Ler online: A REVOLUÇÃO DOS BICHOS / George Orwell

 

A REVOLUÇÃO DOS BICHOS, George Orwell (Eric Arthur Blair – 25 de junho de
1903 – 21 de janeiro de 1950). Pará de Minas, MG, Brasil: VirtualBooks Editora,
2021. Edição gratuita em e-book PDF. Novela alegórica, satírica. Clássico.
Ficção inglesa. ISBN 978-65-5606-161-0  Todos
os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98.

 

APRESENTAÇÃO

 

A
REVOLUÇÃO DOS BICHOS (Animal Farm: A Fairy Story) é uma novela alegórica satírica
de George Orwell, publicada pela primeira vez na Inglaterra em 17 de agosto de
1945. O livro conta a história de um grupo de animais de fazenda que se rebelam
contra seu fazendeiro humano, na esperança de criar uma sociedade onde os
animais podem ser iguais, livres e felizes. No final, a rebelião é traída, e a
fazenda acaba em um estado tão ruim quanto antes, sob a ditadura de um porco
chamado Napoleão.

De acordo
com Orwell, a fábula reflete eventos que levaram à Revolução Russa de 1917 e
depois à era stalinista da União Soviética. Orwell, um socialista
democrático,  foi um crítico de Joseph
Stalin e hostil ao stalinismo dirigido por Moscou, uma atitude que foi
criticamente moldada por suas experiências durante os conflitos do Dia de Maio
entre o POUM e as forças stalinistas durante a Guerra Civil Espanhola. A União
Soviética havia se tornado uma autocracia totalitária construída sobre um culto
à personalidade enquanto se engajava na prática de encarceramentos em massa e
julgamentos sumários secretos e execuções.

Em uma
carta a Yvonne Davet, Orwell descreveu Animal
Farm
como um conto satírico contra Stalin (“un conte satirique contre
Staline”), e em seu ensaio ” Why I Write ” (1946), escreveu que
Animal Farm foi o primeiro livro no qual ele tentou, com plena consciência do
que estava fazendo, “fundir propósito político e propósito artístico em um
todo”.

O título
original era Animal Farm: A Fairy Story, mas as editoras americanas abandonaram
o subtítulo quando foi publicado em 1946, e apenas uma das traduções durante a
vida de Orwell, a versão em télugo, o manteve. Outras variações titulares
incluem legendas como “A Satire” e “A Contemporary Satire”.
Orwell sugeriu o título Union des républiques socialistes animales para a
tradução francesa, que abrevia URSA, a palavra latina para “urso”, um
símbolo da Rússia. Também jogou com o nome francês da União Soviética, Union
des républiques socialistes soviétiques.

Orwell
escreveu o livro entre novembro de 1943 e fevereiro de 1944, quando o Reino
Unido estava em sua aliança de guerra com a União Soviética contra a Alemanha
nazista, e a intelectualidade britânica tinha Stalin em alta estima, um
fenômeno que Orwell odiava.  O manuscrito
foi inicialmente rejeitado por vários editores britânicos e americanos. Ao ser
publicado, o livro tornou-se um grande sucesso comercial, em parte porque as
relações internacionais foram transformadas quando a aliança do tempo de guerra
deu lugar à Guerra Fria.

 


A REVOLUÇÃO DOS BICHOS

George Orwell

CAPÍTULO I

O Sr.
Jones, proprietário da Granja do Solar, havia trancado os galinheiros durante a
noite, mas estava bêbado demais para se lembrar de fechar os buracos. Com o
anel de luz de sua lanterna dançando de um lado para o outro, ele cambaleou
pelo quintal, chutou as botas pela porta dos fundos, pegou um último copo de
cerveja do barril da copa e foi para a cama, onde a Sra. Jones já estava
roncando.

Assim que
a luz do quarto se apagou, houve uma agitação e uma vibração por todos os
prédios da fazenda. Correram boatos durante o dia que o velho major, o javali
médio branco premiado, teve um sonho estranho na noite anterior e desejava
comunicá-lo aos outros animais. Foi combinado que todos deveriam se encontrar
no grande celeiro assim que o Sr. Jones estivesse em segurança fora do caminho.
O velho major (assim era sempre chamado, embora o nome pelo qual fora exibido
fosse Beleza de Willingdon) era tão conceituado na fazenda que todos estavam
prontos para perder uma hora de sono para ouvir o que ele tinha a dizer.

Tão logo
apagou-se a luz do quarto, houve um grande alvoroço em todos os galpões da
granja. Correra. durante o dia, o boato de que o velho Major, um porco que já
se sagrara grande campeão numa exposição, tivera um sonho muito estranho noite
anterior e desejava contá-lo aos outros animais. Haviam combinado encontrar-se
no celeiro, assim que Jones se retirasse. O velho Major (chamavam-no assim,
muito embora ele houvesse comparecido a exposição com o nome de “Beleza de
Willingdon”) gozava de tão alto conceito na granja, que todos estavam
dispostos a perder uma hora de sono só para ouvi-lo.

Ao fundo
do grande celeiro, sobre uma espécie de estrado. estava o Major refestelado em
sua cama de palha, sob um lampião que pendia de uma viga. Com doze anos de
idade, já bastante corpulento, era ainda um porco de porte majestoso, com um ar
sábio e benevolente, a despeito de suas presas jamais terem sido cortadas. Os
outros animais chegavam e punham-se a cômodo, cada qual a seu modo. Os primeiros foram os três cachorros, Bluebell,
Jessie e Pincher, depois
os porcos, que se sentaram sobre a palha, em
frente ao estrado. As galinhas empoleiraram-se nas janelas, as pombas voaram
para os caibros do telhado, as ovelhas e as vacas deitaram-se atrás dos porcos
e ali ficaram a ruminar. Os dois cavalos de tração, Boxer e Trevo, chegaram
juntos, andando lentamente e pousando no chão os enormes cascos peludos, com
grande cuidado para não machucar qualquer animalzinho porventura oculto na
palha. Trevo era uma água volumosa, matronal já chegada à meia-idade, cuja
silhueta não mais se recompusera após o nascimento do quarto potrinho. Boxer
era um bicho enorme, de quase um metro e noventa de altura, forte como dois
cavalos. A mancha branca do focinho dava-lhe certo ar de estupidez e,
realmente, não tinha lá uma inteligência de primeira ordem, embora fosse
grandemente respeitado pela retidão de caráter e pela tremenda capacidade de
trabalho. Depois dos cavalos chegaram Muriel, a cabra branca, e Benjamim, o
burro. Benjamin era o animal mais idoso da fazenda, e o mais moderado. Raras
vezes falava e, normalmente, quando o fazia, era para emitir uma observação
cínica – para dizer, por exemplo, que Deus lhe dera uma cauda para espantar as
moscas e que, no entanto, seria mais do seu agrado não ter nem a cauda nem as
moscas. Era o único dos animais que nunca ria. Quando lhe perguntavam por que,
respondia não ver motivo para riso. Não obstante, sem que o admitisse
abertamente, tinha certa afeição por Boxer; normalmente passavam os domingos
juntos no pequeno potreiro existente atrás do pomar, pastando lado a lado em
silêncio.

Mal se
haviam acomodado os dois cavalos quando uma ninhada de patinhos órfãos desfilou
celeiro adentro, piando baixinho e procurando um lugar onde não fossem
pisoteados. Trevo protegeu-os com a pata dianteira e os patinhos ali se
aconchegaram, caindo no sono. No último instante, Mollie, a égua branca,
vaidosa e fútil, que puxava a aranha do Sr. Jones, entrou, requebrando-se
graciosamente e chupando um torrão de açúcar. Tomou um lugar bem a frente e
ficou meneando a sua crina branca, na esperança de chamar atenção para as fitas
vermelhas que a adornavam. Finalmente, chegou o gato, que procurou, como
sempre, o lugar mais morno, enfiando-se entre Boxer e Trevo; ressonou
satisfeito durante toda a fala do Major, sem ouvir uma só palavra.

Todos os
animais estavam presentes, exceto Moisés, o corvo domesticado, que dormia fora,
num poleiro junto à porta dos fundos. Quando o Major os viu bem acomodados e
aguardando atentamente, limpou a Squealer e começou:


“Camaradas, já ouvistes, por certo, algo a respeito do estranho sonho que
tive a noite passada. Entretanto, falarei do sonho mais tarde. Antes, as coisas
a dizer. Sei, camaradas, que não estarei convosco por muito tempo e antes de
morrer considero uma obrigação transmitir-vos o que tenho aprendido sobre o
mundo. Já vivi bastante e muito tenho refletido na solidão da minha pocilga.
Creio poder afirmar que compreendo a natureza da vida sobre esta terra, tão bem
quanto qualquer outro animal. É sobre isso que desejo falar-vos.

“Então,
camaradas, qual é a natureza da nossa vida? Enfrentemos a realidade: nossa vida
é miserável, trabalhosa e curta. Nascemos, recebemos o mínimo de alimento
necessário para continuar respirando e os que podem trabalhar são forçados a
fazê-lo até a última parcela de suas forças; no instante em que nossa utilidade
acaba, trucidam-nos com hedionda crueldade. Nenhum animal, na Inglaterra, sabe
o que é felicidade ou lazer, após completar um ano de vida. Nenhum animal, na
Inglaterra, é livre. A vida de um animal é feita de miséria e escravidão: essa
é a verdade nua e crua.

“Será
isso, apenas, a ordem natural das coisas? Será esta nossa terra tão pobre que
não ofereça condições de vida decente aos seus habitantes? Não, camaradas, mil
vezes não! O solo da Inglaterra é fértil, o clima é bom, ela pode oferecer
alimentos em abundância a um número de animais muitíssimo maior do que o
existente. Só esta nossa fazenda comportaria uma dúzia de cavalos, umas vinte
vacas centenas de ovelhas – vivendo todos num com uma dignidade que, agora,
estão além de nossa imaginação. Por que, então, permanecemos nesta miséria?
Porque quase todo o produto do nosso esforço nos é roubado pelos seres humanos.
Eis aí, camaradas, a resposta a todos os nossos problemas. Resume-se em uma só
palavra – Homem. O homem é o nosso verdadeiro e único inimigo. Retire-se da
cena o Homem, e a causa principal da fome e da sobrecarga de trabalho
desaparecerá para sempre.

“O
Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos,
é fraco demais para puxar o arado, não corre o suficiente para alcançar uma
lebre. Mesmo assim, é o senhor de todos os animais. Põe-nos a trabalhar, dá-nos
de volta o mínimo para evitar a inanição e fica com o restante. Nosso trabalho
amanha o solo, nosso estrume o fertiliza e, no entanto, nenhum de nós possui
mais do que a própria pele. As vacas, que aqui vejo à minha frente, quantos
litros de leite terão produzido este ano? E que aconteceu a esse leite, que
deveria estar alimentando robustos bezerrinhos? Desceu pela Squealer dos nossos
inimigos. E as galinhas, quanto ovos puseram este ano, e quantos se
transformaram em pintinhos? Os restantes foram para o mercado, fazer dinheiro
para Jones e seus homens. E você, Trevo, diga-me onde estão os quatro potrinhos
que deveriam ser o apoio e o prazer da sua velhice? Foram vendidos com a idade
de um ano – nunca você tornará a vê-los. Como paga pelos seus quatro partos e
por todo o seu trabalho no campo, que recebeu você, além de ração e baia?

“Mesmo
miserável como é, nossa vida não chega ao fim de modo natural. Não me queixo
por mim que tive até muita sorte. Estou com doze anos e sou pai de mais de
quatrocentos porcos. Isto é a vida normal de um varrão. Mas, no fim, nenhum
animal escapa ao cutelo. Vós, jovens leitões que estais sentados a minha
frente, não escapareis de guinchar no cepo dentro de um ano. Todos chegaremos a
esse horror, as vacas, os porcos, as galinhas, as ovelhas, todos. Nem mesmo os
cavalos e os cachorros escapam a esse destino. Você, Boxer, no dia em que seus
músculos fortes perderem a rigidez, Jones o mandará para o carniceiro e você
será degolado e fervido para os cães de caça. Quanto aos cachorros, depois de
velhos e desdentados, Jones amarra-lhes uma pedra ao pescoço e joga-os na
primeira lagoa.

“Não
está, pois, claro como água, camaradas, que todos os males da nossa existência
têm origem na tirania dos seres humanos? Basta que nos livremos do Homem para
que o produto de nosso trabalho seja somente nosso. Praticamente, da noite para
o dia, poderíamos nos tornar ricos e livres. Que fazer, ? Trabalhar dia e
noite, de corpo e alma, para a derrubada do gênero humano. Esta é a mensagem eu
vos trago, camaradas: Revolução! Não sei quando sairá esta Revolução, pode ser
daqui a uma semana, ou daqui a um século, mas uma coisa eu sei, tão certo
quanto o ter eu palha sob meus pés: mais cedo ou mais tarde, justiça será
feita. Fixai camaradas isso, para o resto de vossas curtas vidas! E, sobretudo,
transmiti esta minha mensagem aos que virão depois de vós, para que as futuras
gerações prossigam na luta, até a vitória.

“E
lembrai-vos, camaradas, jamais deixai fraquejar vossa decisão. Nenhum argumento
poderá deter-vos. Fechai os ouvidos quando vos disserem que o Homem e os
animais têm interesses comuns, que a prosperidade de um é a prosperidade dos
outros. É tudo mentira. O Homem não busca interesses que não os dele próprio.
Que haja entre nós, uma perfeita unidade, uma perfeita camaradagem na luta.
Todos os homens são inimigos, todos os animais são camaradas.”

Nesse
momento houve uma tremenda confusão. Enquanto o Major falava, quatro ratos
haviam emergido de seus buracos e estavam sentados nas patinhas de trás, a
ouvi-lo. De repente, os cachorros lhes deram, pela presença, e somente devido à
rapidez com que sumiram nos buracos foi que os ratos conseguiram escapar com
vida. O Major levantou a pata, pedindo silêncio.


“Camaradas – disse ele -, eis aí um ponto que precisa ser esclarecido. As
criaturas selvagens, tais como os ratos e os coelhos, serão nossos amigos ou
nossos inimigos? Coloquemos o assunto em votação. Apresento à assembleia a
seguinte questão: os ratos são camaradas?”

A votação
foi realizada imediatamente e concluiu-se, por esmagadora maioria, que os ratos
eram camaradas. Houve apenas quatro votos contra, dos três cachorros e do gato
que, depois se descobriu votara pelos dois lados. O Major prosseguiu:


“Pouco mais tenho a dizer. Repito apenas: lembrai-vos sempre do vosso
dever de inimizade para com o Homem e todos os seus desígnios. Qualquer coisa
que ande sobre duas pernas é inimigo, qualquer coisa que ande sobre quatro
pernas, ou tenha asas, é amigo. Lembrai-vos também de que na luta contra o
Homem não devemos assemelhar-nos a ele. Mesmo quando o tenhais derrotado,
evitai seus vícios. Animal nenhum deve morar em nem dormir em camas, nem usar
roupas, nem beber álcool, nem fumar, nem tocar em dinheiro, nem fazer comércio.
Todos os hábitos do Homem são maus. E, principalmente, jamais um animal deverá
tiranizar outros animais. Todos os animais são iguais.

“E
agora, camaradas, vou contar-vos o sonho que tive a noite passada. Não sei como
explicá-lo. Foi um sonho sobre como será o mundo quando o Homem desaparecer.
Mas lembrou-me algo que há muito eu esquecera. Há anos, quando eu ainda um
leitãozinho, minha mãe e as outras porcas costumavam cantar uma antiga canção
da qual só conheciam a melodia e as três primeiras palavras. Na minha infância
aprendi a melodia, depois a esqueci. A noite passada, entretanto, ela me voltou
à memória, O mais interessante é que me lembrei também dos versos – os quais,
tenho certeza, foram cantados pelos animais de antanho, e depois esquecidos
durante várias gerações. Vou cantar essa canção, camaradas. Estou velho e minha
voz é rouca, mas quando vos houver ensinado a melodia, podereis cantá-la melhor
do que eu. Chama-se Bichos da Inglaterra.”

O velho
Major – limpou a Squealer e começou a cantar. De fato, a voz era roufenha, mas
ele cantava razoavelmente, e a melodia era bem movimentada, algo entre
Clementine e La Cucaracha. Os versos diziam o seguinte:

Bestas da Inglaterra, feras da Irlanda,
Bestas de todas as terras e climas,
Ouça minhas boas novas
Do tempo futuro de ouro.

Cedo ou tarde o dia está chegando,
O Homem Tirano será derrotado,
E os campos férteis da Inglaterra
Deve ser pisado por feras sozinho.

Os anéis devem desaparecer de nossos
narizes,
E o arreio de nossas costas,
A broca e a espora enferrujarão para
sempre,
Chicotes cruéis não mais se quebrarão.

Riquezas mais do que a mente pode
imaginar,
Trigo e cevada, aveia e feno,
Trevo, feijão e cevada
Será nosso naquele dia. 

Brilhante vai brilhar os campos da
Inglaterra,
Mais puras serão suas águas,
Mais doce ainda deve soprar suas brisas
No dia que nos liberta.

Para aquele dia todos nós devemos
trabalhar,
Embora morramos antes de quebrar;
Vacas e cavalos, gansos e perus,
Todos devem trabalhar pela liberdade.

 Bestas da Inglaterra, feras da Irlanda,
Bestas de todas as terras e climas,
Ouça bem e divulgue minhas notícias
Do tempo futuro de ouro. 

O canto
levou os animais à mais extrema excitação. Antes de o Major chegar ao fim, já
haviam começado a cantar por conta própria. Até os mais estúpidos pegaram a
melodia e algumas palavras; os mais espertos, como os porcos e os cachorros
decoraram a canção em poucos minutos. Então, depois de alguns ensaios
preliminares, toda a granja atacou Bichos da Inglaterra, em formidável
uníssono. As vacas mugiam a canção, os cachorros latiam, as ovelhas baliam, os
cavalos relinchavam, os patos grasnavam-na. Tal foi o deslumbre que cantaram de
ponta a ponta, cinco vezes sucessivamente, e teriam continuado a noite inteira
se não fossem interrompidos.

Infelizmente,
o alarido acordou Jones, que pulou da cama, certo de que havia raposa no pátio.
Deu de mão na espingarda, sempre pronta a um canto do quarto, e descarregou-a
na escuridão. O chumbo foi encravar-se na parede do celeiro, e a reunião
dispersou-se num abrir e fechar de olhos. Cada qual correu para seu pouso. As
aves saltaram para os poleiros, o gado deitou-se na palha e, em poucos
instantes, toda a fazenda dormia.

 

CAPÍTULO II

Daí a três
noites faleceu o velho Major, tranquilamente, durante o sono. Seu corpo foi
enterrado no fundo do pomar.

Começava o
mês de março. Durante os três meses seguintes houve uma intensa atividade
secreta.

As
palavras do Major haviam dado uma perspectiva de vida inteiramente nova aos
animais de maior inteligência da granja. Não sabiam quando teria lugar a
Revolução prevista pelo Major, nem tinham razões para acreditar que fosse
durante a existência deles próprios, mas percebiam claramente o dever de
prepararem-se para ela. A tarefa de instruir e organizar os outros recaiu
naturalmente sobre os porcos, reconhecidamente os mais inteligentes entre os
animais. Salientavam-se, entre eles, dois jovens varrões, Bola-de-Neve e
Napoleão, que o Sr. Jones criava para vender. Napoleão era um cachaço
Berkshire, de aparência ameaçadora, o único Berkshire da fazenda, pouco
falante, mas com a reputação de possuir grande força de vontade. Bola-de-Neve
era mais ativo do que Napoleão, de palavra mais fácil e mais imaginoso, porém
não gozava da mesma reputação quanto à solidez do caráter. Todos os demais
porcos da fazenda eram castrados. Dentre estes, o mais conhecido era porquinho
gordo chamado Squealer, de bochechas redondas, olhos sempre piscando, movimentos
lépidos e voz aguda. Manejava a palavra com brilho e, quando discutia algum
ponto mais difícil, tinha o hábito de dar pulinhos de um lado para o outro e
abanar o rabicho, o que era assaz persuasivo. Diziam que Squealer era capaz de
convencer que o preto era branco.

Esses três
haviam organizado os ensinamentos do Major num sistema de pensamento a que
deram o nome de Animalismo. Várias noites por semana, depois que Jones dormia,
realizavam reuniões secretas no celeiro e expunham aos outros os princípios do
Animalismo. De início, encontraram certa apatia e muita estupidez. Alguns
animais mencionaram o dever de lealdade para com Jones, a quem se referiam como
o “Dono”, ou fizeram comentários elementares do tipo: “Seu Jones
nos alimenta. Se ele fosse embora, nós morreríamos de fome.” Outros faziam
perguntas como: “Que nos importa o que acontecerá depois da nossa
morte?” ou: “Se essa Revolução vai ocorrer de qualquer maneira, que
diferença faz trabalharmos por ela ou não?”, e os porcos enfrentavam
grandes dificuldades para fazê-los ver que isso era contrário ao espírito do
Animalismo. As perguntas mais estúpidas eram sempre as de Mollie a égua branca.
A primeira pergunta que fez a Bola-de-Neve foi:


Continuará havendo açúcar, depois da Revolução?

– Não –
respondeu Bola-de-Neve, firmemente. – Não dispomos de meios para obter açúcar
nesta fazenda. Além disso, você não necessita de açúcar. Mas terá a aveia e o
feno que quiser.

– E eu
ainda poderei usar laços de fita na crina? – perguntou Mollie.

– Camarada
– explicou Bola-de-Neve -, essas fitas que você tanto estima são o distintivo
da escravidão. Será que você não compreende que liberdade vale mais do que
laços de fita?

Mollie
sempre concordava, mas não dava a impressão de estar lá muito convencida.

Muito mais
ainda lutaram os porcos para neutralizar as mentiras espalhadas por Moisés, o
corvo doméstico. Moisés, bicho de estimação do Jones, era um espião linguarudo,
mas também hábil na conversa. Afirmava a existência de uma região misteriosa,
“Montanha de Açúcar”, para onde iam os animais após a morte. Essa
montanha estava situada em algum lugar do céu, pouco acima das nuvens, segundo
dizia Moisés. Na Montanha de Açúcar, os sete dias da semana eram domingo, o
campo floria o ano inteiro, e cresciam torrões de açúcar bolos de linhaça nas
sebes. Os animais detestavam Moisés, porque vivia contando histórias e não
trabalhava, porém alguns acreditavam na Montanha Açúcar e os porcos tiveram
grande trabalho para convencê-los de que tal lugar não existia.

Os discípulos
mais fiéis eram os dois cavalos de tração, Boxer e Trevo. Ambos tinham enorme
dificuldade em pensar qualquer coisa por si próprios todavia, aceitando os
porcos como professores, absorviam tudo quanto lhes era dito e passavam adiante
para os outros animais, por simples repetição. Nunca deixavam de comparecer aos
encontros secretos no celeiro e davam o tom para o hino Bichos da Inglaterra,
que sempre encerrava as reuniões.

Afinal, a
Revolução ocorreu muito mais cedo e mais facilmente do que se esperava. Jones
fora, no passado, um patrão duro, porém eficiente. Agora estava em decadência.
Desestimulado com a perda de dinheiro numa ação judicial, dera para beber
bastante além do conveniente. As vezes passava dias inteiros recostado em sua
cadeira de braços, na cozinha, lendo os jornais, bebendo e dando a Moisés
cascas de pão molhadas na cerveja. Seus peões eram vadios e desonestos, o campo
estava coberto de erva daninha, os galpões necessitavam de telhas novas, as
cercas estavam abandonadas e os animais andavam mal alimentados.

Junho
chegou, e o feno estava quase pronto para o corte. No dia 23 de junho, um
sábado, Jones foi a Willingdon e bebeu tanto no Leão Vermelho, que só regressou
ao meio-dia de domingo. Os homens ordenharam as vacas de manhã cedo e saíram
para caçar lebres, sem se preocuparem com a alimentação dos animais. Ao voltar,
Jones foi dormir no sofá da sala com o News
of the World
sobre o rosto; portanto, ao cair da tarde, os animais ainda
não haviam comido. Aquilo foi insuportável. Uma das vacas rebentou a chifradas
a porta do depósito e os bichos avançaram sobre o alimento. Nesse momento Jones
acordou. Num instante, ele e seus homens estavam no depósito com os chicotes na
mão, batendo a torto e a direito. Isso ultrapassou a tudo quanto os animais
famintos podiam suportar. De comum acordo, muito embora nada tivesse sido
anteriormente planejado, lançaram-se sobre seus verdugos. Jones e os homens
viram-se de repente marrados e escoiceados por todos os lados. A situação lhes
fugira ao controle. Jamais haviam visto os animais portarem-se daquela maneira,
e a súbita revolta de criaturas a quem estavam acostumados a surrar e maltratar
à vontade, apavorou-os. Em poucos instantes desistiram de defender-se e deram o
fora. Um minuto depois, os cinco voavam pela trilha rumo à estrada principal,
com os bichos a persegui-los triunfantes.

A mulher
de Jones olhou pela janela do quarto, viu o que acontecia, reuniu às pressas
alguns haveres dentro de uma bolsa de pano e escapuliu da granja por outro
caminho. Moisés levantou voo do poleiro e bateu asas atrás dela, grasnando
ruidosamente. Enquanto isso, os bichos haviam posto Jones e os peões para fora
da granja, fechando atrás deles a porteira das cinco barras. E assim, antes de
perceberem o que sucedera, a Revolução estava feita. Jones fora expulso e a
Granja do Solar era deles.

Durante os
primeiros cinco minutos, os animais mal puderam acreditar na sorte. Seu
primeiro ato foi galopar pelos limites da granja, como para verificar se nenhum
ser humano ficara escondido; depois correram de volta às casas da granja, para
varrer os últimos vestígios do odiado império de Jones. O galpão dos arreios,
no fundo dos estábulos, foi arrombado; freios, argolas de nariz, correntes de
cachorro, as cruéis facas com que Jones castrava os porcos e os cordeiros, foi
tudo atirado ao fundo do poço. As rédeas, os cabrestos, os antolhos e os
degradantes bornais foram jogados à fogueira que ardia no pátio. Destino
idêntico tiveram os relhos. Os bichos pulavam de contentamento ao verem os chicotes
em chamas. Bola-de-Neve jogou também ao fogo as fitas que usualmente enfeitavam
as crinas e caudas dos cavalos em dias de feira.

Fitas –
disse ele – devem ser consideradas roupas, que são o distintivo do ser humano.
Todos os animais devem andar nus.

Ao ouvir
isso, Boxer foi buscar o chapeuzinho de palha que usava, no verão, para afastar
as moscas de suas orelhas, e jogou-o também no fogo.

Em curto
tempo, os bichos destruíram tudo quanto lhes recordava Jones. Napoleão
conduziu-os de volta ao depósito de forragem e serviu uma ração dupla de
cereais para todo mundo, com dois biscoitos para cada cachorro. Depois cantaram
Bichos da Inglaterra de ponta a ponta, sete vezes, uma atrás da outra,
deitaram-se e dormiram como nunca.

Acordaram,
porém, de madrugada, como sempre, e, ao lembrarem-se do glorioso acontecimento
da véspera, correram para a pastagem. A pequena distância havia uma colina que
comandava a vista de quase toda a fazenda. Os animais subiram ao topo e olharam
em volta, à luz clara da manhã. Sim, era deles – tudo quanto enxergavam era
deles! No êxtase desse pensamento, viraram cambalhotas e saltaram, num arroubo
de contentamento. Molharam-se no orvalho, morderam a deliciosa grama do verão,
arrancaram torrões de terra e aspiraram aquele cheiro delicioso. Depois fizeram
um circuito de inspeção em toda a granja, vistoriando, com muda admiração, a
lavoura, o campo de feno, o pomar, a lagoa e o bosque. Era como se,
anteriormente, nunca tivessem visto aquilo, e mal podiam acreditar: tudo era
deles.

Voltaram,
então, para as casas da granja e pararam silenciosos junto à porta da
casa-grande. Era deles também, mas sentiram certo receio de entrar. Depois de
alguns instantes, porém, Bola-de-Neve e Napoleão forçaram a porta, e os animais
entraram, em fila, caminhando com o maior cuidado para não desarrumar nada.
Andaram na ponta dos pés, de um aposento para o outro, falando baixinho e
olhando com certa reverência o luxo inacreditável, as camas, os colchões de
penas, os espelhos, os sofás de crina, o tapete de Bruxelas, a litografia da
Rainha Vitória sobre a lareira da sala. Quando desciam as escadas, deram pela
falta de Mollie. Voltando, descobriram-na no quarto principal. Havia apanhado
no toucador da Sra. Jones um pedaço de fita azul e segurava-o contra a espádua,
admirando-se no espelho, com trejeitos ridículos. Repreenderam-na acerbamente e
saíram todos. Alguns presuntos, pendurados na cozinha, foram levados para fora
e enterrados; o barril de cerveja da copa foi rebentado com um coice de Boxer;
além disso, nada mais foi tocado na casa. Ali mesmo foi aprovada por
unanimidade a resolução de conservá-la como museu. Concordaram em que nenhum
animal jamais deveria habitá-la.

Os bichos
tomaram a refeição matinal e foram outra vez convocados por Bola-de-Neve e
Napoleão.


Camaradas – disse Bola-de-Neve -, seis e quinze, e temos um longo dia pela
frente. Iniciaremos hoje a colheita do feno. Mas antes há um outro assunto para
tratarmos.

Os porcos
revelaram que durante os últimos três meses haviam aprendido a ler e escrever,
num velho livro de ortografia dos filhos de Jones, que fora jogado no lixo.
Napoleão mandou buscar latas de tinta preta e branca e conduziu-os até a
porteira das cinco barras que dava para a estrada principal. Então,
Bola-de-Neve (que era quem escrevia melhor) pegou o pincel entre as juntas da
pata, apagou o nome GRANJA DO SOLAR do travessão superior e, em seu lugar
escreveu GRANJA DOS BICHOS. Seria esse o nome da granja daquele momento em
diante. Depois disso, voltaram para as casas da granja; Bola-de-Neve e Napoleão
mandaram buscar uma escada e ordenaram que fosse encostada à parede do fundo do
celeiro grande. Explicaram que, segundo os estudos que haviam feito nos últimos
três meses, era possível resumir os princípios do Animalismo em Sete Mandamentos.
Esses Sete Mandamentos, que seriam agora escritos na parede, constituiriam a
lei inalterável pela qual a Granja dos Bichos deveria reger sua vida a partir
daquele instante, para sempre.

Com alguma
dificuldade (pois não é fácil um porco equilibrar-se numa escada de mão),
Bola-de-Neve subiu e começou a trabalhar, enquanto Squealer, alguns degraus
abaixo, segurava a lata de tinta. Os Mandamentos foram escritos na parede
alcatroada em grandes letras brancas que podiam ser lidas a muitos metros de
distância.

Eis o que dizia o letreiro:

OS SETE MANDAMENTOS

1. Qualquer coisa que ande sobre duas
pernas é inimigo.

2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.

3. Nenhum animal usará roupas.

4. Nenhum animal dormirá em cama.

5. Nenhum animal beberá álcool.

6. Nenhum animal matará outro animal.

7. Todos os animais são iguais.

Estava
muito bem escrito e, exceto que “amigo” estava escrito
“amigo” e um dos “S” estava invertido, a grafia estava
correta do começo ao fim. O conjunto ficou bastante bom, e Bola-de-Neve leu-o
em voz alta para os demais. Todos os animais concordaram totalmente com a
cabeça, e os mais espertos começaram imediatamente a decorar os Mandamentos.

– E agora,
camaradas – disse Bola-de-Neve, deixando cair o pincel, ao campo de feno! É uma
questão de honra realizar a colheita em menos tempo do que Jones e seus homens.
.-

Nesse
momento, porém, as vacas, que já vinham dando sinais de inquietação, começaram
a mugir. Havia vinte e quatro horas que não eram ordenhadas e estavam com os
úberes quase estourando. Depois de alguma reflexão, os porcos pediram baldes e
ordenharam as vacas com relativo êxito, pois seus cascos adaptavam-se bem à
tarefa. Em breve obtinham cinco baldes de um leite espumante e cremoso, que
muitos bichos olharam com considerável interesse.

– Que
vamos fazer com esse leite? – perguntou alguém.

– Jones às
vezes misturava um pouco ao nosso farelo – disse uma galinha.

– Não se
preocupem com o leite, camaradas! – gritou Napoleão, postando-se à frente dos
baldes.

– Nós
trataremos deste assunto. A colheita é mais importante. O camarada Bola-de-Neve
os conduzirá.

Eu
seguirei dentro de alguns minutos. Avante, camaradas! O feno está à espera.

Os animais
marcharam rumo ao campo de feno, para o início da colheita, e quando voltaram,
à tardinha, notaram que o leite havia desaparecido.

 

CAPÍTULO III

E como
trabalharam para juntar aquele feno! Mas o esforço foi recompensado, pois a
colheita deu um resultado muito melhor do que esperavam.

Por vezes,
a tarefa foi dura; os implementos destinavam-se ao uso de seres humanos e foi
uma enorme desvantagem o fato de nenhum bicho poder utilizar ferramentas que
exigissem a posição em pé sobre as patas traseiras. Mas os porcos eram tão
imaginosos que conseguiram contornar todas as dificuldades. Os cavalos
conheciam cada palmo do terreno e na realidade sabiam ceifar e raspar muito
melhor do que Jones e os empregados, Os porcos não trabalhavam, propriamente,
mas dirigiam e supervisionavam o trabalho dos outros. Donos de conhecimentos maiores,
era natural que assumissem a liderança. Boxer e Trevo atrelavam-se à ceifadeira
ou à grade (naturalmente não havia mais necessidade de freios e rédeas) e
andavam pelo campo para lá e para cá, com um porco atrás gritando “Eia,
camarada!” ou “A volta, agora, camarada!”, conforme o caso. E
cada animal, até os mais modestos, trabalhou para colher e juntar o feno. Até
os patos e as galinhas andavam o dia inteiro sob o sol, carregando no bico
pequeninos feixes de feno. Enfim, terminaram a colheita dois dias antes do
tempo que Jones e seus empregados normalmente levavam. Mas, além disso, foi a
maior colheita que jamais se realizara ali. Não houve qualquer desperdício; as
galinhas e os patos, com sua vista penetrante, juntaram até o menor talinho. E
nenhum animal na granja roubou sequer uma bocada.

Durante
todo aquele verão o trabalho da granja andou como um relógio. Os bichos,
felizes como nunca. Cada bocado de comida constituía um extremo prazer, agora
que a comida era realmente deles, produzida por eles e para eles, em vez de
distribuída em pequenas quantidades por um dono cheio de má vontade. Ausentes
os inúteis parasitas humanos, mais sobrava para cada um. Havia também mais
lazer, muito embora os animais fossem inexperientes nisso. Encontraram muitas dificuldades
– por exemplo, no fim do ano, quando colheram os cereais, foram obrigados a
pisá-los, à moda antiga, e soprar as cascas, pois a granja não possuía uma
debulhadeira -, mas os porcos, com a inteligência, e Boxer, com seus músculos
fantásticos, sobrepujavam-nas. Boxer era a admiração de todos. Já era
trabalhador no tempo de Jones; agora, como que valia por três. Dias houve em
que todo trabalho da granja parecia recair sobre seus fortes ombros. Da manhã à
noite lá estava ele, puxando e empurrando, sempre, no lugar onde o trabalho era
mais pesado. Fizera um trato com um dos galos para ser chamado meia hora mais
cedo que os demais, todas as manhãs, e empregava esse tempo em trabalho
voluntário no que parecesse mais necessário. Sua solução para cada problema,
para cada contratempo, era “Trabalharei mais ainda”, frase que
adotara como seu lema particular.

Cada qual
trabalhava de acordo com sua capacidade. As galinhas e os patos, por exemplo,
economizaram cinco baldes de trigo, na colheita, juntando os grãos extraviados.
Ninguém roubava, ninguém resmungava a respeito das rações. A discórdia, as
mordidas, o ciúme, coisas normais nos velhos tempos, tinham quase desaparecido.
Ninguém se esquivava ao trabalho – ou quase ninguém. Ë bem verdade que Mollie
não gostava de levantar cedo e costumava abandonar o trabalho antes dos demais,
sob o pretexto de estar com uma pedra encravada no casco. E o comportamento do
gato era um tanto estranho. Em seguida notou-se que ele nunca podia ser
encontrado quando havia trabalho por fazer. Desaparecia durante várias horas
consecutivas e voltava a aparecer à hora das refeições, ou à tardinha, após o
fim dos trabalhos, como se nada houvesse acontecido. Apresentava, porém,
desculpas tão boas e rosnava de maneira tão carinhosa, que era impossível não
crer em suas boas intenções. O velho Benjamim, o burro, nada mudara, após a
Revolução. Executava sua tarefa da mesma forma obstinadamente lenta com que o
fazia nos tempos de Jones. Não se esquivava ao trabalho normal, mas nunca era
voluntário para extraordinários. Sobre a Revolução e seus resultados, não
emitia opinião. Quando lhe perguntavam se não era mais feliz, agora que Jones
se havia ido, respondia apenas “Os burros vivem muito tempo. Nenhum de
vocês jamais viu um burro morto”, e os outros tinham que contentar-se com
essa obscura resposta.

Aos
domingos, não se trabalhava. A refeição da manhã era uma hora mais- tarde e,
depois dela, havia uma cerimônia que se realizava todas as semanas,
indefectivelmente. Começava com o hasteamento da bandeira. Bola-de-Neve achara,
no depósito, uma velha toalha verde de mesa e pintara no centro, em branco, um
chifre e uma ferradura. Essa era bandeira que subia ao topo do mastro todos os
domingos pela manhã. O verde da bandeira, explicava Bola-de-Neve, representava
os verdes campos da Inglaterra, ao passo que o chifre e a ferradura
simbolizavam a futura República dos Bichos, cujo advento teria lugar no dia em
que o gênero humano, enfim, desaparecesse. Após o hasteamento da bandeira, iam
todos ao grande celeiro, para assistir a uma assembleia geral conhecida como
“a Reunião”. Lá planejavam o trabalho da semana seguinte e discutiam
as resoluções. Estas eram sempre apresentadas pelos porcos. Os outros animais
aprenderam a votar, mas nunca conseguiram imaginar uma resolução por conta
própria. Bola-de-Neve e Napoleão eram sempre mais ativos nos debates. Notou-se,
porém, que dois nunca estavam de acordo: qualquer sugestão de um podia contar,
na certa, com a oposição do outro.

Mesmo
quando, se resolveu – coisa que, em si, não podia sofrer a objeção de ninguém –
que o potreiro situado além do pomar seria reservado para os animais
aposentados, houve uma agitada discussão a respeito da idade de aposentadoria
para cada classe de animal. A Reunião era encerrada sempre com o hino Bichos da
Inglaterra, e a tarde destinava-se à recreação.

Os porcos
reservaram o depósito de ferramentas para sede da direção. Ali, à noite,
estudavam mecânica, carpintaria e outras artes necessárias, em livros trazidos
da casa-grande. Bola-de-Neve ocupava-se também da organização dos outros bichos
por meio dos chamados Comitês de Animais. Formou o Comitê da Produção de Ovos,
para as galinhas; a Liga das Caudas Limpas, para as vacas; o Comitê de
Reeducação dos Animais Selvagens (cujo objetivo era domesticar os ratos e os
coelhos); o Movimento Pró Mais Branca, que congregava as ovelhas; e outros
mais, além da criação de classes para ensinar a ler escrever. No conjunto,
esses projetos foram um fracasso. A tentativa de domesticar as criaturas selvagens,
por exemplo, falhou em pouco tempo. Elas continuaram a portar-se como dantes, e
simplesmente tiravam vantagem do fato de serem tratadas com generosidade. O
gato ingressou no Comitê de Reeducação e por algum tempo andou muito ativo. Um
dia foi visto, sentado num telhado, a doutrinar alguns pardais pousados pouco
além do seu alcance. Dizia-lhes que todos os animais agora eram camaradas e
qualquer pardal que o desejasse poderia vir pousar na sua mão; mas os pardais
preferiram ficar de longe.

As classes
de ler e escrever, ao contrário, constituíram enorme sucesso. Já no outono
quase todos os bichos estavam, uns mais, outros menos, alfabetizados.

Os porcos
já liam e escreviam muito bem. Os cachorros aprenderam a ler razoavelmente,
porém se interessavam pela leitura de nada além dos Sete Mandamentos. Muriel, a
cabra, lia um pouco melhor que os cachorros e costumava ler para os demais, à
noite, os pedaços de jornal que achava no lixo. Benjamim sabia ler tão bem
quanto os porcos, mas não exercia sua faculdade. Ao que sabia – costumava dizer
-, nada havia que valesse a pena ler. Trevo aprendeu todo o alfabeto, mas não
conseguia juntar as letras. Boxer não foi capaz de ir além da letra D.
Desenhava na areia, com a pata, as letras A, B, C, D, e ficava olhando, com as
orelhas murchas, às vezes sacudindo o topete, tentando com todas as suas forças
lembrar-se do que vinha depois, inutilmente. É verdade que em várias ocasiões
aprendeu E, F, G, H, mas ao consegui-lo, descobria sempre que havia esquecido
A, B, C e D. Afinal, decidiu contentar-se com as quatro primeiras letras e
costumava escrevê-las uma ou duas vezes por dia, a fim de refrescar a memória. Mollie
recusou-se a aprender mais do que as seis letras que compunham seu nome.
Formava-as, bem certinhas, com pedaços de ramos, enfeitava o conjunto com uma
ou duas flores e ficava andando à volta, a admirá-las.

Nenhum dos
outros animais da granja chegou além da letra A. Notou-se também que os mais
estúpidos, tais como as ovelhas, as galinhas e os patos, eram incapazes de
aprender de cor os Sete Mandamentos. Depois de muito pensar, Bola-de-Neve
declarou que, na verdade, os Sete Mandamentos podiam ser condensados numa única
máxima, que era: “Quatro pernas bom, duas pernas ruim.” Aí se
continha segundo disse ele, o princípio essencial do Animalismo. Quem o
seguisse firmemente, estaria a salvo das influências humanas. A princípio, os
pássaros fizeram objeção, pois lhes parecia que estavam no caso das duas
pernas, porém Bola-de-Neve provou que tal não acontecia:

– A asa de
uma ave, camaradas, é um órgão de propulsão e não de manipulação. Deveria ser
olhada mais como uma perna. O que distingue o Homem é a mão, o instrumento com
que perpetra toda a sua maldade.

As aves
não compreenderam as palavras de Bola-de-Neve, mas aceitaram a explicação, e os
bichos mais modestos dedicaram-se a aprender de cor a nova máxima, QUATRO
PERNAS BOM, DUAS PERNAS RUIM, e que foi escrita na parede do fundo do celeiro,
acima dos Sete Mandamentos e com letras bem maiores. Depois que conseguiram decorá-la,
as ovelhas tomaram-se de uma enorme predileção por essa máxima, e frequentemente,
deitadas na relva, ficavam a balir “Quatro pernas bom, duas pernas ruim!
“Quatro pernas bom, duas pernas ruim!” durante horas a fio.

Napoleão
não tomou interesse algum pelos comitês de Bola-de-Neve. Dizia que a educação
dos jovens era mais importante do que qualquer coisa em favor dos adultos.
Aconteceu que Jessie e Bluebell deram cria, logo após a colheita de feno, a
nove robustos cachorrinhos. Tão logo foram desmamados, Napoleão tirou-os de
suas mães dizendo que ele próprio se responsabilizaria por sua educação.
Levou-os para um sótão que só podia ser atingido pela escada do depósito, e os
manteve em tal reclusão que o resto da fazenda logo se esqueceu de sua existência.

O mistério
do leite pronto se esclareceu. Era misturado à comida dos porcos. As maçãs
estavam amadurecendo e a grama do pomar cobria-se de frutas derrubadas pelo
vento. Os bichos tinham como certo que as frutas deveriam ser distribuídas equitativamente;
certo dia, porém, chegou a ordem para que todas as frutas caídas fossem
recolhidas e levadas ao depósito das ferramentas, para consumo dos porcos.
Alguns bichos murmuraram a respeito, mas foi inútil. Os porcos estavam todos de
acordo sobre esse ponto, até mesmo Bola-de-Neve e Napoleão. Squealer foi
enviado aos outros, para dar explicações.


Camaradas! – gritou. – Não imaginais, suponho, que nós, os porcos, fazemos isso
por espírito de egoísmo e privilégio. Muitos de nós até nem gostamos de leite e
de maçã. Eu, por exemplo, não gosto. Nosso único objetivo ao ingerir essas
coisas é preservar nossa saúde. O leite e a maçã (está provado pela Ciência,
camaradas) contêm substâncias absolutamente necessárias à saúde dos porcos.
Nós, os porcos, somos trabalhadores intelectuais. A organização e a direção
desta granja repousam sobre nós. Dia e noite velamos por vosso bem-estar. É por
vossa causa que bebemos aquele leite e comemos aquelas maçãs. Sabeis o que
sucederia se os porcos falhassem em sua missão? Jones voltaria! Jones voltaria!
Com toda certeza, camaradas – gritou Squealer, quase suplicante, dando pulinhos
de um lado para outro e sacudindo o rabicho -,com toda certeza, não há dentre
vós quem queira a volta de Jones.

Ora, se
algo havia sobre o que todos animais estavam de acordo, era o fato de nenhum
desejar volta de Jones. Quando o assunto lhes foi posto sob essa luz, não
tiveram mais o que dizer. A importância de manter a boa saúde dos porcos
tornou-se óbvia. Foi, portanto, resolvido sem mais discussões que o leite e as
maçãs caídas (bem como toda colheita de maçãs, quando amadurecessem) seriam
reservados para os porcos.

 

CAPÍTULO IV

Pelo fim
do verão, a notícia do que sucedia na Granja dos Bichos já se espalhara pelo
condado. Todos os dias, Bola-de-Neve e Napoleão enviavam formações de pombos
com instrução de misturar- se aos animais das granjas vizinhas, contar-lhes a
história da Revolução e ensinar-lhes a melodia de Bichos da Inglaterra.

Jones
passava a maior parte desse tempo no Leão Vermelho, em Willingdon,
queixando-se, a quem quisesse ouvi-lo, da monstruosa injustiça que sofrera ao
ser expulso de sua granja por uma súcia de animais imprestáveis. Os outros
granjeiros eram lhe simpáticos, em princípio, mas inicialmente não lhe deram
muita ajuda. No fundo, cada um imaginava secretamente alguma forma de tirar
vantagem do infortúnio de Jones. Era uma sorte que os proprietários das granjas
adjacentes à dos bichos estivessem permanentemente em más relações. Uma delas,
chamada Foxwood, era uma granja grande, abandonada e antiquada, coberta de
mato, com as pastagens cansadas e as cercas caindo.

O
proprietário, Sr. Pilkington, era um sujeito indolente, granjeiro que passava a
maior parte do seu tempo caçando ou pescando, conforme a estação. A outra
granja, chamada Pinchfield, era menor e mais bem tratada. Seu proprietário era
o Sr. Frederick, homem rude e sagaz, permanentemente envolvido em processos na
justiça e com a reputação de levar a cabo barganhas muito difíceis. Os dois se
hostilizavam tanto que lhes era sumamente difícil chegar a qualquer acordo,
mesmo em defesa de seus próprios interesses.

Todavia,
ambos estavam assustados com a Revolução na Granja dos Bichos e desejosos de
prevenir que seus próprios animais tomassem maior conhecimento do assunto. De
início, acharam graça na idéia de bichos gerirem por si próprios uma granja. O
caso todo estaria acabado numa quinzena, diziam. E diziam também que os animais
da Granja do Solar (insistiam em chamá-la Granja do Solar; não admitiam o nome
“Granja dos Bichos”) estavam lutando entre si e não tardariam a
definhar até morrer. Como o tempo passava e os animais evidentemente não
definhavam, Frederick e Pilkington mudaram de tom e começaram então a falar nas
terríveis perversidades que estavam ocorrendo na Granja dos Bichos. Comentavam
que os animais praticavam o canibalismo, torturavam uns aos outros com
ferraduras ao rubro e tinham suas fêmeas em comum. Isso era o que advinha do
desrespeito às leis da Natureza, diziam Frederick e Pilkington.

Entretanto,
nunca ninguém acreditou nessas histórias. Boatos de um sítio maravilhoso, de
onde haviam sido expulsos os seres humanos e onde os bichos tomavam conta dos
próprios negócios, continuavam a circular, em formas vagas e desfiguradas, e
durante todo aquele ano uma onda de revolta percorreu a região. Bois que sempre
haviam sido tratáveis, repentinamente se tornaram selvagens, as ovelhas
derrubavam cercas e comiam o trevo, as vacas davam coices nos baldes, os
cavalos de salto refugavam os obstáculos, jogando os cavaleiros do outro lado.
Sobretudo, a melodia e mesmo a letra de Bichos da Inglaterra tornavam-se
conhecidas em toda parte. Espalhavam-se com espantosa rapidez. Os humanos não
podiam conter a raiva ao ouvirem essa canção, embora quisessem encará-la como
simplesmente ridícula. Não conseguiam compreender, diziam, que mesmo animais
chegassem ao ponto de cantar aquela porcaria. O bicho que fosse apanhado a
cantá-la, seria chicoteado. Ainda assim, a canção era irreprimível. Os melros
cantavam-na pousados nas cercas, as pombas arrulhavam-na nos olmeiros, e ela
aparecia nas marteladas dos ferreiros e no bimbalhar dos sinos das igrejas. Ao
ouvirem-na, os seres humanos tremiam secretamente ante aquela mensagem que
previa sua desgraça

No início
de outubro, quando o trigo já fora colhido, amontoado, e em parte até
debulhado, uma revoada de pombos chegou em turbilhão e pousou no pátio da
Granja dos Bichos, presa de grande excitação. Jones e todos os seus homens,
mais meia dúzia de outros homens de Foxwood e Pinchfield, haviam penetrado pela
porteira das cinco barras e vinham subindo a trilha que conduzia à fazenda.
Todos armados de bastões, exceto Jones, que marchava à frente com uma
espingarda na mão. Era, evidentemente, uma tentativa de recuperar a granja

Há muito
isso era esperado, e os preparativos estavam feitos. Bola-de-Neve, que estudara
um velho livro sobre as campanhas de Júlio César, encontrado na casa-grande,
estava encarregado das operações defensivas. Rapidamente deu suas ordens, e em
pouco tempo cada animal estava em seu posto.

Quando os
homens chegaram perto das casas, Bola-de-Neve lançou o primeiro ataque. Os
pombos, em número de trinta e cinco, voaram por cima dos homens e defecaram no
ar sobre eles; enquanto os homens atrapalhavam-se com isso. Os gansos, até
então escondidos nas sebes, avançaram e bicaram-lhes as pernas energicamente
Mas isso era apenas uma pequena manobra de escaramuça, destinada a criar
confusão, e os homens facilmente espantaram os gansos com os bastões Então,
Bola-de-Neve lançou sua segunda linha de ataque. Muriel, Benjamim e as ovelhas,
com Bola-de-Neve à frente, arremeteram sobre os homens, marrando, mordendo e
escoiceando-os por todos os lados. Novamente, porém, os homens com os bastões e
os coturnos rústicos foram mais fortes; e de repente, a um guincho de
Bola-de-Neve que era o sinal para bater em retirada, todos os bichos volveram a
frente e fugiram para dentro do pátio; através do portão.

Os homens
soltaram um brado de triunfo. Viram, tal como haviam imaginado, seus inimigos
em fuga e lançaram-se no encalço, desordenadamente. Era justamente o que
Bola-de-Neve desejava. Tão logo eles entraram no pátio, os três cavalos, as
três vacas e o restante dos porcos, que estavam emboscados atrás do estábulo,
surgiram-lhes de inopino à retaguarda, cortando a retirada. Bola-de-Neve deu o
sinal de carga. Ele próprio correu na direção de Jones. Vendo-o, Jones levantou
a arma e atirou. Os projéteis abriram riscos sangrentos no dorso de
Bola-de-Neve e uma ovelha caiu morta. Sem titubear um só instante, Bola-de-Neve
lançou os seus cem quilos contra as pernas de Jones. O homem foi jogado sobre
um monte de esterco, e a arma voou-lhe das mãos. Porém, o espetáculo mais
terrível, entre tudo era Boxer, erguendo-se nos posteriores e dando pinotes com
seus cascos ferrados, feito um garanhão. Logo ao primeiro golpe atingiu o
crânio de um cavalariço de Foxwood, prostrando-o sem vida na lama. Ante isso,
vários homens largaram os bastões e tentaram correr. O pânico tomou conta
deles, e em poucos momentos os animais os caçavam em volta do pátio. Foram
chifrados, batidos, mordidos e atropelados. Não houve bicho da granja que não
tirasse desforra, cada um à sua moda. Até o gato, inesperadamente, saltou de um
telhado sobre as costas de um peão, cravando-lhe as unhas no pescoço e fazendo
o homem dar um berro de dor. Em dado momento, desimpedida a saída, os homens
conseguiram fugir do pátio e correram desabaladamente rumo à estrada principal.
E assim, poucos minutos após a invasão, batiam em vergonhosa retirada pelo
mesmo caminho da vinda, com uma multidão de gansos no seu encalço, bicando-lhes
as pernas sem piedade.

Todos os
homens haviam fugido, exceto um. No pátio, Boxer empurrava, com a pata, o
cavalariço que jazia de bruços na lama, tentando virá-lo. Mas o rapaz não se
mexia.

– Está
morto – disse Boxer penalizado. Eu não queria fazer isso. Esqueci que estava
usando ferraduras. Quem acreditará que não fiz de propósito?

– Nada de
sentimentalismos, camarada! – gritou Bola-de-Neve, de cujos ferimentos o sangue
jorrava. – Guerra é guerra. Ser humano bom ser humano morto.

– Eu não
desejo tirar a vida de quem quer que seja, nem mesmo de um ser humano – repetiu
Boxer com os olhos cheios de lágrimas.

– Onde
está Mollie? – perguntou alguém.

Mollie,
realmente, havia desaparecido. Por momentos houve grande alarma. Temeu-se que
homens a tivessem ferido, ou mesmo a levado com eles. Por fim, foi encontrada,
em sua própria baia com a cabeça escondida no feno da manjedoura. Havia fugido
no momento do tiro da espingarda. E quando voltaram, após encontrá-la, foi para
descobrir que o cavalariço, que na verdade havia apenas desmaiado, já voltara a
si e desaparecera. Os bichos, então, tornaram a reunir-se, presas da maior
excitação, cada qual narrando suas façanhas na batalha com a voz mais alta que conseguia.
Uma celebração de improviso realizou-se imediatamente. A bandeira foi hasteada
e cantaras Bichos da Inglaterra muitas vezes, depois a ovelha morta recebeu
funerais solenes, sendo plantado em seu túmulo um ramo de espinheiro. Ao pé do
túmulo, Bola-de-Neve fez um pequeno discurso, pondo em relevo a necessidade de
todos os animais estarem prontos a morrer pela Granja dos Bichos, se
necessário.

Os animais
decidiram, por unanimidade, criar uma condecoração militar, a “Herói
Animal, Primeira Classe”, que foi conferida ali mesmo a Bola-de-Neve e a Boxer.
Consistia numa medalha de bronze (era, na realidade, bronze dos arreios achados
no galpão de ferramentas) para ser usada nos domingos e feriados. Criaram
também a “Herói Animal, Segunda Classe”, conferida postumamente à
ovelha morta.

Houve
muita discussão quanto ao nome que seria dado à batalha. Por fim, foi batizada
de Batalha do Estábulo, pois fora o lugar onde se armara a emboscada. A
espingarda de Jones foi encontrada na lama. Como existisse uma boa quantidade
de cartuchos na casa-grande, ficou decidido que colocariam a espingarda ao pé
do mastro, como se fosse uma peça de artilharia, e dariam uma salva duas vezes
ao ano – uma no dia 12 de outubro, aniversário da Batalha do Estábulo, e outra
no dia 24 de junho, aniversário da Revolução.

 

CAPÍTULO V

Com o
passar do inverno, Mollie tornava-se mais e mais importuna. Todas as manhãs
atrasava-se para o trabalho e desculpava-se dizendo que dormira demais.
Queixava-se de dores – misteriosas, embora gozasse de excelente apetite. A
qualquer pretexto largava o trabalho e ia para o açude, à beira do qual
permanecia admirando sua própria imagem refletida nas águas. Corriam também
boatos de maior seriedade. Um dia, quando Mollie entrou no pátio, toda
contente, sacudindo a cauda e mascando um talo de feno, Trevo abordou-a.

– Mollie –
disse ela -, tenho um assunto muito sério para falar-lhe. Hoje de manhã eu a vi
olhando por cima da sebe que separa a Granja de Foxwood. Do outro lado estava
um dos empregados do Sr. Pilkington. Ele – embora eu estivesse longe, tenho
quase certeza de que vi isso – falava com você e fazia festas em seu focinho.
Que significa isso. Mollie?

– Ele não
fez! Eu não estava! Não é verdade! – gritou Mollie, agitando-se e escarvando a
terra. –

– Mollie!
– Olhe-me nos olhos. Você me dá sua palavra de honra de que o homem não lhe
tocou no focinho? .

– Não é
verdade! – repetiu Mollie, sem olhar Trevo de frente; depois, virou-se e
galopou para o campo.

Trevo teve
uma idéia. Sem dizer nada a ninguém, foi à baia de Mollie e virou a palha com o
casco. Ali estavam escondidos um montinho de torrões de açúcar e vários novelos
de fitas de diversas cores.

Três dias
mais tarde, Mollie desapareceu. Durante algumas semanas ninguém teve notícias
de seu paradeiro, até que os pombos trouxeram o informe de que a haviam visto
na parte mais afastada de Willingdon, atrelada a uma bonita carroça vermelha e
preta, em frente a uma estalagem. Um homem gordo, de rosto vermelho, calças
xadrez e polaina, com todo o tipo de estalajadeiro, dava-lhe pancadinhas no
focinho e oferecia-lhe torrões de açúcar. Seu pêlo fora recentemente
rasqueteado e ela usava uma fita escarlate no topete. Parecia muito satisfeita,
segundo disseram os pombos. Os bichos nunca mais falaram em Mollie.

Em
janeiro, o tempo piorou terrivelmente. A terra dura como ferro, não permitia o
trabalho no campo. Houve muitas reuniões no celeiro grande, e os porcos
passaram ao planejamento dos trabalhos a serem realizados na estação seguinte.
Fora acertado que os porcos, sendo manifestamente mais inteligentes do que os
outros animais, decidiriam todas as questões referentes à política agrícola da
granja, embora suas decisões devessem ser ratificadas pelo voto da maioria.
Essa combinação teria funcionado muito bem, não fossem as disputas entre
Bola-de-Neve e Napoleão. Esses dois discordavam sobre todos os pontos em que a
discordância era possível. Se um deles propunha o aumento da área de plantio de
cevada, podia-se ter certeza de que o outro proporia uma área maior para o
cultivo da aveia, e se um dissesse que tais e tais terrenos eram ótimos para
plantar repolhos, o outro diria que não prestavam senão para mandioca. Cada um
tinha seus seguidores e havia debates violentos. Nas reuniões, Bola-de-Neve
frequentemente obtinha a maioria, por seus discursos brilhantes, porém Napoleão
era o melhor na cabala de apoio durante os intervalos. Obtinha êxito especial
com as ovelhas. Ultimamente estas haviam criado o hábito de balir “Quatro
pernas bom, duas pernas ruim” em ocasiões próprias ou impróprias, e muitas
vezes interrompiam a reunião dessa maneira. Notou-se que mostravam especial
disposição de atacar o “Quatro pernas bom, duas pernas ruim”,
justamente quando Bola-de-Neve chegava a um momento crucial em seus discursos.
Bola-de-Neve estudara atentamente alguns números atrasados da revista O
Agricultor e o Criador de Gado, encontrados na casa-grande, e andava com a
cabeça cheia de planos sobre invenções e melhoramentos. Falava com grande
conhecimento de causa sabre drenagens, ensilagem, escórias básicas, e havia
elaborado um complexo esquema segundo o qual os bichos evacuariam diretamente
no campo, em lugares diferentes cada dia, para economizar o trabalho do
transporte de esterco. Napoleão não criava projetos próprios, mas dizia com
toda calma que os de Bola-de-Neve dariam em nada e parecia aguardar sua
oportunidade. De todas as divergências, porém, nenhuma foi tão séria como a do
moinho de vento.

Não muito
longe das casas havia uma colina que era o ponto mais alto da granja. Depois de
realizar uma pesquisa no solo, Bola-de-Neve declarou ser o local ideal para a
construção de um moinho de vento, que poderia acionar um dínamo e suprir de
energia elétrica toda a granja. As baias teriam luz elétrica e aquecimento no
inverno, haveria força para uma serra circular, para moagem de cereais, para o
corte da beterraba e para um sistema de ordenha elétrica. Os animais nunca
tinham sequer ouvido falar nessas coisas (pois a granja era antiquada e sua
aparelhagem das mais primitivas) e escutaram boquiabertos Bola-de-Neve fazer
desfilar como por encanto, ante sua imaginação, as figuras dos aparelhos mais
espetaculares, máquinas que fariam todo serviço em seu lugar, enquanto eles
iriam aproveitar a folga pastando ou cultivando a mente, por meio da leitura e
da conversação.

Em poucas
semanas os planos de Bola-de-Neve para o moinho de vento estavam prontos. Os
detalhes mecânicos foram retirados principalmente de três livros que haviam
pertencido ao Sr. Jones – Mil Coisas Úteis para Sua Casa, Seja o Seu Próprio
Pedreiro e Eletricidade para Principiantes. Bola-de-Neve utilizou como estúdio
um galpão que antes abrigara incubadoras e cujo piso era de madeira lisa,
própria para desenhar. Lá permanecia horas a fio. Com os livros abertos sob o peso
de uma pedra, e uma barra de giz entre as duas pontas do casco, andava
rapidamente para lá e para cá, traçando linhas e mais linhas e soltando
guinchos de excitação.

Gradualmente,
os planos se transformaram numa complicada massa de manivelas e engrenagens que
cobria quase metade do assoalho e que os outros animais achavam completamente
ininteligível, mas impressionante. Pelo menos uma vez por dia, cada um vinha
olhar os desenhos de Bola-de-Neve. Até as galinhas e os patos apareciam,
pisando com grande dificuldade para não estragar os riscos de giz. Apenas
Napoleão permaneceu desinteressado. Havia-se declarado contra o moinho de vento
desde o início. Um dia, entretanto, chegou inesperadamente para examinar os
planos. Caminhou pesadamente em volta do galpão, olhou detidamente cada detalhe
do projeto, farejou-o uma ou duas vezes, depois deteve-se a contemplá-lo por
alguns instantes pelo canto dos olhos; então, inesperadamente, levantou a pata,
urinou sobre os planos e caminhou para fora sem proferir palavra. A granja
estava profundamente dividida com respeito ao moinho de vento. Bola-de-Neve não
negava que sua construção resultaria em uma empresa difícil. Seria necessário
quebrar pedras e transformá-las em paredes; depois, construir as pás; haveria
necessidade de dínamos e fios (onde seriam encontrados, Bola-de-Neve não
dizia). Mas afirmava que tudo poderia ser feito dentro de um ano. Depois disso
– dizia -, os bichos economizariam tanta energia, que seriam necessários
apenas. três dias de trabalho por semana. Napoleão, por outro lado, argumentava
que a grande necessidade do momento era aumentar a produção de alimentos e que
morreriam de fome se perdessem tempo com o moinho de vento. Os animais
dividiram-se em duas facções que se alinhavam sob os slogans: “Vote em
Bola-de-Neve e na semana de três dias” e “Vote em Napoleão e na
manjedoura cheia”. Benjamim foi o único animal que não aderiu a lado
nenhum. Recusava-se a crer, tanto em que haveria fartura de alimento, como em
que o moinho de vento economizaria trabalho. Moinho ou não moinho, dizia ele, a
vida prosseguiria como sempre fora – ou seja, mal.

Além da
disputa sobre o moinho de vento, havia o problema da defesa da granja. Eles bem
sabiam que, embora os humanos tivessem sido derrotados na Batalha do Estábulo,
poderiam fazer outra tentativa, mais reforçada, para retomar a granja e
restaurar Jones. Tinham as melhores razões para tentar, pois a notícia, da
derrota, se espalhara pela região e tornara os animais das granjas vizinhas
mais rebeldes do que nunca. Como sempre, Bola-de-Neve e Napoleão não estavam de
acordo. Segundo Napoleão o que os animais deveriam fazer era conseguir armas de
fogo e instruir-se no seu emprego. Bola-de-Neve achava que deveriam enviar mais
e mais pombos e provocar a rebelião entre os bichos das outras granjas. O
primeiro argumentava que, se não fossem capazes de defender-se, estavam
destinados à submissão; o outro alegava que, fomentando revoluções em toda
parte, não teriam necessidade de defender-se. Os animais ouviam Napoleão,
depois Bola-de-Neve e não chegavam à conclusão sobre quem tinha razão; á
verdade é que estavam sempre de acordo com, aquele que falava no momento.

Por fim,
chegou o dia em que os planos de Bola-de-Neve ficaram prontos. Na Reunião do
domingo seguinte deveria ser posta em votação a questão de começar ou não o
trabalho no moinho de vento.

Quando os
animais se reuniram no grande celeiro, Bola-de-Neve levantou-se e, embora fosse
interrompido de vez em quando pelo balido das ovelhas, expôs suas razões em
favor da construção do moinho de vento. Depois levantou-se Napoleão para
rebater.

Disse
calmamente que o moinho de vento era uma tolice, que não aconselhava ninguém a
votar a favor daquilo. Sentou-se de novo; falara durante trinta segundos, se
tanto, e parecia indiferente ao resultado.

Ante isso,
Bola-de-Neve pôs-se de pé outra vez, calou a gritos as ovelhas que começavam a
balir de novo e irrompeu num candente apelo em favor do moinho de vento. Até
então, os bichos estavam quase igualmente divididos em suas simpatias, mas num
instante de eloquência Bola-de-Neve arrastou a todos. Com sentenças ardentes,
pintou um quadro de como poderia ser a Granja dos Bichos quando o trabalho
sórdido fosse sacudido de sobre os ombros de todos. Sua imaginação ia agora
além de moinhos de cereais e cortadores de nabos. A eletricidade – disse ele-
poderia movimentar debulhadoras, arados, grades rolos compressores, ceifeiras e
atadeiras, além de fornecer a cada baia sua própria luz, água quente e fria, e
um aquecedor elétrico. Quando parou de falar, não havia dúvidas quanto ao
resultado da votação. Porém, exatamente nesse momento Napoleão levantou-se e,
dando uma estranha olhadela de viés para Bola-de-Neve, soltou um guincho
estridente que ninguém ouvira antes.

Ouviu-se
um terrível ladrido lá fora e nove cães enormes, usando coleiras tachonadas com
bronze, entraram latindo no celeiro. Jogaram-se sobre Bola-de-Neve, que saltou
do lugar onde estava, mal a tempo de escapar àquelas presas. Num instante, saiu
porta fora com os cães em seu encalço. Espantados e aterrorizados demais para
falar, os bichos amontoaram-se na porta para observar a caçada. Bola-de-Neve
corria pelo campo em direção à estrada, como só um porco sabe correr, mas os
cachorros se aproximavam. De repente ele caiu e pareceu que o apanhariam. Mas
levantou-se outra vez e correu como um desesperado. Já os cães o alcançavam de
novo. Um deles quase fechou as mandíbulas no rabicho de Bola-de-Neve, que o
sacudiu bem na hora. Aí fez um esforço extremo e, ganhando algumas polegadas,
enfiou-se por um buraco da sebe e sumiu.

Calados e
aterrados, os animais voltaram furtivamente para dentro do celeiro. Logo
chegaram os cachorros, latindo. A princípio ninguém pôde imaginar de onde
tinham vindo – aquelas criaturas, mas o mistério logo se aclarou: eram os
cachorrinhos que Napoleão havia tomado às mães e criado secretamente. Embora
ainda não tivessem completado o crescimento, já eram uns cães enormes e
mal-encarados como lobos. Permaneceram junto a Napoleão e notou-se que sacudiam
a cauda para ele da mesma maneira como os outros cachorros costumavam fazer
para Jones.

Napoleão,
com os cachorros a segui-lo, subiu para o estrado, de onde o Major fizera seu
discurso. Anunciou que daquele momento em diante terminariam as Reuniões dos
domingos de manhã. Eram desnecessárias perdas de tempo. Para o futuro, todos os
problemas relacionados com o funcionamento da granja seriam resolvidos por uma
comissão de porcos, presidida por ele, que se reuniria em particular e depois
comunicaria suas decisões aos demais. Os animais continuariam a reunir-se aos
domingos para saudar a bandeira, cantar Bichos da Inglaterra e receber as
ordens da semana; não haveria debates.

A despeito
do estado de choque em que a expulsão de Bola-de-Neve os deixara, os bichos
ficaram desalentados com aquela notícia. Vários teriam protestado, se
conseguissem achar os argumentos. Até Boxer ficou um tanto perturbado. Murchou
as orelhas, sacudiu o topete várias vezes e fez um esforço tremendo para pôr em
ordem as ideias; mas afinal não conseguiu pensar nada para dizer. Alguns
porcos, porém, tinham maior flexibilidade de raciocínio. Quatro jovens porcos
castrados, colocados na primeira fila, soltaram altos guinchos de protesto e
levantaram-se falando a um só tempo. Mas os cachorros, junto de Napoleão, soltaram
um rosnado fundo e ameaçador, e os porcos calaram-se, sentando-se de novo. Aí
estrondaram as ovelhas um formidável balido de “Quatro pernas bom, duas
pernas ruim” que durou cerca de um quarto de hora, acabando com qualquer
hipótese de discussão. Mais tarde, Squealer foi mandado percorrer a granja para
explicar a nova situação aos demais.


Camaradas – disse -, tenho certeza de que cada animal compreende o sacrifício
que o Camarada Napoleão faz ao tomar sobre seus ombros mais esse trabalho. Não
penseis, camaradas, que a liderança seja um prazer. Pelo contrário, é uma
enorme e pesada responsabilidade. Ninguém mais que o Camarada Napoleão crê
firmemente que todos os bichos são iguais. Feliz seria ele se pudesse
deixar-vos tomar decisões por vossa própria vontade; mas, às vezes, poderíeis
tomar decisões erradas, camaradas; então, onde iríamos parar? Suponhamos que
tivésseis decidido seguir Bola-de-Neve com suas miragens de moinho de vento –
logo Bola-de-Neve ~ que, como sabemos, não passava de um criminoso?

– Ele
lutou bravamente na Batalha do Estábulo – disse alguém.

– Bravura
não basta – respondeu Squealer.

– A
lealdade e a obediência são mais importantes. E quanto à Batalha do Estábulo,
acredito, tempo virá em que verificaremos que o papel de Bola-de-Neve foi um
tanto exagerado. Disciplina, camaradas, disciplina férrea! Este é o lema para
os dias que correm. Um passo em falso e o inimigo estará sobre nós. Por certo,
camaradas, não quereis Jones de volta, hem?

Uma vez
mais esse argumento era irrespondível. Sem dúvida alguma, os bichos não
desejavam Jones de volta; e se a realização dos debates do domingo podia ter
essa consequência, que cessassem os debates. Boxer, que já tivera tempo de
pensar, expressou o sentimento geral: “Se é o que diz o Camarada Napoleão,
deve estar certo.” E daí por diante adotou a máxima “Napoleão tem
sempre razão” acrescentando-a ao seu lema particular “Trabalharei
mais ainda”.

Já com o
tempo melhor, iniciou-se a arada da primavera. O galpão em que Bola-de-Neve
desenhara seus planos para o moinho de vento foi trancado e os desenhos
provavelmente apagados. Todos os domingos, às dez horas, os animais reuniam-se
no grande celeiro para receber as ordens da semana. A caveira do velho Major,
já sem carnes, fora desenterrada e colocada sobre um toco ao pé do mastro,
junto à espingarda. Após o hasteamento da bandeira, os animais deviam desfilar
reverentemente perante a caveira, antes de entrar no celeiro. Já não sentavam
todos juntos, como antes. Napoleão, Squealer e outro porco chamado Mínimo, dono
de notável talento para compor canções e poemas, aboletavam-se sobre a parte
fronteira da plataforma, os nove cachorros em semicírculo ao redor deles e os
outros porcos atrás. O restante dos animais ficava de frente para eles, no chão
do celeiro. Napoleão lia as ordens da semana num áspero estilo militar e, após
cantarem uma única vez Bichos da Inglaterra, os animais se dispersavam.

No
terceiro domingo após a expulsão de Bola-de-Neve, os bichos ficaram um tanto
surpresos ao ouvirem Napoleão anunciar que o moinho de vento seria, afinal de
contas, construído. Não deu qualquer explicação sobre o motivo que o fizera
mudar de idéia, apenas alertando os animais de que essa tarefa extraordinária
significaria trabalho muito duro, podendo até ser necessário reduzir as rações.
Os planos, entretanto, haviam, sido elaborados até o último detalhe. Uma
comissão especial de porcos trabalhara neles durante as três últimas semanas. A
construção do moinho de vento, com vários outros melhoramentos, deveria levar
dois anos.

Naquela
tarde, Squealer explicou aos outros bichos, em particular, que Napoleão nunca
for a contra a construção do moinho de vento. Pelo contrário, ele é que
advogara a idéia desde o início, e o plano que Bola-de-Neve havia desenhado no
assoalho do galpão das incubadoras fora, na realidade, roubado de entre os
papéis de Napoleão. O moinho de vento, era, em verdade, criação do próprio
Napoleão.

– Por que,
então – perguntou alguém -, ele tanto falou contra o moinho?

Squealer
olhou, manhoso.

– Aí é que
estava a esperteza do Camarada Napoleão – disse. – Ele fingira ser contra o
moinho de vento, apenas como manobra para livrar-se de Bola-de-Neve, que era um
péssimo caráter e uma influência perniciosa. Agora que Bola-de-Neve saíra do
caminho, o plano podia prosseguir sem sua interferência. Isso era uma coisa
chamada tática.

Repetiu
inúmeras vezes “Tática, camaradas, tática!”, saltando à roda e
sacudindo o rabicho com um riso jovial. Os bichos não estavam muito certos do
significado da palavra, mas Squealer falava tão persuasivamente e os três
cachorros – que por coincidência estavam com ele – rosnavam tão
ameaçadoramente, que aceitaram a explicação sem mais perguntas.

 

CAPÍTULO VI

Durante o
ano inteiro os bichos trabalharam feito escravos. Mas trabalhavam felizes; não
mediam esforços ou sacrifícios, cientes de que tudo quanto fizessem reverteria
em benefício deles próprios e dos de sua espécie, que estavam por vir, e não em
proveito de um bando de preguiçosos e aproveitadores seres humanos.

Por toda a
primavera e o verão, enfrentaram uma semana de sessenta horas de trabalho e, em
agosto, Napoleão fez saber que haveria trabalho também nos domingos à tarde.
Esse trabalho era estritamente voluntário, porém, o bicho que não aceitasse
teria sua ração diminuída pela metade. Mesmo assim, ficou alguma coisa por
fazer. A colheita foi pouco menor do que a do ano anterior, e duas lavouras que
deveriam receber mandioca no início do verão não foram plantadas por não ter
sido possível ará-las a tempo. Era fácil prever que o inverno seria bastante
duro.

A
construção do moinho de vento apresentou dificuldades imprevistas. Havia na
granja uma boa pedreira, e grande quantidade de areia e cimento for a encontrada
num depósito, portanto o material para a construção existia e estava à mão. O
problema que os animais não conseguiram resolver, de inicio, foi o de quebrar
as pedras no tamanho desejado. Não parecia haver outra maneira senão com
picaretas e alavancas, coisas que nenhum animal podia usar, porque não lhes era
possível ficar de pé sobre duas patas. Somente após semanas de trabalho em vão,
foi que ocorreu a alguém a idéia certa – aproveitar a gravidade. Pelo leito da
pedreira jaziam seixos enormes, demasiado grandes para serem usados como
estavam. Os bichos amarravam cordas em torno das pedras e, todos juntos,
cavalos, vacas, ovelhas, todo animal que fosse capaz de segurar os cabos – até
os porcos entravam no grupo, em certos momentos críticos -, arrastavam-nas com
desesperadora lentidão até o ponto mais elevado da pedreira, de cuja borda eram
derrubadas para despedaçarem-se embaixo. O transporte das pedras, uma vez
quebradas, era relativamente simples. Os cavalos carregavam-nas em carroças, as
ovelhas arrastavam blocos individuais, até mesmo Muriel e Benjamim atrelaram-se
a uma velha charrete e fizeram sua parte. No fim do verão já haviam acumulado
um bom estoque de pedras, e começou a construção sob a direção dos porcos.

Entretanto,
o processo era demorado e laborioso. Frequentemente levavam um dia inteiro para
arrastar uma pedra das maiores até o topo da pedreira, e às vezes, atirada pela
borda, não quebrava. Nada se teria feito sem Boxer, cuja força parecia igual à
de todos os outros bichos juntos. Quando a pedra começava a deslizar e os
animais gritavam de desespero, ao se verem arrastados colina abaixo era sempre Boxer
que retesava os cabos e continha a pedra. Vê-lo na faina da subida, palmo a
palmo, com a respiração acelerada, os costados molhados de suor e as pontas dos
cascos cravadas no solo, era coisa que enchia a todos de admiração. Trevo às
vezes recomendava-lhe que tivesse cuidado e não se esforçasse demais, mas Boxer
não lhe dava ouvidos. Seus dois lemas “Trabalharei mais ainda” e
“Napoleão tem sempre razão” pareciam-lhe resolver todos os problemas.
Pediu a um dos galos que o acordasse três quartos de hora mais cedo, pela
manhã, ao invés de meia hora. E nos momentos de folga, coisa que nos últimos
tempos não sucedia muito amiúde, ia sozinho à pedreira, juntava um monte de
pedra britada e puxava-o até o local do moinho de vento, sem ajuda de ninguém.

Os bichos
não passaram muito mal aquele inverno, malgrado a dureza do trabalho. Se não
dispunham de mais alimentos do que no tempo de Jones, também não tinham menos.
A vantagem de só terem a si próprios para alimentar, sem os cinco esbanjadores
seres humanos, era tão grande que compensava bem algumas faltas. E, sob muitos
aspectos, seus métodos eram mais eficientes e econômicos. Certas tarefas, como,
por exemplo, a limpeza de ervas daninhas, podiam ser realizadas com uma
perfeição impossível aos seres humanos. E, como nenhum animal roubava, não
houve necessidade de separar as pastagens das terras aráveis, o que evitou o
grande trabalho da construção de cercas e porteiras. Não obstante, à medida que
o verão passava começou a se fazer sentir alguma escassez, imprevista. Houve
falta de óleo de parafina, de pregos, de corda, de biscoitos para os cachorros
e de ferraduras para os cavalos, coisas – que não podiam ser fabricadas na
granja. Mais tarde, faltaram também sementes e adubo artificial, além de vários
tipos de ferramentas e, finalmente, a maquinaria para o moinho de vento. Como
obter isso tudo, ninguém conseguia imaginar.

Um domingo
de manhã, quando os bichos se reuniram para receber as ordens, Napoleão
anunciou sua decisão de encetar uma nova política. A partir daquele dia, a
Granja dos Bichos passaria a comerciar comas da vizinhança; naturalmente, sem
qualquer objetivo de lucro, mas com o fito único de obter algumas mercadorias
urgentemente necessárias. As exigências do moinho de vento deviam sobrepujar
tudo mais, disse. Em consequência, ele estava tratando da venda de uma grande
meda de feno e de parte da safra de trigo daquele ano; mais tarde, caso fosse
necessário mais dinheiro, este teria de ser obtido com a venda de ovos, para os
quais sempre havia mercado em Willingdon. As galinhas, disse Napoleão, deveriam
agradecer a oportunidade de oferecer esse sacrifício, como contribuição especial
em prol da conservação do moinho de vento.

Os animais
sentiram outra vez uma vaga inquietude. Nunca realizar quaisquer contatos com
seres humanos, nunca fazer comércio, jamais utilizar dinheiro – essas coisas
não estavam entre as primeiras resoluções passadas naquela formidável Reunião
inicial, logo após a expulsão de Jones? Todos se lembravam da aprovação dessas
resoluções – ou pelo menos julgavam lembrar-se. Os quatro jovens porcos
castrados que haviam protestado quando Napoleão acabara com as Reuniões, levantaram
timidamente a voz, mas foram logo silenciados por um rosnar terrível dos
cachorros. Nesse instante, como de hábito, as ovelhas estalaram “Quatro
pernas bom, duas pernas ruim!” e a momentânea impertinência foi abafada.
Finalmente, Napoleão levantou a pata ordenando silêncio e declarou que já havia
tomado todas as providências. Não haveria necessidade de qualquer animal entrar
em contato com seres humanos, coisa que seria da maior inconveniência. Ele
pretendia tomar sobre seus ombros toda essa carga. Um certo Sr. Whymper, que
era procurador em Willingdon, concordara em atuar como intermediário entre a
Granja dos Bichos e o mundo exterior, e viria à granja todas as segundas-feiras
pela manhã, a fim de receber instruções. Napoleão finalizou o discurso com sua
exclamação habitual de “Viva a Granja dos Bichos!”, e, após cantarem
Bichos da Inglaterra, os animais foram dispensados.

Depois, Squealer
percorreu a granja para tranquilizá-los. Assegurou-lhes que tal resolução,
contra o engajamento no comércio e o uso de dinheiro, jamais fora aprovada,
aliás nem sequer apresentada. Era pura imaginação e provavelmente tinha origem
em mentiras inventadas por Bola-de-Neve. Alguns bichos ainda permaneciam em
dúvida, porém Squealer perguntou-lhes astuciosamente: “Vocês estão certos
de que não sonharam com isso? Existe algum registro dessa resolução? Está
escrita em algum lugar?” E uma vez que, realmente, não existia escrito
nada parecido com isso, os animais se convenceram de seu engano.

Todas as
segundas-feiras o Sr. Whymper visitava a granja, conforme o combinado. Era um
homenzinho finório, de suíças crescidas, procurador de pouca clientela porém
suficientemente vivo para perceber, antes de qualquer outro, que a Granja dos
Bichos precisaria de um representante e que as comissões seriam polpudas. Os
bichos olhavam suas idas e vindas com um certo receio e evitavam-no tanto
quanto possível. Apesar disso, ver Napoleão, de quatro, dando ordens a Whymper,
que permanecia em pé sobre duas patas, era uma coisa que, lhes acariciava o
orgulho e parcialmente os reconciliava com a nova situação. As relações com o
gênero humano andavam bem diferentes. Os humanos não odiavam menos a Granja dos
Bichos, agora que ela prosperava; na realidade, odiavam-na mais do que nunca.
Todo ser humano tinha como questão de fé que a granja iria à bancarrota mais
cedo ou mais tarde e, sobretudo, que o moinho de vento seria um fracasso.
Reuniam-se nas estalagens e provavam uns aos outros, por meio de gráficos e
diagramas, que o moinho estava fadado a desabar e, caso se mantivesse erguido,
jamais funcionaria. Não obstante, mesmo contra a vontade, haviam criado um
certo respeito pela eficiência com que os bichos conduziam os seus assuntos.
Sintoma disso foi o fato de começarem a chamar o sítio de Granja dos Bichos,
abandonando a pretensão de continuarem a chamá-la Granja do Solar. Haviam
também acabado com o cartaz de Jones, que perdera toda esperança de reaver sua
granja e fora viver noutro lugar. Até agora, exceto por intermédio de Whymper,
nenhum contato houvera entre a Granja dos Bichos e o mundo exterior, mas já
circulavam insistentes boatos de que Napoleão estava por chegar a um decisivo
acordo de negócios, ora com Pilkington, de Foxwood, ora com Frederick, de
Pinchfield – mas nunca, interessante, com ambos, simultaneamente.

Foi mais
ou menos por essa época que os porcos, de repente, mudaram-se para a
casa-grande, onde fixaram residência. Novamente os bichos julgaram lembrar-se
de que havia uma resolução contra isso, aprovada nos primeiros dias, e novamente
Squealer conseguiu convencê-los do contrário. Era absolutamente necessário que
os porcos, disse ele, sendo os cérebros da granja, tivessem um lugar calmo onde
trabalhar. Além disso, viver numa casa era mais adequado à dignidade do Líder
(nos últimos tempos dera para referir-se a Napoleão pelo título de
“Líder”) do que viver numa simples pocilga. Mesmo assim, alguns
animais se aborreceram ao ouvir dizer que os porcos não só faziam as refeições
na cozinha e utilizavam a sala como local de recreação, mas ainda dormiam nas
camas. Boxer resolveu o assunto com seu “Napoleão tem sempre razão”,
porém Trevo, que tinha a impressão de lembrar-se de uma lei específica contra
camas, foi até o fundo do celeiro e tentou decifrar os Sete Mandamentos que lá
estavam escritos. Sentindo-se incapaz de ler mais do que algumas letras
separadamente, foi chamar Muriel.

– Muriel –
pediu ela – leia para mim por favor, o Quarto Mandamento. Não diz qualquer
coisa a respeito de nunca dormir em camas?

Com alguma
dificuldade, Muriel soletrou o mandamento:

– Diz que
“Nenhum animal dormirá em cama com lençóis”.

Interessante,
Trevo não se recordava dessa menção a lençóis, no Quarto Mandamento. Mas, se
estava escrito na parede, devia haver. E Squealer que por acaso passava nesse
momento, acompanhado de dois cachorros, colocou todo o assunto na perspectiva
adequada.

– Com que
então vocês, camaradas, ouviram dizer que nós, os porcos, agora dormimos nas
camas da casa? E por que não? Vocês não supunham, por certo, que houvesse uma lei
contra camas, não é? A cama é meramente o lugar onde se dorme. Vendo bem, um
monte de palha no estábulo é uma cama. A lei era contra os lençóis, que são uma
invenção humana. Nós retiramos os lençóis das camas da casa e dormimos entre
cobertores. Confortáveis, lá isso são! Porém não mais do que necessitamos,
posso afirmar-lhes, camaradas, com todo o trabalho intelectual que atualmente
recai sobre nós. Vocês não seriam capazes de negar-nos o repouso, camaradas,
seriam? Vocês não desejariam ver-nos tão cansados que não pudéssemos cumprir
nossa missão, não? Será que alguém quer Jones de volta?

Os animais
tranquilizaram-no a esse respeito e não se falou mais no fato de os porcos
dormirem nas camas da casa. E quando se anunciou, alguns dias depois, que os
porcos passariam a levantar-se, de manhã, uma hora mais tarde do que os outros
bichos, ninguém se queixou disso também.

Ao chegar
o outono, os animais andavam cansados, mas felizes. Haviam tido um ano difícil,
e após a venda de uma parte da safra de feno e de trigo, os estoques para o
inverno não eram lá muito abundantes, mas o moinho de vento compensava tudo. Já
estava quase pela metade. Após a colheita houve um período de tempo bom e os
bichos trabalharam mais do que nunca, satisfeitos com a tarefa de andarem para
lá e para cá puxando blocos de pedras, desde que com isso conseguissem fazer a
parede subir mais alguns centímetros. Boxer chegava a trabalhar de noite, uma
hora ou duas, por sua conta, à luz da lua. Nas horas de folga os animais
passeavam em volta do moinho inacabado; admirando a solidez e a verticalidade
de suas paredes, maravilhados com o fato de terem sido capazes de construir
algo tão imponente. Somente o velho Benjamim se recusava a entusiasmar-se com o
moinho de vento, embora, como sempre, não fizesse outro comentário além do
enigma de que os burros vivem muito tempo.

Novembro
chegou, com fortes ventos de sudoeste. Foi preciso interromper a construção,
pois o tempo estava úmido demais para a mistura de cimento. Finalmente, houve
uma noite em que a tormenta foi tão forte que os galpões da granja tremeram na
base e várias telhas do celeiro foram arrancadas. As galinhas acordaram
cacarejando aterrorizadas, pois haviam sonhado, todas ao mesmo tempo, com o
barulho de um tiro a distância. Pela manhã, ao saírem os animais de suas baias,
deram com o mastro caído no chão e viram o olmeiro do pomar desgalhado como se
fosse um rabanete. Mal haviam notado isso quando soltaram um grito lancinante
de desespero. Visão terrível se apresentava aos seus olhos: o moinho de vento
estava em ruínas.

Correram
todos para o local. Napoleão, que raras vezes abandonava seu passo normal à
frente de todos, correu também. Sim, ali estava o moinho, o fruto de todas as
suas lutas, rebaixado ao nível dos alicerces; e as pedras, que tão
laboriosamente haviam levantado, espalhadas pelas redondezas. Impossível falar,
de início; ali ficaram olhando tristemente à desordem das pedras caídas.
Napoleão andava lentamente de um lado para outro, em silêncio, ocasionalmente
farejando o chão, aqui e ali. Seu rabicho se esticava e se sacudia
energicamente, para lá e para cá, num sinal de febril atividade mental. De
repente estacou, como se tivesse chegado a uma conclusão.


Camaradas – disse lentamente -, quem é o responsável por isto? Sabem quem foi o
inimigo que, na calada da noite, destruiu nosso moinho de vento? BOLA-DE-NEVE!
– rugiu violentamente com voz de trovão. – Bola-de-Neve foi o autor disto! Com
rematada maldade, pensando em destruir nossos planos e vingar-se de sua
ignominiosa expulsão, esse traidor penetrou até aqui, sob o manto da escuridão,
e destruiu nosso labor de quase um ano. Camaradas, neste local e neste momento,
pronuncio a sentença de morte para Bola-de-Neve. Uma “Herói Animal, Segunda
Classe” e meio balde de maçãs ao animal que lhe fizer justiça. Um balde
inteiro a quem o capturar vivo!

Os animais
ficaram chocadíssimos ao saberem que mesmo Bola-de-Neve fosse capaz de uma
coisa daquela. Subiu ao céu um brado de indignação e cada um pôs-se a pensar
num modo de apanhar Bola-de-Neve, se algum dia ousasse voltar. Quase ao mesmo
tempo, descobriram-se as pegadas de um porco a pequena distância da colina.
Embora marcassem apenas alguns metros, pareciam dirigir-se a um buraco da sebe.
Napoleão cheirou-as profundamente e declarou serem de Bola-de-Neve. Na sua
opinião, Bola-de-Neve provavelmente viera da Granja de Foxwood. – Não percamos
tempo, camaradas! – bradou Napoleão, depois de examinar detidamente as pegadas.
– Temos muito trabalho pela frente. Hoje mesmo, de manhã, recomeçamos a
construção do moinho de vento e trabalharemos por todo o inverno, com sol ou
com chuva. Mostraremos a esse traidor miserável que ele não pode desfazer nosso
trabalho assim tão facilmente. Lembrem-se, camaradas, não deve haver
modificações em nossos planos: serão cumpridas à risca. Para a frente,
camaradas! Viva o moinho de vento! Viva a Granja dos Bichos!

 

CAPÍTULO VII

Aquele
inverno foi horrível. Às tempestades seguiram-se o granizo e as nevadas, depois
o gelo, que somente se desfez em meados de fevereiro. Os bichos fizeram todo o
possível na reconstrução do moinho de vento, conscientes de que o mundo tinha
os olhos sobre eles e de que os invejosos seres humanos vibrariam de
contentamento se o moinho não fosse concluído a tempo.

Apesar de
tudo, os humanos recusaram-se a crer que Bola-de-Neve tivesse destruído o
moinho de vento: afirmavam que as paredes caíram porque eram finas demais. Os
animais sabiam não ser essa a causa. Mesmo assim, deliberaram desta vez
construir as paredes com noventa centímetros de largura, ao invés de quarenta e
cinco, como inicialmente, o que exigia muito mais pedra. Durante longo tempo a
pedreira esteve coberta de neve e foi impossível fazer qualquer coisa. Algum
progresso se conseguiu depois, no tempo gelado e seco que se seguiu, mas foi um
trabalho cruel, e os animais já não o realizavam com a mesma esperança de
antes. Andavam sempre com frio e, normalmente, com fome. Somente Boxer e Trevo
nunca desanimavam. Squealer fazia excelentes discursos sobre a alegria e a
dignidade do trabalho, mas os animais encontravam maior inspiração na força de Boxer
e no seu indefectível brado “Trabalharei mais ainda!”

Em
janeiro, a comida diminuiu. A ração de milho foi drasticamente reduzida e
anunciou-se que uma ração extra de batata seria entregue em seu lugar.
Descobriu-se então que a maior parte da colheita de batatas estava congelada
nas pilhas, não suficientemente protegidas. Moles e descoradas, poucas
continuavam comíveis. Durante dias seguidos, os bichos não tiveram senão palha
e beterraba pare comer. O espectro da fome surgia à sua frente.

Era
imprescindível ocultar esse fato ao restante do mundo. Encorajados pelo colapso
do moinho de vento, os humanos andavam renovando mentiras sobre a Granja dos
Bichos. Mais uma vez se dizia que os bichos morriam de fome e doenças, que
brigavam continuamente entre si e que haviam descambado para o canibalismo e o
infanticídio. Napoleão bem sabia dos maus resultados que poderiam advir, caso a
verdadeira situação alimentar da granja fosse conhecida, e resolveu utilizar o
Sr. Whymper para divulgar uma impressão contrária. Até então, os animais tinham
tido muito pouco ou nenhum contato com Whymper, em suas visitas semanais:
agora, entretanto, alguns bichos selecionados, principalmente ovelhas, foram
instruídos para comentarem, casualmente, mas de forma bem audível, o fato de
terem sido aumentadas as rações. Em complemento, Napoleão deu ordens para que
as tulhas do depósito, que estavam quase vazias, fossem recheadas de areia quase
até a boca, depois completadas com cereais e farinha. A um pretexto qualquer
Whymper foi conduzido através do depósito e pôde dar uma olhadela nas tulhas.
Foi enganado e continuou a dizer lá fora que, absolutamente, não havia falta de
alimento na Granja dos Bichos.

Não
obstante, no fim de janeiro, tornou-se positiva a necessidade de conseguir-se
mais cereais em algum lugar. Naqueles dias Napoleão raramente apareceu em
público, passando o tempo todo no casarão, guardado por um cão mal-encarado em
cada porta. Quando surgiu outra vez, foi de maneira cerimoniosa, com uma
escolta de seis cachorros que o cercavam de perto e rosnavam caso alguém se
achegasse demais. Frequentemente não aparecia, nem sequer aos domingos de
manhã, enviando suas ordens por intermédio de outro porco, de preferência Squealer.

Certa
manhã de domingo, Squealer anunciou que as galinhas, que recentemente haviam
começado a pôr, deveriam entregar-lhe seus ovos, pois Napoleão assinara, por
intermédio de Whymper, um contrato de fornecimento de quatrocentos ovos por
semana. O preço destes pagaria, em cereais e farinha, o bastante para manter a
granja até que chegasse o verão e as condições do tempo melhorassem.

Ao ouvirem
isso, as galinhas responderam com um terrível cacarejo. Já haviam sido alertadas
sobre essa possibilidade, mas não pensavam que viesse a tornar-se realidade.
Como havia pouco – preparavam suas ninhadas de ovos para a chocagem da
primavera, protestaram dizendo que tomar-lhes os ovos, agora, era um crime.
Pela primeira vez, desde a expulsão de Jones, aconteceu algo parecido com uma
rebelião. Lideradas por três jovens frangas Minorca, as galinhas realizaram uma
ação visando a contrariar os desejos de Napoleão. O método usado foi voar para
os caibros do telhado é dali por os ovos, que vinham despedaçar-se no chão.
Napoleão agiu rápida e implacavelmente. Cortou a ração das galinhas e decretou
que o bicho que fosse apanhado dando a elas um grão sequer de alimento seria
condenado à morte. Os cachorros fiscalizavam a execução da ordem. As galinhas
resistiram por cinco dias, depois capitularam e voltaram para os ninhos. Nove
haviam morrido. Seus corpos foram enterrados no pomar e, segundo se disse, a
causa da morte fora coccidiose[1].
Whynper nada ouviu sobre esse caso, e os ovos foram entregues pontualmente,
vindo um caminhão semanalmente buscá-los.

Entrementes,
não se falava mais em Bola-de-Neve. Havia rumores de que estaria homiziado em
uma das granjas vizinhas, Foxwood ou Pinchfield. Nessa época, Napoleão andava
em termos ligeiramente melhores com os outros granjeiros É que havia no pátio
várias pilhas de madeira, feitas dez anos antes, por ocasião da derrubada de um
bosque de faias Como a madeira já estava bem seca, Whymper aconselhara Napoleão
a vendê-la, e tanto Pilkington como Frederick desejavam comprá-la Napoleão
hesitava entre os dois, sem decidir-se Notou-se que toda vez que parecia ter
chegado a um acordo com Frederick, surgia o boato de que Bola-de-Neve estava
escondido em Foxwood, ao passo que, quando se inclinava para Pilkington,
Bola-de-Neve deveria andar em Pinchfield.

Subitamente,
no início da primavera, descobriu-se um fato alarmante. Bola-de-Neve estava
frequentando a granja à noite, secretamente! Os bichos ficaram tão preocupados
que mal podiam dormir em seus estábulos. Todas as noites, dizia-se, ele se
esgueirava nas sombras e perpetrava um sem número de maldades Roubava milho,
entornava baldes de leite, quebrava ovos, esmagava os viveiros de sementes e
roía o córtex das árvores frutíferas. Sempre que algo errado aparecia, o
culpado era Bola-de-Neve. Uma janela quebrada, um dreno entupido, e alguém com
certeza diria que Bola-de-Neve viera à noite e fizera aquilo; quando se perdeu
a chave do depósito, toda a granja se convenceu de que Bola-de-Neve a jogara no
fundo do poço. Interessante foi continuarem a acreditar, mesmo depois que a
chave perdida foi encontrada sob um saco de farinha. As vacas declararam
unanimemente que Bola-de-Neve entrara em suas baias e as havia ordenhado
durante o sono. Os ratos, por incomodarem muito durante o inverno, foram
taxados de aliados de Bola-de-Neve.

Napoleão
decretou uma ampla investigação sobre as atividades de Bola-de-Neve. Com seus
cachorros em posição de alerta, saiu e fez uma cuidadosa inspeção nos galpões
da fazenda, com os outros animais a segui-lo a uma distância respeitosa. A
pequenos intervalos, Napoleão parava e farejava o chão em busca de sinais de
Bola-de-Neve que, segundo disse, podia perceber pelo faro. Cheirou cada canto,
no celeiro, no estábulo, nos galinheiros, na horta, encontrando vestígios de
Bola-de-Neve em quase toda parte. Invariavelmente encostava o focinho no chão,
puxava algumas cheiradas profundas e exclamava numa voz terrível:
“Bola-de-Neve! Andou por aqui! Sinto perfeitamente o cheiro!” E, à
palavra “Bola-de-Neve”, a cachorrada soltava grunhidos sanguinários,
pondo os dentes à mostra.

Os animais
andavam aterrorizados. Parecia-lhes que Bola-de-Neve era uma espécie de
entidade invisível, impregnando o ar à sua volta e ameaçando-os com todas as
espécies de perigos. Certa tarde, Squealer reuniu-os e, com uma expressão
alarmada, disse-lhes ter várias notícias para dar.


Camaradas – gritou, fazendo trejeitos nervosos -, descobrimos uma coisa
pavorosa. Bola-de-Neve vendeu-se a Frederick, da Granja Pinchfield, que neste
mesmo instante está planejando atacar-nos e tomar nossa granja! Bola-de-Neve
será o guia, quando o ataque começar. Mas ainda há pior. Nós pensávamos que a
rebelião de Bola-de-Neve for a causada por sua vaidade e ambição. Pois
estávamos enganados, camaradas. Sabeis qual foi a verdadeira razão?
Bola-de-Neve era aliado de Jones desde o início! Foi, o tempo todo, agente de
Jones. Tudo isso está comprovado em documentos que deixou e que só agora
descobrimos. Para mim isso explica muita coisa, camaradas. Pois não vimos, com
os nossos próprios olhos, a maneira como ele tentou – felizmente sem conseguir
– fazer que fôssemos derrotados e destruídos na Batalha do Estábulo?

Os bichos
ouviam estupefatos. Isto era um crime muitíssimo maior do que ter destruído o
moinho de vento. Mas alguns minutos se passaram até eles compreenderem a
completa significação de tudo aquilo. Todos se lembravam, ou julgavam
lembrar-se, de terem visto Bola-de-Neve carregando à frente, na Batalha do
Estábulo, de como ele os encorajava e incitava a cada instante, não titubeando
um só segundo quando as balas de Jones rasgaram-lhe o dorso. Inicialmente foi
difícil entender de que maneira isso combinava com estar do lado de Jones. Até Boxer,
que raras vezes fazia perguntas, ficou confuso. Deitou-se, enfiou as patas
dianteiras debaixo do corpanzil, fechou os olhos e, com grande esforço, tentou
reunir os pensamentos.

– Não
acredito – disse. – Bola-de-Neve lutou bravamente na Batalha do Estábulo. Isso
eu vi com meus próprios olhos. Pois nós até não lhe demos uma “Herói
Animal, Primeira Classe”, logo depois? –

– Esse foi
o nosso erro, camaradas. Pois agora sabemos, e está tudo escrito nos documentos
encontrados que, na realidade, ele tentava conduzir-nos à desgraça.

– Mas ele
foi ferido – insistiu Boxer. – Todos o vimos ensanguentado.

– Isso era
parte do trato – gritou Squealer.- O tiro de Jones pegou apenas de raspão. Eu
poderia mostrar isso a vocês, escrito com a letra dele mesmo, se vocês
soubessem ler. A combinação era Bola-de-Neve dar o sinal de retirada no momento
crítico e abandonar o terreno ao inimigo. E ele quase conseguiu isso, posso
dizer até que teria conseguido, se não fosse o nosso heroico Líder, o Camarada
Napoleão. Lembram-se de que, bem no momento em que Jones e seus homens
atingiram o pátio, Bola-de-Neve, de repente, virou-se e fugiu, seguido de
muitos animais? E não foi nesse exato momento, quando já nos dominava o pânico
e tudo parecia perdido, que o Camarada Napoleão surgiu proferindo o brado de
“Morte à Humanidade!” e fincou os dentes na perna de Jones? Por certo
vocês se lembram disso, não é, camaradas? – exclamou Squealer, dando pulinhos
de um lado para outro.

Bem, agora
que Squealer descrevera a cena tão vividamente, parecia aos animais que de fato
se lembravam. Pelo menos lembravam-se de, no momento crítico da Batalha,
Bola-de-Neve voltar-se para fugir. Boxer, porém, ainda permanecia um tanto
contrafeito.

– Não
acredito que Bola-de-Neve fosse um traidor desde o começo – disse por fim. – O
que fez depois, é outra coisa. Eu ainda acho que na Batalha do Estábulo ele foi
um bom camarada.

– Nosso
Líder, o Camarada Napoleão – disse – Squealer, falando devagar e com firmeza -,
declarou categoricamente, categoricamente, camaradas!, que Bola-de-Neve era
agente de Jones desde o início…sim, desde o instante mesmo em que imaginamos
a Revolução. – Ah, isso é diferente! – respondeu Boxer – Se o Camarada Napoleão
diz, deve ter razão.

– Hum,
esse é o verdadeiro espírito, camarada! – exclamou Squealer. Porém, todos
notaram a olhadela feia que deu para Boxer, com seus olhos matreiros.

Depois
virou-se para ir embora, mas se deteve e acrescentou de maneira impressionante:

– Alerto a
todos os animais desta fazenda para que mantenham os olhos bem abertos. Temos
motivos para pensar que alguns dos agentes secretos de Bola-de-Neve estão
ocultos entre nós neste momento! Quatro dias depois, à tardinha, Napoleão
mandou que os bichos se reunissem no pátio. Quando todos haviam comparecido,
Napoleão emergiu do Casarão, ostentando ambas as suas medalhas (pois recentemente
conferira a si próprio a “Herói Animal, ~- Primeira Classe” e a
“Herói Animal, Segunda Classe”), com seus nove cachorros fazendo
demonstrações à sua, volta e soltando rosnados que causavam calafrios nas
espinhas dos animais. Estes se encolheram silenciosos em seus lugares,
parecendo pressentir que algo horrível estava por acontecer.

Napoleão
parou e dirigiu um olhar severo à assistência; depois deu um guincho
estridente. Imediatamente os cachorros avançaram, pegando quatro porcos pelas
orelhas e arrastando-os a guinchar, de dor e terror, até os pés de Napoleão. As
orelhas dos porcos sangraram e o gosto do sangue pareceu enlouquecer os
cachorros. Para surpresa de todos, três deles lançaram-se sobre Boxer. Este
reagiu com um pataço que pegou um dos cachorros ainda no ar, jogando-o ao solo.
O cachorro ganiu pedindo compaixão, e os outros dois fugiram, com o rabo entre
as pernas. Boxer olhou para Napoleão para saber se devia liquidar o cachorro ou
deixá-lo ir. Napoleão pareceu mudar de idéia e rispidamente ordenou a Boxer que
o soltasse, e ele ergueu a pata, deixando ir o cachorro ferido, uivando.

O tumulto
amainou. Os quatro porcos esperavam trêmulos, com a culpa desenhada em cada
linha do semblante. Então Napoleão concitou-os a confessar seus crimes. Eram os
mesmos que haviam protestado quando Napoleão abolira as Reuniões dominicais.
Sem mais demora, confessaram ter realizado contatos secretos com Bola-de-Neve
desde o dia de sua expulsão e haver colaborado com ele na destruição do moinho
de vento; confessaram ainda que também haviam-se comprometido com ele a
entregar a Granja dos Bichos a Frederick. Acrescentaram que Bola-de-Neve havia
admitido, na presença deles, ter sido durante muitos anos agente secreto de
Jones. Ao fim da confissão, os cachorros estraçalharam-lhes a Squealer e, com
voz terrível, Napoleão perguntou se algum outro animal tinha qualquer coisa a
confessar.

As três
galinhas que haviam liderado a tentativa de reação a respeito dos ovos
aproximaram-se e declararam que Bola-de-Neve lhes aparecera em sonho,
instigando-as a desobedecerem as ordens de Napoleão. Também foram degoladas. Aí
veio um ganso e confessou ter escondido seis espigas de milho durante a
colheita do ano anterior, comendo-as depois, à noite. Uma ovelha confessou ter
urinado no açude por insistência, disse, de Bola-de-Neve – e duas outras
ovelhas confessaram ter assassinado um velho bode, seguidor especialmente
devotado de Napoleão, fazendo-o correr em volta de uma fogueira quando ele,
coitado, estava com um ataque de asma. Foram mortas ali mesmo. E assim
prosseguiu a sessão de confissões e execuções, até haver um montão de cadáveres
aos pés de Napoleão e no ar um pesado cheiro da sangue, coisa que não sucedia
desde a expulsão de Jones.

Quando
tudo acabou, os bichos sobreviventes, com exceção dos porcos e dos cachorros,
retiraram-se furtivamente, trêmulos e angustiados. Não sabiam o que era mais
chocante, se a traição dos animais que se haviam acumpliciado com Bola-de-Neve,
ou se a cruel repressão recém-presenciada. Nos velhos tempos eram frequentes as
cenas sangrentas, igualmente horripilantes, entretanto agora lhes pareciam
ainda piores, uma vez que ocorriam entre eles mesmos. Desde o dia em que Jones
deixara a fazenda, até aquele dia, nenhum animal matara outro animal. Nem sequer
um rato fora morto. Haviam percorrido o caminho até a colina do moinho
inacabado e de comum acordo deitaram-se, procurando aquecer uns aos outros – Trevo,
Muriel, Benjamim, as vacas, as ovelhas e todo o bando de gansos e galinhas,
todos eles, afinal, exceto o gato, que desaparecera de repente, ao chegar a
ordem de Napoleão para a reunião. Durante algum tempo ninguém falou. Somente Boxer
permanecia de pé. Andava, impaciente, de um lado para o outro, batendo com a
longa cauda negra aos flancos e proferindo, de vez em quando, um gemido de
estupefação. Finalmente disse:

– Não
entendo. Nunca pensei que coisas assim pudessem acontecer em nossa granja. Deve
ser o resultado de alguma falha nossa. A solução que vejo é trabalhar mais
ainda. Daqui por diante, vou levantar uma hora mais cedo.

E saiu no
seu trote pesadão, rumo à pedreira. Lá chegando, juntou dois grandes montes de
pedras e arrastou-os até o moinho de vento, antes de recolher-se para dormir.

Os bichos
se amontoaram em volta de Trevo, em silêncio. O outeiro onde estavam dava-lhes
uma ampla vista da região. A maior parte da Granja dos Bichos abria-se ante
eles – a grande pastagem que se estendia até a estrada, o campo de feno, o
bosque, o açude, os campos arados onde estava o trigo novo, ainda fino e verde,
e os telhados vermelhos do casario da granja, onde a fumaça saía das chaminés.
Era, uma tarde clara de primavera. A grama e a sebe em brotação douravam-se aos
raios horizontais do sol. Jamais a granja lhes parecera – e com uma espécie de
surpresa lembraram-se de que tudo era deles, cada centímetro era de sua
propriedade – um lugar tão agradável. Olhando pela encosta da colina, Trevo
ficou com os olhos cheios de água. Se pudesse exprimir seus pensamentos, diria
que aquilo não era bem o que pretendiam ao se lançarem, anos atrás, ao trabalho
de derrubar o gênero humano. Aquelas cenas de terror e sangue não eram as que
previra naquela noite em que o velho Major, pela primeira vez, os instigara à
rebelião. Se ela própria pudesse imaginar o futuro, veria uma sociedade de
animais livres da fome e do chicote, todos iguais, cada qual trabalhando de
acordo com sua capacidade, os mais fortes protegendo os mais fracos, como ela
protegera aquela ninhada de patinhos na noite do discurso do Major. Em vez disso
– não podia compreender por que – haviam chegado a uma época em que ninguém
ousava dizer o que pensava, em que os cachorros rosnantes e malignos
perambulavam por toda parte e a gente era obrigada a ver camaradas feitos em
pedaços após confessarem os crimes mais horríveis. Não tinha em mente ideias de
rebelião ou desobediência. Sabia que, por piores que fossem, as coisas estavam
muito melhores do que nos tempos de Jones e que antes de mais nada era preciso
evitar o retorno dos seres humanos. Acontecesse o que acontecesse, ela
permaneceria fiel, trabalharia bastante, cumpriria as ordens recebidas e
aceitaria a liderança de Napoleão. Mesmo assim, não fora por aquilo que ela e
todos os animais haviam esperado e trabalhado. Não fora para aquilo que haviam
construído o moinho de vento e enfrentado as balas da espingarda de Jones. Tais
eram seus pensamentos, embora ela não tivesse palavras para expressá-los.

Por fim,
sentindo que assim substituiria as palavras que não conseguia encontrar,
começou a cantar Bichos da Inglaterra. Os outros animais, sentados à sua volta,
foram aderindo e cantaram a canção três vezes – bem na melodia, mas lenta e
tristemente como nunca haviam cantado antes.

Mal haviam
terminado de cantar a terceira vez, apareceu Squealer, seguido de dois
cachorros, com ar de quem tem coisa muito importante a dizer. Anunciou que, por
decreto especial do Camarada Napoleão, a canção Bichos da Inglaterra fora
abolida. Daquele momento em diante, era proibido cantá-la.

Os animais
foram colhidos de surpresa.

– Por quê?
– exclamou Muriel.

– Não há
necessidade, camaradas – respondeu Squealer inflexivelmente. – Bichos da
Inglaterra era a canção da Revolução. Mas a Revolução agora está concluída. A
execução dos traidores, hoje à tarde, foi o ato final. Em Bichos da Inglaterra
expressávamos nosso anseio por uma sociedade melhor, no porvir. Ora, essa
sociedade já foi instituída. Evidentemente, o hino não tem mais valor algum.

Mesmo
amedrontados como estavam, alguns animais poderiam ter protestado, se nesse
momento as ovelhas não enveredassem pelo “Quatro pernas bom, duas pernas
ruim”, que durou vários minutos, pondo fim à discussão.

E, assim,
não mais se ouviu Bichos da Inglaterra. Em seu lugar, Mínimo, o poeta,
compusera outra canção que começava dizendo: Granja dos Bichos, Granja dos
Bichos,

Jamais te farão mal!

e isto
passou a ser cantado todos os domingos após o hasteamento da bandeira. Mas, de
certa maneira, nem a letra nem a música jamais pareceram, aos animais, como as
de Bichos da Inglaterra.

 

CAPÍTULO VIII

Poucos
dias mais tarde, quando já amainara o terror causado pelas execuções, alguns
animais lembraram-se – ou julgaram lembrar-se – de que o Sexto Mandamento
rezava: “Nenhum animal matará outro animal.” Embora ninguém o
mencionasse ao alcance dos ouvidos dos porcos ou dos cachorros, parecia-lhes
que a matança ocorrida não se ajustava muito bem com isso. Trevo pediu a
Benjamim que lesse o Sexto Mandamento e quando Benjamim, como sempre, respondeu
que se recusava a envolver-se em tais assuntos, procurou Muriel. Esta leu para
ela o Sexto Mandamento. Dizia: “Nenhum animal matará outro animal, sem
motivo.” De uma ou outra maneira, as duas últimas palavras haviam escapado
à memória dos bichos. Mas estes viam agora que o Sexto Mandamento não fora
violado; sim, pois, evidentemente, havia boas razões para matar os traidores
que se haviam aliado a Bola-de-Neve.

Durante
aquele ano, os bichos trabalharam ainda mais que no ano anterior. A
reconstrução do moinho de vento, as paredes com o dobro de espessura, sua
conclusão no prazo marcado, juntamente com o trabalho normal da granja, era
tudo tremendamente laborioso. Momentos houve em que lhes pareceu que estavam
trabalhando mais do que no tempo de Jones, sem se alimentarem melhor. Nos
domingos de manhã, Squealer, segurando uma comprida folha de papel, lia, para
eles relações de estatísticas comprobatórias de que a produção de todas as
classes de gêneros alimentícios aumentara de duzentos, trezentos ou quinhentos
por cento, conforme o caso. Os bichos não viam razão para desacreditá-lo,
especialmente porque já não conseguiam lembrar-se com clareza das exatas
condições de antes da Revolução. Mesmo assim, dias havia em que prefeririam ter
menos estatísticas e mais comida.

Todas as
ordens, agora, eram transmitidas por meio de Squealer ou de outro porco.
Napoleão não era visto em público mais do que uma vez cada quinze dias. E,
quando aparecia, era acompanhado, não só pela sua matilha de cães, mas também
por um garnisé preto que marchava à sua frente, atuando como arauto, soltando
um cocoricó antes de cada fala de Napoleão. Mesmo na casa grande, diziam, ele
habitava um apartamento separado dos demais. Fazia as refeições sozinho, com
dois cachorros para servi-lo, e comia no serviço de jantar de porcelana da
cristaleira da sala. Anunciou-se também que a espingarda seria disparada
anualmente na data do aniversário de Napoleão, assim como nos outros dois
aniversários. – • –

Agora já
não mencionavam Napoleão como “Napoleão” simplesmente. Referiam-se a
ele de maneira formal, como “nosso Líder, o Camarada Napoleão”, e os
porcos gostavam de inventar para ele títulos tais como Pai de Todos os Bichos,
Terror da Humanidade, Protetor dos Apriscos, Amigo dos Pintainhos e assim por
diante. Squealer, em seus discursos, com lágrimas rolando pelo focinho, falava
na sabedoria de Napoleão, na bondade de seu coração, no profundo amor que
devotava aos animais de todos os lugares, mesmo – e especialmente – aos
infelizes animais que ainda viviam na ignorância e na escravidão, em outras
granjas. Tomara-se usual atribuir a Napoleão o crédito de todos os êxitos e de
todos os golpes de sorte. Ouvia-se, frequentemente, uma galinha comentar para
outra: “Sob a orientação de nosso Líder, o Camarada Napoleão, pus cinco
ovos em seis dias”; ou duas vacas, bebendo juntas no açude, exclamarem:
“Graças à liderança do Camarada Napoleão, que gosto bom tem esta
água!” O sentimento geral da granja era bem expresso num poema intitulado
“O Camarada Napoleão”, composto por Mínimo, que era assim:

Amigo dos órfãos!

Fonte da Felicidade! Senhor do balde de lavagem!
Oh, minh’alma arde

Em fogo quando eu te vejo

Assim, calmo e soberano,

Como o sol na imensidão,

Camarada Napoleão!

Tu és aquele que tudo dá, tudo

Quanto as pobres criaturas amam.

Barriga cheia duas vezes por dia, palha limpa onde rolar;

Todos os bichos, grandes, pequenos,

Dormem tranquilos, enquanto

Tu zelas por nós na solidão,

Camarada Napoleão!

Tivesse eu um leitão e

Antes mesmo que atingisse

O tamanho de um garrafão ou de um barril

Já teria aprendido a ser, eternamente,

Um teu fiel e leal seguidor. E o primeiro

Guincho que daria meu leitão. seria:

“Camarada Napoleão!”

Napoleão
aprovou esse poema e mandou escrevê-lo no grande celeiro, na parede oposta
àquela onde estavam os Sete Mandamentos. Sobre ele foi colocado um retrato de
Napoleão de perfil, feito por Squealer.

Enquanto
isso, por intermédio de Whymper, Napoleão envolvera-se em negociações
complicadíssimas com Frederick e Pilkington. As pilhas de madeira ainda não
estavam vendidas. Dentre os dois, Frederick era o mais ansioso por colocar-lhes
a mão, mas não oferecia um preço razoável. Ao mesmo tempo circulavam renovados
boatos de que Frederick e seus homens estavam planejando atacar a Granja dos
Bichos e destruir o moinho de vento, cuja construção lhe causara enorme ciúme.
Sabia-se que Bola-de-Neve ainda estava oculto na Granja Pinchfield. Em meio ao
verão correu entre os animais a notícia alarmante de que três galinhas se
haviam apresentado confessando que, instigadas por Bola-de-Neve, haviam
conspirado para assassinar Napoleão. Foram executadas imediatamente e se
tomaram novas medidas para a segurança de Napoleão. Quatro cachorros passaram a
montar guarda junto à sua cama, durante a noite, um em cada canto, e um jovem
porco de nome Rosito recebeu a tarefa de provar a comida, para evitar que ele
fosse envenenado.

Mais ou
menos por essa época, foi anunciado que Napoleão acertara vender as pilhas de
madeira ao Sr. Pilkington; ia assinar também um acordo regular para a troca de
certos produtos entre a Granja dos Bichos e Foxwood. As relações entre Napoleão
e Pilkington, embora mantidas apenas por intermédio de Whymper, eram agora
quase amistosas. Os bichos não confiavam em Pilkington, ser humano que era, mas
preferiam-no a Frederick, a quem tanto temiam quanto odiavam. Com o passar do
verão e estando o moinho de vento perto da conclusão, os boatos de um iminente
e traiçoeiro ataque tornavam-se cada vez mais fortes. Frederick, dizia-se,
tencionava trazer contra eles vinte homens armados de espingardas e já
subornara os magistrados e a polícia, de forma que, se conseguissem colocar as
mãos nas escrituras de propriedade da Granja dos Bichos, não surgisse problema
algum. Além disso, filtravam-se de Pinchfield terríveis histórias a respeito
das barbaridades a que Frederick submetia seus animais. Havia chicoteado um
cavalo velho até liquidá-lo, matava as vacas de fome, assassinara um cachorro
jogando-o numa fornalha, divertia-se de noite assistindo a brigas de galos, em
cujas esporas colocava pedaços de lâminas de barbear. O sangue dos animais
fervia de ódio quando ouviam contar o que se fazia contra seus camaradas e, às
vezes, alguns pediam que lhes fosse permitido sair para atacar Pinchfield,
expulsar os humanos e libertar os bichos. Porém, Squealer aconselhava-os a
evitar essas atitudes violentas e a confiar na estratégia do Camarada Napoleão.

Não
obstante, crescia o sentimento de ódio com relação a Frederick. Certo domingo
de manhã, Napoleão apareceu no celeiro e declarou que jamais, em tempo algum,
admitiria vender as pilhas de madeira a Frederick; considerava abaixo de sua
dignidade, disse, fazer negócios com patifes daquela espécie. Os pombos, que
continuavam a espalhar as mensagens da Revolução, foram proibidos de pôr os pés
em qualquer ponto de Foxwood e receberam ordem de modificar seu slogan de
“Morte à Humanidade” para “Morte a Frederick”. Entrementes,
no fim do verão, foi revelada outra das maquinações de Bola-de-Neve. A lavoura
de trigo estava cheia de joio e descobriu-se que Bola-de-Neve havia misturado
sementes de joio às do trigo. Um ganso que tomara parte no feito confessou sua
culpa a Squealer e suicidou-se comendo frutinhas de erva-moura. Os animais
ficaram sabendo também que Bola-de-Neve jamais havia recebido, como pensavam
muitos até então, a comenda de “Herói Animal, Primeira Classe”. Era
apenas uma lenda, criada algum tempo depois da Batalha do Estábulo pelo próprio
Bola-de-Neve. Muito ao contrário, em vez de condecorado, ele for a repreendido
por demonstrar covardia durante a batalha. Novamente, alguns bichos ouviram
isso com perplexidade, mas Squealer conseguiu convencê-los de que fora um lapso
de suas memórias. . .

No outono,
após um tremendo e exaustivo esforço, pois a colheita se fizera ao mesmo tempo,
o moinho de vento estava concluído. Restava ainda instalar a maquinaria e
Whymper andava tratando das compras, mas a estrutura já estava pronta. Contra
todas as dificuldades, a despeito da inexperiência, dos implementos primitivos,
da falta de sorte e da perfídia de Bola-de-Neve, a obra estava concluída no
exato dia marcado! Cansados, mas orgulhosos, os bichos deram voltas e mais
voltas em torno de sua obra-prima, que lhes parecia ainda mais linda do que da
primeira vez. Além-disso, as paredes tinham agora o dobro da espessura. Exceto
explosivos, nada poderia colocá-las abaixo. E ao pensarem nas modificações que
suas vidas sofreriam quando as pás estivessem girando e os dínamos em ação – ao
pensarem em tudo isso, o cansaço os abandonava e eles saltavam ao redor do
moinho de vento, dando gritos de alegria. Napoleão em pessoa, acompanhado dos
seus cachorros e do seu garnisé, veio inspecionar o trabalho concluído;
congratulou-se com os animais pelo feito e anunciou que o moinho se chamaria
“Moinho Napoleão”.

Dois dias
mais tarde, os animais foram convidados para uma reunião especial no celeiro. E
ficaram abobados de surpresa quando Napoleão comunicou ter vendido a madeira a
Frederick. No dia seguinte, os caminhões de Frederick chegariam para o
carregamento. Durante todo o período de aparente amizade com Pilkington,
Napoleão na realidade negociara um acordo secreto com Frederick.

Todas as
relações com Foxwood foram cortadas e enviadas a Pilkington mensagens
insultuosas. Os pombos receberam ordem de não pousar mais na Granja Pinchfield
e mudar o slogan de “Morte a Frederick” para “Morte a
Pilkington”. Ao mesmo tempo Napoleão assegurou a todos que as histórias
sobre o iminente ataque à Granja dos Bichos eram inteiramente falsas e que os
boatos a respeito da crueldade de Frederick para com os animais eram muito exagerados.
Todos esses boatos eram, provavelmente, coisa de Bola-de-Neve e seus agentes.
Parecia, agora, que Bola-de-Neve, na realidade, não estava escondido na Granja
Pinchfield; aliás nunca estivera lá, em toda sua vida, vivia (e cercado de
muito luxo, sabiam agora) em Foxwood, sendo, além do mais, pensionista de
Pilkington há muitos anos.

Os porcos
estavam quase em êxtase com a esperteza de Napoleão. Fingindo ser amigo de
Pilkington, obrigara Frederick a aumentar seu preço em doze libras. Porém, a
qualidade superior da mente de Napoleão, dizia Squealer, estava no fato de não
confiar em ninguém, nem mesmo em Frederick. Este quisera pagar a madeira com
uma coisa chamada cheque, que era, ao que diziam, um pedaço de papel com uma
promessa de pagamento escrita. Mas Napoleão era vivo demais para isso. Exigiu o
pagamento em notas autênticas de cinco libras, que deveriam ser entregues antes
da retirada da madeira. Frederick já pagara; e a soma era suficiente para
comprar a maquinaria do moinho de vento.

A madeira
já fora retirada com grande rapidez. Quando todo carregamento estava bem longe,
houve outra reunião especial no celeiro, para os bichos examinarem as notas de
Frederick. Sorrindo beatificamente e usando suas condecorações, Napoleão recos
tara-se numa cama de palha, com o dinheiro a seu lado, cuidadosamente empilhado
numa travessa da cozinha da casa-grande. Os animais passavam lentamente em fila
e cada um olhava o tempo que quisesse. Boxer espichou o focinho para cheirar as
notas e as delicadas coisinhas agitaram-se e farfalharam com sua respiração.

Três dias
mais tarde, houve um deus-nos-acuda. Whymper, branco como cera, chegou afobado
com sua bicicleta, deixou-a caída no pátio e correu para dentro da casa. Daí a
momentos ouviu-se um pavoroso rugido de raiva vindo do apartamento de Napoleão.
A notícia do que sucedera espalhou-se pela granja com a rapidez de um raio. As
notas eram falsas! Frederick levara a madeira de graça!

Napoleão
imediatamente chamou os animais e com um vozeirão de arrepiar proclamou a
sentença de morte contra Frederick. Ao ser capturado, disse, Frederick seria
queimado vivo. Ao mesmo tempo avisou que, depois daquela insídia, deveriam
esperar pelo pior. Frederick e seus homens poderiam desencadear a qualquer
momento o tão falado ataque. Foram colocadas sentinelas em todos os caminhos
que conduziam à granja. Além disso, quatro pombos foram mandados a Foxwood com
uma mensagem conciliadora, que levava as esperanças de restabelecer as boas
relações com Pilkington. –

Logo na
manhã seguinte sobreveio o ataque. Os animais estavam fazendo a refeição
matinal, quando as sentinelas chegaram correndo com a notícia de que Frederick
e seus seguidores já haviam atravessado a porteira das cinco barras.
Corajosamente, os bichos saíram ao seu encontro, mas desta vez não obteriam uma
vitória fácil como a da Batalha do Estábulo. Eram quinze homens, com meia dúzia
de espingardas, e abriram fogo tão logo chegaram a cinquenta metros. Os animais
não puderam fazer frente à saraivada de balas e, a despeito dos esforços de
Napoleão e Boxer para fazê-los voltar à luta, retrocederam. Muitos já estavam
feridos. Refugiaram-se no casario da granja e ficaram olhando prudentemente
pelos buracos. Toda pastagem, inclusive o moinho de vento, caíra nas mãos do
inimigo. Até Napoleão estava perplexo. Caminhava de um lado para o outro, sem
proferir palavra, com o rabo rígido e contraído. Olhares ansiosos eram lançados
na direção de Foxwood. Se Pilkington e seus homens os ajudassem, ainda poderiam
ganhar a parada. Porém, nesse momento, voltaram os quatro pombos enviados no
dia anterior, um deles trazendo um pedaço de papel da parte de Pilkington, com
as palavras “Bem feito” escritas a lápis.

Enquanto
isso, Frederick e seus homens se haviam detido junto ao moinho de vento. Os
animais continuavam observando e viram surgir um pé-de-cabra e um malho. Correu
um murmúrio de aflição. Iam botar abaixo o moinho de vento.


Impossível – exclamou Napoleão. – As paredes são grossas demais para isso. Nem
em uma semana conseguirão. Coragem, camaradas.

Benjamim,
porém, observava atentamente a atividade dos homens. Lentamente, com um ar de
quem se diverte, meneou o focinho.


Exatamente o que eu supunha – disse ele. Vocês não vêem o que eles estão
fazendo? Daqui a pouco vão colocar explosivos naquele buraco.

Aterrorizados,
os bichos esperaram. Era impossível abandonar a proteção das casas Daí a pouco
os homens saíram correndo em todas as direções. Ouviu-se, logo após, um
estrondo ensurdecedor. Os pombos revolutearam no ar e os animais todos, exceto
Napoleão, jogaram-se ao chão. Quando se levantaram outra vez, havia uma
gigantesca nuvem preta no lugar do moinho. Aos poucos, a brisa a dissolveu. O
moinho de vento havia desaparecido!

Aquilo
devolveu a coragem aos animais. O medo e o desânimo que sentiam foram
engolfados pelo tremendo ódio – que os dominou ante aquela vilania inominável.
Um brado de vingança subiu aos ares; sem esperar ordens, reuniram-se e, como um
só corpo, lançaram-se contra o inimigo. Desta vez não fugiram às balas cruéis
que caíam sobre eles, em saraivadas. Foi uma batalha horrível, selvagem. Os
homens atiraram várias vezes e quando os animais os alcançaram foi aquela
pancadaria em todas as direções, com porretes e tacões de bota. Morreram uma
vaca, três ovelhas e dois gansos, e quase todo mundo ficou ferido. Até
Napoleão, que dirigia as operações da retaguarda, teve a ponta do rabicho
arranhada por um balim. Mas aos homens não tocou melhor sorte. Três tiveram as
cabeças quebradas pelos golpes de Boxer; outro, a barriga furada pelo chifre de
uma vaca; outro viu suas calças quase arrancadas por Jessie e Bluebell. E
quando os nove cachorros da guarda pessoal de Napoleão, que este mandara
realizar um movimento por trás da sebe, apareceram de repente no flanco dos
humanos, latindo furiosamente, o pânico os dominou. Perceberam o perigo de
serem cercados. Frederick gritou a seus homens que se retirassem enquanto havia
passagem, e em seguida o inimigo fugia acovardado para salvar a vida. Os
animais perseguiram-nos até o fundo do campo, aplicando-lhes ainda os últimos
golpes ao atravessarem a sebe de pilriteiro.

Haviam
vencido, mas estavam feridos e sangravam. Lentamente, começaram a voltar para a
granja. A vista dos camaradas mortos, estirados sobre a relvas comoveu alguns
até as lágrimas. E por alguns minutos detiveram-se num triste silêncio no local
onde existira o moinho. Sim, ele sumira; fora-se quase todo o seu trabalho. Até
os alicerces estavam parcialmente destruídos. E desta vez para reconstruí-lo
não bastaria erguer de novo pedras caídas ali mesmo: estas também haviam
desaparecido. A força da explosão as arremessara a centenas de metros. Era como
se o moinho jamais houvesse existido.

Ao se
aproximarem do sítio, Squealer, que estivera inexplicavelmente ausente da luta,
veio-lhes ao encontro, sacudindo o rabicho e guinchando de satisfação. E os
animais ouviram, da direção da granja, o troar solene da espingarda.

– A troco
de quê está atirando aquela arma? – perguntou Boxer.

– Para
celebrar nossa vitória! – exclamou Squealer.

– Vitória.
Que vitória? – gritou Boxer. Tinha os joelhos sangrando, perdera uma ferradura,
rachara o casco e uma dúzia de chumbinhos haviam-se alojado em sua pata
traseira.

– Você
pergunta que vitória, camarada? Mas então não expulsamos o inimigo do nosso solo,
do solo sagrado da Granja dos Bichos?

– Mas eles
destruíram o moinho de vento. Nosso trabalho de dois anos!

– Que
importa? Construiremos outro moinho de vento. Construiremos meia dúzia de
moinhos de vento, se quisermos. Vocês não percebem, camaradas, que coisa
formidável realizamos? O inimigo ocupava este mesmo chão em que pisamos. E
agora, graças à liderança do Camarada Napoleão, nós o ganhamos centímetro por
centímetro!

– Quer
dizer, ganhamos o que já era nosso – retrucou Boxer.

– Essa foi
a nossa vitória – insistiu Squealer. –

Coxearam
até o pátio. As balas, sob o couro de Boxer, aferroavam dolorosamente. Ele
enxergava à sua frente a pesada tarefa de reconstruir o moinho de vento e,
mesmo em imaginação, já se atirava ao trabalho. Pela primeira vez, entretanto,
ocorreu-lhe a lembrança de que já tinha onze anos de idade e que talvez seus
músculos já não tivessem a mesma força de antes.

Porém,
quando os bichos viram tremular a bandeira verde, ouviram a arma atirar
novamente – sete tiros ao todo – e o discurso que Napoleão fez congratulando-se
com a atuação deles, pareceu-lhes que, afinal de contas, haviam obtido uma
grande vitória. Os animais caídos na batalha tiveram funerais solenes. Boxer e Trevo
puxaram o carroção que serviu de carro fúnebre e Napoleão abriu em pessoa o
cortejo. Dedicaram-se dois dias inteiros às celebrações. Houve canções,
discursos, novos disparos da espingarda e o prêmio especial de uma maçã para
cada animal, cinquenta gramas de milho para cada ave e três biscoitos para cada
cachorro. Proclamou-se que a batalha se chamaria Batalha do Moinho de Vento e
que Napoleão havia criado nova comenda, a Ordem da Bandeira Verde, que
conferira a si próprio. Em meio ao regozijo geral, o assunto das notas de
dinheiro foi esquecido.

Foi alguns
dias depois disso que os porcos encontraram, na adega da casa-grande, uma caixa
de uísque. Passara despercebida na época da ocupação. Naquela noite chegou da
casa o som de uma cantoria em que, para surpresa de todos, se ouviam trechos de
Bichos da Inglaterra. Mais ou menos às nove e meia da noite, Napoleão, usando
um velho chapéu coco de Jones, foi visto claramente emergir da porta traseira,
dar um rápido galope em volta do pátio e sumir pela porta outra vez. Na manhã
seguinte, um silêncio profundo tomara conta da casa. Ao que parecia, nenhum
porco estava de pé. Eram quase nove horas quando apareceu Squealer, vacilante e
deprimido, com os olhos embaçados o rabicho mole, com um aspecto seriamente
doentio. Chamou todo mundo e disse que tinha péssimas notícias para dar. O
Camarada Napoleão estava à morte!

Ouviu-se
um grito de lamento Colocaram palha fora da porta da casa e os animais entraram
pé ante pé. Com lágrimas nos olhos, perguntavam-se que seria deles se o Líder
faltasse. Correu o boato de que Bola-de-Neve afinal conseguira envenenar a
comida de Napoleão. As onze, Squealer saiu de novo para fazer outra
proclamação. Como último ato sobre a terra, o Camarada Napoleão expedira o
seguinte decreto: a ingestão de álcool seria punida com a morte.

Já à
noite, Napoleão parecia um pouco melhor e na manhã seguinte Squealer pôde
anunciar sua franca recuperação. Na tarde desse dia Napoleão voltou à atividade
e no dia seguinte soube-se que dera instruções a Whymper para comprar, em
Willingdon, alguns folhetos sobre fermentação e destilação. Uma semana depois,
Napoleão deu ordem que fosse arado o pequeno potreiro atrás do pomar,
anteriormente destinado ao repouso dos animais aposentados. Espalhou-se que a
pastagem estava cansada e necessitava de uma nova semeadura, porém logo se
soube que Napoleão pretendia semeá-la com cevada.

Mais ou
menos nessa época, aconteceu um incidente que nenhum dos bichos pôde
compreender. Certa noite, à meia-noite mais ou menos, ouviu-se um ruído de
queda no pátio e os animais correram de suas baias para ver o que sucedera. Era
uma noite de lua. Ao pé da parede do fundo do grande celeiro, na qual estavam
escritos os Sete Mandamentos, encontraram uma escada quebrada em dois pedaços. Squealer,
momentaneamente aturdido, jazia estatelado junto a ela, tendo ao lado uma
lanterna, uma brocha e uma lata de tinta branca, entornada. Os cachorros
fizeram imediatamente um círculo em torno de Squealer e escoltaram-no de volta
à casa-grande, tão logo ele pôde caminhar. Os bichos não conseguiam fazer
sequer idéia do que significava aquilo, exceto Benjamim, que torceu o focinho
com um ar de compreensão e pareceu entender o que se passara, mas nada disse.

Porém,
alguns dias mais tarde, Muriel, lendo os Sete Mandamentos, notou que havia
outro mandamento mal recordado pelos animais. Todos pensavam que o Quinto
Mandamento era “Nenhum animal beberá álcool”, mas haviam esquecido
duas palavras. Na realidade, o Mandamento dizia: “Nenhum animal beberá
álcool em excesso.”

 

CAPÍTULO IX

A
rachadura do casco de Boxer levou muito tempo para cicatrizar. Haviam iniciado
a reconstrução do moinho de vento no dia seguinte ao final das celebrações. Boxer
recusou-se a aceitar um só dia de dispensa e fez questão de honra em não dar
mostras da dor que sofria. À noite, admitia em particular para Trevo que o
casco realmente ø incomodava muito. Trevo tratava-o com infusões de ervas, que
preparava mastigando, e tanto ela como Benjamim diziam a Boxer que não
trabalhasse tanto Os pulmões de um cavalo não são de ferro, alertava ela. Boxer,
porém, não atendia. Explicava só tinha uma ambição – ver o moinho de vento
Concluído antes de aposentar-se.

De início,
quando as leis da Granja dos Bichos foram elaboradas, fixara-se a idade de
aposentadoria em doze anos para os cavalos e os porcos, catorze para as vacas,
nove para os cachorros, sete para as ovelhas e cinco para as galinhas e os
gansos. Pensões liberais se estabeleceram para os animais idosos. Até então,
nenhum bicho se aposentara, mas ultimamente o assunto vinha sendo objeto de
frequentes conversas. Como o potreiro atrás do pomar fora semeado com cevada,
dizia-se agora que um canto da pastagem grande seria cercado e reservado para
os velhos. Para os cavalos, ao que se falava, a pensão seria de dois quilos e
meio de milho por dia e, no inverno, oito quilos de feno, mais uma cenoura, ou
talvez uma maçã, nos feriados. O décimo segundo aniversário de Boxer seria no
fim do verão do ano seguinte.

A vida ia
dura. O inverno foi tão frio quanto o anterior, e a quantidade de alimento
ainda menor. Novamente foram reduzidas todas as rações, exceto as dos porcos e
dos cachorros. Uma igualdade por demais rígida em matéria de rações, explicou Squealer,
seria contrária ao espírito do Animalismo. De qualquer maneira, não teve
dificuldade em provar aos outros bichos que na realidade eles não sentiam falta
de comida, a despeito das aparências. Naquele momento, de fato, fora necessário
realizar um reajustamento das rações (Squealer sempre se referia a
“reajustamentos”, nunca a “reduções”), mas, em comparação
com o tempo de Jones, a diferença para melhor era enorme. Lendo os dados
estatísticos em voz aguda e rápida, provou-lhes, com riqueza de detalhes, que
eles recebiam mais aveia, mais feno e mais do que na época de Jones; que
trabalhavam muito menos, que a água potável era de melhor qualidade, que viviam
mais tempo, que havia mais palha nas baias e que as pulgas já não incomodavam
tanto. Os animais acreditavam em cada palavra. Para falar a verdade, tanto
Jones como tudo quanto ele representava já estavam quase apagados de suas
memórias. Sabiam que a vida estava difícil e cheia de privações, que andavam
constantemente com frio e com fome, e trabalhando sempre que não estavam
dormindo. Mas, sem dúvida, antigamente fora muito pior. Gostavam de acreditar
nisso. Além do mais, naqueles dias eram escravos, ao passo que, agora, eram
livres; e tudo isso, afinal, fazia diferença, conforme Squealer sempre dizia.

Havia
agora muito mais bocas a alimentar. No outono as quatro porcas haviam dado cria
quase simultaneamente – trinta e um leitõezinhos ao todo. Os leitões eram
malhados, e, sendo Napoleão o único cachaço da fazenda, era fácil adivinhar sua
linguagem. Foi proclamado que, mais tarde, quando comprassem tábuas e tijolos,
seria construída uma escola no jardim da casa. Por enquanto, os leitões seriam
instruídos pelo próprio Napoleão, na cozinha. Faziam seus exercícios no jardim
e eram aconselhados a não brincar com os filhotes dos outros animais. Mais ou
menos por essa época, estabeleceu-se que, quando um porco e outro animal se
encontrassem numa trilha, o outro animal cederia a passagem; e também que os
porcos, qualquer que fosse seu grau hierárquico teriam o direito de usar fitas
vermelhas no rabicho aos domingos.

A granja
tivera um ano bem sucedido, mas faltava dinheiro. Era necessário comprar
tijolos, areia e cal para a escola, e economizar outra vez para a maquinaria do
moinho de vento. Além disso, havia ainda necessidade de querosene para os
lampiões e velas para a casa, açúcar para a mesa de Napoleão(ele o proibira
para os outros porcos, dizendo que engordava), todo o suprimento normal de
ferramentas, pregos, carvão, arame, ferro velho, e biscoitos para cachorros.
Venderam uma meda de feno e parte da colheita de batatas, e o contrato de
fornecimento de ovos foi aumentado para seiscentos por semana, de forma que as
galinhas naquele ano mal puderam chocar um número de ovos, que as mantivesse no
mesmo nível. As rações, já reduzidas em dezembro, sofreram nova redução em
fevereiro, e foram proibidos os lampiões nos estábulos, a fim de economizar
querosene. Os porcos, entretanto, pareciam bastante bem, pelo menos ganhavam
sempre alguns quilinhos.

Uma tarde,
em fins de fevereiro, correu pelo pátio, proveniente da cozinha, um cheiro
gostoso, suculento, quentinho, como nunca os animais haviam sentido antes.
Alguém disse que era cheiro de cevada cozida. Os bichos farejaram avidamente o
ar e ficaram a pensar se não seria algum fervido para o jantar. Mas não apareceu
fervido nenhum no jantar e no domingo seguinte foi comunicado que toda a cevada
passaria a ser reservada para os porcos. O campinho junto ao pomar já fora
semeado com cevada e logo transpirou a notícia de que cada porco estava
recebendo diariamente, a ração de meia garrafa de cerveja, sendo que Napoleão
recebia meio galão e era servido na terrina da baixela de porcelana.

Mas se
havia grandes agruras a arrostar, estas eram compensadas pelo fato de a vida
agora ter muito mais dignidade. Havia mais canções, mais discursos, mais
desfiles. Napoleão determinara que uma vez por semana houvesse uma coisa
chamada Manifestação Espontânea, cuja finalidade era comemorar as lutas e
triunfos da Granja dos Bichos. À hora marcada os animais deviam abandonar o
trabalho e desfilar pelo terreno da granja, em formação militar, os porcos à
frente, depois os cavalos, depois as vacas, depois as ovelhas e, por último, as
aves. Os cachorros enquadravam a formatura e à testa marchava o garnisé preto
de Napoleão. Boxer e Trevo conduziam sempre a bandeira verde com o desenho do
chifre e da ferradura e a legenda “Viva o Camarada Napoleão”. A
seguir havia recitação de poemas compostos em honra de Napoleão, um discurso de
Squealer dando detalhes dos últimos aumentos na produção de gêneros, e no
momento exato a espingarda dava um tiro. Quem mais gostava das Manifestações
Espontâneas eram as ovelhas, e se alguém se queixava (havia quem o fizesse,
quando os porcos ou os cachorros não andavam por perto) de que aquele negócio
era uma perda de tempo e obrigava a ficar bom pedaço no frio, as ovelhas
invariavelmente calavam o insatisfeito com um ensurdecedor balido de
“Quatro pernas bom, duas pernas ruim!” De modo geral, porém, os
bichos gostavam daquelas celebrações. Achavam confortador serem relembrados de
que, afinal, não tinham patrões e todo trabalho que enfrentavam era em seu
próprio benefício. E assim, à custa das cantorias, dos desfiles, das
estatísticas de Squealer, do estrondo da espingarda, do cocoricó do garnisé e
do drapejar da bandeira, conseguiam esquecer que estavam de barriga vazia, pelo
menos a maior parte do tempo.

Em abril,
a Granja dos Bichos foi proclamada República e houve necessidade de eleger um
Presidente. Apareceu um só candidato, Napoleão, que foi eleito por unanimidade.
No mesmo dia notificou-se a descoberta de novos documentos, que revelavam mais
detalhes sobre a cumplicidade de Bola-de-Neve com Jones. Soube-se que
Bola-de-Neve não apenas tentara perder a Batalha do Estábulo, por meio de um
estratagema, conforme os animais já tinham tomado conhecimento, mas lutara
abertamente ao lado de Jones. Na realidade, fora ele o verdadeiro líder das
forças humanas e jogara-se à batalha com as palavras “Viva a
Humanidade!” nos lábios. Os ferimentos em suas costas, que alguns poucos
bichos lembravam-se de ter visto, haviam sido causados pelos dentes de
Napoleão.

Em meio ao
verão, Moisés, o corvo, reapareceu inesperadamente na granja, após uma ausência
de vários anos. Continuava o mesmo, não trabalhava e contava as histórias de sempre
a respeito da Montanha de Açúcar. Encarapitava-se num toco de árvore e arengava
durante horas para quem quisesse ouvir:

– Lá em
cima, camaradas – dizia ele, solenemente, apontando o céu com a bicanca – lá em
cima, pouco além daquela nuvem preta, ali está ela, a Montanha de Açúcar, o
lugar feliz onde nós, pobres animais, descansaremos para sempre desta nossa
vida de trabalho. Chegava a afirmar haver estado lá, num dos vôos mais altos, e
ter visto os infindos campos de trevo e os bolos de linhaça e o açúcar
crescendo nas sebes. Muitos bichos acreditavam. Suas vidas atualmente eram de
fome e de trabalho, raciocinavam; era justo que lhes estivesse reservado um
mundo melhor, mais além? Coisa difícil de determinar era a atitude dos porcos,
com relação a Moisés. Eles afirmavam peremptoriamente que as histórias sobre a
Montanha de Açúcar não passavam de pura mentira; no entanto, deixavam-no
permanecer na granja, sem trabalhar, e ainda por cima com direito a um copo de
cerveja por dia.

Depois que
o casco ficou bom, Boxer trabalhou mais violentamente do que nunca. Aliás,
naquele ano todos os bichos trabalharam feito escravos. Além da faina normal na
fazenda e da reconstrução do moinho de vento, ainda houve a escola dos
porquinhos, iniciada em março. Às vezes tornava-se difícil aguentar as longas
horas sem comer, mas Boxer nunca fraquejou. Em nada do que dizia ou fazia era
possível perceber qualquer sinal de que sua energia já não era a mesma de
antigamente. Apenas sua aparência estava um pouco modificada; o pêlo já não era
tão brilhante e as ancas pareciam haver murchado. Boxer vai-se recuperar quando
crescer o capim da primavera, diziam os outros – porém a primavera chegou e Boxer
não mudou de aspecto. Por vezes, na rampa da pedreira, quando enrijecia a
musculatura contra o peso de um enorme pedregulho, tinha-se a impressão de que
apenas a vontade o mantinha de pé. Nesses momentos seus lábios formavam
claramente as palavras “Trabalharei mais ainda”; não emitia qualquer
som. Novamente Trevo e Benjamim o aconselharam, porém ele não deu atenção. Seu
décimo segundo aniversário se aproximava.

Não se
importava com o que sucedesse, desde que pudesse acumular uma boa quantidade de
pedras antes de aposentar-se.

Certa
noite, no verão, correu a súbita notícia de que algo acontecera a Boxer, que
havia saído sozinho para puxar uns montes de pedra até o moinho. E era verdade.
Poucos minutos depois chegaram dois pombos afobados:

– Boxer
está caído! – Não consegue levantar-se!

Metade dos
animais da granja correu para a colina do moinho de vento. Lá estava Boxer,
deitado entre os paus da carroça, com o pescoço esticado e sem poder sequer
levantar a cabeça. Corria-lhe da boca um filete de sangue. Trevo ajoelhou-se a
seu lado.

– Boxer –
chamou ela -, você está bem?

– É o meu
pulmão – disse ele quase sem voz. – Não tem importância. Vocês terminarão o
moinho sem mim. Já deixei bastante pedra aí, De qualquer maneira só me restava
um mês de atividade. Para falar a verdade, tenho estado à espera desta hora. E,
como Benjamim também está ficando velho talvez o deixem aposentar-se para me
fazer companhia.


Precisamos de socorro imediatamente – gritou Trevo. – Alguém vá correndo Contar
a Squealer o que aconteceu.

Os animais
todos correram à casa-grande para dar a notícia a Squealer. Só ficaram Trevo e
Benjamim, que se deitou ao lado de Boxer e, sem dizer uma palavra, ficou a
espantar-lhes as moscas com o rabo comprido. Mais ou menos um quarto de hora
depois, Squealer apareceu, cheio de simpatia e preocupação. Disse que o Camarada
Napoleão tomara conhecimento, abaladíssimo, do mal que sucedera a um dos
trabalhadores mais leais da granja, e já estava tratando de enviar Boxer para
tratar-se no hospital em Willingdon. Os animais sentiram certa inquietação (com
exceção de Mollie e Bola-de-Neve, nenhum deles jamais saíra da granja) e não
gostaram da idéia de seu camarada ir parar nas mãos dos humanos. Entretanto Squealer
os convenceu, facilmente, de que o cirurgião veterinário de Willingdon poderia
tratar do caso de Boxer muito melhor do que eles, na granja. Cerca de meia hora
mais tarde, quando Boxer já se recuperara um pouco, conseguiram pô-lo de pé e
ele cambaleou de volta até a baia, onde Trevo e Benjamim lhe haviam preparado
uma boa cama de palha.

Durante os
dois dias seguintes Boxer permaneceu na baia. Os porcos enviaram uma garrafa
contendo um remédio cor-de-rosa, encontrado no armarinho do banheiro, e Trevo
servia-o a Boxer duas vezes ao dia, após as refeições. À noite, Trevo
permanecia a seu lado, conversando com ele, enquanto Benjamim afastava as
moscas. Boxer afirmava não estar triste com o acontecido. Caso se recuperasse
bem, poderia viver mais três anos, e já imaginava os dias tranquilos que
passaria no rincão da pastagem. Seria a primeira vez que lhe sobraria tempo de
folga para estudar e melhorar seus conhecimentos. Pretendia dedicar o resto de
sua existência ao aprendizado das vinte e duas letras restantes do alfabeto.

Contudo,
Benjamim e Trevo só podiam estar a seu lado após as horas de trabalho, e foi
durante o dia que o carroção veio buscá-lo. Os animais estavam na lavoura
semeando nabos, sob a supervisão de um porco, e ficaram admirados ao verem
Benjamim a galope, vindo da direção das casas da granja ao encontro deles,
zurrando feito louco. Era a primeira vez na vida que viam Benjamim excitado –
para falar a verdade era a primeira vez que alguém o via galopar.


Depressa, depressa! – gritou. – Venham depressa! Estão levando Boxer! – Sem
esperar ordens do porco, largaram o trabalho e correram de volta para as casas.
Realmente, lá estava um carroção fechado, puxado por dois cavalos, com um
letreiro no lado e um homem de chapéu-coco sentado na boléia. A baia de Boxer
estava vazia.

Os bichos
se apinharam ao redor do carroção.

– Até
breve, Boxer! gritaram. – Até breve!

– Idiotas!
Idiotas! – exclamou Benjamim corcoveando em volta deles e ferindo o chão com os
cascos pequeninos. – Imbecis! Não veem o que está escrito ali ao lado?

Isso fez
calar os animais. Muriel começou a soletrar as palavras, mas Benjamim
empurrou-a para um lado e leu em meio a grande silêncio:


“Alfred Simmonds, Matadouro de Cavalos, Fabricante de Cola, Willingdon.
Peles e Farinha de Ossos. Fornece para Canis.” Será que vocês não
percebem? Vão levar Boxer para o carniceiro! Houve um grito de horror dos
bichos. Nesse momento o homem da boleia estalou o chicote e os cavalos saíram a
trote vivo, abandonando o pátio. Os bichos correram atrás, gritando com todas
as forças. Trevo abriu caminho até a frente. O carroção tomou velocidade. Trevo
tentou fazer que suas pernas grossas galopassem e conseguiu um trotezinho.

– Boxer! –
gritou ela. – Boxer! Boxer! Boxer! – Nesse exato momento, como se tivesse
ouvido a barulheira de fora, apareceu na janelinha de trás da carroça a cara de
Boxer, com sua mancha branca no focinho.

– Boxer! –
berrou Trevo desesperadamente. – Boxer! Saia daí! Saia depressa! Estão
levando-o para a morte!

Os bichos
gritavam a um tempo:

– Saia
daí, Boxer, saia daí! – Todavia o carroção tomava velocidade e começava a
distanciar-se. Não podiam saber se Boxer havia entendido Trevo. Logo depois,
entretanto, sua cara desapareceu da janela e ouviu-se o barulho da tremenda
pancadaria de seus cascos no interior do carroção. Ele tentava livrar-se de
qualquer maneira. Tempo houve em que com alguns coices Boxer transformaria
aquela carroça num monte de lenha. Mas, ai! sua força o abandonara; em poucos
instantes, o som das batidas diminuiu e morreu. Desesperados, os animais
suplicaram aos dois cavalos que puxavam o carroção para que se detivessem.


Camaradas! Camaradas! – gritavam eles. Não levem um irmão de vocês para essa
morte! – Porém os brutos estúpidos, ignorantes demais para entenderem o que
acontecia, limitaram-se a murchar as orelhas e apertar o passo. A cara de Boxer
não reapareceu mais na janela. Alguém pensou em correr à frente e fechar a
porteira das cinco barras, mas era tarde demais, pois logo o carroção
atravessava a porteira e desaparecia rapidamente na estrada. Boxer nunca mais
foi visto.

Três dias
mais tarde, chegou a notícia de que havia falecido no hospital veterinário de
Willingdon, a despeito de ter recebido todos os cuidados que um cavalo merece. Squealer
veio dar a notícia. Presenciara, disse, os últimos momentos de Boxer.

– Foi a
cena mais comovente de minha vida! – disse Squealer, erguendo a pata e deixando
rolar uma lágrima. – Eu estava à sua cabeceira no instante final. Quase sem
poder falar, ele sussurrou ao meu ouvido que seu único pesar era morrer antes
de ver terminado o moinho de vento. “Para a frente, camaradas! Viva a
Granja dos Bichos! Viva o Camarada Napoleão! Avante em nome da Revolução!
Napoleão tem sempre razão.” Estas foram suas últimas palavras, camaradas.

– A
seguir, os modos de Squealer se transformaram. Caiu em silêncio por um momento
e seus olhinhos deram miradas suspeitosas para os lados antes de prosseguir.

Chegara a
seu conhecimento, disse ele, que um boato idiota e perverso circulara por
ocasião da baixa de Boxer. Alguns animais haviam notado que na carroça que
transportou Boxer estava escrito “Matadouro de Cavalos”, chegando à
conclusão de que Boxer estava sendo mandado para o carniceiro. Era quase
inacreditável que um bicho pudesse ser tão estúpido. Com certeza, gritou ele
indignado, sacudindo o rabicho e dando pulinhos, com certeza todos conheciam
seu amado Líder, o Camarada Napoleão não? A explicação era muito simples. A
carroça pertencera, antes, ao carniceiro, depois fora comprado pelo cirurgião
veterinário, que ainda não apagara letreiro. Eis como se dera o engano.

Os bichos
ficaram imensamente aliviados com isso. E quando Squealer continuou dando
detalhes sobre a câmara mortuária de Boxer, o extraordinário cuidado que
recebeu e os caríssimos remédios que Napoleão mandara comprar sem olhar o
preço, desapareceram suas últimas dúvidas e a tristeza pelo camarada morto foi
mitigada pela certeza de que, pelo menos, morrera feliz.

O próprio
Napoleão apareceu no encontro do domingo seguinte e pronunciou uma singela
oração. em memória de Boxer. Não fora possível, explicou, trazer de volta os
despojos do lamentado camarada para o enterro, porém dera ordem para que se
confeccionasse uma grande coroa com louros do jardim e a enviara para ser
colocada no túmulo de Boxer. E anunciou que, alguns dias depois, os porcos
pretendiam realizar um banquete em memória de Boxer.

Napoleão
finalizou seu discurso relembrando as duas máximas prediletas de Boxer.
“Trabalharei mais ainda e “O Camarada Napoleão tem sempre
razão”, máximas, disse, que cada animal deveria adotar para si próprio. –

No dia
marcado para o banquete, chegou de Willingdon a carroça de um armazém e
desembarcou na casa-grande um engradado de madeira. Naquela noite ouviu-se uma
alta cantoria seguida de algo que parecia uma discussão violenta e que terminou
cerca das onze horas com uma tremenda barulheira de vidros quebrados. No dia
seguinte ninguém se levantou na casa-grande, até o meio-dia, e correu uma
conversa de que os porcos haviam conseguido, não se sabia de que maneira,
dinheiro para adquirir outra caixa de uísque.

 

CAPÍTULO X

Passaram-se
anos. As estações vinham, passavam e a curta vida dos bichos se consumia. Tempo
chegou em que ninguém mais se lembrava de antes da Revolução, com exceção de Trevo,
Benjamim, o corvo Moisés e alguns porcos.

Muriel
morreu; Bluebell, Jessie e Pincher morreram. Jones também morreu num asilo de
alcoólatras, noutra cidade. Bola-de-Neve fora esquecido. Boxer também, exceto
pelos poucos que o haviam conhecido. Trevo era agora uma égua velha,
corpulenta, com os olhos atacados pela catarata. Já ultrapassara de dois anos a
idade de aposentadoria. Aquela história de reservar um pedaço de campo para os
animais idosos não era mais nem mencionada. Napoleão tornara-se um cachaço
madurão de uns cento e cinquenta quilos. Squealer estava tão gordo que mal
conseguia abrir os olhos. Somente Benjamim continuava o mesmo, apenas de
focinho um pouco mais grisalho e, desde a morte de Boxer, mais rabugento e
taciturno do que nunca.

Agora
existiam muito mais criaturas na granja embora o índice de crescimento não
fosse aquele que esperavam nos primeiros anos. Haviam nascido muitos animais,
para os quais a Revolução não passava de uma obscura tradição transmitida
verbalmente, e outros que nem sequer tinham ouvido falar coisa nenhuma a
respeito. A granja contava agora com três cavalos além de Trevo. Eram bichos
formidáveis, trabalhadores incansáveis, bons camaradas mas muito estúpidos.
Nenhum se mostrou capaz de aprender o alfabeto além da letra B. Aceitavam tudo
quanto lhes era dito a respeito da Revolução e dos princípios do Animalismo,
especialmente por Trevo a quem dedicavam um respeito filial, mas era duvidoso
que entendessem lá grande coisa.

A granja
prosperava e estava mais bem organizada; fora até aumentada pela compra de dois
tratos de terra ao Sr. Pilkington. O moinho de vento afinal, fora concluído com
êxito e a granja possuía uma debulhadeira e um elevador de feno próprio, e
construções novas se haviam erguido. Whymper comprara uma aranha. O moinho de
vento, entretanto, não era usado para gerar energia elétrica. Usavam-no para
moer cereais, coisa que dava bom dinheiro. Os animais estavam a braços com a
construção de outro moinho de vento; quando este estivesse concluído, dizia-se,
seriam instalados os dínamos. Mas naquele luxo de que Bola-de-Neve lhes falara
certa vez, baias com luz elétrica e água quente e fria, e na semana de três
dias, não se falava mais. Napoleão denunciara tais ideias como contrárias aos
princípios do Animalismo. A verdadeira felicidade, dizia ele, estava em
trabalhar bastante e viver frugalmente.

De certa
maneira, parecia como se a granja se houvesse tornado rica sem que nenhum
animal tivesse enriquecido – exceto, é claro, os porcos e os cachorros. Talvez
isso acontecesse por haver tantos porcos e tantos cachorros. Não que esses
animais não trabalhassem, à sua moda. Squealer nunca se cansava de explicar que
havia um trabalho insano na ação de supervisionar e organizar a granja. Grande
parte desse trabalho era de natureza tal que estava além da ignorância dos
bichos. Tentando explicar, Squealer dizia-lhes que os porcos despendiam
diariamente enormes esforços com coisas misteriosas chamadas
“arquivos”, “relatórios”, “minutas” e
“memorandos”. Eram grandes folhas de papel que precisavam ser
miudamente cobertas com escritas e, logo depois, queimadas no forno. Era tudo
da mais alta importância para o bem-estar da granja, dizia Squealer. A verdade
é que nem os porcos nem os cachorros produziam um só grama de alimento com o
seu trabalho; e havia um bocado deles, com o apetite sempre em forma.

Quanto aos
outros, sua vida, ao que sabiam, continuava a mesma. Geralmente andavam com
fome, dormiam em camas de palha, bebiam égua no açude e trabalhavam no campo; no
inverno, sofriam com o frio; no verão, com as moscas. De vez em quando, os mais
idosos rebuscavam a apagada memória e tentavam determinar se nos primeiros dias
da Revolução, logo após a expulsão de Jones, as coisas haviam sido melhores ou
piores do que agora. Não Conseguiam lembrar-se. Nada havia com que estabelecer
comparação: não tinham em que basear-se, exceto as estatísticas de Squealer,
que invariavelmente provavam estar tudo cada vez melhor. Os bichos consideravam
o problema insolúvel; de qualquer maneira, dispunham de muito pouco tempo para
essas especulações. Apenas o velho Benjamim afirmava lembrar-se de cada detalhe
de sua longa vida e saber que as coisas nunca haviam estado e nunca haveriam de
ficar nem muito melhor nem muito pior, sendo a fome, o cansaço e a decepção,
assim dizia, a lei imutável da vida. – –

Mesmo
assim os bichos nunca perdiam a esperança. Mais ainda, jamais lhes faltava, nem
por instantes, o sentimento de honra pelo privilégio de serem membros da Granja
dos Bichos que continuava ser a única em todo o condado – em toda a Inglaterra!
– de propriedade dos animais e por eles administrada. Nenhum deles, nem mesmo
os mais moços, nem mesmo os chegados de outras granjas, situadas algumas a dez
ou vinte quilômetros de distância, jamais deixaram de maravilhar-se com isto. E
quando ouviam o tiro da espingarda e viam a bandeira flutuando no topo do
mastro, seu coração se inchava de orgulho e a conversa passava a girar em torno
dos históricos dias de antanho, da expulsão de Jones, da inscrição dos Sete
Mandamentos, das grandes batalhas em que os invasores humanos haviam sido
derrotados. Nenhum dos antigos sonhos fora abandonado. A República dos Bichos,
que o velho Major havia previsto, quando os verdes campos da Inglaterra não
mais seriam pisados pelos pés humanos, era coisa em que ainda acreditavam. O
dia havia de chegar. Podia ser mais cedo ou mais tarde, talvez não acontecesse
durante a vida de qualquer dos animais de então, mas havia de chegar. Até a
melodia de Bichos da Inglaterra talvez fosse cantarolada secretamente aqui e
ali; de qualquer maneira, a verdade é que cada bicho da granja a conhecia,
embora nenhum tivesse coragem de cantá-la em voz alta. Talvez fosse verdade que
a vida era difícil e que nem todas as suas esperanças se haviam concretizado;
mas tinham a consciência de não serem iguais aos outros animais. Se tinham
fome, não era por alimentarem alguns tirânicos seres humanos; se trabalhavam
arduamente, pelo menos trabalhavam em seu próprio benefício. Nenhuma criatura
dentre eles andava sobre duas pernas. Nenhuma criatura era “dona” de
outra. Todos os bichos eram iguais.

Certo dia,
no início do verão, Squealer mandou que as ovelhas o seguissem e levou-as para
um campo situado nos confins da granja, que fora tomado de brotação de vidoeiro.
As ovelhas passaram o dia inteiro roendo as brotações, sob a supervisão de Squealer.
À noite, ele regressou à granja, mas, como disse às ovelhas que permanecessem
lá, terminaram ficando a semana toda durante a qual os outros bichos nem as
enxergavam. Squealer passava com elas a maior parte do dia. Estava, explicou,
ensinando-lhes uma nova canção para a qual precisava de certo sigilo.

Foi logo
após o retorno das ovelhas, numa noite agradável, quando os bichos haviam
terminado seu trabalho e regressavam à granja, que se ouviu, vindo do pátio, um
relinchar horripilante. Arrepiados os animais estacaram. Era a voz de Trevo.
Ela relinchou outra vez e os bichos dispararam a galope para o pátio. Viram,
então, o que ela havia visto.

Um porco
caminhava sobre as duas patas traseiras.

Sim, era Squealer.
Um tanto desajeitado devido à falta de prática em manter seu volume naquela
posição, mas em perfeito equilíbrio, passeava pelo pátio. Momentos depois, saiu
pela porta da casa uma comprida coluna de porcos, todos caminhando sobre as
patas de trás. Uns melhor que os outros, um ou dois até meio desequilibrados e
dando a impressão de que apreciariam o apoio de uma bengala, mas todos fizeram
a volta ao pátio bastante bem. Finalmente houve um alarido dos cachorros, ouviu-se
o cocoricó esganiçado do garnisé e emergiu Napoleão, majestosamente,
desempenado, largando olhares arrogantes para os lados, com os cachorros
brincando à sua volta.

Trazia nas
mãos um chicote.

Houve um
silêncio mortal. Surpresos, aterrorizados, uns junto aos outros, os bichos
olhavam a fila de porcos marchar lentamente em redor do pátio. Pareceu-lhes
enxergar o mundo de cabeça para baixo. Então veio um momento em que, passado o
choque e a despeito de tudo – a despeito do terror dos cachorros e do hábito,
arraigado após tantos anos, de nunca se queixarem, nunca criticarem, pouco
importava o que sucedesse -, poderiam lançar uma palavra de protesto. Porém,
exatamente nesse instante, como se obedecessem a um sinal combinado, as
ovelhas. em uníssono, estrondaram num espetacular balido:

– Quatro
pernas bom, duas pernas melhor! Quatro pernas bom, duas pernas melhor! Quatro
pernas bom, duas pernas melhor!

Baliram
durante cinco minutos sem cessar. E, quando se calaram, fora-se a oportunidade
da palavra de protesto, pois os porcos já haviam voltado para dentro da casa.

Benjamim
sentiu um focinho esfregar-lhe o ombro. Era Trevo. Seus olhos pareciam mais
encobertos que nunca. Sem dizer palavra, ela o puxou delicadamente pela crina,
levando-o até o fundo do grande celeiro, onde estavam escritos os Sete
Mandamentos. Durante um ou dois minutos ficaram olhando a parede alcatroada com
o grande letreiro branco.

Minha
vista está falhando – disse ela finalmente. – Mesmo quando eu era moça não
conseguia ler o que estava escrito aí. Mas parece-me agora que parede está meio
diferente. Os Sete Mandamentos são os mesmos de sempre, Benjamim?

Pela
primeira vez, Benjamim consentiu em quebrar sua norma, e leu para ela o que
estava escrito na parede. Nada havia, agora, senão um único Mandamento dizendo:

TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS

MAS ALGUNS ANIMAIS SÃO MAIS

IGUAIS DO QUE OS OUTROS

 

Depois
disso, não foi de estranhar que, no dia seguinte, os porcos que supervisionavam
o trabalho da granja andassem com chicotes nas patas. Nem estranharam ao saber
que os porcos haviam comprado um aparelho de rádio, que estavam tratando da
instalação de um telefone e da assinatura de jornais e revistas. Não
estranharam quando Napoleão foi visto passear nos jardins da casa com um
cachimbo na mão, nem quando os porcos se assenhorearam das roupas do Sr. Jones
e passaram a usá-las, sendo que Napoleão apresentou-se vestindo um casaco
negro, calças de caçador e perneiras de couro, enquanto sua porca favorita
surgia com o vestido de seda que a Sra. Jones usava aos domingos.

Uma semana
mais tarde, após o meio-dia, apareceram numerosas charretes subindo rumo à
granja. Uma representação de granjeiros vizinhos fora convidada a realizar uma
visita de inspeção. Toda granja lhes foi mostrada e eles expressaram admiração
por tudo quanto viram, especialmente pelo moinho de vento. Os bichos estavam
limpando a lavoura de nabos. Trabalhavam diligentemente, mal levantando o olhar
do chão e sem saber a quem temer mais, se os porcos, se os visitantes humanos.

Naquela noite,
altas risadas e cantorias chegaram da casa. Lá pelas tantas, ante o som das
vozes misturadas, os bichos encheram-se de curiosidade. Que estaria acontecendo
lá dentro, agora que, pela primeira vez, encontravam-se em teremos de igualdade
os animais e os seres humanos? Pensando todos a mesma coisa, dirigiram-se
furtivamente para o jardim da casa.

No portão
titubearam, um tanto temerosos, mas Trevo deu o exemplo e entrou. Andaram, pé
ante pé, até a casa, e os mais altos espiaram pela janela da sala de jantar. Lá
dentro, em volta de uma mesa grande, estavam sentados meia dúzia de granjeiros
e meia dúzia de porcos dentre os mais eminentes, Napoleão no lugar de honra, à
cabeceira. Os porcos pareciam perfeitamente à vontade em suas cadeiras. O grupo
estivera jogando cartas, mas havia interrompido o jogo por instantes,
evidentemente para os brindes. Um grande jarro circulava e os copos se enchiam
de cerveja. Ninguém notou as caras admiradas dos bichos, que espiavam pela
janela.

O Sr.
Pilkington, de Foxwood, levantara-se com o copo na mão. Disse que ia convidar
os presentes para um brinde. Mas, antes, desejava dizer algumas palavras, que
julgava de seu dever pronunciar.

Era motivo
de grande satisfação para ele – e tinha certeza de que falava por todos os
demais -sentir que o longo período de desconfianças e desentendimentos chegara
ao fim. Tempo houvera – não que ele ou qualquer dos presentes tivesse pensado
dessa maneira -, mas tempo houvera em que os respeitáveis proprietários da
Granja dos Bichos haviam sido olhados, não diria com hostilidade, mas com uma
certa apreensão, por seus vizinhos humanos. Ocorreram incidentes desagradáveis
e idéias errôneas haviam circulado. Parecera a muitos que a existência de uma
granja pertencente a animais e por eles administrada era coisa um tanto fora do
comum e poderia vir a causar transtornos à vizinhança. Muitos granjeiros
supuseram, sem as verificações devidas, que em tal granja prevaleceria um
espírito de licensiosidade e indisciplina. Haviam-se preocupado com o efeito de
tudo isso sobre seus próprios animais e, até mesmo, sobre seus empregados
humanos. Mas todas essas dúvidas estavam agora dissipadas. Hoje ele e seus
companheiros haviam visitado a Granja dos Bichos, inspecionando cada metro
quadrado com seus próprios olhos, e que haviam encontrado? Não apenas métodos
dos mais modernos, mas uma ordem e uma disciplina que podiam servir de exemplo.
Julgava poder afirmar que os animais inferiores da Granja dos Bichos
trabalhavam mais e recebiam menos comida do que quaisquer outros animais do
condado. Para falar a verdade, ele e seus companheiros de visita haviam visto,
naquele dia, muita coisa que pretendiam introduzir imediatamente em suas
próprias granjas.

Finalizaria
suas palavras, continuou, assinalando mais uma vez os sentimentos de amizade,
que prevaleciam e deviam prevalecer entre a Granja dos Bichos e seus vizinhos.
Entre os porcos e os seres humanos não havia, e eram inteiramente inadmissíveis
quaisquer conflitos de interesses. Suas lutas e suas dificuldades eram uma só.
Pois o trabalho não constituía o mesmo problema em toda parte? A essa altura
evidenciou-se que o Sr. Pilkington pretendia soltar para a plateia algum dito
espirituoso, mas por alguns momentos pareceu por demais dominado pelo gozo da
própria piada, para poder dizê-la. Depois de muita sufocação, que deixou
vermelhos os seus vários queixos, ele conseguiu largá-la: “Se os senhores
têm que lutar com os seus animais inferiores, nós temos as nossas classes
inferiores”. Este bon mot causou sensação na mesa, e o Sr. Pilkington
novamente felicitou os porcos pelas baixas rações, pelas muitas horas de
trabalho e pela ausência geral de tolerância que observara na Granja dos
Bichos.

E agora,
disse finalmente, convidava o grupo a levantar-se e verificar se os copos estavam
cheios.

– Senhores
– concluiu o Sr. Pilkington – proponho um brinde: À prosperidade da Granja dos
Bichos!

Houve uma
entusiástica saudação e depois muitas palmas. Napoleão ficou tão emocionado que
deixou seu lugar e deu a volta à mesa para tocar com seu copo o do Sr.
Pilkington, antes de esvazia-lo. Quando as felicitações acabaram, Napoleão, que
permanecera de pé, disse que iria também proferir algumas palavras.

Como todos
os discursos de Napoleão, aquele foi curto e direto ao assunto. Também ele,
disse, alegrava-se de que o período de desentendimentos tivesse chegado ao fim.
Por longo tempo houve rumores – inventados, acreditava, e tinha razões para
isso, por algum inimigo mal-intencionado – de que havia algo de subversivo e
mesmo de revolucionário nos pontos de vista seus e de seus companheiros. Tinham
passado por desejosos de fomentar a rebelião entre os animais das granjas
vizinhas. Nada podia estar mais longe da verdade! Seu único desejo, agora como
no passado era viver em paz e gozando de relações normais com os seus vizinhos.
Aquela granja que ele tinha a honra governar, acrescentou, era um
empreendimento cooperativo. As escrituras que estavam em seu poder conferiam a
posse a todos os porcos.

Não
acreditava que ainda restassem quaisquer das velhas suspeitas, mas certas
modificações na rotina da granja haviam sido introduzidas com o fito de
promover uma confiança ainda maior. Até aquele momento os bichos haviam
conservado o hábito imbecil de dirigirem-se uns aos outros pela alcunha de
“camarada”. Isso ia acabar. Existira também o costume insólito, cuja
origem era desconhecida, de marchar aos domingos, desfilando frente a uma
caveira de porco pregada num poste. Isso também ia acabar, e a caveira já for a
enterrada. Os visitantes com certeza teriam observado também a bandeira verde
que tremulava no poste. Nesse caso teriam notado que as antigas figuras do
chifre e da ferradura, em branco, haviam sido suprimidas. Daí por diante seria
uma bandeira puramente verde.

Tinha
apenas um reparo, disse, a fazer ao excelente discurso, bem próprio de um bom
vizinho, do Sr. Pilkington. O Sr. Pilkington referira-se o tempo todo à
“Granja dos Bichos”. Naturalmente ele não podia saber – mesmo porque
Napoleão o estava proclamando, naquele instante, pela primeira vez – que a denominação
“Granja dos Bichos” for a abolida. A partir daquele momento, sua
granja voltaria a ser conhecida como “Granja do Solar”, que, aliás,
parecia-lhe, era seu nome correto e original.

Senhores –
concluiu Napoleão, levantarei o mesmo brinde, mas sob forma diferente. Encham,
até a borda, seus copos. Senhores, este é o meu brinde. À prosperidade da
Granja do Solar!

Houve os
mesmos aplausos calorosos de antes, e as canecas foram esvaziadas até o fim.
Mas enquanto os animais lá fora olhavam para a cena, parecia-lhes que algo
estranho estava acontecendo. O que havia mudado nos rostos dos porcos? Os
velhos olhos turvos de Trevo voaram de um rosto para outro. Alguns deles tinham
cinco queixos, alguns tinham quatro, alguns tinham três. Mas o que era que
parecia estar derretendo e mudando? Depois de terminados os aplausos, o grupo
pegou nas cartas e continuou o jogo interrompido, e os animais afastaram-se
silenciosamente.

Mas eles
não tinham avançado vinte metros quando pararam. Um alvoroço de vozes vinha da
casa da fazenda. Eles correram de volta e olharam pela janela novamente. Sim,
uma briga violenta estava em andamento. Houve gritos, batidas na mesa, olhares
agudos de suspeita, negações furiosas. A fonte do problema parecia ser que
Napoleão e o Sr. Pilkington haviam jogado um ás de espadas simultaneamente.

Doze vozes
gritavam de raiva e eram todas iguais. Sem dúvida, agora, o que aconteceu com
os rostos dos porcos. As criaturas lá fora olhavam de porco para homem, e de
homem para porco, e de porco para homem novamente; mas já era impossível dizer
qual era qual.

 

Novembro
de 1943 a fevereiro de 1944

 

***

 

 


[1] A coccidiose é uma doença parasitária que ataca o intestino das aves, provocando principalmente a queda da produção. Causada por um protozoário (Eimeria), a doença prejudica o desenvolvimento das aves e causa diminuição da absorção de nutrientes, além de facilitar o surgimento de outras patologias.

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APRENDENDO PORTUGUÊS – Lição 01 – MONTANDELA X MORTADELA



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