócio, e deixar em paz essa escrava, dou-lhe o
dobro dessa quantia.


O dobro!… dez contos de réis! exclamou Martinho arregalando os olhos.


Justamente; dez contos de réis de hoje mesmo.


Mas, senhor Alvaro, já empenhei minha palavra para com o senhor da escrava, dei
passos para esse fim, e…


Que importa!… diga que ela evadiu-se de novo, ou dê outra qualquer
desculpa…


Como, se é tão público que ela se acha em poder de V. S.ª?…


Ora!… isso é sua vontade, senhor Martinho; pois um homem vivo e atilado como
o senhor embaraça-se com tão pouca coisa!…


Vá, feito – disse Martinho depois de refletir um instante. – Já que Sa. tanto
se interessa por essa escrava, não quero mais afligi-lo com semelhante negócio,
que a dizer-lhe a verdade bem me repugna.

Aceito
a proposta.


Obrigado; é um importante serviço que vai me prestar.


Mas que volta darei eu ao negócio para sair-me bem dele?


Veja lá; sua imaginação é fácil em recursos, e há de inspirar-lhe algum meio de
safar-se de dificuldades com a maior limpeza.

Martinho
ficou por alguns momentos a roer as unhas, pensativo e com os olhos pregados no
chão. Por fim levantando a cabeça e levando à testa o dedo índice:


Atinei! exclamou. – Dizer que a escrava desapareceu de novo, não é conveniente,
e iria comprometer a V. S.ª que se responsabilizou por ela. Direi somente que,
bem averiguado o caso, reconheci que a moça, que Sa. tem em seu poder, não é a
escrava em questão, e está tudo acabado.


Essa não é mal achada… mas foi um negócio tão público…


Que importa!… não se lembra V. S.ª de um sinal em forma de queimadura em cima
do seio esquerdo, que vem consignado no anúncio? Direi, que não se achou
semelhante sinal, que é muito característico, e está destruída a identidade de
pessoa. Acrescentarei mais que a moça, por quem V. S.ª se interessa, vista de noite
é uma coisa, e de dia é outra; que em nada se parece com a linda escrava que se
acha descrita no anúncio, e que em vez de ter vinte anos mostra ter seus trinta
e muitos para quarenta, e que toda aquela mocidade e formosura era efeito dos
arrebiques, e da luz vacilante dos lustres e candelabros.


O senhor é bem engenhoso. – observou Alvaro sorrindo-se; – mas os que a viram
nenhum crédito darão a tudo isso. Resta, porém, ainda uma dificuldade, senhor
Martinho; é a confissão que ela fez em público!… isto há de ser custoso de
embaraçar-se.


Qual custoso!… alega-se que ela é sujeita a acessos de histerismo, e é
sujeita a alucinações.


Bravo, senhor Martinho; confio absolutamente em sua perícia e habilidade. E
depois?


E depois comunico tudo isso ao chefe de policia, declaro-lhe que nada mais
tenho com esse negócio, passo a procuração a qualquer meirinho, ou
capitão-do-mato, que se queira encarregar dessa diligência, e em ato contínuo
escrevo ao senhor da escrava comunicando-lhe o meu engano, com o que ele por
certo desistirá de procurá-la mais por aqui, e levará a outras partes as suas
pesquisas. Que tal acha o meu plano?…


Admirável, e cumpre não perdermos tempo, senhor Martinho.


Vou já neste andar, e em menos de duas horas estou aqui de volta, a dar parte
do desempenho de minha comissão.


Aqui não, que não poderei demorar-me muito. Espero-o em minha casa, e lá
receberá a soma convencionada.


Podem-se retirar, – disse Martinho ao oficial de justiça e aos guardas, que se
achavam postados do lado de fora da porta. – Sua presença não é mais necessária
aqui. Não há dúvida! – continuou ele consigo mesmo: – isto vai a dobrar como no
lansquenê. Esta escrava é uma mina, que me parece não estar ainda esgotada.

E
retirou-se, esfregando as mãos de contentamento.


Então, que arranjo fizeste com o homem, meu Álvaro? – perguntou Geraldo, apenas
Martinho voltou as costas.


Excelente, – respondeu Álvaro; – a minha lembrança surtiu o desejado efeito, e
ainda mais do que eu esperava.

Álvaro
em poucas palavras deu conta ao seu amigo do mercado que fizera com o Martinho.


Que caráter desprezível e abjeto o deste Martinho! – exclamou Geraldo. – De um
tal instrumento não se pode esperar obra que preste. E julgas ter conseguido
muita coisa, Álvaro, com o passo que acabas de dar?…


Não muito, porém alguma coisa sempre posso conseguir. Pelo menos consigo deter
o golpe por algum tempo, e como diz lá o rifão popular, meu Geraldo, enquanto o
pau vai e vem, folgam as costas. Enquanto Leôncio, persuadido que a sua escrava
não se acha aqui no Recife, a procura por todo esse mundo, ela fica aqui tranquilamente
à minha sombra, livre das perseguições e dos maus-tratos de um bárbaro senhor;
e eu terei tempo para ativar os meios de arranjar provas e documentos que justifiquem
o seu direito à liberdade. É quanto me basta por agora; quanto ao resto, já que
pareces julgar a minha causa irremissivelmente perdida, a justiça divina me
inspirará o modo por que devo proceder.


Como te enganas, meu pobre Álvaro!… cuidas que arredando o Martinho ficas por
enquanto livre de perseguições e pesquisas contra a tua protegida? que
cegueira!… não faltarão malsins igualmente esganados por dinheiro, que pelos
cinco contos de réis, que para estes miseráveis é uma soma fabulosa, se ponham
à cata de tão preciosa presa. Agora principalmente, que o Martinho deu o
alarma, e que esse negócio tem atingido a um certo grau de celebridade, em vez
de um, aparecerão cem Martinhos no encalço da bela fugitiva, e não terão mais
que fazer senão seguir a trilha batida pelo primeiro.


És muito meticuloso, Geraldo, e encaras as coisas sempre pelo lado pior. É bem
provável que peguem as patranhas inventadas pelo Martinho, e que ninguém mais
se lembre de descobrir a cativa Isaura nessa moça, por quem me interesso, e
embora mil malsins a procurem por todos os cantos do mundo, pouco me importará.
Sempre obtenho uma dilação, que poderá me ser muito vantajosa.


Pois bem, Álvaro; vamos que assim aconteça; mas tu não vês que semelhante
procedimento não é digno de ti?… que assim incorres realmente nos epítetos
afrontosos, com que obsequiou-te o tal Leôncio, e que te tomas verdadeiramente
um sedutor e acoutador de escravos alheios?…


Desculpa-me, meu caro Geraldo; não posso aceitar a tua reprimenda. Ela só pode
ter aplicação aos casos vulgares, e não às circunstâncias especialíssimas em
que eu e Isaura nos achamos colocados. Eu não dou couto, nem capeio a uma
escrava: protejo um anjo, e amparo uma vítima inocente contra a sanha de um
algoz. Os motivos que me impelem, e as qualidades da pessoa por quem dou estes
passos, nobilitam o meu procedimento, e são bastantes para justificar-me aos
olhos de minha consciência.


Pois bem, Alvaro; faze o que quiseres; não sei que mais possa dizer-te para
demover-te de um procedimento, que julgo não só imprudente, como, a falar-te
com sinceridade, ridículo, e indigno da tua pessoa.

Geraldo
não podia dissimular o descontentamento que lhe causava aquela cega paixão, que
levava o seu amigo a atos que qualificava de burlesco desatino, e loucura
inqualificável. Por isso, longe de auxiliá-lo com seus conselhos, e indicar-lhe
os meios de promover a libertação de Isaura, procurava com todo o empenho
demovê-lo daquele propósito, pintando o negócio ainda mais difícil do que
realmente o era. De bom grado, se lhe fosse possível, teria entregado Isaura a
seu senhor somente para livrar Álvaro daquela terrível tentação, que o ia
precipitando na senda das mais ridículas extravagâncias.

 

XVII

 

Achando-se
só, Alvaro sentou-se junto a uma mesa, e apoiando nela os cotovelos com a
fronte entre as mãos, ficou a cismar profundamente.

Isaura,
porém, pressentindo pelo silêncio que reinava na sala, que já ali não havia
pessoas estranhas, foi ter com ele.


Senhor Álvaro, – disse ela chegando-se de manso e timidamente; – desculpe-me…
eu venho decerto lhe aborrecer… queria talvez estar só…

Não,
minha Isaura; tu nunca me aborreces; pelo contrário, és sempre bem-vinda junto
de mim…


Mas vejo-o tão triste!… parece-me que aqui entrou mais gente, e alteravam-se
vozes. Deram-lhe algum desgosto, meu senhor?…


Nada houve de extraordinário, Isaura; foram algumas pessoas que vieram procurar
o doutor Geraldo.


Mas então, por que está assim triste e abatido?


Não estou triste nem abatido. Estava meditando nos meios de arrancar-te do
abismo da escravidão, meu anjo, e elevar-te à posição para que o céu te criou.


Ah! senhor, não se mortifique assim por amor de uma infeliz, que não merece
tais extremos, É inútil lutar contra o destino irremediável que me persegue.


Não fales assim, Isaura. Tens em bem pouca conta a minha proteção e o meu
amor!…


Não sou digna de ouvir de sua boca essa doce palavra. Empregue seu amor em
outra mulher que dele seja merecedora, e esqueça-se da pobre cativa, que tornou-se
indigna até de sua compaixão ocultando-lhe a sua condição, e fazendo-o passar
pelo vergonhoso pesar de…


Cala-te, Isaura… até quando pretendes lembrar-te desse maldito incidente?…
eu somente fui o culpado forçando-te a ir a esse baile, e tinhas razão de sobra
para não revelar-me a tua desgraça. Esquece-te disso; eu te peço pelo nosso
amor, Isaura.


Não posso esquecer-me, porque os remorsos me avivam sempre n’alma a lembrança
dessa fraqueza. A desgraça é má conselheira, e nos perturba e anuvia o
espirito. Eu o amava, assim como o amo ainda, e cada vez mais… perdoe-me esta
declaração, que é sem dúvida uma ousadia na boca de uma escrava.


Fala, Isaura, fala sempre, que me amas. Pudesse eu ouvir de teus lábios essa
palavra por toda a eternidade.


Era um triste amor na verdade, um amor de escrava, um amor sem sorriso nem
esperança. Mas a ventura de ser amada pelo senhor era uma idéia tão consoladora
para mim! Amando-me o senhor me nobilitava, a meus próprios olhos, e quase me
fazia esquecer a realidade de minha humilde condição. Eu tremia ao pensar que
descobrindo-lhe a verdade, ia perder para sempre essa doce e única consolação
que me restava na vida. Perdoe, meu senhor, perdoe à escrava infeliz, que teve
a louca ousadia de amá-lo.


Isaura, deixa-te de vãos escrúpulos, e dessas frases humildes, que de modo
nenhum podem caber em teus lábios angélicos. Se me amas, eu também te amo,
porque em tudo te julgo digna do meu amor; que mais queres tu?… Se antes de
conhecer a condição em que nasceste, eu te amei subjugado por teus raros
encantos, hoje que sei que a tantos atrativos reúnes o prestigio do infortúnio
e do martírio, eu te adoro, eu te idolatro mais que nunca.


Ama-me, e é essa idéia, que ainda mais me mortifica!… de que nos serve esse
amor, se nem ao menos posso ter a fortuna de ser sua escrava, e devo sem
remédio morrer entre as mãos de meu algoz..


Nunca, Isaura! – exclamou Álvaro com exaltação: – minha fortuna, minha
tranquilidade, minha vida, tudo sacrificarei para libertar-te do jugo desse vil
tirano. Se a justiça da Terra não me auxilia nesta nobre e generosa empresa, a
justiça do céu se fará cumprir por minhas mãos.


Oh! senhor Alvaro!… não vá sacrificar-se por uma pobre escrava, que não
merece tais excessos. Abandone-me à minha sina fatal; já não é pouca felicidade
para mim ter merecido o amor de um cavalheiro tão nobre e tão amável, como o
senhor; esta lembrança me servirá de alento e consolação em minha desgraça. Não
posso, porém, consentir que o senhor avilte o seu nome e a sua reputação,
amando com tal extremo a uma escrava.


Por piedade, Isaura, não me martirizes mais com essa maldita palavra, que
constantemente tens nos lábios. Escrava tu!… não o és, nunca o foste, e nunca
o serás. Pode acaso a tirania de um homem ou da sociedade inteira transformar
em um ente vil, e votar à escravidão aquela que das mãos de Deus saiu um anjo
digno do respeito e adoração de todos? Não, Isaura; eu saberei erguer-te ao nobre
e honroso lugar a que o céu te destinou, e conto com a proteção de um Deus
justo, porque protejo um dos seus anjos.

Álvaro,
não obstante ficar sabendo, depois da noite do baile, que Isaura era uma
simples escrava, nem por isso deixou de tratá-la daí em diante com o mesmo
respeito, deferência e delicadeza, como a uma donzela da mais distinta
jerarquia social. Procedia assim de acordo com os elevados princípios que
professava, e com os nobres e delicados sentimentos do seu coração. O pudor, a
inocência, o talento, a virtude e o infortúnio, eram sempre para ele coisas
respeitáveis e sagradas, quer se achassem na pessoa de uma princesa, quer na de
uma escrava. Sua afeição era tão casta e pura como a pessoa que dela era
objeto, e nunca de leve lhe passara pelo pensamento abusar da precária e humilde
posição de sua amante, para profanar-lhe a candura imaculada. Nunca de sua
parte um gesto mais ousado, ou uma palavra menos casta haviam feito assomar ao
rosto da cativa o rubor do pejo, e nem tampouco os lábios de Alvaro lhe haviam
roçado o mais leve beijo pelas virginais e pudicas faces. Apenas depois de
instantes e repetidas súplicas de Isaura, havia tomado a liberdade de tratá-la
por tu, e isso mesmo quando se achavam a sós.

Somente
agora pela primeira vez, Álvaro, dominado pela mais suave e veemente emoção, ao
proferir as últimas palavras, enlaçando o braço em torno ao colo de Isaura a cingia
brandamente contra o coração.

Estavam
ambos enlevados na doçura deste primeiro amplexo de amor, quando o ruído de um
carro, que parou à porta do jardim, e logo após um forte e estrondoso – ó de
casa! – os fizeram separar-se.

No
mesmo momento entrava na sala o baleeiro de Álvaro, e anunciava-lhe que novas
pessoas o procuravam.


Oh, meu Deus!… que será isto hoje!… serão ainda os malditos esbirros?… –
refletiu Álvaro, e depois dirigindo-se a Isaura:


É prudente que te retires, minha amiga, – disse-lhe; ninguém sabe o que será e
não convém que te vejam.


Ah! que eu não sirva senão para perturbar-lhe o sossego! – murmurou Isaura
retirando-se.

Um
momento depois Alvaro viu entrar na sala um elegante e belo mancebo, trajado
com todo o primor, e afetando as mais polidas e aristocráticas maneiras; mas
apesar de sua beleza, tinha ele na fisionomia, como Lusbel, um não seu quê de
torvo e sinistro, e um olhar sombrio, que incutia pavor e repulsão.


Este por certo não é um esbirro, – pensou Álvaro, e indicando uma cadeira ao
recém-chegado: – Queira sentar-se, – disse-lhe, e – tenha a bondade de dizer o
que pretende deste seu criado.


Desculpe-me, – respondeu-lhe o cavalheiro, passeando um olhar escrutador em
roda da sala: – não é a V. S.ª que eu desejava falar, mas sim ao morador desta
casa ou à sua filha.

Álvaro
estremeceu. Estava claro que aquele mancebo, se bem que nenhuma aparência
tivesse de um esbirro, andava à pista de Isaura. Todavia no intuito de
verificar se era fundada a sua apreensão, antes de chamar os donos da casa quis
sondar as intenções do visitante.


Não obstante, – respondeu ele, como estou autorizado pelos donos da casa a
tratar de todos os seus negócios, pode V. S.ª dirigir-se a mim, e dizer o que
deles pretende.


Sim, senhor; não ponho a menor dúvida, pois o que pretendo não é nenhum
mistério. Constando-me com certeza, que aqui se acha acoutada uma escrava
fugida, por nome Isaura, venho apreendê-la…


Nesse caso deve entender-se comigo, que sou o depositário dessa escrava.


Ah!.. pelo que vejo, V. S.ª é o senhor Álvaro!…


Um criado de V. S.ª.


Bem; muito estimo encontrá-lo por aqui; pois saiba também que eu sou Leôncio, o
legítimo senhor dessa escrava.

Leôncio.
… o senhor de Isaura! Álvaro ficou como esmagado sob o peso desta fulminante
e tremenda revelação. Mudo e atônito, contemplou por alguns instantes aquele
homem de sombria catadura, que se lhe apresentava aos olhos, implacável e sinistro
como Lúcifer, prestes a empolgar a vítima, que deseja arrastar aos infernos.
Suor frio porejou-lhe pela testa, e a mais pungente angústia apertou-lhe o
coração.


É ele!… é o próprio algoz!… ai, pobre Isaura!… – foi este o eco lúgubre,
que remurmurou-lhe dentro d’alma enregelada pelo desalento.

 

XVIII

 

O
leitor provavelmente não terá ficado menos atônito do que ficou Álvaro, com o
imprevisto aparecimento de Leôncio no Recife, e indo bater certo na casa em que
se achava refugiada a sua escrava.

É
preciso, portanto, explicar-lhe como isso aconteceu, para que não pense que foi
por algum milagre.

Leôncio,
depois de ter escrito e entregado no correio as duas cartas que conhecemos, uma
dirigida a Álvaro, outra a Martinho, nem por isso ficou mais tranquilo.
Devorava-lhe a alma uma inquietação mortal, um ciúme desesperador. A notícia de
que Isaura se achava em poder de um belo e rico mancebo, que a amava
loucamente, era para ele um suplício insuportável, um cancro, que lhe corroía
as entranhas, e o fazia estrebuchar em ânsias de desespero, avivando-lhe cada
vez mais a paixão furiosa que concebera por sua escrava. Achava-se ele na
corte, para onde, logo que teve notícias de Isaura, se dirigia imediatamente, a
fim de se achar em um centro, de onde pudesse tomar medidas prontas e enérgicas
para a captura da mesma. Tendo escrito e entregue as cartas na véspera da
partida do vapor pela manhã, levou o resto do dia a cismar. A terrível
ansiedade em que se achava não lhe permitia esperar a resposta e o resultado
daquelas cartas, sendo muito mais morosas e espaçadas do que hoje as viagens
dos paquetes naque-la época, em que apenas se havia inaugurado a navegação a
vapor pelas costas do Brasil. Demais, ocorria-lhe frequentemente ao espírito o
anexim popular – quem quer vai, quem não quer manda. – Não podia fiar-se na
diligência e boa vontade de pessoas desconhecidas, que talvez não pudessem
lutar vantajosamente contra a influência de Alvaro, o qual, segundo lho
pintavam, era um potentado em sua terra. O ciúme e a vingança não gostam de
confiar a olhos e mãos alheias a execução de seus desígnios.


É indispensável que eu mesmo vá, – pensou Leôncio, e firme nesta resolução foi
ter com o ministro da justiça, com quem cultivava relações de amizade, e
pediu-lhe uma carta de recomendação, – o que equivale a uma ordem, – ao chefe
de polícia de Pernambuco, para que o auxiliasse eficazmente para o
descobrimento e captura de uma escrava. Já de antemão Leôncio também se havia
munido de uma precatória e mandado de prisão contra Miguel, a quem havia feito
processar e pronunciar como ladrão e acoutador de sua escrava. O sanhudo paxá
de nada se esquecia para tornar completa a sua vingança.

No
outro dia Leôncio seguia para o Norte no mesmo vapor que conduzia suas cartas.

Estas,
porém, chegaram ao seu destino algumas horas antes que o seu autor
desembarcasse no Recife.

Leôncio,
apenas pôs pé em terra, dirigiu-se ao chefe de policia, e entregando-lhe a
carta do ministro inteirou-o de sua pretensão.

Tenho
a informar-lhe, senhor Leôncio, – respondeu-lhe o chefe – que haverá talvez
pouco mais de duas horas que daqui saiu uma pessoa autorizada por V. S.a para o
mesmo fim de apreender essa escrava, e ainda há pouco aqui chegou de volta
declarando que tinha-se enganado, e que acabava de reconhecer que a pessoa, de
quem desconfiava, não é e nem pode ser a escrava que fugiu a V. S.a.


Um certo Martinho, não, senhor doutor?…


Justamente.


Deveras!… que me diz, senhor doutor?


A verdade; ainda aí estão à porta o oficial de justiça e os guardas, que o
acompanharam.


De maneira que terei perdido o meu tempo e a minha viagem!… oh! não, não;
isto não é possível. Creia-me, senhor doutor, aqui há patranha… o tal senhor
Álvaro dizem que é muito rico…


E o tal Martinho um valdevinos capaz de todas as infâmias.

Tudo
pode ser; mas a V. S.ª como interessado, compete averiguar essas coisas.


E é o que venho disposto a fazer. Irei lá eu mesmo verificar o negócio por meus
próprios olhos, e já, se for possível.


Quando quiser. Ali estão o oficial de justiça e os guardas, que ainda agora de
lá vieram, e ninguém melhor do que eles pode guiar a V. S.ª e efetuar a
captura, caso reconheça ser a sua própria escrava.


Também me é preciso que V. S.ª ponha o – cumpra-se – nesta precatória – disse
Leôncio apresentando a precatória contra Miguel – é necessário punir o patife
que teve a audácia de desencaminhar e roubar-me escrava.

O
chefe satisfez sem hesitar ao pedido de Leôncio, que acompanhado da pequena
escolta, que fez subir ao seu carro, no mesmo momento se dirigiu à casa de
Isaura, onde o deixamos em face de Álvaro.

A
situação deste não era só crítica; era desesperada. O seu antagonista ali
estava armado de seu incontestável direito para humilhá-lo, esmagá-lo, e o que
mais é, despedaçar-lhe a alma, roubando-lhe a amante adorada, o ídolo de seu
coração, que ia-lhe ser arrancada dos braços para ser prostituída ao amor
brutal de um senhor devasso, se não sacrificada ao seu furor. Não tinha remédio
senão curvar-se sem murmurar ao golpe do destino, e ver de braços cruzados
metida em ferros, e entregue ao azorrague do algoz a nobre e angélica criatura,
que, única entre tantas belezas, lhe fizera palpitar o coração em emoções do
mais extremoso e puro amor.

Deplorável
contingência, a que somos arrastados em consequência de uma instituição absurda
e desumana!

O
devasso, o libertino, o algoz, apresenta-se altivo e arrogante, tendo a seu
favor a lei, e a autoridade, o direito e a força, lança a garra sobre a presa,
que é objeto de sua cobiça ou de seu ódio, e pode frui-la ou esmagá-la a seu
talante, enquanto o homem de nobre coração, de impulsos generosos, inerme
perante a lei, aí fica suplantado, tolhido, manietado sem poder estender o
braço em socorro da inocente e nobre vítima, que deseja proteger. Assim, por
uma estranha aberração, vemos a lei armando o vício, e decepando os braços à
virtude.

Estava
pois Álvaro em presença de Leôncio como o condenado em presença do algoz. A mão
da fatalidade o socalcava com todo o seu peso esmagador, sem lhe deixar livre o
mínimo movimento.

Vinha
Leôncio ardendo em fúrias de raiva e de ciúme, e prevalecendo-se de sua
vantajosa posição, aproveitou a ocasião para vingar-se de seu rival, não com a
nobreza de cavalheiro, mas procurando humilhá-lo à força de impropérios.


Sei que há muito tempo, – disse Leôncio, continuando o diálogo que deixamos
interrompido no capítulo antecedente, – V. S.ª retêm essa escrava em seu poder
contra toda a justiça, iludindo as autoridades com falsas alegações, que nunca
poderá provar. Porém agora venho eu mesmo reclamá-la e burlar os seus planos, e
artifícios.


Artifícios não, senhor. Protegi e protejo francamente uma escrava contra as
violências de um senhor, que quer tornar-se seu algoz; eis aí tudo.


Ah!… agora é que sei que qualquer aí pode subtrair um escravo ao domínio de
seu senhor a pretexto de protegê-lo, e que cada qual tem o direito de velar
sobre o modo por que são tratados os escravos alheios.


V. S.a. está de disposição a escarnecer, e eu declaro-lhe que nenhuma vontade
tenho de escarnecer, nem de ser escarnecido. Confesso-lhe que desejo muito a
liberdade dessa escrava, tanto quanto desejo a minha felicidade, e estou
disposto a fazer todos os sacrifícios possíveis para consegui-la. Já lhe
ofereci dinheiro, e ainda ofereço. Dou-lhe o que pedir… dou-lhe uma fortuna
por essa escrava. Abra preço…


Não há dinheiro que a pague; nem todo o ouro do mundo, porque não quero
vendê-la.


Mas isso é um capricho bárbaro, uma perversidade…

-Seja
capricho da qualidade que V. S.ª quiser; porventura não posso ter eu os meus
caprichos, contanto que não ofenda direitos de ninguém?… porventura V. S.ª
não tem também o seu capricho de querê-la para si?… mas o seu capricho ofende
os meus direitos, e eis aí o que não posso tolerar.


Mas o meu capricho é nobre e benfazejo, e o seu é uma tira-nia, para não dizer
uma vilania. V. S.ª mancha a sua vida com uma nódoa indelével conservando na
escravidão essa mulher; cospe o desrespeito e a injúria sobre o túmulo de sua
santa mãe, que criou com tanta delicadeza, educou com tanto esmero essa
escrava, para torná-la digna da liberdade que pretendia dar-lhe, e não para
satisfazer aos caprichos de V. S.a. Ela por certo lá do céu, onde está, o
amaldiçoará, e o mundo inteiro a acompanhará na maldição ao homem que retém no
mais infamante cativeiro uma criatura cheia de virtudes, prendas e beleza.


Basta, senhor!.. agora fico também sabendo, que uma escrava, só pelo fato de
ser bonita e prendada, tem direitos à liberdade. Pique também V. S.ª sabendo,
que se minha mãe não criou essa rapariga para satisfazer aos meus caprichos,
muito menos para satisfazer aos de V. S.ª a quem nunca conheceu nesta vida.
Senhor Álvaro, se deseja ter alguma linda escrava para sua amásia procure
outra, compre-a, que a respeito desta, pode perder toda a esperança.


Senhor Leôncio, V. S.ª decerto esquece-se do lugar onde está, e da pessoa com
quem fala, e julga que se acha em sua fazenda falando aos seus feitores ou a
seus escravos. Advirto-lhe, para que mude de linguagem.


Basta, senhor; deixemo-nos de vás disputas, e nem eu vim aqui para ser
catequizado por V. S.ª. O que quero é a entrega da escrava e nada mais. Não me
obrigue a usar do meu direito levando-a à força.

Álvaro,
desvairado por tão grosseiras e ferinas provocações, perdeu de todo a prudência
e sangue-frio.

Entendeu
que para sair-se bem na terrível conjuntura em que se achava, só havia um
caminho, – matar o seu antagonista ou morrer-lhe às mãos, – e cedendo a essas
sugestões da cólera e do desespero, saltou da cadeira em que estava, agarrou
Leôncio pela gola e sacudindo-o com força:


Algoz! – bradou espumando de raiva, – ai tens a tua escrava! Mas antes de
levá-la, hás de responder pelos insultos que me tens dirigido, ouviste?… ou
acaso pensas que eu também sou teu escravo?..


Está louco, homem! – disse Leôncio amedrontado. – As leis do nosso país não
permitem o duelo.


Que me importam as leis!… para o homem de brio a honra é superior às leis, e
se não és um covarde, como penso…


Socorro, que querem assassinar-me, – bradou Leôncio desembaraçando-se das mãos
de Álvaro, e correndo para a porta.


Infame! – rugiu Álvaro, cruzando os braços e rangendo os dentes num sorrir de
cólera e desdém…

No
mesmo momento, atraídos pelo barulho, entravam na sala de um lado Isaura e
Miguel, do outro o oficial de justiça e os guardas.

Isaura
estava com o ouvido aguçado, e do interior da casa ouvira e compreendera tudo.

Viu
que tudo estava perdido, e correu a atalhar o desatino, que por amor dela
Álvaro ia cometer.


Aqui estou, senhor! – foram as únicas palavras que pronunciou apresentando-se
de braços cruzados diante de seu senhor.


Ei-los ai; são estes! – exclamou Leôncio indicando aos guardas Isaura e Miguel.
Prendam-os!.. prendam-os!…

Vai-te,
Isaura, vai-te, – murmurou Álvaro com voz trêmula e sumida, achegando-se da
cativa. – Não desanimes; eu não te abandonarei. Confia em Deus e em meu amor.

Uma
hora depois Álvaro recebia em casa a visita de Martinho. Vinha este mui ancho e
lampeiro dar conta de sua comissão, e sôfrego por embolsar a soma
convencionada.


Dez contos!… oh! – vinha ele pensando. – uma fortuna! Agora sim, posso eu
viver independente!… Adeus, surrados bancos de Academia!… adeus, livros
sebosos, que tanto tempo andei folheando à toa!… vou atirar-vos pela janela a
fora; não preciso mais de vós: meu futuro está feito. Em breve serei
capitalista, banqueiro, comendador, barão, e verão para quanto presto!…

E
à força de multiplicar cálculos de usura e agiotagem, já Martinho havia
centuplicado aquela soma em sua imaginação.


Meu caro senhor Álvaro, – veio logo dizendo sem mais preâmbulos, – está tudo
arranjado à medida de nossos desejos. Pode V. S.ª viver tranquilo em companhia
da gentil fugitiva, que daqui em diante ninguém mais o importunará.

De
feito o procedimento de V. S.ª nesta questão tem sido muito belo e digno de
elogios; é próprio de um coração grande e generoso como o de V. S.ª. Não se dá
maior desaforo! no cativeiro uma menina tão mimosa e tão prendada!… Agora
aqui está a carta, que escrevo ao lorpa do sultãozinho. Prego-lhe meia dúzia de
carapetões, que o hão de desorientar completamente.

Assim
falando, Martinho desdobrou a carta, e já começava a lê-la, quando Álvaro
impacientado o interrompeu.


Basta, senhor Martinho, – disse-lhe com mau humor; – o negócio está arranjado;
não preciso mais de seus serviços.


Arranjado!… como?…


A escrava está em poder de seu senhor.


De Leôncio!… impossível!


Entretanto, é a pura verdade; se quiser saber mais vá à poli-cia, e indague.


E os meus dez contos?…


Creio que não lhos devo mais.

Martinho
soltou um urro de desespero, e saiu da casa de Álvaro com tal precipitação, que
parecia ir rolando pelas escadas abaixo.

Descrever
o mísero estado em que ficou aquela pobre alma, é empresa em que não me meto;
os leitores que façam idéia.

O
cão faminto, iludido pela sombra, largou a carne que tinha entre os dentes, e
ficou sem uma nem outra.

 

 

XIX

 


Olha como arranjas isso, Rosa; esta rapariga é mesmo uma estouvada; não tem
jeito para nada. Bem mostras que não nasceste para a sala; o teu lugar é na
cozinha.


Ora vejam lá a figura de quem quer me dar regras!… quem te chamou aqui,
intrometido? O teu lugar também não é aqui, é lá na estrebaria. Vai lá governar
os teus cavalos, André, e não te intrometas no que não te importa.


Cala-te dai, toleirona; – replicou André mudando de lugar algumas cadeiras. – O
que sabes é só tagarelar. Não é aqui o lugar destas cadeiras… Olha como estão
estes jarros!… ainda nem alimpaste os espelhos!… forte desajeitada e
preguiçosa que és!… No tempo de Isaura andava tudo isto aqui que era um mimo;
fazia gosto entrar-se nesta sala. Agora, é isto. Está claro que não és para
estas coisas.


Essa agora é bem lembrada! – retorquiu Rosa, altamente despeitada. – Se tens
saudades do tempo de Isaura, vai lá tirá-la do quarto escuro do tronco, onde
ela está morando. Esse decerto ela não há de ter gosto para enfeitá-lo de
flores.


Cala a boca, Rosa; olha que tu também lá podes ir parar.


Eu não, que não sou fujona.


Por que não achas quem te carregue, se não fugirias até com o diabo. Coitada da
Isaura! uma rapariga tão boa e tão mimosa, tratada como uma negra da cozinha! e
não tens pena dela, Rosa?


Pena por que, agora?… quem mandou ela fazer das suas?


Pois olha, Rosa, eu estava pronto a aguentar a metade do castigo que ela está
sofrendo, mas na companhia dela, está entendido.


Isso pouco custa, André; é fazer o que ela fez. Vai, como ela, tomar ares em
Pernambuco, que infalivelmente vais para a companhia de Isaura.


Quem dera!… se soubesse que me prendiam com ela, isso é que era um fugir. Mas
o diabo é que a pobre Isaura agora vai deixar a nós todos para sempre. Que
falta não vai fazer nesta casa!…


Deixar como?


Você verá.


Foi vendida?…


Qual vendida!


Alheada?


Nem isso


Está forra?…


Que abelhuda!… Espera, Rosa; tem paciência um pouco, que hoje mesmo talvez
você venha a saber tudo.


Ora ponha-se com mistérios… então o que você sabe os outros não podem
saber?…


Não é mistério, Rosa; é desconfiança minha. Aqui em casa não tarda a haver
novidade grossa; vai escutando.


Ah! ah! – respondeu Rosa galhofando. – Você mesmo está com cara de novidade.


Psiu!… bico calado, Rosa!… ai vem nhonhô.

Pelo
diálogo acima o leitor bem vê, que nos achamos de novo na fazenda de Leôncio,
no município de Campos, e na mesma sala, em que no começo desta história
encontramos Isaura entoando sua canção favorita.

Cerca
de dois meses são decorridos depois que Leôncio fora ao Recife apreender sua
escrava. Leôncio e Malvina tinham-se reconciliado, e vindos da corte tinham
chegado à fazenda na véspera. Alguns escravos, entre os quais se acham Rosa e
André, estão asseando o soalho, arranjando e espanando os móveis daquele rico
salão, testemunha impassível dos mistérios da família, de tantas cenas ora
tocantes e enlevadoras, ora vergonhosas e sinistras, e que durante a ausência
de Malvina se conservara sempre fechado.

Qual
é, porém, a sorte de Isaura e de Miguel, desde que deixaram Pernambuco? que
destino deu Leôncio ou pretende dar àquela?… por que maneira se reconciliou
com sua mulher?

Eis
o que passamos a explicar ao leitor, antes de prosseguirmos nesta narrativa.

Leôncio,
tendo trazido Isaura para sua fazenda, a conservara na mais completa e rigorosa
reclusão. Não era isto só com o fim de castigá-la ou de cevar sua feroz
vingança sobre a infeliz cativa. Sabia quanto era ardente e capaz de extremos o
amor que o jovem pernambucano concebera por Isaura; tinha ouvido as últimas
palavras que Álvaro lhe dirigia – confia em Deus, e em meu amor; eu não te
abandonarei. – Era uma ameaça, e Álvaro, rico e audacioso como era, dispunha de
grandes meios para pô-la em execução, quer por alguma violência, quer por meio
de astúcias e insídias. Leôncio, portanto, não só encarcerava com todo o rigor
a sua escrava, como também armou todos os seus escravos, que daí em diante
distraídos quase completamente dos trabalhos da lavoura, viviam em alerta dia e
noite como soldados de guarnição a uma fortaleza.

Mas
a alma ardente e feroz do jovem fazendeiro não desistia nunca de seu louco
amor, e nem perdia a esperança de vencer a isenção de Isaura.

E
já não era só o amor ou a sensualidade que o arrastava; era um capricho
tirânico, um desejo feroz e satânico de vingar-se dela e do rival preferido.
Queria gozá-la, fosse embora por um só dia, e depois de profanada e poluída,
entregá-la desdenhosamente ao seu antagonista, dizendo-lhe: – Venha comprar a
sua amante; agora estou disposto a vendê-la, e barato.

Encetou
pois contra ela nova campanha de promessas, seduções e protestos, seguidos de
ameaças, rigores e tiranias. Leôncio só recuou diante da tortura e da violência
brutal, não porque lhe faltasse ferocidade para tanto, mas porque conhecendo a
têmpera heroica da virtude de Isaura, compreendeu que com tais meios só
conseguiria matá-la, e a morte de Isaura não satisfazia o seu sensualismo, e
nem tampouco a sua vingança. Portanto tratou de meditar novos planos, não só
para recalcar debaixo dos pés o que ele chamava o orgulho da escrava, como de
frustrar e escarnecer completamente as vistas generosas de Álvaro, tomando
assim de ambos a mais cabal vingança.

Além
de tudo, Leôncio via-se na absoluta necessidade de reconciliar-se com Malvina,
não que o pundonor, a moral, e muito me-nos a afeição conjugal a isso o
induzissem, mas por motivos de interesse, que em breve o leitor ficará sabendo.
Com esse fim pois, Leôncio foi à corte e procurou Malvina.

Além
de todas as más qualidades que possuía, a mentira, a calúnia, o embuste eram
armas que manejava com a habilidade do mais refinado hipócrita. Mostrou-se
envergonhado e arrependido do modo por que a havia tratado, e jurou apagar com o
seu futuro comportamento até a lembrança de seus passados desvarios. Confessou,
com uma sinceridade e candura de anjo, que por algum tempo se deixara enlevar
pelos atrativos de Isaura, mas que isso não passara de passageiro desvario, que
nenhuma impressão lhe deixara na alma.

Além
disso assacou mil aleives e calúnias por conta da pobre Isaura. Alegou que ela,
como refinada loureira que era, empregara os mais sutis e ardilosos artifícios
para seduzi-lo e provocá-lo, no intuito de obter a liberdade em troco de seus
favores. Inventou mil outras coisas, e por fim fez Malvina acreditar que Isaura
fugira de casa seduzida por um galã, que há muito tempo a requestava, sem que
eles o soubessem; que fora este quem fornecera ao pai dela os meios de
alforriá-la, e que, não o podendo conseguir, combinaram de mãos dadas e
efetuaram o plano de rapto; que chegando ao Recife, um moço que tanto tinha de
rico, como de extravagante e desmiolado, enamorando-se dela a tomara a seu
primeiro amante; que Isaura com seus artifícios, dando-se por uma senhora livre
o tinha enleado e iludido por tal forma, que o pobre moço estava a ponto de
casar-se com ela, e mesmo depois de saber que era cativa não queria largá-la, e
praticando mil escândalos e disparates estava disposto a tudo para alforriá-la.
Fora das mãos desse moço que ele a fora tomar no Recife.

Malvina,
moça ingênua e crédula, com um coração sempre propenso à ternura e ao perdão,
deu pleno crédito a tudo quanto aprouve a Leôncio inventar não só para
justificar suas faltas passadas, como para predispor o comportamento que dai em
diante pretendia seguir.

Na
qualidade de esposa ofendida irritara-se outrora contra Isaura, quando
surpreendera seu marido dirigindo-lhe falas amorosas; mas o seu rancor ia-se
amainando, e se desvaneceria de todo, se Leôncio não viesse com falsas e
aleivosas informações atribuir-lhe os mais torpes procedimentos. Malvina
começou a sentir por Isaura desde esse momento, não ódio, mas certo afastamento
e desprezo, mesclado de compaixão, tal qual sentiria por outra qualquer escrava
atrevida e mal comportada.

Era
quanto bastava a Leôncio para associá-la ao plano de castigo e vingança, que
projetava contra a desditosa escrava. Bem sabia que Malvina com a sua alma branda
e compassiva jamais consentiria em castigos cruéis; o que meditava, porém, nada
tinha de bárbaro na aparência, se bem que fosse o mais humilhante e doloroso
flagício imposto ao coração de uma mulher, que tinha consciência de sua beleza,
e da nobreza e elevação de seu espírito.


E o que pretendes fazer de Isaura? perguntou Malvina.


Dar-lhe um marido e carta de liberdade.


E já achaste esse marido?


Pois faltam maridos?… para achá-lo não precisei sair de casa.


Algum escravo, Leôncio?… oh!… isso não.


E que tinha isso, uma vez que eu também forrasse o marido? Era cré com cré, lé
com lé. Bem me lembrei do André, que bebe os ares por ela; mas por isso mesmo
não a quero dar àquele maroto. Tenho para ela peça muito melhor.


Quem, Leôncio?


Ora quem!… o Belchior.


O Belchior!… exclamou Malvina rindo-se muito. Estás caçoando; fala sério,
quem é?…


É o Belchior, senhora; falo sério.


Mas esperas acaso, que Isaura queira casar-se com aquele monstrengo?


Se não quiser, pior para ela; não lhe dou a liberdade, e há de passar a vida
enclausurada e em ferros.


Oh!… mas isso é demasiada crueldade, Leôncio. De que serve dar-lhe a
liberdade em tudo, se não lhe deixas a de escolher um marido?… Dá-lhe a
liberdade, Leôncio, e deixa ela casar-se com quem quiser.


Ela não se casará com ninguém: irá voando direitinho para Pernambuco, e lá
ficará muito lampeira nos braços de seu insolente ta-ful, escarnecendo de
mim…


E que te importa isso, Leôncio? – perguntou Malvina com certo ar desconfiado.


Que tenho!… – replicou Leôncio um pouco perturbado com a pergunta. – Ora que
tenho!… é o mesmo que perguntar-me se tenho brio nas faces. Se soubesses como
aquele papalvo provocou-me atirando-me insultos atrozes!… Como desafiou-me
com mil bravatas e ameaças, protestando que havia de arrancar Isaura ao meu
poder… Se não fosse por tua causa, e também por satisfazer os votos de minha
mãe, eu nunca daria a liberdade a essa escrava, embora nenhum serviço me
prestasse, e tivesse de tratá-la como uma princesa, só para quebrar a proa e
castigar a audácia e petulância desse impudente rufião.


Pois bem, Leôncio; mas eu entendo que Isaura mais facilmente se deixará queimar
viva, do que casar-se com Belchior.


Não te dê isso cuidado, minha querida; havemos de catequizá-la
convenientemente. Tenho cá forjado o meu plano, com o qual espero reduzi-la a
casar-se com ele de muito boa vontade.


Se ela consentir, não tenho motivo para me opor a esse arranjo.

Leôncio
de feito havia habilmente preparado o seu plano atroz. Tendo trazido do Recife
a Miguel debaixo de prisão, juntamente com Isaura, ao chegar em Campos fê-lo
encerrar na cadeia, e condenar a pagar todas as despesas e prejuízos que tivera
com a fuga de Isaura, as quais fizera orçar em uma soma exorbitante. Ficou,
portanto, o pobre homem exausto dos últimos recursos que lhe restavam, e ainda
por so-brecarga devendo uma soma enorme, que só longos anos de trabalho
poderiam pagar. Como Leôncio era rico, amigo dos ministros e tinha grande
influência no lugar, as autoridades locais restaram-se de boa mente a todas
estas perseguições.

Depois
que Leôncio, desanimado de poder vencer a obstinada relutância de Isaura, mudou
o seu plano de vingança, foi ele em pessoa procurar a Miguel.


Senhor Miguel, – disse-lhe em tom formalizado, – tenho comiseração do senhor e
de sua filha, apesar dos incômodos e prejuízos que me têm dado, e venho
propor-lhe um meio de acabarmos de uma vez para sempre com as desordens,
intrigas e transtornos com que sua filha tem perturbado minha casa e o sossego
de minha vida.


Estou pronto para qualquer arranjo, senhor Leóncio, – respondeu respeitosamente
Miguel, – uma vez que seja justo e honesto.


Nada mais honesto, nem mais justo. Quero casar sua filha com um homem de bem, e
dar-lhe a liberdade; porém para esse fim preciso muito de sua coadjuvação.


Pois diga em que lhe posso servir.


Sei que Isaura há de sentir alguma repugnância em casar-se com a pessoa que lhe
destino, em razão de tola e extravagante paixão, que parece ainda ter por
aquele infame peralvilho de Pernambuco, que meteu-lhe mil caraminholas na
cabeça, e encheu-a de ideias extravagantes e loucas esperanças.


Creio que ela não deve lembrar-se desse moço senão por gratidão…


Qual gratidão!… pensa vossemecê que ele está fazendo muito caso dela?…
tanto como do primeiro sapato que calçou. Aquilo foi um capricho de cabeça
estonteada, uma fantasia de fidalgote endinheirado, e a prova aqui está; leia
esta carta… O patife tem a sem-cerimônia de escrever-me, como se entre nós
nada houvesse, assim com ares de amigo velho, participando-me que se acha
casado!… que tal lhe parece esta?… que tenho eu com seu casamento!… Mas
isto ainda não é tudo; aproveitando a ocasião, pede-me com todo o desfaçamento
que em todo e qualquer tempo, que eu me resolva a dispor de Isaura, nunca o
faça sem participar-lhe, porque muito deseja tê-la para muca-ma de sua senhora!
até onde pode chegar o cinismo e a impudência!…


Com efeito, senhor!… isto da parte do senhor Álvaro é custoso de acreditar!


Pois capacite-se com seus próprios olhos; leia; não conhece esta letra?…

E
dizendo isto Leôncio apresentou a Miguel uma carta, cuja letra imitava
perfeitamente a de Álvaro.


A letra é dele; não resta dúvida, – disse Miguel pasmado do que acabava de ler.
– Há neste mundo infâmias que custa-se a compreender.


E também lições cruéis, que é preciso não desprezar, não é assim, senhor
Miguel?… Pois bem; guarde essa carta para mostrar à sua filha; é bom que ela
saiba de tudo para não contar mais com esse homem, e varrer do espírito as
fumaças que porventura ainda lhe toldam o juízo. Faça também vossemecê o que
estiver em seu possível a fim de predispor sua filha para esse casamento, que é
de muita vantagem, e eu não só lhe perdoarei tudo quanto me fica devendo, como
lhe restituo o que já me deu, para vossemecê abrir um negócio aqui em Campos e
viver tranquilamente o resto de seus dias, em companhia de sua filha e de seu
genro.


Mas quem é esse genro? V. S.ª me não disse ainda.


É verdade… esquecia-me. É o Belchior, o meu jardineiro; não conhece?…


Muito!… oh! senhor!… com que miserável figura quer casar minha filha!…
pobre Isaura!… duvido muito que ela queira.


Que importa a figura, se tem uma boa alma, e é honesto e trabalhador?…


Lá isso é verdade; o ponto é ela querer.


Estou certo que aconselhada e bem catequizada por vossemece há de se resolver.


Farei o que puder; mas tenho poucas esperanças.


E se não quiser, pior para ela e para vossemecê: o dito por não dito; fica tudo
como estava, – disse terminantemente Leôncio.

Miguel
não era homem de têmpera a lutar contra a adversidade. O cativeiro e reclusão
perene de sua filha, a miséria que se lhe antolhava acompanhada de mil
angústias, eram para ele fantasmas hediondos, cujo aspecto não podia encarar
sem sentir mortal pavor e abatimento. Não achou muito oneroso o preço pelo qual
o desumano senhor, livrando-o da miséria, concedia liberdade à sua filha, e
aceitou o convênio.

 

XX

 

Enquanto
Rosa e André espanejavam os móveis do salão, tagarelando alegremente, uma cena bem
triste e compungente se passava em um escuro aposento atinente às senzalas,
onde Isaura sentada sobre um cepo, com um dos alvos e mimosos artelhos preso
por uma corrente cravada à parede, há dois meses se achava encarcerada.

Miguel
ai tinha sido introduzido por ordem de Leôncio, para dar parte à filha do
projeto de seu senhor, e exortá-la a aceitar o partido que lhes propunha. Era
pungente e desolador o quadro que apresentavam aquelas duas míseras criaturas,
pálidas, extenuadas e abatidas pelo infortúnio, encerrados em uma estreita e
lôbrega espelunca. Ao se encontrarem depois de dois longos meses, mais
oprimidos e desgraçados que nunca, a primeira linguagem com que se saudaram não
foi mais do que um coro de lágrimas e soluços de indizível angústia, que
abraçados por largo tempo estiveram entornando no seio um do outro.


Sim, minha filha; é preciso que te resignes a esse sacrifício, que é
desgraçadamente o único recurso que nos deixam. É com esta condição que venho
abrir-te as portas desta triste prisão, em que há dois meses vives encerrada.
É, sem dúvida, um cruel sacrifício para teu coração; mas é sem comparação mais
suportável do que esse duro cativeiro, com que pretendem matar-te.


É verdade, meu pai; o meu carrasco dá-me a escolha entre dois jugos; mas eu
ainda não sei qual dos dois será mais odioso e insuportável. Eu sou linda,
dizem; fui educada como uma rica herdeira; inspiraram-me uma alta estima de mim
mesma com o sentimento do pudor e da dignidade da mulher; sou uma escrava, que
faz muita moça formosa morder-se de inveja; tenho dotes incomparáveis do corpo
e do espírito; e tudo isto para quê, meu Deus!?… para ser dada de mimo a um
mísero idiota!… Pode-se dar mais cruel e pungente escárnio?!…

E
uma risada convulsiva e sinistra desprendeu-se dos lábios descorados de Isaura,
e reboou pelo lúgubre aposento, como o estrídulo ulular do mocho entre os
sepulcros.


Não é tanto como se te afigura na imaginação abalada pelos sofrimentos. O tempo
pode muito, e com paciência e resignação hás de te acostumar a esse novo viver,
sem dúvida muito mais suave do que este inferno de martírios, e poderemos ainda
gozar dias se não felizes, ao menos mais tranquilos e serenos.


Para mim a tranquilidade não pode existir senão na sepultura, meu pai. Entre os
dois suplícios que me deixam escolher, eu vejo ainda alguma coisa, que me sorri
como uma idéia consoladora, um recurso extremo, que Deus reserva para os
desgraçados, cujos males são sem remédio.


É da resignação sem dúvida, que queres falar, não é, minha filha?… 


Ah! meu pai, quando a resignação não é possível, só a morte…


Cala-te, filha!… não digas blasfêmias e palavras loucas. Eu quero, eu
preciso, que tu vivas. Terás ânimo de deixar teu pai neste mundo sozinho, velho
e entregue à miséria e ao desamparo? Se me faltares, o que será de mim nas
tristes conjunturas em que me deixas?…


Perdoe-me, meu bom, meu querido pai; só em um caso extremo eu me lembraria de
morrer. Eu sei que devo viver para meu pai, e é isso que eu quero; mas para
isso será preciso que eu me case com um disforme?… oh! isto é escárnio e
opróbrio demais! Tenham-me debaixo do mais rigoroso cativeiro, ponham-me na
roça de enxada na mão, descalça e vestida de algodão, castiguem-me, tratem-me
enfim como a mais vil das escravas, mas por caridade poupem-me este ignominioso
sacrifício!…


Belchior não é tão disforme como te parece; e demais o tempo e o costume te
farão familiarizar com ele. Há muito tempo não o vês; com a idade ele vai-se
endireitando, que é ele ainda muito criança. Agora o desconhecerás; já não tem
aquele exterior tão grosseiro e desagradável, e tem tomado outras maneiras
menos toscas. Toma ânimo, minha filha; quando saíres deste triste calabouço, o
ar da liberdade te restituirá a alegria e a tranquilidade, e mesmo com o marido
que te dão poderás viver feliz…


Feliz! – exclamou Isaura com amargo sorriso: – não me fale em felicidade, meu
pai. Se ao menos eu tivesse o coração livre como outrora… se não amasse a
ninguém. Oh!… não era preciso que ele me amasse, não; bastava que me quisesse
para escrava, aquele anjo de bondade, que em vão empregou seus generosos
esforços para arrancar-me deste abismo. Quanto eu seria mais feliz do que sendo
mulher desse pobre homem, com quem me querem casar! Mas ai de mim! Devo eu
pensar mais nele? pode ele, nobre e rico cavalheiro, embarra-se ainda da pobre
e infeliz cativa!…


Sim, minha filha, não penses mais nesse homem; varre da tua idéia esse amor
tresloucado; sou eu quem te peço e te aconselho.


Por que, meu pai?… como poderei ser ingrata a esse moço?…


Mas não deves contar mais com ele, e muito menos com o seu amor.


Por que motivo? porventura se terá ele esquecido de mim?…


Tua humilde condição não permite que olhes com amor para tão alto personagem;
um abismo te separa dele. O amor que lhe inspiraste, não passou de um capricho
de momento, de uma fantasia de fidalgo. Bem me pesa dizer-te isto, Isaura; mas
é a pura verdade.


Ah! meu pai! que está dizendo!… se soubesse que mal me fazem essas terríveis
palavras!… deixe-me ao menos a consolação de acreditar que ele me amava, que
me ama ainda. Que interesse tinha ele em iludir uma pobre escrava?…


Eu bem quisera poupar-te ainda este desgosto; mas é preciso que saibas tudo.
Esse moço… ah! minha filha, prepara teu coração para mais um golpe bem cruel.


Que tem esse moço?… perguntou Isaura trêmula e agitada. Fale, meu pai; acaso
morreu?…


Não, minha filha, mas… está casado.

– Casado!… Álvaro
casado!…
oh!
não; não é possível!… quem lhe disse, meu pai?…


Ele mesmo, Isaura; lê esta carta.

Isaura
tomou a carta com mão trêmula e convulsa, e a percorreu com olhos desvairados.
Lida a carta, não articulou uma queixa, não soltou um soluço, não derramou uma
lágrima, e ela, pálida como um cadáver, os olhos estatelados, a boca
entreaberta, muda, imóvel, hirta, ali ficou por largo tempo na mesma posição;
dir-se-ia que fora petrificada como a mulher de Ló, ao encarar as chamas em que
ardia a cidade maldita. Enfim por um movimento rápido e convulso atirou-se ao
seio de seu pai, e inundou-o de uma torrente de lágrimas.

Este
pranto copioso aliviou-a; ergueu a cabeça, enxugou as lágrimas, e pareceu ter
recobrado a tranquilidade, mas uma tranquilidade gélida, sinistra, sepulcral.
Parecia que sua alma se tinha aniquilado sob a violência daquele golpe esmagador,
e que de Isaura só restava o fantasma.


Estou morta, meu pai!… não sou mais que um cadáver… façam de mim o que
quiserem…

Foram
estas as últimas palavras que com voz fúnebre e sumida proferiu naquele lôbrego
recinto.


Vamos, minha filha, disse Miguel beijando-a na fronte. Não te entregues assim
ao desalento; tenho esperança de que hás de viver e ser feliz.

Miguel,
espírito acanhado e rasteiro, coração bom e sensível, mas inteiramente estranho
às grandes paixões, não podia compreender todo o alcance do sacrifício que
impunha à sua filha. Encarando a felicidade mais pelo lado dos interesses da
vida positiva e material, não pelos gozos e exigências do coração, ousava
conceber sinceras esperanças de mais felizes e tranquilos dias para sua filha,
e não via que, sujeitando-a a semelhante opróbrio, aviltando-lhe a alma, ia
esmagar-lhe o coração. Queria que ela vivesse, e não via que aquele ignominioso
consórcio, depois de tantas e tão acerbas torturas por que passara, era o golpe
de compaixão, que, terminando-lhe a existência, vinha abreviar-lhe os
sofrimentos.

Malvina
achava-se no salão, e ali esperava o resultado da conferência que Miguel fora
ter com sua filha. Rosa e André, de braços cruzados junto à porta da entrada,
também ali se achavam às suas ordens.

Malvina
sentiu um doloroso aperto de coração ao ver assomar na porta o vulto de Isaura,
arrimada ao braço de Miguel, lívida e desfigurada como enferma em agonia, os
cabelos em desalinho, e com passos mal seguros penetrar, como um duende evocado
do sepulcro, naquele salão, onde não há muito tempo a vira tão radiante de
beleza e mocidade, naquele salão, que parecia ainda repetir os últimos acentos
de sua voz suave e melodiosa.

Mesmo
assim ainda era bela a mísera cativa. A magreza fazendo sobressaírem os
contornos e ângulos faciais, realçava a pureza ideal e a severa energia daquele
tipo antigo.

Os
grandes olhos pretos cobertos de luz baça e melancólica eram como cirios
funéreos sob a arcada sombria de uma capela tumular. Os cabelos entornados em
volta do colo, faziam ondular por eles leves sombras de maravilhoso efeito, como
festões de hera a se debruçarem pelo mármore vetusto de estátua empalidecida
pelo tempo. Naquela miseranda situação, Isaura oferecia ao escultor um formoso
modelo da Níobe antiga.


Aquela é Isaura!… oh!… meu Deus! coitada! – murmurou Malvina ao vê-la, e
foi-lhe mister enxugar duas lágrimas, que a seu pesar umedeceram-lhe as
pálpebras. Esteve a ponto de ir implorar clemência a seu esposo em favor da
pobrezinha, mas lembrou-se das perversas inclinações e mau comportamento, que
Leôncio aleivosamente atribuíra a Isaura, e assentou de revestir-se de toda a
impassibilidade que lhe fosse possível.


Então, Isaura, – disse Malvina com brandura, – já tomaste a tua resolução?…
estás decidida a casar com o marido que te queremos dar? Isaura por única
resposta abaixou a cabeça e fitou os olhos no chão.


Sim, senhora, – respondeu Miguel por ela – Isaura está resolvida a se conformar
com a vontade de V. S.a.


Faz muito bem. Não é possível que ela esteja a sofrer por mais tempo esse cruel
tratamento, em que não posso consentir enquanto estiver nesta casa. Não foi
para esse fim que sua defunta senhora criou-a com tanto mimo, e deu-lhe tão boa
educação. Isaura, apesar de tua descaída, quero-te bem ainda, e não tolerarei
mais semelhante escândalo. Vamos dar-te ao mesmo tempo a liberdade e um
excelente marido.


Excelente!… meu Deus! Que escárnio! – refletiu Isaura.


Belchior é muito bom moço, inofensivo, pacífico e trabalhador; creio que hás de
dar-te otimamente com ele. Demais para obter a liberdade nenhum sacrifício é
grande, não é assim, Isaura?


Sem dúvida, minha senhora; já que assim o quer, sujeito-me humildemente ao meu
destino. Arrancam-me da masmorra – (continuou Isaura em seu pensamento), – para
levarem-me ao suplício.


Muito bem, Isaura; mostras que és uma rapariga dócil e de juízo. André, vai
chamar aqui o senhor Belchior. Quero eu mesma ter o gosto de anunciar-lhe que
vai enfim realizar o seu sonho querido de tantos anos. Creio que o senhor
Miguel também não ficará mal satisfeito com o arranjo que damos a sua filha;
sempre é alguma coisa sair do cativeiro e casar-se com um homem branco e livre.
Antes assim do que fugir, e andar foragida por esse mundo. Isaura, para prova
de quanto desejo o teu bem, quero ser madrinha neste casamento, que vai pôr
termo a teus sofrimentos, e restabelecer nesta casa a paz e o contentamento,
que há muito tempo dela andavam arredados.

Ditas
estas palavras, Malvina abriu um cofre de joias, que estava sobre uma mesa, e
dele tirou um rico colar de ouro, que foi colocar no pescoço de Isaura.


Aceita isto, Isaura, – disse ela, – é o meu presente de noivado.


Agradecida, minha boa senhora, – disse Isaura, e acrescentou em seu coração: –
é a corda, que o carrasco vem lançar ao pescoço da vítima.

Neste
momento vem entrando Belchior acompanhado por André.


Eis-me aqui, senhora minha, – diz ele, – o que deseja deste seu menor criado?


Dar-lhe os parabéns, senhor Belchior, – respondeu Malvina.


Parabéns!… mas eu não sei por quê!…


Pois eu lhe digo; fique sabendo que Isaura vai ser livre, e… adivinhe o
resto.


E vai-se embora decerto… oh!… é uma desgraça!


Já vejo que não é bom adivinhador. Isaura está resolvida a casar-se com o
senhor.


Que me diz, patroa!… perdão, não posso acreditar. Vossemecê está zombando
comigo.


Digo-lhe a verdade; ai está ela, que não me deixará mentir. Apronte-se, senhor
Belchior, e quanto antes, que amanhã mesmo há de se fazer o casamento aqui
mesmo em casa.


Oh! senhora minha! divindade da Terra! – exclamou Belchior indo-se atirar aos
pés de Malvina e procurando beijá-los, – deixe-me beijar esses pés…


Levante-se daí, senhor Belchior; não é a mim, é a Isaura que deve agradecer.

Belchior
levanta-se e corre a prostrar-se aos pés de Isaura.


Oh! princesa de meu coração! – exclamou ele atracando-se ás pernas da pobre
escrava, que fraca como estava, quase foi à terra com a força daquela furiosa e
entusiástica atracação. Era para fazer rebentar de riso, a quem não soubesse
quanto havia de trágico e doloroso no fundo daquela ímpia e ignóbil farsa.


Isaura!… não olhas para mim? aqui tens a teus pés este teu menor cativo,
Belchior!… olha para ele, para este teu adorador, que hoje é mais do que um
príncipe.., dá cá essa mãozinha, deixa-me comê-la de beijos…


Meu Deus! que farsa hedionda obrigam-me a representar! – murmurou Isaura
consigo, e voltando a face abandonou a mão a Belchior, que colando a ela a boca
no transporte do entusiasmo, desatou a chorar como uma criança.


Olha que palerma! – disse André para Rosa, que observava de parte aquela cena
tragicômica. – E venham cá dizer-me que não é o mel para a boca do asno!


Eu antes queria que me casassem com um jacaré.


Este meu sinhô moço tem ideias do diabo! quem havia de lembrar-se de casar uma
sereia com um boto?


Invejoso!… você é que queria ser o boto, por isso está aí a torcer o nariz.
Toma!… bem feito!… agora o que faltava era que o nhonhô te desse de dote à
Isaura.


Isso queria eu!… aposto que Isaura não vai casar de livre vontade! e
depois… nós cá nos arranjaríamos… havia de enfiar o boto pelo fundo de uma
agulha.


Sai daí, tolo!… pensa que Isaura faz caso de você?…


Não te arrebites, minha Rosa; já agora não há remédio senão contentar-me
contigo, que em fim de contas também és bem bonitinha, e… tudo que cai no
jequi, é peixe.


É baixo!… aguente a sua tábua, e vá consolar-se com quem quiser, menos
comigo.

 

XXI

 


Então, Leôncio, – dizia Malvina a seu esposo no outro dia pela manhã, – deste
as providências necessárias para arranjar-se esse negocio hoje mesmo?


Creio que é a centésima vez que me fazes essa pergunta, Malvina, – respondeu
Leôncio sorrindo-se. – Todavia pela centésima vez te responderei também, que as
providências que estão da minha parte, já foram todas dadas. Ontem mesmo mandei
um próprio a Campos, e não tardarão a chegar por aí o tabelião para passar
escritura de liberdade a Isaura com toda a solenidade, e também o padre para
celebrar o casamento. Bem vês que de nada me esqueci. Tratem de estar todos
prontos; e tu, Malvina, manda já preparar a capela para se efetuar esse
casamento, que pareces desejar com mais ardor, – acrescentou sorrindo, – do que
desejaste o teu próprio.

Malvina
saiu do salão, deixando Leôncio em companhia de um terceiro personagem, que
também ali se achava, por nome Jorge, a quem o leitor ainda não conhece.
Dizendo que era um parasita, ainda não temos dito tudo.

Este
gênero contém muitas variedades, e mesmo cada individuo tem sua cor e feição
particular. Era um homem bem apessoado, espirituoso serviçal, cheio de cortesia
e amabilidade, condições indispensáveis a um bom parasita. Jorge não vivia da
seiva e da sombra de uma só árvore; saltava de uma a outra, e assim peregrinava
por longas distâncias, o que era da sua parte um excelente cálculo, pois proporcionava-lhe
uma vida mais variada e recreativa, ao mesmo tempo que tornava sua companhia
menos incômoda e fatigante aos seus numerosos amigos. Conhecia e entretinha
relações de amizade com todos os fazendeiros das margens do Paraíba desde São
João da Barra até São Fidélis. A crer no que dizia, andava sempre cheio de
afazeres e dando andamento a mil negócios importantes, mas estava sempre pronto
a prescindir deles a convite de qualquer desses amigos para passar uns oito ou
quinze dias em sua companhia.

Na
solidão em que Leôncio
se achou depois de seu rompimento com Malvina, Jorge foi para ele um excelente
recurso quando se achava na fazenda. Servia-lhe de companheiro não só à mesa,
como ao jogo e à caça: entretinha-o a contar-lhe anedotas divertidas e
escandalosas, aplaudia-lhe os desvarios e extravagâncias, e lisonjeava-lhe as
ruins paixões, enquanto Leôncio, que o acreditava realmente um amigo, fazia
dele o seu confidente, e comunicava-lhe os seus mais íntimos pensamentos, os
seus planos de perversidade, e os mais secretos negócios de família.

Para
melhor entrarmos no mistério dos planos atrozes e ignóbeis, das satânicas
maquinações de Leôncio, ouçamos a conversação íntima, que vão tratar estes dois
entes dignos um do outro.


Até que por fim, Jorge, achei um meio engenhoso e seguro de aplanar todas as
dificuldades. Desta maneira espero que tudo se vai arranjar ás mil maravilhas.


Seguramente, e já de antemão te dou os parabéns pelos teus triunfos, e
aplaudo-te pela feliz combinação de teus planos.


Mas escuta ainda para melhor poderes compreendê-los. Com este casamento ficam
satisfeitos os desejos de minha mulher, sem que Isaura escape de todo ao meu
poder. Como o pai dela está debaixo de minha restrita dependência, eu saberei
reter junto de mim esse estúpido jardineiro com quem caso-a, e depois… tu bem
sabes, o tempo e a perseverança amansam as feras mais bravias. Entretanto a
atrevida escrava receberá o castigo que merece sua inqualificável rebeldia.
Era-me absolutamente necessário dar este passo, porque minha mulher recusa-se
obstinadamente a reconciliar-se comigo, enquanto eu conservar Isaura cativa em
meu poder, capricho de mulher, com que bem pouco me importaria, se não fosse…
– isto aqui entre nós, meu amigo; confio em tua discrição.


Podes falar sem susto, que meu coração é como um túmulo para o segredo da
amizade.


Bem; dizia-te eu, que bem pouco me importaria com os arrufos e caprichos de minha
mulher, se não fosse o completo desarranjo em que desgraçadamente vão os meus
negócios. Em consequência de uma infinidade de circunstâncias, que é escusado
agora explicar-te, a minha fortuna está ameaçada de levar um baque horrendo, do
qual não sei se me será possível levantá-la sem auxilio estranho. Ora meu sogro
é o único que com o auxilio de seu dinheiro ou de seu crédito pode ainda
escorar o edifício de minha fortuna prestes a desabar.


Em verdade procedes com tino e prudência consumada. Oh! teu sogro!… conheço-o
muito; é uma fortuna sólida, e uma das casas mais fortes do Rio de Janeiro; teu
sogro não te deixará ficar mal. Quer extremosamente à filha, e não quererá ver
arruinado o marido dela.


Disso estou eu certo. Mas isto ainda não é tudo; escuta ainda, Jorge. O meu
rival, esse tal senhor Álvaro, que tanto cobiçou a minha Isaura para sua
amizade, que não teve pejo de seduzi-la, acoitá-la e protegê-la pública e
escandalosamente no Recife, esse grotesco campeão da liberdade das escravas
alheias, que protestou me disputar Isaura a todo o risco, ficará de uma vez
para sempre desenganado de sua estulta pretensão. Vê pois, Jorge, quantos
interesses e vantagens se conciliam no simples fato desse casamento.


Plano admirável na verdade, Leôncio! – exclamou Jorge enfaticamente. – Tens um
tino superior, e uma inteligência sutil e fértil em recursos!… se te desses á
política, asseguro-te que farias um papel eminente; serias um estadista
consumado. Esse Dom Quixote de nova espécie, amparo da liberdade das escravas
alheias, quando são bonitas, não achará senão moinhos de vento a combater.
Muito havemos de nos rir de seu desapontamento, se lhe der na cabeça continuar
sua burlesca aventura.


Creio que nessa não cairá ele; mas se por cá aparecesse, muito tínhamos que
debicá-lo.


Meu senhor, – disse André entrando na sala, – aí estão na porta uns
cavalheiros, que pedem licença para apear e entrar.


Ah! já sei, – disse Leôncio, – são eles, são as pessoas que mandei chamar; o
vigário, o tabelião e mais outros… bom! já não nos falta tudo. Vieram mais
depressa do que eu esperava. Manda-os apear e entrar, André.

André
sai, Leôncio toca uma campainha, e aparece Rosa.


Rosa, diz-lhe ele, – vai já chamar sinhá Malvina e Isaura, e o senhor Miguel e
Belchior. Já devem estar prontos; precisa-se aqui já da presença de todos eles.


Estou aflito por ver o fim a esta farsa, – disse Leôncio a seu amigo, – mas
quero que ela se represente com certo aparato e solenidade, para inculcar que
tenho grande prazer em satisfazer o capricho de Malvina e melhor iludir a sua
credulidade; mas – fique isto aqui entre nós, – este casamento não passa de uma
burla. Tenho toda a certeza de que Isaura despreza do fundo d’alma esse
miserável idiota, que só em nome será seu marido. Entretanto ficarei me
aguardando para melhores tempos, e espero que o meu plano surtirá o desejado
efeito.


Cá por mim não tenho a menor dúvida a respeito do resultado de um plano tão
maravilhosamente combinado.

Mal
Jorge acabava de pronunciar estas palavras, apareceu à porta do salão um belo e
jovem cavalheiro, em elegantes trajos de viagem, acompanhado de mais três ou
quatro pessoas. Lêoncio, que já ia pressuroso recebê-los e cumprimentá-los,
estacou de repente.

-Oh!…
não são quem eu esperava!… murmurou consigo. – Se me não engano… é
Álvaro!…


Senhor Leôncio! – disse o cavalheiro cumprimentando-o.


Senhor Álvaro, – respondeu Leôncio, – pois creio que é a esse senhor, que tenho
a honra de receber em minha casa.


É ele mesmo, senhor; um seu criado.


Ah! muito estimo… não o esperava… queira sentar-se… quis então vir dar um
passeio cá pelas nossas províncias do Sul?…

Estas
e outras frases banais dizia Leôncio, procurando refazer-se da perturbação em
que o lançara a súbita e inesperada aparição de Álvaro naquele momento crítico
e solene.

No
mesmo momento entravam no salão por uma porta interior Malvina, Isaura, Miguel
e Belchior. Vinham já preparados com os competentes trajos para a cerimônia do
casamento.


Meu Deus!… o que estou vendo!… – murmurou Isaura, sacudindo vivamente o
braço de Miguel: – estarei enganada?… não… é ele..


É ele mesmo… Deus!… como é possível?


Oh! – exclamou Isaura; e nesta simples interjeição, que exalou como um suspiro,
expressava o desafogo de um pego de angustias, que lhe pesava sobre o coração.
Quem de perto a olhasse com atenção veria um leve rubor naquele rosto, que a
dor e os sofrimentos pareciam ter condenado a uma eterna e marmórea palidez;
era a aurora da esperança, cujo primeiro e tímido arrebol assomava nas faces
daquela, cuja existência naquele momento ia sepultar-se nas sombras de um
lúgubre ocaso.


Não esperava pela honra de recebê-lo hoje nesta sua casa, – continuou Leôncio
recobrando gradualmente o seu sangue-frio e seu ar arrogante. – Entretanto há
de permitir que me felicite a mim e ao senhor por tão oportuna visita. A
chegada de V. S.a. hoje nesta casa parece um acontecimento auspicioso, e até
providencial.


Sim?!… muito folgo com isso.. mas não terá V. S.a. a bondade de dizer por
quê?…


Com muito gosto. Saiba que aquela sua protegida, aquela escrava, por quem fez
tantos extremos em Pernambuco, vai ser hoje mesmo libertada e casada com um
homem de bem. Chegou V. S.a. mesmo a ponto de presenciar com os seus próprios
olhos a realização dos filantrópicos desejos, que tinha a respeito da dita
escrava, e eu da minha parte muito folgarei se V. S.a. quiser assistir a esse
ato, que ainda mais solene se tornará com a sua presença.


E quem a liberta? – perguntou Álvaro sorrindo-se sardonicamente.


Quem mais senão eu, que sou seu legitimo senhor? – respondeu Leôncio com altiva
seguridade.


Pois declaro-lhe, que o não pode fazer, senhor: – disse Álvaro com firmeza. –
Essa escrava não lhe pertence mais.


Não me pertence!… – bradou Leôncio levantando-se de um salto, – o senhor
delira ou está escarnecendo?…


Nem uma, nem outra coisa, – respondeu Álvaro com toda a calma: – repito-lhe;
essa escrava não lhe pertence mais.


E quem se atreve a esbulhar-me do direito que tenho sobre ela?


Os seus credores, senhor, – replicou Álvaro, sempre com a mesma firmeza e
sangue-frio. – Esta fazenda com todos os escravos, esta casa com seus ricos
móveis, e sua baixela, nada disto lhe pertence mais; de hoje em diante o senhor
não pode dispor aqui nem do mais insignificante objeto. Veja, – continuou
mostrando-lhe um maço de papéis, – aqui tenho em minhas mãos toda a sua fortuna.
O seu passivo excede extraordinariamente a todos os seus haveres; sua ruína é
completa e irremediável, e a execução de todos os seus bens vai lhe ser
imediatamente intimada.

A
um aceno de Álvaro, o escrivão que o acompanhava apresentou a Leôncio o mandado
de sequestro e execução de seus bens. Leôncio, arrebatando o papel com mão
trêmula, passeou rapidamente por ele os olhos faiscantes de cólera.


Pois quê! – exclamou ele, – é assim violenta e atropeladamente que se fazem
estas coisas! porventura não posso obter alguma moratória, e salvar minha honra
e meus bens por outro qualquer meio?…


Seus credores já usaram para com o senhor de todas as condescendências e
contemporizações possíveis. Saiba ainda demais, que hoje sou eu o principal, se
não o único credor seu; pertencem-me, e estão em minhas mãos quase todos os
seus títulos de dívida, e eu não estou de ânimo a admitir transações nem
protelações de natureza alguma. Dar seus bens a inventário eis o que lhe cumpre
fazer; toda e qualquer evasiva que tentar será inútil.


Maldição! – bradou Leôncio, batendo com o pé no chão e arrancando os cabelos.


Meu Deus!… meu Deus!… que desgraça!… e que… vergonha!… exclamou
Malvina, soluçando.

 

XXII

 

Deixemos
por um momento suspensa a cena do capítulo antecedente, e interrompido o
diálogo entre os dois mancebos. Eles ai ficam em face um do outro, como o leão
altivo e magnânimo tendo subjugado o tigre daninho e traiçoeiro, que rosna em
vão debaixo das possantes garras de seu antagonista. É-nos preciso explicar por
que série de circunstâncias Álvaro veio aparecer em casa do senhor de Isaura, a
ponto de vir burlar os seus planos atrozes, mesmo no momento em que iam ter
final execução.

Depois
que Isaura lhe fora arrebatada, Álvaro caiu na mais acerba prostração de ânimo.

Ferido
em seu orgulho, esbulhado do objeto de seu amor, escarnecido e vilipendiado
pela arrogância de um insolente escravocrata, entregou-se ao mais sombrio
desespero. Mal soube o seu revés, o Dr. Geraldo correu em socorro daquela nobre
alma tão cruelmente golpeada pelo destino. Graças aos cuidados e conselhos
daquele tão solícito quão inteligente amigo, a dor de Álvaro foi-se tornando
mais calma e resignada. Por suas exortações Álvaro chegou mesmo a convencer-se
que o melhor partido que lhe ficava a tomar nas difíceis conjunturas em que se
achava, era procurar esquecer-se de Isaura.


Todo o esforço que fizeres, – dizia-lhe o amigo, – em favor da liberdade de
Isaura, será rematada loucura, que não terá outro resultado senão envolver-te
em novas dificuldades, cobrindo-te de ridículo e de humilhação. Já passaste por
duas decepções bem cruéis, a do baile, e esta última ainda mais triste e
humilhante. Quase te fizeste réu de polícia, querendo disputar uma escrava a
seu legítimo senhor. Pois bem; as seguintes serão ainda piores, eu te asseguro,
e te farão ir rolando de abismo em abismo até tua completa perdição.

Atendendo
a estas e mil outras considerações de Geraldo, Alvaro procurou firmar o
espírito e a vontade no propósito de renunciar ao seu amor, e a todas as suas
pretensões filantrópicas sobre Isaura. Foi debalde. Depois de um mês de luta
consigo mesmo, de sempre frustradas veleidades de revolta contra os impulsos do
coração, Álvaro sentiu-se fraco, e compreendeu que semelhante tentativa era uma
luta insensata contra a força onipotente do destino. Embalde procurou, já nas
graves ocupações do espírito, já nas distrações frívolas da sociedade, um meio
de apagar da lembrança a imagem da gentil cativa. Ela lhe estava sempre
presente em todos os sonhos d’alma, ora resplendente de beleza e graça, donosa
e sedutora como na noite do baile, ora pálida e abatida, vergada ao peso de seu
infortúnio, com os pulsos algemados, cravando nele os olhos suplicantes como
que a dizer-lhe:


Vem, não me abandones; só tu podes quebrar estes ferros que me oprimem.

O
espírito de Álvaro firmou-se por fim na íntima e inabalável convicção de que o
céu, pondo em contato o seu destino com o daquela encantadora e infeliz
escrava, tivera um desígnio providencial, e o escolhera para instrumento da
nobre e generosa missão de arrebatá-la à escravidão, e dar-lhe na sociedade o
elevado lugar que por sua beleza, virtudes e talentos, lhe competia.

Resolveu-se
portanto, fosse qual fosse o resultado, a prosseguir nessa generosa tentativa,
com a cegueira do fanatismo, senão com o arrastamento de uma inspiração
providencial.

Álvaro
partiu para o Rio de Janeiro. Ia ao acaso, sem plano nenhum formado, sem bem
saber o que devia fazer para chegar aos seus fins; mas tinha como uma intuição
vaga de que o céu lhe depararia ocasião e meios de levar a cabo a sua empresa.
O que queria em primeiro lugar era colocar-se nas vizinhanças de Leôncio, a fim
de poder colher informações e investigar se porventura algum recurso haveria
para obrigar o senhor de Isaura a manumiti-la.

Desembarcou
na corte com o fim de dirigir-se brevemente para Campos. Antes porém de partir
para seu destino, procurou colher entre as pessoas do comércio algumas
informações a respeito de Leôncio.


Oh! conheço muito esse sujeito, – disse logo o primeiro negociante, a quem
Álvaro se dirigiu. – Esse moço está falido, e em completa ruína. Se V. S.ª
também é credor dele, pode pôr as suas barbas de molho, porque as dos vizinhos
estão a arder. Essa casa bem liquida, mal dará para um rateio, em que toque
cinquenta por cento a cada credor.

Esta
revelação foi para Álvaro como um relâmpago que se abre aos olhos do viandante
extraviado em noite tormentosa, mostrando-lhe de repente e bem ao perto o
albergue hospitaleiro que demanda.


E V. S.ª porventura é também credor desse fazendeiro? – perguntou Álvaro.


Infelizmente, e um dos principais…


E a quanto montará a fortuna do tal Leôncio?


A menos de nada, presentemente, pois como já lhe disse, o seu passivo excede
talvez em mais do dobro a todos os seus bens.


Mas esse passivo mesmo, em que soma é calculado pouco mais ou menos?


Calcula-se aproximadamente em quatrocentos e tantos a quinhentos contos,
enquanto que a fazenda de Campos, com escravos e todos os mais acessórios, não
excederá talvez a duzentos. Já temos tido com esse fazendeiro todas as atenções
possíveis, e lhe temos dado mais moratórias do que a lei concede; não somos
obrigados a mais, e agora estamos resolvidos a cair-lhe em cima com a execução.


E quais são os outros credores? V. S.ª quererá indicar-mos?


E por que não? – respondeu o negociante, e passou a indicar a Álvaro os nomes e
moradas dos demais credores.

De
feito, a casa de Leôncio, já desde os últimos anos da vida de seu pai, ia em
contínuo regresso e desmantelamento. O velho comendador, entregando-se no
último quartel da vida a excessos e devassidões, que nem na mocidade são
desculpáveis, vivendo quase sempre na corte, e deixando quase em completo
abandono a administração da fazenda, havia já esbanjado não pequena porção de
sua fortuna. Por efeito da má administração, não só as safras começaram a
escassear consideravelmente, como também o número de escravos foi-se reduzindo
pela morte e pelas frequentes fugas, sem que tanto o comendador como seu filho
deixassem de substituí-los por outros novos, que iam comprando a prazo,
tornando cada vez mais pesado o ônus das dívidas.

Depois
da morte do comendador, as coisas foram de mal a pior. Leôncio, com a educação
e a índole que lhe conhecemos, era o homem menos próprio possível para dirigir
e explorar um grande estabelecimento agrícola.

Seus
desvarios e extravagâncias, e por último sua nefasta e insensata paixão por
Isaura, fizeram-no perder de todo a cabeça, arrojando-se em um plano inclinado
de despesas ruinosas, sem cálculo nem previsão alguma. Com os enormes
dispêndios que teve de fazer em consequência da fuga de Isaura, mandando
procurá-la por todos os cantos do império, acabou de cavar o abismo de sua
ruína. Em pouco tempo o jovem fazendeiro estava de todo insolvável, sem um real
em caixa, e com uma multidão de letras protestadas na carteira de seus
credores. Quando estes acordaram e se lembraram de lhe abrir a falência e
executar os seus bens, compreenderam que mal poderiam embolsar-se da metade do
que lhes era devido, e, portanto, trataram com sofreguidão de promover os meios
executivos, antes que o mal fosse a mais.

Depois
de conferenciar com os credores de Leôncio, propôs-lhes a compra de todos os
seus créditos pela metade do seu valor. Para evitar qualquer odiosidade, que
semelhante procedimento pudesse acarretar sobre sua pessoa, declarou-lhes que
nenhuma intenção tinha de vexar nem oprimir o infeliz fazendeiro, que pelo
contrário era seu intuito protegê-lo e livrá-lo do vexame de uma rigorosa
execução judicial, e deixá-lo ao abrigo da miséria. E realmente, a despeito da
aversão e desprezo que Leôncio lhe merecia, Álvaro não pretendia levar ao
último extremo os meios de vingança, que por um acaso as circunstâncias tinham
posto em suas mãos. Era ele dez vezes mais rico do que o seu adversário, e de
muito bom grado, se não houvesse outro recurso, por um contrato amigável daria
uma soma igual a toda a fortuna deste, pela liberdade de Isaura.

Agora,
que o destino vinha pôr em suas mãos toda a fortuna desse adversário
caprichoso, arrogante e desalmado, Álvaro, sempre generoso, nem por isso
desejava vê-lo reduzido à miséria.

Os
credores não hesitaram um momento em aceitar a proposta. Com razão preferiram
saldar suas contas por um modo fácil e expedito, em dinheiro contado, recebendo
a metade, do que sujeitando-se às despesas, delongas e dificuldades de uma
execução em escravos e bens de raiz, quando nenhuma probabilidade havia de que
no rateio pudessem obter mais de metade.

Senhor
de todos os títulos de divida de Leôncio, isto é, de toda a sua fortuna, Álvaro
partiu para Campos a fim de promover por sua conta a execução dos bens do
mesmo, e munido de todos os papéis e documentos, acompanhado de um escrivão e
dois oficiais de justiça, apresentou-se em pessoa em casa de Leôncio para
intimar-lhe em pessoa a sentença de sua perdição.


Oh! maldição! – exclamara Leôncio, arrancando os cabelos em desespero, depois
que ouvira dos lábios de Álvaro aquele arresto esmagador. Atordoado e quase
louco com a violência do golpe, ia sair correndo pela porta a fora.


Espere ainda, senhor, – disse Álvaro detendo-o pelo braço. – Agora quanto à
escrava de que há pouco se falava, o que pretendia fazer dela?


Libertá-la, já lhe disse, – respondeu Leôncio com rudeza.


E mais alguma coisa; creio que também me disse que ia casá-la; e, desculpe-me a
pergunta, haveria para isso consentimento da parte dela?


Oh! não! não!… eu era arrastada, senhor! – exclamou Isaura resolutamente.


É verdade, senhor Álvaro, – atalhou Miguel, ela ia casar-se, por assim dizer,
forçada. O senhor Leôncio, como condição da liberdade dela obrigava-a a
casar-se com aquele pobre homem que V. S.ª ali vê.


Com aquele homem?! – exclamou Álvaro cheio de pasmo e indignação, olhando para
o homúnculo que Miguel lhe indicava com o dedo.


Sim, senhor, – continuou Miguel, – e se ela não se sujeitasse a esse casamento,
teria de passar o resto da vida presa em um quarto escuro, incomunicável, com o
pé enfiado em uma grossa corrente, como tem vivido desde que veio do Recife até
o dia de hoje…


Verdugo! – bradou Álvaro, não podendo mais sopear sua indignação. – A mão da justiça
divina pesa enfim sobre ti para punir tuas monstruosas atrocidades!


Ó que vergonha!.., que opróbrio, meu Deus! – exclamou Malvina, debruçando-se a
uma mesa, e escondendo o rosto entre as mãos.


Pobre Isaura! – disse Álvaro com voz comovida, estendendo os braços à cativa. –
Chega-te a mim… Eu protestei no fundo de minha alma e por minha honra
desafrontar-te do jugo opressor e aviltante, que te esmagava, porque via em ti
a pureza de um anjo, e a nobre e altiva resignação da mártir. Foi uma missão
santa, que julgo ter recebido do céu, e que hoje vejo coroada do mais feliz e
completo resultado. Deus enfim, por minhas mãos vinga a inocência e a virtude
oprimida, e esmaga o algoz.


Deixe-se de blasonar, senhor! – gritou Leôncio agitando-se em gesticulações de
furor: – isto não passa de uma infâmia, uma traição, e ladroeira…


Isaura! – continuou Álvaro com voz sempre firme e grave: – se esse algoz ainda
há pouco tinha em suas mãos a tua liberdade e a tua vida, e não tas cedia senão
com a condição de desposares um ente disforme e desprezível, agora tens nas
tuas a sua propriedade; sim, que as tenho nas minhas, e as passo para as tuas.
Isaura, tu és hoje a senhora, e ele o escravo; se não quiser mendigar o pão, há
de recorrer à nossa generosidade.


Senhor! – exclamou Isaura correndo a lançar-se aos pés de Álvaro; – oh! quanto
sois bom e generoso para com esta infeliz escrava!… mas em nome dessa mesma
generosidade, de joelhos eu vos peço, perdão! perdão para eles…


Levanta-te, mulher generosa e sublime! – disse Álvaro estendo-lhe as mãos para
levantar-se. – Levanta-te, Isaura; não é a meus pés, mas sim em meus braços,
aqui bem perto do meu coração, que te deves lançar, pois a despeito de todos os
preconceitos do mundo, eu me julgo o mais feliz dos mortais em poder
oferecer-te a mão de esposo!…


Senhor, – bradou Leôncio com os lábios espumantes e os olhos desvairados, – aí
tendes tudo quanto possuo; pode saciar sua vingança, mas eu lhe juro, nunca há
de ter o prazer de ver-me implorar a sua generosidade.

E
dizendo isto entrou arrebatadamente em uma alcova contígua à sala.


Leôncio! Leôncio!… onde vais! – exclamou Malvina precipitando-se para ele;
mal, porém, havia ela chegado à porta, ouviu-se a explosão atroadora de um
tiro.


Ai!… – gritou Malvina, e caiu redondamente em terra.

Leôncio
tinha-se rebentado o crânio com um tiro de pistola.

 

***

 

 

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