Ler online: AMOR DE PERDIÇÃO, Camilo Castelo Branco

 

AMOR
DE PERDIÇÃO

(memórias duma família)

 

Camilo Castelo Branco

 

 

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Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
(Mártires, Lisboa, 16 de Março de 1825 — Vila Nova de Famalicão, São Miguel de
Seide, 1 de Junho de 1890) 
AMOR DE PERDIÇÃO (memórias duma família) Camilo
Castelo Branco. 
1ª edição  1862,  Portugal. – Pará de Minas, MG, Brasil : VirtualBooks  Editora. Capa: foto  Alexandr Ivanov ISBN: 9781521810262 869 – Literatura portuguesa. Romance. Brasil.
Título. CDD- 869

 

AO

ILMO. E EXMO. SR.

ANTÔNIO
MARIA DE FONTES PEREIRA DE MELO

DEDICA O AUTOR

Ilmo.
e Exmo. Sr.

 Há
de pensar muita gente que V. Exa. não dá valor algum a este livro, que a minha
gratidão lhe dedica. porque muita gente está persuadida que ministros do Estado
não lêem novelas. É um colega de V. Exa. discorrer no parlamento acerca de
caminhos de ferro – Com tanto engenho o fazia, de tantas flores matizara aquela
matéria. que me deleitou ouvi-lo. Na noite desse dia, encontrei o colega de V.
Exa. a ler “Fanny”, aquela “Fanny” que sabia tanto de
caminhos de ferro como eu.

Que
V. Exa. tem romances na sua biblioteca, é convicção minha. Que lá tem alguns,
que não leu, porque o tempo lhe falece e outros porque não merecem tempo,
também o creio. Dê V. Exa., no lote dos segundos, um lugar a este livro.
e terá assim V. Exa.
significado que o recebe e aprecia, por levar em si o nome do mais agradecido e
respeitador criado de V. Exa..

Na
cadeia da Relação do Porto, 
aos 24 de setembro de 1861

Camilo
Castelo Branco

 

INTRODUÇÃO

 

Folheando
os livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da Relação do
Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o
seguinte:

Simão Antônio Botelho, que assim disse
chamar-se, ser solteiro,
e estudante na Universidade de
Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão na
cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho
e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara
redonda, olhos castanhos, cabelo
e barba preta, vestido com jaqueta de
baetão azul, colete de fustão pintado e calça de pano pedrês. E fiz este
assento, que assinei – Filipe Moreira Dias.

A margem esquerda deste assento está escrito:

Foi para a Índia em 17
de março de 1807.

Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade
do leitor, se cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há de fazer
dó.

Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da
manhã da vida! As louçanias do coração que ainda não sonha em frutos, e todo se
embalsama no perfume das flores! Dezoito anos! O amor daquela idade! A passagem
do seio da família, dos braços de mãe, dos beijos das irmãs para as carícias
mais doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor da mesma sazão e dos
mesmos aromas, e à mesma hora da vida! Dezoito anos!… E degredado da pátria,
do amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem liberdade, nem irmãos,
nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo!… É triste.

 

 

I

 

Domingos José Correia
Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem e um dos mais antigos
solarengos de Vila-Real de Trás-os-Montes, era em 1779, juiz de fora de
Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma dama do paço, D. Rita Teresa
Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha dum capitão de
cavalos, neta de outro Antônio de Azevedo Castelo Branco Pereira da Silva, tem
notável por sua jerarquia, como por um, naquele tempo, precioso livro acerca da
Arte de Guerra.

Dez
anos de enamorado, mal sucedido, consumira em Lisboa o bacharel provinciano.
Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I minguavam-lhe dotes físicos:
Domingos Botelho era extremamente feio. Para se inculcar como partido
conveniente a uma filha segunda, faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres dele
não excediam a trinta mil cruzados em propriedades no Douro. Os dotes de
espírito não o recomendavam também: era alcançadíssimo de inteligência, e
granjeara entre os seus condiscípulos da Universidade o epíteto de
“brocas”, com que ainda hoje os seus descendentes em Vila-Real são
conhecidos. Bem ou mal derivado, o epíteto Brocas vem de broa. Entenderam
os acadêmicos que a rudeza do seu condiscípulo procedia de muito pão de milho
que ele digeria na sua terra.

Domingos
Botelho devia ter uma vocação qualquer, e tinha: era excelente flautista; foi a
primeira flauta do seu tempo; e a tocar flauta se sustentou dois anos em
Coimbra, durante os quais seu pai lhe suspendeu as mesadas, porque os
rendimentos da casa não bastavam a livrar outro filho de um crime de morte.

Formara-se
Domingos Botelho em 1767, e fora a Lisboa ler no Desembargo do Paço, iniciação
banal dos que aspiravam à carreira da magistratura. Já Fernão Botelho, pai do
bacharel, fora bem aceite em Lisboa, e mormente ao duque de Aveiro, cuja estima
lhe teve a cabeça em risco, na tentativa regicida de 1758. O provinciano
saiu das masmorras da Junqueira ilibado da infamante nódoa, e até benquisto do
conde de Oeiras, porque tomara parte na prova que este fizera do primor de sua
geneologia sobre a dos Pintos Coelhos, do Bomjardim do Porto: pleito ridículo,
mas estrondoso, movido pela recusa que o fidalgo portuense fizera de sua filha
ao filho de Sebastião José de Carvalho.

As
artes como que o bacharel flautista vingou insinuar-se na estima de D. Maria I
e Pedro III não as sei eu. É tradição que o homem fazia rir a rainha com as
suas facécias, e por ventura com os trejeitos de que tirava o melhor do seu
espírito. O certo é que Domingos Botelho frequentava o paço, e recebia do
bolsinho da soberana uma farta pensão. com a qual o aspirante a juiz de fora se
esqueceu de si, do futuro e do ministro da justiça, que, muito rogado, fiara
das suas letras o encargo de juiz de fora de Cascais.


está dito que ele se atreveu aos amores do paço. não poe-tando como Luís de
Camões ou Bernardim Ribeiro; mas namorando na sua prosa provinciana, e captando
a bem-querença da rainha para amolecer as durezas da dama. Devia de ser,
afinal, feliz “doutor bexiga” – que assim era na corte conhecido –
para se não desconcertar a discórdia em que andam rixados o talento e a
felicidade. Domingos Botelho casou com D. Rita Preciosa. Rita era uma
formosura, que ainda aos cinquenta anos se podia prezar de o ser. E não tinha
outro dote. se não é dote uma série de avoengos, uns bispos, outros generais, e
entre estes o que morrera frigido em caldeirão de não sei que terra da
mourisma, glória, na verdade, um pouco ardente. mas de tal monta que os
descendentes do general frito se assinaram Caldeirões.

A
dama do paço não foi ditosa com o marido. Molestavam-na saudades da corte, das
pompas das câmaras reais. e dos amores de sua feição e malde, que imolou ao
capricho da rainha. Este desgostoso viver, porém, não se reproduzissem em dois
filhos e três meninas. O mais velho era Manuel, o segundo Simão; das meninas
uma era Maria, a segunda Ana e a última tinha o nome de sua mãe, e alguns
traços de beleza dela,

O
Juiz de fora de Cascais, solicitando lugar de mais graduado banco, demorava em
Lisboa, na freguesia da Ajuda. em 1784. Neste ano é que nasceu Simão, o
penúltimo dos seus filhos. Conseguiu ele, sempre balanceado da fortuna,
transferência para Vila-Real, sua ambição suprema. A distância duma légua de
Vila-Real estava a nobreza da vila esperando o seu conterrâneo. Cada família
tinha a sua liteira com o brasão da casa. A dos Correias de Mesquita era a mais
antiquada no feitio, e as librés dos criados as mais surradas e traçadas que
figuravam na comitiva.

D.
Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho direito a sua grande
luneta de oiro, e disse:


Ó Meneses, aquilo que é?


São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.


Em que século estamos nós nesta montanha? – tornou dama do paço.


Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.


Ah! sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze…

O
marido achou que devia rir-se do chiste, que o não lisonjeara grandemente.

Fernão
Botelho, pai do juiz de fora, saiu à frente do préstito para dar a mão à nora,
que apeava da liteira, e conduzi-la à de casa. D. Rita, antes de ver a cara de
seu sogro, contemplou-lhe a olho armado as fivelas de aço, e a bolsa do
rabicho. Dizia ela depois que os fidalgos de Vila-Real eram muito menos limpos
que os carvoeiros de Lisboa. Antes de entrar na avoenga liteira de seu marido,
perguntou, com a mais refalsada seriedade, se não haveria risco em ir dentro
daquela antiguidade. Fernão Botelho asseverou a sua nora que a sua liteira não
tinha ainda cem anos, e que os machos não excediam a trinta.

O
modo altivo como ela recebeu as cortesias da nobreza – velha nobreza, que para
ali viera em tempo de D. Deniz, fundador da vila – fez que o mais novo do
préstito, que ainda vivia há doze anos, me dissesse a mim: “Sabíamos que
ela era dama da Senhora D. Maria I; porém, da soberba com que nos tratou
ficamos pensando que seria ela a própria rainha”. Repicaram os sinos da
terra quando a comitiva assomou à Senhora de Almudena. D. Rita disse ao marido
que a recepção dos sinos era a mais estrondosa e barata.

Apearam
à porta da velha casa de Fernão Botelho. A aia do paço relanceou os olhos pela
fachada do edifício, e disse de si para si: “É uma bonita vivenda para
quem foi criada em Mafra e Sintra, na Bemposta e Queluz”.

Decorridos
alguns dias, D. Rita disse ao marido que tinha medo de ser devorada das
ratazanas; que aquela casa era um covil de feras; que os tetos estavam a
desabar; que as paredes não resistiriam ao inverno; que os preceitos de
uniformidade conjugal não obrigavam a morrer de frio uma esposa delicada e
afeita às almofadas do palácio dos reis,

Domingos
Botelho conformou-se com a estremecida consorte, e começou a fábrica dum
palacete. Escassamente lhe chegavam os recursos para os alicerces: escreveu à
rainha, e obteve generoso subsídio com que ultimou a casa. As varandas das
janelas foram a última dádiva que a real viúva fez à sua dama. Quer-nos parecer
que a dádiva é um testemunho, até agora inédito, da demência da Senhora D.
Maria I.

Domingos
Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de armas; D. Rita, porém, teimara que
no escudo se esquartejassem também as suas; mas era tarde, porque já a obra
tinha vindo do escultor, e o magistrado não podia com segunda despesa, nem
queria desgostar seu pai, orgulhoso de seu brasão. Resultou daqui ficar a casa
sem armas e D. Rita vitoriosa.

O
juiz de fora tinha ali parentela ilustre. O aprumo da fidalga dobrou-se até aos
grandes da província, ou antes houve por bem levantá-los até ela. D. Rita tinha
uma corte de primos, uns que se contentavam de serem primos, outros que
invejavam a sorte do marido. O mais audacioso não ousava fitá-la de rosto,
quando ela o remirava com a luneta, em jeito de tanta altivez e zombaria, que
não será estranha figura dizer que a luneta de Rita Preciosa era a mais
vigilante sentinela da sua virtude.

Domingos
Botelho desconfiava da eficácia dos merecimentos próprios para cabalmente
encher o coração de sua mulher. Inquietava-o o ciúme; mas sufocava os suspiros,
receando que Rita se desse por injuriada da suspeita. E razão era que se
ofendesse. A neta do general frígido no caldeirão sarraceno ria dos primos,
que, por amor dela, erriçavam e empoavam as cabeleiras com desgracioso esmero,
e cavaleavam estrepitosamente na calçada os seus ginetes, fingindo que os
picadores da província não desconheciam as graças hípicas do marquês de
Marialva.

Não
o cuidava assim, porém, o juiz de fora, O intriguista que lhe trazia o espírito
em ânsias era o seu espelho. Via-se sinceramente feio, e conhecia Rita cada vez
mais em flor, e mais enfadada no trato íntimo. Nenhum exemplo da história
antiga, exemplo de amor sem quebra entre o esposo disforme e a esposa linda,
lhe ocorria. Um só lhe mortificava a memória, e esse, com quanto fosse da
fábula, era-lhe avesso, e vinha a ser o casamento de Vênus e Vulcano.
Lembravam-lhe as redes que o ferreiro coxo fabricara para apanhar os deuses
adúlteros, e assombrava-se da paciência daquele marido. Entre si, dizia ele,
que, erguido o véu da perfídia, nem se queixaria a Júpiter, nem armaria
ratoeiras aos primos. A par do bacamarte de Luís Botelho, que varara em terra o
alfares, estava uma fileira de bacamartes em que o juiz de fora era entendido
com muito superior inteligência à que revelava na compreensão do Digesto e
das Ordenações do Reino.

Este
viver de sobressaltos durou seis anos, ou mais seria. O juiz de fora empenhara
os seus amigos na transferência, e conseguiu mais do que ambicionava: foi
nomeado provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou saudades em Vila-Real, e
duradoura memória da sua soberba, formosura e graças de espírito. O marido
também deixou anedotas que ainda agora se repetem. Duas contarei somente para
não enfadar. Acontecera um lavrador mandar-lhe o presente duma vitela, e mandar
com ela a vaca, para se não desgarrar a filha. Domingos Botelho mandou recolher
à loja a vitela e a vaca, dizendo que quem dava a filha dava a mãe. Outra vez,
deu-se o caso de lhe mandarem um presente de pastéis em rica salva de prata. O
juiz de fora repartiu os pastéis pelos meninos, e mandou guardar a salva,
dizendo que receberia como escárnio um presente de doces, que valiam dez
patacões, sendo que naturalmente os pastéis tinham vindo como ornato da
bandeja, E assim é que, ainda hoje, em Vila-Real, quando se dá um caso análogo
de ficar alguém com o conteúdo e continente, diz a gente da terra: “Aquele
é como o doutor Brocas”.

Não
tenho assunto de tradição com que possa reter-me em miudezas da vida do
provedor em Lamego. Escassamente sei que D. Rita aborrecia a comarca, e
ameaçava o marido de ir com seus cinco filhos para Lisboa, se ele não saísse
daquela intratável terra, Parece que a fidalguia de Lamego, em todo o tempo
orgulhosa de uma antiguidade que principia na aclamação de Almacave, desdenhou
a filáucia da dama do paço, e esmerilhou certas vergônteas podres do tronco dos
Botelhos Correais de Mesquita, desprimorando-lhe as cãs com o fato de ele ter
vivido dois anos em Coimbra tocando flauta.

Em
1801, achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita corregedor em Viseu.

Manuel,
o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois anos, e frequenta o segundo ano
jurídico. Simão, que tem quinze, estuda humanidades em Coimbra. As meninas são
o prazer e a vida toda do coração de sua mãe.

O
filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não poder viver com seu
irmão, temeroso do gênio sanguinário dele. Conta que a cada passo se vê
ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros, convive
com os mais famosos perturbadores da academia, e corre de noite as ruas insultando
os habitantes e provocando-os à luta com assuadas. O corregedor admira a
bravura de seu filho Simão, e diz à consternada mãe que o rapaz é a figura e o
gênio de seu bisavô Paulo Botelho Correia, o mais valente fidalgo que dera
Trás-os-Montes.

Manuel,
cada vez mais aterrado das arremetidas de Simão, sai de Coimbra antes de férias
e vai a Viseu queixar-se e pedir que lhe dê seu pai outro destino, D. Rita quer
que seu filho seja cadete de cavalaria. De Viseu parte para Bragança Manuel
Botelho, e justifica-se nobre dos quatro costados para ser cadete.

No
entanto, Simão recolhe a Viseu com os seus exames feitos e aprovados. O pai
maravilhava-se do talento do filho, e desculpa-o da extravagância por amor do
talento. Pede-lhe explicações do seu mau viver com Manuel, e ele responde que
seu irmão o quer forçar a viver monasticamente.

Os
quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É forte de compleição; belo homem
com as feições de sua mãe, e a corpulência dela; mas de todo avesso em gênio.
Na plebe de Viseu é que ele escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe
censura a indigna eleição que faz, Simão zomba das genealogias, e mormente do
general Caldeirão que morreu frito. Isto bastou para ele granjear a malquerência
de sua mãe. O corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte
no desgosto dela e na aversão ao filho. As irmãs temiam-no, tirante Rita, a
mais nova, com quem ele brincava puerilmente, e a quem obedecia, se ela lhe
pedia, com meiguices de criança, que não andasse com pessoas mecânicas.

Finalizavam
as férias, quando o corregedor teve um grave dissabor. Um dos seus criados
tinha ido levar a beber os machos, e, por descuido ou propósito, deixou quebrar
algumas vasilhas que estavam à vez no parapeito do chafariz. Os donos das
vasilhas conjuraram contra o criado; espancaram-no. Simão passava nesse ensejo;
e, armado de um fueiro que descravou de um carro, partiu muitas cabeças, e
rematou o trágico espetáculo pela farsa de quebrar todos os cântaros. O povoléu
intacto fugira espavorido, que ninguém se atrevia ao filho do corregedor; os
feridos, porém, incorporaram-se e foram clamar justiça à porta do magistrado.

Domingos
Botelho bramia contra o filho, e ordenava ao meirinho geral que o prendesse à
sua ordem. D. Rita, não menos irritada, mas irritada como mãe, mandou, por
portas travessas, dinheiro ao filho para que, sem detença, fugisse para
Coimbra, e esperasse lá o perdão do pai.

O
corregedor quando soube o expediente de sua mulher, fingiu-se zangado, e
prometeu fazê-lo capturar em Coimbra. Como, porém, D. Rita lhe chamasse brutal
nas suas vinganças e estúpido juiz de uma rapaziada, o magistrado desenrugou a
severidade postiça da testa, e confessou tacitamente que era brutal e estúpido
juiz.

 

II

 

Simão Botelho levou de
Viseu para Coimbra arrogantes convicções da sua valentia. Se recordava os
chibantes pormenores da derrota em que pusera trinta aguadeiros, o som cavo das
pancadas, a queda atordoada deste, o levantar-se daquele, ensanguentado, a
bordoada que abrangia três a um tempo, a que afocinhava dois, a gritaria de
todos, e o estrépito dos cântaros afinal, Simão deliciava-se nestas lembranças,
como ainda não vi nalgum drama, em que o veterano de cem batalhas relembra os
louros de cada uma, e esmorece, afinal, estafado de espantar, quando não é de
estafar, os ouvintes.

O
acadêmico, porém, com os seus entusiasmos, era incomparavelmente muito mais
prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragédia. As recordações
esporeavam-no a façanhas novas, e naquele tempo a academia dava azo a elas. A
mocidade estudiosa, em grande parte, simpatizava com as balbuciantes teorias da
liberdade, mais por pressentimento, que por estudo. Os apóstolos da revolução
francesa não tinham podido fazer revoar o trovão dos seus clamores neste canto
do mundo; mas os livros dos enciclopedistas, as fontes onde a geração seguinte
bebera a peçonha que saiu no sangue de noventa e três, não eram de todo
ignorados. As doutrinas da regeneração social pela guilhotina tinham alguns
tímidos sectários em Portugal, e esses de ver é que deviam pertencer à geração
nova. Além de que, o rancor à Inglaterra lavrara nas entranhas das classes
manufatureiras, e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos, apertado,
desde o princípio do século anterior, com as sogas de ruinosos e pérfidos
tratados, estava no ânimo de muitos e bons portugueses que se queriam antes
aliançados com a França. Estes eram os pensadores reflexivos; os sectários da
academia, porém, exprimiam mais a paixão da novidade que as doutrinas do
raciocínio.

No
ano anterior de 1800, saíra Antônio de Araújo de Azevedo, depois conde da
Barca, a negociar em Madrid e Paris a neutralidade de Portugal. Rejeitaram-lhe
as potências aliadas as propostas, tendo-lhe em conta de nada os dezesseis
milhões que o diplomata oferecia ao primeiro cônsul. Sem delongas, foi o
território português infestado pelos exércitos de Espanha e França. As nossas
tropas, comandadas pelo duque de Lafões, não chegaram a travar a luta desigual,
porque a esse tempo Luís Pinto de Sousa, mais tarde visconde de Balsemão,
negociara ignominosa paz em Badajoz, com cedência de Olivença à Espanha,
exclusão de ingleses de nossos portos, e indenização de alguns milhões à
França.

Estes
sucessos tinham irritado contra Napoleão os ânimos daqueles que odiavam o
aventureiro, e para outros deram causa a congratularem-se do rompimento com
Inglaterra. Entre os desta parcialidade, na convulsiva e irrequieta academia,
era voto de grande monta Simão Botelho, apesar dos seus imberbes dezesseis
anos. Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outros algozes e
mártires do grande açougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos de Simão.
Difamá-los na sua presença era afrontarem-no a ele, e bofetada certa, e
pistolas engatilhadas à cara do difamador. O filho do corregedor de Viseu
defendia que Portugal devia regenerar-se num batismo de sangue, para que a
hidra dos tiranos não erguesse mais uma das suas mil cabeças sob a dava do
Hércules popular.

Estes
discursos, arremedo de alguma clandestina objurgatória de Saint-Just,
afugentavam da sua comunhão aqueles mesmos que o tinham aplaudido em mais
racionais princípios de liberdade. Simão Botelho tornou-se odioso aos
condiscípulos, que, para se salvarem pela infâmia, o delataram ao bispo-conde e
ao reitor da Universidade.

Um
dia, proclamava o demagogo acadêmico na praça de Sansão aos poucos ouvintes que
lhe restaram fiéis, uns por medo, outros por analogia de bossas. O discurso ia
no mais acrisolado da idéia regicida, quando uma escolta de verdeais lhe aguou
a escandescência. Quis o orador resistir, aperrando as pistolas, mas de sobra
sabiam os braços musculosos da corte do reitor com quem as haviam. O jacobino,
desarmado e cercado, entre a escolta dos arqueiros foi levado ao cárcere
acadêmico, donde saiu seis meses depois, a grandes instâncias dos amigos de seu
pai e dos parentes de D. Rita Preciosa.

Perdido
o ano letivo, foi para Viseu Simão. O corregedor repeliu-o da sua presença com
ameaças de o expulsar de casa. A mãe, mais levada do dever que do coração.
intercedeu pelo filho e conseguiu sentá-lo à mesa comum.

No
espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão. As
companhias da relé desprezou-as. Saía de casa raras vezes, ou só, ou com a irmã
mais nova, sua predileta. O campo, as árvores e os sítios mais sombrios e ermos
eram o seu recreio. Nas doces noites de estio demorava-se por fora até ao
repontar da alva. Aqueles que assim o viam admiravam-lhe o ar cismador e o recolhimento
que o sequestrava da vida vulgar. Em casa encerrava-se no seu quarto, e saía
quando o chamavam para a mesa.

D.
Rita pasmava da transfiguração, e o marido, bem convencido dela, ao fim de
cinco meses, consentiu que seu filho lhe dirigisse a palavra.

Simão
Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda
reforma aos dezessete anos.

Amava
Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira, regularmente
bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira pela primeira
vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no
coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que a usual nos seus
anos.

Os
poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher aos quinze anos, como
paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores de romances dizem o
mesmo. Enganam-se ambos. O amor dos quinze anos é uma brincadeira; é a última
manifestação do amor às bonecas; é a tentativa da avezinha que ensaia o vôo
fora do ninho, sempre com os olhos fitos na ave-mãe, que a está de fronte
próxima chamando: tanto sabe a primeira o que é amar muito, como a segunda o
que é voar para longe.

Teresa
de Albuquerque devia ser, porventura, uma exceção no seu amor.

O
magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa, por motivo de litígios,
em que Domingos Botelho lhe deu sentenças contra. Afora isso, ainda no ano
anterior dois criados de Tadeu de Albuquerque tinham sido feridos na celebrada
pancadaria da fonte. E, pois, evidente que o amor de Teresa, declinando de si o
dever de obtemperar e sacrificar-se ao justo azedume de seu pai, era verdadeiro
e forte.

E
este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e falaram-se três
meses, sem darem rebate à vizinhança e nem sequer suspeitas às duas famílias. O
destino que ambos se prometiam era o mais honesto: ele ia formar-se para poder
sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela esperava que seu velho pai
falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande patrimônio.

Espanta
discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na presumível ignorância de Teresa
em coisas materiais da vida, como são um patrimônio!

Na
véspera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindo-se da
suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado
moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por
lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto
como o tigre contra as grades inflexíveis da jaula. Teve tentações de se matar,
na impotência de socorrê-la. As restantes horas daquela noite passou-as em
raivas e projetos de vingança. Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu
a esperança com os cálculos.

Quando
o chamaram para partir para Coimbra, lançou-se do leito de tal modo
transfigurado, que sua mãe, avisada do rosto amargurado dele, foi ao quarto
interrogá-lo e despersuadi-lo de ir enquanto assim estivesse febril. Simão,
porém, entre mil projetos, achara melhor o de ir para Coimbra, esperar lá
notícias de Teresa, e vir a ocultar a Viseu falar com ela. Ajuizadamente
discorrera ele; que a sua demora agravaria a situação de Teresa.

Descera
o acadêmico ao pátio, depois de abraçar a mãe e irmãs, e beijar a mão do pai,
que para esta hora reservara uma admoestração severa, a ponto de lhe asseverar
que de todo o abandonaria se ele caísse em novas extravagâncias. Quando metia o
pé no estribo, viu a seu lado uma velha mendiga, estendeu-lhe a mão aberta como
quem pede esmola, e, na palma da mão, um pequeno papel. Sobressaltou-se o moço;
e, a poucos passos distante de sua casa, leu estas linhas:

 

“Meu pai diz que
me vai encerrar num convento por tua causa. Sofrerei tudo por amor de ti. Não
me esqueças tu, e achar-me-ás no convento, ou no céu, sempre tua do coração, e
sempre leal. Parte para Coimbra. Lá irão dar as minhas cartas; e na primeira te
direi em que nome hás de responder à tua pobre Teresa”.

 

A
mudança do estudante maravilhou a academia. Se o não viam nas aulas, em parte
nenhuma o viam. Das antigas relações restavam-lhe apenas as dos condiscípulos
sensatos que o aconselhavam para bem, e o visitaram no cárcere de seis meses,
dando-lhe alentos e recursos, que seu pai lhe não dava, e sua mãe escassamente
supria. Estudava com fervor, como quem já dali formava as bases do futuro
renome e da posição por ele merecida, bastante a sustentar dignamente a esposa.
A ninguém confiava o seu segredo, senão às cartas que enviava a Teresa, longas
cartas em que folgava o espírito da tarefa da ciência. A apaixonada menina
escrevia-lhe a miúdo, e já dizia que a ameaça do convento fora mero terror de
que já não tinha medo, porque seu pai não podia viver sem ela.

Isto
afervorou-lhe para mais o amor ao estudo. Simão, chamado em pontos difíceis das
matérias do primeiro ano, tal conta deu de si, que os lentes e os condiscípulos
o houveram como primeiro premiado.

A
este tempo. Manuel Botelho, cadete em Bragança, destacado no Porto,
licenciou-se para estudar na Universidade as matemáticas. Animou-o a notícia do
reviramento que se dera em seu irmão. Foi viver com ele; achou-o quieto. mas
alheado numa idéia que o tornava misantropo e intratável noutro gênero. Pouco
tempo conviveram, sendo a causa da separação um desgraçado amor de Manuel
Botelho a uma açoreana casada com um acadêmico. A esposa apaixonada perdeu-se
nas ilusões do cego amante. Deixou o marido e fugiu com ele para Lisboa, e daí
para Espanha. Em outro relanço desta narrativa darei conta do remate deste
episódio.

No
mês de fevereiro de 1803 recebeu Simão Botelho uma carta de Tereza. No seguinte
capítulo se diz minuciosamente a peripécia que forçara a filha de Tadeu de
Albuquerque a escrever aquela carta de pungentíssima surpresa para o acadêmico,
convertido aos deveres, à honra, à sociedade e a Deus pelo amor

 

III

 

O pai de Teresa não
embicaria na impureza do sangue do corregedor, se o ajustarem-se os dois filhos
em casamento se compadecesse com o ódio de um e o desprezo do outro. O
magistrado mofava do rancor do seu vizinho, e o vizinho malsinava de venalidade
a reputação do magistrado. Este sabia da injuriosa vingança em que o outro se
ia despicando; fingia-se invulnerável à detração; mas de dia para dia se lhe
azedava a bílis; e é de crer que, se o não contivessem considerações da
família, sofreria menos, desabafando pela boca dum bacamarte, arma da
predileção dos Botelhos Correais de Mesquita. Seria impossível o
reconciliarem-se.

Rita,
a filha mais nova, estava um dia na janela do quarto de Simão, e viu a vizinha
rente com os vidros e a testa apoiada nas mãos. Sabia Teresa que era aquela
menina a mais querida irmã de Simão, e a que mais semelhança de parecer tinha
com ele. Saiu da sua artificial indiferença, e respondeu ao reparo de Rita,
fazendo-lhe com a mão um gesto e sorrindo. A filha do corregedor sorriu também,
mas fugiu logo da janela, porque sua mãe tinha proibido às filhas de trocarem
vistas com pessoas daquela casa.

No
dia seguinte, à mesma hora, levada da simpatia que lhe causara aquele gesto de
amizade, tornou Rita à janela, e lá viu Teresa com os olhos fitos na sua, como
se a estivesse esperando. Sorriram-se com resguardo, afastando-se a um pouco do
peitoril das janelas; e assim, ambas de pé, no interior dos quartos, se estavam
contemplando. Como a rua era estreita, podiam ouvir-se, falando baixo. Tereza,
mais pelo movimento dos lábios que por palavras, perguntou a Rita se era sua
amiga. A menina respondeu com um gesto afirmativo, e fugiu, acenando-lhe um
adeus. Estes rápidos instantes de se verem repetiram-se sucessivos dias, até
que, perdido o maior medo de ambas, ousaram demorar-se em palestras a meia voz.
Tereza falava de Simão, contava à menina de onze anos o segredo do seu amor, e
dizia-lhe que ela havia de ser nada sua irmã, recomendando-lhe muito que não
dissesse nada à sua família.

Numa
dessas conversações, Rita descuidara-se, e levantou de modo a voz que foi
ouvida de uma irmã, que a foi logo acusar ao pai. O corregedor chamou Rita, e
forçou-a pelo terror a contar tudo que ouvira à vizinha. Tanta foi sua cólera,
que, sem atender às razões da esposa, que viera espavorida dos gritos, correu
ao quarto de Simão, e viu ainda Teresa à janela.


Olé! – disse ele à pálida menina – Não tenha a confiança de pôr olhos em pessoa
de minha casa, Se quer casar, case com um sapateiro, que é um digno genro de
seu pai.

Tereza
não ouviu o remate da brutal apóstrofe: tinha fugido aturdida e envergonhada.
Porém, como o desabrido ministro ficasse bramindo no quarto, e Tadeu de
Albuquerque saísse a uma janela, a cólera do doutor redobrou, e a torrente das
injúrias, longo tempo represada, bateu no rosto do vizinho, que não ousou
replicar-lhe.

Tadeu
interrogou sua filha, e acreditou que foi causa à sanha de Domingos Botelho
estarem as duas meninas praticando inocentemente, por trejeitos, em coisas de
sua idade. Desculpou o velho a criancice de Teresa, admoestando-a que não
voltasse àquela janela.

Esta
mansidão do fidalgo, cujo natural era bravio, tem a sua explicação no projeto
de casar em breve a filha com seu primo Baltasar Coutinho, de Castro d’Aire,
senhor de casa, e igualmente nobre da mesma prosápia. Cuidava o velho,
presunçoso conhecedor do coração das mulheres, que a brandura seria o mais
seguro expediente para levar a filha ao esquecimento daquele pueril amor a
Simão. Era máxima sua que o amor, aos quinze anos, carece de consistência para
sobreviver a uma ausência de seis meses. Não pensava errado o fidalgo, mas o
erro existia. As exceções têm sido o ludíbrio dos mais assisados pensadores,
tanto no especulativo como no experimental. Não era muito que Tadeu de
Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e coração de mulher, cujas
variantes são tantas e tão caprichosas, que eu não sei se alguma máxima pode
ser-nos guia, a não ser esta: “Em cada mulher, quatro mulheres
incompreensíveis, pensando alternadamente como se hão de desmentir umas às
outras”. Isto é o mais seguro; mas não é infalível. Aí está Teresa que
parece ser única em si. Dir-se-á que as três da conta, que diz a sentença, não
podem coexistir com a quarta aos quinze anos? Também o penso assim, posto que a
fixidez, a constância daquele amor, funda em causa independente do coração: é
porque Teresa não vai à sociedade, não tem um altar em cada noite na sala, não
provou o incenso doutros galãs, nem teve ainda uma hora de comparar a imagem
amada, desluzida pela ausência, com a imagem amante, amor nos olhos que a
fitam, e amor nas palavras que a convencem de que há um coração para cada
homem, e uma só mocidade para cada mulher. Quem me diz a mim que Teresa teria
em si as quatro mulheres da máxima, se o vapor de quatro incensórios lhe
estonteasse o espírito? Não é fácil, nem preciso decidir. E vamos ao conto.

Acerca
de Simão Botelho, nunca diante de sua filha Tadeu de Albuquerque proferiu
palavra, nem antes nem depois do disparate do corregedor. O que ele fez logo
foi chamar a Viseu o sobrinho de Castro d’Aire, e preveni-lo do seu desígnio,
para que ele, em face de Teresa, procedesse como convinha a um enamorado de
feição, e mutuamente se apaixonassem e prometessem auspicioso futuro ao
casamento.

Por
parte de Baltasar Coutinho a paixão inflamou-se tão depressa, quanto o coração
de Teresa se congelou de terror e repugnância. O morgado de Castro d’Aire,
atribuindo a frieza de sua prima a modéstia, inocência e acanhamento,
lisonjeou-se do virginal melindre daquela alma, e saboreou de antemão o prazer
de uma lenta, mas segura conquista. Verdade é que Baltazar nunca se explicara
de modo que Teresa lhe desse resposta decisiva. Um dia, porém, instigado por
seu tio, afoitou-se o ditoso noivo a falar assim à melancólica menina:


É tempo de lhe abrir o meu coração, prima. Está bem disposta a ouvir-me?


Eu estou sempre bem disposta a ouvi-lo, primo Baltasar.

O
desdém aborrecido desta resposta abalou algum tanto as convicções do fidalgo,
respeito à inocência, modéstia e acanhamento de sua prima. Ainda assim, quis
ele no momento persuadir-se que a boa vontade não poderia exprimir-se doutro
modo, e continuou:


Os nossos corações penso eu que estão unidos; agora é preciso que as nossas
casas se unam.

Teresa
empalideceu, e baixou os olhos.


Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradável?! – prosseguiu Baltasar, rebatido
pela desfiguração de Teresa.


Disse-me o que é impossível fazer-se – respondeu ela sem turvação – O primo
engana-se: os nossos corações não estão unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca
pensei em ser sua esposa, nem me lembrou que o primo pensasse em tal.


Quer dizer que me aborrece, prima Teresa? – atalhou, corrido, o morgado.


Não, senhor: já lhe disse que o estimava muito, e por isso mesmo não devo ser
esposa dum amigo a quem não posso amar. A infelicidade não seria só minha…


Muito bem… Posso eu saber – tornou com refalsado sorriso o primo – quem é que
me disputa o coração de minha prima?


Que lucra em o saber?


Lucro saber, pelo menos, que a minha prima ama outro homem… E exato?


É.


E com tamanha paixão que desobedece a seu pai?


Não desobedeço: o coração é mais forte que a submissa vontade duma filha.
Desobedeceria, se casasse contra a vontade de meu pai; mas eu não disse ao
primo Baltasar que casava; disse-lhe unicamente que amava.


Sabe a prima que eu estou espantado do seu modo de falar!… Quem pensaria que
os seus dezesseis anos estavam tão abundantes de palavras!…


Não são só palavras, primo – retorquiu Teresa com gravidade – são sentimentos
que merecem a sua estima, por serem verdadeiros. Se eu lhe mentisse, ficaria
mais bem vista de meu primo?


Não, prima Teresa; fez bem em dizer a verdade, e de a dizer em tudo. Ora olhe:
não duvida declarar quem é o ditoso mortal da sua preferência?


Que lhe faz saber isso?


Muito, prima: todos temos a nossa vaidade, e eu folgaria muito de me ver
vencido por quem tivesse merecimentos que eu não tenho aos seus olhos. Tem a
bondade de me dizer o seu segredo, como o diria a seu primo Baltasar, se o
tivesse em conta de seu amigo intimo?


Nessa conta é que eu o não posso já ter… – respondeu Teresa, sorrindo, e
pausando, como ele, as sílabas das palavras.


Pois nem para amigo me quer?!


O primo não me perdoa a sinceridade que eu tive, e será de hoje em diante meu
inimigo.


Pelo contrário… – tornou ele com mal rebuçada ironia – muito pelo
contrário… Eu lhe provarei que sou seu amigo, se alguma vez a vir casada com
algum miserável indigno de si.


Casada!… – interrompeu ela. Mas Baltasar cortou-lhe logo a réplica deste modo:


Casada com algum famoso ébrio ou jogador de pau, valentão de aguadeiros,
distinto cavalheiro, que passa os anos letivos encarcerados nas cadeias de
Coimbra…

Claro
está que Baltasar Coutinho conhecia o segredo de Teresa. Seu tio, naturalmente,
lhe comunicara a criancice da prima, talvez antes de destinar-lhe a esposa.

Ouvira
Teresa o tom sarcástico daquelas palavras, e erguera-se respondendo com
altivez:


Não tem mais que me diga, primo Baltasar?


Tenho, prima; queira sentar-se algum tempo mais. Não cuide agora que está
falando com o namorado infeliz: convença-se de que fala com o seu mais próximo
parente, mais sincero amigo, e mais decidido guarda da sua dignidade e fortuna.
Eu sabia que minha prima, contra a expressa vontade de seu pai, uma ou outra
vez conversava da janela com o filho do corregedor. Não dei valor ao sucesso, e
tomei-o como brincadeira própria da sua idade. Como eu frequentasse o meu
último ano em Coimbra, há dois anos, conheci de sobra Simão Botelho. Quando
voltei, e me contaram a sua afeição ao acadêmico, pasmei da boa fé da priminha;
depois entendi que a sua mesma inocência devia ser o seu anjo da guarda. Agora,
como seu amigo, compunjo-me de a ver ainda fascinada pela perversidade do seu
vizinho Não se recorda de ter visto Simão Botelho suciando com a ínfima
vilanagem desta terra?! Não viu os seus criados com as cabeças quebradas pelo
tal varredor de feiras? Não lhe constou que ele, em Coimbra, abarrotado de
vinho, andava pelas ruas armado como um salteador de estradas, proclamando à
canalha a guerra aos nobres e aos reis, e à religião de nossos país? A prima
ignoraria isto porventura?


Ignorava parte disso e não me aflige a sabê-lo. Desde que conheci Simão, não me
consta que ele tenha dado o menor desgosto à sua família, nem ouço falar mal
dele.


E está por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor a reforma de costume?


Não sei, nem penso nisso – replicou com enfado Tereza.


Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas últimas palavras: eu hei de,
enquanto viver, trabalhar por salvá-la das garras de Simão Botelho. Se seu pai
lhe faltar, fico eu. Se as leis a não defenderem dos ataques do seu demônio, eu
farei ver ao valentão que a vitória sobre os aguadeiros não o poupa ao desgosto
de ser levado a pontapés para fora da casa de meu tio Tadeu de Albuquerque.


Então o primo quer me governar!? – atalhou ela com desabrida irritação.


Quero-a dirigir enquanto a sua razão precisar de auxílio. Tenha juízo e eu
serei indiferente ao seu destino. Não a enfado mais, prima Teresa.

Baltasar
Coutinho foi dali procurar seu tio, e contou-lhe o essencial do diálogo. Tadeu,
atônito da coragem da filha e ferido no coração e direitos paternais, correu ao
quarto dela, disposto a espancá-la. Reteve-o Baltasar, reflexionando-lhe que a
violência prejudicaria muito a crise, sendo coisa de esperar que Teresa fugisse
de casa. Refreou o pai a sua ira, e meditou. Horas depois, chamou sua filha,
mandou-a sentar ao pé de si, em termos serenos e gesto bem composto, lhe disse
que era sua vontade casá-la com o primo; porém, que ele já sabia que a vontade
de sua filha não era essa. Ajuntou que a não violentaria; mas também não
consentiria que ela, sovando aos pés o pundonor de seu pai, se desse de coração
ao filho do seu maior inimigo. Disse mais que estava a resvalar na sepultura, e
mais depressa desceria a ela, perdendo o amor da filha, que ele já considerava
morta. Terminou perguntando a Teresa se ela duvidava entrar num convento, e a
esperar que seu pai morresse, para depois ser desgraçada à sua vontade.

Teresa
respondeu, chorando, que entraria num convento, se essa era a vontade de seu
pai; porém, que se não privasse ele de a ter em sua companhia nem a privasse a
ela dos seus afetos, por medo de que sua filha praticasse alguma ação indigna,
ou lhe desobedecesse no que era virtude obedecer.

Prometeu-lhe
julgar-se morta para todos os homens, menos para seu pai.

 

IV

 

O coração de Teresa
estava mentindo. Vão pedir sinceridade ao coração!

Para
finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a filha de Tadeu de
Albuquerque. E mulher varonil, tem força de caráter, orgulho fortalecido pelo
amor, desapego das vulgares apreensões, se são apreensões a renúncia que uma
filha fez do seu alvedrio às imprevidentes e caprichosas vontades de seu pai.
Diz boa gente que não, e eu abundo sempre no voto da gente boa. Não será aleive
atribuir-lhe uma pouca de astúcia ou hipocrisia, se quiserem; perspicácia seria
mais correto dizer. Teresa adivinha que a lealdade tropeça a cada passo na
estrada real da vida, e que os melhores fins se atingem por atalhos onde não
cabem a franqueza e a sinceridade. Estes ardis são raros na idade inexperta de
Teresa; mas a mulher do romance quase nunca é trivial, e esta de que rezam os
meus apontamentos era distintíssima. A mim me basta crer em sua distinção, a
celebridade que ela veio a ganhar à conta da desgraça.

Da
carta que ela escreveu a Simão Botelho, contando as cenas descritas, a crítica
deduz que a menina de Viseu contemporizava com o pai, pondo a mira no futuro,
sem passar pelo dissabor do convento, nem romper com o velho em manifesta
desobediência. Na narrativa que fez ao acadêmico omitiu ela as ameaças do primo
Baltasar, cláusula que. a ser transmitida, arrebataria de Coimbra o moço, em
quem sobejavam brios e bravura para mantê-los.

Mas
não é esta ainda a carta que surpreendeu Simão Botelho.

Parecia
bonançoso o céu de Teresa. Seu pai não falava em claustro nem em casamento.
Baltasar Coutinho voltara ao seu solar de Castro d’Aire. A tranquila menina
dava semanalmente estas boas novas a Simão, que, aliando às venturas do coração
as riquezas do espírito, estudava incessantemente, e desvelava as noites
arquitetando o seu edifício de futura glória.

Ao
romper d’alva dum domingo de junho de 1803, foi Teresa chamada para ir com seu
pai à primeira missa da igreja paroquial. Vestiu-se a menina, assustada, e
encontrou o velho na antecâmara a recebê-la com muito agrado, perguntando-lhe
se ela se erguia de bons humores para dar ao autor de seus dias um resto de
velhice feliz. O silêncio de Teresa era interrogador.


Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que
te deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo
difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser impostas
pela violência. Mas repara, minha querida filha, que a violência dum pai é
sempre amor. Amor tem sido a minha condescendência e brandura para contigo.
Outro teria subjugado a tua desobediência com maus tratos, com os rigores do
convento, e talvez com o desfalque do teu grande patrimônio. Eu, não. Esperei
que o tempo te aclarasse o juízo, e felicito-me de te julgar desassombrada do
diabólico prestígio do maldito que acordou o teu inocente coração. Não te
consultei outra vez sobre este casamento, por temer que a reflexão fizesse mal
ao zelo de boa filha com que tu vais abraçar teu pai, e agradecer-lhe a
prudência com que ele respeitou o teu gênio, velando sempre a honra de te
encontrar digna do seu amor.

Teresa
não desfitou os olhos do pai; mas tão abstraída estava, que escassamente lhe
ouviu as primeiras palavras, e nada das últimas.


Não me respondes, Teresa?! – tornou Tadeu, tomando-lhe cariciosamente as mãos.


Que hei de eu responder-lhe, meu pai? – balbuciou ela.


Dá-me o que te peço? Enches de contentamento os poucos dias que me restam?


E será o pai feliz com o meu sacrifício?


Não digas sacrifício, Teresa… Amanhã a estas horas verás que transfiguração
se fez na tua alma. Teu primo é um composto de todas as virtudes; nem a
qualidade de ser um gentil moço lhe falta, como se a riqueza, a ciência e as
virtudes não bastassem a formar um marido excelente.


E ele quer-me. depois de eu me ter negado? – disse ela com amargura irônica.


Se ele está apaixonado, filha!… e tem bastante confiança em si para crer que
tu hás de amá-lo muito!…


E não será mais certo odiá-lo eu sempre?! Eu agora mesmo o abomino como nunca
pensei que se pudesse abominar! Meu pai… – continuou ela, chorando, com as
mãos erguidas – mate-me; mas não me force a casar com meu primo! É escusada a
violência, porque eu não caso!

Tadeu
mudou de aspecto, e disse irado:


Hás de casar! – Quero que cases! Quero!… Quando não, amaldiçoada serás para
sempre, Teresa! Morrerás num convento! Esta casa irá para teu primo! Nenhum
infame há de aqui pôr pé nas alcatifas de meus avós. Se és uma alma vil, não me
pertences, não és minha filha, não podes herdar apelidos honrosos, que foram
pela primeira vez insultados pelo pai desse miserável que tu amas! Maldita
sejas! Entra nesse quarto, e espera que daí te arranquem para outro, onde não
verás um raio de Sol.

Teresa
ergueu-se sem lágrimas, e entrou serenamente no seu quarto. Tadeu de
Albuquerque foi encontrar seu sobrinho, e disse-lhe:


Não te posso dar minha filha, porque já não tenho filha. A miserável, a quem
dei este nome, perdeu-se para nós e para ela.

Baltasar,
que, a juízo de seu tio, era um composto de excelência, tinha apenas um quebra;
a absoluta carência de brios. Malograda a tentativa do seu amor de emboscada,
tornou para a terra o primo de Teresa, dizendo ao velho que ele o livraria do
assédio em que Simão Botelho lhe tinha o coração da filha. Não aprovou a
reclusão no convento, discorrendo sobre as hipóteses infamantes que a opinião
pública inventaria. Aconselhou que a deixasse estar em casa, e esperasse que o
filho do corregedor viesse de Coimbra.

Ponderaram
no ânimo do velho as razões de Baltasar. Teresa maravilhou-se da quietação inesperada
de seu pai e desconfiou da incoerência. Escreveu a Simão. Nada lhe escondeu do
sucedido; nem as ameaças de Baltasar por delicadeza suprimiu. Rematava
comunicando-lhe as suas suspeitas de algum plano de violência.

O
acadêmico, chegando ao período das ameaças. já não tinha clara luz nos olhos
para decifrar o restante da carta. Tremia sezões, e as artérias frontais
arfavam-lhe entumescidas. Não era sobressalto do coração apaixonado: era a
índole arrogante que lhe escaldava o sangue. Ir dali a Castro d’Aire e
apunhalar o primo de Teresa na sua própria casa, foi o primeiro conselho que
lhe segredou a fúria do ódio. Neste propósito saiu, alugou cavalo, e recolheu a
vestir-se de jornada. Já preparado, a cada minuto de espera assomava-se em
frenesis. O cavalo demorou-se meia hora, e o seu bom anjo, neste espaço,
vestido com as galas com que ele vestia na imaginação Teresa, deu-lhe rebates
de saudade daqueles tempos e ainda das horas daquele mesmo dia em que cismava
na felicidade que o amor lhe prometia, se ele a procurasse no caminho do
trabalho, e da honra. Contemplou os seus livros com tanto afeto, como se em
cada um estivesse uma página da história do seu coração. Nenhuma daquelas
páginas tinha ele lido, sem que a imagem de Teresa lhe aparecesse a
fortalecê-lo para vencer os tédios da continuada aplicação, e os ímpetos dum
natural inquieto e ansioso de comoções desusadas. “E há de tudo acabar
assim? – pensava ele, com a face entre as mãos, encostado à sua banca de estudo.
– Ainda há pouco eu era tão feliz!… – Feliz! – repetiu ele, erguendo-se de
golpe. – Quem pode ser feliz com a desonra duma ameaça impune. Mas
eu perco-a! Nunca mais hei de vê-la!… Fugirei como um assassino, e meu pai
será o meu primeiro inimigo, e ela mesmo há de horrorizar-se da minha
vingança… A ameaça só ela a ouviu; e, se eu tivesse sido aviltado no conceito
de Teresa pelos insultos do miserável, talvez que ela os não repetisse.

Simão
Botelho releu a carta duas vezes, e à terceira leitura achou menos afrontosas
as bravatas do fidalgo cioso. A linhas finais desmentiam formalmente
a suspeita do aviltamento, com que o seu orgulho o atormentava: eram expressões
ternas, súplicas ao seu amor como recompensa dos passados e futuros desgostos,
visões encantadoras do futuro, novos juramentos de constância, e sentidas
frases de saudade.

Quando
o arreeiro bateu à porta, Simão Botelho já não pensava em matar o homem de
Castro d’Aire; mas resolvera ir a Viseu, entrar de noite, esconder-se e ver
Teresa. Faltava-lhe, porém, casa de confiança onde se ocultasse. Nas
estalagens, seria logo descoberto. Perguntou ao arreeiro se conhecia alguma
casa em Viseu onde ele pudesse estar escondido uma noite ou duas, sem receio de
ser denunciado. O arreeiro respondeu que tinha, a um quarto de légua de Viseu,
um primo ferrador; e não conhecia em Viseu senão os estalajadeiros. Simão achou
aproveitável o parentesco do homem, e logo daí o presenteou com uma jaqueta de
peles e uma faixa de seda escarlate, à conta de maiores valores prometidos, se
ele o bem servisse numa empresa, amorosa.

No
dia seguinte, chegou o acadêmico a casa do ferrador. O arreeiro deu conta ao
seu parente do que vinha tratado com o estudante.

Foi
Simão Botelho cautelosamente hospedado, e o arreeiro abalou no mesmo ponto para
Viseu, com uma carta destinada a uma mendiga, que morava no mais impraticável
beco da terra. A mendiga informou-se miudamente da pessoa que enviava a carta,
e saiu, mandando esperar o caminheiro. Pouco depois. voltou ela com a resposta,
e o arreeiro partiu a galope.

Era
a resposta um grito de alegria. Teresa não refletiu, respondendo a Simão que
naquela noite se festejavam os seus anos, e se reuniam em casa os parentes.
Disse-lhe que às onze horas em ponto ela iria ao quintal e lhe abriria a porta.

Não
esperava tanto o acadêmico. O que ele pedia era falar-lhe da rua para a janela
do seu quarto, e receava impossível este prazer, que ele avaliava o máximo.
Apertar-lhe a mão, sentir-lhe o hálito, abraçá-la talvez, cometer a ousadia de
um beijo, estas esperanças, tão além de suas modestas e honestas ambições,
igualmente o enlevavam e assustavam. Enlevo e susto em corações que se estreiam
na comédia humana são sentimentos congeniais.

A
hora da partida, Simão tremia, e a si mesmo pedia contas da timidez, sem saber
que os encantos da vida, os mais angélicos momentos da alma, são esses lances
de misterioso alvoroço que aos mais seródios de coração sucedem em todas as
razões da vida, e a todos os homens, uma vez ao menos.

As
onze horas em ponto estava Simão encostado á porta do quintal, e a distância
convencionada o arreeiro com o cavalo à rédea. A toada da música, que vinha das
salas remotas, alvoroçava-o, porque a festa em casa de Tadeu de Albuquerque o
surpreendera. No longo termo de três anos nunca ele ouvira música naquela casa.
Se ele soubesse o dia natalício de Teresa, espantara-se menos da estranha
alegria daquelas salas, sempre fechadas como em dias de mortório. Simão imaginou
desvairadamente as quimeras que voejam, ora negras, ora translúcidas, em redor
da fantasia apaixonada. Não há baliza racional para as belas, nem para as
horrorosas ilusões, quando o amor as inventa. Simão Botelho, com o ouvido
colado à fechadura, ouvia apenas o som das flautas, e as pancadas do coração
sobressaltado.

 

V

 

Baltasar Coutinho estava
na sala, simulando vingativa indiferença por sua prima. As irmãs do fidalgo e a
demais parentela da casa não deixavam respirar Teresa. Moças e velhas, todas,
uma, se repetiam, aconselhando-a a reconciliar-se com seu primo, e dar a seu
pai a alegria que o pobre velho tanto rogava Deus, antes de fechar os olhos.
Replicava Teresa que não queria mal a seu primo, nem sequer estava sentida
dele; que era sua amiga, e se-lo-ia sempre enquanto ele lhe deixasse livre o
coração.

O
velho esperava muito daquela noitada de festa. Alguns parentes presumidos de
circunspectos, lhe tinham dito que seria proveitoso regalar a filha com os
prazeres congruentes à sua idade, dando-lhe ensejo a que ela repartisse o
espírito, concentrado num só ponto, por diversões em que a natural vaidade se
preocupa, e a força do amor contrariado se vai a pouco e pouco quebrantando.
Aconselharam-lhe as reuniões amiúdas, já em sua casa, já na dos seus parentes,
para deste modo Teresa se mostrar a muitos, ser cortejada de todos, e ter em
opinião de menos valia o único homem com quem falava, e a quem julgava superior
a todos. O fidalgo acedeu, mas com dificuldade: é que tinha lá um sistema seu
de ajuizar das mulheres, vivera trinta anos de vida libertina e dispendiosa, e
se estava agora saboreando na economia e na quietação. Os anos de Teresa eram
pela primeira vez festejados com estrondo. A morgada viu então o que era o
minueto da corte e certos jogos de prendas com que os intervalos naqueles
tempos se aligeiravam em delícias, sem fadiga do corpo, nem desagrado da moral.

Mas,
de agitada que estava, Teresa não compartia do gozo dos seus hóspedes. Desde
que soaram as dez horas daquela noite, a rainha da festa parecia tão alienada
das finezas com que as senhoras e homens à competência a lisonjeavam, que
Baltasar Coutinho deu tento do desassossego de sua prima, e teve a modéstia de
imaginar que ela se ofendera da indiferença dele, Generoso até ao perdão, o
morgado de Castro d’Aire, compondo o rosto com gesto grave e melanc6lico,
dirigiu-se a Teresa, e pediu-lhe desculpa da frieza que ele disse ser como a
das montanhas, que têm vulcões por dentro e neve por fora. Teresa teve a
sinceridade de responder que não tinha reparado na frieza de seu primo, e
chamou para junto dela uma menina, para evitar que a montanha se fendesse em
vulcões. Pouco depois ergueu-se e saiu da sala.

Eram
dez horas e três quartos. Teresa correra ao fundo do quintal, abrira a porta,
e, como não visse alguém, tornou de corrida para a sala. No momento, porém, de
subir a escada que ligava o jardim à casa, Baltasar Coutinho, que a espiava
desde que ela saiu da sala, chegou a uma das janelas sobre o jardim, bem longe
de imaginar que a via. Retirou-se, e entrou com Teresa na sala, ao mesmo tempo,
por diversa porta. Decorridos alguns minutos, a menina saiu outra vez e o primo
também. Teresa ouviu, a distância, o estrépito dum cavalo, quando passou ao
patamar da escada. Baltasar também o ouviu, e notou que sua prima, receosa de
ser vista e conhecida pela alvura do vestido, levava uma capa ou xale que a
envolvia toda. O de Castro d’Aire fez pé atrás para não ser visto. Teresa,
porém, num relance de olhar temeroso, ainda vira um vulto retirar-se. Teve
medo, e retrocedeu a largar a capa, e entrou na sala, ofegante de cansaço e
pálida de medo.


Que tens, minha filha? – disse-lhe o pai – Já duas vezes saíste da sala, e vens
tão alvoraçada! Tens algum incômodo, Teresa?


Tenho uma dor: preciso de ir respirar de vez em quando… Nada é, meu pai.

Tadeu
acreditou, e disse a toda a gente que a sua filha tinha uma dor; só o não disse
a seu sobrinho, porque o não encontrou, e soube que ele tinha saído.

Também
Teresa dera pela ausência do primo, e fingiu que o ia procurar, resolução de
que o velho gostou muito. Desceu ela ao jardim, correu à porta onde a esperava
Simão, abriu-a, e, com a voz cortada pela ansiedade, apenas disse:


Vai-te embora; vem amanhã às mesmas horas… Vai, vai!

Simão,
quando isto ouvia, os olhos fitos num vulto que se aproximava dele, rente com o
muro do quintal. O arreeiro, que primeiro o vira, dera um sinal, e entalara as
rédeas do cavalo entre umas pedras, para ficar desembaraçado, se o estudante se
não pudesse haver com o inimigo.

Simão
Botelho não se moveu do local, e Baltasar Coutinho parou na distância de seis
passos. O arreeiro tinha lentamente avançado a meio caminho do patrão, quando
este lhe disse que não se aproximasse. E, caminhando para o vulto, aperrou duas
pistolas, e disse-lhe:


Isto aqui não é caminho. Que quer?

O
fidalgo não respondeu.


Parece-me que lhe abro a boca com uma bala – tornou Simão.


Que lhe importa o senhor quem está?! – disse Baltasar – Se eu tiver um segredo,
como o senhor parece que tem o seu nestes sítios, sou obrigado a
confessar-lho!?

Simão
refletiu, e replicou.


Este muro pertence a uma casa onde mora uma só família, e uma só mulher.


Estão nessa casa mais de quarenta mulheres esta noite – redarguiu o primo de
Teresa. – Se o cavalheiro espera uma, eu posso esperar outra.


Quem é o senhor? – tornou com arrogância o filho do corregedor.


Não conheço a pessoa que me interroga, nem quero conhe-cer. Fiquemos cada um
com o nosso incógnito. Boas noites.

Baltasar
Coutinho retrocedeu, dizendo entre si:


“Que partido tem uma espada contra dois homens e duas pistolas?”

Simão
Botelho cavalgou, e partiu para casa do hospitaleiro ferrador.

O
sobrinho de Tadeu de Albuquerque entrou na sala sem denunciar levemente
alteração de ânimo. Viu que Teresa o observava de revés, e soube dissimular-se
de modo que a sossegou. A pobre menina, ansiosa por se ver sozinha, viu com
prazer erguer-se para sair a primeira família, que deu rebate às outras, menos
ao de Castro d’Aire e suas irmãs, que ficaram hospedados em casa de seu tio,
com tenção de se demorarem oito dias em Viseu.

Velou
Teresa o restante da noite, escrevendo a Simão a longa história dos seus
terrores, e pedindo-lhe perdão de o ela não ter advertido do baile, por ficar
doida de alegria com a sua vinda. No tocante ao plano de se encontrarem na
seguinte noite não havia alteração na carta. Isto espantou o acadêmico. A seu
ver, o vulto era Baltasar Coutinho, e o pai de Teresa devia ser avisado naquela
mesma noite.

Respondeu
ele contando a história do incidente com o encapotado; receando, porém,
assustar Teresa e privar-se da entrevista, escreveu nova carta em que não
transluzia medo de ser atacado, nem sequer receio de marear-lhe a fama. Quis
parecer a Simão Botelho que este era o digno porte de um amante corajoso.

Passou
o estudante aquele dia contando as longas horas, e meditando instantes nos
funestos resultados que podia ter a sua temerária ida, se Baltasar Coutinho era
aquele homem que reservara para melhor relance a vingança da provocação
insolente. Mas de si para si tinha ele que pensar em que tal era mais cobardia
que prudência.

O
ferrador tinha uma filha, moça de vinte e quatro anos, formas bonitas, um rosto
belo e triste. Notou Simão os reparos em que ela se demorava a contemplá-lo, e
perguntou-lhe a causa daquele olhar melancólico com que ela o fitava. Mariana
corou, abriu um sorriso triste, e respondeu:


Não sei o que me adivinha o coração a respeito de vossa senhoria. Alguma
desgraça está para lhe suceder…


A menina não dizia isso – replicou Simão – sem saber alguma coisa da minha
vida.


Alguma coisa sei… – tornou ela.


Ouviu contar ao arreeiro?


Não, senhor. E que meu pai conhece o paizinho de vossa senhoria, e também
conhece o senhor. E há bocadinho que eu ouvi estar meu pai a dizer a meu tio,
que é o arreeiro que veio com vossa senhoria, que tinha suas razões para saber
que alguma desgraça lhe estava para acontecer…


Por quê?


Por amor duma fidalga de Viseu, que tem um primo em Castro d’Aire.

Simão
espantou-se da publicidade do seu segredo, e ia colher pormenores do que ele
julgava mistério entre duas famílias, quando o mestre ferrador João da Cruz
entrou no sobrado, onde o precedente diálogo se passara. A moça, como ouvisse
os passos do pai, saíra lentamente por outra porta.


Com sua licença – disse mestre João.

Dizendo,
fechou por dentro ambas as portas, e sentou-se sobre uma arca.


Ora, meu fidalgo – continuou ele, descendo as mangas arregaçadas da camisa, e
apertando-as com dificuldade nos grossos pulsos, como quem sabe as etiquetas
das mangas – há de desculpar que eu viesse assim em mangas de camisa; mas não
dei com a jaqueta…


Está muito bem, senhor João – atalhou o acadêmico.


Pois, senhor, eu devo um favor a seu pai, e um favor daquela casta. Uma vez
armou-se aqui à minha porta uma desordem, a troco de um couce que um macho dum
almocreve deu numa égua, que estava ferrando, e, em tão boa hora foi, que lhe
partiu rente o jarrete por aqui, salvo tal lugar.

João
da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fora fraturada a da égua, e
continuou:


Eu tinha ali à mão o martelo, e não me tive que não pregasse com ele na cabeça
do macho, que foi logo pra terra. O recoveiro de Carção, que era chibante,
deitou as unhas a um bacamarte, que trazia entre uma carga, e desfechou comigo,
sem mais tirte nem garte. “Ó alma danada! – disse-lhe eu – pois tu vês que
o teu macho me aleijou esta égua, que custou vinte peças a seu dono, e que eu
tenho de pagar, e dás-me um tiro por eu te atordoar o macho!?”


E o tiro acertou-lhe? – atalhou Simão.


Acertou; mas saberá vossa senhoria que me não matou; deu-me aqui por este braço
esquerdo com dois quartos. E vai eu, entro em casa, vou à cabeceira da cama, e
trago uma clavina, e desfecho-lha na tábua do peito. O almocreve caiu como um
tordo, e não tugiu nem mugiu. Prenderam-me, e fui para Viseu e já lá estava há
três anos, no ano que o paizinho de vossa senhoria veio corregedor. Andava
muita gente a trabalhar contra mim, e todos me diziam que eu ia pernear na
forca. Estava lá na enxovia comigo um preso a cumprir sentença, e disse-me ele
que o senhor corregedor tinha muita devoção com as sete dores de Nossa Senhora.
Uma vez que ele ia passando com a família para a missa, disse-lhe eu: –
“Senhor corregedor, peço a vossa senhoria, pelas sete dores de Maria
Santíssima, que me mande ir à sua presença para eu explicar a minha culpa a
vossa senhoria”. O paizinho de vossa senhoria chamou o meirinho-geral, e
mandou tomar o meu nome. Ao outro dia fui chamado ao senhor corregedor, e
contei-lhe tudo, mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço. Seu pai ouviu-me,
e disse-me: – “Vai-te embora, que eu farei o que puder”. O caso é,
meu fidalgo, que eu saí absolvido, quando muita gente dizia que eu havia de ser
enforcado à minha porta. Faz favor de me dizer se eu não devo andar com a cara
onde o seu paizinho põe os pés?!


Tem o senhor João motivo para lhe ser grato, não há dúvida nenhuma.


Agora faz favor de ouvir o mais. Eu, antes de ser ferrador, fui criado de farda
em casa do fidalgo de Castrod’Aire, que é o senhor Baltasar. Conhece-o vossa
senhoria? Ora, se conhece…


Conheço de nome.


Foi ele que me abonou dez moedas de ouro para me estabelecer; mas paguei-lhas,
Deus louvado. Há de haver seis meses que ele me mandou chamar a Viseu, e me
disse que tinha trinta peças para me dar, se eu lhe fizesse um serviço. –
“O que vossa senhoria quiser, fidalgo”. E vai ele disse-me que queria
que eu tirasse a vida a um homem. Isto buliu cá por dentro comigo, porque. a
falar a verdade, um homem que mata outro num aperto não é matador de oficio,
acho eu, não é assim?


De certo… – respondeu Simão, adivinhando o remate da história. – Quem era o
homem que ele queria morto?


Era vossa senhoria… O homem! – disse o ferrador com espanto – O senhor nem
sequer mudou de cor!


Eu não mudo nunca de cor, senhor João – disse o acadêmico.


Estou pasmado!


E vossemecê não aceitou a incumbência, pelo que vejo – tornou Simão.


Não, senhor; e, então, logo que ele me disse quem era, a minha vontade era
pregar-lhe com a cabeça numa esquina.


E ele disse-lhe a razão por que me mandava matar?


Não, meu fidalgo; eu lhe conto: Na semana adiante, quando soube que o senhor
Baltasar (raios o partam!> tinha saído de Viseu, fui falar com o senhor
corregedor, e contei-lhe tudo como se passara. O senhor corregedor esteve a
cismar um pouquinho, e disse-me, e vossa senhoria há de perdoar por eu lhe dizer
o que seu pai me disse, tal e qual.


Diga.


Seu pai começou a esfregar o nariz, e disse-me: -“Eu sei o que é isso. Se
aquele brejeiro de meu filho Simão tivesse honra, não olharia para a prima
desse assassino. Cuida o patife que eu consentia que meu filho se ligasse a uma
filha de Tadeu de Albuquerque Ainda disse mais coisas que me não lembram; mas
eu fiquei sabendo tudo. Ora aqui tem o que houve. Agora apareceu-me aqui vossa
senhoria, e a noite passada foi a Viseu. Perdoará a minha confiança: mas vossa
senhoria foi falar com a tal menina; e eu estive vai não vai a segui-lo; mas,
como ia meu cunhado, que é homem para três, fiquei descansado. Ele contou-me um
encontro que vossa senhoria teve à porta do quintal da menina. Se lá torna,
senhor Simão, vá preparado para alguma coisa de maior. Eu bem sei que vossa
senhoria não é medroso; mas duma traição ninguém se livra. Se quer que eu vá
também, estou às suas ordens; e a clavina que deu polícia ao almocreve ainda
ali está, e dá fogo debaixo de água, como diz o outro. Mas, se vossa senhoria
dá licença que eu lhe diga a minha opinião, o melhor é não andar nessas
encamisadas. Se quer casar com ela, vá pedir a seu pai licença, e deixe o resto
cá por minha conta; ponto é que ela queria. que eu, num abrir e fechar de olhos,
atiro com ela para cima duma égua de chupeta. que ali tenho, e o pai e mais o
primo ficam a ver navios.


Obrigado, meu amigo – disse Simão – aproveitarei os seus bons serviços quando
me forem necessários. Esta noite hei de ir, como fui a noite passada, a Viseu.
Se houver novidade, então veremos o que se há de fazer. Conto com vossemecê, e
creia que tem em mim um amigo.

Mestre
João da Cruz não replicou. Dali foi examinar mudamente a fecharia da clavina, e
entender-se com o cunhado sobre cautelas necessárias, enquanto descarregava a
arma, e a carregava de novo com uns zagalotes especiais, que ele denominava
“amêndoas de pimpões”.

Neste
intervalo, Mariana, a filha do ferrador, entrou no sobrado, e disse com
meiguice a Simão Botelho:


Então sempre é certo ir?


Vou; para que não hei de ir?!


Pois Nossa Senhora vá na sua companhia – tornou ela, saindo logo para esconder
as lágrimas.

 

VI

 

As dez horas e meia da
noite daquele dia, três vultos convergiram para o local, raro frequentado, em
que se abria a porta do quintal de Tadeu de Albuquerque. Ali se detiveram
alguns minutos discutindo e gesticulando. Dos três vultos havia um, cujas
palavras eram ouvidas em silêncio e sem réplica pelos outros. Dizia ele a um
dos dois:


Não convém que estejas perto desta porta. Se o homem aparecesse aqui morto, as
suspeitas caiam logo sobre mim ou meu tio. Afastem-se vocês um do outro, tenham
o ouvido aplicado ao tropel do cavalo. Depois apressem o passo até o
encontrarem, de modo que os tiros sejam dados longe daqui.


Mas… – atalhou um – quem nos diz que ele veio ontem a cavalo, e hoje vem a
pé?


E verdade! – acrescentou o outro.


Se ele vier a pé, eu lhes darei aviso para o seguirem depois até o terem a
jeito de tiro, mas longe daqui, percebem vocês? – disse Baltasar Coutinho.


Sim, senhor: mas se ele sal. de casa do pai, e entra sem nos dar tempo?


Tenho a certeza de que não está em casa do pai, já lho disse. Basta de
palavreado. Vão esconder-se atrás da Igreja, e não adormeçam.

Debandou
o grupo, e Baltasar ficou alguns momentos encostado ao muro. Soaram os três quarto
depois da dez. O de Castro d’Aire colocou o ouvido à porta, e retirou-se
aceleradamente, ouvindo o rumor da folhagem seca que Teresa vinha pisando.

Apenas
Baltasar, cosido com o muro, desaparecera, um vulto assomou do outro lado a
passo rápido. Não parou: foi direito a todos os pontos onde uma sombra podia
figurar um homem. Rodeou a igreja, que estava a duzentos passos de distância.
Viu os dois vultos direitos com o recanto que formava a junção da capela-mor, e
sobre o qual caíram as sombras da torre. Fitou-os de passagem, e suspeitou; não
os conheceu, mas eles disseram entre si, depois que ele desaparecera:


E o João da Cruz, ferrador, ou o diabo por ele!…


Que fará a estas horas por aqui?!


Eu sei!


Não desconfias que ele entre nisto?


Agora! se entrasse, era por nós. Não sabes que ele foi mochila do nosso amo?


Pois então que medo tens?


Não há medo; mas também sei que foi o corregedor que o livrou da forca…


Isso que tem! O corregedor não se importa com isso, nem sabe que o filho cá
está…


Assim será; mas não estou muito contente… Ele é homem dos diabos…


Deixá-lo ser… Tanto entram as balas nele como noutro…

A
discussão continuou sobre várias conjeturas. De tudo o que eles disseram uma
coisa era certíssima: ser o vulto o João da Cruz, ferrador.

Teria
este dado trezentos passos, quando os criados de Baltasar ouviram o remoto
tropel da cavalgadura.

Ao
tempo que eles saíam do seu esconderijo, saía João da Cruz à frente do
cavaleiro. Simão aperrou as pistolas, e o arreeiro uma clavina.


Não há novidade – disse o ferrador -; mas saiba vossa senhoria que já podia
estar em baixo do cavalo com quatro zagalotes no peito.

O
arreeiro reconheceu o cunhado, e disse:


És tu, João?


Sou eu. Vim primeiro que tu.

Simão
estendeu a mão ao ferrador, e disse, comovido.


Dê cá a sua mão; quero sentir na minha a mão dum homem honrado.


Nas ocasiões é que se conhecem os homens – redarguiu o ferrador. – Ora vamos…
não há tempo para falatórios. O senhor doutor tem uma espera.


Tenho – disse Simão.


Atrás da igreja estão dois homens que eu não pude conhecer; mas não se me dava
de jurar que são criados do Sr. Baltasar. Salte abaixo do cavalo, que há de
haver mostarda. Eu disse-lhe que não viesse; mas vossa senhoria veio, e agora é
andar com a cara para frente.


Olhe que eu não tremo, mestre João! – disse o filho do corregedor.


Bem sei que não; mas, à vista do inimigo, veremos.

Simão
tinha apeado. O ferrador tomou as rédeas do cavalo, recuou alguns passos na
rua, e foi prendê-lo à argola da parede duma estalagem.

Voltou,
e disse a Simão que o seguisse a ele e ao cunhado na distância de vinte passos;
e que, se os visse parar perto do quintal de Albuquerque, não passasse do ponto
donde os visse.

Quis
o acadêmico protestar contra um plano que o humilhava como protegido pela
defesa dos dois homens; o ferrador, porém, não admitiu a réplica


Faça o que eu lhe digo, fidalgo – disse ele com energia.

João
da Cruz e o cunhado, espiando todas as esquinas, chegaram defronte do quintal
de Teresa, e viram, um vulto a sumir-se no ângulo da parede.


Vamos sobre eles – disse o ferrador – que lá passaram para o adro da igreja;
nestes entrementes, o doutor chegará à porta do quintal e entra; depois
voltaremos para lhe guardar a saída.

Neste
propósito, moveram-se apressados, e Simão Botelho caminhou com as pistolas
aperradas na direção da porta.

Em
frente do muro do jardim de Teresa haviam uma cascalheira escarpada. que se explanava
depois numa alameda sombria.

Os
dois criados de Baltasar, quando o tropel do cavalo parou, recordaram as ordens
do amo, no caso de vir a pé Simão. Buscaram sitio azado para o espreitarem na
saída, e entraram na alameda quando o acadêmico chegara à porta do quintal.


Agora está seguro – disse um,


Se lá não ficar dentro… – respondeu o outro, vendo-o entrar, e fechar-se a
porta.


Mas além vêm dois homens… – disse o mais assustado, olhando para a outra
entrada da alameda.


E vêm direitos a nós… Aperra lá a cravina…


O melhor é retirarmos. Nós estamos à espera do outro, e não deste. Vamos embora
daqui…

Este
não esperou convencer o companheiro: desceu a ribanceira do cascalho. O mais
intrépido teve também a prudência de todos os assassinos assalariados: seguiu o
assustadiço, e deu-lhe razão, quando ouviu após de si os passos velozes dos
perseguidores. Saiu-lhes o amo de frente quando dobravam a esquina do quintal,
disse-lhes:


Vocês a que fogem, seus poltrões?

Os
homens pararam de envergonhados, aperrando os baçamartes.

João
da Cruz e o arreeiro apareceram, e Baltasar caminhou para eles, brandando:


Alto aí!

O
ferrador disse ao cunhado:


Fala-lhe tu, que eu não quero que ele me conheça.


Quem manda fazer alto? – disse o arreeiro.


São três clavinas – respondeu Baltasar.


Olha se os demoras a dar tempo que o doutor saía – disse João da Cruz ao ouvido
do arreeiro.


Pois nós cá estamos parados – replicou o criado de Simão. – Que nos querem
vocês?


Quero saber o que têm que fazer neste sítio.


E vocês o que fazem por cá?


Não admito perguntas – disse o de Castro-d’Aire, aventurando alguns passos
vacilantes para a frente. – Quero saber quem são.

Mestre
João disse ao ouvido do cunhado:


Diz-lhe que, se dá mais um passo, que o arrebentas.

O
arreeiro repetiu a cláusula, e Baltasar parou.

Um
dos criados deles chamou-o ao lado para lhe dizer que aquele dos dois que não
falava parecia ser o João da Cruz. O morgado duvidou, e quis esclarecer-se; mas
o ferrador ouvira as palavras do criado, e disse ao cunhado:


Vem comigo, que eles conhecem-me.

Dizendo,
voltou as costas ao grupo, e caminhou ao longo do quintal de Tadeu de
Albuquerque. Os criados de Baltasar, gloriosos da retirada, como de uma derrota
certa, apressaram o passo, na cola dos supostos fugitivos. O morgado ainda lhes
disse que os não seguissem; mas eles, momentos antes cobardes, queriam
desforrar-se agora, correndo após o inimigo tanto quanto lhe tinham fugido
antes.

Simão
Botelho ouvira passos ligeiros, e, compelido pelo susto de Teresa, abrira a
porta do quintal, sem saber ainda de quem fossem os passos. João da Cruz, com
ar galhofeiro, já quando os perseguidores se viam, disse ao filho do
corregedor, se estavam ajustando o casamento, que não havia pano para mangas.

Simão
entendeu o perigo, apertou convulsamente a mão de Teresa, e retirou-se. Queria
ele reconhecer os dois vultos parados a distância, mas João da Cruz, com o tom
imperioso de quem obriga à submissão, disse ao filho do corregedor:


Vá por onde veio, e não olhe para trás. Simão foi indo até encontrar o cavalo.
Montou, e esperou os dois inalteráveis guardas que o seguiam a passo vagaroso.
Maravilhara-os o súbito desaparecimento dos criados de Baltasar, e recearam-se
de alguma espera fora da cidade. O ferrador conhecia o atalho que podia levar
os da emboscada ao caminho, e revelou o seu receio a Simão, dizendo-lhe que
picasse a toda a brida, que ele e o cunhado lá iriam ter. O acadêmico recebeu
com enfado a advertência, admoestando-os a que o não tivessem em tal vil preço.
E acintemente sofreu as rédeas para não forçar os homens a aligeirar o passo.


Vá como quiser – disse mestre João – que nós vamos por fora do caminho.

E
subiram a uma rampa de olivais, para tornarem a descer encobertos por moitas de
giesta, cosendo-se aos torcicolos duma parede paralela com a estrada.


O atalho vai acolá onde a serra faz aquele cotovelo – disse o ferrador ao
cunhado, – hão de ali passar, ou já passaram. A estrada vai mesmo na quebrada
daquele outeirinho. Os homens é dali que vão atirar, encobertos pelos
sobreiros. Vamos depressa…

E
um pouco descobertos, e outro curvados à sombra das devesas, chegaram a um
valado donde ouviram os passos dos dois homens que atravessavam o pontilhão de
um córrego.


Já não vamos a tempo – disse aflito o João da Cruz – os homens vão atirar-lhe, porque
o cavalo trupa cá muito atrás.

E
corriam já sem temor de serem vistos, porque os outros tinham dobrado o
outeiro, em cujo vale corria a estrada.


Os homens vão atirar-lhe… – disse o ferrador.


Gritemos daqui ao doutor que não vá para diante.


Já não é tempo… Ou o matem ou não matem, quando voltarem são nossos.

Tinham
já passado o pontilhão, e subiam a ladeira quando ouviram dois tiros.


Arriba! – exclamou João da Cruz – que não vão meter-se à estrada, se mataram o
fidalgo.

Tinham
vencido o chá, esbofados e ansiados, com as davinas aperradas. Os criados de
Baltasar, ao invés da conjetura do ferrador, retrocediam pelo mesmo atalho,
supondo que os companheiros de Simão iam adiante batendo os pontos azados à
emboscada, ou se tinham retardado.


Eles aí vêm! disse o arreeiro.


Nós cá estamos – respondeu o ferrador, sentando-se a coberto de um cômoro. –
Senta-te também, que eu não estou para correr atrás deles. Os assassinos, a dez
passos, viram de frente erguerem-se os dois vultos, e ladearam cada qual para
seu lado, um galgando os socalcos duma vinha e outro atirando-se a uns
silveirais.


Atira ao da esquerda – disse João da Cruz.

Foram
simultâneas as explosões. A pontaria do ferrador fez logo um cadáver. Os
balotes do arreeiro não estremaram o outro entre o carrascal onde se
embrenhara.

A
este tempo assomava Simão no teso donde lhe tinham atirado, e corria ao ponto
onde ouvira o segundo tiro.


É vossa senhoria, fidalgo – bradou o ferrador.


Sou.


Não o mataram?


Creio que não – respondeu Simão.


Este desalmado deixou fugir o melro – tomou João da Cruz – mas o meu lá está a
pernear na vinha. Sempre lhe quero ver as trombas…

O
ferrador desceu os três socalcos da vinha, e curvou-se sobre o cadáver,
dizendo:


Alma de cântaro, se eu tivesse duas clavinas, não ias sozinho para o inferno.


Anda daí! – disse o arreeiro – deixa lá esse diabo, que o senhor doutor está
ferido num ombro. Vamos depressa, que está o sangue a escorrer-lhe.


Eu vi duas cabeças a espreitarem-me de cima da ribanceira, e cuidei que eram
vocês – disse Simão, enquanto o ferrador, com a destreza de hábil cirurgião,
lhe enfaixava com lenços o braço ferido. – Parei o cavalo, e disse: “Olé!
há novidade?” Logo que me não responderam, saltei para terra; mas ainda eu
tinha um pé no estribo quando me fizeram fogo. Quis saltar à ribanceira, mas
não pude romper o mato. Dei uma voltar grande para achar subida, e foi então
que dei fé de estar ferido.


Isto é uma arranhadura – disse João da Cruz – olhe que eu sei disto, fidalgo!
Estou afeito a curar muitas feridas.


Nos burros, mestre João? – disse o ferido, sorrindo.


E nos cristãos também, senhor doutor. Olhe que houve em Portugal um rei que não
queria outro médico senão um alveitar. Hei de mostrar-lhe o meu corpo, que está
uma rede de facadas, e nunca fui ao cirurgião. Com ceroto e vinagre sou capaz
de ir ressuscitar aquela alma do diabo que ali está a escutar a cavalaria.

Nisto
ouviu-se um leve rumor de folhagem no matagal para onde tinha saltado o
companheiro do morto.

João
da Cruz, como galo de fino olfato, fitou a orelha e resmungou:


Querem vocês ver que eles se armam!.

Dar-se-á
caso que o outro ainda esteja por ali a tremer maleitas?

O
rumor continuou, e logo um bando de pássaros rompeu dentre a folhagem,
chilreando.


O homem está ali – tornou o ferrador. – Passe-me cá uma pistola, senhor Simão!

Correu
mestre João, e ao mesmo tempo uma grande restolhada se fez entre as moitas de
codessos e urzes.


Ele estrinça lenha como um porco do monte! – exclamou o ferrador, – Ó cunhado,
bate este mato com alguns penedos; quero ver sair o javali da moita!..

Para
o outro lado da bouça estava um plaino cultivado. Simão, rodeando a sebe,
conseguira saltar ao campo por sobre a pedra dum agueiro.


Tenha lá mão, mestre; não vá você atirar-me! – bradou Simão ao ferrador.


Pois o fidalgo já aí anda!? Então está fechado o cerco. Eu cá vou fazer de
furão. Se este nos escapa, não há nada seguro neste mundo!

Não
se enganaram. O criado de Baltasar Coutínho, quando se atirara desamparado à brenha,
deslocara um joelho, e caíra atordoado. O arreeiro não examinou o efeito do
tiro, porque atirara à ventura, e achava natural que o fugitivo se não
molestasse. Quando volveu a si do aturdimento da queda, o homem arrastou-se até
encontrar um cercado de árvores silvestres, em que pernoitava a passarinhada.
Como os melros cacarejassem, esvoaçando, o criado de Baltasar retrocedeu para o
mato, cuidando que aí escaparia; mas o arreeiro jogava enormes calhaus em todas
as direções, e alguns acercavam mais que as balas do seu bacamarte. João da
Cruz tirou do bolso da jaqueta um podão, e começou a cortar a selva de carvalhas
novas e giestas que se emaranhavam em redor do esconderijo. Já cansado, porém,
e vendo o pouco fruto do trabalho, disse ao arreeiro:


Petisca lume, vai ali dentro buscar um pouco de restolho seco, e vamos pegar
fogo ao mato, que este ladrão há de morrer assado.

O
perseguido, quando tal ouviu, tirou do maior perigo coragem para fugir,
rompendo a espessura e saltando a parede da tapada para o campo do restolho em
que o arreeiro andava apanhando palha e Simão esperava o desfecho da montaria.
Correram a um tempo o arreeiro e o acadêmico sobre ele, O fugitivo, sentindo-se
alcançado, lançou-se de joelhos e mãos erguidas, pedindo perdão, e dizendo que
o amo o obrigaria àquela desgraça. Já a coronha do bacamarte do arreeiro lhe ia
direita ao peito, quando Simão lhe reteve o braço.


Não se bate num homem ajoelhado! – disse o moço – Levanta-te, rapaz!


Eu não posso, senhor. Tenho uma perna quebrada e estou aleijado para a minha
vida!

Neste
comenos chegou o ferrador, e exclamou:


Pois esse tratante ainda está vivo!?

E
correu sobre ele com o podão.


Não mate o homem, senhor João! – disse o filho do corregedor’.


Que o não mate! Essa é de cabo de esquadra! Com que então o fidalgo quer
pagar-me com a forca o favor de o acompanhar… hein?


Com a forca?! – atalhou Simão.


Pudera não! Quer que este homem fique para ir contar a história? Acha bonito?
Lá vossa senhoria, como é filho de ministro, não terá perigo; mas eu, que sou
ferrador, posso contar que desta vez tenho o baraço no pescoço. Não me faz
jeito o negócio. Deixe-me cá com o homem…


Não o mate, senhor João; peço-lhe eu que o deixe ir. Uma testemunha não nos
pode fazer mal.


O quê! – redarguiu o ferrador – vossa senhoria é doutor, saberá muito, mas de
justiça não sabe nada. e há de perdoar o meu atrevimento. Basta uma só
testemunha para guiar a justiça na devassa. As duas por três, uma testemunha de
vista, e quatro de ouvir dizer, com o fidalgo de Castro d’Aire a mexer os
pauzinhos, é forca certa, como dois e dois serem quatro.


Eu não digo nada; não me matem, que eu nem torno a ir para Castro d’Aire –
exclamou o homem.


Deixe-o ficar, João da Cruz… vamos embora…


Isso! – acudiu o ferrador – Chame-me João da Cruz… para este maroto ficar bem
certo de que sou o João da Cruz… Como efeito, não sei o que me parece vossa
senhoria querer deixar com vida uma alma do diabo que lhe deu um tiro para o
matar.


Pois sim, tem você razão; mas eu não sei castigar miseráveis que não resistem.


E, se ele o tivesse matado, castigava-o? Responda a isto, senhor doutor.


Vamos embora – tornou Simão – deixemos por aí esse miserável.

Mestre
João cismou alguns momentos, coçando a cabeça, e resmungou com descontentamento:


Vamos lá… Quem o seu inimigo poupa nas mãos lhe morre.

Tinham
já saído do plano e saltado o tapada, e iam descendo para a estrada, quando o
ferrador exclamou:


Lá me ficou a minha clavina escostada à sebe… Vão indo que eu venho já.

O
arreeiro conduzia o cavalo, que pacificamente estivera tosando a relva das
paredes marginais da estrada, quando Simão ouviu gritos. Conjeturou com certeza
o que era.


O João lá está a fazer justiça! – disse o arreeiro – Deixá-lo lá, meu amo, que
ele é homem que sabe o que faz.

João
da Cruz apareceu daí a pouco, limpando com fentos o podão ensanguentado.


Você é cruel, sr. João – disse o acadêmico.


Não sou cruel – disse o ferrador – o fidalgo está enganado comigo; é que, diz
lá o ditado, morrer por morrer, morra meu pai, que é mais velho. Tanto faz
matar um como dois. Quando se está com a mão na massa, tanto faz amassar um
alqueire como três. As obras devem ser acabadas, ou então o melhor é não se
meter a gente nelas. Agora levo a minha consciência sossegada. A justiça que
prove, se quiser; mas não há de ser porque lho digam aqueles dois que eu mandei
de presente ao diabo.

Simão
teve um instante de horror do homicida, e de arrependimento de se ter ligado
com tal homem.

 

 

 

VII

 

O ferimento de Simão
Botelho era melindroso demais para obedecer prontamente ao curativo do
ferrador, enfronhado em aforismos de alveitaria. A bala passara-lhe de revés a
porção muscular do braço esquerdo; mas algum vaso importante rompera, que não
bastavam compressas a vedar-lhe o sangue. Horas depois de ferido, o acadêmico
deitou-se febril, deixando-se medicar pelo ferrador. O arreeiro partiu para
Coimbra, encarregado de espalhar a notícia de ter ficado no Porto Simão
Botelho.

Mais
que as dores e o receio da amputação, o mortificava a ânsia de saber novas de
Teresa. João da Cruz estava sempre de sobrerrolda, precavido contra algum
procedimento judicial por suspeitas dele. As pessoas que vinham de feirar na
cidade contavam todas que dois homens tinham aparecido mortos, e constava serem
criados dum fidalgo de Castrod’Aire, Ninguém, porém, ouvira imputar o
assassínio a determinadas pessoas.

Na
tarde desse dia recebeu Simão a seguinte carta de Teresa:

 

“Deus permita que
tenhas chegado sem perigo a casa dessa boa gente. Eu não sei o que se passa.
mas há coisa misteriosa que eu não posso adivinhar. Meu pai tem estado toda a
manhã fechado com o primo, e a mim não me deixa sair do quarto. Mandou-me tirar
o tinteiro; mas eu felizmente estava prevenida com outro. Nossa Senhora quis
que a pobre viesse pedir esmola debaixo da janela do meu quarto; senão, eu nem
tinha modo de lhe dar sinal para ela esperar esta carta. Não sei o que ela me
disse Falou-me em criados mortos; mas eu não pude entender… Tua mana Rita
está-me acenando por trás dos vidros do teu quarto…

 

Disse-me
agora tua mana que os moços de meu primo tinham aparecido mortos perto da
estrada. Agora já sei tudo. Estive para lhe dizer que tu aí estás, mas não me
deram tempo. Meu pai de hora a hora dá passeios no corredor, e solta uns ais
muitos altos.

Ó
meu querido Simão, que será feito de ti?… Estás ferido? Serei eu a causa da
tua morte?

Dize-me
o que souberes. Eu já não peço a Deus senão a tua vida. Foge desses sítios: vai
para Coimbra, e espera que o tempo melhore a nossa situação. Tem confiança
nesta desgraçada, que é digna da tua dedicação… Chega a pobre: não quero
demorá-la mais… Perguntei-lhe se se dizia de ti alguma coisa, e ela respondeu
que não. Deus o queira”.

Respondeu
Simão a querer tranquilizar o ânimo de Tereza. Do seu sofrimento falava tão de
passagem, que dava a supor que nem o curativo era necessário. Prometia partir
para Coimbra logo que o pudesse fazer sem receio de Teresa sofrer na sua
ausência. Animava-a a chamá-lo assim que as ameaças do convento passassem a ser
realizadas.

Entretanto,
Baltasar Coutinho, chamado às autoridades judiciárias para esclarecer a devassa
instaurada, respondeu que efetivamente os homens mortos eram seus criados, de
quem ele e sua família se acompanhara de Castro d’Aire. Acrescentou que não
sabia que eles tivessem inimigos em Viseu, nem tinha contra alguém as mais
leves presunções.

Os
mais próximos vizinhos da localidade onde os cadáveres tinham aparecido apenas
depunham que, alta noite, tinham ouvido dois tiros ao mesmo tempo, e outro
pouco depois. Um apenas adiantava coisa que não podia alumiar a justiça, e
vinha a ser que o mato, nas vizinhanças do local, fora chapotado. Nesta
escuridade a justiça não podia dar passo algum.

Tadeu
de Albuquerque era conivente no atentado contra a vida de Simão Botelho. Fora
seu ó alvitre, quando o sobrinho denunciou a causa das saídas frequentes de
Teresa na noite do baile. Tanto ao velho como ao morgado convinha apagar algum
indício que pudesse envolvê-los no mistério daquelas duas mortes. Os criados
não mereciam as penas dum desforço que implicasse o desdouro de seus amos.
Provas contra Simão Botelho não podiam aduzi-las. Aquela hora o supunham eles a
caminho de Coimbra, ou refugiado em casa de seu pai. Restava-lhes ainda a
esperança de que ele tivesse sido ferido, e fosse acabar longe do local em que
o tinham assaltado.

Enquanto
a Teresa, resolveu Albuquerque encerrá-la num convento do Porto, e escolheu
Monchique, onde era prioresa uma sua próxima parenta. Escreveu à prelada para
lhe preparar aposentos, e ao procurador para negociar as licenças eclesiásticas
para a entrada. Todavia, receando o velho algum incidente no espaço de tempo
que medeava até se conseguirem as licenças, resolveu não ter consigo Teresa, e
solicitou a retenção temporária dela num convento de Viseu.

Acabara
Teresa de ler e esconder no seio a resposta de Simão Botelho que a mendiga lhe
passara ao escurecer, pendente de uma linha, quando o pai entrou no seu quarto,
e a mandou vestir-se. A menina obedeceu, tomando uma capa e um lenço,


Vista-se como quem é: lembre-se que ainda tem os meus apelidos – disse com
severidade o velho.


Cuidei que não era preciso vestir-me melhor para sair à noite… – disse
Teresa.


E a senhora sabe para onde vai?


Não sei… meu pai.


Então vista-se, e não me dê leis.


Mas, meu pai. atenda-me um momento.


Diga.


Se a sua idéia é obrigar-me a casar com meu primo…


E daí?


De certo não caso; morro, e morro contente, mas não caso.


Nem ele a quer. A senhora é indigna de Baltasar Coutinho. Um homem do meu
sangue não aceita para esposa uma mulher que fala de noite aos amantes nos
quintais. Vista-se depressa, que vai para um convento.


Prontamente, meu pai. Esse destino lho pedi eu muitas vezes.


Não quero reflexões. Daqui a pouco apareça-me vestida. Suas primas esperam-na
para a acompanharem.

Quando
se viu sozinha, Teresa debulhou-se em lágrimas, e quis escrever a Simão. Aquela
hora quem lhe levaria a carta? Apelou para o retábulo da Virgem, que ela fizera
confidente do seu amor. Pediu-lhe de joelhos que a protegesse, e desse forças a
Simão para resistir ao golpe, e guardar-lhe constância através dos trabalhos
que sucedessem, Depois vestiu-se, comprimindo contra o seio um embrulho em que
levava o tinteiro, o papel e o macete de cartas de Simão. Saiu do seu quarto,
relanceando os olhos lacrimosos para o painel da Virgem, e, encontrando o pai,
pediu-lhe licença para levar consigo aquela devota imagem.


Lá irá ter – respondeu ele. – Se tivesse tanta vergonha como devoção, seria
mais feliz do que há de ser.

Uma
das primas, irmãs de Baltasar, chamou-a de parte. e segredou-lhe:


Ó menina, estava ainda na tua mão dares remédio à desordem desta casa…


Qual remédio?! – perguntou Teresa com artificial seriedade.


Diz a teu pai que não duvidas casar com o mano Baltasar…


Primo Baltasar não me quer – replicou ela, sorrindo.


Quem te disse isso, Teresinha?


Disse-mo meu pai.


Deixa falar teu pai, está desatinado com o amor que te tem. Queres tu que eu
lhe fale.


Para quê?


Para se remediar deste modo a desgraça de todos nós.


Estás a brincar, prima! – redarguiu Teresa. – Eu hei de ser tua cunhada quando
não tiver coração. Teu mano tem a certeza de que eu amo outro homem. Queria
viver para ele; mas, se quiserem que eu morra por ele, abençoarei’ todos os
meus algozes. Podes dizer isto ao primo Baltasar e dize-lho antes que te
esqueça.


Então? Vamos! – disse o velho.


Estou pronta, meu pai.

Abriu-se
a portaria do mosteiro. Teresa entrou sem uma lágrima. Beijou a mão de seu pai,
que ele não ousou recusar-lhe na pre-sença das freiras. Abraçou suas primas,
com semblante de regozijo; e, ao fechar-se a porta, exclamou, com grande
espanto das monjas:


Estou mais livre que nunca. A liberdade do coração é tudo.

As
freiras olharam-se entre si, como se ouvissem na palavra “coração”
uma heresia, uma blasfêmia proferida na casa do Senhor.


Que diz a menina?! – perguntou a prioresa, fitando-a por cima dos óculos, e
apanhando no lenço de Alcobaça a destilação do esturrinho.


Disse eu que me sentia aqui muito bem, minha senhora.


Não
diga – minha senhora – atalhou a escrivã.


Como hei de dizer?


Diga: “nossa madre prioresa”.


Pois sim, nossa madre prioresa, disse eu que me sentia aqui muito bem.


Mas quem vem para estas casas de Deus não vem para se sentir bem – tornou a
nossa madre prioresa.


Não?! – disse Teresa com sincera admiração.


Quem para aqui vem, menina, há de mortificar o espírito, e deixar lá fora as
paixões mundanas. Ora pois! Aqui está a nossa madre mestra de noviças, a quem
compete encaminhá-la e dirigi-la.

Teresa
não redarguiu: fez um gesto de respeito à mestra de noviças, e seguiu o caminho
que a prelada lhe ia indicando.

A
nossa madre entrou nos seus aposentos, e disse a Teresa que era sua hóspeda enquanto
ali estivesse; e ajuntou que não sabia se seu pai escolheria aquele convento ou
outro.


Que importa que seja um ou outro? – disse Teresa.


É conforme. Seu pai pode querer que a menina professe em ordem rica das bentas
ou bernardas.


Professe! – exclamou Teresa. – Eu não quero ser freira aqui, nem noutra parte.


A senhora há de ser o que seu pai quiser que seja.


Freira?! A isso não pode ninguém obrigar-me! -recalcitrou Teresa.


Isso assim é – retorquiu a prioresa – mas, como a menina tem de noviciado um
ano, sobra-lhe tempo para se habituar a esta vida, e verá que não há vida mais
descansada para o corpo, nem mais saúdavel para a alma.


Mas a nossa madre – tornou Teresa, sorrindo, como se a ironia lhe fosse
habitual – já disse que a estas casas ninguém vem para se sentir bem…


É um modo de falar, menina. Todos temos as nossas mortificações e obrigações de
coro e de serviços para que nem sempre o espírito está bem disposto. Ora vês
aí. Mas, em comparação do que lá vai pelo mundo, o convento é um paraíso. Aqui
não há paixões, nem cuidados que tirem o sono, nem a vontade de comer, bendito
seja o Senhor! Vivemos umas com as outras como Deus com os anjos. O que uma
quer querem todas. Más línguas é coisa que a menina não há de achar aqui, nem
intriguistas, nem murmurações de soalheiro. Enfim, Deus fará o que for servido.
Eu vou à cozinha buscar a ceia da menina, e já volto. Aqui a deixo com a
senhora madre organista, que é uma pomba, e com a nossa mestra de noviças, que
sabe dizer melhor que eu o que é a virtude nestas santas casas.

Apenas
a prioresa voltou as costas, disse a organista à mestra de noviças:


Que impostora!


E que estúpida! – acudiu a outra. – A menina não se fie nesta trapalhona, e
veja se seu pai lhe dá outra companhia enquanto cá estiver, que a prioresa é a
maior intriguista do convento. Depois que fez sessenta anos, fala das paixões
do mundo como quem as conhece por dentro e por fora. Enquanto foi nova, era a
freira que mais escândalos dava na casa; depois de velha era a mais ridícula
porque ainda queria amar e ser amada; agora, que está decrépita, anda sempre
este mostrengo a fazer missões e a curar indigestões.

Teresa,
apesar da sua dor, não pôde reprimir uma risada, lembrando-se da vida de
Deus com os anjos
que as esposas do Senhor ali viviam, no dizer da madre
prioresa.

Pouco
depois, entrou a prelada com a ceia, e saíram as duas freiras.


Que lhe pareceram as duas religiosas que ficaram com a menina? – disse ela a
Teresa.


Pareceram-me muito bem.

A
velha distendeu os beiços matizados de meandros de esturrinho líquido, e
regougou:


Hum!… Está feito, está feito!… Ainda não são das piores; mas, se fossem
melhores, não se perdia nada… Ora vamos a isto, menina; aqui tem duas pernas
de galinha e um caldo que o podem comer os anjos.


Eu não como nada, minha senhora – disse Teresa.


Ora essa! Não come nada?! Há de comer; sem comer ninguém resiste. Paixões…
que as leve o porco-sujo!… As mulheres é que ficam logradas, e eles não têm
que perder!… Que eu, cá de mim, até ao presente, Deus louvado, não sei o que
sejam paixões; mas quem tem cinquenta e cinco anos de convento, tem muita
experiência do que vê penar às outras doidivanas. E, para não ir mais longe,
estas duas que daqui saíram têm pagado bem o seu tributo à asneira, Deus me
perdoe, se peco. A organista tem já os seus quarenta bons, e ainda vai ao
locutório derreter-se em finezas; a outra, apesar de ser mestra de noviças, à
falta doutra que quisesse sê-lo, se eu lhe não andasse com o olho em cima,
estragava-me as raparigas.

Este
edificante discurso de caridade foi interrompido pela madre escrivã, que vinha,
palitando os dentes, pedir à prelada um copinho de certo vinho estomacal com
que todas as noites era brindada.


Estava eu a dizer a esta menina as peças que são a organista e a mestra – disse
a prioresa.


Oh! são para o que eu lhe prestar! Lá foram ambas para a cela da porteira. A
esta hora está a menina a ser cortada por aquelas línguas, que não perdoam a
ninguém.


Vais tu ver se ouves alguma coisa, minha flor? – disse a prelada.

A
escrivã, contente da missão, foi imperceptivelmente ao longo dos dormitórios
até parar a uma porta, que não vedava o ruído estridente das risadas.

No
entanto, dizia a prelada a Teresa:


Esta escrivã não é má rapariga. Só tem o defeito de se tomar da pingoleta;
depois, não há quem a ature. Tem uma boa tença, mas gasta tudo em vinho, e tem
ocasiões de entrar no coro a fazer ss que é mesmo uma desgraça. Não tem
outro defeito; é uma alma lavada, e amiga da sua amiga de verdade, que, às
vezes… (aqui a prelada ergueu-se a escutar nos dormitórios, e fechou por
dentro a porta); é verdade que, às vezes, quando anda azoratada, dá por paus e
por pedras, e descobre os defeitos das suas amigas. A mim já ela me assacou um
aleive, dizendo que eu, quando saía a ares, não ia só a ares, e andava por lá a
fazer o que fazem as outras. Forte pouca vergonha! Lá que outra falasse, vá;
mas ela, que tem sempre uns namorados pandilhas que bebem com ela na grade,
isso lá me custa; mas, enfim, não há ninguém perfeito!… Boa rapariga é ela…
se não fosse aquele maldito vício…

Como
tocasse ao coro nesta ocasião, a veneranda prioresa bebeu o segundo cálice do
vinho estomacal, e disse a Teresa que a esperasse um quarto de hora, que ela ia
ao coro, e pouco se demoraria. Tinha ela saído, quando a escrivã entrou a tempo
que Teresa, com as mãos abertas sobre a face, dizia em si: “Um convento,
meu Deus! Isto é que é um convento?”


Está sozinha? – disse a escrivã.


Estou, minha senhora.


Pois aquela grosseira vai-se embora, e deixa uma hóspeda sozinha?! Bem se vê
que é filha de funileiro!… Pois tinha tempo de ter prática do mundo, que tem
andado por lá que farte… Eu havia de ir ao coro… Mas não vou, para lhe
fazer companhia, menina.


Vá, vá minha senhora, que eu fico bem sozinha – disse Teresa, com a esperança
de poder desafogar em lágrimas a sua aflição.


Não vou,… A menina aqui estarrecia de medo; mas a prelada não tarda aí. Ela,
se pode escapar-se do coro, não para lá muito tempo. Apostar que ela lhe esteve
a falar mal de mim?


Não, minha senhora, pelo contrário…


Ora, diga a verdade, menina! Eu sei que esta cegonha não fala bem de ninguém.
Para ela tudo são libertinas e bêbedas.


Nada, não, minha senhora; nada me disse a respeito de alguma freira,


E, se disse, deixá-la dizer. Ela o vinho não o bebe, suga-o; é uma esponja
viva. Enquanto à libertinagem, tomara eu tantos mil cruzados como de amantes
ela tem tido! Faz lá uma pequena idéia, menina!…

A
escrivã bebeu um cálice do vinho da sua prelada, e continuou:


Faz lá uma pequena idéia! Ela é velhíssima como a sé. Quando eu professei, já
ela era velha como agora, com pouca diferença. Ora eu sou freira há vinte e
seis anos. Calcule a menina quantas arrobas de esturrinho ela tem atulhado
naqueles narizes! Pois olhe, quer me creia, quer não, tenho-lhe conhecido mais
de uma dúzia de chichisbéus, não falando do padre capelão, que esse ainda agora
lhe fornece a garrafeira, à nossa custa, entende-se. É uma dissipadora dos
rendimentos da casa. Eu, que sou escrivã, é que sei o que ela rouba. Eu tenho
imensa pena de ver a menina hospedada em casa desta hipócrita. Não se deixe
levar das imposturices dela, meu anjinho. Eu sei que seu pai lhe mandou falar,
e a encarregou de a não deixar escrever, nem receber cartas; mas olhe, minha
filha, se quiser escrever, eu dou-lhe tinteiro, papel, obreias e o meu quarto,
se para lá quiser ir escrever. Se tem alguém que lhe escreva, diga-lhe que
mande as cartas em meu nome; eu chamo-me Dionísia da Imaculada Conceição.


Muita agradecida, minha senhora – disse Teresa, animada pelo
oferecimento. – Quem me dera poder mandar um recado a uma pobre que mora no
beco do…


O que quiser, menina. Eu mando lá logo que for dia. Esteja descansada. Não se
fie de alguém, senão de mim. Olhe que a mestra de noviças e a organista são
duas falsas. Não lhes dê trela, que, se as admite à sua confiança,
está perdida. Ai vem a lesma… Falemos noutra coisa…

A
prelada vinha entrando, e a escrivã prosseguiu assim:


Não há, não há nada mais agradável que a vida do convento quando se tem a
fortuna de ter uma prelada como a nossa… Aí! eras tu, menina? Olha se
estivéssemos a falar mal de ti!


Eu sei que tu nunca falas mal de mim – disse a prelada, piscando o olho a
Teresa. – Aí está essa menina que diga o que eu lhe estive a dizer das tuas
boas qualidades…


Pois o que eu disse de ti – respondeu sóror Dionísia da Imaculada Conceição –
não precisas de perguntar porque felizmente ouviste o que eu estava dizendo.
Oxalá que se pudesse dizer o mesmo das outras que desonram a casa, e trazem
aqui tudo intrigado numa meada, que é mesmo coisa de pecado!


Então não vais ao coro, Nini? – tornou a prioresa.


Já agora é tarde… Tu absolves-me da falta, sim?


Absolvo, absolvo; mas dou-te como penitência beberes um copinho…


Do estomacal?


Pudera!

Dionisia
cumpriu a penitência, e saiu para, dizia ela deixar a prelada na sua hora de
oração.

Não
delongaremos esta amostra do evangélico e exemplar viver do convento onde Tadeu
de Albuquerque mandara sua filha a respirar o puríssimo ar dos anjos, enquanto
se lhe preparava crisol mais depurador dos sedimentos do vício no convento de
Manchique.

Encheu-se
o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas horas de vida conventual.
Ignorava ela que o mundo tinha daquilo. Ouvira falar dos mosteiros como de um
refúgio da virtude, da inocência e das esperanças imorredoiras. Algumas cartas
lera de sua tia, prelada em Monchique, e por elas formara conceito do que devia
ser uma santa. Daquelas mesmas dominicanas, em cuja casa estava, ouvira dizer
às velhas e devotas fidalgas de Víseu virtudes, maravilhas de caridade, e até
milagres. Que desilusão tão triste e, ao mesmo tempo, que ânsia de fugir dali!

A
cama de Teresa estava na mesma cela da prioresa, em alço-va. separada, com
cortinas de cassa.

Quando
a prelada lhe disse que podia deitar-se, querendo, perguntou-lhe a menina se
poderia escrever a seu pai. A freira respondeu que no dia seguinte o faria,
posto que o senhor Albuquerque ordenasse que sua filha não escrevesse; assim
mesmo, ajuntou ela, que lho não proibiria, se tivesse tinteiro e papel na cela.

Teresa
deitou-se, e a prelada ajoelhou diante dum oratório, rezando a coroa a meia
voz, Se o murmúrio da oração enfadasse a hóspeda, não teria ela muita razão de
queixa, porque a devota monja, ao segundo Padre-nosso, cabeceava de modo
que já não atinou com a primeira Ave-Maria. Levantou-se, cambaleando uma
mesura às imagens do santuário, foi deitar-se, e pegou a ressonar.

Teresa
afastou sutilmente as cortinas do quarto, e tirou de entre o seu fato o
tinteiro de tarraxa e o papel.

A
lâmpada do oratório lançava um frouxo raio sobre a cadeira em que Teresa pusera
os seus vestidos. Desceu da cama, ajoelhou ao pé da cadeira, e escreveu a
Simão, relatando-lhe minuciosamente os sucessos daquele dia. A carta rematava
assim:

 

“Não receies nada
por mim, Simão. Todos estes trabalhos me parecem leves, se os comparo aos que
tens padecido por amor de mim. A desgraça não abala a minha firmeza, nem deve
intimidar os teus projetos. São alguns dias de tempestade, e mais nada.
Qualquer nova resolução que meu pai tome dír-ta-ei logo, podendo, ou quando
puder. A falta das minhas noticias deves atribuí-la sempre ao impossível.
Ama-me assim desgraçada, porque me parece que os desgraçados são os que mais
precisam de amor e de conforto. Vou ver se posso esquecer-me, dormindo. Como
isto é triste, meu querido amigo!… Adeus”.

 

VIII

 

Mariana, a filha de João
da Cruz, quando viu seu pai pensar a chaga do braço de Simão, perdeu os
sentidos. O ferrador riu estrondosamente da fraqueza da moça, e o acadêmico
achou estranha sensibilidade em mulher afeita a curar as feridas com que seu
pai vinha laureado de todas as feiras e romarias.


Não há ainda um ano que me fizeram três buracos na cabeça, quando eu fui à
Senhora dos Remédios, a Lamego, e foi ela que me tosqueou e rapou o casco à
navalha – disse o ferrador. – Pelo que vejo, o sangue do fidalgo deu volta ao
estômago da rapariga!… Estamos então bem aviados! Eu tenho cá a minha vida, e
queria que ela fosse a enfermeira do meu doente… És, ou não és, rapariga? –
disse ele à filha quando ela abriu os olhos, com semblante de envergonhada da
sua fraqueza.


Serei com muito gosto, se o pai quiser.


Pois, então, moça, se hás de ir costurar para a varanda, vem aqui para a beira
do senhor Simão. Dá-lhe caldos a miúdo, e trata-lhe da ferida; vinagre e mais
vinagre, quando ela estiver assim a modo de roxa. Conversa com ele, não o
deixes estar a malucar, nem escrever muito, que não é bom quando se está fraco
do miolo. E vossa senhoria não tenha aquelas de cerimônia, nem me diga à
Mariana – a menina isto, a menina aquilo. É – rapariga, da cá um caldo;
rapariga, lava-me o braço, da cá as compressas – e nada de políticas. Ela está
aqui como sua criada, porque eu já lhe disse que, se não fosse o pai de vossa
senhoria, já ela há muito tempo que andava por aí às esmolas, ou pior ainda. E
verdade que eu podia deixar-lhe uns benzinhos ganhos ali a suar na bigorna há
dez anos, afora uns quatrocentos mil réis que herdei de minha mãe, que Deus
haja; mas vossa senhoria bem sabe que, se eu fosse à forca ou pela barra fora,
vinha a justiça, e tomava conta de tudo para as custas.


Vossemecê tem uma casinha sofrível – atalhou Simão – pode, querendo, casar a
sua filha numa boa casa de lavoura.


Assim ela quisesse. Maridos não lhe faltam; até o alferes da casa da Igreja a
queria, se eu lhe fizesse doação de tudo, que pouco é, mas ainda quatro mil
cruzados bons; o caso é que a moça não tem querido casar, e eu, a falar a
verdade, sou só e mais ela, e também não tenho grande vontade de ficar sem esta
companhia, para quem trabalho como moiro. Se não fosse ela, fidalgo, muitas
asneiras tinha eu feito! Quando vou às feiras ou romarias, se a levo comigo,
não bato, nem apanho; indo sozinho, é desordem certa. A rapariga já conhece
quando a pinga me sobe ao capacete do alambique; puxa-me pela jaqueta, e por
bons modos põe-me fora do arraial. Se alguém chama para beber mais um
quartilho, ela não me deixa ir, e eu acho graça à obediência com que me deixo
guiar pela moça, que me pede que não vá por alma da mãe. Eu cá, em ela me
pedindo por alma da minha santa mulher, já não sei de que freguesia sou.

Mariana
ouvia o pai. escondendo meio rosto no seu alvíssimo avental de linho. Simão
estava-se gozando na simpleza daquele quadro rústico, mas sublime de
naturalidade.

João
da Cruz foi chamado para ferrar um cavalo, e despediu-se nestes termos:


Tenho dito, rapariga; aqui te entrego o nosso doente: trata-o como quem é e
como se fosse teu irmão ou marido.

O
rosto de Mariana acerejou-se quando aquela última palavra saiu, natural como
todas, da boca de seu pai.

A
moça ficou encostada ao batente da alcova de Simão.


Não foi nada boa esta praga que lhe caiu em casa, Mariana! – disse o acadêmico
– Fazerem-na enfermeira dum doente, e privarem-na talvez de ir costurar na sua
varanda, e conversar com as pessoas que passam…


Que se me dá a mim disso? – respondeu ela, sacudindo o avental, e baixando o
cós ao lugar da cintura com infantil graça.


Sente-se, Mariana; seu pai disse-lhe que se sentasse… Vá buscar a sua
costura, e dê-me dali um folha de papel e um lápis que está na carteira.


Mas o pai também me disse que o não deixasse escrever… – replicou ela,
sorrindo.


Pouco, não faz mal. Eu escrevo apenas algumas linhas.


Veja lá o que faz… – tornou ela, dando-lhe o papel e o lápis – Olhe se alguma
carta se perde, e se descobre tudo…


Tudo o quê, Mariana? Pois sabe alguma coisa.?


Era preciso que eu fosse tola… Eu não lhe disse já que sabia da sua amizade a
uma menina fidalga da cidade?


Disse. Mas que tem isso?


Aconteceu o que eu receava. Vossa senhoria está ai ferido, e toda a gente fala
nuns homens que apareceram mortos.


Que tenho eu com os homens que apareceram mortos?


Para que está a fingir-se de novas?! Pois eu não sei que esses homens eram
criados do primo da tal senhora? Parece que vossa senhoria desconfia de mim, e
está a querer guardar um segredo que eu tomara que ninguém soubesse, para que
meu pai e o senhor Simão não tenha alguns trabalhos maiores…


Tem razão, Mariana; eu não devia esconder de si o mau encontro que tivemos.


E Deus queira que seja o último!… Tanto tenho pedido ao Senhor dos Passos que
lhe dê remédio a essa paixão!… O pior futuro é o que ainda está por passar…


Não, menina, isto acaba assim: eu vou para Coimbra logo que esteja bom, e a
menina da cidade fica em sua casa.


Se assim for, já prometi dois arráteis de cera ao Senhor dos Passos; mas não me
diz o coração que vossa senhoria faça o que diz…


Muito agradecido lhe estou pelo bem que me deseja – disse Simão, comovido. –
Não sei o que lhe fiz para lhe merecer a sua amizade.


Basta ver o que o seu paizinho fez pelo meu – disse ela, limpando as lágrimas.
– O que seria de mim, se ele me faltasse, e se fosse à forca como toda a gente
dizia!… Eu era ainda muito nova quando ele estava na enxovia. Teria treze
anos; mas estava resolvida a atirar-me ao poço, se ele fosse condenado à morte.
Se o degredassem, então ia com ele; ia morrer onde ele fosse morrer. Não há dia
nenhum que eu não peça a Deus que dê a seu pai tantos prazeres como estrelas
tem o céu. Fui de propósito à cidade para beijar os pés à sua mãezinha, e vi
suas manas, e uma, que era a mais nova, deu-me uma saía de lapim, que eu ainda
ali tenho guardada como uma relíquia. Depois, cada vez que ia à feira, dava uma
grande volta para ver se acertava de encontrar a senhora D. Ritinha à janela; e
muitas vezes vi o senhor Simão. E talvez não saiba que eu estava a beber na
fonte quando vossa senhoria, há dois para três anos deu muita
pancada nos criados, que era mesmo um rebuliço que parecia o fim do mundo. Eu
vim contar ao pai. e ele caiu ao chão a dar risadas como um doido… Depois
nunca mais o vi senão quando vossa senhoria entrou com o tio de Coimbra; mas já
sabia que vinha para esta desgraça. porque tinha tido um sonho, em que via
muito sangue, e eu estava a chorar porque via uma pessoa muito minha amiga a
cair numa cova muito funda…


Isso são sonhos, Mariana!…


São sonhos, são; mas eu nunca sonhei nada que não acontecesse. Quando o meu pai
matou o almocreve, tinha eu sonhado que o via a dar um tiro noutro homem; antes
de minha mãe morrer, acordei eu a chorar por ela, e mais ainda viveu dois
meses… A gente da cidade ri-se dos sonhos, mas Deus sabe o que isto é… Aí
vem meu pai… Senhor dos Passos! Não vá ser alguma má nova!…

João
da Cruz entrou com uma carta que recebera da pobre do costume. Enquanto Simão
leu a carta escrita do convento, Mariana fitou os seus grandes olhos azuis no
rosto do acadêmico, e, a cada contração da fronte dele, angustiava-se-lhe a ela
o coração. Não teve mão da sua ânsia, e perguntou:


E noticia má?


Tu és muito atrevida, rapariga! – disse João da Cruz.


Não é, não – atalhou o estudante. – Não é má noticia, Mariana, Senhor João.
deixe-me ter na sua filha uma amiga, que os desgraçados é que sabem avaliar os
amigos.


Isso é verdade; mas eu não me atrevia a perguntar o que a carta diz.


Nem eu perguntei, meu pai; foi porque me pareceu que o senhor Simão estava
aflito quando lia.


E não se enganou – tornou o doente, voltando-se para o ferrador. – O pai
arrastou Teresa ao convento.


Sempre é patife duma vez! – disse o ferrador, fazendo com os braços
instintivamente um movimento de quem aperta às mãos um pescoço.

Neste,
lance, um observador perspicaz veria luzir nos olhos de Mariana um clarão de
inocente alegria.

Simão
sentou-se, e escreveu sobre uma cadeira, que Mariana espontaneamente lhe
chegou, dizendo:


Enquanto escreve, vou olhar pelo caldinho, que está a ferver.

“E
necessário arrancar-te daí – dizia a carta de Simão. – Esse convento há de ter
uma evasiva. Procura-a, e dize-me a noite e a hora em que devo esperar-te. Se
não puderes fugir, essas portas hão de abrir-se diante da minha cólera. Se daí
te mandarem para outro convento mais longe, avisa-me, que eu irei, sozinho ou
acompanhado, roubar-te ao caminho. É indispensável que te refaças de ânimo para
te não assustarem os arrojos da minha paixão. És minha! Não sei de que me serve
a vida, se a não sacrificar a salvar-te. Creio em ti, Teresa, creio. Ser-me-ás
fiel na vida e na morte. Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A
submissão é uma ignomínia quando o poder paternal é uma afronta. Escreve-me a
toda a hora que possas. Eu estou quase bom. Dize-me uma palavra, chama-me, e eu
sentirei que a perda do sangue não diminui as forças do coração”.

Simão
pediu a sua carteira, tirou dinheiro em prata, deu-o ao ferrador, e
recomendou-lhe que o entregasse à pobre com a carta.

Depois
ficou relendo a de Teresa, e recordando-se da resposta que dera.

Mestre
João foi à cozinha, e disse a Mariana:


Desconfio de uma coisa, rapariga.


O que é, meu pai?


O nosso doente está sem dinheiro.


Porquê? O pai como sabe isso?


E que ele pediu-me a carteira para tirar dinheiro, e ela pesava tanto como uma
bexiga de porco cheia de vento.

Isto
bole-me cá por dentro! Queria oferecer-lhe dinheiro e não sei como há de ser…


Eu pensarei nisso, meu pai – disse Mariana. refletindo.


Pois sim; cogita lá tu, que tens melhores idéias que eu.


E, se o pai não quiser bulir nos seus quatrocentos, eu tenho aquele dinheiro
dos meus bezerros: são onze moedas de ouro menos um quarto.


Pois falaremos: pensa tu no modo de ele aceitar sem remorsos.

Remorsos,
na linguagem pouco castigada de mestre João, era sinômico de escrúpulos, ou
repugnância.

Foi
Mariana levar o caldo a Simão, que lho rejeitou como distraído em profundo
cismar.


Pois não toma o caldinho? – disse ela com tristeza.


Não posso, não tenho vontade, menina; será logo. Deixe-me sozinho algum tempo;
vá, vá; não passe o seu tempo ao pé dum doente aborrecido.


Não me quer aqui? Irei, e voltarei quando vossa senhoria chamar.

Dissera
isto Mariana com os olhos a verterem lágrimas.

Simão
notou as lágrimas, e pensou um momento na dedicação da moça; mas não lhe disse
palavra alguma.

E
ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de ocorrer-lhe idéias
aflitivas que os romancistas raras vezes atribuem aos seus heróis. Nos romances
todas as crises se explicam, menos a crise ignóbil da falta de dinheiro.
Entendem os novelistas que a matéria é baixa e plebéia. O estilo vai de má
vontade para coisas rasas. Balzac fala muito em dinheiro; mas dinheiro a
milhões. Não conheço, nos cinquenta livros que tenho dele, um galã num entre
ato da sua tragédia a cismar no modo de arranjar uma quantia com que um
usurário lhe lança, desde a casa do juiz de paz a todas as esquinas, donde o
assaltam o capital e o juro de oitenta por cento. Disto é que os
mestres em romances se escapam sempre. Bem sabem eles que o interesse do leitor
se gela a passo igual que o herói se encolhe nas proporções destes heroizinhos
de botequim, de quem o leitor dinheiroso foge por instinto, e o outro foge
também, porque não tem que fazer com ele. A coisa é vilmente prosáica, de todo
o meu coração o confesso. Não é bonito deixar a gente vulgarizar-se o seu herói
a ponto de pensar na falta de dinheiro, um momento depois que escreveu à mulher
estremecida uma carta como aquela de Simão Botelho. Quem a lesse, diria que o rapaz
tinha postadas, em diferentes estações das estradas do país, carroças e
folgadas parelhas de mulas para transportarem a Paris, a Veneza, ou ao Japão a
bela fugitiva! A estradas, naquele tempo, deviam ser boas para isso, mas não
tenho a certeza de que houvesse estradas para o Japão. Agora creio que há,
porque me dizem que há tudo.

Pois
eu já lhes fiz saber, leitores, pela boca de mestre João, que o filho do
corregedor não tinha dinheiro. Agora lhes digo que era em dinheiro que ele
cismava, quando Mariana lhe trouxe o caldo rejeitado.

A
meu ver, deviam atribulá-lo estes pensamentos:

Como
pagaria a hospitalidade de João da Cruz?

Com
que agradeceria os desvelos de Mariana?

Se
Teresa fugisse, com que recurso proveria à subsistência de ambos?

Ora,
Simão Botelho saíra de Coimbra com a sua mesada, que não era grande, e quase
lha absorvera o aluguel da cavalgadura, e a gorjeta generosa que dera ao
arreeiro, a quem devia o conhecimento do prestante ferrador.

As
relíquias desse dinheiro dera-as ele à portadora da carta naquele dia. Má
situação!

Lembrou-se
de escrever à mãe. Que lhe diria ele? Como explicaria a sua residência naquela
casa? Deste modo não iria ele dar indícios da morte misteriosa dos dois criados
de Baltasar Coutinho?

Além
de que, sobejamente sabia ele que sua mãe o não amava; e, a mandar-lhe algum
dinheiro em segredo, seria o escassamente necessário para a jornada até
Coimbra. Péssima situação!

Cansado
de pensar, favoreceu-o a providência dos infelizes com um sono profundo,

E
Mariana entrara pé ante pé na sala, e, ouvindo-lhe a respiração alta,
aventurou-se a entrar na alcova. Lançou-lhe um lenço de cassa sobre o rosto, em
roda do qual zumbia um enxame de moscas. Viu a carteira sobre uma banqueta que
adornava o quarto, pegou nela, e saiu pé ante pé. Abriu a carteira, viu papéis,
que não soube ler, e num dos repartimentos duas moedas de seis vintéis. Foi
restituir a carteira ao seu lugar, e tomou de um cabide as calças, colete e
jaqueta à espanhola, do hóspede. Examinou os bolsos e não encontrou um ceitil.

Retirou-se
para um canto escuro do sobrado, e meditou. Esteve meia hora assim, e meditava
angustiada a nobre rapariga. Depois ergueu-se de golpe, conversou longo tempo
com o pai. João da Cruz escutou-a, contrariou-a, mas ia de vencida sempre pelas
réplicas da filha, até que, a final, disse:


Farei o que dizes, Mariana. Dá-me cá o teu dinheiro, que não vou agora levantar
a pedra da lareira para bulir no caixote dos quatrocentos mil réis. Tanto faz
um como outro: teu é ele todo.

Mariana
deu-se pressa em ir à arca, donde tirou uma bolsa de linho com dinheiro em
prata, e alguns cordões, anéis e arrecadas. Guardou o seu oiro numa boceta, e
deu a bolsa ao pai.

João
da Cruz aparelhou a égua. e saiu. Mariana foi para a sala do doente.

Acordou
Simão.


Não sabe!? – exclamou ela com semblante entre alegre e assustado, perfeitamente
contrafeito.


Que é, Mariana?


Sua mãezinha sabe que vossa senhoria aqui está.


Sabe?! Isso é impossível! Quem lho disse?


Não sei; o que sei é que ela mandou chamar meu pai.


Isso espanta-me!… E não me escreveu?


Não, senhor!… Agora me lembro que talvez ela soubesse que o senhor aqui
esteve, e cuide que já não está, e por isso lhe não escreveu… Poderá ser?


Poderá… Mas quem lho diria!? Se isto se sabe, então podem suspeitar da morte
dos homens.


Pode ser que não; e ainda que desconfiem, não há testemunhas. O pai disse que
não tinha medo nenhum. O que for soará. Não esteja a cismar nisso… Vou-lhe
buscar o caldinho, sim?


Vá, se quer, Mariana. O céu deparou-me em si a amizade duma irmã.

Não
achou a moça na sua alegre alma palavras em resposta à doçura que o rosto
do mancebo exprimia.

Veio
com o “caldinho” – diminutivo que a retórica duma linguagem meiga
sanciona; mas contra o qual protestava a larga e funda malga branca, ao lado da
travessa com meia galinha loura, de gorda.


Tanta coisa! – exclamou, sorrindo, Simão.


Coma o que puder – disse ela corando. – Eu bem sei que os senhores da cidade
não comem em malgas tamanhas, mas eu não tinha outra mais pequena; e coma sem
nojo, que esta malga nunca serviu, que a fui eu comprar à loja, por pensar que
vossa senhoria não quisera ontem comer por se atrigar da outra.


Não, Mariana, não seja injusta, eu não tinha, nem tenho vontade.


Mas coma por eu lhe pedir… Perdoe o meu atrevimento… Faça de conta que é
uma sua irmã que lhe pede. Ainda agora me disse…


Que o céu me dava em si a amizade duma irmã…


Pois aí está…

Simão
achou tão necessário à sua conservação o sacrifício, como ao contentamento da
carinhosa Mariana. Passou-lhe na mente, sem sombra de vaidade, a conjetura de
que era amado daquela doce criatura. Entre si dizia que seria uma crueza
mostrar-se conhecedor de tal afeição quando não tinha alma para lha premiar,
nem para lhe mentir. Assim mesmo, bem longe de se afligir, lisonjeavam-no os
desvelos da gentil moça. Ninguém sente em si o peso do amor que se inspira e
não comparte. Nas máximas aflições, nas derradeiras horas do coração e da vida,
é grato ainda sentir-se amado quem já não pode achar no amor diversão das
penas, nem soldar o último fio que se está partindo. Orgulho ou insaciabilidade
do coração humano, seja o que for, no amor que nos dão nós graduamos o que
valemos em nossa consciência.

Não
desaprazia, portanto, o amor de Mariana ao amante apaixonado de Teresa. Isto
será culpa no severo tribunal das minhas leitoras; mas, se me deixam ter
opinião, a culpa de Simão Botelho está na fraca natureza, que é toda galas no
céu, no mar e na terra, e toda incoerências, absurdas e vícios no homem, que se
aclamou a si próprio rei da criação, e nesta boa fé dinástica vai vivendo e
morrendo.

Duas
horas se detivera João da Cruz fora de casa. Chegou quando a curiosidade do
estudante era já sofrimento.


Estará seu pai preso?! – disse ele a Mariana.


Não mo diz o coração, e o meu coração nunca me engana – respondera ela.

E
Simão replicara:


E que lhe diz o coração a meu respeito, Mariana? Os meus trabalhos ficarão
aqui?


Vou-lhe dizer a verdade, senhor Simão… mas não digo…


Diga que lho peço, porque tenho fé no bom anjo que fala em sua alma. Diga…


Pois sim… O meu coração diz-me que os seus trabalhos ainda estão no começo…

Simão
ouviu-a atentamente e não respondeu. Assombrou-lhe o ânimo esta idéia torva, e
afrontosa à singela rapariga: – “Pensará ela em me desviar de Teresa, para
se fazer amar?”

Pensava
assim quando chegou o ferrador.


Aqui estou de volta – disse ele com semblante festivo. – Sua mãe mandou-me
chamar…


Já sei… E como soube ela que eu estava aqui?


Ela sabia que o fidalgo estivera cá: mas cuidava que vossa senhoria já tinha
ido para Coimbra. Quem lho disse não sei, nem perguntei; porque a uma pessoa de
respeito não se fazem perguntas. Dizia ela que sabia o fim a que o senhor viera
esconder-se aqui. Ralhou alguma coisa; mas eu, cá como pude, acomodei-a e não
há novidade. Perguntou-me o que estava o menino fazendo aqui depois que a
fidalguinha fora para o convento. Disse-lhe que vossa senhoria estava adoentado
de uma queda que dera do cavalo abaixo. Tornou ela a perguntar-me se o senhor
tinha dinheiro; e eu disse que não sabia. E, vai ela, foi dentro, e voltou dai
a pouco com este embrulho, para eu lhe entregar. Aí o tem tal e qual; não sei
quanto é.


E não me escreveu?


Disse que não podia ir à escrivaninha, porque estava lá o senhor corregedor –
respondeu com firmeza mestre João – e também me recomendou que não lhe
escrevesse vossa senhoria senão de Coimbra, porque, se seu pai soubesse que o
menino cá estava, ia tudo raso lá em casa. Ora ai está.


E não lhe falou nos criados de Baltasar?


Nem um pio!… Lá na cidade ninguém já falava nisso hoje.


E que lhe disse da senhora D. Teresa?


Nada, senão que ela fora para o convento. Agora deixe-me ir amantar a égua, que
está a escorrer em fio. Ó rapariga, traze-me cá a manta.

Enquanto
Simão contava onze moedas menos um quartinho, maravilhando da estranha
liberalidade, Mariana, abraçando o pai no repartimento vizinho da casa,
exclamava:


Arranjou muito bem a mentira!


Ó rapariga, quem mentiu foste tu! Aquilo lá o arranjaste tu com essa tua
cabecinha! Mas a coisa saiu ao pintar, hein? Ele comeu-a que nem confeitos!
Anda lá, que ficaste sem os bezerros, mas lá virá tempo em que ele te dê bois a
troco de bezerros.


Eu não fiz isto por interesse, meu pai… – atalhou ela, ressentida.


Olha o milagre! isso sei eu: mas, como diz lá o ditado; quem semeia, colhe.

Mariana
quedou pensativa, e dizendo entre si: – Ainda bem que ele não pode pensar de
mim o que meu pai pensa. Deus sabe que não tenho esperanças nenhumas
interesseiras no que fiz.

Simão
chamou o ferrador, e disse-lhe:


Meu caro João, se eu não tivesse dinheiro, aceitava sem repugnância os seus
favores, e creio que vossemecê mos faria sem esperança de ganhar com eles; mas,
como recebi esta quantia, há-de consentir que lhe dê parte dela para os meus
alimentos. Motivos de gratidão a dividas que se não pagam. ainda me ficam
muitos para nunca me esquecer de si e da sua boa filha. Tome este dinheiro.


As contas fazem-se no fim – respondeu o ferrador, retirando a mão – e ninguém
nos há de ouvir, se Deus quiser. Precisando eu de dinheiro, cá venha. Por ora,
ainda está a capoeira cheia de galinhas, e o pão coze-se todas as semanas.


Mas aceite – instou Simão – e dê-lhe a aplicação que quiser.


Em minha casa ninguém dá leis senão eu – replicou mestre João, com simulado
enfadamento. – Guarde lá o seu dinheiro, fidalgo, e não falemos mais nisso, se
quer que o negócio vá direito até ao fim. E victo-sério!

Nos
cinco subsequentes dias recebeu Simão regularmente cartas de Teresa, umas
resignadas e confortadoras, outras escritas na violência exasperada da saudade.
Em uma dizia:

 

“Meu pai deve
saber que estás aí, e, enquanto aí estiveres, decerto me não tira do convento.
Seria bom que fosses para Coimbra, e deixássemos esquecer a meu pai os últimos
acontecimentos. Senão, meu querido esposo, nem ele me dá liberdade, nem eu sei
como hei de fugir deste inferno. Não fazes idéia do que é um convento! Se eu
pudesse fazer do meu coração sacrifício a Deus, teria de procurar uma atmosfera
menos viciosa que esta. Creio que em toda a parte se pode orar e ser virtuosa,
menos neste convento”.

 

Noutra
carta exprimia-se assim:

 

“Não me
desampares, Simão; não vás para Coimbra. Eu receio que meu pai me queira mudar
deste convento para outro mais rigoroso. Uma freira me disse que eu não ficava
aqui; outra positivamente me afirmou que o pai diligencia a minha ida para um
mosteiro do Porto. Sobretudo, o que me aterra, mas não me dobra, é saber eu que
o intento do pai é fazer-me professar. Por mais que imagine violências e
tiranias, nenhuma vejo capaz de me arrancar os votos. Eu não posso professar
sem ser noviça um ano, e ir a perguntar três vezes; hei de responder sempre que
não. Se eu pudesse fugir daqui!… Ontem fui à cerca, e vi lá uma porta de
carro que dá para o caminho. Soube que algumas vezes aquela porta se abre para
entrarem carros de lenha; mas infelizmente não se torna a abrir até ao
principio do inverno. Se não puder antes, meu Simão, fugirei nesse tempo”.

 

Tiveram,
entretanto, bom e pronto êxito as diligências de Tadeu de Albuquerque. A
prelada de Monchique, religiosa de sumas virtudes, cuidando que a filha de seu
primo muito de sua devoção e amor a Deus se recolhia ao mosteiro, preparou-lhe
casa, e congratulou-se com a sobrinha de tão piedosa resolução. A carta
congratulatória não a recebeu Teresa, porque viera à mão de seu pai. Continha
ela reflexões tendentes a desvanecê-la do propósito, se algum desgosto
passageiro a impedia à imprudência de procurar um refúgio onde as paixões se
exacerbavam mais.

Tomadas
todas as precauções, Tadeu de Albuquerque fez avisar sua filha de que sua tia
de Monchique a queria ter em sua companhia algum tempo, e que a jornada se
faria na madrugada do dia seguinte.

Teresa,
quando recebeu a surpreendente nova, já tinha enviado a carta daquele dia a
Simão. Em sua aflitiva perplexidade, resolveu fazer-se doente, e tão febril
estava das comoções, que dispensava o artifício. O velho não queria transigir
com a doença; mas o médico do mosteiro reagiu contra a desumanidade do pai e da
prioresa, interessada na violência. Quis Teresa nessa noite escrever a Simão;
mas a criada da prelada, obedecendo às suspeitas da ama, não desamparou a cabeceira
do leito da enferma. Era causa a esta espionagem ter dito a escrivã, numa hora
de má digestão daquele certo vinho estomacal, que Teresa passava as noites em
oração mental, e tinha correspondência com um anjo do céu por intervenção duma
mendiga. Algumas religiosas tinham visto a mendiga no pátio do convento
esperando a esmola de Teresa; mas cuidaram que era aquela pobre uma devoção da
menina. As palavras irônicas da escrivã foram comentadas, e a mendiga recebeu
ordem de sair da portaria. Teresa, num ímpeto de angústia, quando tal soube,
correu a uma janela, e chamou a pobre, que se retirava assustada, e lançou-lhe
ao pátio um bilhete com estas palavras: “É impossível a nossa
correspondência. Vou ser tirada daqui para outro convento. Espera em Coimbra notícias
minhas”. Isto foi rapidamente ao conhecimento da prioresa, e, logo, às
ordens dela, partiu o hortelão no encalço da pobre. O hortelão seguiu-a até
fora da porta, espancou-a, tirou-lhe o bilhete, e foi do convento apresentá-lo
a Tadeu de Albuquerque, A mendiga não retrocedeu; caminhou a casa do ferrador,
e contou a Simão o acontecido.

Simão
lançou-se fora do leito e chamou João da Cruz. Naquele aperto queria ouvir uma
voz, queria poder chamar amigo a um homem que lhe estendesse mão capaz de
apertar o cabo dum punhal. O ferrador ouviu a história e deu o seu voto:
“esperar até ver”. Simão repeliu a prudencial frieza do confidente, e
disse que partia para Viseu imediatamente.

Mariana
estava ali; ouvira a confidência, e achara acertada a opinião de seu pai.
Vedando, porém, a impaciência do hóspede, pediu licença para falar onde não era
chamada, e disse:


Se o senhor Simão quer, eu vou à cidade e procuro no convento a Brito, que é
uma rapariga minha conhecida, moça duma freira, e dou-lhe uma carta sua para
entregar à fidalga.


Isso é possível, Mariana? – exclamou Simão, a ponto de abraçar a moça.


Pois então! – disse o ferrador – o que pode fazer-se, faz-se. Vai-te vestir,
rapariga, que eu vou botar o albardão à égua.

Simão
sentou-se a escrever. Tão embaralhadas lhe acudiam as idéias, que não atinava a
formar o desígnio mais proveitoso à situação de ambos. Ao cabo de longa
vacilação, disse a Teresa que fugisse, à hora do dia, quando a porta estivesse
aberta ou violentasse a porteira a abrir-lha. Dizia-lhe que marcasse ela a hora
do dia seguinte em que ele a devia esperar com cavalgaduras para a fuga. Em
recurso extremo, prometia assaltar com homens armados o mosteiro, ou
incendiá-lo para se abrirem as portas. Este programa era o mais parecido com o
espírito do acadêmico. Em vivo fogo ardia aquela pobre cabeça! Fechada a carta,
começou a passear em torcicolos, como se obedecesse a desencontrados impulsos.
Encravara as unhas na cabeça, e arrancava os cabelos. Investia como cego contra
as paredes, e sentava-se um momento para erguer-se de mais furioso ímpeto.
Maquinalmente aferrava das pistolas, e sacudia os braços vertiginosos. Abria a
carta para relê-la, e estava a ponto de rasgá-la, cuidando que iria tarde, ou
não lhe chegaria às mãos. Neste conflito de contrários projetos, entrou
Mariana, e muito alucinado devia de estar Simão para lhe não ver as lágrimas.

O
que tu sofrias, nobre coração de mulher pura! Se o que fazes por esse moço é
gratidão ao homem que salvou a vida de teu pai, que rara virtude a tua! Se o
amas, se por lhe dar alívio às dores tu mesma lhe desempeces o caminho por onde
te ele há de fugir para sempre, que nome darei ao teu heroísmo! Que anjo te
fadou o coração para a santidade desse obscuro martírio?!


Estou pronta, disse Mariana.


Aqui tem a carta, minha boa amiga. Faça muito por não vir sem resposta – disse
Simão, dando-lhe com a carta um embrulho de dinheiro.


E o dinheiro também é para a senhora? – disse ela.


Não, é para si, Mariana: compre um anel.

Mariana
tomou a carta, e voltou rapidamente as costas para que Simão não lhe visse o
gesto de despeito senão desprezo.

O
acadêmico não ousou insistir, vendo-a apressar-se na descida para o quinteiro,
onde o ferrador enfreava a égua.


Não lhe chegues muito com a vara – disse João da Cruz a Mariana, que, de um
pulo, se assentou no albardão, coberto de uma colcha escarlate. – Tu vais
amarela como cidra, moça! – exclamou ele reparando na palidez da filha – Tu.
que tens?


Nada; que hei de eu ter?! dê-me cá a vara, meu pai.

A
égua partiu a galope, e o ferrador, no meio da estrada, a rever-se na filha e
na égua, dizia em solilóquio, que Simão ouvira:


Vales tu mais, rapariga, que quantas fidalgas tem Viseu! Pela mais pintada não
dava eu a minha égua; e, se cá viesse o Miramolim de Marrocas pedir-me a filha,
os diabos me levem se eu lha dava! Isto é que são mulheres, e o mais é uma
história!

 

X

 

Apeou Mariana defronte
do mosteiro, e foi à portaria chamar a sua amiga Brito.


Que boa moça! – disse o padre capelão, que estava no raro lateral da porta,
praticando com a prioresa, acerca da salvação das almas, e de umas coretas de
vinho do Pinhão que ele recebera naquele dia, e do qual já tinha engarrafado um
almude para tonizar o estômago da prelada.


Que boa moça! – tornou ele, com um olho nela e outro no raro, onde a ciumosa
prioresa se estava remordendo.


Deixe lá a moça, e diga quando há de ir a servente buscar o vinho.


Quando quiser, senhora prioresa. Mas repare bem nos olhos, no feitio, naquele
todo da rapariga!…


Pois repare o senhor padre João – replicou a freira – que eu tenho mais que
fazer.

E
retirou-se com o coração mal-ferido, e o queixo superior escorrendo lágrimas…
de simonte,


Donde é vossemecê? – disse brandamente o padre capelão.


Sou da aldeia – respondeu Mariana.


Isso vejo eu… Mas de que aldeia é?


Não me confesso agora.


Mas não faria mal se se confessasse a mim, menina, que sou padre…


Bem vejo.


Que mal gênio tem!…


É isto que vê.


Quem procura cá no convento?


Já disse lá para dentro quem procuro.


Mariana, és tu?! Anda cá!

A
moça fez uma cortesia de cabeça ao padre capelão, e foi ao locutório donde
vinha aquela voz.


Eu queria falar contigo em particular, Joaquina – disse Mariana.


Eu vou ver se arranjo uma grade: espera aí..

O
padre tinha saído do pátio, e Mariana, enquanto esperava, examinou, uma a uma,
as janelas do mosteiro. Numa das janelas, através das reixas de ferro, viu ela
uma senhora sem hábito.


Será aquela? – perguntou Mariana ao seu coração, que palpitava – Se eu fosse
amada como ela!…


Sobe aquelas escadinhas, Mariana, e entra na primeira porta do corredor, que eu
lá vou – disse Joaquina.

Mariana
deu alguns passos, olhou novamente para a janela onde vira a senhora sem
hábito, e repetiu ainda:


Se eu fosse amada como ela!…

Mal
entrou na grade, disse à sua amiga:


Olha lá, Joaquina, quem é uma menina muito branca, alva como leite, que estava
ali agora numa janela?


Seria alguma noviça, que há duas cá muito lindas.


Mas ela não tinha vestimenta nenhuma de freira.


Ah! já sei; é a D. Teresinha de Albuquerque.


Então não me enganei – disse Mariana, pensativa.


Pois tu conhece-la?


Não; mas por amor dela é que eu cá vim falar contigo.


Então que é?! Que tens tu com a fidalga?


Eu cá, por mim nada; mas com uma pessoa que lhe quer muito.


O filho do corregedor?


Esse mesmo.


Mas esse está em Coimbra,


Não sei se está, nem se não. Faz-me tu um favor?


Se eu puder…


Podes… Eu queria falar com ela.


Ó dianho! Isso não sei se poderá ser, porque a trazem as freiras debaixo de
olho, e ela vai-se embora amanhã.


Para onde vai?


Vai para outro convento, não sei se de Lisboa, se do Porto. Os baús já estão
preparados, e ela está morta por sair. E tu que lhe queres?


Não to posso dizer, porque não sei… Queria dar-lhe um papel… Faze com que
ela venha cá, que eu dou-te chita para um vestido.


Como tu estás rica, Mariana!… – atalhou, rindo, Joaquina. – Eu não quero a
tua chita, rapariga. Se eu puder dizer-lhe que venha, sem que alguém me ouça,
digo-lho. E agora é boa maré, porque tocou ao coro… Deixa-me ir lá…

Joaquina
saiu-se bem da difícil comissão. Teresa estava sozin-ha, absorvida a cismar,
com os olhos fitos no ponto onde vira Mariana.


A menina faz favor de vir comigo depressinha? – disse-lhe a criada.

Seguiu-a
Teresa, e entrou na grade, que Joaquina fechou, dizendo:


O mais breve que possa bata por dentro para eu lhe abrir a porta. Se
perguntarem por vossa excelência, digo-lhe que a menina está no mirante.

A
voz de Mariana tremia, quando D. Teresa lhe perguntou quem era.


Sou uma portadora desta carta para vossa excelência.


É de Simão! – exclamou Teresa.


Sim, minha senhora.

A
reclusa leu convulsiva a carta duas vezes, e disse:


Eu não posso escrever-lhe, que me roubaram o meu tinteiro, e ninguém me
empresta um. Diga-lhe que vou de madrugada para o convento de Monchique, do
Porto. Que se não aflija, porque eu sou sempre a mesma. Que não venha cá,
porque isso seria inútil, e muito perigoso. Que vá ver-me ao Porto, que hei de
arranjar modo de lhe falar. Diga-lhe isto, sim?


Sim, minha senhora.


Não se esqueça, não? Vir cá, por modo nenhum. É impossível fugir, e vou muito
acompanhada. Vai o primo Baltasar e as minhas primas, e meu pai e não sei
quantos criados de bagagem e das liteiras. Tirar-me no caminho é uma loucura
com resultados funestos. Diga-lhe tudo, sim?

Joaquina
disse fora da porta:


Menina, olhe que a prioresa anda lá por dentro a procurá-la.


Adeus, adeus – disse Teresa, sobressaltada. – Tome lá esta lembrança como prova
de minha gratidão.

E
tirou do dedo um anel de ouro, que ofereceu a Mariana.


Não aceito minha senhora.


Por que não aceita?


Porque não fiz algum favor a vossa excelência. A receber alguma paga há de ser
de quem cá me mandou. Fique com Deus, minha senhora, e oxalá que seja feliz.

Saiu
Teresa, e Joaquina entrou na grade.


Já te vais embora, Mariana?


Vou, que é pressa; um dia virei conversar contigo muito. Adeus, Joaquina.


Pois não me contas o que isto é? O amor da fidalga está perto daqui? Conta, que
eu não digo nada, rapariga!…


Outra vez, outra vez; obrigada, Joaquina?

Mariana,
durante a veloz caminhada, foi repetindo o recado da fidalga; e, se alguma vez
se distraia deste exercício de memória, era para pensar nas feições da amada do
seu hóspede, e dizer, como em segredo, ao seu coração: “Não lhe bastava
ser fidalga e rica: é, além de tudo, linda como nunca vi outra!” E o
coração da pobre moça, aver-gando ao que a consciência lhe ia dizendo, chorava.

Simão,
de uma fresta do postigo do seu quarto, espreitava ao longo do caminho, ou
escutava a estropeada da cavalgadura.

Ao
descobrir Mariana, desceu ao quinteiro, desprezando cautelas e esquecido já do
ferimento, cuja crise de perigo piorara naquele dia, que era o oitavo depois do
tiro.

A
filha do ferrador deu o recado, e sem alteração de palavra. Simão escutara-a
placidamente até ao ponto em que lhe ela disse que o primo Baltasar a
acompanhava ao Porto.


O primo Baltasar!… – murmurou ele com um sorriso sinistro – Sempre este primo
Baltasar cavando a sua sepultura e a minha!…


A sua, fidalgo! – exclamou João da Cruz. – Morra ele, que o levem trinta
milhões de diabos! Mas vossa senhoria há de viver enquanto eu for João. Deixe-a
ir para o Porto, que não tem perigo no convento. De hora a hora Deus melhora. O
senhor doutor vai para Coimbra, está por lá algum tempo, e às duas por três,
quando o velho mal se precatar, a fidalguinha engrampa-o, e é sua tão certo
como esta luz que nos alumia.


Eu hei de vê-la antes de partir para Coimbra – disse Simão.


Olhe que ela recomendou-me muito que não fosse lá – acudiu Mariana.


Por causa do primo? – tornou o acadêmico ironicamente.


Acho que sim, e por talvez não servir de nada lá ir vossa senhoria – respondeu
timidamente a moça.


Lá, se quer, – brandou mestre João – a mulher, vai-se-lhe tirar ao caminho. Não
tem mais que dizer.


Meu pai, não meta este senhor em maiores trabalhos? – disse Mariana.


Não tem dúvida menina – atalhou Simão – eu é que não quero meter ninguém em
trabalhos. Com a minha desgraça, por maior que ela seja, hei de eu lutar
sozinho.

João
da Cruz, assumiu uma gravidade de que a sua figura raras vezes se enobrecia,
disse:


Senhor Simão, vossa senhoria não sabe nada do mundo. Não meta sozinho a cabeça
aos trabalhos, que eles, como o outro que diz, quando pegam de ensarrilhar um
homem, não lhe deixam tomar fôlego. Eu sou um rústico; mas, a bem dizer, estou
naquela daquele que dizia que o mal dos seus burrinhos o fizera alveitar.
Paixões… que as leve o diabo, e mais quem com elas engorda. Por causa de uma
mulher, ainda que ela seja filha do rei, não se há de um homem botar a perder.
Mulheres há tantas como a praga, e são como as rãs do charco, que mergulha uma,
e aparecem quatro à tona da água. Um homem rico e fidalgo como vossa senhoria,
onde quer topa uma com um palmo de cara como se quer e um dote de encher o
olho. Deixe-a ir com Deus ou com a breca, que ela, se tiver de ser sua, não lhe
há de vir dar, tanto andar para trás como para diante: é ditado dos antigos.
Olhe que isto não é medo, fidalgo. Tome sentido, que João da Cruz sabe o que é
pôr dois homens duma feita a olhar o sete-estrelo, mas não sabe o que é medo.
Se o senhor quer sair à estrada e tirar a tal pessoa ao pai, ao primo, e a um
regimento, se for necessário, eu vou montar na égua, e daqui a três horas estou
de volta com quatro homens, que são quatro dragões.

Simão
fitara os olhos chamejantes no do ferrador, e Mariana exclamara, ajuntando as
mãos sobre o seio:


Meu pai, não lhe dê esses conselhos!…


Cala-te aí, rapariga! – disse mestre João. – Vai tirar o albardão à égua,
amanta-a, e bota-lhe seco. Não és aqui chamada.


Não vá aflita, senhora – disse Simão à moça, que se retirava, amargurada. – Eu
não aproveito alguns dos conselhos de seu pai. Ouço-o com boa vontade, porque
sei que quer o meu bem; mas hei de fazer o que a honra e o coração me
aconselharem.

Ao
anoitecer, Simão, como estivesse sozinho, escreveu uma longa carta, da qual extratamos
os seguintes períodos:

 

“Considero-te
perdida, Teresa. O Sol de amanhã pode ser que eu o não veja. Tudo, em volta de
mim, tem uma cor de morte. Parece que o frio da minha sepultura me está
passando o sangue e os ossos.

Não posso ser o que tu
querias que eu fosse. A minha paixão não se conforma com a desgraça. Eras a
minha vida: tinha a certeza de que as contrariedades me não privavam de ti, Só
o receio de perder-te me mata. O que me resta do passado é a coragem de ir
buscar uma morte digna de mim e de ti. Se tens força para uma agonia lenta, eu
não posso com ela.

Poderia viver com a
paixão infeliz; mas este rancor sem vingança é um inferno. Não hei de dar
barata a vida, não. Ficarás sem mim, Teresa; mas não haverá ai um infame que te
persiga depois da minha morte. Tenho ciúmes de todas as tuas horas. Hás de
pensar com muita saudade no teu espôo do céu, e nunca tirarás de mim os olhos
da tua alma para veres ao pé de ti o miserável que nos matou a realidade de
tantas esperanças formosas.

Tu verás esta carta
quando eu já estiver num outro mundo, esperando as orações das tuas lágrimas.
As orações! Admiro-me desta faísca de fé que me alumia nas minhas trevas!… Tu
deras-me com o amor a religião, Teresa. Ainda creio; não se apaga a luz, que é
tua; mas a providência divina desamparou-me.

Lembra-te de mim. Vive,
para explicares ao mundo, com a tua lealdade a uma sombra, a razão por que me
atraíste a um abismo. Escutarás com glória a voz do mundo, dizendo que eras
digna de mim.

A hora em que leres
esta carta…”

 

Não
o deixaram continuar as lágrimas, nem depois a presença de Mariana. Vinha ela
pôr a mesa para a ceia, e, quando desdobrava a toalha, disse em voz abafada,
como se a si mesma somente o dissesse:


É a última vez que ponho a mesa ao senhor Simão em minha casa.


Por que diz isso, Mariana?


Por que mo diz o coração.

Desta
vez, o acadêmico ponderou supersticiosamente os ditames do coração da moça, e
com o silêncio meditativo deu-lhe a ela a evidência antecipada do vaticínio.

Quando
voltou com a travessa da galinha, vinha chorando a filha de João da Cruz.


Chora com pena de mim, Mariana? – disse Simão, enternecido.


Choro, porque me parece que o não tornarei a ver; ou, se o vir, será de modo
que oxalá que eu morresse antes de o ver.


Não será, talvez, assim, minha amiga…


Vossa senhoria não me faz uma coisa que eu lhe peço?


Veremos o que pede, menina.


Não saia esta noite, nem amanhã,


Pede o impossível, Mariana. Hei de sair, porque me mataria se não saísse.


Então perdoe a minha ousadia. Deus o tenha da sua mão.

A
rapariga foi contar ao pai as intenções do acadêmico. Acudiu logo mestre João
combatendo a idéia da saída, com encarecer os perigos do ferimento. Depois,
como não conseguisse dissuadi-lo, resolveu acompanhá-lo. Simão agradeceu a
companhia, mas rejeitou-a com decisão. O ferrador não cedia do propósito, e
estava já preparando a clavina, e arraçoando com medida dobrada a égua – para o
que desse e viesse – dizia ele, quando o estudante lhe disse que, melhor avisado,
resolvera não ir a Viseu, e seguir Teresa ao Porto, passados os dias de
convalescença. Facilmente o acreditou João da Cruz; mas Mariana, submissa
sempre ao que o seu coração lhe bacorejava, duvidou da mudança, e disse ao pai
que vigiasse o fidalgo.

As
onze horas da noite, ergueu-se o acadêmico, e escutou o movimento interior da
casa: não ouviu o mais ligeiro ruído, a não ser o rangido da égua na
manjedoura. Escorvou de pólvora nova as duas pistolas. Escreveu um bilhete
sobrescritado a João da Cruz, e ajuntou-o à carta que escrevera a Teresa. Abriu
as portas da janela do seu quarto, e passou dali para a varanda de pau, da qual
o salto à estrada era sem risco. Saltou, e tinha dado alguns passos, quando a
fresta, lateral à porta da varanda, se abriu, e a voz de Mariana lhe disse:


Então adeus, senhor Simão. Eu fico pedindo a Nossa Senhora que vá na sua
companhia.

O
acadêmico parou, e ouviu a voz intima que lhe dizia: – “O teu anjo da
guarda fala pela boca daquela mulher, que não tem mais inteligência que a do
coração alumiado pelo seu amor.”


Dê um abraço em seu pai. Mariana – disse-lhe Simão – e adeus… até logo, ou…


Até ao juízo final… – atalhou ela.


O destino há de cumprir-se… Seja o que o céu quiser.

Tinha
Simão desaparecido nas trevas, quando Mariana acendeu a lâmpada do santuário, e
ajoelhou orando com o fervor das lágrimas.

Era
uma hora, e estava Simão defronte do convento, contemplando uma a uma as
janelas. Em nenhuma vira da clarão de luz; só a do lampadário do Sacramento se
coava baça e pálida na vidraça duma fresta do templo. Sentou-se nas escaleiras
da igreja, e ouviu ali, imóvel as quatro horas. Das mil visões que lhe
relancearam no atribulado espírito, a que mais a miúdo se repetia era a de
Mariana suplicante, com as mãos postas; mas, ao mesmo tempo, cria ele ouvir os
gemidos de Teresa, torturada pela saudade, pedindo ao céu que a salvasse das
mãos de seus algozes. O vulto de Tadeu de Albuquerque, arrastando a filha a um
convento, não lhe afogueava a sede da vingança; mas cada vez que lhe acudia à
mente a imagem odiosa de Baltasar Coutinho instintivamente as mãos do acadêmico
se asseguravam da posse das pistolas.

As
quatro horas e um quarto, acordou a natureza toda em hinos e aclamações ao
raiar da alva. Os passarinhos trinavam na cerca do mosteiro melodias
interrompidas pelo toque solene das Ave-Marias na torre. O horizonte passara de
escarlate a alvacento. A púrpura da aurora, como labareda enorme, desfizera-se
em partículas de luz, que ondeavam no declive das montanhas, e se distendiam
nas planícies e nas várzeas, como se o anjo do Senhor, à voz de Deus, viesse
desenrolando aos olhos da criatura as maravilhas do repontar dum dia festivo.

E
nenhuma destas galas do céu e da terra enlevara os olhos do moço poeta!

As
quatro horas e meia, ouviu Simão o tinido de liteiras, dirigindo-se àquele
ponto. Mudou de local, tomando por uma rua estreita, fronteira ao convento.

Pararam
as liteiras vazias na portaria, e logo depois chegaram três senhoras vestidas
de jornada, que deviam ser as irmãs de Baltasar, acompanhadas de dois mochilas
com as mulas à rédia. As damas foram sentar-se nos bancos de pedra, laterais à
portaria. Em seguida abriu-se a grossa porta, rangendo nos gonzos, e as três
senhoras entraram.

Momentos
depois, viu Simão chegar à portaria Tadeu de Albuquerque, encostado ao braço de
Baltasar Coutinho. O velho denotava quebranto e desfalecimento a espaços. O de Castro
d’Aire, bem composto de figura e caprichosamente vestido à castelhana,
gesticulava com o aprumo de quem dá as suas irrefutáveis razões, e consola
tomando a riso a dor alheia.


Nada de lamúrias, meu tio! – dizia ele. – Desgraça seria vê-la casada! Eu
prometo-lhe antes de um ano restituir-lhe curada. Um ano de convento é um ótimo
vomitório do coração. Não há nada como isso para limpar o sarro do vício em
corações de meninas criadas à discrição. Se meu tio a obrigasse, desde menina,
a uma obediência cega, tê-la-ia agora submissa, e ela não se julgaria
autorizada a escolher marido.


Era uma filha única, Baltasar! – dizia o velho soluçando.


Pois por isso mesmo – replicou o sobrinho. – Se tivesse outra, ser-lhe-ia menos
sensível a perda, e menos funesta a desobediência. Faria a sua casa na filha
mais querida, embora tivesse de impetrar uma licença régia para deserdar a
primogênita. Assim, agora, não lhe vejo outro remédio senão empregar o cautério
à chaga; com emplastros é que se não faz nada.

Abriu-se
novamente a portaria. e saíram as três senhoras, e após elas Teresa.

Tadeu
enxugou as lágrimas, e deu alguns passos a saudar a filha, que não ergueu do
chão os olhos.


Teresa… – disse o velho.


Aqui estou, senhor – respondeu a filha, sem o encarar.


Ainda é tempo – tornou Albuquerque.


Tempo de quê?


Tempo de seres boa filha.


Não me acusa a consciência de o não ser.


Ainda mais?!… Queres ir para tua casa, e esquecer o maldito que nos faz a
todos desgraçados?


Não, meu pai. O meu destino é o convento. Esquecê-lo nem por morte. Serei filha
desobediente, mas mentirosa é que nunca.

Teresa,
circunvagando os olhos, viu Baltasar, e estremeceu, exclamando:


Nem aqui!


Fala comigo, prima Teresa? – disse Baltasar, risonho.


Consigo falo! Nem aqui me deixa a sua odiosa presença?


Sou um dos criados que minha prima leva em sua companhia. Dois tinha eu há
dias, dignos de acompanharem a minha prima, mas esses houve aí um assassino que
mos matou. A falta deles, sou eu que me ofereço.


Dispenso-o da delicadeza – atalhou Teresa, com veemência.


Eu é que me não dispenso de a servir, à falta dos meus dois fiéis criados, que
um celerado me matou.


Assim devia ser – tornou ela também irônica -porque os cobardes escondem-se nas
costas dos criados, que se deixam matar.


Ainda se não fizeram as contas finais…, minha querida prima – redarguiu o
morgado.

Este
diálogo correu rapidamente, enquanto Tadeu de Albuquerque cortejava a prioresa
e outras religiosas. As quatro senhoras, seguidas de Baltasar, tinham saído do
átrio do convento, e deram de rosto em Simão Botelho, encostado à esquina da
rua fronteira.

Teresa
viu-o… adivinhou-o, primeira de todas, e exclamou:


Simão!

O
filho do corregedor não se moveu.

Baltasar,
espavorido do encontro, fitando os olhos nele, duvidava ainda.


É incrível que este infame aqui viesse! – exclamou o de Castro d’Aire.

Simão
deu alguns passos, e disse placidamente:


In[ame… eu! e por que?


Infame, e infame assassino! – replicou Baltasar. – Já fora da minha presença!


É parvo este homem! – disse o acadêmico. – Eu não discuto com sua senhoria…
Minha senhora – disse ele a Teresa, com a voz comovida e o semblante alterado
unicamente pelos afetos do coração. – Sofra com resignação, da qual eu lhe
estou dando um exemplo. Leve a sua cruz, sem amaldiçoar a violência, e bem pode
ser que a meio caminho do seu calvário a misericórdia divina lhe redobre as
forças.


Que diz este patife?! – exclamou Tadeu.


Vem aqui insultá-lo, meu tio! – respondeu Baltasar, – Tem a petulância de se
apresentar a sua filha a confortá-la na sua malvadez! Isto é de mais! Olhe que
eu esmago-o aqui, seu vilão.


Vilão é o desgraçado que me ameaça, sem ousar avançar para mim um passo –
redarguiu o filho do corregedor.


Eu não o tenho feito – exclamou enfurecidamente Baltasar – por entender que me
avilto, castigando-o na presença de criados de meu tio, que tu podes supor meus
defensores, canalha!


Se assim é – tornou Simão, sorrindo – espero nunca me encontrar de rosto com
sua senhoria. Reputo-o tão cobarde, tão sem dignidade, que o hei de mandar
azorragar pelo primeiro mariola das esquinas.

Baltasar
Coutinho lançou-se de ímpeto a Simão. Chegou a apertar-lhe a garganta nas mãos;
mas depressa perdeu o vigor dos dedos. Quando as damas chegaram a interpor-se
entre os dois, Baltasar tinha o alto do crânio aberto por uma bala, que lhe
entrara na fronte. Vacilou um segundo, e caiu desamparado aos pés de Teresa.

Tadeu
de Albuquerque gritava a altos brados. Os liteireiros e criados rodearam Simão,
que conservava o dedo no gatilho da outra pistola. Animados uns pelos outros e
pelos brados do velho, iam lançar-se ao homicida, com risco de vida, quando um
homem, com um lenço pela cara, correu da rua fronteira, e se colocou, de
bacamarte aperrado, à beira de Simão. Estacaram os homens.


Fuja, que a égua está ao cabo da rua – disse o ferrador ao seu hóspede.


Não fujo… Salve-se, e depressa – respondeu Simão.


Fuja, que se ajunta o povo e não tardam aí soldados.


Já lhe disse que não fujo – replicou o amante de Teresa, com os olhos postos
nela, que caíra desfalecida sobre as escadas da igreja.


Está perdido! – tornou João da Cruz.


Já o estava. Vá-se embora, meu amigo, por sua filha lho rogo. Olhe que pode
ser-me útil; fuja…

Abriram-se
todas as portas e janelas, quando o ferrador se lançou na fuga. até cavalgar a
égua.

Um
dos vizinhos do mosteiro, que, em razão do seu ofício, primeiro saiu à rua, era
o meirinho geral.


Prendam-no, prendam-no, que é um matador! – exclamava Tadeu de Albuquerque.


Qual? – perguntou o meirinho geral.


Sou eu – respondeu o filho do corregedor.


Vossa senhoria! – disse o meirínho, espantado; e, aproximando-se, acrescentou a
meia voz: – Venha, que eu deixo-o fugir.


Eu não fujo – tornou Simão. – Estou preso. Aqui tem a minhas armas.

E
entregou as pistolas.

Tadeu
de Albuquerque, quando se recobrou do espasmo, fez transportar a filha a uma
das liteiras, e ordenou que dois criados a acompanhassem ao Porto.

As
irmãs de Baltasar seguiram o cadáver de seu irmão para casa do tio.

 

XI

 

O corregedor acorda com
o grande rebuliço que ia na casa, e perguntou à esposa, que ele supunha também
desperta na câmara imediata, que bulha era aquela. Como ninguém lhe
respondesse, sacudiu freneticamente a campainha, e ferrou ao mesmo tempo,
aterrado pela hipótese de incêndio na casa. Quando D. Rita acudiu, já ele
estava enfiando os calções às avessas.


Que estrondo é este? Quem é que grita? – exclamou Domingos Botelho.


Quem grita mais é o senhor – respondeu D. Rita.


Sou eu?! Mas quem é que chora?


São suas filhas.


E por quê? Diga numa palavra.


Pois sim, direi: o Simão matou um homem.


Em Coimbra?… E fazem tanta bulha por isso!


Não foi em Coimbra, foi em Viseu – tornou D. Rita.


A senhora manga comigo?! Pois o rapaz está em Coimbra, e mata em Viseu! Aí está
um caso para que as Ordenações do Reino não providenciaram.


Parece que brinca, Menezes! Seu filho matou na madrugada de hoje Baltasar
Coutinho, sobrinho de Tadeu de Albuquerque.

Domingos
Botelho mudou inteiramente de aspecto.


Foi preso? – perguntou o corregedor.


Está em casa do juiz de fora.


Manda-me chamar o meirinho geral. Sabe como foi e por que foi essa morte?…
Mande-me chamar o meirinho, sem demora.


Por que se não veste o senhor, e vai a casa do juiz?


Que vou eu fazer a casa do juiz?


Saber de seu filho como isto foi.


Se não sou pai; sou corregedor. Não me incumbe a mim interrogá-lo. Senhora D.
Rita, eu não quero ouvir choradeiras; diga às meninas que se calem, ou que vão
chorar no quintal.

O
meirinho, chamado, relatou miudamente o que sabia e disse ter-se verificado que
o amor à filha do Albuquerque fora causa daquele desastre.

Domingos
Botelho, ouvia a história, disse ao meirinho:


O juiz de fora que cumpra as leis; se ele não for rigoroso, eu o obrigarei a
sê-lo.

Ausente
o meirinho, disse D. Rita Preciosa ao marido:


Que significa esse modo de falar de seu filho?


Significa que sou corregedor desta comarca, e que não protejo assassinos por
ciúmes, e ciúmes da filha dum homem, que eu detesto. Eu antes queria ver mil
vezes morto Simão que ligado a essa família. Escrevi-lhe muitas vezes
dizendo-lhe que o expulsava de minha casa, se alguém me desse a certeza de que
ele tinha correspondência com tal mulher. Não há de querer a senhora que eu vá
sacrificar a minha integridade a um filho rebelde, e de mais a mais homicida.

D.
Rita, algum tanto por afeto maternal e bastante por espírito de contradição,
contendeu largo espaço; mas desistiu, obrigada pela insólita pertinácia e
cólera do marido. Tão iracundo e áspero em palavras nunca o ela vira. Quando
lhe ele disse: – “Senhora, em coisas de pouca monta o seu domínio era
tolerável; em questões de honra, o seu domínio acabou: deixe-me!” – D.
Rita, quando tal ouviu, e reparou na fisionomia de Domingos Botelho, sentiu-se
mulher, e retirou-se.

A
ponto foi isto de entrar o juiz de fora na sala de espera. O corregedor foi
recebê-lo, não com o semblante afetuoso de quem vai agradecer a delicadeza e
implorar indulgência, senão que, de carrancudo que ia, mais parecera ir ele
representar o juiz, por vir naquela visita dar a crer que a balança da justiça
na sua mão tremia algumas vezes.


Começo por dar a vossa senhoria os pêsames da desgraça de seu filho – disse o
juiz de fora.


Obrigado a vossa senhoria. Sei tudo. Está instaurado o processo?


Não podia deixar eu de aceitar a querela.


Se a não aceitasse, obrigá-lo-ia eu ao cumprimento dos seus deveres.


A situação do senhor Simão Botelho é péssima. Confessa tudo. Diz que matou o
algoz da mulher que ele amava…


Fez muito bem – interrompeu o corregedor, soltando uma casquinada seca e rouca.


Perguntei-lhe se foi em defesa, e fiz-lhe sinal que respondesse
afirmativamente. Respondeu que não; que, a defender-se, o faria com a ponta da
bota, e não com um tiro. Busquei todos os modos honestos de o levar a dar
algumas respostas que denotassem alucinação ou demência; ele, porém, respondeu
e replica com tanta igualdade e presença de espírito, que é impossível supor
que o assassínio não foi perpetrado muito intencionalmente e de claro juízo.
Aqui tem vossa senhoria uma especialíssima e triste posição. Queria valer-lhe,
e não posso.


E eu não posso nem quero, senhor doutor juiz de fora. Está na cadeia?


Ainda não: está em minha casa. Venho saber se vossa senhoria determina que lhe
seja preparada com decência a prisão.


Eu não determino nada. Faça de conta que o preso Simão não tem aqui parente
algum.


Mas, senhor doutor corregedor – disse o juiz de fora com tristeza e compunção –
vossa senhoria é pai.


Sou um magistrado.


É demasiada a severidade – perdoe-me a reflexão, que é amiga. Lá está a lei
para o castigar; não o castigue vossa senhoria com o seu ódio. A desgraça
quebranta o rancor de estranhos, quanto mais o afetuoso ressentimento de um
pai!


Eu não odeio, senhor doutor; desconheço esse homem em que me fala. Cumpra o
seus deveres, que lho ordena o corregedor, e o amigo mais tarde lhe agradecerá
a delicadeza.

Saiu
o juiz de fora, e foi encontrar Simão na mesma serenidade em que o deixara.


Venho de falar com seu pai – disse o juiz; encontrei-o mais irado do que era
natural calcular. Penso que por enquanto nada pode esperar da influência ou
patrocínio dele.


Isto que importa? – respondeu sossegadamente Simão.


Importa muito, senhor Botelho. Se seu pai quisesse haveria meios de mais tarde
lhe adoçar a sentença.


Que me importa a mim a sentença? – replicou o filho do corregedor.


Pelo que vejo, não lhe importa ao senhor ir a uma forca?


Não, senhor.


Que diz, senhor Simão! – redarguiu espantado o interrogador.


Digo que o meu coração é indiferente ao destino da minha cabeça.


E sabe que seu pai não lhe dá mesmo proteção, a proteção das primeiras
necessidades na cadeia?


Não sabia; que tem isso? Que importa morrer de fome, ou morrer no patíbulo?


Porque não escreve a sua mãe? Peça-lhe que…


Que hei de eu pedir a minha mãe? – atalhou Simão.


Peça-lhe que amacie a cólera de seu pai, senão o senhor Botelho não tem quem o
alimente.


Vossa senhoria está-me julgando um miserável, a quem dá cuidado saber onde há
de almoçar hoje. Penso que não incumbem ao senhor juiz de fora essas miudezas
de estômago.


De certo não – redarguiu, irritado, o juiz – Faça o que quiser.

E,
chamando o meirinho geral, entregou-lhe o réu, dispensando o aguazil de pedir
força para acompanhá-lo.

O
carceireiro recebeu respeitosamente o preso, e alojou-o num dos quartos
melhores do cárcere; mas nu e desprovido do mínimo conforto.

Um
outro preso emprestou-lhe uma cadeira de pau. Simão sentou-se, cruzou os braços
e meditou.

Pouco
depois, um criado de seu pai conduziu-lhe o almoço, dizendo-lhe que sua mãe lho
mandava a ocultas, e entregando-lhe uma carta dela, cujo conteúdo importa
saber. Simão, antes de tocar no almoço, cujo cabaz estava no pavimento, leu o
seguinte:

 

“Desgraçado, que
estás perdido!

Eu não te posso valer,
porque teu pai está inexorável: As escondidas dele é que te mando o almoço, e
não sei se poderei mandar-te o jantar!

Que destino o teu!
Oxalá que tivesses morrido ao nascer!

Morto me disseram que tinhas nascido; mas o teu fatal destino não quis largar a
vitima.

Para que saiste de
Coimbra? A que vieste, infeliz? Agora sei que tens vivido fora de Coimbra há
quinze dias, e nunca tiveste uma palavra que dissesses a tua mãe!. .”

 

Simão
suspendeu a leitura, e disse entre si:


Como se entende isto?! Pois minha mãe não mandou chamar o João da Cruz! E não
foi e]a quem me mandou o dinheiro?


Olhe que o almoço arrefece, menino! – disse o criado.

Simão
continuou a ler, sem ouvir o criado:

 

“Deves estar sem
dinheiro, e eu desgraçadamente não posso hoje enviar-te um pinto. Teu irmão
Manuel, desde que fugiu para Espanha, absorve-me todas as economias – Veremos,
passado algum tempo, o que posso fazer; mas receio bem que teu pai saia de
Viseu, e nos leve para Vila-Real, para abandonar de todo o teu julgamento à
severidade das leis. Meu pobre Simão! Onde estarias tu escondido quinze dias?!
Hoje mesmo é que teu pai teve carta dum lente, participando-lhe a tua falta nas
aulas, e saída para o Porto, segundo dizia o arreeiro que te acompanhou. Não
posso mais. Teu pai já espancou a Ritinha, por ela querer ir à cadeia. Conta
com o pouco valor da tua pobre mãe e ao pé dum homem enfurecido como está teu
pai” –

 

Simão
Botelho refletiu alguns minutos, e convenceu-se de que o dinheiro recebido era
de João da Cruz. Quando saiu com o espírito desta meditação, tinha os olhos
marejados de lágrimas.


Não chore, menino – disse o criado. – Os trabalhos são para os homens, e Deus
há de fazer tudo pelo melhor. Almoce, senhor Simão.


Leva o almoço – disse ele.


Pois não quer almoçar?!


Não. Nem voltes aqui. Eu não tenho família. Não quero absolutamente nada da
casa de meus pais. Diz a minha mãe que eu estou sossegado, bem alojado, e
feliz, e orgulhoso da minha sorte. Vai-te embora já.

O
criado saiu, e disse ao carcereiro que o seu infeliz amo estava doido. D. Rita
achou provável a suspeita do servo, e viu a evidência da loucura nas palavras
do filho.

Quando
o carcereiro voltou ao quarto de Simão, entrou acompanhado de uma rapariga
camponesa: era Mariana. A filha de João da Cruz, que até àquele momento não
apertava sequer a mão do hóspede. correu a ele com os braços abertos e o rosto
banhado de lágrimas. O carcereiro retirou-se, dizendo consigo: – “Esta é
bem mais bonita que a fidalga!”


Não quero ver lágrimas, Mariana – disse Simão. – Aqui, se alguém deve chorar,
sou eu; mas lágrimas dignas de mim, lágrimas de gratidão aos favores que tenho
recebido de si e de seu pai. Acabo de saber que minha mãe nunca me mandou
dinheiro algum. Era de seu pai aquele dinheiro que recebi.

Mariana
escondeu o rosto no avental com que enxugava o pranto.


Seu pai teve algum perigo? – tornou Simão em voz perceptível dela.


Não, senhor.


Está em casa?


Está, e parece furioso. Queria vir aqui, mas eu não o deixei.


Perseguiu-o alguém?


Não, senhor.


Diga-lhe que não se assuste, e vá depressa sossegá-lo.


Eu não posso ir sem fazer o que ele me disse. Eu vou sair, e volto daqui a
pouco.


Mande-me comprar uma banca, uma cadeira, e um tinteiro e papel – disse Simão,
dando-lhe dinheiro.


Há de vir logo tudo; já cá podia estar; mas o pai disse-me que não comprasse
nada sem saber se sua família lhe mandava o necessário.


Eu não tenho família, Mariana. Tome o dinheiro.


Não recebo dinheiro, sem licença de meu pai. Para essas compras trouxe eu
demais. E a sua ferida como estará?


Ainda agora me lembro que tenho uma ferida! – disse Simão, sorrindo. – Deve
estar boa, que não me dói… Soube alguma coisa de D. Teresa?


Soube que foi para o Porto. Estavam ali a contar que o pai a mandara meter sem
sentidos na liteira, e está muito povo à porta do fidalgo.


Está bom, Mariana… Não há desgraçado sem amparo. Vá, pense no seu hóspede,
seja o seu anjo de misericórdia.

Saltaram
de novo as lágrimas dos olhos da moça; e, por entre soluços, estas palavras:


Tenha paciência. Não há de morrer ao desamparo. Faça de conta que lhe apareceu
hoje uma irmã.

E,
dizendo, tirou das amplas algibeiras um embrulho de biscoitos e uma garrafa de
licor de canela, que depôs sobre a cadeira.


Mau almoço é; mas não achei outra coisa pronta – disse ela, e saiu apressada,
como para poupar ao infeliz palavras de gratidão.

 

XII

 

O corregedor, nesse
mesmo dia, ordenou que se preparassem mulher e filhas para no dia imediato saírem
de Viseu com tudo que pudesse ser transportado em cavalgaduras.

Vou
descrever a singela e dorida reminiscência duma senhora daquela família, como a
tenho em carta recebida há meses:

 

“Já lá vão cinquenta
e sete anos, e ainda me lembro, como se fossem ontem passados, os tristes
acontecimentos da minha mocidade. Não sei como é que tenho hoje mais clara a
memória das coisas da infância. Parece-me que há trinta anos me não lembravam
com tantas circunstâncias e pormenores.

Quando a mãe disse a
mim e as minhas irmãs que preparássemos os nossos baús, rompemos todas num
choro que irritou a ira do pai. As manas, como mais velhas ou mais afeitas ao
castigo, calaram-se logo. Eu, porém, que só uma vez, e unicamente por causa de
Simão, tinha sido castigada, continuei a chorar, e tive o inocente valor de
pedir ao pai que me deixasse ir ver o mano à cadeia antes de sairmos de Viseu.

Então fui castigada
pela segunda vez, e asperamente.

O criado que levou o
jantar à cadeia voltou com ele, e contou-nos que Simão já tinha alguns móveis
no seu quarto, e estava jantando com exterior sossegado. Aquela hora todos os
sinos de Viseu estavam dobrando a finados por alma de Baltasar.

Ao pé dele disse o
criado que estava uma formosa rapariga de aldeia e coberta de lágrimas.
Apontando-a ao criado que a observava, disse Simão: – A minha família é esta.

No dia seguinte, ao
romper da manhã, partimos para Vila-Real. A mãe chorava sempre; o pai,
encolerizado por isso, saiu da liteira em que vinha com ela, fez que eu
passasse para o seu lugar, e fez toda a jornada na minha cavalgadura.

Logo que chegamos a
Vila-Real, eram tão frequentes as desordens em casa, à conta do Simão, que meu
pai abandonou a família, e foi sozinho para a quinta de Montezelos. A mãe quis
também abandonar-nos e ir para os primos de Lisboa, a fim de solicitar o
livramento do mano. Mas o pai. que fizera uma espantosa mudança de gênio,
quando tal soube, ameaçou minha mãe de a obrigar judicialmente a não sair da
casa de seu marido e filhas.

Escrevia a mãe a Simão,
e não recebia resposta. Pensava ela que o filho não respondia: anos depois,
vimos entre os papéis de meu pai todas as cartas que ela escrevera. Já se vê
que o pai as fazia tirar no correio.

Uma senhora de Viseu
escreveu à mãe, louvando-a pelo muito amor e caridade com que ela acudia às necessidades de seu infeliz
filho. Esta carta foi-lhe entregue por um almocreve; quando não, teria o
destino das outras. Espantou-se minha mãe do conceito em que a tinha a sua
amiga, e confessou-lhe que não o tinha socorrido, porque o filho rejeitara o
pouco que ela quisera fazer em seu bem. A isto respondeu a senhora de Viseu que
uma rapariga, filha dum ferrador, estava vivendo nas vizinhanças da cadeia, e
cuidava do preso com abundância e limpeza, e a todos dizia que ali estava por
ordem e à custa da senhora D. Rita Preciosa. Acrescentava a amiga de minha mãe
que algumas vezes mandara chamar a bela moça, e lhe quisera dar alguns
cozinhados mais esquisitos para Simão, os quais ela rejeitava, dizendo que o
senhor Simão não aceitava nada.

De tempos a tempos
recebíamos estas novas, sempre triste, porque, na ausência de meu pai,
conspiraram, como era de esperar, quase todas as pessoas distintas de Viseu
contra o meu desgraçado irmão.

A mãe escrevia aos seus
parentes da capital implorando a graça régia para o filho; mas aquelas cartas
não saiam do correio, e iam dar todas à mão de meu pai.

E que fazia este,
entretanto, na quinta, sem família, sem glória, nem recompensa alguma a tantas
faltas? Rodeado de jornaleiros, cultivava aquele grande montado onde ainda
hoje, por entre os tojos e urzes, que voltaram com o abandono, se podem ver
relíquias de cepas plantadas por ele. A mãe escrevia-lhe lastimando o filho;
meu pai apenas respondia que a justiça não era uma brincadeira, e que na antiguidade
os próprios pais condenavam os filhos criminosos.

Teve minha mãe a
afoiteza de se lhe apresentar um dia, pedindo licença para ir a Viseu. Meu
inexorável pai negou-lha, e invectivou-a furiosamente.

Passados sete meses,
soubemos que Simão tinha sido condenado a morrer na forca, levantada no local
onde fizera a morte. Fecharam-se as janelas por oito dias; vestimos de luto, e
minha mãe caiu doente.

Quando isto se soube em
Vila-Real, todas as pessoas ilustres da terra foram a Montezelos, a fim de
obrigarem brandamente o pai a empregar o seu valimento na salvação do filho
condenado. De Lisboa vieram alguns parentes protestar contra a infâmia, que
tamanha ignomínia faria recair sobre a família, Meu pai a todos respondia com
estas palavras: – A forca não foi inventada somente para os que não sabem o
nome do seu avô. A ignominia das famílias são as más ações. A justiça não
infama senão aquele que castiga.

Tínhamos nós um
tio-avô, muito velho e venerando, chamado Antônio da Veiga. Foi este quem fez o
milagre, e foi assim: Apresentou-se a meu pai, e disse-lhe: – Guardou-me Deus a
vida até aos oitenta e três anos. Poderei viver mais dois ou três? Isto nem já
é vida; mas foi-o, e honrada, e sem mancha até agora, e já agora há de assim
acabar; meus olhos não hão de ver a desonra de sua família. Domingos Botelho,
ou tu me prometes aqui de salvar teu filho da forca, ou eu na tua presença me
mato. – E, dizendo isto, apontava ao pescoço uma navalha de barba. Meu pai
teve-lhe mão do braço, e disse que Simão não seria enforcado.

No dia seguinte, foi
meu pai para o Porto, onde tinha muitos amigos na Relação, e de lá para Lisboa.

Em principio de março
de 1805, soube minha mãe, com grande prazer, que Simão fora removido para as
cadeias da Relação do Porto, vencendo os grandes obstáculos que opuseram a essa
mudança os queixosos, que eram Tadeu de Albuquerque e as irmãs do morto.
Depois…

 

Suspendemos
aqui o extrato da carta para não anteciparmos a narrativa de sucessos, que
importa, em respeito à arte, atar no fio cortado.

Simão
Botelho vira imperturbável chegar o dia do julgamento. Sentou-se no banco dos
homicidas sem patrono nem testemunhas de defesa. As perguntas respondeu com o
mesmo ânimo frio daquelas respostas ao interrogatório do juízo. Obrigado a
explicar a causa do crime, deu-a com toda a lealdade, sem articular o nome de
Teresa Clementina de Albuquerque. Quando o advogado da acusação proferiu aquele
nome, Simão Botelho ergueu-se de golpe, e exclamou:


Que vem aqui fazer o nome de uma senhora a este antro de infâmia e sangue? Que
miserável acusador está ai, que não sabe, com a confissão do réu, provar a
necessidade do carrasco sem enlamear a reputação duma mulher? A minha acusação
está feita: eu a fiz. Agora a lei que fale, e cale-se o vilão que não sabe
acusar sem infamar.

O
juiz impôs-lhe silêncio. Simão sentou-se, murmurando:


Miseráveis todos!

Ouviu
o réu a sentença de morte natural para sempre na forca, arvorada no local do
delito. E ao mesmo tempo saíram dentre a multidão uns gritos dilacerantes.
Simão voltou a face para as turbas, e disse:


Ides ter um belo espetáculo, senhores! A forca é a única festa do povo! Levai
dai essa pobre mulher que chora: essa é a criatura única para quem o meu suplício
não será um passatempo,

Mariana
foi transportada em braços à sua casinha, na vizinhança da cadeia. Os robustos
braços que a levam eram os de seu pai, Simão Botelho, quando, em toda a
agilidade e força dos dezoito anos, ia do tribunal ao cárcere, ouviu algumas
vozes que se alteravam deste modo:


Quanto vai ele a padecer?


É bem feito! Vai pagar pelos inocentes que o pai mandou enforcar.


Queria apanhar a morgada à força de balas!


Não que estes fidalgos cuidam que não é mais senão matar!…


Matasse ele um pobre. e tu verias como ele estava em casal


Também é verdade!


E como ele vai de cara no ar!


Deixa ir, que não tarda quem lha faça cair ao chão!…


Dizem que o carrasco já vem pelo caminho.


Já chegou de noite, e trazia dois cutelos numa coifa.


Tu viste-o?


Não; mas disse a minha comadre que lho dissera a vizinha do cunhado da irmã,
que o carrasco está escondido numa enxovia.


Tu hás de levar os pequenos a ver o padecente?


Pudera não! Estes exemplos não se devem perder.


Eu cá de mim já vi enforcar três, que me lembre, todos por matadores.


Por isso tu, há dois anos, não atiraste com a vida do Amaro Lampreia a casa do
diabo!…


Assim foi; mas, se eu o não matasse, matava-me ele.


Então de que voga o exemplo?!


Eu sei cá de que voga? O frei Anselmo dos franciscanos é que prega aos país que
levem os filhos a verem os enforcados.


Isso há de ser para o não esfolarem a ele, quando ele nos esfola com os
peditórios.

Tão
desassombrado ia o espírito de Simão, que algumas vezes esvoaçou nos lábios um
sorriso, desafiado pela filosofia do povo, à cerca da forca,

Recolhido
ao seu quarto. foi intimado para apelar, dentro do prazo legal. Respondeu que
não apelava, que estava contente da sua sorte, e de boas avanças com a justiça.

Perguntou
por Mariana, e o carcereiro lhe disse que a mandava chamar. Veio João da Cruz,
e a chorar se lastimou de perder a filha, porque a via delirante a falar em
forca e a pedir que a matassem primeiro. Agudíssima foi então a dor do
acadêmico ao compreender, como se instantaneamente lhe fulgurasse a verdade,
que Mariana o amava até o extremo de morrer. Por momentos se lhe esvaiu do
coração a imagem de Teresa, se é possível assim pensá-lo. Vê-la-ia porventura
como um anjo redimido em serena contemplação do seu criador; e veria Mariana
como o símbolo da tortura, morrer a pedaços, sem instantes de amor remunerado
que lhe dessem a glória do martírio. Uma, morrendo amada; outra, agonizando,
sem ter ouvido a palavra “amor” dos lábios que escassamente balbuciavam
frias palavras de gratidão.

E
chorou então aquele homem de ferro. Chorou lágrimas que valiam bem as amarguras
de Mariana.


Cuide de sua filha, senhor Cruz! – disse Simão com fervente súplica ao ferrador
– Deixe-me a mim, que estou vigoroso e bom. Vá consolar essa criatura, que
nasceu debaixo da minha má estrela. Tire-a de Viseu; leve-a para sua casa.
Salve-a, para que neste mundo fiquem duas irmãs que me chorem. Os favores que
me tem feito, já agora dispensa-os a brevidade da minha vida. Daqui a dias
mandam-me recolher ao oratório; bom será sua filha ignore.

De
volta, João da Cruz achou a filha prostada na pavimento, ferida no rosto,
chorando e rindo, demente em suma. Levou-a amarrada para sua casa, e deixou a
cargo de outra pessoa a sustentação do condenado.

Terribilíssimas
foram então as horas solitárias do infeliz. Até àquele dia, Mariana, benquista
do carcereiro e protegida pela amiga de D. Rita Preciosa, tinha franca entrada
no cárcere a toda a hora do dia, e raras horas deixava sozinho o preso.
Costurava enquanto ele escrevia, ou cuidava do amanho e limpeza do quarto. Se
Simão estava no leito doente ou prostrado, Mariana, que tivera alguns
princípios de escrita, sentava-se à banca, e escrevia cem vezes o nome de Simão,
que muitas vezes as lágrimas deliam. E isto assim, durante sete meses, sem
nunca ouvir nem proferir a palavra amor. Isto assim, depois das vigílias
noturnas, ora em preces, ora em trabalho, ora no caminho de sua casa, onde ia
visitar o pai a desoras.

Nunca
mais o preso, na perspectiva da forca, viu entrar aquela doce criatura o limiar
da ferrada porta, que lhe graduava o ar, medido e calculado para que as
inteiras horas da asfixia as gozasse o cordel do patíbulo. Nunca mais!

E,
quando ele evocava a imagem de Teresa, um capricho dos olhos quebrantados lhe
afigurava a visão de Mariana ao par da outra. E lacrimosas via as duas. Saltava
então do leito, fincava os dedos nos espessos ferros da janela, e pensava em
partir o crânio contra as grades.

Não
o sustinha a esperança na terra, nem no céu. Raio de luz divina jamais penetrou
no seu ergástulo. O anjo da piedade encarnada naquela criatura celestial que
enlouquecera, ou voltara para o céu com o espírito dela. O que o salvara do
suicídio não era, pois, esperanças em Deus, nem nos homens; era este
pensamento: “Afinal, cobarde! Que bravura é morrer quando não há
esperança da vida?! A forca é um triunfo quando se encontra ao cabo do caminho
da honra.

 

XIII

 

– E Teresa?

Perguntam
a tempo, minha senhoras, e não me hei de queixar se me arguirem de a ter
esquecido e sacrificado a incidentes de menos porte.

Esquecido,
não. Muito há que me reluz e voeja, alada como o ideal querubim dos santos,
nesta minha quase escuridade, aquela ave do céu, como a pedir-me que lhe cubra
de flores o restilho de sangue que ela deixou na terra. Mais lágrimas que
sangue deixaste, ó filha da amargura! Flores são tuas lágrimas, e do céu me diz
se os perfumes delas não valem mais aos pés do teu Deus que as preces de muita
devota que morre santificada pelo mundo, e cujo cheiro de santidade não passa
do olfato hipócrita ou estúpido dos mortais.

Teresa
Clementina bem a viam transportada da escadaria do templo onde caíra, à liteira
que a conduziu ao Porto. Recobrando o alento, viu defronte de si uma criada,
que lhe dizia banais e frias expressões de alívio. Se alguma criada de seu pai
lhe era amiga, decerto não aquela, acintemente escolhida pelo velho. Nem ao
menos a confiança para tal expansão em gritos restava à afligida menina! Mas um
raio de piedade ferira o peito da mulher até àquela hora desafeta a sua ama.

Perguntava-se
a si mesma Teresa se aquela horrorosa situação seria um sonho! Sentia-se de
novo falecer de forças, e voltava à vida, sacudida pela consciência da sua
desgraça. Condoeu-se a criada, e incitou-a a respirar, chorando com ela, e
dizendo-lhe:


Pode falar, menina, que ninguém nos segue.


Ninguém?!


As suas primas ficaram: apenas vêm os dois lacaios.


E meu pai não?


Não, fidalga… Pode chorar e falar à sua vontade.


E eu vou para o Porto?


Vamos, sim minha senhora.


E tu viste tudo como foi, Constança?


Desgraçadamente vi…


Como foi? Conta-me tudo.


A menina bem sabe que seu primo morreu.


Morreu?! Vi-o cair quase nos meus pés; mas…


Morreu logo, e depois quiseram os criados, à voz de seu pai, prender o senhor
Simão; mas ele com outra pistola…


E fugiu? – atalhou Teresa, com veemente alegria.


Afinal foi ele que se deu à prisão.


Está preso?!

E,
sufocada pelos soluços, com o rosto no lenço, não ouvia as palavras
confortadoras de Constança.

Serenado
algum tanto o violento acesso de gemidos e choro, Teresa sugeriu à criada o
louco plano de a deixar fugir da primeira estalagem onde pousassem para ela ir
a Viseu dar o último adeus a Simão.

A
criada a custo a despersuadiu do intento, pintando-lhe os novos perigos que ia
acumular à desgraça do seu amante, e animando-a com a esperança de livrar-se
Simão do crime, com a influência do pai, apesar da perseguição do fidalgo.

Calaram
lentamente estas razões no espírito de Teresa. Chorosa, ansiada e a reveses
desfalecida, foi Teresa vencendo a distância que a separava de Monchique, onde
chegou ao quinto dia de jornada.

A
prelada já estava sabedora dos sucessos, por emissários que se adiantaram ao
moroso caminhar da liteira.

Foi
Teresa recebida com brandura por sua tia, posto que as recomendações de Tadeu
de Albuquerque eram clausura rigorosa e absoluta privação de meios de escrever
a quem quer que fosse.

Ouviu
a prelada da boca de sua sobrinha a fiel história dos acontecimentos, e viu uma
a uma as cartas de Simão Botelho. Choraram abraçadas; mas a prelada, enxugadas
as lágrimas de mulher ao fogo da austeridade religiosa, falou e aconselhou como
freira, e freira que ciliciava o corpo com as rosetas, e o coração com as
privações tormentosas de quarenta anos.

Teresa
carecia de forças para a rebelião. Deixou a sua tia a santa vaidade de
exorcismar o demônio das paixões, e deu um sorriso ao anjo da morte, que, de
permeio ao seu amor e à esperança, lhe interpunha a asa negra que tão de luz
refulgente rebrilha às vezes em corações infelizes.

Quis
Teresa escrever.


A quem, minha filha? – perguntou a prelada.

Teresa
não respondeu.


Escrever-lhe para quê? – tornou a religiosa. – Cuidas tu, menina, que as tuas
cartas lhe chegam à mão? Que vais tu fazer senão redobrar a ira de teu pai
contra ti e contra o infeliz preso?! Se o amas, como creio, apesar de tudo,
cuida em salvá-lo. Se não ouves a minha razão, finge-te esquecida. Se podes
violentar a tua dor, dissimula, faze muito porque o teu pai chegue a noticia de
que lhe serás dócil em tudo, se ele tiver piedade do teu pobre amigo.

Não
recalcitrou Teresa. Deu outro sorriso ao anjo da morte, e pediu-lhe que a
envolvesse a ela, e ao seu amor, e à sua esperança, de todo, na negrura de suas
asas.

De
mês a mês recebia a abadessa de Monchique uma carta de seu primo. Eram estas
cartas um respiradouro de vingança. Em todas dizia o velho que o assassino iria
ao patíbulo irremediavelmente. A sobrinha não via as cartas; mas reparava nas
lágrimas da compassiva freira.

A
débil compleição de Teresa deperecia aceleradamente. A ciência condenou-a a
morte breve. Disto foi informado Tadeu de Albuquerque, e respondeu: – “Que
a não desejava morta; mas, se Deus a levasse, morreria mais tranquilo, e com a
sua honra sem mancha”, Era assim imaculada a honra do fidalgo de Viseu!…
A HONRA, que dizem proceder em linha reta da virtude de Sócrates, da virtude de
Jesus Cristo, da virtude de milhões de mártires, que se deram às garras das
feras, quando predicavam a caridade e o perdão aos homens!

Quantas
carícias inventou a simpatia e a piedade, todas, por ministério das religiosas
exemplares de Monchique, aporfiaram em refrigerar o ardor que consumia rapidamente
a reclusa. Inútil tudo. Teresa reconhecia com lágrimas a compaixão, e, ao mesmo
tempo, alegrava-se tirando das carícias a certeza de que os médicos a julgavam
incurável,

Alguma
freira inadvertida lhe disse um dia que uma sua amiga do convento dos Remédios
de Lamengo lhe dissera que Simão tinha sido condenado à morte.


E eu vivo ainda!

Depois
orou, e chorou; mas os costumes da sua vida em paroxismos continuaram
inalteráveis.

Perguntou
à senhora que lhe dera a noticia se a sua amiga do convento dos Remédios lhe
faria a esmola de fazer chegar às mãos de Simão uma carta. Prontificou-se a
freira, depois que ouviu o parecer da prelada. Entendeu esta religiosa que O
derradeiro colóquio entre dois moribundos não podia danificá-los na vida
temporal, nem na vida eterna.

Esta
é a carta que leu Simão, quinze dias depois do seu julgamento:

 

“Simão, meu
esposo. Sei tudo… Está conosco a morte. Olha que te escrevo sem lágrimas. A
minha agonia começou há sete meses. Deus é bom, que me poupou ao crime. Ouvi a
notícia da tua próxima morte, e então compreendi porque estou morrendo hora a
hora. Aqui está o nosso fim, Simão!… Olha as nossas esperanças! Quando tu me
dizias os teus sonhos de felicidade, e eu te dizia os meus!… Que mal fariam a
Deus os nossos inocentes desejos?!… Porque não merecemos nós o que tanta
gente tem?… Assim acabaria tudo, Simão? Não posso crê-lo! A eternidade
apresenta-se-me tenebrosa, porque a esperança era a luz que me guiava de ti
para a fé. Mas não pode findar assim o nosso destino. Vê se podes segurar o
último fio da tua vida a uma esperança qualquer. Ver-nos-emos num outro mundo,
Simão? Terei eu merecido a Deus contemplar-te? Eu rezo, suplico, mas desfaleço
na fé quando me lembram as últimas agonias do teu martírio. As minhas são suaves;
quase que as não sinto. Não deve custar a morte a quem tiver o coração tranquilo.
O pior é a saudade, saudade daquelas esperanças que tu achavas no meu coração,
adivinhando as tuas. Não importa, se nada há além desta vida. Ao menos, morrer.
Se tu pudesses viver agora, de que te serviria? Eu também estou condenada, e
sem remédio. Segue-me, Simão! Não tenhas saudades da vida, não tenhas, ainda
que a razão te diga que podias ser feliz, se me não tivesses encontrado no
caminho por onde te levei à morte… E que morte, meu Deus!… Aceita-a! Não te
arrependas. Se houver crime, a justiça de Deus te perdoará pelas angústias que
tens de sofrer no cárcere… e nos últimos dias, e na presença da…”

 

Teresa
ia escrever uma palavra, quando a pena lhe caiu da mão, e uma convulsão lhe
vibrou todo o corpo por largo espaço. Não escreveu a palavra! Mas a idéia da força
parou-lhe a vida. A freira entrou na cela a pedir-lhe a carta, porque o
correio ia a partir. Teresa, indicando-lhe, disse:


Leia, se quiser, e feche-a, por caridade, que eu não posso.

Nos
três dias seguintes Teresa não saiu do leito. A cada hora as religiosas
assistentes esperavam que ela fechasse os olhos.


Custa muito morrer! – dizia algumas vezes a enferma.

Não
faltavam piedosos discursos a divertirem-lhe o espírito do mundo,

Teresa
ouvia-os, e dizia com ânsia:


Mas a esperança do céu, sem ele!… Que é o céu, meu Deus?

E
o apostólico capelão do mosteiro não sabia dizer se os bens do céu tinham comum
com os do mundo as delícias que falsamente na terra se chamam assim. Aquelas
sutilezas espirituais que vêm com algumas espécies de física, assim à maneira
dos últimos lampejos da vital flama, tinha-as a enferma, quando acontecia
falarem-lhe as religiosas na bem-aventurança. Às vezes, se o capelão, convidado
pela lucidez de Teresa, entrava os domínios da filosofia, tratando como tema a
imortalidade da alma, a inculta senhora argumentava em breves termos, com
razões tão claras a favor da união eterna das almas, já deste mundo esposas,
que o padre ficava em dúvidas se seria herético contestar uma cláusula não
inscrita em algum dos quatro evangelhos.

Maravilhava-se
já a medicina da pertinácia daquela vida. Tinha a abadessa escrito a seu primo
Tadeu, apressando-o a ir ver o anjo ao despedir-se da terra. O velho, tocado de
piedade e por ventura de amor paternal, deliberou tirar do convento a filha, na
esperança de salvá-la ainda, Uma forte razão acrescia àquela: era a mudança do
condenado para os cárceres do Porto. Deu-se pressa, pois, o fidalgo, e chegou
ao Porto a tempo que a religiosa, amiga da outra de Lamego, entregava à doente
esta carta de Simão:

 

“Não me fujas
ainda, Teresa. Já não vejo a forca, nem a morte. Meu pai protege-me, e a
salvação é possível. Prende ao coração os últimos fios da tua vida. Prolonga a
tua agonia, enquanto te eu disser que espero. Amanhã vou para as cadeias do
Porto, e hei de ali esperar a absolvição ou comutação da sentença. A vida é
tudo. Posso amar-te no degredo. Em toda a parte há céu, e flores, e Deus. Se
viveres, um dia serás livre; a pedra do sepulcro é que nunca se levanta, Vive,
Teresa, vive! Há dias, lembrava-me que as tuas lágrimas lavariam da minha face
as nódoas do sangue do enforcado. Esse pesadelo atroz passou. Agora neste inferno
respira-se; o esparto do carrasco já me não aperta em sonhos a garganta. Já
fito os olhos no céu, e reconheço a providência dos infelizes. Ontem, vi as
nossas estrelas, aquelas dos nossos segredos nas noites da ausência. Volvi à
vida, e tenho o coração cheio de esperanças. Não morras, filha da minha
alma!”

 

Ia
alta a noite, quando Teresa, sentada no seu leito, leu esta carta. Chamou a
criada, para ajudá-la a vestir, Mandou abrir a janela do seu quarto, e encostou
as faces às reixas de ferro. Esta janela olhava para o mar, e o mar era nessa
noite uma imensa flama de prata; e a Lua, esplendidíssima, eclipsava o fulgor
dumas estrelas que Teresa procurava no céu.


São aquelas! – exclamou ela.


Aquelas que, minha senhora? – disse Constança.


As minhas estrelas!… pálidas como eu… A vida! ai! a vida! – clamou ela,
erguendo-se, e passando pela fronte as mãos cadavéricas – Quero viver!
Deixai-me viver, ó Senhor!


Há de viver, menina! Há de viver, que Deus é piedoso! – disse a criada – mas
não tome o ar da noite. Este nevoeiro do rio faz-lhe grande mal.


Deixa-me, deixa-me, que tudo isto é viver… Não vejo o céu há tanto tempo!
Sinto-me ressuscitar aqui, Constança! Por que não tenho eu respirado todas as
noites este ar? Eu poderia viver alguns anos? Poderei, minha Constança? Pede
tu, pede muito à minha Virgem Santíssima! Vamos orar ambas! Vamos, que o Simão
não morre… O meu Simão vive, e quer que eu viva. Está no Porto amanhã, e
talvez já esteja…


Quem, minha senhora?!


Simão; o Simão vem para o Porto.

A
criada julgou que a sua ama delirava, mas não a contrariou.


Teve carta dele a fidalga? – tornou ela, cuidando que assim lhe alimentava
aquele instante de febril contentamento.


Tive… Queres ouvir?… Eu leio…

E
leu a carta, com grande pasmo de Constança, que se convenceu.


Agora vamos rezar, sim?… Tu não és inimiga dele, não? Olha, Constança, se eu
casar com ele, tu vais para a nossa companhia. Verás como és feliz, Queres ir,
não queres?


Sim, minha senhora, vou. Mas ele conseguirá livrar-se da morte?


Livra; tu verás que livra; o pai dele há de livrá-lo… e a Virgem Santíssima é
que nos há de unir. Mas, se eu morro… se eu morro, meu Deus!

E,
com as mãos convulsivamente enlaçadas sobre o seio, Teresa arquejava em pranto.


Se eu não tenho já forças!… Todos dizem que eu morro, e o médico já nem me
receita!… Então melhor me fora ter acabado antes desta hora! Morrer com
esperanças, ó Mãe de Deus!

E
ajoelhou ante o retábulo devoto que trouxera do seu quarto de Viseu, ao qual
sua mãe e avó já tinham orado, e em cujo rosto compassivo os olhos das duas
senhoras moribundas tinham apagado os seus últimos raios de luz.

 

XIV

 

Anunciara-se Tadeu de
Albuquerque na portaria de Monchique, ao dia seguinte dos anteriores sucessos.

Sua
prima, primeira senhora que lhe saiu ao locutório, vinha enxugando as lágrimas
de alegria.


Não cuide que eu choro de aflita, meu primo – disse ela. – O nosso anjo, se
Deus quiser, pode salvar-se. Logo de manhã a vi passear por seu pé nos
dormitórios. Que diferença de semblante ela tem hoje! Isto, meu primo, é
milagre de duas santas que temos inteiras na claustura, e com as quais algumas
perfeitas criaturas desta casa se apegaram. Se as melhoras continuarem assim,
temos a Teresa; o céu consente que esteja entre nós aquele anjo mais alguns
anos…


Muito folgo com o que me diz, minha boa prima – atalhou o fidalgo. – A minha
resolução é levá-la já para Viseu, e lá se restabelecerá com os ares pátrios,
que são muito mais sadios que os do Porto.


É ainda cedo para tão longa e custosa jornada, meu primo. Não vá o senhor
cuidar que ela está capaz de se meter ao caminho. Lembre-se que ainda ontem
pensamos em encontrá-la hoje morta. Deixe-a estar mais alguns meses; e depois
não digo que não leve; mas, por enquanto, não consinto semelhante imprudência.


Maior imprudência – replicou o velho – é conservá-la no Porto, onde, as estas
horas, deve estar o malvado matador de meu sobrinho. Talvez não saiba a
prima?… Pois é verdade: o patife do corregedor saiu a campo em defesa dele, e
conseguiu que o tribunal da Relação lhe aceitasse a apelação da sentença,
passado o prazo da lei; e, não contente com isto, fez que o filho fosse
removido para as cadeias do Porto. Eu agora trabalho para que a sentença seja
confirmada, e espero consegui-lo; mas, enquanto o assassino aqui estiver, não
quero que minha filha esteja no Porto.


O primo é pai, e eu sou apenas uma parenta – disse a abadessa – cumpra-se a sua
vontade. Quer ver a menina, não é assim?


Quero, se é possível.


Pois bem, enquanto eu vou chamá-la, queira entrar na primeira grade à sua mão
direita, que Teresa lá vai ter.

Avisada
Teresa de que seu pai a esperava, instantaneamente a cor sadia que alegrava as
senhoras religiosas se demudou na lividez costumada. Quis a tia, vendo-a assim,
que ela não saísse do seu quarto, e encarregava-se de espaçar a visita do pai.


Tem de ser – disse Teresa. – Eu vou, minha tia.

O
pai, ao vê-la, estremeceu e enfiou. Esperava mudança, mas não tamanha. Pensou
que a não conheceria sem o prevenirem de que ia ver sua filha.


Como eu te encontro, Teresa! – exclamou ele, comovido. – Por que me não
disseste há mais tempo o teu estado?

Teresa
sorriu-se, e disse:


Eu não estou tão mal como as minhas amigas imaginam.


Terás tu forças para ir comigo para Viseu?


Não, meu pai; não tenho mesmo forças para lhe dizer em poucas palavras que não
torno ao Viseu.


Porque não, se a tua saúde depender disso?!…


A minha saúde depende do contrário. Aqui viverei ou morrerei.


Não é tanto assim, Teresa – replicou Tadeu com dissimulada brandura. – se eu
entender que estes ares são nocivos à tua saúde, hás de ir, porque é obrigação
minha conduzir e corrigir a tua má sina.


Está corrigida, meu pai. A morte emenda todos os erros da vida.


Bem sei; mas eu quero-te viva, e, portanto, recobra forças para o caminho, Logo
que tiveres meio dia de jornada, verás como a saúde volta como por milagre.


Não vou, meu pai.


Não vais?! – exclamou, irritado, o velho, lançando às grades as mãos trementes
de ira.


Separam-nos esses ferros a que meu pai se encosta, e para sempre nos separam.


E as leis? Cuidas tu que eu não tenho direitos legítimos para te obrigar a sair
do convento? Não sabes que tens apenas dezoito anos?


Sei que tenho dezoito anos; as leis não sei quais são, nem me incomoda a minha
ignorância. Se pode ser que mão violenta venha arrancar-me daqui, convença-se,
meu pai, de que essa mão há de encontrar um cadáver. Depois… o que quiserem
de mim. Enquanto, porém, eu puder dizer que não vou, juro-lhe que não vou, meu
pai.


Sei o que é! – bramiu o velho. – já sabes que o assassino está no Porto?


Sei, sim, senhor.


Ainda o dizes sem vergonha, nem horror de ti mesma! Ainda…


Meu pai – interrompeu Teresa – não posso continuar a ouvi-lo, porque me sinto
mal. Dê-me licença… e vingue-se como puder. A minha glória neste longo
martírio seria uma forca levantada ao lado da do assassino.

Teresa
saiu da grade, deu alguns passos na direção da sua cela, e encostou-se esvaída
à parede. Correram a ampará-la sua tia e a criada, mas ela, afastando-as
suavemente de si, murmurou:


Não é preciso… Estou boa… Esses golpes dão vida, minha tia.

E
caminhou sozinha a passos vacilantes.

Tadeu
batia à porta do mosteiro com irrisório enfurecimento pancadas, umas após
outras, com grande medo da porteira e outras madres, espantadas do insólito
despropósito.


Que é isso, primo? – disse a prelada, com severidade.


Quero cá fora Teresa.


Como fora? Quem há de lançá-la fora?!


A senhora, que não pode aqui reter uma filha contra a vontade de seu pai.


Isso assim é; mas tenha prudência, primo.


Não há prudência nem meia prudência. Quero minha filha cá fora.


Pois ela não quer ir?


Não, senhora.


Então espere que por bons modos a convençamos a sair, porque não havemos trazer-lha
a rastos.


Eu vou buscá-la, sendo preciso – redarguiu em crescente fúria. – Abram-me estas
portas, que eu a trarei!


Estas portas não se abrem assim, meu primo, sem licença superior. A regra do
mosteiro não pode ser quebrantada para servir uma paixão desordenada, Tranquilize-se,
senhor! Vá descansar desse frenesi, e venha noutra hora combinar comigo o que
for digno de todos nós.


Tenho entendido! – exclamou o velho, gesticulando contra o ralo do locutório. –
Conspiram todas contra mim! Ora descansem, que eu lhes darei uma boa lição,
Fique a senhora abadessa sabendo que eu não quero que minha filha receba mais
cartas do matador, percebeu?


Eu creio que Teresa nunca recebeu cartas de matadores, nem suponho que as
receba d’ora em diante.


Não sei se sabe, nem se não. Eu vigiarei o convento. A criada, que
está com ela, ponham-na fora, percebeu?


Por quê? – redarguiu a prelada com enfado.


Porque a encarreguei de me avisar de tudo, e ela nada me tem contado.


Se não tinha que lhe dizer, senhor!


Não me conte histórias, prima! A criada quero vê-la sair do convento
e já!


Eu não lhe posso fazer a vontade, porque não faço injustiças. Se vossa senhoria
quiser que a sua filha tenha outra criada, mande-lha: mas a que ela tem, logo
que deixe de a servir, há muitas senhoras nesta casa que a desejam, e ela mesma
deseja aqui ficar.


Tenho entendido – bradou ele – querem-me matar! Pois não matam; primeiro há de
o diabo dar um estouro!

Tadeu
de Albuquerque saiu em corcovos do átrio do mosteiro. Era hedionda aquela raiva
que lhe contraia as faces encorreadas, revendo suor e sangue aos olhos
acovados.

Apresentou-se
ao intendente da polícia, pedindo providências para que se lhe entregasse sua
filha. O intendente respondeu que ele não solicitava competentemente tais
providências. Instou para que o carcereiro da cadeia não deixasse sair alguma
carta de um assassino vindo da comarca de Viseu, por nome Simão Botelho. O
intendente disse que não podia, sem motivos concernentes a devassas, obstar a
que o preso escrevesse a quem quer que fosse.

Reduplicada
a fúria, foi dali ao corregedor do Porto, com os mesmos requerimentos, em tom
arrogante. O corregedor, particular amigo de Domingos Botelho, despediu com
enfado o importuno, dizen-do-lhe que a velhice sem juízo era coisa tão de riso
como de lástima. Esteve então a pique de perder-se a cabeça de Tadeu de
Albuquerque. Andava e desandava as ruas do Porto, sem atinar com uma saída
digna da sua prosápia e vingança. No dia seguinte, bateu à porta de alguns
desembargadores, e achava-os mais inclinados à demência que à justiça a
respeito de Simão Botelho. Um deles, amigo de infância de D. Rita Preciosa, e
implorado por ela, falou assim ao sanhudo fidalgo:


Em pouco está o ser homicida, senhor Albuquerque. Quantas mortes teria vossa
senhoria hoje feito se alguns adversários se opusessem à sua cólera? Esse
infeliz moço, contra quem o senhor solicita desvairadas violências, conserva a
honra na altura da sua imensa desgraça. Abandonou-o o pai, deixando-o condenar
à forca; e ele da sua extrema degradação nunca fez sair um grito suplicante de
misericórdia, Um estranho lhe esmolou a subsistência de oito meses de cárcere,
e ele aceitou a esmola, que era honra para si e para quem lha dava. Hoje, fui eu
ver esse desgraçado filho de uma senhora que eu conheci no paço, sentada ao
lado dos reis. Achei-o vestido de baetão e pano pedrês. Perguntei-lhe se assim
estava desprovido de fato. Respondeu-me que se vestira à proporção dos seus
meios, e que devia à caridade dum ferrador aquelas calças e jaqueta.
Repliquei-lhe eu que escrevesse a seu pai para o vestir decentemente. Disse-me
que não pedia nada a quem consentiu que os delitos do seu coração e da sua
dignidade e do pundonor do seu nome fossem expiados num patíbulo. Há grandeza
neste homem de dezoito anos, senhor Albuquerque. Se vossa senhoria tivesse
consentido que sua filha amasse Simão Botelho Castelo-Branco, teria poupado a
vida ao homem sem honra que se lhe atravessou com insultos e ofensas corporais
de tal afronta, que desonrado ficaria Simão se as não repelisse como homem de
alma e brios. Se vossa senhoria se não tivesse oposto às honestíssimas e
inocentes afeições de sua filha, a justiça não teria mandado arvorar uma forca,
nem a vida de seu sobrinho teria sido imolada aos seus caprichos de mau pai. E,
se sua filha casasse com o filho do corregedor de Viseu, pensa acaso vossa
senhoria que os seus brasões sofriam desdouro? Não sei de que século data a
nobreza do senhor Tadeu de Albuquerque, mas do brasão de D. Rita Teresa
Margarida Preciosa Caldeirão Castelo-Branco posso dar-lhe informações sobre as
páginas das mais verídicas e ilustres genealogias do reino. Par parte de seu
pai, Simão Botelho tem do melhor sangue de Trás-os-Montes, e não se temerá de entrar
em competências com o dos Albuquerques de Viseu, que não é de certo o dos Albuquerques
terríveis
de que reza Luís de Camões…

Ofendido
até ao âmago pela derradeira ironia, Tadeu ergueu-se de ímpeto, tomou o chapéu
e a enorme bengala de castão de ouro e fez a cortesia de despedida.


São amargas as verdades, não é assim? – disse-lhe, sorrindo, o desembargador
Mourão Mosqueira,


Vossa excelência lá sabe o que diz, e eu cá sei no que hei de ficar – respondeu
com tom irônico o fidalgo, alanceado na sua honra e na dos seus quinze avós.

O
desembargador retorquiu:


Fique no que quiser; mas vá na certeza, se isso lhe serve de alguma coisa, que
Simão Botelho não vai à forca.


Veremos… – resmoneou o velho.

 

XV

 

São treze dias
decorridos do mês de Março de 1805.

Está
Simão num quarto de malta das cadeias da Relação. Um catre de tábuas, um
colchão de embarque, uma banca e cadeira de ninho e um pequeno pacote de roupa,
colocado no lugar do travesseiro, são a sua mobília. Sobre a mesa tem um
caixote de pau preto, que contém as cartas de Teresa, ramilhetes secos, os seus
manuscritos do cárcere de Viseu e um avental de Mariana, o último com que ela,
no dia do julgamento, enxugara as lágrimas e arrancara de si no primeiro
instante de demência.

Simão
relê as cartas de Teresa, abre os envoltórios de papel que encerram as flores
ressequidas, contempla o avental de linho, procurando esvaídos vestígios das
lágrimas. Depois, encosta a face e o peito aos ferros da sua janela, e avista
os horizontes boleados pela serras de Valongo e Gralheira, e cortados pelas
ribas pitorescas de Gaia, do Candal, de Oliveira e do mosteiro da
Serra-do-Pilar. ~ um dia lindo, Refletem-se do azul do céu os mil matizes da
primavera. Tem aromas o ar, e a viração fugitiva dos jardins derrama no éter as
aromas que roubou aos canteiros, Aquela indefinida alegria, que parece reluzir
nas legiões de espírito que se geram ao sol de março, rejubila a natureza que,
toda pompa de luz e flores, se está namorando do calor que a vai fecundando.

Dia
de amor e de esperanças era aquele que o Senhor mandava à choça escravada na
garganta da serra, ao palácio esplendoroso que reverberava ao Sol os seus
espiráculos, ao opulento que passeava as ruas moles equipagens, bafejado pelo
respiro acre das sarças, e ao mendigo que desentorpecia os membros encostado às
colunas dos templos.

E
Simão Botelho, fugindo a claridade da luz e o voejar das aves, meditando,
chorava e escrevia assim as suas meditações:

 

“O pão do trabalho
de cada dia e o teu seio para repousar uma hora a face, pura de manchas: não
pedi mais ao céu.

Achei-me homem aos
dezesseis anos. Vi a virtude à luz do teu amor. Cuidei que era santa a paixão
que. absorvia todas as outras, ou as depurava com o seu fogo sagrado.

Nunca os meus
pensamentos foram denegridos por um desejo que eu não possa confessar alto
diante de todo o mundo. Diz tu, Teresa, se os meus lábios profanaram a pureza
de teus ouvidos. Pergunta a Deus quando quis eu fazer do meu amor o teu
opróbrio.

Nunca, Teresa! Nunca, 6
mundo que me condenas!

Se teu pai quisesse que
eu me arrastasse a seus pés para te merecer, beijar-lhos-ia. Se tu me mandasses
morrer para te não privar de ser feliz com outro homem, morreria, Teresa!

Mas tu eras sozinha e
infeliz, e eu cuidei que o teu algoz não devia sobreviver-te. Eis-me aqui
homicida, e sem remorsos. A insânia do crime aturde a consciência; não a minha,
que se não temia das escadas da forca, nos dias em que o meu despertar era
sempre o estrebuxamento da sufocação.

Eu esperava a cada hora
o chamamento para o oratório, e dizia comigo: falarei a Jesus Cristo.

Sem pavor, premeditava
nas setenta horas dessa agonia moral, e antevia consolações que o crime não
ousa esperar sem injúria da justiça de Deus.

Mas chorava por ti,
Teresa! O travor do meu cálix tinha sobre a amargura as mil amarguras das tuas
lágrimas.

Gemias aos meus
ouvidos, mártir! Ver-me-ias sacudindo nas convulsões da morte, em teus
delírios. A mesma morte tem horror da suprema desgraça. Tarde morrerias, A
minha imagem, em vez de te acenar com a palma de martírios, te seria um
fantasma levando das tábuas dum cadafalso.

Que morte a tua, ó
minha santa amiga!”

 

E
prosseguiu até ao momento em que João da Cruz, com ordem do intendente geral da
polícia, entrou no quarto.


Aqui! – exclamou Simão, abraçando-o. – E Mariana? Deixou-a sozinha?! Morta,
talvez!


Nem sozinha, nem morta, fidalgo! O diabo nem sempre está atrás da porta…
Mariana voltou ao seu juízo.


Fala verdade, senhor João?


Pudera mentir!… Aquilo foi coisa de bruxaria, enquanto a mim… Sangrias,
sedenhos, água fria na cabeça, e exorcismos do missionário, não lhe digo nada,
a rapariga está escorreita, e, assim que tiver um todo-nada de forças, bota-se
ao caminho.


Bendito seja Deus! – exclamou Simão.


Amém –
acrescentou
o ferrador. – Então que arranjo é este de casa? Que breca de tarimba é esta?!
Quer-se aqui uma cama de gente, e alguma coisa em que um cristão se possa
sentar,


Isto assim está excelente.


Bem vejo… E de barriga? Como vamos nós de trincadeira?


Ainda tenho dinheiro, meu amigo.


Há de ter muito, não tem dúvida; mas eu tenho mais, e vossa senhoria tem ordem
franca. Veja lá esse papel.

Simão
leu uma carta de D. Rita Preciosa, escrita ao ferrador, em que o autorizava a
socorrer seu filho com as necessárias despesas, prontificando-se a pagar todas
as ordens que lhe fossem apresentadas com a sua assinatura.


É justo – disse Simão, restituindo a carta – porque eu devo ter uma legitima.


Então já vê que não tem mais do que pedir por boca. Eu vou comprar-lhe
arranjos…


Abra-me o seu nobre coração para outro serviço mais valioso – atalhou o preso.


Diga lá, fidalgo.

Simão
pediu-lhe a entrega de uma carta em Monchique a Teresa de Albuquerque.


O berzabum parece-me que as arma! – disse o ferrador. – Venha de lá a carta. O
pai dela está cá. Já sabia?


Não.


Pois está; e, se o diabo o traz à minha beira, não sei se lhe darei com a
cabeça numa, já me lembrou de o esperar no caminho e pendurá-lo pelo gasnete no
galho dum sobreiro… A carta tem resposta?


Se lha derem, meu bom amigo.

Chegou
o ferrador a Monchique, a tempo que um oficial da justiça, dois médicos e Tadeu
de Albuquerque entravam no pátio do convento. Falou o azuazíl à prelada,
exigindo em nome do juiz de fora que dois médicos entrassem no convento a
examinar a doente D. Teresa Clementina de Albuquerque, a requerimento de seu
pai.

Perguntou
a prelada aos médicos se eles tinham a necessária licença eclesiástica para
entrarem em Monchique. À resposta negativa redarguiu a abadessa que as portas
do convento não se abriam. Disseram os médicos de Tadeu de Albuquerque que era
aquele o estilo dos mosteiros, e não houve que redarguir à rigorosa prelada.

Saíram,
e o ferrador só então refletiu no modo de entregar a carta. A primeira idéia
pareceu-lhe a melhor. Chegou ao ralo, e disse:


Ó senhora freira!


Que quer vossemecê? – disse a prelada.


A senhora faz favor de dizer à senhora D. Teresinha de Viseu, que está aqui o
pai daquela rapariga da aldeia que ela sabe?


E quem é vossemecê?


Sou o pai da tal rapariga que ela sabe.


Já sei! – exclamou de dentro a voz de Teresa, correndo ao locutório.

A
prelada retirou-se a um lado, e disse:


Vê lá o que fazes, minha filha…


A sua filha escreveu-me? – disse Teresa ao João da Cruz.


Sim, senhora, aqui está a carta.

E
depositou na roda a carta em que a abadessa reparou, e disse, sorrindo:


Muito engenhoso é o amor, Teresinha… Permita Deus que as noticias da rapariga
da aldeia te alegre o coração; mas olha, filhinha, não cuides que a tua velha
tia é menos esperta que o pai da rapariga da aldeia.

Teresa
respondeu com beijos às jovialidades carinhosas da santa senhora, e sumiu-se a
ler a carta, e a responder-lhe. Entregando a resposta, disse ela ao ferrador:


Não vê ai sentada naquela escadinha uma pobre?


Vejo, sim, senhora, e conheço-a. Como diabo veio para aqui esta mulher? Cuide
que depois da esfrega que lhe deu o hortelão, a pobrezinha não tinha pernas que
a cá trouxessem! A mulher pelos modos tem fibras daquela casta!


Fale baixo – tornou Teresa. – Pois olhe… quando trouxer as cartas,
entregue-lhas a ela, sim? Eu já a mandei à cadeia; mas não a deixaram lá
entrar.


Bem está, e o arranjo não é mau assim. Fique com Deus, menina.

Esta
boa nova alegrou Simão. A providência divina apiedara-se dele naquele dia. O
restaurar-se o juízo de Mariana e a possibilidade de corresponder-se com Teresa
eram as máximas alegrias que podiam baixar do céu ao seu cerrado infortúnio.

Exaltara-se
Simão em graças a Deus, na presença de João da Cruz, que arrumava, no quarto,
uns móveis que comprara em segunda mão, quando este, suspendendo o trabalho,
exclamou:


Então vou-lhe dizer outra coisa, que não tinha tenção de lhe dizer, para o
apanhar de súpeto.


Que é?


A minha Mariana veio comigo, e ficou na estalagem porque não se podia bulir com
dores; mas amanhã ela cá está para lhe fazer a cozinha e varrer a casa.

Simão,
reconcentrando o indefinível sentimento que esta noticia lhe causara, disse com
melancólica pausa:


É, pois, certo que a minha má estréia arrasta a sua desgraçada filha a todos os
meus abismos! Pobre anjo de caridade, que digna tu és do céu!


Que está o senhor ai a pregar? – interrompeu o ferrador. – Parece que ficou a
modo de tristonho com a notícia!…


Senhor João – tornou solenemente o preso – não deixe aqui a sua querida filha.
Deixe-ma ver, traga-a consigo uma vez a esta casa; mas não a deixe cá, porque
eu não posso tolher o destino de Mariana. Como há de ela viver no Porto,
sozinha, sem conhecer ninguém, bela como ela é, e perseguida como tem de ser?!


Perseguida! Tó carocha! Não que ela é mesmo de se lhe dar que a
persigam!… Que vão para lá, mas que deixem as ventas em casa. Meu amigo, as
mulheres são como as pêras verdes: um homem apalpa-as, e, se o dedo acha duro,
deixa-as, e não as come. É como é. A rapariga sai à mãe. Minha mulher, que Deus
haja, quando eu lhe andava rentanto, dei-lhe um dia um beliscão numa perna. E
vai ela põe-se direita comigo, e deu-me dois cascudos nas trombas, que ainda
agora os sinto. A Mariana!… Aquilo é d’a pele de Satanás! Pergunte o senhor,
se algum dia falar com aquele fidalguinho Mendes, de Viseu, a troçada que ele
levou com as rédias da égua, só por lhe bulir na chinela quando ela estava em
cima da burra!

Simão
sorriu ao rasgado panegírico da bravura da moça, e orgulhou-se secretamente dos
brandos afagos com que ela o desvelara em oito meses de quase continuada
convivência.


E vossemecê há de privar-se da companhia de sua filha? – insistiu o preso.


Eu lá me arranjarei como puder. Tenho uma cunhada velha, e levo-a para mim para
me arranjar o caldo. E vossa senhoria pouco tempo aqui estará… O senhor
corregedor lá anda a tratar de o pôr na rua, e que o senhor sai, cá para mim
são favas contadas. E assim com’assim, viu dizer-lhe tudo duma feita: a
rapariga, se eu a não deixasse vir para o Porto, dava um estouro como uma
castanha. Olhe que eu não sou tolo, fidalgo. Que ela tem paixão d’alma por
vossa senhoria, isto; tão certo como eu ser João. É a sua sina; que hei de eu
fazer-lhe? Deixá-la, que pelo senhor Simão não lhe há de vir mal, ou então já
não há honra neste mundo.

Simão
lançou-se aos braços do ferrador, exclamando:


Pudesse eu ser o marido de sua filha, meu nobre amigo!


Qual marido!… – disse o ferrador com os olhos vidrados das primeiras lágrimas
que Simão lhe vira – Eu nunca me lembrei disso, nem ela!… Eu sei que sou um
ferrador, e ela sabe que pode ser sua criada, e mais nada, senhor Simão; mas…
sabe que mais? Eu desejo que os meus amigos sejam desgraçados como havia de ser
o senhor se casasse com a pobre rapariga! Não falemos nisto, que eu por milagre
choro; mas, quando pego a chorar, sou um chafariz… Vamos ao arranjo: a mesa
deve aqui ficar; a cômoda ali; duas cadeiras deste lado, e duas daquele. A
barra acolá. O baú debaixo da cama. A bacia e a bilha da água sobre esta coisa,
que não sei como se chama. Os lençóis e o mais bragal tem-nos lá a rapariga.
Amanhã é que o quarto há de ficar que nem uma capela. Olhe que a Mariana já me
disse que comprasse duas aquelas… Como se chamam aquelas envasilhas de pôr
ramos?


Jarras.


E como diz, duas jarras para flores; mas eu não sei onde se vende isso. Agora
vou buscar o jantar, que a moça há de cuidar que me não deixar sair da cadeia.
Ainda lhe não disse que não me deixaram cá entrar ontem à tarde; mas eu, como
trouxe uma cartinha de sua mãe para um senhor desembargador, fui onde a ele, e
hoje de manhã já lá tinha na estalagem a ordem do senhor intendente geral da
policia. Até logo.

 

XVI

 

Um incidente agora me
ocorre, não muito concertado com o seguimento da história, mas a propósito
vindo para demonstrar uma face da índole do ex-corregedor de Viseu, já então
exonerado do cargo.

Sabido
é que Manuel Botelho, o primogênito. voltando a frequentar matemáticas em
Coimbra, fugira dali para Espanha com uma dama desleal a seu marido, estudante
açoreano que cursava medicina.

Um
ano demorara na Corunha Manuel Botelho com a fugitiva. alimentando-se dos
recursos que sua mãe, extremosa por ele, lhe remetia, vendendo a pouco e pouco
as suas jóias, e privando as filhas dos adornos próprios dos anos e da
qualidade.

Secaram-se
estas fontes, e não restavam outras. D. Rita disse afinal ao filho que deixara
de socorrer Simão por não ter meios; e agora das escassas economias que fazia
nada podia enviar-lhe porque estava em obrigação de pagar os alimentos de Simão
à pessoa que por compaixão lhos dera em Viseu, e lhos estava dando no Porto.
Ajuntava ela, para consolação do filho, que viesse ele para Vila-Real, e
trouxesse consigo a infeliz senhora; que fosse ele para casa, e a deixasse a
ela numa estalagem até se lhe arranjar habitação; que o ensejo era oportuno por
estar na quinta de Montezelos o pai, quase divorciado da família.

Voltou
pelo Minho Manuel Botelho, e chegou com a dama ao Porto, quinze dias depois que
Simão entrara no cárcere.


noutro ponto deixamos dito que nunca os dois irmãos se deram, nem estimaram;
mas o infortúnio de Simão remia as culpas do gênio fatal que o orfanara de pai
e mãe, e só da irmã Rita lhe deixara uma lembrança saudosa.

Foi
Manuel à cadeia, e, abrindo os braços ao irmão. teve um glacial acolhimento.

Perguntou-lhe
Manuel a história do seu desastre,


Consta do processo – respondeu Simão.


E tem o mano esperanças de liberdade? – replicou Manuel.


Não penso nisso.


Eu pouco posso oferecer-lhe, porque vou para casa forçado pela falta de
recursos; mas, se precisa de roupa, repartirei consigo da minha.


Não preciso nada, Esmolas só as recebo daquela mulher.


Manuel tinha reparado em Mariana, e da beleza da moça inferira conclusões para
formar falsos juízos.


E quem é esta menina? – tornou Manuel.


É um anjo… Não lhe sei dizer mais nada.

Mariana
sorriu-se, e disse:


Sou uma criada do senhor Simão e de vossa senhoria.


E cá do Porto?


Não, meu senhor, seu dos arrabaldes de Viseu.


E tem feito sempre companhia a meu mano?

Simão
atalhou assim à resposta balbuciante de Mariana:


A sua curiosidade incomoda-me, mano Manuel.


Cuidei que não era ofensiva – replicou o outro, tomando o chapéu. – Quer alguma
coisa para a mãe?


Nada.

Estando
Manuel Botelho, na tarde desse dia, fechando as malas para seguir jornada para
Vila-Real, foi visitado pelo desembargador Mourão Mosqueira e pelo corregedor
do crime.


Devemos à espionagem da polícia – disse o corregedor – a novidade de estar
nesta estalagem um filho do meu antigo amigo, condiscípulo e colega Domingos
Correia Botelho. Aqui vimos dar-lhe um abraço e oferecer o nosso préstimo. Esta
senhora é sua esposa? – continuou o magistrado, reparando na açoreana.


Não é minha esposa… – balbuciou Manuel – é… minha irmã.


Sua irmã… – disse Mosqueira – qual das três? Há cinco anos que as vi em
Viseu, e grande mudança fez esta senhora, que não me recordo das suas feições
absolutamente coisa nenhuma. E a senhora D. Ana Amália?


Justamente – disse Manuel.


Bela lhe afirmo eu que está, minha senhora; mas fez-se um rosto muito outro do
que era!…


Vieram ver o infeliz Simão? – atalhou o corregedor.


Sim, senhor… viemos ver meu pobre irmão.


Foi um raio que caiu na família aquele rapaz!… -ajuntou Mosqueira – mas pode
estar na certeza que a sentença não se executa; diga a sua mãe que mo ouviu da
minha boca. O meu tribunal está preparando para lhe minorar a pena em dez anos
de degredo para a Índia, e seu pai. segundo me disse na passagem para
Vila-Real, já preparou as coisas na suplicação e no desembargo do paço, não
obstante o morto ter lá parentes poderosos nas duas instâncias. Quiséramos
absolvê-lo e restituí-lo à sua família; mas tanto é impossível. Simão matou, e
confessa soberbamente que matou. Não consente mesmo que se diga que em defesa o
fez. É um doido desgraçado com sentimentos nobilíssimos! Chovem cartas de
empenho a favor do Albuquerque. Pedem a cabeça do pobre rapaz com uma
sem-cerimônia que indigna o ânimo.


E essa menina que foi a causa da desgraça? – perguntou Manuel.


Isso é uma heroína! – respondeu o corregedor do crime, – Davam-na já por morta
quando Simão chegou aqui. Desde que soube das probabilidades da comutação da
pena, deu um pontapé na morte, e está salva, segundo me disse o médico.


Conhece-a muito bem, minha senhora? – disse o desembargador à dama, suposta
irmã de Manuel.


Muito bem – respondeu ela, relaceando os olhos ao amante.


Dizem que é formosíssima!


Decerto – acudiu Manuel – é formosíssima!


Muito bem – disse o corregedor, erguendo-se. – Leve este abraço ao pai, e
diga-lhe que o condiscípulo cá está leal e dedicado como sempre. Eu tenho de
lhe escrever brevemente.


E outro abraço a sua virtuosa, mãe – acrescentou o desembargador.


Vou desconfiado! – disse o Mosqueira ao colega. – Manuel Botelho tinha, há
coisa de um ano, fugido para Espanha com uma senhora casada. Aquela mulher que
vimos não é irmã dele.


Pois, se nos mentiu, é patife, por nos obrigar a cortejar uma concubina!… Eu
me informarei… – disse o corregedor, ofendido no seu austero pundonor.

E
no próximo correio, escrevendo a Domingos Botelho, dizia no período final
“Tive o gosto de conhecer teu filho Manuel e uma de tuas filhas; por ele
te mandei um abraço, e por ela te mandaria outro, se fosse moda ensinarem
velhos a meninas bonitas como se dão os abraços nos pais”.

Estava
já Manuel em casa, e cuidava em trajar uma modesta casa para a açoreana,
auxiliado por sua bondosa e indulgente mãe. Domingos Botelho fora informado da
vinda, e dissera que não queria ver o filho, avisando-o de que era considerado
desertor de cavalaria seis desde que abandonara os estudos, onde estava com
licença.

Recebeu
depois a carta do corregedor do crime, e mandou imediata e secretamente
devassar se em Vila-Real estava a senhora que indicava a carta. A espionagem
deu-a como certa na estalagem, enquanto Manuel Botelho cuidava nos adornos de
uma casa. Escreveu o magistrado ao juiz de fora, e este mandou chamar à sua
presença a mulher suspeita, e ouviu dela a sua história sincera e
lacrimosamente contada. Condoeu-se o juiz, e revelou ao colega as suas
averiguações, Domingos Botelho foi a Vila-Real, e hospedou-se em casa do juiz
de fora, onde a senhora foi novamente chamada, sendo que ao mesmo tempo o
general da província lavrava ordem de prisão para o cadete desertor de
cavalaria de Bragança.

A
açoreana, em vez do juiz, encontrou um feio homem, de carrancuda sambra, e
aparência de intenções sinistras.


Eu sou pai de Manuel – disse Domingos Botelho. Sei a história da senhora. O
infame é ele. Vossa senhoria é a vítima. O castigo da senhora principiou desde
o momento em que a sua consciência lhe disse que praticou uma ação indigna. Se
a consciência lho não disse ainda, ela lho dirá. Donde é?


Da ilha do Faial – respondeu trêmula a dama.


Tem família?


Tenho mãe e irmãs.


Sua mãe aceitá-la-ia, se a senhora lhe pedisse abrigo?


Creio que sim.


Sabe que Manuel é um desertor, que a estas horas está preso ou fugitivo?


Não sabia…


Quer isto dizer que a senhora não tem proteção de alguém…

A
pobre mulher soluçava, abafada por ânsias, e debulhada em lágrimas.


Por que não vai para sua mãe?


Não tenho recursos alguns – respondeu ela.


Quer partir hoje mesmo? A porta da estalagem. daqui a pouco, encontrará uma
liteira e uma criada para acompanhá-la até ao Porto. Lá entregará uma carta. A
pessoa a quem escrevo lhe cuidará da passagem para Lisboa. Em Lisboa outra pessoa
a levará a bordo da primeira embarcação que sair para os Açores. Estamos
combinados? Aceita?


E beijo as mãos de vossa senhoria… Uma desgraçada como eu não podia esperar
tanta caridade.

Poucas
horas depois. a esposa do médico…


Que tinha morrido de paixão e vergonha talvez! – exclama uma leitora sensível.


Não, minha senhora; o estudante continuava nesse ano a frequentar a
Universidade; e, como tinha já vasta instrução em patologia, poupou-se à morte
da vergonha. que é uma morte inventada pelo visconde de A. Garrett no Fr.
Luiz de Sousa,
e à morte da paixão. que é outra morte inventada pelos
namorados nas cartas despeitosas, e que não pega nos maridos a quem o século
dotou de uns longes de filosofia, filosofia grega e romana, porque bem sabem
que os filósofos da antiguidade davam por mimo as mulheres aos seus amigos,
quando os seus amigos por favor lhas não tiravam, E esta filosofia hoje
então…

Pois
o médico não morreu, nem sequer desmedrou, ou levou R significativo de
preocupação do ânimo, insensível às amenidades da terapêutica.

A
esposa, inquestionavelmente muito mais alquebrada e valetudinária que seu
esposo, lavada em pranto, morta de saudades, sem futuro, sem esperanças, sem
voz humana que a consolasse, entrou na liteira, e chegou ao Porto, onde
procurou o corregedor do crime para entregar-lhe uma carta do doutor Domingos
Botelho. Um período desta carta dizia assim:

 

“Deste-me a
noticia duma filha que eu não conhecia, nem conheço. A mãe desta senhora está
no Faial, para onde ela vai. Cuida tu, ou manda cuidar no seu transporte para
Lisboa, e encarrega ali alguém de correr com a passagem dela para os Açores no
primeiro navio. A mim me darás conta das despesas. Meu filho Manuel teve ao
menos a virtude de não matar ninguém para se constituir amante. Do modo como
correm os tempos, muito virtuoso é o rapaz que não mata o marido da mulher que
ama. Vê se consegues do general, que está ai, perdão para o rapaz, que é
desertor da cavalaria seis, e me consta que está escondido em casa dum parente.
Enquanto a Simão, creio que não é possível salvá-lo do degredo temporário… É
uma lança em África livrá-lo da forca. Em Lisboa movem-se grandes potências
contra o desgraçado, e eu estou mal visto do intendente geral por abandonar o
lugar… etc.”.

 

Partiu
para Lisboa a açoreana, e dali para a sua terra, e para o abrigo de sua mãe,
que a julgara morta, e lhe deu anos de vida, se não ditosa, sossegada e
desiludida de quimeras.

Manuel
Botelho, obtido o perdão pela preponderância do corregedor do crime, mudou de
regimento para Lisboa, e ai permaneceu até que, falecido seu pai, pediu a baixa
e voltou à província.

 

XVII

 

João da Cruz, no dia 4
de agosto de 1805, sentou-se à mesa com triste aspecto e nenhum apetite do
almoço.


Não comes, João? – disse-lhe a cunhada.


Não passa daqui o bocado – respondeu ele, pondo o dedo nos gorgomilos.


Que tens tu?


Tenho saudades da rapariga… Dava agora tudo quando tenho para a ver aqui ao
pé de mim, com aqueles olhos que pareciam ir direito aos desgostos que um homem
tem no seu interior. Mal hajam as desgraças da minha vida, que ma fizeram
perder, Deus sabe se para pouco, se para sempre!… Se eu não tivesse dado o
tiro no almocreve, não vinha a ficar em obrigação ao corregedor, e não se me
dava que o filho vivesse ou morresse…


Mas, se tens saudades – atalhou a senhora Josefa – manda buscar a rapariga,
tem-na cá algum tempo, e torna depois para onde ao senhor Simão.


Isso não é de homem que põe navalha na cara, Josefa. O rapaz, se ela lhe falta,
morre de pasmo dentro daqueles ferros. Isto é veneta que me deu hoje… Sabes
que mais? Leve a breca o dinheiro! Amanhã vou ao Porto.


Pois isso é o que deves fazer.


Está dito. Quem cá ficar que o ganhe. Vão-se os anéis e fiquem os dedos. Por
ora, tem-se resistido a tudo com o meu braço. A rapariga, se ficar com menos,
lá se avenha. Assim o quer, assim o tenha.

Reanimou-se
a fisionomia do mestre ferrador, e como que os empeços da garganta se iam
removendo à medida que planizava a sua ida ao Porto.

Acabara
de almoçar, e ficara cismático, encostado à mesa do escano.


Ainda estás malucando?! – tornou Josefa.


Parece coisa do demônio, mulher!… A rapariga estará doente ou morta?


Anjo bento da Santíssima Trindade! – exclamou a cunhada, erguendo as mãos – que
dizes tu, João?


Estou cá por dentro negro como aquela sertã!


Isso é flato, homem! Vai tomar ar; trabalha um poucochinho para espaireceres.

João
da Cruz passou ao coberto onde tinha o armário da ferragem e a bigorna, e
começou a atarracar cravos.

Alguns
conhecidos tinham passados, palavreando com ele consoante costumavam, e
achavam-no taciturno e nada para graças.


Que tens tu, João? – dizia um.


Não tenho nada. Vai à tua vida e deixa-me, que não estou para lérias.

Outro
parava e dizia:


Guarde-o Deus, senhor João.


E a vossemecê também. Que novidade há?


Não sei nada.


Pois então vá com Nossa Senhora, que eu estou cá de candeias às avessas.

O
ferrador largava o martelo; sentava-se aos poucos no tronco, e coçava a cabeça
com frenesi. Depois recomeçava novamente, e tão alheado o fazia, que estragava
o cravo, ou martelava os dedos.


Isto é coisa do diabo! – exclamou ele; e foi à cozinha procurar a pichorra, que
emborcou como qualquer elegante de paixões etéreas se aturde com absinto. – Hei
de afogar-te, coisa má, que me estás apertando a alma! – continuou o ferrador,
sacudindo os braços, e batendo o pé no soalho.

Voltou
ao coberto a tempo que um viandante ia passando sobre a sua possante mula.
Envolvia-se o cavaleiro num amplo capote à moda espanhola, sem embargo da calma
que fazia. Viam-se-lhe as botas de couro cru, com esporas amarelas afiveladas,
e o chapéu derrubado sobre os olhos.


Ora viva! – disse o passageiro.


Viva! – respondeu mestre João, relaceando os olhos pelas quatro patas da mula,
a ver se tinha obra em que entreter o espírito – A mula é de rópia e chibança!


Não é má. Vossemecê é que é o senhor João da Cruz?


Para o servir.


Venho aqui pagar-lhe uma dívida.


A mim? O senhor não me deve nada, que eu saiba.


Não sou eu que devo; é meu pai, e ele que me encarregou de lhe pagar.


E quem é seu pai?


Meu pai era um recoveiro de Carção, chamado Bento Machado.

Proferida
metade destas palavras, o cavalheiro afastou rapidamente as bandas do capote e
desfechou um bacamarte no peito do ferrador. O ferido recuou, exclamando:


Mataram-me!… Mariana, não te vejo mais!…

O
assassino teria dado cinquenta passos a todo o galope da espantada mula, quando
João da Cruz, debruçado sobre o banco, arrancava o último suspiro com a cara
posta no chão, donde apontara ao peito do almocreve dez anos antes.

Os
caminheiros, que perpassaram pelo cavaleiro inadvertidamente, ajuntaram-se em
redor do cadáver. Josefa acudiu ao estrondo do tiro, e já não ouviu as últimas
palavras de seu cunhado. Quis transportá-lo para dentro e correr a chamar
cirurgião; mas um cirurgião estava no ajuntamento, e declarou morto o homem.


Quem o matou? – exclamavam trinta vozes a um tempo.

Nesse
mesmo dia vieram justiça de Viseu lavrar auto e devassar: nenhum indício lhes
deu o fio do misterioso assassínio. O escrivão dos órfãos inventariou os
objetos encontrados, e fechou as portas quando os sinos corriam o derradeiro
dobre ao cair da lousa sobre João da Cruz.

Deus
terá descontado nos instintos sanguinários do teu temperamento a nobreza de tua
alma! Pensando nas incoerências da tua índole, homem que me explicas a
providência, assombram-me as caprichosas antíteses que a mão de Deus infunde em
alentos na criatura. Dorme o teu sono infinito, se nenhum outro tribunal te
cita a responder pelas vidas que tiraste, e pelo uso que fizeste da tua. Mas,
se há estância de castigo e de misericórdia, as lágrimas de tua filha terão
sido, na presença do Juiz Supremo, os teus merecimentos.

Fez
Josefa escrever a Mariana, noticiando-lhe a morte de seu pai, mas sobrescritou
a carta a Simão Botelho, para maior segurança. Estava Mariana no quarto do
preso, quando a carta lhe foi entregue.


Não conheço a letra, Mariana… E a obreia é preta…

Mariana
examinou o sobrescrito, e empalideceu.


Eu conheço a letra – disse ela – é do Joaquim da loja. Abra, depressa, senhor
Simão… Meu pai morreria?


Que lembrança! Pois não teve há três dias carta dele?… E não disse que estava
bom?


Isso que tem?… Veja quem assina.

Simão
buscou a assinatura, e disse:


Josefa Maria!…
É
a tua tia que lhe escreve.


Leia… leia… Que diz ela? Deixe-me ler a mim…

O
preso lia mentalmente, e Mariana instou:


Leia alto, por quem é, senhor Simão, que estou a tremer… e vossa senhoria
descora… Que é, meu Deus?

Simão
deixou cair a carta, e sentou-se prostrado de ânimo. Mariana correu a levantar
a carta, e ele, tomando-lhe a mão, murmurou:


Pobre amigo!… Choremo-lo ambos… choremo-lo, Mariana, que o amávamos como
filhos…


Pois morreu? – bradou ela.


Morreu… mataram-no!…

A
moça expediu um grito estrídulo, e foi com o rosto contra os ferros das grades.
Simão inclinou-a para o seio, e disse-lhe com muita ternura e veemência:


Mariana, lembre-se que é o meu amparo. Lembre-se de que as últimas palavras de
seu pai deviam ser recomendar-lhe o desgraçado que recebe das tuas mãos
benfeitoras o pão da vida. Mariana, minha querida irmã, vença a dor, que pode
matá-la, e vença-a por amor de mim. Ouve-me, amiga da minha alma?

Mariana
exclamou:


Deixe-me chorar, por caridade!… Ai! meu Deus, se eu torno a endoidecer!


Que seria de mim! – A quem deixaria Mariana o seu nobre coração para me
suavizar este martírio? Quem me levaria ao desterro uma palavra amiga que me
animasse a crer em Deus? Não há de enlouquecer, Mariana, porque eu sei que me
estima, que me ama, e que afrontará com coragem a maior desgraça que ainda pode
sugerir-me o inferno! Chore, minha irmã, chore: mas veja-me através das suas lágrimas!

 

 

XVII

 

Mariana, decorridos
dias, foi a Viseu recolher a herança paterna Em proporção com o seu nascimento,
bem dotada a deixara o laborioso ferrador. Afora os campos, cujo rendimento
bastaria para a sustentação dela, Mariana levantou a laje conhecida da lareira
e achou os quatrocentos mil réis com que João da Cruz contava para alimentar as
regalias de sua decrepitude inerte. Vendeu Mariana as terras, e deixou a casa a
sua tia, que nascera nela, e onde seu pai casara.

Liquidada
a herança, tornou para o Porto, e depositou o seu cabedal nas mãos de Simão
Botelho, dizendo que receava ser roubada na casinha em que vivia, fronteira à
Relação, na Rua de S. Bento.


Por que vendeu as suas terras, Mariana? – perguntou o preso.


Vendi-as, porque não faço tenção de lá voltar.


Não faz?… Para onde há de ir, Mariana, indo eu degredado? Fica no Porto?


Não, senhor, não fico – balbuciou ela como admirada desta pergunta, à qual o
seu coração julgava ter respondido de muito.


Pois não?!


Vou para o degredo, se vossa senhoria me quiser na sua companhia.

Fingindo-se
surpreendido, Simão seria ridículo aos seus pró-prios olhos.


Esperava essa resposta, Mariana, e sabia que não me dava outra. Mas sabe o que
é o degredo, minha amiga?


Tenho ouvido dizer muitas vezes o que é, senhor Simão… É uma terra mais
quente que a nossa; mas também há lá pão, e vive-se…


E morre-se abrasado ao sol doentio daquele céu morre-se de saudades da pátria,
morre-se muitas vezes dos maus tratos dos governadores das galés, que têm um
condenado na conta de fera.


Não há de ser tanto assim. Eu tenho perguntado muito por isso à mulher dum
preso, que cumpriu dez anos de sentença na Índia, e viveu muito bem em uma
terra chamada Solor, onde teve uma tenda; e, se não fossem as saudades, diz ela
que não vinha, porque lhe corria melhor por lá a vida que por cá. Eu, se for
por vontade do Senhor Simão, vou pôr uma lojinha também. Verá como eu amanho a
vida. Afeita ao calor estou eu; vossa senhoria não está; mas não há de ter
precisão, se Deus quiser, de andar ao tempo.


E suponha, Mariana, que eu morro apenas chegar ao degredo?


Não falemos nisso, senhor Simão…


Falemos, minha amiga, porque eu hei de sentir à hora da morte, a pesar-me na
alma, a responsabilidade do seu destino… Seu eu morrer?


Se o senhor morrer, eu saberei morrer também.


Ninguém morre quando quer, Mariana…


Oh! se morre!… E vive também quando quer… Não mo disse já a senhora D.
Teresa?


Que lhe disse ela?


Que estava a passar quando vossa senhoria chegou ao Porto, e que a sua chegada
lhe dera vida. Pois há muita gente assim, senhor Simão… E mais a fidalga é
fraquinha, e eu sou mulher do campo, vezada a todos os trabalhos; e, se fosse
preciso meter uma lanceta no braço e deixar correr o sangue até morrer, fazia-o
como quem o diz.


Ouça-me, Mariana que espera de mim?


Que hei de eu esperar!… Por que me diz isso o senhor Simão?


Os sacrifícios que Mariana tem feito e quer fazer por mim só podiam ter uma
paga, embora mos não faça esperando recompensa. Abre-me o seu coração, Mariana?


Que quer que eu lhe diga?


Conhece a minha vida tão bem como eu, não é verdade?


Conheço. E que tem isso?


Sabe que eu estou ligado pela vida e pela morte àquela desgraçada senhora?


E dai? Quem lhe diz menos disso?!


Os sentimentos do coração só os posso agradecer com amizade.


Eu já lhe pedi mais alguma coisa, senhor Simão?!


Nada me pediu, Mariana; mas obriga-me tanto, que me faz mais infeliz o peso da
obrigação.

Mariana
não respondeu; chorou.


E por que chora? – tornou Simão carinhosamente.


Isso é ingratidão… e eu não mereço que me diga que o faço infeliz.


Não me compreendeu… Sou infeliz por não poder fazê-la minha mulher. Eu queria
que Mariana pudesse dizer:


“Sacrifiquei-me por meu marido; no dia em que o vi ferido em casa de meu
pai, velei as noites a seu lado; quando a desgraça o encerrou entre ferros,
dei-lhe o pão que nem seus ricos pais lhe davam; quando o vi sentenciado à
forca, endoideci; quando a luz da minha razão me tornou num raio de compaixão
divina, corri ao segundo cárcere, alimentei-o, vesti-o, e adornei-lhe as
paredes nuas do seu antro; quando o desterraram, acompanhei-o, fiz-me a pátria
daquele pobre coração, trabalhei à luz do sol homicida para ele se resguardar
do clima, do trabalho, e do desamparo, que o matariam…”

O
espírito de Mariana não podia altear-se à expressão do preso; mas o coração
adivinhava-lhe as idéias. E a pobre moça sorria e chorava a um tempo. Simão
continuou:


Tem vinte e seis anos, Mariana. Viva, que esta sua existência não pode ser
senão um suplício oculto. Viva, que não deve dar tudo a quem lhe não pode
restituir senão as lágrimas que eu lhe tenho custado. O tempo do meu desterro
não pode estar longe; esperar outro melhor destino seria uma loucura. Se eu
ficasse na pátria, livre ou preso, pediria a minha irmã que completasse a obra
generosa da sua compaixão, esperando que eu lhe desse a última palavra da minha
vida. Mas não vá comigo à África ou à Índia, que sei que voltará sozinha à
pátria depois que eu fechar os olhos. Se o meu degredo for temporário, e a
morte me guardar para maiores naufrágios, voltarei à pátria um dia. É preciso
que Mariana aqui esteja para eu poder dizer que venho para a minha família, que
tenho aqui uma alma extremosa que me espera. Se a encontrar com marido e
filhos, a sua extremosa família será a minha. Se a vir livre e só, irei para a
companhia de minha irmã. Que me responde, Mariana?

A
filha de João da Cruz, erguendo os olhos do pavimento. disse:


Eu verei o que hei de fazer quando o senhor Simão partir para o degredo…


Pense desde já, Mariana.


Não tenho que pensar… A minha tenção está feita…


Fale, minha amiga; diga qual é a sua tenção.

Mariana
hesitou alguns segundos, e respondeu serenamente:


Quando eu vir que não lhe sou precisa, acabo com a vida. Cuida que eu ponho
muito em me matar? Não tenho pai, não tenho ninguém, a minha vida não faz falta
a pessoa nenhuma. O senhor Simão pode viver sem mim? Paciência!… Eu é que não
posso…

Susteve
o complemento da idéia como quem se peja duma ousadia. O preso apertou-a nos
braços estremecidamente, e disse:


Irá, irá comigo, minha irmã. Pense muito no infortúnio de nós ambos d’ora em
diante, que ele é comum; é um veneno que havemos de tragar unidos, e lá teremos
uma sepultura de terra tão pesada como a da pátria.

Desde
este dia, um secreto júbilo endoidecia o coração de Mariana. Não inventemos
maravilhas de abnegação. Era de mulher o coração de Mariana. Amava como a
fantasia se compraz de idear o amor duns anjos que batem as asas de baile em
baile, e apenas quedam o tempo preciso para se fazerem ver e adorar a um
reflexo de poesia apaixonada. Amava, e tinha ciúmes de Teresa, não ciúmes que
se refrigeram na expansão ou no despeito, mas infernos surdos, que não rompiam
em labareda aos lábios, porque os olhos se abriam prontos em lágrimas para
apagá-la. Sonhava com as delícias do des-terro, porque voz humana alguma não
iria lá gemer à cabeceira do desgraçado. Se a forçassem a resignar a sua
inglória missão de irmã daquele homem, resigná-la-ia, dizendo: – “Ninguém
lhe adoçará as penas tão desinteresseiramente como o eu fiz”.

E,
contudo, nunca vacilou em aceitar da mão de Teresa ou da mendiga as cartas para
Simão. A cada vinco de dor que a leitura daquelas cartas sulcava na fronte do
preso, Mariana, que o espreitava disfarçada, tremia em todas as fibras do seu
coração, e dizia entre si: – “Para que há de aquela senhora amargurar-lhe
a vida?”

E
amargurava acerbamente a desditosa menina!

Ressurgiram
naquela alma esperanças, que não deviam durar além do tempo necessário para que
a desilusão lhe acrisolasse o infortúnio. Imaginara ela a liberdade, o perdão,
o casamento, a ventura, a coroa do seu martírio. As suas amigas
matizavam-lhe a tela da fantasia, umas porque não conheciam a atroz realidade
das coisas, outras porque fiavam em demasia nas orações das virtuosas do
mosteiros. Se os vaticínios das profetisas se realizassem, Simão sairia da
cadeia, Tadeu de Albuquerque morreria de velhice e de raiva, o casamento seria
um ato indisputável, e o céu dos desgraçados principiaria neste mundo.

Porém,
Simão Botelho, ao cabo de cinco meses de cárcere, já sabia o seu destino, e
achara útil prevenir Teresa, para não sucumbir ao inevitável golpe da separação.
Bem queria ele alumiar com esperanças a perspectiva negra do desterro; mas
froixos e frios eram os alívios em que não era parte a convicção nem o
sentimento. Teresa não podia sequer iludir-se, porque tinha no peito um
despertador que a estava acordando sempre para a hora final, embora o semblante
enganasse a condolência dos estranhos.

E,
então, era o expandir-se em lástimas nas cartas que escrevia ao seu amigo;
invocações a Deus, e sacrílegas apóstrofes ao destino; branduras de paciência e
ímpetos de cólera contra o pai; o aferro à vida que lhe foge, e súplicas à
morte.

No
termo de sete meses o tribunal de segunda instância comutou a pena última em
dez anos de degredo para a Índia. Tadeu de Albuquerque acompanhou a Lisboa a
apelação, e ofereceu a sua casa a quem mantivesse de pé a forca de Simão
Botelho. O pai do condenado, segundo assustador aviso que seu filho Manuel lhe
dera, foi para Lisboa lutar com o dinheiro e as poderosas influências que Tadeu
de Albuquerque granjeara na Casa da Suplicação e no Desembargo do Paço. Venceu
Domingos Botelho, e, instigado mais do seu capricho que do amor paternal,
alcançou do Príncipe Regente a graça de cumprir o condenado a sua sentença na
prisão de Vila-Real.

Quando
intimaram a Simão Botelho a decisão do recurso e a graça do Regente, o preso
respondeu que não aceitava a graça; que queria a liberdade do degredo; que
protestaria perante os poderes judiciários contra um favor que não implorava e
que reputava mais atroz do que a morte.

Domingos
Botelho, avisado da rejeição do filho, respondeu que fizesse ele a sua vontade;
mas que a sua vitória dele sobre os protetores e os corrompidos pelo ouro do
fidalgo de Viseu estava plenamente obtida.

Foi
aviso ao intendente geral da polícia, e o nome de Simão Botelho foi inscrito no
catálogo dos degredados para a Índia.

 

XIX

 

A verdade é algumas
vezes o escolho de um romance.

Na
vida real, recebemo-la como ela sai dos encontrados casos, ou da lógica
implacável das coisas; mas, na novela, custa-nos a sofrer que o autor, se
inventa, não invente melhor; e, se copia, não minta por amor da arte.

Um
romance que estriba na verdade o seu merecimento é frio, é impertinente, é uma
coisa que não sacode os nervos, nem a gente, sequer uma temporada, enquanto ele
nos lembra, deste jogo de nora, cujos alcatruzes somos, uns a subir, outros a
descer, movidos pela manivela do egoísmo.

A
verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em painéis ao público!?

A
verdade do coração humano! Se o coração humano tem filamentos de ferro que o
prendem ao barro doente saiu, ou pesam nele e o submergem no charco da culpa
primitiva, para que é emergi-lo, retratá-lo e pô-lo à venda!?

Os
reparos são de quem tem o juízo no seu lugar; mas, pois que eu perdi o meu a
estudar a verdade, já agora a desforra que tenho é pintá-la como ela é feia e
repugnante.

A
desgraça afervora ou quebranta o amor?

Isto
é que eu submeto à decisão do leitor inteligente. Fatos e não teses é o que eu
trago para aqui. O pintor retrata uns olhos, e não explica as funções ópticas
do aparelho visual.

Ao
cabo de dezenove meses de cárcere, Simão Botelho almejava um raio de Sol, uma
lufada do ar não coada pelos ferros, o pavimento do céu, que o da abóbada do
seu cubículo pesava-lhe o peito.

Ânsia
de viver era a sua; não era já ânsia de amar.

Seis
meses de sobressaltos diante da forca deviam distender-lhe as fibras do
coração; e o coração, para o amor, quer-se forte e tenso, de uma certa rijeza,
que se ganha com o bom sangue, com os anseios das esperanças, e com as
alegrias. que o enchem e reforçam para os reveses.

Caiu
a forca pavorosa aos olhos de Simão; mas os pulsos ficaram em ferros, o pulmão
ao ar mortal das cadeias, o espírito entanguido no glacial estupidez dumas
paredes salitrosas, e dum pavimento que ressoa os derradeiros passos do último
padecente, e dum teto que filtra a morte a gotas de água.

O
que é o coração, o coração dos dezoito anos, o coração sem remorsos, o espírito
anelante de glórias, ao cabo de dezoito meses de estagnação da vida?

O
coração é a víscera, ferida de paralisia, a primeira que falece sufocada pela
rebeliões da alma que se identifica à natureza, e a quer, e se devora na ânsia
dela, e se estorce nas agonias da amputação, para os quais a saudade da ventura
extinta é um cautério em brasa; e o amor, que leva ao abismo pelo caminho da
sonhada felicidade, não é sequer um refrigério.

Ao
deslaçar da garganta a corda da justiça, Simão Botelho teve uma hora de
desafogo, como que sentia o patíbulo lascar entre os seus braços, e então
convidou o coração da mulher que o perdera a assistir às segundas núpcias da
sua vida com a esperança.

Depois,
a passo igual, a esperança fugia-lhe para as areias da Ásia, e o coração
intumescia-se de fel, o amor afogava-se nele. morte inevitável, quando não há
abertura por onde a esperança entre a luzir na escuridão íntima.

Esperança
para Simão Botelho, qual?

A
Índia, a humilhação, a miséria, a indigência.

E
os anelos daquela alma tinham mirado as ambições de um nome. Para a felicidade
do amor envidava as forças do talento; mas, além do amor, estava a glória, o
renome e a vã imortalidade, que só não é demência nas grandes almas e nos
gênios que se sentem previver nas gerações vindouras.

Mas
grinaldas de amor a escorrerem sangue dos espinhos, essas infiltram veneno
corrosivo no pensamento, apagam no seio a faísca das nobres afoitezas, apoucam
a idéia que abrangera mundos, e paralisam de mortal espasmo os estados do
coração.

Assim
te sentias tu, infeliz, quando dezoito meses de cárcere, com o patíbulo ou o
degredo na linha do teu porvir, te haviam matado o melhor da alma.

A
ti mesmo perguntavas pelo teu passado, e o coração, se ousava responder,
retraía-se, recriminado pelos ditames da razão.

De
além, daquele convento onde outra existência agonizava, gementes queixas te
vinham espremer fel na chaga; e tu, que não sabias nem podias consolar, pedias
palavras ao anjo da compaixão para ela, e as do demônio do desespero para ti.

Os
dez anos de ferros em que lhe quiseram minorar a pena, eram-lhe mais horrorosos
que o patíbulo. E aceitá-los-ia, porventura, se amasse o céu, onde Teresa bebia
o ar, que nos pulmões se lhe formava em peçonha? Creio: – antes a masmorra,
onde pode ouvir-se o som abafado de uma voz amiga; antes os paroxismos de dez
anos sobre as lajes úmidas de uma enxovia, se, na hora extrema, a última faísca
da paixão, ao bruxulear para morrer, nos alumia o caminho do céu por onde o
anjo do amor desditoso se levantou a dar conta de si a Deus, e a pedir a alma
do que ficou.

Teresa
pedira a Simão Botelho que aceitasse dez anos de cadeia, e esperasse ai a sua
redenção por ela.

 

“Dez anos! –
dizia-lhe a enclausurada de Monchique. Em dez anos terá morrido meu pai e eu
serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe, se não tiveres cumprido a
sentença. Se vais ao degredo, para sempre te perdi, Simão, porque morrerás, ou
não acharás memória de mim, quando voltares”.

 

Como
a pobre se iludia nas horas em que as débeis forças de vida se lhe concentravam
no coração!

As
ânsias, a lividez, o deperecimento tinham voltado. O sangue, que criara novo,
já lhe saía em golfadas com a tosse.

Se
por amor ou piedade o condenado aceitasse os ferrolhos três mil seiscentas e
cinquenta vezes corridos sobre as suas longas noites solitárias, nem assim
Teresa susteria a pedra sepulcral que a vergava de hora a hora.

 

“Não esperes nada,
mártir – escrevia-lhe ele. – A luta com a desgraça é inútil, e eu não posso já
lutar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada neste mundo,
Caminhemos ao encontro da morte… Há um segredo que só no sepulcro se sabe.
Ver-nos-emos?

Vou. Abomino a pátria,
abomino a minha família; todo este solo está aos meus olhos coberto de forcas,
e quantos homens falam a minha língua, creio que os ouço vociferar as
imprecações do carrasco. Em Portugal, nem a liberdade com a opulência; nem já
agora a realização das esperanças que me dava o teu amor, Teresa!

Esquece-te de mim, e
adormece no seio do nada. Eu quero morrer, mas não aqui. Apague-se a luz dos
meus olhos; mas a luz do céu, quero-a! Quero ver o céu no meu último olhar!

Não me peças que aceite
dez anos de prisão. Tu não sabes o que é a liberdade cativa dez anos! Não
compreendes a tortura dos meus vinte meses. A voz única que tenho ouvido é a da
mulher piedosa que me esmola o pão de cada dia, e a do aguazil que veio dar-me a
sarcástica boa-nova de uma graça real, que me comuta o morrer instantâneo da
forca pelas agonias de dez anos de cárcere.

Salva-te, se podes,
Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande desgraçado. Se teu pai te chama, vai.
Se tem de renascer para ti uma aurora de paz, vive para a felicidade desse dia.
E, se não, morre, Teresa, que a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em pó
as fibras laceradas pela dor, é o esquecimento que salva das injúrias a memória
dos padecentes”.

As palavras únicas de
Teresa, em resposta àquela carta, significativa da turbação do infeliz, foram
estas: “Morrerei, Simão, morrerei. Perdoa tu ao meu destino… Perdi-te…
Bem sabes que sorte eu queria dar-te… e morro, porque não posso, nem poderei
jamais resgatar-te. Se podes, viva; não te peço que morras, Simão; quero que
vivas para me chorares. Consolar-te-á o meu espírito… Estou tranquila. Vejo a
aurora da paz… Adeus, até ao céu, Simão”.

 

Seguiram-se
a esta carta muitos dias de terrível taciturnidade. Simão Botelho não respondia
às perguntas de Mariana, Di-lo-íeis arroubado nas voluptuosas angústias do seu
próprio aniquilamento. A criatura posta por Deus ao lado daqueles dezoito anos
tão atribulados chorava; mas as lágrimas, se Simão as via, tiravam-no da mudez
sossegada para ímpetos de aflição, que afinal o extenuavam..

Decorreram
seis meses ainda.

E
Teresa vivia, dizendo às suas consternadas companheiras que sabia ao certo o
dia do seu trespasse.

Duas
primaveras via Simão Botelho pelas grades do seu cárcere. A terceira já
enflorava as hortas, e esverdeava as florestas do Candal.

Era
em março de 1807.

No
dia 10 desse mês, recebeu o condenado intimação para sair na primeira
embarcação que levava âncora do Douro para a Índia. Nesse tempo vinham aqui os
navios buscar os degredados, e recebiam em Lisboa os que tinham igual destino.

Nenhum
estorvo impedia o embarque de Mariana, que se apresentou ao corregedor do crime
como criada do degredado, com passagem paga por seu amo.


E a passagem vale-a bem! – disse o galhofeiro magistrado.

Simão
assistiu ao encaixotar da sua bagagem, numa quietação terrível, como se
ignorasse o seu destino.

Quis
muitas vezes escrever a derradeira carta à moribunda Teresa, e nem sinais de
lágrimas podia já enviar-lhe no papel.


Que trevas, meu Deus! – exclamava ele, e arrancava a mãos cheias os cabelos. –
Dai-me lágrimas, Senhor! Deixai-me chorar, ou matai-me, que este sofrimento e
insuportável!

Mariana
contemplava estarrecida estes e outros lances de locura, ou os não menos
medonhos da letargia.


E Teresa! – bradava ele, surgindo subitamente do seu espasmo. – E aquela
infeliz menina que eu matei! Não hei de vê-la mais, nunca mais! Ninguém me
levará ao degredo a noticia de sua morte! E, quando a eu chamar para que me
veja morrer digno dela, quem te dirá que eu morri, ó mártir?!

A
17 de março de 1807, saiu dos cárceres da Relação Simão Antônio Botelho, e
embarcou no cais da Ribeira, com setenta e cinco companheiros. O filho do
ex-corregedor de Viseu, a pedido do desembargador Mourão Mosqueira, e por ordem
do regedor das justiça, não ia amarrado com cordas ao braço de algum
companheiro. Desceu da cadeia ao embarque, ao lado de um meirinho, e seguido de
Mariana, que vigiava os caixões da bagagem. O magistrado, fiel amigo de D. Rita
Preciosa, foi a bordo da nau, e recomendou ao comandante que distinguisse o
condenado Simão, consentindo-o na tolda, e sentando-o à sua mesa. Chamou Simão
de parte, e deu-lhe um cartucho de dinheiro em ouro, que sua mãe lhe enviava.
Simão Botelho aceitou o dinheiro, e, na presença de Mourão Mosqueira. pediu ao
comandante que fizesse distribuir pelos seus companheiros de degredo o dinheiro
que lhe dava.


É demente o senhor Simão?! – disse o desembargador.


Tenho a demência da dignidade: por amor da minha dignidade me perdi; quero
agora ver a que extremo de infortúnio ela pode levar os seus amantes. A caridade
só me não humilha quando parte do coração e não do dever. Não conheço a pessoa
que me remeteu esse dinheiro.


É sua mãe – tornou Mosqueira.


Não tenho mãe. Quer vossa excelência remeter-lhe esta esmola rejeitada?


Não, senhor.


Então, senhor comandante, cumpra o que lhe peço, ou eu atiro com isto ao rio.

O
Comandante aceitou o dinheiro, e o desembargador saiu de bordo como espantado
da sinistra condição do moço.


Onde é Monchique? – perguntou Simão a Mariana.


É acolá, senhor Simão – respondeu. indicando-lhe o mosteiro, que se debruça
sobre a margem do Douro, em Miragaia.

Cruzou
os braços Simão, e viu através do gradeamento do mirante um vulto

Era
Teresa.

Na
véspera recebera ela o adeus de Simão, e respondera enviando-lhe a trança dos
seus cabelos.

Ao
anoitecer daquele dia, pediu Teresa os sacramentos, e comungou à grade do coro,
onde se foi amparada à sua criada, Parte das horas da noite passou-as sentada
ao pé do santuário de sua tia, que toda a noite orou, Algumas vezes pediu que a
levassem à janela que se abria para o mar, e não sentia ali a frialdade da
viração. Conversava serenamente com as freiras, e despedira-se de todas, uma a
uma, indo por seu pé às celas das senhoras entrevadas para lhes dar o beijo da
despedida.

Todas
cuidavam em reanimá-la, e Teresa sorria, sem responder aos piedosos artifícios
com que as boas almas a si mesmas queriam simular esperanças. Ao abrir da
manhã, Teresa leu uma a uma a cartas de Simão Botelho. As que tinham sido
escritas nas margens do Mondego enterneciam-na a copiosas lágrimas. Eram hinos
à felicidade prevista: eram tudo que mais formoso pode dar o coração humano
quando a poesia da paixão dá cor ao pensamento, e uma formosa e inspirativa
natureza lhe empresta os seus esmaltes, Então lhe acudiam vivas reminiscências
daqueles dias: a sua alegria doida, as suas doces tristezas, esperanças a
desveneceram saudades, os mudos colóquios com a irmã querida de Simão, o céu
aromático que se lhe alargava à inspiração sôfrega de vagos desejos, tudo,
enfim, que lembra a desgraçados.

Emaçou
depois as cartas, e cintou-as com fitas de seda desenlaçadas de raminhos de
flores murchas, que Simão, dois anos antes, lhe atirara da sua janela ao quarto
dela.

As
pétalas das flores soltas quase todas se desfizeram, e Teresa, contemplando-as,
disse: – “Como a minha vida…” – e chorou, beijando os cálices
desfolhados das primeiras que recebeu.

Deu
as cartas a Constança, e encarregou-a de uma ordem, a respeito delas, que logo
veremos cumprida.

Depois
foi orar, e esteve ajoelhada meia hora, com meio corpo reclinado sobre uma
cadeira. Erguendo-se, quase tirada pela violência, aceitou uma xícara de caldo,
e murmurou com um sorriso: – “Para a viagem…”

As
nove horas da manhã pediu a Constança que a acompanhasse ao mirante, e,
sentando-se em ânsias mortais, nunca mais desfitou os olhos da nau, que já
estava verga alta, esperando a leva dos degredados.

Quando
viu, a dois a dois, entrarem, amarrados, no tombadilho, os condenados, Teresa
teve um breve acidente, em que a já frouxa claridade dos olhos se lhe apagou, e
as mãos conclusas pareciam querer aferrar a luz fugitiva.

Foi
então que Simão Botelho a viu.

E
ao mesmo tempo atracou à nau um bote em que vinha a pobre de Viseu, chamando
Simão. Foi ele ao portaló, e, estendendo o braço à mendiga, recebeu o pacotinho
das suas cartas. Reconheceu ele que a primeira não era sua, pela lisura do
papel, mas não a abriu.

Ouviu-se
a voz de levar âncora e largar amarras. Simão encostou-se à amurada da nau, com
os olhos fitos no mirante.

Viu
agitar-se um lenço, e ele respondeu com o seu àquele aceno. Desceu a nau ao
mar, e passou fronteira ao convento. Distintamente Simão viu um rosto e uns
braços suspensos das reixas de ferro; mas não era de Teresa aquele rosto: seria
antes um cadáver que subiu da claustra ao mirante, com os ossos da cara inçados
ainda das herpes da sepultura.


É Teresa? – perguntou Simão a Mariana.


É, senhor, é ela – disse num afogado gemido a generosa criatura, ouvindo o seu
coração dizer-lhe que a alma do condenado iria breve no seguimento daquela por
quem se perdera.

De
repente aquietou o lenço que se agitava no mirante, e entreviu Simão um
movimento impetuoso de alguns braços e o desaparecimento de Teresa e do vulto
de Constança, que ele divisara mais tarde.

A
nau parou defronte de Sobreiras. Uma nuvem no horizonte da barra, e o súbito
encapelamento das ondas causara a suspensão da viagem anunciada pelo
comandante. Em seguida, velejou da Foz uma catraia com o piloto-mor, que
mandava lançar ferro até novas ordens. Mais tarde adiou-se a saída para o dia
seguinte.

E,
no entanto, Simáo Botelho, como o cadáver embalsamado, cujos olhos artificiais
rebrilham cravados e imotos num ponto, lá tinha os seus imersos na interior
escuridade do miradouro. Nenhum sinal de vida. E as horas passaram até que o
derradeiro raio de Sol se apagou nas grades do mosteiro.

Ao
escurecer, voltou de terra o comandante, e contemplou, com os olhos embaciados
de lágrimas. o desterrado, que contemplava as primeiras estrelas, iminentes ao
mirante.


Procura-a no céu? – disse o nauta.


Se a procuro no céu… – repetiu maquinalmente Simão.


Sim!… No céu deve ela estar.


Quem, senhor?


Teresa.


Teresa…! Morreu?!


Morreu, além, no mirante, donde ela estava acenando.

Simão
curvou-se sobre a amurada, e fitou os olhos na torrente. O comandante
lançou-lhe os braços, e disse:


Coragem, grande desgraçado, coragem! Os homens do mar crêem em Deus! Espere que
o céu se abra para si pelas súplicas daquele anjo!

Mariana
estava um passo atrás de Simão, e tinha as mãos erguidas.


Acabou-se tudo!… – murmurou Simão. – Eis-me livre… para a morte… Senhor
comandante – continuou ele energicamente – eu não me suicido. Pode deixar-me.


Peço-lhe que se recolha à câmara. O seu beliche está ao pé do meu.


É obrigatório recolher-me?


Para vossa senhoria não há obrigações; há rogos: peço-lhe, não mando.


Vou, e agradeço a compaixão.

Mariana
seguiu-o com aquele olhar quebrado e mavioso do Jau, quando o poeta
desembarcava, segundo a idéia apaixonada do cantor de Camões.

Encarou
nela Simão, e disse ao comandante:


E esta infeliz?


Que o siga… – respondeu o compassivo homem do mar, que cria em Deus.

Simão
recolheu-se ao beliche, e o comandante sentou-se em frente dele, e Mariana
ficou no escuro da câmara a chorar.


Fale, senhor Simão! – disse o comandante – desafogue e chore.


Chorei, senhor!


Eu não tinha imaginado uma angústia igual à sua. A invenção humana não criou
ainda um quadro tão atroz. Arrepiam-se-me os cabelos, e tenho visto espetáculos
horríveis na terra e no mar.

Acintemente,
o comandante estava provocando Simão ao desabafo. Não respondia o condenado.
Ouvia os soluços de Mariana, e tinha os olhos postos no maço das Cartas, que
pusera sobre uma banqueta.

O
capitão prosseguiu:


Quando em Miragaia me contaram a morte daquela senhora, pedi a uma pessoa
relacionada no convento que me levasse a ouvir de alguma freira a triste história.
Uma religiosa ma contou; mas eram mais os gemidos que as palavras. Soube que
ela, quando descíamos na altura do Oiro, proferia em alta voz: – “Simão,
adeus até à eternidade!” – E caiu nos braços duma criada. A criada gritou,
e outras foram ao mirante, e a trouxeram meia-morta para baixo, ou morta,
melhor direi, que nenhuma palavra mais lhe ouviram. Depois, contaram-me o que
ela penara em dois anos e nove meses naquele mosteiro; o amor que ela lhe
tinha, e as mil mortes que ali padeceu, de cada vez que a esperança lhe morria.
Que desgraçada menina, e que desgraçado moço o senhor é!


Por pouco tempo… – disse Simão, como se o dissesse a si próprio, ou a própria
imaginação estivesse dialogando consigo.


Creio, creio, por pouco tempo – prosseguiu o capitão – mas, se os amigos
pudessem salvá-lo, senhor, eu dar-lhos-ia na Índia mais fiéis que em Portugal.
Prometo-lhe, sob a minha palavra de honra, alcançar a sua residência em Goa. Prometo
segurar-lhe um decente principio de vida e as comodidades que fazem a
existência tão saudável como ela é na Ásia. Não o intimide a idéia do degredo,
senhor Simão. Viva, faça por vencer-se, e será feliz!


O seu silêncio, por piedade, senhor… – atalhou o degredado.


Bem sei que é cedo ainda para planizar futuros. Desculpe à simpatia que me
inspira a indiscrição, mas aceite um amigo nesta hora atribulada.


Aceito, e preciso dele… Mariana! – Chamou Simão. – Venha aqui, se este
cavalheiro o permite.

Mariana
entrou no quarto.


Esta mulher tem sido a minha providência – disse Simão. – Porque ela me valeu,
não senti a fome em dois anos e nove meses de cárcere. Tudo que tinha vendeu
para me sustentar e vestir. Aqui vai comigo esta criatura. Seja respeitável ao
seus olhos, senhor, porque ela é tão pura como a verdade o deve ser nos lábios
dum moribundo. Se eu morrer, senhor comandante, aceite o legado de a amparar
com a sua caridade como se ela fosse minha irmã. Se ela quiser voltar à sua
pátria, seja o seu protetor na passagem. – E, estendendo-lhe a mão, disse com
transporte: – Promete-me isto, senhor?


Juro-lho.

O
comandante, obrigado a subir ao tombadilho, deixou Simão com Mariana.


Estou tranquilo pelo seu futuro, minha amiga.


Eu já o estava, senhor Simão – respondeu ela.

Não
se trocam palavras por largo espaço. Simão apoiou a face sobre a mesa, e
apertou com as mãos as fontes arquejantes. Mariana, de pé, ao lado dele, fitava
os olhos na luz mortiça da lâmpada oscilante, e cismava, como ele, na morte.

E
o nordeste sibilava, como um gemido, nas gáveas da nau.

 

 

CONCLUSÃO

 

As onze horas da noite,
o comandante recolhera-se num beliche de passageiro, e Mariana, sentada no
pavimento, com o rosto sobre os joelhos, parecia sucumbir ao quebranto das
trabalhosas e aflitivas horas daquele dia.

Simão
Botelho velava prostrado no camarote, com os braços cruzados sobre o peito, e
os olhos fitos na luz que balançava, pendente de um arame. O ouvido tê-lo-ia,
talvez, atento a um assobio da ventania: devia de soar-lhe como um ai plangente
aquele silvo agudo, voz única no silêncio da terra e céu.

A
meia-noite, estendeu Simão o braço trêmulo ao maço das cartas que Teresa lhe
enviara, e contemplou um pouco a que estava ao de cima, que era dela. Rompeu a
obreia, e dispôs-se no camarote para alcançar o baço clarão da lâmpada.

Dizia
assim a carta:

 

“É já o meu
espírito que te fala, Simão. A tua amiga morreu. A tua pobre Teresa, à hora em
que leres esta carta, se Deus não me engana, está em descanso.

Eu devia poupar-te a
esta última tortura; não devia escrever-te; mas perdoa à tua esposa do céu a
culpa, pela consolação que sinto em conversar contigo a esta hora, hora final
da noite da minha vida,

Quem te diria que eu
morri, se não fosse eu mesma, Simão? Daqui a pouco. perderás de vista este
mosteiro; correrás milhares de léguas, e não acharás, em parte alguma do mundo,
voz humana que te diga:

– A infeliz espera-te
noutro mundo, e pede ao Senhor que te resgate. – Se te pudesses iludir, meu
amigo, quererias antes pensar que eu ficava com a vida e com esperança de
ver-te na volta do degredo? Assim pode ser, mas, ainda agora, neste solene
momento, me domina a vontade de fazer-te sentir que eu não podia viver. Parece
que a mesma infelicidade tem às vezes vaidade de mostrar que o é, até não
podê-lo ser mais! Quero que digas: – Está morta, e morreu quando eu lhe tirei a
última esperança. –

– Isto não é
queixar-me, Simão: não é. Talvez, que eu pudesse resistir alguns dias à morte,
se tu ficasses; mas, de um modo ou de outro, era inevitável fechar os olhos
quando se rompesse o último fio, este último que se está partindo, e eu mesma o
ouço partir.

Não vão estas palavras
acrescentar a tua pena. Deus me livre de ajuntar um remorso injusto à tua
saudade.

Se eu pudesse ainda
ver-te feliz neste mundo; se Deus permitisse à minha alma esta visão!… Feliz, tu, meu pobre condenado!…
Sem o querer, o meu amor agora te fazia injúria, julgando-te capaz de
felicidade! Tu morrerás de saudade, se o clima do desterro te não matar ainda
antes de sucumbires à dor do espírito.

A vida era bela, era,
Simão, se a tivéssemos como tu ma pintavas nas tuas cartas, que li há pouco!
Estou vendo a casinha que tu descrevias defronte de Coimbra, cercada de
árvores, flores e aves. A tua imaginação passeava comigo às margens do Mondego, à hora pensativa do escurecer.
Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a água. Eu respondia com a mudez do
coração ao teu silêncio, e, animada por teu sorriso, inclinava a face ao teu
seio, como se fosse ao de minha mãe. Tudo isto li nas tuas cartas; e parece que
cessa o despedaçar da agonia enquanto a alma se está recordando. Noutra carta,
me falavas em triunfos e glórias e imortalidade do teu nome. Também eu ia após
da tua aspiração, ou adiante dela, porque o maior quinhão dos teus prazeres de
espírito queria eu que fosse meu. Era criança há três anos, Simão, e já
entendia os teus anelos de glória, e imaginava-os realizados como obra minha,
se tu me dizias, como disseste muitas vezes, que não serias nada sem o estimulo
do meu amor.

Ó Simão, de que céu tão
lindo caímos! A hora que te escrevo, tu estás para entrar na nau dos
degredados, e eu na sepultura.

Que importa morrer, se
não podemos jamais ter nesta vida a nossa esperança de há três anos? Poderias
tu com a desesperança e com a vida, Simão? Eu não podia. Os instantes do dormir
eram os escassos benefícios que Deus me concedia; a morte é mais que uma
necessidade, é uma misericórdia divina, uma bem-aventurança para mim.

E que farias tu da vida
sem a tua companheira de martírio? Onde tu irás aviventar o coração que a
desgraça te esmagou, sem o esquecimento da imagem desta dócil mulher, que
seguiu cegamente a estrela da tua malfadada sorte?!

Tu nunca hás de amar,
não, meu esposo? Terias pejo de ti mesmo, se uma vez visses passar rapidamente
a minha sombra por diante dos teus olhos enxutos? Sofre, sofre ao coração da
tua amiga estas derradeiras perguntas, a que tu responderás, no alto mar,
quando esta carta leres.

Rompe a manhã. Vou ver
a minha última aurora… a última dos meus dezoito anos!

Abençoado sejas, Simão!
Deus te proteja, e te livre de uma agonia longa. Todas as minhas angústias lhe
ofereço em desconto das tuas culpas. Se algumas impaciências a justiça divina
me condena, oferece tu a Deus, meu amigo, os teus padecimentos, para que eu
seja perdoada.

Adeus! À luz da
eternidade parece-me que já te vejo, Simão!”

 

Ergueu-se
o degredado, olhou em redor de si e fitou com espasmo Mariana, que levantava a
cabeça ao menor movimento dele.


Que tem, senhor Simão? – disse ela, erguendo-se.


Estava aqui, Mariana?… Não se vai deitar?!


Não vou; o comandante deu-me licença de ficar aqui.


Mas há de assim passar a noite?! Rogo-lhe que vá, porque não é necessário o seu
sacrifício.


Se o não incomodo, deixe-me aqui estar, senhor Simão.


Esteja, minha amiga, esteja… Poderei subir ao convés?


Quer ir ao convés, senhor Botelho? – disse o comandante, lançando-se do
beliche.


Queria, senhor comandante.


Iremos juntos.

Simão
ajuntou a carta de Teresa ao maço das suas, e saiu cambaleando. No convés
sentou-se num monte de cordame, e contemplou o mirante do Manchique, que
avultava negro ao sopé da serra penhascosa em que atualmente vai a Rua da
Restauração.

O
capitão passeava da proa à ré, mas com o ouvido fito aos movimentos do
degredado. Receara ele o propósito do suicídio, porque Mariana lhe incutira
semelhante suspeita.

Queria
o marítimo falar-lhe palavras consoladoras, mas pensava consigo: – “O que
há de dizer-se a um homem que sofre assim?” – E parava junto dele algumas
vezes, como para desviar-lhe o espírito daquele mirante.


Eu não me suicido! – exclamou abruptamente Simão Botelho. – Se a sua
generosidade, senhor capitão. se interessa em que eu viva, pode dormir
descansado a sua noite, que eu não me suicido.


Mas mereço-lhe eu a condescendência de descer comigo à câmara?


Irei; mas eu, lá, sofro mais, senhor.

Não
replicou o comandante, e continuou a passear no convés apesar das rajadas de
vento.

Mariana
estava agachada entre os pacotes da carga, a pouca distância de Simão. O
comandante viu-a, falou-lhe, e retirou-se.

As
três horas da manhã, Simão Botelho segurou entre as mãos a testa, que se lhe
abria abrasada pela febre. Não pôde ter-se sentado, e deixou cair o meio corpo.
A cabeça, ao declinar, pousou no seio de Mariana.


O Anjo da compaixão sempre comigo! – murmurou ele, – Teresa foi muito
desgraçada…


Quer descer ao camarote? – disse ela.


Não poderei… Ampare-me, minha irmã.

Deu
alguns passos para a escadinha, e olhou ainda sobre o mirante. Desceu a íngreme
escada, apegando-se às cordas. Lançou-se sobre o colchão, e pediu água. que
bebeu insaciavelmente. Seguiu-se a febre, o estarcimento, e as ânsias, com
intervalo de delírio.

De
manhã veio a bordo um facultativo, por convite do capitão. Examinando o
condenado, disse que era febre maligna a doença, e bem podia ser que ele
achasse a sepultura no caminho da Índia.

Mariana
ouviu o prognóstico, e não chorou.

As
onze horas saiu barra fora a nau. As ânsias da doença acresceram as do enjôo. A
pedido do comandante, Simão bebia remédios, que bolsava logo, revoltos pelas
contrações do vômito.

Ao
segundo dia de viagem, Mariana disse a Simão:


Se o meu irmão morrer, que hei de eu fazer àquelas cartas que vão na caixa?

Pasmosa
serenidade a desta pergunta!


Se eu morrer no mar – disse ele – Mariana, atire ao mar todos os meus papéis,
todos; e estas cartas que estão debaixo do meu travesseiro também.

Passada
uma ânsia, que lhe embargava a voz, Simão continuou:


Se eu morrer, que tenciona fazer, Mariana?


Morrerei, senhor Simão.


Morrerás?!… Tanta gente desgraçada que eu fiz!…

A
febre aumentava. Os sintomas da morte eram visíveis aos olhos do capitão, que
tinha sobeja experiência de ver morrerem centenários de condenados, feridos da
febre no mar, e desprovidos de algum medicamento.

Ao
quarto dia, quando a nau se movia ronceira defronte de Cascais, sobreveio
tormenta súbita. O navio fez-se ao largo muitas milhas, e, perdido o rumo de
Lisboa, navegou desnorteado. Ao sexto dia de navegação incerta, por entre
espessas brumas, partiu-se o leme defronte de Gibraltar. E, em seguida ao
desastre, aplacaram as refregas, desencapelaram-se as ondas, e nasceu, com a
aurora do dia seguinte, um formoso dia de primavera. Era o dia de primavera.
Era o dia 27 de março, o nono da enfermidade de Simão Botelho.

Mariana
tinha envelhecido. O comandante, encarando nela, exclamou:


Parece que volta da índia com os dez anos de trabalhos já passados!…


Já acabados… de certo… – disse ela.

Ao
anoitecer desse dia o condenado delirou pela última vez, e dizia assim no seu
delírio:

“A
casinha, defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e aves. Passeavas
comigo à margem do Mondego, à hora pensativa do escurecer. Estrelava-se o céu,
e a Lua abrilhantava a água. Eu respondia com a mudez do coração ao teu
silêncio, e, animada por teu sorriso, inclinada a face ao teu seio, como se
fosse o de minha mãe… De que céu tão lindo caímos!… A tua amiga morreu… A
tua pobre Teresa…”

“E
que farias tu da vida, sem a tua companheira de martírio?… Onde irás tu
aviventar o coração que a desgraça te esmagou?!… Rompe a manhã… Vou ver a
minha última aurora… a última dos meus dezoito anos. Oferece a Deus os teus
padecimentos, para que eu seja perdoado… Mariana…”

Mariana
colocou os ouvidos aos lábios roxos do moribundo, quando cuidou ouvir o seu
nome.

“Tu
virás ter conosco; ser-te-emos irmãos no céu… O mais puro anjo serás tu… se
és deste mundo, irmã; se és deste mundo, Mariana…”

A
transição do delírio para a letargia completa era o anúncio infalível do
trespasse.

Ao
romper da manhã apagara-se a lâmpada. Mariana saíra a pedir luz, e ouvira um
gemido estertoroso. Voltando às escuras, com os braços estendidos para tatear a
face do agonizante, encontrou a mão convulsa, que lhe apertou uma das suas, e
relaxou de súbito a pressão dos dedos.

Entrou
o comandante com uma lâmpada, e aproximou-lha da respiração, que não embaciou
levemente o vidro.


Está morto! – disse ele.

Mariana
curvou-se sobre o cadáver, e beijou-lhe a face. Era o primeiro beijo. Ajoelhou
depois ao pé do beliche com as mãos erguidas, e não orava nem chorava.

Algumas
horas volvidas, o comandante disse a Mariana:


Agora é tempo de dar sepultura ao nosso venturoso amigo… É ventura morrer
quando se vem a este mundo com tal estrela. Passe a senhora Mariana ali para a
câmara que vai ser levado daqui o defunto.

Mariana
tirou o maço das cartas debaixo do travesseiro, e foi a uma caixa buscar os
papéis de Simão. Atou o rolo no avental, que ele tinha daquelas lágrimas dela,
choradas no dia da sua demência, e cingiu o embrulho à cintura.

Foi
o cadáver envolto num lençol, e transportado ao convés.

Mariana
seguiu-o.

Do
porão da nau foi trazida uma pedra, que um marujo lhe atou às pernas com
um pedaço de cabo. O comandante contemplava a cena triste com os olhos úmidos,
e os soldados que guarneciam a nau, tão funeral respeito os impressionara, que
insensivelmente se descobriram.

Mariana
estava, no entanto, encostada ao flanco da nau, e parecia estupidamente encarar
aqueles empuxões que o marujo dava ao cadáver, para segurar a pedra na cintura.

Dois
homens ergueram o morto ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para o
arremessarem longe. E, antes que o baque do cadáver se fizesse ouvir na água,
todos viram, e ninguém já pôde segurar Mariana, que se atirara ao mar.

A
voz do comandante desamarraram rapidamente o bote, e saltaram homens para
salvar Mariana.

Salvá-la!…

Viram-na,
um momento, bracejar, não para resistir à morte mas para abraçar-se ao cadáver
de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços. O comandante olhou para o sítio
donde Mariana se atirara, e viu, enleado no cordame, o avental, e à flor da
água, um rolo de papéis, que os marujos recolheram na lancha. Eram, como sabem,
a correspondências de Teresa e Simão.

Da
família de Simão Botelho vive ainda, em Vila-Real-de-Trás-os-Montes, a senhora
D. Rita Emília da Veiga Castelo Branco, a irmã predileta dele. A última pessoa
falecida há vinte e seis anos, foi Manoel Botelho, pai do autor deste livro.

 

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APRENDENDO PORTUGUÊS – Lição 02 – ARREAR X ARRIAR 



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