Ler online: UM ESTUDO EM VERMELHO Arthur Conan Doyle

 

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Título original: A Study in Scarlet

Publicado em Beeton’s Christmas Annual, Londres, 1887.

Capa: Kythão

Todos os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98.
Doyle, Sir. Arthur Conan Doyle, 1859 — 1930

UM ESTUDO EM VERMELHO. Sir Arthur Conan Doyle (A Study in Scarlet- 1887).
Pará de Minas, MG, Brasil: Editora VirtualBooks, 

ISBN 978-85-7953-751-6

Ficção inglesa. Novela Policial. Brasil. Título. Tradução Cao
Ypiranga.

 



UM ESTUDO EM VERMELHO

 

Arthur Conan
Doyle

 


 

PRIMEIRA PARTE 

REIMPRESSÃO DAS
MEMÓRIAS DO DR. JOHN H. WATSON, EX-OFICIAL MÉDICO DO EXÉRCITO BRITÂNICO.

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

O SR. SHERLOCK
HOLMES

 

No ano de 1878, formei-me em medicina pela Universidade de
Londres e parti para Netley, a fim de fazer o curso preparatório para ingressar
no exército. Tendo concluído os meus estudos lá, eu estava devidamente anexado
ao Quinto Regimento de Fuzileiros de Northumberland, como cirurgião
assistente.  Meu regimento ficou
estacionado na Índia na época, e antes que eu pudesse juntar-se a ele, a
Segunda Guerra Afegã havia estourado. Então, desembarquei em Bombaim, sendo
informado que o meu regimento havia avançado através das cadeias de montanhas e
penetrado em território inimigo. Eu e mais outros oficiais, que se encontravam
na mesma situação, conseguimos chegar com segurança a Candahar, onde nos
juntamos ao nosso regimento e eu pude assumir minhas funções.

A campanha trouxe honras e promoção para muitos, mas para
mim, infortúnios e desastres. Eu estava afastado da minha brigada e anexado às
tropas de Berkshire, com as quais atuei na trágica batalha de Maiwand. Fui
atingido no ombro por uma bala afegã, que me quebrou o osso e roçou a artéria
subclávia. Eu teria caído nas mãos dos assassinos ghazis, se não fosse a
devoção e a coragem demonstradas pelo meu ordenança Murray, que me jogou em um
cavalo de carga e conseguiu me trazer com segurança para as linhas britânicas.

Abatido pela dor e enfraquecido pelas dificuldades, fui
removido, com outros feridos, em um grande trem para o hospital de base em
Peshawar. Ali, fui recuperando-me, e já havia melhorado a ponto de ser capaz de
andar entre as alas, e até mesmo poder me aquecer um pouco na varanda, quando
fui atingido por febre intestinal, essa maldição de nossas possessões indianas.

Durante meses, minha vida correu riscos, e quando,
finalmente, voltei a mim e passei a recuperar-me, estava tão fraco e emagrecido
que uma junta médica determinou que eu fosse enviado à Inglaterra. Logo fui
despachado, em conformidade, no vapor “Orontes,” e um mês depois,
desembarquei no cais de Portsmouth, com a minha saúde irremediavelmente
arruinada, mas com a permissão de um governo paternal para passar os próximos
nove meses, na tentativa de melhorá-la.

Eu não tinha nem amigos, nem parentes na Inglaterra e foi,
portanto, livre como o ar, ou pelo menos tão livre quanto um homem pode ser com
uma renda de onze xelins e seis pence por dia. 
Sob tais circunstâncias, naturalmente, fui atraído para Londres, essa
grande fossa que acaba atraindo irresistivelmente todos os malandros e ociosos
do Império. Fiquei por algum tempo num hotel privado do Strand, levando uma
existência sem conforto e sem sentido, gastando o dinheiro mais rapidamente do
que deveria. Tão alarmante se tornou o estado das minhas finanças que logo
percebi que teria de deixar a metrópole e levar uma vida no campo, ou alterar
por completo o meu estilo de vida. Escolhendo a última alternativa, comecei a
pensar em deixar o hotel, e sair em busca de algum domicílio menos pretensioso
e menos dispendioso.

No mesmo dia em que eu tinha chegado a essa conclusão, eu
estava no Bar Criterion, quando alguém bateu no meu ombro e, voltando-se,
reconheci Stamford, o jovem que tinha sido meu assistente em Barts.  A visão de um rosto amigável no grande
deserto londrino é uma coisa muito agradável, de fato, para um homem solitário.
Nos velhos tempos, Stamford nunca tinha sido um amigo íntimo, mas agora eu o
saudava com entusiasmo e ele, por sua vez, parecia estar feliz em me ver. Na
exuberância de minha alegria, convidei-o para almoçar comigo no Holborn, e
partimos juntos em uma carruagem.

“O que você tem feito, Watson?”, ele
perguntou-me, sem disfarçar o seu espanto, enquanto nos sacudíamos através das
ruas apinhadas de Londres. “Você está tão magro como um sarrafo e marrom
como uma noz.”

Eu dei-lhe um breve relato das minhas aventuras e, mal a
concluíra, chegamos ao nosso destino.

“Pobre diabo!” disse ele, comovido, após ter
escutado meus infortúnios. “O que você vai fazer agora?”

“Procuro um alojamento.” eu respondi. “Tento
resolver o problema de encontrar um quarto confortável a preço razoável, se é
possível isso.”

“Isso é uma coisa curiosa”, comentou meu
companheiro, “Você é o segundo homem hoje a usar essa expressão comigo.”.

“E quem foi o primeiro?”, perguntei.

“Um sujeito que está trabalhando no laboratório químico do
hospital”. Ele estava se queixando esta manhã, por não encontrar alguém
disposto a dividir com ele o aluguel de um aposento agradável, mas um pouco
elevado para seus bolsos.

“Por Deus!”, exclamei, “Se ele realmente
quiser alguém para dividir os quartos e as despesas, eu sou este homem. Eu
prefiro ter um parceiro a morar sozinho.”.

O jovem Stamford olhou-me de modo bastante estranho, por
cima do seu copo de vinho. “Você ainda não conhece Sherlock Holmes,”
ele disse, “Talvez, nem gostará de ser companheiro dele por muito
tempo.”

“Por quê? O que há contra ele?”

“Oh, eu não disse que há algo contra ele. Só é um
pouco excêntrico com suas ideias… Um entusiasta em certos ramos da ciência.
Tanto quanto sei, é um sujeito decente.”

“Um estudante de medicina, eu suponho?”

“Não. Não tenho nenhuma ideia concreta a respeito da
carreira que ele pretende seguir. Acredito que entende muito de anatomia, e é
um químico de primeira classe, mas, até onde eu sei, ele nunca fez qualquer
curso metódico de medicina. Seus estudos são muito inconstantes e excêntricos,
mas ele acumulou muitos conhecimentos exóticos que surpreenderiam os seus
professores.”

“Você nunca perguntou para ele qual ramo que deseja se
especializar?”

“Não, ele não é um homem fácil de tirar confidências,
embora ele possa ser comunicativo o bastante quando a fantasia se apodera
dele.”

“Eu gostaria de conhecê-lo”, disse-lhe. “Se
vou morar com alguém, eu prefiro que seja um homem de hábitos estudiosos e
tranquilos. Eu não sou forte o suficiente para suportar muito barulho ou
excitação. Tive o suficiente de ambos no Afeganistão para durar para o resto de
minha existência. Como eu poderia conhecer esse seu amigo?”

“Ele, com certeza, deve estar no laboratório”,
respondeu meu companheiro. “Ele passa semanas sem dar as caras, ou então,
trabalha lá de manhã à noite. Se quiser, vamos procurá-lo depois do
almoço.”

“Certamente”, respondi, e a conversa desviou para
outros assuntos.

Como fizemos o nosso caminho para o hospital, depois de
deixar o Holborn, Stamford me deu mais informações sobre o cavalheiro com quem
me propus a morar.

“Se não se der bem com ele, não me culpe”,
disse-me ele, “Não sei muita coisa sobre ele; o que sei, descobri em
reuniões ocasionais no laboratório. Você propôs esse arranjo, então, não me
responsabilize por nada no futuro.”

“Se não me der bem com ele, caio fora”, respondi.
“Parece-me, caro Stamford,” acrescentei, olhando firme para o meu
companheiro, que tinha alguma razão para lavar as mãos sobre o assunto, “O
temperamento do homem é assim tão instável ou há mais coisa que eu deveria
saber? Não seja covarde, pode abrir a boca.”

“Não é fácil exprimir o inexprimível”, ele
respondeu com uma risada. “Holmes é um pouco demasiado científico para o
meu gosto… sempre age a sangue-frio. Eu poderia imaginá-lo administrando a um
amigo uma pitada do mais recente alcaloide vegetal, não por maldade, se você me
entende, mas simplesmente por espírito de pesquisa, a fim de ter uma ideia
precisa dos efeitos. Para lhe fazer justiça, acho que ele seria capaz de tomar
o alcaloide sem pestanejar. Tem uma paixão pelo conhecimento definitivo e exato
das coisas.”

“Não vejo mal nisso.”

“Mas ele pode cometer excessos. Quando se trata de
bater nos cadáveres nas salas de dissecação com um pau, é certamente uma
maneira bastante bizarra de se comportar.”

“Bater nos cadáveres?!”

“Sim, para verificar até onde os hematomas podem ser
produzidos após a morte. Isso eu vi, com os meus próprios olhos.”

“E ainda assim você diz que ele não é um estudante de
medicina?”

“Não. Sabem os Céus qual é o objetivo dos seus
estudos. Mas aqui estamos nós, e você deve formar suas próprias impressões
sobre ele.” Enquanto ele falava, paramos numa ruela, descemos da
carruagem, e entramos numa pequena porta lateral, que dava para uma ala do
grande hospital. Era um terreno familiar para mim e eu não precisava
orientar-me muito enquanto subíamos a sombria escadaria de pedra e caminhávamos
pelo corredor de paredes caiadas e portas enegrecidas. Perto da extremidade
posterior, sob uma passagem arqueada, encontrava-se o laboratório químico.

Era uma sala ampla, repleta de garrafas. Havia mesas baixas
e largas com retortas, tubos de ensaio e pequenos bicos de Bunsen com suas
tremeluzentes chamas azuis. Via-se apenas um estudante na sala, curvado sobre
uma das mesas, absorto no seu trabalho. Ao som de nossos passos, ele olhou em
volta e pôs-se de pé com um brado de prazer. “Eu encontrei!
Encontrei”, ele gritou para o meu companheiro, correndo em nossa direção
com um tubo de ensaio na mão. “Eu encontrei um reagente que é precipitado
pela hemoglobina, e por nada mais.” Se ele tivesse descoberto uma mina de
ouro, maior satisfação não conseguiria demonstrar.

“Dr. Watson, Sherlock Holmes”, disse Stamford,
apresentando-nos.

“Como você está?” ele disse cordialmente,
apertando-me a mão com tanta força que eu dificilmente poderia julgá-lo capaz
disso. “Percebo que andou pelo Afeganistão.”

“Como sabe?”, perguntei-lhe atônito.

“Não importa”, disse ele, rindo de si mesmo.
“A questão agora é sobre hemoglobina. Sem dúvida, já percebeu o
significado de minha descoberta?”

“É interessante, quimicamente, sem dúvida”,
respondi, “mas praticamente…”

“Ora, homem, é a descoberta mais prática da medicina
legal nestes últimos anos. Você não vê que ela nos dá um teste infalível para
manchas de sangue? Venha aqui!” Ele agarrou-me com ânsia pela manga do
casaco e puxou-me para a mesa em que estava trabalhando. “Vamos ter um
pouco de sangue fresco”, disse ele, cravando com um longo punhal o seu dedo,
deixando cair uma gota de sangue em uma pipeta química. “Agora, eu vou
adicionar esta pequena quantidade de sangue a um litro de água. Observe que a
mistura resultante tem a aparência de água pura. A proporção de sangue não pode
ser mais do que uma em um milhão. Não tenho dúvidas, no entanto, que sou capaz
de obter uma reação característica”. Enquanto falava, jogou no vaso alguns
cristais brancos, e acrescentou algumas gotas de um líquido transparente. Em um
instante, o conteúdo assumiu uma cor sem brilho do mogno, e um pó acastanhado
foi formando-se no fundo do frasco de vidro.

“Ah! Ah!” ele gritou, batendo palmas, e olhando
encantado para o frasco, igual a uma criança com um brinquedo novo. “O que
você acha disso?”

“Parece ser um teste muito delicado”, comentei.

“Maravilhoso! Maravilhoso! O velho teste do reagente
químico era muito desajeitado e incerto. Assim acontece com o exame
microscópico dos glóbulos vermelhos, que é um teste sem valor se as manchas têm
poucas horas. Agora, isso que fiz, parece agir tão bem se o sangue é fresco ou
velho. Tivesse este teste sido inventado há mais tempo, centenas de homens, que
agora andam livres pela terra, há muito estariam cumprido pena pelos seus
crimes.”

“É verdade!”, concordei.

“Muitos casos criminais são continuamente paralisados
nesse ponto. Um homem é suspeito, meses depois de ter ocorrido o crime. Suas
roupas são examinadas e se descobre manchas acastanhadas sobre elas. São
manchas de sangue, de lama, de ferrugem ou de frutas, ou de que mais? Essa é
uma questão que tem intrigado muitos especialistas, e por quê? Porque não havia
nenhum teste confiável. Agora temos o teste
Sherlock Holmes
, e não teremos mais qualquer dificuldade.”

Seus olhos brilhavam bastante enquanto falava, e ele
colocou a mão sobre o coração e se inclinou, como se alguma multidão, evocada
pela sua imaginação, estivesse aplaudindo-o.

“Está de parabéns”, comentei bastante surpreso
com seu entusiasmo.

“No ano passado, em Frankfurt, aconteceu o caso de Von
Bischoff. Ele certamente teria sido pendurado na ponta de uma corda se já
existisse o teste. Houve o caso Mason de Bradford, e o notório caso do Muller,
e o de Lefèvre de Montpellier, e o de Samson de Nova Orleans. Eu poderia nomear
inúmeros casos em que o meu teste teria sido decisivo.”

“Você parece uma enciclopédia ambulante do
crime”, disse Stamford com uma risada. “Você pode publicar um
trabalho sobre esses assuntos. Chame-o de Notícias
Policiais do Passado
.”

“Será uma leitura muito interessante”, observou
Sherlock Holmes, colocando um pequeno curativo sobre a picada no dedo. “Eu
tenho que ter cuidado”, continuou ele, voltando-se para mim com um
sorriso, “brincar com venenos não é um bom negócio.” Ele estendeu a
mão, enquanto falava, e percebi que estava toda coberta com curativos, e descolorida
por causa dos ácidos fortes.

“Nós viemos aqui para fazer negócio”, disse
Stamford, sentando-se em um banquinho de três pernas e empurrando outro em
minha direção com o pé. “Meu amigo aqui quer um lugar para morar, e como
você se queixa de que não pode cobrir toda a despesa, achei melhor
apresentá-los um ao outro.”

Sherlock Holmes pareceu encantado com a ideia de
compartilhar seus quartos comigo. “Eu estou de olho em uma suíte em Baker
Street”, ele disse, “é o que nos convém. Eu espero que não se importe
com o cheiro de tabaco forte, certo?”

“Eu fumo sempre tabaco de marinheiro”, respondi.

“Sem problema. Eu geralmente tenho substâncias
químicas e, ocasionalmente, faço experiências. Isso o incomoda?”

“De maneira nenhuma.”

“Deixe-me ver quais são meus outros defeitos… Se
fico em depressão, às vezes, eu não abro a boca por dias. Não deve pensar que
eu sou mal-humorado quando eu faço isso. Apenas deixe-me em paz, e… em breve
vou estar bem. E você, que tem a confessar? É muito conveniente que dois
companheiros conheçam o pior de cada um antes de começarem a morar juntos.”

Eu ri desse interrogatório. “Tenho um feitio de cão
fila,” eu disse, “e oponho-me a qualquer barulho, porque os meus
nervos estão abalados. Ah, e levanto-me tarde, sou extremamente preguiçoso.
Tenho outros vícios quando estou bem de saúde, mas esses são os principais no
momento.”

“Incluiu o som do violino em sua categoria de
barulhos?” perguntou ele, ansiosamente.

“Isso depende do violonista”, eu respondi.
“Um violino bem tocado é um deleite para os deuses, mas quando é mal
tocado…”

“Ah, tudo bem”, exclamou ele, com uma risada
jovial. “Acho que podemos considerar a coisa como resolvida… isto é, se
os quartos forem agradáveis para você.”

“Quando é que vamos vê-los?”

“Passe aqui amanhã, lá pelo meio-dia, e iremos juntos
resolver tudo”, ele respondeu.

“Perfeitamente… ao meio-dia em ponto”,
concordei, apertando-lhe a mão.

Nós o deixamos trabalhando com os seus produtos químicos, e
caminhamos juntos em direção ao meu hotel.

“A propósito”, perguntei, de repente, parando e
voltando-me para Stamford, “como ele sabia que eu tinha vindo do
Afeganistão?”

Meu companheiro sorriu de modo enigmático. “Isso é
apenas uma de suas peculiaridades”, disse ele. “Muita gente boa
gostaria de saber como ele descobre essas coisas.”

“Oh! Um mistério, é isso?” Exclamei esfregando as
mãos. “Isso é muito motivador. Estou muito grato a você por ter nos
apresentado. O estudo adequado da humanidade é o homem, você sabe.”

“Você terá que estudá-lo, então”, disse Stamford,
ao despedir-se de mim. “Vai encontrar nele um problema complicado. Aposto
que ele descobre mais coisas a seu respeito do que você a respeito dele. Até a
vista”.

“Até a vista”, eu respondi, e caminhei para o meu
hotel, muito interessado no meu novo conhecido.

 

 

 

CAPÍTULO SEGUNDO

A CIÊNCIA DA
DEDUÇÃO

 

 

Nós nos encontramos no dia seguinte como havíamos combinado
e inspecionamos os quartos no número 221B, da Baker Street, de que ele havia
falado. Consistiam de dois confortáveis quartos e uma espaçosa e arejada sala
de estar, alegremente decorados, e iluminados por duas janelas muito amplas.
Eram tão agradáveis em todos os sentidos, que o negócio foi logo fechado e
tomamos posse definitiva deles. Naquela tardinha, busquei minhas coisas no
hotel e me mudei, e na manhã seguinte, Sherlock Holmes chegou com suas caixas e
maletas. Por um dia ou dois, estivemos ocupados em desembalar e colocar em
lugares específicos nossos pertences para o melhor proveito. Isso feito
gradualmente e começamos a nos estabelecer e nos adaptar da melhor maneira no
novo ambiente.

Holmes, certamente, não era um homem difícil de conviver.
Ficava em silêncio no seu canto e seus hábitos eram regulares. Era raro vê-lo
depois das dez da noite e, invariavelmente, preparava o próprio café da manhã,
saindo antes mesmo de me pôr de pé. Às vezes, ele passava o dia no laboratório
químico, na sala de dissecação e, ocasionalmente, dava longas caminhadas pelos
bairros mais sórdidos da cidade. Nada poderia roubar a sua atenção quando se
dedicava ao trabalho. Às vezes, atirava-se sobre o sofá da sala de estar e
permanecia ali por dias a fio, sem dizer uma palavra ou mover um único músculo.
Nessas ocasiões, eu notava uma expressão sonhadora em seu semblante e, nos
olhos, algo vagante, suspeitava até que fizesse uso de algum entorpecente
nessas ocasiões.

Na medida em que as semanas passavam, o meu interesse por
ele e minha curiosidade a respeito de seus objetivos na vida iam gradualmente
aumentando. Sua própria pessoa e aparência física eram susceptíveis de chamar a
atenção do observador mais distraído. Sua estatura era um pouco mais de um
metro e oitenta e era tão excessivamente magro que parecia ser mais alto ainda.
Seus olhos eram agudos e penetrantes, exceto durante os intervalos de torpor
aos que já aludi; possuía um nariz fino, um nariz de falcão, dando-lhe um ar e
uma expressão completos de vivacidade e decisão. Seu queixo, também, trazia uma
perpendicularidade, que demonstrava ser um homem determinado. Suas mãos estavam
sempre sujas com tinta ou manchadas com produtos químicos, mas mesmo assim,
possuíam uma extraordinária delicadeza de toque, como eu muitas vezes tive
ocasião de observá-lo, manipulando seus frágeis instrumentos alquímicos.

O leitor pode me considerar como um intrometido, quando eu
confessar o quanto este homem estimulou a minha curiosidade, e quantas vezes eu
me esforcei para romper as reticências que ele revelava em tudo que se ocupava.
Antes de pronunciar qualquer julgamento, no entanto, quero lembrar ao leitor de
como era sem objetivo a minha vida, e quão pouco era as coisas que chamavam a
minha atenção. Minha saúde me proibia de se aventurar pela cidade, a menos que
o tempo estivesse excepcionalmente favorável, e eu não tinha amigos a quem
visitar ou ser visitado para quebrar a monotonia da minha existência ordinária.
Sob tais circunstâncias, eu ansiosamente explorava o pequeno mistério que
pairava em torno de meu companheiro, e passava a maior parte do meu tempo nesse
esforço de desvendá-lo.

Não estava estudando medicina, como supus no início. Ele
próprio, em resposta a uma pergunta minha, confirmou o parecer de Stamford
sobre esse ponto. Nem parecia ter feito qualquer curso que pudesse dar-lhe a
licenciatura em algum ramo da ciência. No entanto, seu zelo por certos estudos
era notável e, dentro dos limites, excêntricos, o seu conhecimento era tão
extraordinariamente amplo e meticuloso, que as suas observações sempre me
surpreenderam. Certamente, nenhum homem trabalharia tão duro para adquirir
informações tão precisas se não tivesse um objetivo definido em vista. Leitores
dispersos raramente são capazes de dedicar com a exatidão e afinco tal
aprendizado. Nenhum homem sobrecarrega a sua mente com coisas tão minuciosas, a
menos que tenha alguma boa razão para fazê-lo.

Sua ignorância era tão notável quanto seu conhecimento. Da
contemporânea literatura, filosofia e política, não sabia quase nada. Ao me
ouvir citar Thomas Carlyle, perguntou sem malícia alguma quem era ele e o que
havia realizado. Mas a minha surpresa foi ao máximo, no entanto, quando
descobri por acaso que ignorava a teoria de Copérnico e a composição do Sistema
Solar. Qualquer pessoa civilizada, do século XIX, estava ciente de que a terra
girava em torno do sol, era um fato tão aceitável que eu mal podia acreditar na
ignorância do meu amigo.

“Você parece surpreendido”, disse ele, sorrindo
diante da minha expressão de surpresa. “Agora que eu sei desse fato, vou
fazer o melhor para esquecê-lo.”

“Esquecê-lo?!”

“Veja você”, explicou-me ele, “Eu considero
que o cérebro de um homem é originalmente como um sótão um pouco vazio, que
você tenta preenchê-lo com móveis de todo o tipo. Um tolo coloca ali toda
espécie de coisas que encontra pela frente; de modo que o conhecimento que pode
ser útil para ele fica soterrado, ou na melhor das hipóteses, misturado ao
monte de outras coisas, de modo que em breve ele terá dificuldade em colocar as
mãos no conhecimento de que necessita. Agora, um trabalhador hábil será muito
criterioso com o que leva para o sótão mental, ele colocará apenas as
ferramentas que podem ajudá-lo em seu trabalho, mesmo sendo uma grande
variedade, mas tudo na mais perfeita ordem. É um erro pensar que esse espaço
possui paredes elásticas e pode distender para qualquer tamanho. Logo chegará o
momento em que para cada adição de conhecimento, você terá que esquecer o que
sabia antes para dar lugar ao novo conhecimento. É importante, portanto, não
ter fatos inúteis acotovelando os fatos úteis”.

“Mas o sistema solar!”, protestei.

“Que diabo é isso para mim?”, ele interrompeu-me
impacientemente, “você diz que giramos em torno do sol, se girássemos em
torno da lua, não faria diferença alguma para mim ou para o meu trabalho.”

Estava a ponto de perguntar a ele sobre que tipo de trabalho
realizava, mas algo em sua maneira de agir mostrou-me que seria uma pergunta
indesejável. Ponderei sobre a nossa breve conversa, no entanto, esforçando-me
para tirar minhas deduções a partir dela. Ele disse que não iria adquirir
nenhum conhecimento que não tivesse atrelado ao seu trabalho. Portanto, todo o
conhecimento que ele possuía era útil a ele. Enumerei mentalmente todos os
diversos pontos sobre os quais ele tinha se mostrado excepcionalmente bem
informado. Eu até peguei um lápis e os anotei. Não pude deixar de sorrir ao ver
o documento concluído. Ficou dessa maneira:

 

SHERLOCK HOLMES E
OS SEUS CONHECIMENTOS:

1. Conhecimento da
literatura: zero.

2. Filosofia: zero.

3. Astronomia:
zero.

4. Política: fraco.

5. Botânica:
variável. Conhecimento sobre beladona, ópio e venenos em geral. Não sabendo
nada de jardinagem prática.

6. Geologia:
prático, mas limitado. Conhece todo tipo de solo. Depois das caminhadas,
mostra-me os respingos e as manchas nas calças, revelando pela sua cor e
consistência em que parte de Londres os adquiriu.

7. Química:
profundo.

8. Anatomia: exato,
mas não sistemático.

9. Literatura
sensacional: imenso. Ele parece saber todos os detalhes de cada horror
perpetrado neste século.

10. Toca muito bem
violino.

11. É bom no jogo
de bastão, boxe e esgrima.

12. Tem um bom
conhecimento prático das leis inglesas.

 

Quando cheguei a esse ponto da minha lista, perdi o
entusiasmo e joguei-a ao fogo. “Se só podia descobrir em que meu colega
trabalhava conciliando suas aptidões aos seus limites”, disse a mim mesmo:
“Posso desistir dessa tentativa de uma vez por todas.”

Vejo que já aludi aos seus domínios sobre o violino. Esses
eram muito notáveis, mas tão excêntrico quanto todas as suas outras
realizações. Conseguia executar peças difíceis, que eu conhecia muito bem,
porque a meu pedido, ele executava algumas de Lieder de Mendelssohn, e outras
favoritas.  Mas quando se entregava a si
mesmo, no entanto, raramente interpretava alguma peça ou melodia conhecidas.
Recostando-se na poltrona, ao cair da tarde, fechava os olhos e raspava o arco
descuidadamente no violino, que mantinha sobre o joelho. Às vezes, os acordes
eram sonoros e melancólicos. Ocasionalmente, eram fantásticos e alegres.
Claramente, refletiam seus pensamentos, mas se a música o ajudava a pensar, ou
se o jogo era simplesmente o resultado de um capricho ou fantasia, isso eu não
poderia determinar. Eu poderia rebelar contra esses solos exasperantes se não
fosse a sua boa vontade em tocar, geralmente em rápida sucessão, uma série de
minhas favoritas, como uma compensação a minha paciência.

Na primeira semana, não recebemos visitas, comecei a pensar
que meu companheiro era tão desamparado quanto eu. Mas adiante, no entanto,
descobri que ele tinha muitos conhecidos, indivíduos das mais diferentes
classes da sociedade. Houve a visita de um senhor. Um pouco pálido, com cara de
rato e olhos escuros que me foi apresentado como o Sr. Lestrade, que o visitou
três ou quatro vezes em uma única semana. Certa manhã, veio uma jovem,
elegantemente vestida, e ficou por meia hora ou mais. Na mesma tarde, apareceu
um visitante grisalho, bem decadente, parecendo um mascate judeu, muito
agitado, e que foi seguido por uma mulher idosa. Em outra ocasião, outro senhor
de cabelos brancos teve uma entrevista com o meu companheiro, e ainda veio um
ferroviário em seu uniforme de veludo. Quando aparecia um desses indivíduos,
Sherlock Holmes costumava implorar para usar a sala de estar, e então eu tinha
que me recolher ao meu quarto de dormir. Ele sempre me pedia desculpas pela
inconveniência: “Eu tenho que utilizar a sala de estar como
escritório”, dizia-me ele, “estas pessoas são meus clientes.”
Não deixava de ser uma excelente oportunidade para perguntar-lhe a respeito de
sua profissão, mas novamente a minha delicadeza me impedia de forçá-lo a
confiar em mim. Eu imaginava na época que ele tinha forte motivo para não se
referir à profissão, mas logo dissipava essa ideia.

Foi no dia 4 de março, tenho um bom motivo para me lembrar,
que acordei um pouco mais cedo que o habitual, e descobri que Sherlock Holmes
ainda não tinha terminado seu café. A criada, acostumada a meus atrasos, ainda
não havia ajeitado meu lugar à mesa, nem preparado meu café. Com a petulância
irracional de todo ser humano, toquei a campainha e disse-lhe que estava à
espera do meu desjejum. Então, peguei uma revista sobre a mesa e tentei passar
o tempo com ela, enquanto meu companheiro mastigava silenciosamente a sua
torrada. Um dos artigos tinha o cabeçalho sublinhado a lápis, e, naturalmente,
comecei a correr o olho por ele.

O título era um tanto pretensioso: O Livro da Vida; o artigo tentava provar o quanto um homem
observador pode aprender através de um exame preciso e sistemático de tudo que
encontra a sua volta.

Pareceu-me ser uma mistura vulgar de astúcia e absurdo. O
raciocínio era minucioso e intenso, mas as deduções pareceu-me muito forçadas e
exageradas. O autor reivindicava que, por uma expressão momentânea, uma contração
de um músculo ou um mover de um olho, podia-se chegar aos pensamentos mais
íntimos de um homem. Segundo o autor, era impossível enganar um homem
observador, suas conclusões seriam tão infalíveis como tantas proposições de
Euclides. Seus resultados seriam tão impressionantes para os não iniciados que,
sem saberem por quais métodos ele havia chegado aos resultados, viriam a
considerá-lo um necromante.

A partir de uma
gota de água
“, revelava o autor, “um homem observador poderia inferir a possibilidade de um Atlântico ou
de um Niágara, sem ter visto ou ouvido falar de um ou de outro”. Para o
autor, toda a vida é uma grande cadeia, cuja natureza é conhecida sempre que é
revelada uma única ligação que a compõe. Assim, como todas as outras artes, a Ciência
da Dedução e Análise só pode ser adquirida através de um intensivo e paciente
estudo, mas a vida não é longa o suficiente para permitir a um mortal
aperfeiçoar-se ao máximo neste estudo. Antes de passar aos aspectos morais e
mentais da matéria que apresentam as maiores dificuldades, o requerente deve
começar por problemas de masterização mais elementares. Ao conhecer um homem,
em um piscar de olhos, deve distinguir a sua história, sua profissão e a qual
classe ele pertence. Por mais tolo que possa parecer o exercício, não deixa de
aguçar as faculdades de observação e ensina onde observar e o que procurar. Ao
reparar as unhas de um homem, a manga de seu casaco, suas botas, os joelhos das
calças, as calosidades de seu indicador e polegar, sua expressão, os punhos da
camisa… por cada uma dessas coisas um homem é claramente revelado; todos
esses detalhes unidos iluminam o bom observador; falhar na análise, é quase
inconcebível.

“Que inebriante trapaceiro”, exclamei, batendo a
revista sobre a mesa, “eu nunca li tanta enganação em toda minha
vida.”

“De que se trata?” perguntou Sherlock Holmes.

“Este artigo,” eu disse, apontando para ele com a
minha colher de ovo quando me sentei para tomar meu café. “Vejo que você o
leu, sublinhou-o com lápis. Não nego que foi inteligentemente escrito, embora,
isso me irrita. Evidentemente, é a teoria de alguém sentado numa
espreguiçadeira, criando todos esses paradoxos na reclusão de seu quarto de
estudo. Ele não é nada prático, gostaria de vê-lo num vagão de terceira classe
e indagar-lhe quais as profissões de todos os seus companheiros de viagem.
Gostaria de colocar um mil contra um dele.”

“Você perderia o seu dinheiro,” comentou Sherlock
Holmes calmamente. “Quanto ao artigo, fui eu que o escrevi.”

“Você?!”

“Sim, eu tenho facilidade tanto para observação como
para dedução. As teorias que eu expus aí, que lhe parecem tão quiméricas, são
realmente extremamente práticas… Tão práticas que eu dependo delas para
ganhar o meu pão.”

“Como?”, perguntei involuntariamente.

“Bem, eu tenho o meu próprio ganha-pão. Acho que eu
sou o único no mundo. Sou um detetive de consultas, se é que pode entender o
que estou dizendo. Aqui em Londres temos muitos detetives oficiais, pagos pelo
governo, e muitos detetives particulares, pagos pelo cidadão comum. Quando os
detetives oficiais ficam num beco sem saída vêm à minha procura, e eu consigo
colocá-los na pista certa. Eles expõem-me todas as evidências que sabem e eu,
geralmente, com a ajuda dos meus conhecimentos da história criminal, defino
suas falhas e aponto a pista certa que devem seguir. Há uma semelhança familiar
forte entre todos os crimes, e se você tem todas as particularidades de mil
casos nas pontas dos dedos, dificilmente não desvendará o milésimo primeiro
antes do Lestrade, que é um detetive muito conhecido atualmente. Recentemente,
ele se meteu um caso de falsificação, ficando sem saída, e isso foi o que o
trouxe aqui.”

“E essas outras pessoas?”

“Elas são enviadas por agências particulares de
detetives. São pessoas que estão em busca de solução para seus problemas e
querem um pouco de esclarecimento. Ouço-lhes as histórias, elas ouvem os meus
comentários e, então, embolso meu pagamento.”

“Quer dizer,” eu argumentei, “que, sem sair
do seu quarto, consegue desvendar casos que outros homens não conseguem, mesmo
eles tendo todas as evidências e visto certos pormenores que você não
viu?”

“Isso mesmo. Tenho uma espécie de intuição. Há
ocasiões em que surge um caso mais complexo que os outros, então, eu tenho que
sair do quarto e ver as coisas com meus próprios olhos. Como percebe, possuo um
conhecimento especial para a coisa, conhecimento especial que aplico aos
problemas e facilita-me maravilhosamente nesses assuntos. Essas regras de
dedução, apresentadas no referido artigo, que tanto despertou o seu desprezo,
são de valor inestimável para mim e para a realização do meu trabalho. A
observação é uma segunda natureza em mim. Você ficou surpreso, quando eu disse,
em nosso primeiro encontro, que tinha vindo do Afeganistão”.

“Você foi informado, sem dúvida.”

“Nada disso. Eu vi que acabava de chegar do
Afeganistão. Os pensamentos correram tão rapidamente na minha mente que eu
cheguei à conclusão sem ter consciência de etapas intermediárias. Havia essas
medidas, no entanto. Minha dedução funcionou: ‘Aqui está um cavalheiro com um
tipo de médico, mas com o ar de um militar. Claramente médico do exército,
então. Ele acaba de chegar dos trópicos, tem o rosto bronzeado, e que não é a
tonalidade natural de sua pele, visto que seus pulsos são brancos. Passou por
dificuldades e enfermidades, como o rosto sofrido diz claramente. Seu braço
esquerdo foi ferido, por essa razão, mantém-se de pé numa posição rígida e
pouco natural. Em que lugar dos trópicos um médico do exército inglês poderia
receber um ferimento assim e passar por tantas privações? No Afeganistão,
certamente. Todas essas deduções não me ocuparam por mais de um segundo. Então,
eu disse que você vinha do Afeganistão, e você ficou surpreso.”

“É bastante simples como você explica isso”,
comentei, sorrindo. “Você me faz lembrar Dupin, de Edgar Allan Poe. Não
fazia a menor ideia de que existiam pessoas igualmente na vida real.”

Sherlock Holmes levantou-se e acendeu o cachimbo. “Sem
dúvida, acha que está me elogiando em comparar-me a Dupin”, observou.
“Agora, em minha opinião, Dupin sempre foi um sujeito muito medíocre.
Aquele seu truque de intervir nos pensamentos de seus amigos com uma
observação, a propósito, depois de ficar um quarto de hora em silêncio, é
realmente muito pedante e superficial. Ele tinha algum gênio analítico, sem
dúvida, mas ele não era, de forma alguma, o fenômeno que Pöe imaginava”.

“Você já leu obras de Gaboriau?” Eu perguntei.
“Lecoq corresponde à sua concepção de um detetive ideal?”

Sherlock Holmes suspirou ironicamente. “Lecoq era um trapalhão
miserável”, disse ele, com uma voz irritada: “ele só tinha uma coisa
a seu favor: a sua energia. Esse livro me causou náuseas. A questão era como
identificar um prisioneiro desconhecido… eu poderia ter feito isso em 24
horas. Lecoq levou mais ou menos seis meses. Esse livro bem poderia ser um
manual para ensinar aos detetives o que não devem fazer.”

Fiquei um tanto indignado por ter os dois personagens que
tanto admirava serem tratados de um modo tão grosseiro. Fui até a janela e
fiquei olhando o movimento na rua. “Este sujeito pode ser até muito
inteligente”, disse para mim mesmo, “mas, certamente, é muito
pretensioso.”

“Não há mais crimes nem criminosos nos nossos
dias”, acrescentou ele, em tom lamentoso. “De nada adianta ter um
cérebro privilegiado em nossa profissão. Sei muito bem que possuo atributos
suficientes para tornar o meu nome famoso. Não há, nem houve até agora no
mundo, um homem que tenha dedicado à investigação criminológica tanto estudo e
vocação natural como eu. E qual é o resultado? Não há crime a desvendar, ou, no
máximo, alguma vilania de algum tipo atrapalhado, com um motivo tão
transparente, que até mesmo um oficial da Scotland Yard poderia
enxergá-lo”.

Continuava irritado com o seu estilo arrogante de falar.
Achei melhor mudar de assunto.

“Eu me pergunto o que estará procurando aquele tipo?,
indaguei, apontando para um indivíduo, robusto, discretamente vestido, que
caminhava lentamente de um lado para o outro na rua, examinando os números das
casas. Ele tinha um grande envelope azul em sua mão, e era, evidentemente,
portador de uma mensagem.”

“Refere-se a esse sargento reformado da
Marinha?”, perguntou Sherlock Holmes.

“Grande fanfarrão!”, pensei. “Sabe
perfeitamente que não posso verificar essa afirmação.”

O pensamento mal tinha passado pela minha mente quando o
homem a quem nós estávamos a reparar, olhando o número da nossa porta,
atravessou a rua rapidamente. Ouvimos uma batida forte, uma voz profunda, e
passos pesados subindo a escada.

“Para o senhor, Sherlock Holmes”, disse ele,
entrando no quarto e entregando a carta ao meu amigo.

Ali estava uma oportunidade para lhe desmascarar a
presunção. Ele pouco havia pensado nisso, que o sujeito poderia vir até nós.
“Posso perguntar-lhe, meu amigo”, solicitei com a maior brandura possível,
“qual a sua profissão?”

“Carteiro, senhor”, disse ele, rispidamente.
“Meu uniforme está no concerto.”

“E antes disso?”, perguntei, com um olhar um
pouco malicioso para o meu companheiro.

“Era sargento, Senhor, sargento de infantaria da
Marinha. Não tem resposta, Sr. Holmes? Perfeitamente, Senhor.”

Ele bateu os calcanhares, levantou a mão em uma saudação
militar, e foi embora.

 

 

CAPÍTULO TERCEIRO

 

O MISTÉRIO DE
LAURISTON GARDENS

 

 

Confesso que fiquei bastante impressionado perante aquela
nova prova quanto à utilidade prática das teorias do meu companheiro. Meu
respeito por seus poderes de análise e dedução aumentou consideravelmente. Mas
restava ainda alguma desconfiança a espreitar-me a mente. No entanto, a coisa
toda poderia ter sido arranjada, um episódio premeditado, destinado a
deslumbrar-me, embora fugisse da minha compreensão por qual motivo teria tanto
trabalho em provar-me suas ideias analíticas. Quando olhei para ele, tinha
acabado de ler a carta, seus olhos, vagos e apagados, indicavam que estava
absorto em meditação.

“Como pôde deduzi-lo?”, perguntei.

“Deduzir o quê?”, inquiriu ele, em tom petulante.

“Ora, que o homem era sargento reformado da Marinha”.

“Eu não tenho tempo para bobagens”, respondeu
ele, bruscamente, em seguida, com um sorriso: “Desculpe, minha grosseria,
você interrompeu o fio dos meus pensamentos, mas talvez fosse melhor assim. Não
foi capaz de perceber que aquele homem era um sargento da Marinha?”

“De fato, não.”

“É mais fácil saber do que explicar de que maneira eu
soube. Se lhe pedissem para provar que dois e dois são quatro, pode encontrar
alguma dificuldade de explicar, mesmo assim, terá a certeza da resposta. Mesmo
ele estando do outro lado da rua, aqui da janela, pude ver uma grande âncora
azul tatuada nas costas de sua mão. Isso cheirava a algo marítimo. Alem do
mais, ele tinha um andar militar, no entanto, as costeletas, típicas da
marinha, não me deixaram dúvida. Concluí logo: aí temos um marujo. Possuía um
ar pretensioso, de quem gosta de comandar. Deve ter observado a maneira em que
ele mantinha a cabeça aprumada e de como balançava a bengala. Em seu rosto,
via-se que era um homem de meia-idade, inflexível e respeitável… todos esses
fatos me levaram a deduzir que ele tinha sido sargento da Marinha.”

“Maravilhoso!”, exclamei.

“Nada notório”, disse Holmes, mas eu tive a
certeza, a partir de sua expressão, que estava satisfeito com minha evidente
surpresa e admiração. “Eu disse a pouco que não havia criminosos, parece
que estou equivocado… leia isso!” Ele me passou a carta que o
ex-sargento acabara de entregar.

“Que coisa”, eu exclamei, ao correr os olhos pelo
papel. “Isso é horrível!”

“Parece ser um pouco fora do comum”, observou
ele, com calma. “Se importaria de ler em voz alta para mim?”

Esta é a carta que eu li para ele:

 

“Prezado Sr.
Sherlock Holmes:”

 

Esta noite
aconteceu um episódio gravíssimo no número 3 de Lauriston Gardens, perto da
Brixton Road. Por volta das duas da madrugada, o nosso guarda viu ali uma luz
e, como a casa está desabitada, suspeitou de que houvesse algo de anormal. Ele
encontrou a porta aberta e, na sala da frente, desprovida de móveis, deu com o
cadáver de um homem bem vestido, com cartões de visita encontrados num dos
bolsos. Chamava-se Enoque J. Drebber, de Cleveland, Ohio, EUA. Não houve roubo
e não há qualquer indício quanto à natureza da morte. Há sinais de sangue no
quarto, mas não há nenhum ferimento em seu corpo. Ainda não sabemos como ele
foi parar naquela casa vazia, na verdade, todo o assunto é um verdadeiro
quebra-cabeça. Se o meu amigo puder dar um pulo à casa de Lauriston Gardens
antes das doze horas, lá me encontrará. Deixei tudo como foi encontrado, à
espera da sua chegada. Caso não possa vir, eu lhe darei todos os pormenores.
Ficarei imensamente grato, se quiser dar a sua opinião.

 

“Com os
melhores cumprimentos,”

 

Tobias Gregson.

 

Gregson é o mais inteligente agente do Scotland Yard”,
comentou meu amigo: “Ele e Lestrade são os únicos que valem alguma coisa
no meio de toda aquela multidão de agentes incompetentes. Ambos são rápidos e
enérgicos, mas não deixam de ser convencionais no trabalho… Além disso, há
entre eles uma grande rivalidade profissional… O caso promete ser bastante
divertido, se ambos forem escalados para solucioná-lo.”

Fiquei espantado com a calma com que ele discorria sobre o
assunto. “Certamente não há um momento a perder”, exclamei, “devo ir
e pedir uma condução?”

“Eu não tenho certeza se irei. Sou o mais incurável
preguiçoso que usa sapatos… Isto é, quando me falta ânimo, porque às vezes
consigo ser muito ativo.”

“Ora, não é esta a oportunidade que você
esperava?”

“Meu caro amigo, que importância terá este assunto
para mim? Suponhamos que eu consiga solucioná-lo, pode estar certo de que
Gregson, Lestrade e Cia. vão embolsar todo o mérito. Isso sempre acontece a um
investigador não oficial.”

“Mas ele pediu sua ajuda.”

“Sim, ele sabe que sou superior a ele e reconhece isso
perante mim, mas cortaria a língua antes de confessá-lo a uma terceira pessoa.
No entanto, podemos ir lá e dar uma olhadela na cena do crime. Posso esclarecer
o caso do meu modo. Podemos até rir deles. Vamos lá!”

Ele vestiu o sobretudo e movimentou-se de uma maneira
entusiasmada, demonstrando que um acesso de energia acabava de substituir a
apatia.

“Pegue o seu chapéu”, disse ele.

“Quer que eu vá?”

“Sim, se você não tem nada melhor para fazer.” Um
minuto depois estávamos num coche, trotando rapidamente em direção a Brixton
Road.

Era uma manhã sombria, nebulosa, e uma neblina escura, que
parecia o reflexo da superfície lamacenta das ruas, pairava acima dos telhados.
Meu companheiro encontrava-se empolgado, discorria acerca dos violinos de
Cremona, e a diferença entre um Stradivarius e um Amati. Quanto a mim, eu
estava em silêncio, pois o mau tempo e o assunto melancólico que nos esperava
me deprimiam.

“Parece não se preocupar com o caso que temos pela
frente”, disse eu, finalmente, interrompendo a dissertação musical de
Holmes.

“Não há dados ainda”, respondeu-me ele. É um erro
capital teorizar antes de ter todas as evidências.  Isso antecipa o julgamento.

“Você vai ter seus dados em breve”, eu comentei,
apontando com o dedo: “esta é a Brixton Road, e aquela é a casa, se não
estou muito enganado.”

“É ela. Pare, cocheiro, pare!” Nós estávamos
ainda uns cem metros de distância da casa, mas ele insistiu em nosso
desembarque, e terminamos nossa jornada a pé. A casa número 3 da Lauriston
Gardens tinha uma aparência de um mau agouro e um ar ameaçador. Juntamente com
outras três, ficava um pouco recuada: duas delas estavam ocupadas e duas
vazias. Nestas últimas, duas filas de janelas, tristes e abandonadas, olhavam
para a rua como outros tantos olhos vagos e mortiços, exceto nas vidraças
turvas em que um papel com o “Aluga-se” fazia o efeito de uma
catarata ocular. Um pequeno jardim salpicado aqui e ali de plantas doentias,
separava da calçada cada uma das quatro construções e era atravessado por uma
via muito estreita, de cor amarelada, e que consistia, aparentemente, numa
mistura de saibro e argila. Todo o terreno estava muito mole em consequência da
chuva que caíra durante a noite. O jardim era delimitado por um pequeno muro de
tijolos, com cerca de um metro de altura, completado por grades de madeira.
Apoiado a esse muro, via-se um dedicado policial, rodeado por um grupo de
ociosos, que esticavam o pescoço e os olhos na vã esperança de ver o que
acontecia no interior da casa.

Eu imaginara que Sherlock Holmes, logo ao chegar diante da
casa, entrasse rapidamente, e mergulhasse em um estudo analítico, a fim de
esclarecer o mistério. Nada parecia estar mais distante de sua intenção. Com um
ar de indiferença, dadas às circunstâncias, parecia-me a fronteira da afetação;
pôs-se a passear de cá para lá pela calçada, olhando distraidamente o chão, o
céu, as casas vizinhas e a linha das grades de madeira. Tendo terminado a
inspeção, avançou lentamente pela vereda, diante da faixa de grama que ladeava
o caminho, mantendo os olhos fixos no chão. Por duas vezes, ele parou, e numa
delas, sorriu, e proferiu uma exclamação de satisfação. Havia muitas pegadas no
solo úmido e argiloso, mas como o policial tinha andado por ali, não via de que
maneira o meu companheiro poderia deduzir qualquer coisa olhando aquele
cenário. Ainda que eu tivesse uma prova extraordinária da rapidez de suas
faculdades perceptivas, não tinha dúvida de que ele pudesse ver uma quantidade
de coisas invisíveis para mim.

Na porta da casa, fomos recebidos por um homem alto, de tez
muito branca, ruivo, com um caderno de anotações na mão, que se precipitou
apertando efusivamente a mão do meu companheiro. “Ainda bem que
veio.”, disse ele, “Deixei tudo intacto.”

“Só com exceção disto!”, respondeu o meu amigo,
apontando para a vereda. “Se uma manada de búfalos tivesse passado por aí,
não poderia haver maior bagunça. Sem dúvida, você já havia tirado suas próprias
conclusões, Gregson, antes de ter permitido isso.”

“Tive muito que fazer dentro da casa”, disse o
detetive evasivamente. “Meu colega, o Sr. Lestrade, está aqui. Eu contava
com ele para cuidar disso.”

Holmes olhou para mim e, ironicamente, arqueou as
sobrancelhas.

“Com dois homens como você e Lestrade na pista, não
haverá muito para um terceiro descobrir”, disse ele.

Gregson esfregou as mãos com um ar de satisfação. “Eu
acho que fizemos tudo o que deveria ser feito”, ele respondeu: “É um
caso estranho, embora, sei que é esse o seu estilo preferido.”

“Você não veio aqui de carruagem?” perguntou
Sherlock Holmes.

“Não, senhor.”

“Nem Lestrade?”

“Não, senhor.”

“Então nos deixe ir e olhar.” E com essa
observação inconsequente, ele penetrou casa adentro, seguido por Gregson, cujo
semblante exprimia assombro.

Um pequeno corredor, de soalho empoeirado, levava à cozinha
e aos escritórios. Havia nele duas portas, que se abriam uma para a direita e
outra para a esquerda. Uma delas estava fechada há várias semanas. A outra
abria para a sala de jantar, onde havia ocorrido o fato misterioso. Holmes
entrou, e eu o segui com o sentimento de respeito no coração que a presença da
morte sempre inspira.

Era uma espaçosa sala retangular, que na ausência de
mobília tornava-se ainda ampla. Um papel vulgar adornava as paredes, mas aqui e
ali estava manchado de mofo e em alguns pontos, pendia-se em longas tiras,
deixando à vista o reboco amarelado. Diante da porta havia uma lareira vistosa,
revestida por uma imitação de mármore branco. Em um canto havia um coto de vela
vermelha. A única janela existente estava tão suja que a luz penetrava de modo
abstruso e precário, dando uma coloração acinzentada, intensificando, desse
modo, a espessa camada de poeira que cobria todo o aposento.

Todos esses detalhes eu observei depois. Inicialmente,
minha atenção ficou centrada na figura imóvel e macabra que jazia estendida no
soalho, com olhos vazios, olhando para o teto descolorido. Era um homem de
quarenta e três a quarenta e quatro anos de idade, de estatura mediana, de
ombros largos, cabelos pretos e crespos, e uma barba curta, ainda por fazer.
Ele estava vestido com um casaco pesado de casimira e colete, calças claras, e
os punhos e o colarinho eram imaculadamente brancos. Uma cartola, bem escovada,
estava caída no chão, ao seu lado. Tinha os punhos fechados e os braços
abertos, enquanto os membros inferiores, pela posição retorcida, pareciam
indicar que sua luta contra a morte tinha sido muito intensa. No rosto sem vida
havia uma expressão de horror e, talvez, de ódio como jamais vira num semblante
humano. Este contorcionismo maligno e terrível, combinado com a testa baixa,
nariz chato e mandíbula saliente, davam-lhe um aspecto singularmente simiesco,
sendo ainda mais acentuado pela sua postura contorcida. Já vi a morte sob
muitas formas, mas nunca a encontrei com um aspecto tão aterrorizante como
naquela sala escura e suja, que dava para uma das principais artérias
suburbanas de Londres.

Lestrade, com o seu habitual ar de furão, estava junto à
porta, e cumprimentou-nos.

“Este caso vai dar o que falar, senhor”, ele comentou.
“É melhor que qualquer coisa que eu já vi, e não nasci ontem.”

“Não há nenhum indício?”, indagou Gregson.

“Nenhum”, opinou Lestrade.

Sherlock Holmes aproximou-se do corpo, e, ajoelhando-se,
examinou-o atentamente.

“Você tem certeza de que não há nenhum
ferimento?”, ele perguntou, apontando para inúmeras gotas e salpicos de
sangue que se viam em torno.

“Correto!”, responderam em coro os dois
detetives.

“Então, é evidente que este sangue pertence a um
segundo indivíduo… Provavelmente o assassino, se é que foi assassinato. Isso
me lembra das mesmas circunstâncias que rodearam a morte de Van Jansen, em
Utrecht, no ano de 1834. Lembra-se do caso, Gregson?”

“Não, senhor.”

“Pois o leia… Você realmente deveria. Não há nada de
novo sob o sol. Tudo já aconteceu”.

Enquanto ele falava, seus dedos ágeis iam tateando aqui e
ali, em todo lugar, sentindo, pressionando, desabotoando, examinando, enquanto
os seus olhos mostravam aquela mesma expressão distante que já mencionei. O
exame foi realizado com tamanha rapidez que ninguém teria percebido a minúcia
com que foi conduzido. Finalmente, ele cheirou os lábios do morto, e depois
olhou para as solas de suas botas de verniz.

“Não mexeram nele?”, perguntou ele.

“Não mais do que o necessário para nossa
análise.”

“Você pode levá-lo para o necrotério agora”,
disse ele. “Não há mais nada para ver.”

Gregson tinha uma maca e quatro homens à espera. Logo que
os chamou, entraram na sala e levaram o cadáver do desconhecido. Quando o
levantaram, um anel tilintou no chão e rolou pelo assoalho. Lestrade agarrou-o
e examinou-o com olhos mistificados.

“Esteve aqui uma mulher”, exclamou ele. “É o
anel de uma mulher.”

Mostrava-a na palma da mão quando falou. Reunimo-nos todos
em volta dele e olhamos para o anel.  Não
podia haver dúvida de que aquele aro de ouro havia adornado o dedo anelar de
uma noiva.

“Isso complica as coisas”, disse Gregson. “E
sabe Deus que já estava bastante complicado.”

“Você tem certeza de que isso não o simplifica?”
observou Holmes. “De nada nos valerá ficarmos a contemplá-lo. O que você
encontrou em seus bolsos?”

“Temos tudo aqui”, disse Gregson, apontando para
alguns objetos, num dos últimos degraus da escada. “Um relógio de ouro,
número 97.163, da Casa Barraud, de Londres. Uma corrente de ouro maciço. Um
anel de ouro pesado e sólido com o símbolo maçônico. Um pregador de ouro em
forma de cabeça de buldogue com olhos de rubi. Um estojo de couro da Rússia com
os cartões de visita… de Enoch J. Drebber, de Cleveland, correspondente as
iniciais E. J. D. encontradas na roupa, mais o dinheiro solto nos bolsos,
somando sete libras e treze xelins. Uma edição de bolso do Decamerão, de
Boccaccio, com o nome de Joseph Stangerson na capa. Duas cartas… uma dirigida
a E. J. Drebber e outra a Joseph Stangerson.”

“Qual o endereço?”

“American Exchange”, Strand, Londres… Para
serem entregues quando procuradas pelos destinatários. Ambos são da Companhia
de navegação Guion, e referem-se à partida de Liverpool. “É claro que este
homem infeliz estava prestes a regressar a Nova York.”

“Fez algumas indagações sobre esse tal
Stangerson?”

“Assim que cheguei, senhor”, respondeu Gregson.
“Enviei propagandas para todos os jornais, e um dos meus homens foi até ao
American Exchange, mas ainda não voltou.”

“Pediu informações a Cleveland?”

“Telegrafamos esta manhã.”

“Como você fez as perguntas?”

“Simplesmente expusemos as circunstâncias, dizendo que
agradeceríamos quaisquer informações.”

“Não perguntou por detalhes sobre qualquer ponto que
lhe apareceu ser crucial?”

“Solicitei informações acerca de Stangerson.”

“Nada mais? Não vai telegrafar novamente pedindo
informações detalhadas?”

“Já disse tudo o que tinha a dizer”, replicou
Gregson, num tom ofendido.

Sherlock Holmes sorriu, e parecia estar prestes a fazer
algum comentário, quando Lestrade, que tinha estado no quarto da frente,
enquanto conversávamos no corredor, entrou em cena, esfregando as mãos com ar
satisfeito e pomposo.

“Sr. Gregson”, anunciou ele, “acabo de fazer
uma descoberta da maior importância, e que passaria despercebido se eu não
tivesse feito um minucioso exame das paredes.”

Os olhos do homem cintilavam enquanto ele falava, e ele
estava, evidentemente, em um estado de alegria reprimida por ter marcado um
ponto contra o seu colega.

“Venham aqui”, convidou ele, voltando apressadamente
para a sala movimentada, a atmosfera parecia aliviada após a remoção do macabro
inquilino. “Fiquem agora onde estão!”

Riscou um fósforo na sola da bota e ergueu-a contra a
parede.

“Olhem isso!” disse ele, triunfante.

Como disse, o papel que forrava as paredes estava rasgado e
pendente em vários lugares. Neste canto especial da sala havia sido arrancado
um grande pedaço, deixando um quadrado amarelo de reboco grosseiro. Através
deste espaço desnudado via-se, escrito com sangue, uma única palavra:

RACHE

“O que acha disso?”, perguntou o detetive, com o
ar de um pregoeiro que anuncia a atração da sua barraca. “Não tínhamos
reparado porque estava no canto mais escuro da sala e ninguém pensou em olhar
aqui. O assassino escreveu com seu próprio sangue. Vejam esta mancha que
escorreu pela parede! Isto anula a hipótese de suicídio. E por que foi
escolhido este canto para escrever? Vou dizer. Vejam esta vela sobre a lareira.
Estava acesa naquele momento e, sendo assim, este canto seria a parte mais
iluminada e não a parte mais escura da sala.”

“E o que isso significa agora que você
encontrou?” perguntou Gregson em voz depreciativa.

“Que significa? Ora, que alguém ia escrever o nome
feminino de Rachel quando foi interrompido, ou interrompida, antes de terminar.
Ouçam o que eu digo: quando este caso for esclarecido, verificarão que uma
mulher chamada Rachel tem algo a ver com isso. O senhor pode rir como quiser,
Sr. Sherlock Holmes. Pode ser muito esperto e inteligente, mas quando tudo
estiver esclarecido, verá que um velho cão de caça, afinal de contas, tem
melhor faro.”

“Realmente peço desculpas!” disse meu
companheiro, que havia irritado o homenzinho com a sua explosão de risos.
“Você certamente tem o crédito de ser o primeiro a ver essa inscrição,
conforme observou. Tem todos os sinais de ter sido escrito pelo outro
participante deste mistério noturno. Não tive tempo para examinar esta sala
ainda, mas com a sua permissão, devo fazê-lo agora.”

Enquanto falava, ele puxou uma fita métrica e uma grande
lupa do bolso. Armado com os dois instrumentos, começou a andar rápido e
silenciosamente pela sala, às vezes parando, ajoelhando-se e, de quando em
quando, estendendo-se no soalho. Tão absorto estava em sua ocupação que
ignorava a nossa presença, pois não parava de falar sozinho, a meia voz, o
tempo todo, soltando uma série de exclamações, resmungos, assobios e pequenos
gritos, que pareciam de contentamento e expectativa. Ao observá-lo, foi-me
impossível deixar de compará-lo a um cão de caça bem ensinado e de puro sangue,
correndo de cá para lá atrás da presa, ganindo de ansiedade, até que se
deparasse com o cheiro perdido.

Durante vinte minutos ou mais, ele continuou suas
pesquisas, medindo com o máximo cuidado as distâncias entre marcas inteiramente
invisíveis para mim e, ocasionalmente, aplicando a sua fita métrica à parede,
de maneira também incompreensível para nós. Num determinado ponto, reuniu com
muito cuidado um pequeno monte de pó cinzento do chão, e guardou-o num
envelope. Finalmente ele examinou com a lente a palavra escrita na parede,
passando por cima de cada letra com a exatidão minuciosa. Feito isto, pareceu
estar satisfeito, pois meteu no bolso a lente e a fita métrica.

“Dizem que o gênio não é mais que uma infinita
paciência”, comentou com um sorriso. “É uma definição muito ruim, mas
aplica-se perfeitamente ao trabalho de um detetive.”

Gregson e Lestrade haviam observado as manobras do seu
colega amador com uma curiosidade considerável e algum desprezo. Evidentemente
não apreciavam o fato de que as menores ações de Sherlock Holmes eram
direcionadas a um fim definitivo e prático.

“O que você acha disso, senhor?”, perguntaram-lhe
ambos.

“Seria roubar o mérito das suas pesquisas, se eu
pretendesse ajudá-los”, observou o meu amigo. “Estão fazendo tantos
progressos que seria uma pena alguém interferir.” Havia algo de sarcasmo
na sua voz. “Se tiverem a bondade de deixar-me a par de suas
investigações”, ele continuou, “eu ficarei feliz em prestar-lhes todo
o auxílio ao meu alcance. Nesse meio tempo, gostaria de falar com o policial
que encontrou o corpo. Podem dar-me o seu nome e endereço?”

Lestrade olhou para o seu caderno de anotações. “John
Rance”, disse ele. “Ele está de folga agora. Pode encontrá-lo em 46,
Audley Court, em Kennington Park Gate”.

Holmes tomou nota do endereço.

“Vamos, Doutor”, ele disse, “vamos procurá-lo. Eu
vou lhes dizer uma coisa que talvez os ajude neste caso”, continuou ele,
voltando-se para os dois detetives. “Aqui houve um assassinato e o autor
do crime foi um homem. Ele tem mais de um metro e oitenta de altura, ainda é
relativamente jovem, usava botas grosseiras de bico quadrado e fumava um
charuto Trichinopoly. Ele veio aqui com sua vítima em uma carruagem de quatro
rodas, puxada por um cavalo com três ferraduras velhas e uma nova, na pata
dianteira esquerda. Com toda probabilidade, o assassino tinha um rosto corado,
e as unhas compridas. Estas são apenas algumas indicações, mas podem
ajudá-los.”

Lestrade e Gregson entreolharam com um sorriso incrédulo.

“Se este homem foi assassinado, como foi feito?”
perguntou o primeiro.

“Veneno”, disse Sherlock Holmes secamente, e se
afastou em direção a porta. “Outra coisa, Lestrade”, acrescentou,
voltando-se para dentro da sala: “Rache,
é uma palavra alemã para ‘vingança’, por isso não perca seu tempo procurando
uma senhorita Rachel”.

E com essa tirada final, ele afastou-se, deixando os dois
rivais boquiabertos.

 

 

CAPÍTULO QUARTO

 

O QUE JOHN RANCE
TINHA A CONTAR

 

 

Era uma hora da tarde quando deixamos a casa número 3 de
Lauriston Gardens. Sherlock Holmes levou-me à agência telegráfica mais próxima,
de onde expediu um longo telegrama. Chamou depois uma carruagem e ordenou ao
cocheiro que nos conduzisse ao endereço fornecido por Lestrade.

 “Não há nada
como as informações em primeira mão”, ressaltou ele, “já tenho uma
opinião sobre o caso, mas ainda é conveniente recolher todos os dados
possíveis.”

“Você me surpreende, Holmes”, disse-lhe.
“Não creio que esteja tão certo como finge saber a respeito dos pormenores
que deu.”

“Não há possibilidade de erro”, ele respondeu.
“A primeira coisa que eu observei ao chegar lá foi que uma carruagem havia
feito dois sulcos com suas rodas próximas ao meio-fio. Agora, até a noite
passada, não tivemos chuva por uma semana, de maneira que esses sulcos assim
tão fundos datam de ontem à noite. Havia marcas de cascos do cavalo, também,
uma delas mais nítida do que as demais, indicando que era uma ferradura nova.
Uma carruagem parou ali depois de ter começado a chover e nenhuma durante a manhã
– sobre este ponto tenho o testemunho de Gregson -, conclui-se que chegou
durante a noite e, portanto, trouxe os dois indivíduos para a casa.”

    “Isso parece
bastante simples”, disse eu, “mas como sabe a altura do outro
homem?”

“Ora, a altura de um homem, em nove de cada dez casos,
pode ser deduzida a partir do comprimento de seu passo. E é um cálculo bastante
simples, mas será inútil aborrecê-lo com números. O homem imprimiu os seus
passos, tanto no barro do jardim como na poeira do assoalho. Então, tive a
oportunidade de verificar com exatidão o meu cálculo. Quando um homem escreve
em uma parede, seu instinto leva-o a escrever acima do nível de seus próprios
olhos. A escrita estava a cerca de um metro e oitenta do assoalho. Foi
brincadeira de criança.”

“E a sua idade?”, perguntei-lhe.

“Bem, se um homem pode dar passos de um metro e vinte
centímetros, sem o menor esforço, não pode ter as articulações endurecidas.
Essa era a amplitude de uma poça de água no passeio do jardim que ele
evidentemente atravessou. O homem dos sapatos de verniz teve que contorná-la, e
o dos sapatos quadrados saltou-a. Não há nenhum mistério nisso tudo. Estou
simplesmente aplicando à vida normal alguns desses preceitos de observação e
dedução que preconizei no meu artigo. Há mais alguma coisa que o
intrigue?”

“Sobre as unhas e o charuto Trichinopoly”,
sugeri.

“Aquela palavra na parede foi escrita com o indicador
masculino mergulhado em sangue. A lupa me permitiu observar que o reboco fora
um pouco arranhado ao fazê-lo, não teria acontecido se o homem tivesse as unhas
cortadas. Quanto ao charuto… juntei um pouco de cinzas espalhadas pelo
assoalho. Era de cor escura e escamosa… uma cinza que só um Trichinopoly
produz. Fiz um estudo aprofundado de cinzas de charuto, na verdade, escrevi uma
monografia sobre o assunto. Posso me gabar que consigo distinguir num relance a
cinza de qualquer marca conhecida ou de charuto ou de tabaco. É exatamente
nesses detalhes que um detetive especializado difere do tipo representado por
Gregson e Lestrade.”

“E o rosto corado?” Eu perguntei.

“Ah, esse foi meu tiro mais ousado, embora eu não
tenha nenhuma dúvida de que estava certo. Nessa fase da investigação, não me
interrogue sobre esse ponto.”

Passei a mão pela testa. “Minha cabeça está em turbilhão”,
comentei, “Quanto mais penso, mais o caso me parece misterioso. Como
vieram estes dois homens – se é que eram dois homens – e puderam entrar numa
casa vazia? O que aconteceu com o cocheiro que os trouxe? De que maneira um
homem poderia obrigar outro a beber veneno? Como explicar o sangue? Qual era o
objetivo do assassino, já que não houve roubo? Como foi parar ali aquele anel
de mulher? Acima de tudo, por que o segundo homem escreveu a palavra alemã
RACHE antes de se mandar? Confesso que não compreendo como poderemos conciliar
todos esses fatos.”

Meu companheiro sorriu com aprovação.

“É, você resumiu as dificuldades da situação de forma
precisa e clara”, disse ele. “Mas há muita coisa ainda obscura,
embora eu tenha muitos esclarecimentos sobre os principais fatos. Quanto à
descoberta de Lestrade, coloca a polícia numa pista falsa, sugere ser obra de
socialistas ou de sociedades secretas. Não foi feito por um alemão. A letra A,
se você notou, foi impressa um pouco à moda gótica. Agora, um verdadeiro alemão,
quando escreve em letras de imprensa, o faz invariavelmente em caracteres
latinos, de modo que podemos dizer com segurança que a palavra não foi escrita
por um alemão, mas por um imitador desajeitado que exagerou no seu papel. Foi
simplesmente uma artimanha para desviar a investigação para uma direção errada.
E não direi nada mais sobre este caso, meu caro doutor. Sabe que o ilusionista
perde o mérito quando explica os seus truques, se eu o puser mais a par do meu
método de trabalho, chegará à conclusão, afinal de contas, de que sou uma
pessoa muito comum.” “Eu nunca farei isso”, respondi, “você
coloca os estudos de investigação à altura de uma ciência exata, como sempre
será trazido ao mundo as boas contribuições intelectuais”.

Meu companheiro corou-se de satisfação com as minhas
palavras, e da forma mais séria possível. Já vinha observando que ele era tão
sensível aos elogios feitos à sua arte como qualquer menina poderia ser à sua
beleza.

“E vou lhe dizer mais uma coisa”, disse ele.
“Quanto aos homens, o de sapatos de verniz e o de sapatos de biqueira
quadrada, eles vieram juntos pelo caminho, de maneira mais amigável possível…
de braços dados, provavelmente. Quando eles entraram, eles andaram de um lado
para outro… Ou em vez disso, o de sapatos de verniz ficou parado, enquanto o
de sapatos de biqueira quadrada ficou andando pela sala – eu pude ler tudo isso
no pó sobre o assoalho -; enquanto andava pela sala, falava e, cada vez mais,
ficava mais exaltado, também pude ler esse detalhe por causa do aumento de suas
passadas. Ele falava o tempo todo, sem dúvida, ficando cada vez mais
enraivecido. Então, a tragédia ocorreu. É tudo quanto sei até agora, pois o
resto não passa de meras suposições e conjecturas. Temos um bom ponto de
partida, no entanto, para começarmos. Devemos nos apressar, porque esta tarde
eu quero ir ao concerto no Halle, ouvir Norman Neruda.”

Essa conversa ocorreu enquanto a nossa carruagem ia
cortando uma longa sucessão de ruas sujas e caminhos sombrios. Numa rua, mais
suja e sombria que as demais, nosso cocheiro parou subitamente. “Ali é
Audley Court”, disse ele, apontando para a entrada de uma rua, que era na
verdade uma fenda estreita entre duas paredes de tijolos escuros. “Ficarei
esperando-os aqui.”

Audley Court não era uma localidade atraente. A passagem
estreita nos conduziu a um pátio quadrado pavimentado de lajotas e sitiado por
habitações sórdidas. Fomos abrindo caminho entre grupos de crianças sujas, com
roupas desbotadas, até chegarmos ao número 46, cuja porta foi decorada com um
pequeno pedaço de metal em que o nome Rance fora gravado. Logo, descobrimos que
o policial estava na cama, fizeram-nos entrar numa saleta, onde ficamos à
espera dele.

Ele surgiu pouco depois, parecendo um pouco irritado por
ter sido perturbado em seu sono. “Eu fiz o meu relatório na
chefatura”, disse ele.

Holmes pegou meio soberano do bolso e começou a brincar
distraidamente com ele. “Pensamos que seria melhor ouvir toda a história
de seus próprios lábios”, disse ele.

“Contarei com prazer o que desejam”, respondeu o
policial, sem tirar os olhos de cima do pequeno disco de ouro.

“Conte-nos apenas o que aconteceu e à sua
maneira.”

Rance sentou-se no sofá de crina e franziu as sobrancelhas
como se estivesse determinado a não omitir nada em sua narrativa.

“Vou começar pelo princípio”, disse ele. “A
minha ronda é das dez da noite às seis da manhã. Por volta das onze horas,
houve uma briga no White Hart… Excetuando isso, tudo estava calmo na minha
ronda. À uma da madrugada, começou a chover, encontrei-me com Harry Murcher –
colega que faz a ronda da zona de Holland Grove – e ficamos juntos na esquina
da Henrietta Street. Mais tarde, talvez, cerca de duas da madrugada ou um pouco
depois, pensei em dar uma volta e ver se estava tudo certo na Brixton Road. Fiz
uma caminhada solitária. Não vi uma alma sequer por lá, apenas um ou dois
coches passaram por mim. Ia rua abaixo, pensando com os meus botões o quanto me
cairia bem um copo de gim quente, quando o brilho de uma luz na janela daquela
casa me chamou a atenção. Eu sabia que as duas casas de Lauriston Gardens
estavam vazias porque o proprietário não limpara os drenos, embora o último
inquilino de uma delas tivesse morrido de febre tifóide, por isso, ao ver a luz
na janela, suspeitei que algo de anormal acontecesse ali. Quando cheguei à
porta…”

“Você parou, e depois voltou para o portão do
jardim,” interrompeu-o o meu companheiro. “Por que você fez
isso?”

Rance deu um pulo no sofá e arregalou os olhos com o
espanto para Sherlock Holmes.

“Ora, isso é verdade, senhor”, disse ele,
“embora como possa saber tal coisa, só Deus sabe. Quando cheguei até a
porta, estava tudo tão quieto e tão solitário que pensei, não seria nada mal
ter alguém comigo. Não tenho medo de nada que pertença a este lado da vida, mas
eu pensei que talvez fosse o inquilino que houvesse morrido de tifo e agora
estava de volta, inspecionando os esgotos sujos que o tinham levado para o
túmulo. Esse tipo de pensamento me deu calafrio e eu voltei ao portão para ver
se avistava a lanterna de Murcher, mas não havia nenhum sinal dele, nem de
ninguém mais.”

“Não havia ninguém na rua?”

“Não havia uma viva-alma, senhor, nem um cão sequer.
Então eu me recompus, voltei e empurrei a porta que estava entreaberta. Tudo
tranquilo no interior, então, penetrei na sala, onde ardia uma luz. Havia uma
vela oscilante sobre a lareira – uma vela de cera vermelha – e por causa dessa
luz que eu pude ver…”

“Sim, eu sei tudo o que você viu. Você deu várias
voltas pela sala, ajoelhou-se junto ao corpo, em seguida, atravessou a casa
para ver se a porta da cozinha estava trancada, e então…”

John Rance pôs-se de pé com a cara assustada e uma
desconfiança no olhar. “Onde é que estava escondido para ver tudo
isso?”, indagou-o. “Parece-me que você sabe muito mais do que
deveria.”

Holmes riu e atirou seu cartão sobre a mesa para o
policial. “Não queira prender-me pelo assassinato”, disse ele.
“Eu sou um dos cães de caça e não o lobo. Gregson e Lestrade lhe darão
todas as garantias. Vá em frente: que fez em seguida?”

Rance tornou a sentar-se, sem, contudo, perder sua
expressão de perplexidade. “Eu voltei para o portão e apitei. Nisso
Murcher trouxe mais dois colegas para o local.”

“Então a rua estava deserta?”

“Bem, se eu precisasse da pessoa, continuaria
deserta.”

“O que você quer dizer?”

Um largo sorriso apareceu no rosto do policial. “Já vi
muitos bêbedos na minha vida”, disse ele, “mas nenhum como aquele.
Ele estava no portão quando eu saí, debruçando-se nas grades, a cantar a plenos
pulmões a Newfangled banner, ou alguma coisa desse tipo. Não conseguia ficar de
pé, quanto mais nos ajudar em alguma coisa.”

“Que tipo de homem era ele?” perguntou Sherlock
Holmes.

John Rance pareceu um pouco irritado com esta digressão.
“Ele era um homem comum, bêbado”, disse ele. “E teria ido parar
no posto policial se não tivéssemos algo mais importante a fazer.”

“Mas não reparou o rosto e as roupas dele?”,
interrompeu Holmes, impaciente.

“Sim, reparei: tivemos que sustentá-lo entre nós… eu
e Murcher. Era alto, rosto vermelho…”

“Isso basta”, exclamou
Holmes. O que aconteceu com ele?”

“Tínhamos mais o que fazer que
ficar cuidando dele,” disse o policial, de voz injuriada. “Aposto que
acabou encontrando muito bem o caminho de casa.”

“Como ele estava vestido?”

“Com um casaco marrom.”

“Tinha um chicote na mão?”

“Chicote?… não”.

“Deve tê-lo deixado em qualquer
lugar”, murmurou meu companheiro. “Não viu ou ouviu um coche
afastar-se depois disso?”

“Não.”

“Há um meio soberano para
você”, disse meu companheiro, levantando-se e pegando o chapéu. “Temo
que nunca suba muito em sua carreira. Seu cérebro deveria ser para uso, bem
menos que um ornamento. Você poderia ter ganhado as suas divisas de sargento na
noite passada. O homem que esteve em suas mãos é o homem que detém a chave
deste mistério, é quem estamos procurando. Digo-lhe agora que é inútil discutir
a esse respeito. Vamos, Doutor.”

Voltamos para a carruagem que nos esperava, deixando o
nosso informante incrédulo, mas obviamente muito perturbado.

“Que tolo desajeitado!”, exclamou Holmes
amargamente, quando voltávamos para os nossos alojamentos. “Só de pensar
que teve uma sorte incomparável, e não tirou vantagem alguma disso.”

“Estou um pouco no escuro ainda. É verdade que a
descrição deste homem coincide com a sua ideia a respeito da segunda personagem
deste mistério. Mas por que ele voltaria àquela casa, depois de ter fugido?
Essa não é a maneira de um criminoso agir.”

“O anel, homem, o anel: isso que o obrigou a voltar.
Jamais teríamos outra maneira de pegá-lo. Poderemos sempre iscar nossa linha
com o anel, doutor. Devo agradecê-lo por insistir comigo em ir até a casa ou eu
teria perdido assim o estudo mais interessante que já encontrei: Um Estudo em
Vermelho, que acha? Por que não devemos usar um jargão artístico? Há o
escarlate do assassinato correndo na meada incolor da vida, nosso dever é
desmascará-lo e isolá-lo, e expor cada centímetro dele. E agora para o almoço,
e depois ao concerto de Wilma Norman Neruda. Seu acometimento e sua reverência
são esplêndidos. Chopin ela interpreta tão magnificamente:
Trá-lá-lá-lirá-lá…”

Recostando-se no banco da carruagem, este cão de caça
amador cantava como uma cotovia, enquanto eu meditava sobre as muitas
versatilidades da mente humana.

 

 

CAPÍTULO QUINTO

 

NOSSO ANÚNCIO TRAZ
UM VISITANTE

 

 

Nossas atividades pela manhã foram demasiadamente intensas
para a minha saúde e pela tarde me encontrava exausto. Após a partida de Holmes
para o concerto, deitei-me no sofá e esforcei para obter um par de horas de
sono. Foi uma tentativa inútil. Minha mente estava muito estimulada com tudo
que ocorrera naquelas últimas horas, povoada por estranhas fantasias e
suposições. Toda vez que fechava os olhos, via diante de mim o rosto contraído
e simiesco do homem assassinado. Tão sinistra impressão tinha produzido em mim,
o seu rosto, que eu achava difícil sentir outra coisa senão gratidão por aquele
que o tinha retirado deste mundo. Se alguma vez as feições humanas já
denunciaram um ser tão maligno, certamente foram as feições de Enoch J.
Drebber, de Cleveland. Mas ainda reconhecia que a justiça deveria ser feita, e
que a depravação da vítima não constituía um atenuante aos olhos da lei.

Quanto mais eu pensava nisso, mais extraordinária me
parecia a hipótese do meu companheiro: o homem foi envenenado. Lembrei-me de
como ele havia cheirado seus lábios, e não tenho dúvida de que ele detectara
algo que lhe inspirara tal dedução. Por outro lado, se não fosse o veneno, que
mais poderia ter causado a morte do homem, já que não havia nem ferimentos nem
marcas de estrangulamento? Mas, por outro lado, de quem era o sangue tão
espesso sobre o chão? Não havia sinais de luta, nem tinha a vítima qualquer
arma com a qual ele poderia ter ferido um antagonista. Enquanto todas essas
questões ficavam sem solução, eu percebia que o sono não seria tarefa fácil,
nem para Holmes nem para mim. Seu sossego e a sua autoconfiança me convenciam
de que ele já havia formulado uma teoria que explicava todos os fatos, embora
eu ainda não pudesse conjecturar qual fosse.

Ele regressou muito tarde… tão tarde que eu sabia que
somente o conserto não poderia tê-lo detido o tempo todo. O jantar estava à
mesa antes dele aparecer.

“Foi magnífico”, disse ele, assim que tomou o seu
lugar à mesa. “Você se lembra de que Darwin diz sobre a música? Ele
afirmava que o poder de produzi-la e apreciá-la existiu na raça humana muito
antes da faculdade da linguagem. Talvez seja por isso que estamos tão
sutilmente influenciados por ela. Há em nossas almas vagas memórias daqueles
séculos nebulosos, quando o mundo ainda estava em sua infância.”

“Essa é mais uma ideia geral”, comentei.

“Uma ideia deve ser tão ampla quanto a natureza, se
quisermos interpretá-la”, ele respondeu. “Qual é o problema? Você não
parece muito bem. Este caso Brixton Road tem perturbado você.”

“Para dizer a verdade, tem mesmo”, eu confirmei.
“Eu deveria ser menos sensível depois de minhas experiências afegãs. Vi os
meus próprios camaradas serem cortados em pedaços em Maiwand, sem perder a
coragem.”

“Posso entender perfeitamente. Há um mistério sobre
este caso que estimula a imaginação; onde não há imaginação não há horror. Leu
o jornal desta tarde?”

“Não.”

“Traz uma notícia sobre o caso. Só não menciona o fato
de que, quando o cadáver foi erguido, uma aliança de casamento rolou pelo chão.
Melhor assim.”

“Por quê?”

“Veja este anúncio”, respondeu ele. “Eu
enviei o anúncio a todos os jornais nesta manhã, imediatamente após o
caso.”

Ele jogou o jornal para mim e eu olhei para o local
indicado. Era o primeiro anúncio na seção de Objetos Achados. “Na Brixton
Road, esta manhã, foi encontrada uma aliança de ouro na estrada entre a White
Hart Tavern e Holland Grove. Procurar o Dr. Watson, Baker Street, 221-B, entre
oito e nove horas da noite.”

“Desculpe-me por usar o seu nome”, disse ele.
“Se usasse meu nome, algum desses imbecis poderia reconhecê-lo e querer se
intrometer no assunto”.

“Está tudo bem”, respondi-lhe. “Mas, se
aparecer alguém, não terei anel para entregar, suponho.”

“Oh, terá sim”, disse ele, entregando-me um.
“Este vai servir muito bem. É quase uma cópia”.

“E quem você espera responder a este anúncio?”

“Ora, o homem de casaco marrom. Nosso amigo florido de
sapatos de bicos quadrados. Se ele mesmo não vier, enviará um cúmplice.”

“Será que ele não achará isso muito perigoso?”

“Nem um pouco. Se a minha visão do caso estiver
correta – e tenho todos os motivos para acreditar que está -, este homem
preferirá correr riscos a perder o anel. Tenho a certeza de que ele deixou cair
o anel quando se inclinou sobre o corpo de Drebber, e não deu pela sua falta.
Após deixar a casa percebeu a perda e voltou para pegá-lo, mas encontrou o
policial já na casa, devido a sua tolice em deixar a vela acesa. Ele teve que
fingir de bêbado a fim de evitar suspeita, que poderia ter sido despertada por sua
aparição no portão. Agora se coloque no lugar daquele homem. Ao refletir sobre
o assunto, deve ter-lhe ocorrido que era possível que tivesse perdido o anel na
estrada, depois de deixar a casa. Que deve ter feito ele, então? Procurado
ansiosamente nos jornais da tarde, na esperança de vê-lo entre os objetos
achados. Sem dúvida, seus olhos brilharam ao ler isto. Era muita sorte mesmo.
Por que deveria temer uma armadilha? A seu ver não haveria nenhuma razão
ligando o anel encontrado ao crime. Ele viria. Ele virá. Você deve vê-lo dentro
de uma hora.”

“E depois?”, perguntei.

“Oh, pode deixar que lido com ele. Você tem alguma
arma?”

“Tenho um revólver velho e alguns cartuchos.”

“É melhor limpá-lo e carregá-lo. Ele é um homem
desesperado. Mesmo que ele seja pego de surpresa, é bom estar pronto para
qualquer coisa.”

Fui para o meu quarto e segui o seu conselho. Quando voltei
com a pistola, Holmes estava entregue a sua ocupação favorita, arranhando as
cordas de seu violino.

“A trama se complica”, disse ele, quando entrei:
“Acabo de receber a resposta ao meu telegrama para a América. Minha visão
do caso é correta.”

“E qual é?”, perguntei ansiosamente.

“Meu violino está precisando de cordas novas”,
comentou. “Coloque sua pistola no bolso. Quando o sujeito chegar, fale
normalmente com ele, de um modo simples. Deixe o resto comigo. Não vai
assustá-lo, olhando-o fixamente.”

“São oito horas agora”, eu disse, conferindo o
relógio.

“Provavelmente, ele vai estar aqui em poucos minutos.
Abre um pouco a porta. Isso; agora ponha a chave por dentro. Obrigado. Este é
um livro velho curioso, eu o peguei em uma prateleira ontem! De jure inter gentes – publicados em
latim em Liège, nos Países Baixos, em 1642. Carlos I ainda tinha firme a cabeça
em seus ombros quando este livrinho de lombada marrom foi impresso.”

“Quem é o impressor?”

“Philippe de Croy, quem pode saber quem terá sido. No
frontispício, em tinta muito desbotada, está escrito: Ex libris Guliolmi Whyte.
“Eu queria saber quem foi William Whyte. Algum pragmático advogado do século
XVII, eu suponho. Sua escrita possui um formato oficial. “Aí vem o nosso homem,
eu acho.”

Enquanto ele falava, soou a campainha. Sherlock Holmes
levantou-se suavemente e moveu a cadeira na direção da porta. Ouvimos a criada
andar pelo corredor e o estalido seco da trava quando foi aberta.

“O Dr. Watson mora aqui?” perguntou uma voz
clara, mas bastante áspera. Não pudemos ouvir a resposta da criada, mas a porta
foi fechada e alguém começou a subir as escadas. Os passos eram incertos e
arrastados. Um olhar de surpresa passou sobre o rosto de meu companheiro,
enquanto ouvia-os. Ele veio lentamente ao longo do corredor e deu uma leve
pancada na porta.

“Entre,” pedi-lhe.

À minha convocação, ao invés de o homem violento que
esperávamos, entrou uma mulher muito velha e enrugada, mancando. Ela parecia
deslumbrada com a repentina luz do aposento, e depois de fazer uma reverência,
ficou piscando para nós com os olhos turvos, remexendo nos bolsos com dedos
trêmulos e nervosos. Olhei para o meu companheiro, e seu rosto assumiu uma
expressão tão desconsolada que mal pude manter meu semblante sério.

A velha senhora tirou um jornal vespertino, e apontou para
o nosso anúncio. “É isso que me trouxe aqui, meus bons senhores”,
disse ela, fazendo outra mesura, “Uma aliança de ouro na Brixton Road. Ela
pertence a minha filha Sally, que está casada só há doze meses. Se seu marido,
que é comissário de bordo de um vapor da Union, viesse a saber que ela não tem
mais a aliança, não sei o que poderia acontecer. Sem beber ele já não é muito
calmo. Na noite passada, ela foi ao circo junto com…”

“É esta a aliança?”, perguntei.

“Deus seja louvado!” exclamou a velha;
“Sally ficará muito contente esta noite. É essa mesma.”

“Qual o seu endereço?”, perguntei, pegando um
lápis.

“Duncan Street, 13, em Houndsditch. Fica longe
daqui.”

“Para ir de Houndsditch a qualquer circo”, disse
Sherlock Holmes bruscamente, “não se passa pela Brixton Road”.

A velha voltou-se e olhou atentamente para ele com seus
pequeninos olhos vermelhos. “O senhor perguntou pelo meu endereço”,
disse ela. “Sally vive numa pensão em Peckham, na Mayfield Place, 3.”

“Qual é o seu sobrenome?

“Meu nome é Sawyer… o dela é Dennis, depois que se
casou com Tom Dennis… Ele é um rapaz inteligente, limpo, também, desde que
esteja no mar, trabalhando, em terra, fica ancorando nas mulheres e nas
bebidas…”

“Aqui está o seu anel, Sra. Sawyer,” interrompi a
velhota, em obediência a um sinal de meu companheiro, “que evidentemente
pertence à sua filha, e estou satisfeito em poder devolvê-lo à sua legítima
proprietária.”

Com muitas bênçãos murmuradas e declarações de gratidão, a
velhota meteu a aliança no bolso e arrastou-se escada abaixo. Sherlock Holmes
ergueu-se no momento em que ela se foi e correu para o seu quarto. Voltou em
segundos envolto no seu impermeável e com um cachecol no pescoço.

“Vou segui-la”, disse ele, às pressas, “ela
deve ser cúmplice, e vai levar-me a ele. Espere por mim.” A porta do
corredor mal se fechara nas costas da nossa visitante, quando Holmes desceu as
escadas. Da janela, pude vê-la andando debilmente ao longo da calçada,
perseguida a certa distância por ele. “Ou toda a sua teoria é
incorreta”, pensei, “ou então ele vai ser levado agora ao âmago do
mistério.” Nem precisava pedir para esperar por ele, pois não conseguiria
dormir sem saber o resultado de sua aventura.

Eram quase nove horas quando partiu. Não tinha ideia de
quanto tempo levaria para regressar, mas fiquei sentado impassivelmente fumando
o meu cachimbo e pulando as páginas da Vie Henri Murger, de Boheme. Quando
deram dez horas, ouvi os passos da criada, que se recolhia à cama. Às onze
horas, reconheci as passadas imponentes no piso da proprietária, passando pela
minha porta, rumo ao mesmo destino. Era quase meia-noite quando ouvi o som
agudo de uma chave na fechadura. Em instantes ele entrou e eu vi pelo seu rosto
que não tinha sido bem sucedido na sua empreitada. Jocosidade e desgosto
pareciam lutar em seu íntimo, até que, de repente, ele explodiu em uma
gargalhada.

“Por nada deste mundo gostaria que os oficiais da
Scotland Yard tomassem conhecimento disso”, exclamou ele, caindo em sua
cadeira, “Tenho zombado tanto deles que nunca mais deixariam de falar no
assunto. Posso me dar ao luxo de rir porque sei que, no fim das contas, levarei
a melhor.”

“Então, o que aconteceu?”, perguntei.

“Oh, não me importo em contar essa história bem
desfavorável a minha pessoa. Aquela criatura não havia andado muito quando
começou a mancar e mostrar todos os sinais de fadiga. Em pouco tempo, fez parar
um coche que passava. Consegui chegar muito próximo para ouvir o endereço, mas
não precisava ter sido tão ansioso, pois ela disse em voz alta o suficiente
para ser ouvido do outro lado da rua, “Drive a 13, Duncan Street,
Houndsditch”, gritou ela. Então, é verdade, pensei, após tê-la visto
entrar com segurança no coche e sentar na traseira. Esta é uma arte que todo
detetive deveria tornar-se um especialista. Bem, seguimos em frente, agitados,
sem parar, até chegarmos à rua em questão. Saltei antes de chegarmos diante da
porta, e caminhei pela rua descontraidamente. Vi o coche dela parar. O cocheiro
desceu da boleia, abriu a portinhola e ficou à espera. Mas não desceu ninguém.
Quando me aproximei, ele estava vasculhando freneticamente a cabine vazia e dando
vazão à melhor coleção de xingamentos que já ouvi. Não havia o menor sinal ou
vestígio da passageira, e receio que levará algum tempo antes que receba o
valor da corrida. Pedindo informações sobre o número 13, descobrimos que a casa
pertencia a um respeitável tapeteiro chamado Keswick, e que ali ninguém ouvira
falar em pessoas com o sobrenome de Sawyer ou Dennis.”

“Você não quer dizer,” exclamei, perplexo, “que
aquela velha cambaleante e frágil foi capaz de saltar do coche em movimento,
sem ser vista por você ou pelo cocheiro?”

“Velha que nada!”, disse Sherlock Holmes,
bruscamente. “Nós que éramos duas velhas. Sem dúvida, era um jovem, ativo,
além de ser um ator incomparável. Obteve um disfarce intocável. Ele reparou que
estava sendo seguido, sem dúvida, e usou esse meio para escapar. Isso prova que
o homem que estamos procurando não é tão solitário quanto imaginei, possui
amigos dispostos a arriscar-se por ele. Agora, doutor, você parece-me fatigado.
Siga o meu conselho: vá dormir.”

Eu estava realmente muito cansado, então, obedeci a sua
ordem. Deixei Holmes sentado diante do fogo ardente, e, em tempos, ouvia os
lamentos arrastados e melancólicos de seu violino, sabendo que ele ainda
continuava refletindo sobre o estranho problema que se tinha proposto a desvendar.

 

 

CAPÍTULO SEXTO

 

TOBIAS GREGSON
MOSTRA O QUE PODE FAZER

 

 

Os jornais do dia seguinte estavam cheios do que definiram
como “O Mistério de Brixton”. Cada um deles trazia um longo relato
sobre o caso, e alguns iam além da elucidação. Havia algumas informações
totalmente estranhas para nós. Ainda mantenho em meu álbum numerosos recortes e
extratos referentes ao caso. Aqui vai a condensação de alguns deles:

O Daily Telegraph comentou que, na história do crime,
raramente se apresentava uma tragédia com características tão estranhas. O nome
alemão da vítima, a ausência de qualquer outro motivo e a inscrição sinistra na
parede, tudo apontava que o crime fora perpetrado por refugiados políticos e
revolucionários. Os socialistas tinham muitas ramificações na América, e a
vítima, sem dúvida, violara as leis, e fora perseguido por eles. Após aludir
ligeiramente ao Vehmgericht, à aqua
tofana,
aos Carbonari, à marquesa de Brinvilliers, à teoria darwiniana, aos
princípios de Malthus e aos assassinatos de Ratcliff Highway, o artigo concluía
admoestando o governo e defendendo uma maior vigilância sobre os estrangeiros
na Inglaterra.

O Standard comentava que fatos desse tipo ocorriam,
geralmente, quando o Partido Liberal estava no poder. Eles surgem por causa da
inquietação das massas e, consequentemente, pelo enfraquecimento das
autoridades governantes. A vítima era um cidadão americano que residia na
metrópole há algumas semanas. Hospedara na pensão de Madame Charpentier, em
Torquay Terrace, Camberwell. Estava acompanhado em suas viagens por seu
secretário particular, o Sr. Joseph Stangerson. Ambos despediram de sua
senhoria na terça-feira, dia 4, partindo para a Euston Station com a intenção
declarada de pegar o expresso para Liverpool. Tinham sido vistos na plataforma
da estação. Nada mais se soube deles até que o corpo do Sr. Drebber foi
encontrado numa casa vazia da Brixton Road, a muitos quilômetros de Euston.
Como ele chegou lá, ou como conheceu seu destino trágico, são questões que
ainda estão envolvidas em completo mistério. Nada se sabe sobre o paradeiro de
Stangerson. Estamos felizes em saber que o Sr. Lestrade e Sr. Gregson, da
Scotland Yard, estão ambos envolvidos com o caso, e que esses oficiais
conhecidos irão rapidamente lançar luz sobre o assunto.

O Daily News observou que não havia dúvida de ser um crime
político. O despotismo e o ódio do liberalismo que animam os governos europeus
têm conduzido refugiados às costas britânicas; homens que seriam excelentes
cidadãos se não fossem as lembranças amargas de tudo o que haviam sofrido.
Entre eles sempre houve um rigoroso código de honra, e qualquer violação a esse
código sempre foi punido com a morte. Todo esforço deve ser feito para
encontrar o secretário, Stangerson, e verificar alguns detalhes dos hábitos da
vítima. Um grande passo já fora dado ao descobrir o endereço da casa onde
estivera hospedado – um resultado que se deve à agudeza e à energia do Sr.
Gregson, da Scotland Yard.

Sherlock Holmes e eu líamos essas notícias durante o café
da manhã, e elas pareciam diverti-lo consideravelmente.

“Eu lhe disse que, aconteça o que acontecer, Lestrade
e Gregson vão sempre levar a fama.”

“Isso depende de como se vê.”

“Oh, Deus o abençoe, não tem a menor importância. Se o
homem for pego, será por conta de seus esforços. Se ele escapa, será a despeito
de seus esforços. Cara, eu ganho e coroa, perde você. Façam eles o que fizerem,
terão sempre os seus seguidores. “Um
sot trouve toujours un plus sot qui l’admire
[1].”

“Que diabo é isso?”, exclamei, pois nesse momento
veio o tamborilar de muitos passos no corredor e nas escadas, acompanhados por
expressões de insatisfação por parte da nossa senhoria.

“É a divisão policial da Baker Street”, disse meu
companheiro gravemente, e mal acabara de falar, entrou na sala meia dúzia dos
mais sujos e mais esfarrapados garotos de rua que já coloquei os olhos.

“‘Atenção!”, exclamou Holmes, em um tom mais
agudo, e os seis pequenos maltrapilhos se colocaram em uma linha como
estatuetas de má reputação. “No futuro, você deve enviar Wiggins sozinho
para relatar e o resto deve esperar na rua. Você já encontrou, Wiggins?”

“Não, senhor, não encontramos”, disse um dos
garotos.

“Eu já esperava isso. Vocês têm que continuar até que
encontrem. Aqui está o pagamento.” Ele entregou a cada um deles um xelim.
“Agora, podem ir, e voltem com um relatório melhor da próxima vez.”

Ele fez um sinal com a mão e eles saíram correndo pelas
escadas como ratos, em seguida, ouvimos as suas vozes estridentes na rua.

“Meia dúzia de garotos valem mais que uma dúzia de
agentes oficiais”, observou Holmes. “A simples visão de um oficial
sela os lábios de todos, mas esses garotos, no entanto, vão a todo lugar e ouvem
de tudo sem despertar suspeitas. São tão espertos, só lhes falta
organização.”

“É para o caso Brixton que está usando-os?”,
perguntei.

“Sim, há um ponto que desejo saber. É apenas uma
questão de tempo. Ora, vamos ouvir algumas notícias. Aqui está Gregson descendo
a rua com beatitude estampada no rosto. Virá até nós, eu sei. Sim, ele está
parando. Lá está ele! “

Houve um repique violento na campainha e, em alguns
segundos, o detetive ruivo subiu as escadas, três degraus de cada vez,
adentrando na nossa sala de estar.

“Meu caro amigo”, exclamou, apertando a mão de
Holmes, “felicita-me! Tornei a coisa toda tão clara como o dia.”

Uma sombra de ansiedade cruzou o rosto expressivo do meu
companheiro.

“Quer dizer que está no caminho certo?”,
perguntou ele.

“Sim, no caminho certo! Porque, senhor, temos o homem
a sete chaves”.

“Qual o nome dele?”

“Arthur Charpentier, subtenente da Marinha de Sua
Majestade”, exclamou Gregson pomposamente, esfregando as mãos gordas no
inchado o peito.

Sherlock Holmes deu um suspiro de alívio e deixou escapar
um sorriso.

“Sente-se, e prove um destes charutos”, disse
ele. “Estamos ansiosos para saber como conseguiu. Aceita um uísque?”

“Não cairia mal”, respondeu o detetive. “Os
esforços tremendos que passei nesses dias me estafaram. Nem tanto esforço
físico, entende, mas fadiga mental. O Sr. Sherlock Holmes sabe como é, pois nós
trabalhamos com o cérebro.”

“O senhor me honra muito”, disse Holmes,
gravemente. “Vamos ouvir como chegou a este resultado tão
gratificante.”

O detetive se ajeitou na poltrona e começou a tirar
baforada do seu charuto. Então, de repente, deu uma palmada na coxa e rompeu
numa explosão de riso.

“É uma diversão isso tudo”, disse ele, “é
que o idiota do Lestrade, que se acha tão esperto, está atrás de uma pista falsa.
Está a caça do secretário Stangerson, que é tão culpado do crime como eu. Não
tenho nenhuma dúvida de que a esta altura já o tenha apanhado. “

A ideia divertia tanto Gregson que ele ria a ponto de se
engasgar.

“E como conseguiu a sua pista?”

“Ah, vou contar-lhes todos os pormenores.
Naturalmente, Dr. Watson, este assunto é estritamente confidencial. A primeira
dificuldade que tivemos de enfrentar foi descobrir os antecedentes desse
americano. Algumas pessoas teriam esperado até que seus anúncios fossem
respondidos, ou até que alguém aparecesse e oferecesse as informações. Mas esse
não é o método de trabalho de Tobias Gregson. Você se lembra da cartola ao lado
do morto? “

“Sim”, disse Holmes,
“fabricado por John Underwood & Sons, 129, Camberwell Road.”

Gregson parecia bastante desiludido.

“Pensei que não havia percebido isso”, disse ele.
“Já esteve lá?”

“Não.”

“Ah!” exclamou Gregson, com a voz aliviada,
“Nunca deve negligenciar uma chance, por menor que seja”.

“Para uma grande mente, nada é pouco”, comentou
Holmes, sentenciosamente.

“Bem, eu fui ao Underwood e indaguei-lhe se havia
vendido uma cartola daquele tipo e tamanho. Ele consultou os seus livros e me
disse que vendera a cartola para certo Sr. Drebber, residente na pensão
Charpentier, em Torquay Terrace. Assim, consegui o endereço.”

“Bem ardiloso… muito inteligente!” murmurou
Sherlock Holmes.

“Em seguida, visitei Madame Charpentier”,
continuou o detetive. “Encontrei-a muito pálida e angustiada. Sua filha
estava na sala, também, uma garota incomum. Estava com os olhos vermelhos e os
lábios tremiam, quando lhe interroguei. Alguma coisa me avisava que iria sair
outro rato daquele buraco. O senhor, Sherlock Holmes, sabe muito bem o que se
sente quando se depara com algo assim… uma espécie de anseio percorre os
nervos. “Já ouviu falar da morte misteriosa de seu pensionista, o Sr.
Enoch J. Drebber, de Cleveland?”, indaguei-lhe.

“A mãe fez um aceno afirmativo. Estava incapacitada de
pronunciar uma palavra. A filha começou a chorar. Senti, naquele momento, que
elas sabiam algo mais sobre o assunto.

“A que horas o Sr. Drebber saiu da pensão para pegar o
trem”, perguntei-lhe.

“Às oito horas”, ela disse, “engolindo em
seco para abafar a sua agitação.” Seu secretário, o Sr. Stangerson, disse
que havia dois trens… um trem às nove horas e quinze e outro às onze horas.
Ele ia pegar o primeiro trem.”

“E foi a última vez que o viu?”

“Uma mudança terrível tomou conta do rosto da mulher
quando fiz a pergunta. As feições ficaram totalmente lívidas. Passaram-se
alguns segundos até que pudesse pronunciar a palavra Sim, que saiu em tom rouco
e pouco natural”.

“Houve silêncio por um momento, e então a filha falou
com uma voz calma e clara:

“De nada servirão as mentiras, mamãe”, disse ela.
“Vamos ser francos com este cavalheiro. Vimos o Sr. Drebber de novo.”

“Deus a perdoe”, gritou Madame Charpentier,
jogando as mãos para cima e afundando-se na cadeira. “Você acaba de
assassinar seu irmão.”

“Arthur preferiria que falássemos a verdade”,
respondeu a garota com firmeza.

“É melhor vocês me contarem tudo”, eu disse.
“Meias-verdades são piores do que nenhuma. Além disso, as senhoras ignoram
o tanto que sabemos a respeito desse assunto.”

“Isto pesará em sua consciência, Alice”,
advertiu-lhe a mãe e, em seguida, voltando-se para mim, “Eu vou
contar-lhe, senhor. Não pense que minha agitação, por se tratar de meu filho,
que ele tenha participado desse terrível crime. Ele é inteiramente inocente.
Meu temor é, no entanto, que aos seus olhos e aos olhos dos outros, ele possa
estar comprometido. Mas isso é absolutamente impossível. Seu bom caráter, seu
profissionalismo, seus bons antecedentes proíbem qualquer um pensar isso
dele.”

“A melhor maneira é fazer uma confissão completa dos
fatos”, respondi. “Se o seu filho é inocente, a revelação alguma
agravará a sua situação.”

“Alice, é melhor deixar-nos a sós”, disse ela, e
a filha retirou-se. “Agora, senhor”, ela continuou: “Não era a
minha intenção de lhe dizer tudo isso, mas já que a minha pobre filha revelou
boa parte, não tenho alternativa. Uma vez decidida a falar, vou lhe dizer tudo,
sem omitir qualquer detalhe.”

“É o mais sensato”, concordei.

“Sr. Drebber esteve conosco por quase três semanas.
Ele e seu secretário, o Sr. Stangerson, estavam viajando pelo Continente. Notei
uma etiqueta de Copenhague em uma das malas, que revelava ser o último lugar
que eles visitaram antes de se hospedarem aqui. Stangerson era um homem quieto
e reservado, mas o seu patrão, lamento dizê-lo, era bem diferente. Possuía
hábitos grosseiros e atitudes irritantes. Na noite de sua chegada,
embriagou-se, e, de fato, depois do meio-dia nunca se encontrava sóbrio. Suas
maneiras para com as criadas eram atrevidas e íntimas. O pior de tudo, é que
ele começou a tomar a mesma atitude em relação a minha filha, Alice, e falou
com ela mais de uma vez de uma forma que, felizmente, ela é inocente demais
para entender. Em outra ocasião, ele chegou a agarrá-la pelos braços e
abraçá-la. Uma conduta abominável que levou o seu próprio secretário a
reprová-lo.”

“Mas por qual razão tolerou tudo isso?”,
perguntei-lhe. “Suponho que a senhora pode se livrar facilmente de um
pensionista quando indesejado, não é mesmo?”

“A Sra. Charpentier corou com a minha pergunta
pertinente. “Quisera Deus que eu tivesse despedido no mesmo dia em que
chegou”, disse ela. “Mas a tentação era forte. Eles estavam pagando
uma libra por cada dia… catorze libras por semana, e esta é a época de poucos
clientes. Sou viúva e meu menino na Marinha tem me custado muito. Era difícil
resistir ao dinheiro. Agi da melhor maneira que achava. Mas a última atitude do
Sr. Drebber foi demais, pedi que deixasse a pensão. “Esse foi o motivo de
sua partida.”

“E depois?”

“Fiquei aliviada quando o coche veio buscá-lo. Meu
filho estava em casa, mas eu não lhe disse nada, por causa do seu temperamento
violento, ele tem adoração pela irmã. Quando fechei a porta, foi como tirasse
um peso de meus ombros. Infelizmente, em menos de uma hora ouvi a campainha
tocar, fui atender e era o Sr. Drebber que tinha retornado. Estava muito
exaltado, evidentemente, havia bebido muito. Forçou caminho para o quarto, onde
eu estivera sentada com a minha filha, e fez algum comentário incoerente sobre
ter perdido o trem. Então, virou-se para Alice e, na minha presença, propôs-lhe
que viesse com ele. “Você é maior de idade”, disse ele, “e não
há lei que possa impedi-la. Tenho dinheiro suficiente e de sobra. Esqueça a
velhota aqui e venha comigo, agora mesmo. Você viverá como uma princesa.
“Pobre Alice estava tão assustada que se afastou dele, mas ele a pegou
pelo pulso e tentou arrastá-la para a porta. Eu gritei e naquele momento o meu
filho, Arthur, entrou na sala. O que aconteceu, então, eu não sei direito. Ouvi
xingamentos e sons confusos de briga. Eu estava apavorada demais para levantar
a cabeça.

Quando ergui a cabeça, vi Arthur de pé, junto à porta,
rindo, com uma bengala na mão. “Creio que este distinto cavalheiro não vai
nos incomodar novamente”, disse ele. “Vou atrás dele, verei o que
anda fazendo.” Com essas palavras, ele pegou o chapéu e começou a descer a
rua. Na manhã seguinte, soube da morte misteriosa do Sr. Drebber.”

“Esses relatos saíram dos lábios da Sra. Charpentier,
com muitos suspiros e hesitações. Às vezes, falava tão baixo que eu mal
conseguia entender suas palavras. Fiz notas taquigráficas de tudo o que ela me
contou, para que não houvesse possibilidade de algum engano.”

“É muito emocionante”, disse Sherlock Holmes, com
um bocejo. “O que aconteceu depois?”

“Quando a Sra. Charpentier fez uma pausa”,
prosseguiu o detetive. “Vi que todo o caso estava pendente de um único
ponto. Fixei os olhos nela, de uma maneira que sempre achei eficaz com relação
às mulheres, e perguntei-lhe a que horas o seu filho tinha voltado.

“Eu não sei”, respondeu ela.

“Não sabe?”

“Não, ele tem a chave principal, e não o ouvi
entrar.”

“‘E a que horas a senhora foi dormir?”

“Às onze, eu acho.”

“Então, seu filho ficou fora de casa pelo menos duas
horas?”

“Sim”.

“Possivelmente poderia ser quatro ou cinco?”

“Sim, poderia ser”.

“O que ele estaria fazendo durante esse tempo?”

“Eu não sei”, respondeu ela, empalidecendo-se
mais ainda.

“É claro que depois disso tudo, nada mais havia a ser
feito. Descobri onde o tenente Charpentier estava e levei dois oficiais comigo,
que o prenderam. Quando lhe toquei o ombro e disse-lhe que nos acompanhasse,
ele respondeu-me com o maior descaramento: “Suponho que estão me prendendo
como suspeito da morte daquele canalha do Drebber.” Não tínhamos falado
nada a esse respeito, de modo que, com esse comentário levantou muita
suspeita.”

“Muita”, disse Holmes.

“Ele ainda carregava a bengala que a mãe mencionara
quando seguiu Drebber. Era um robusto bastão de carvalho.”

“Qual é a sua teoria, então?”

“Bem, minha teoria é que ele seguiu Drebber até a
Brixton Road. Quando lá, houve outra briga entre eles, no curso da qual Drebber
recebeu um golpe de bengala, na boca do estômago, talvez, que o matou sem
deixar qualquer marca. Chovia naquela noite e não havia ninguém na rua, então
Charpentier arrastou o corpo de sua vítima para a casa vazia. Quanto à vela, ao
sangue, à escrita na parede, ao anel, tudo isso pode ter sido uma maneira
encontrada para desorientar a polícia.”

“Muito bem pensado!”, disse Holmes, com uma voz
encorajadora. “Realmente, Gregson, você está se dando bem. Vamos ouvir
falar de você ainda.”

“Modéstia à parte, conduzi o caso com certa
exatidão”, respondeu o detetive, com orgulho. “O rapaz declarou que
seguiu Drebber por algum tempo, até que ele percebeu, e tomou um coche, a fim
de se livrar dele. De regresso para casa, encontrou um amigo de bordo e foi dar
um longo passeio com ele. Ao ser perguntado onde residia esse amigo marinheiro,
ele foi incapaz de dar qualquer resposta satisfatória. Acho que o caso todo se
encaixa de maneira perfeita. Mas o que me diverte é pensar que Lestrade está
seguindo uma pista falsa. Receio que não vá muito longe. Por Deus, aqui está o
homem em carne e osso!”

Era realmente Lestrade, que tinha subido as escadas
enquanto nós estávamos falando, e agora entrava na sala. A determinação e a
elegância que caracterizavam seu porte e seu vestuário tinham, no entanto,
desaparecido. Seu rosto estava perturbado, enquanto suas roupas estavam imundas
e amarrotadas. Evidentemente, viera com a intenção de consultar Sherlock
Holmes, mas ao deparar com o seu colega, pareceu embaraçado. Ficou no centro da
sala, mexendo nervosamente no seu chapéu, sem saber o que fazer. “Este é
um caso extraordinário”, disse ele por fim… “um dos casos mais
incompreensíveis.”

“Ah, acho que é mesmo, Sr. Lestrade!” exclamou
Gregson, triunfante. “Eu pensei que fosse chegar aqui com uma conclusão.
Conseguiu encontrar o secretário, o Sr. Joseph Stangerson?”

“O secretário, o Sr. Joseph Stangerson”, disse
Lestrade, gravemente, “foi assassinado no Hotel Halliday, por volta das
seis horas da manhã.”

 

 

CAPÍTULO SÉTIMO

 

UMA LUZ NAS TREVAS

 

 

Com
notícia inesperada de Lestrade, ficamos os três emudecidos. Gregson deixou a
cadeira e virou o resto de seu uísque em um único gole. Olhei em silêncio para
Sherlock Holmes, cujos lábios estavam comprimidos e as sobrancelhas armadas
sobre os olhos. “Stangerson também!”, ele murmurou: “A trama se
complica.”

“Como
se já não fosse complicado o suficiente”, resmungou Lestrade, sentando-se
numa das cadeiras desocupadas, “parece-me que vim fazer parte de uma
espécie de conselho de guerra.”

“Tem
certeza sobre a morte dele?”, gaguejou Gregson.

“Claro.
Acabo de chegar do seu quarto”, disse Lestrade. “Fui o primeiro a
descobrir o que havia ocorrido.”

“Estávamos
ouvindo os progressos do Gregson”, observou Holmes. “Você se
importaria de nos contar o que tem visto e feito?”

“Não
tenho nenhuma objeção”, respondeu Lestrade. “Confesso que a minha
opinião era que Stangerson estivesse implicado na morte de Drebber. Esse novo
fato veio mostrar que eu estava completamente enganado. Convencido de minha
ideia, tentei descobrir o que havia acontecido com o secretário. Eles tinham
sido vistos juntos na Euston Station por volta 
das 20h30min, do dia 3. Às duas da madrugada, Drebber foi encontrado em
Brixton Road. A questão era descobrir como Stangerson havia ocupado o seu tempo
entre 20h30min e a hora do crime, e para onde se mandou depois. Telegrafei para
o Liverpool, dando uma descrição do homem, alertando-os para manter uma
vigilância cerrada nos barcos americanos. Então, comecei a trabalhar, visitando
todos os hotéis e hospedarias nas proximidades de Euston. O meu raciocínio era
que, se Drebber e seu companheiro haviam se separado, era evidente que ele
pernoitasse na vizinhança e, na manhã seguinte, voltasse à estação. “

“Provavelmente,
combinaram se encontrar em algum lugar”, disse Holmes.

“Provavelmente;
passei toda a noite de ontem fazendo interrogações, mas sem sucesso. Hoje
comecei bem cedo, às oito horas já estava no Hotel Halliday, na Little George
Street. Quando quis saber se estava hospedado ali o tal Sr. Stangerson,
confirmaram e me disseram:

“Sem
dúvida, o senhor deve ser o cavalheiro que ele está esperando. Há dois dias que
ele espera pelo senhor.”

“Onde
ele está agora?”, perguntei.

“Está
lá em cima, na cama. Pediu para ser acordado às nove horas.”

“Então,
vou subir para vê-lo”, eu disse.

“Minha
aparição repentina em seu quarto poderia abalar-lhe os nervos e levá-lo a dizer
algo revelador. O porteiro se ofereceu para me acompanhar até o quarto: era no
segundo andar e ficava na extremidade de um pequeno corredor. O porteiro
indicou-me a porta, estava prestes a descer a escada de volta à portaria,
quando algo me assombrou, apesar dos meus vinte anos de experiência. Por baixo
da porta escorrera um filete de sangue, que atravessara sinuosamente o piso, e
foi formar uma pequena poça ao longo do rodapé da parede oposta ao quarto. Dei
um grito, que trouxe o porteiro de volta. Ele empalideceu-se quando viu a poça
de sangue. A porta estava trancada por dentro, mas nós a arrombamos com os
ombros. A janela do quarto estava aberta e debaixo dela, todo encolhido,
estendia o corpo de um homem. Estava morto, já havia algum tempo, seus membros
encontravam-se rígidos e frios. Quando o viramos, o porteiro reconheceu-o
imediatamente como sendo o mesmo cavalheiro que havia alugado o quarto sob o
nome de Joseph Stangerson. A causa da morte fora uma profunda punhalada que
recebera no flanco esquerdo, penetrando-lhe diretamente no coração. E agora vem
a parte mais estranha do acontecido. Sabem o que havia sobre o homem
assassinado?”

Senti
um arrepio na pele, seguido de um pressentimento de horror iminente, antes
mesmo que Sherlock Holmes respondesse:

“A
palavra Rache, escrita com
sangue”, disse ele.

“Isso
mesmo”, concordou Lestrade, de voz extasiada, e todos nós, por um
instante, ficamos em silêncio.

Havia
algo tão metódico e tão incompreensível no jeito de agir do assassino
desconhecido, que só conseguia transmitir algo sinistro em seus crimes. Meus
nervos, suficientemente estáveis nos campos de batalha, estremeciam quando
tentava imaginar aquele quadro macabro.

“O
assassino foi visto”, continuou Lestrade; “pelo leiteiro, quando
passava pelos fundos do hotel e notou que uma escada, que normalmente ficava
estendida por ali, fora erguida e colocada diante de uma das janelas do segundo
andar, que ainda continuava aberta. Depois dele passar debaixo da escada, olhou
para trás e viu um homem descendo por ela. Ele desceu com tanto desembaraço e
tranquilidade que o leiteiro imaginou tratar-se de um carpinteiro ou empregado
do hotel. E, por essa razão, não prestou muita atenção no sujeito, apenas achou
que era muito cedo para estar dando manutenção em um dos quartos. Teve a
impressão de que o homem era alto, de rosto avermelhado, e estava vestido com
um casaco longo e acastanhado. Deve ter permanecido algum tempo no quarto após
o assassinato, pois, encontramos uma bacia com água suja de sangue, onde lavara
as mãos, e encontramos marcas de sangue na colcha, onde, deliberadamente,
limpara a sua faca.”

Olhei
para Holmes ao ouvir a descrição do assassino, era exatamente como a descrição
que fizera. Mas não existia, no entanto, nenhum traço de alegria ou satisfação
em seu rosto.

“Não
encontrou nada no quarto que possa fornecer uma pista contra o
assassino?”, indagou.

“Nada.
Stangerson trazia a carteira de Drebber em seu bolso, mas parece que isso era
normal, como fazia todos os pagamentos. Havia oitenta e poucas libras nela,
pareciam intactas. Quaisquer que sejam os motivos desses crimes
extraordinários, o roubo certamente não é um deles. Não havia documentos ou
anotações no bolso da vítima, exceto um único telegrama de Cleveland, datado
cerca de um mês atrás, e que dizia: “J. H. está na Europa.” Não havia
nenhum nome anexado a esta mensagem.”

“E
não havia mais nada?”, perguntou Holmes.

“Nada
de importante. Ah, sim, um livro, com o qual havia entretido antes de dormir,
estava largado sobre a cama, e seu cachimbo, numa cadeira ao seu alcance. Havia
um copo de água em cima da mesa e no peitoril da janela, uma caixa de pomada
contendo um par de comprimidos.”

Sherlock
Holmes pulou da cadeira com uma exclamação de alegria.

“O
último elo”, gritou ele, exultante. “Meu caso está completo.”

Os
dois detetives encararam-no com assombro.

“Tenho
agora em minhas mãos”, disse meu companheiro, confiante, “todos os
fios desse novelo. Existem, evidentemente, lacunas a serem preenchidas, mas já
tenho todos os elementos principais, a partir do momento em que Drebber se
separou de Stangerson na estação até a descoberta do corpo deste último, como
se os tivesse visto com meus próprios olhos. Vou dar-lhes uma prova do meu
conhecimento. Pegou essas pílulas?”

“Eu
as tenho”, disse Lestrade, sacando do bolso uma pequena caixa branca:
“Eu trouxe também a carteira e o telegrama, com a intenção de guardá-los
em um lugar seguro na delegacia. Foi um mero acaso recolher as pílulas, pois
sou obrigado a dizer que não atribui qualquer importância a elas.”

“Dê-me
elas”, disse Holmes. “Agora, Doutor”, voltando-se para mim,
“estas pílulas são comuns?

Elas
certamente não eram. Eram de uma cor cinza perolado, pequenas, redondas, quase
transparente contra a luz. “A partir de sua leveza e transparência, eu
deveria imaginar que elas são solúveis em água”, comentei.

“Precisamente”,
respondeu Holmes. “Agora se importaria de ir lá embaixo e buscar aquele
pobre terrier que está moribundo há
algum tempo, e que a senhoria queria que você desse um fim em sua dor?”

Desci
as escadas e regressei com o cãozinho nos braços. Sua respiração ofegante e
olhos vidrados demonstravam que não estava muito longe de seu fim. Na verdade,
o focinho branco-neve proclamava que já havia ultrapassado o prazo normal da
existência canina. Coloquei-o numa almofada, sobre o tapete.

“Vou
cortar uma dessas pílulas em duas partes”, disse Holmes, abrindo o
canivete, passando da ação à palavra. “Uma parte voltará para a caixa para
exames futuros. A outra metade, colocarei neste copo de vinho, no qual há uma
colher de chá de água. Percebo que o nosso amigo doutor estava certo, dissolve
facilmente.”

“Isso
pode ser muito interessante”, disse Lestrade, em tom injuriado, suspeitando
que estivesse sendo motivo de piada. “Não vejo, no entanto, o que isso tem
a ver com a morte do Sr. Joseph Stangerson.”

“Paciência,
meu amigo, paciência! Você vai encontrar em breve uma relação com tudo isso.
Vou agora adicionar um pouco de leite para fazer a mistura palatável e dá-la ao
cãozinho e descobrimos se ele vai gostar.”

Enquanto
falava, despejou o conteúdo do copo em um pires e colocou-o em frente ao terrier, que rapidamente lambeu
enxugando o pires com a língua. Conduta séria de Sherlock Holmes até agora nos
convencera, que permanecemos sentados em completo silêncio, apenas olhando
atentamente o animal, à espera de algum efeito surpreendente. Mas nada de
admirável aconteceu. O cãozinho continuou deitado sobre a almofada, respirando
de maneira ofegante, mas, aparentemente, nem melhor, nem pior, após ter
ingerido parte do comprimido.

Holmes
tinha tirado seu relógio e como os minutos transcorriam sem um resultado
surpreendente, uma expressão de desgosto combinado com uma dose de decepção
tomou conta de seu semblante. Mordiscava o lábio e tamborilava com os dedos
sobre a mesa, expondo outros sintomas de impaciência aguda. Tão grande era o
seu anseio que, sinceramente, sentia pena dele, enquanto os dois detetives
sorriam ironicamente, satisfeitos com aquela falta de um resultado
extraordinário.

“Não
pode ser uma coincidência”, exclamou ele, deixando a sua cadeira e andando
descontroladamente pela sala, “é impossível que tenha sido mera
coincidência. As pílulas que suspeitei, no caso de Drebber, foram realmente
encontradas após a morte de Stangerson. E ainda assim são inofensivas. O que
significa isso? Certamente minhas deduções não podem estar erradas. É
impossível! E ainda não aconteceu nada de pior a este cão miserável. Ah, é
isso! Eu tenho que fazer isso!” Com um grito de alegria, ele correu para
caixa, cortou o outro comprimido em dois, dissolveu-o, acrescentando leite, e
deu ao terrier. A língua da infeliz
criatura mal lambeu o líquido e todo o seu corpo estremeceu de maneira
convulsiva, em seguida, ficou rígido, sem vida, como se tivesse sido atingido
por um raio.

Sherlock
Holmes deu um longo suspiro e enxugou o suor da testa. “Eu deveria ter
mais confiança”, disse ele, “eu deveria saber que, nesta altura,
quando um fato se opõe a uma série de deduções, invariavelmente, prova ser
capaz de tolerar outra interpretação. Das duas pílulas, nesta caixa, uma
continha um veneno letal, e a outra, totalmente inofensiva. Eu devia ter sabido
antes mesmo de ver a caixa.”

Esta
última afirmação pareceu-me tão surpreendente que eu mal pude acreditar que se
encontrasse em seu juízo perfeito. Agora, tínhamos o cãozinho morto para provar
que a sua conjectura fora correta. Parecia-me que a névoa abandonava a minha
mente, comecei a ter uma percepção vaga da verdade.

“Sei
que tudo isso parece estranho para vocês”, continuou Holmes, “porque
não conseguiram no início da investigação abarcar a importância da única pista
correta, que foi apresentada a vocês. Tive a sorte de percebê-la e tudo o que
ocorreu, desde então, tem servido para confirmar a minha suposição inicial, e,
de fato, tudo ocorreu numa sequência lógica. Daí, os detalhes, que os têm
deixado perplexos, tornando o caso cada vez mais obscuro, só serviram para
esclarecer e reforçar as minhas conclusões. É um erro confundir estranheza com
mistério. O crime mais comum é muitas vezes o mais misterioso, porque não
apresenta novos predicados ou algo especial de que possa extrair rapidamente
deduções. Esse assassinato teria sido infinitamente mais difícil de desvendar se
o corpo da vítima fosse simplesmente encontrado na rua, sem qualquer uma dessas
situações sensacionais, que o tornaram notável. Esses detalhes bizarros, longe
de tornar o caso mais difícil, realmente teve o efeito de torná-lo menos
obscuro. “

Sr.
Gregson, que tinha escutado essa explanação com crescente impaciência, não se
conteve mais: “Olhe aqui, Sr. Sherlock Holmes”, proferiu ele,
“estamos todos prontos para reconhecer que o senhor é um homem inteligente
e que possui seus próprios métodos de trabalho. Mas, agora, queremos algo mais
do que mera teoria e pregação. Precisamos pegar o assassino. Eu expus minha
teoria e parece que estava errado. Charpentier não pode ser acusado do segundo
crime. Lestrade foi atrás de Stangerson, e parece que também ele estava errado.
O senhor, dando sugestões aqui e dicas de lá, parece saber mais que todos nós,
mas chegou o momento em que nos sentimos no direito de perguntar-lhe
diretamente o quanto o senhor sabe do crime: pode nos dizer o nome do
criminoso?”

“Não
posso deixar de dizer que Gregson está certo, senhor”, observou Lestrade.
“Nós dois tentamos e ambos falhamos. O senhor comentou mais de uma vez,
desde que cheguei a esta sala, que tinha todas as provas de que precisava.
Certamente, não vai reter por mais tempo o que sabe.”

“Qualquer
demora em prender o assassino”, observei, “pode dar-lhe tempo para
perpetrar alguma nova atrocidade”.

Assim,
pressionado por todos nós, Holmes mostrou sinais de indecisão. Ele continuou a
caminhar pela sala, com a cabeça afundada no peito e as sobrancelhas armadas,
como era seu hábito quando se encontrava perdido em meditações.

“Não
haverá mais assassinatos”, disse ele por fim, detendo-se abruptamente
diante de nós. “Podem considerar isso fora de questão. Indagaram-me se eu
sei o nome do assassino. Sei. O mero fato de saber seu nome é uma coisa
insignificante em comparação à probabilidade de por as mãos nele. É isso que
espero fazer muito em breve. Tenho esperanças de consegui-lo através de meus
próprios arranjos, mas é um tópico que merece um tratamento delicado, pois
temos de lidar com um homem astuto e desesperado, que está sendo apoiado, por
outra pessoa, como já tive ocasião de provar, e que é tão inteligente quanto
ele. Enquanto esse homem não souber que alguém sabe de seus passos, poderemos
apanhá-lo, mas se tiver a menor suspeita, ele irá mudar de nome e desaparecerá
num instante entre os quatro milhões de habitantes desta grande cidade. Sem
querer magoar os sentimentos dos senhores, sou obrigado a dizer que considero
esses dois homens hábeis o suficiente para levar a melhor sobre a polícia, e é
por isso que não lhes pedi auxílio. Se eu falhar, vou, naturalmente, enfrentar
minha culpabilidade devido a essa omissão, mas estou preparado para isso. No
momento, apenas prometo-lhes que no instante em que puder comunicar aos
senhores, sem colocar em risco minhas deduções, farei.”

Gregson
e Lestrade não ficaram muito satisfeitos com essa garantia, nem tampouco com a
alusão depreciativa à polícia local. O primeiro corou até a raiz dos cabelos,
enquanto que os olhos redondos do outro, brilhavam de curiosidade e
ressentimento. Mas nem um deles teve tempo para falar qualquer coisa, pois se
ouviram batidas na porta, e o garoto Wiggins, porta voz dos moleques de rua,
introduziu na sala a sua pessoa insignificante e desagradável.

“Por
favor, senhor”, disse ele, tocando seu topete, em continência, “tenho
um coche lá embaixo.”

“Bom
menino”, disse Holmes, suavemente. “Por que não adotam esse padrão na
Scotland Yard?”, continuou ele, tirando de uma gaveta um par de algemas de
aço. “Vejam como funciona. Prendam-se em um instante.”

“O
antigo padrão ainda é bom o suficiente”, comentou Lestrade, “só
precisamos encontrar o homem certo para algemar.”

“Muito
bom, muito bom”, disse Holmes, sorrindo. “O cocheiro pode também
ajudar-me com as minhas caixas. Basta pedir que ele suba, Wiggins.”

Fiquei
surpreso ao ver o meu companheiro comportando-se como se estivesse prestes a
partir em uma viagem, uma vez que não me tinha dito nada a respeito. Levou uma
maleta pequena para o meio da sala e começou a afivelar-lhe as correias. Estava
atarefado nisso quando o cocheiro entrou na sala.

“Apenas
me dê uma ajuda com essa fivela, cocheiro”, disse ele, ajoelhando-se no
chão, sem erguer a cabeça.

O
cocheiro avançou, tinha um semblante mal-humorado e contestador, estendo as
mãos para ajudá-lo. Nesse instante, houve um estalido seco, o vibrado de metal,
e Sherlock Holmes ergueu-se novamente.

“Senhores”,
bradou ele, com olhos brilhantes, “apresento-lhes o Sr. Jefferson Hope, o
assassino de Enoch Drebber e Joseph Stangerson.

A
coisa toda aconteceu em um instante… tão rápido que não tive tempo suficiente
para entender todo acontecimento. Mas, ainda trago uma lembrança vívida desse
momento, da expressão triunfante de Holmes, do timbre de sua voz, do rosto
atordoado do cocheiro, quando pôs os olhos nas algemas cintilantes, que haviam
aparecido em seus pulsos como que por um passe magia. Por um segundo ou dois,
ficamos todos qual a um grupo de estátuas. Então, com um rugido inarticulado de
fúria, o prisioneiro livrou-se das garras de Holmes e avançou-se em direção à
janela. Madeira e vidro deram lugar ao corpo dele, mas antes que ele se jogasse
por completo pela janela, Gregson, Lestrade e Holmes saltaram sobre ele como cães
adestrados e o cocheiro foi arrastado de volta ao piso da sala, e,
nesse instante, começou uma luta
terrível entre eles. Tão enérgico e tão feroz ele era, que nós quatro – porque
eu também me propus a acudir meus companheiros – fomos sacudidos por mais de
uma vez. Ele parecia ter a força convulsiva de um homem em ataque epiléptico.
Estava com rosto e mãos terrivelmente dilacerados pelos vidros da janela, mas a
perda de sangue não teve nenhum efeito na diminuição da sua resistência.

Somente
quando Lestrade aplicou-lhe uma gravata, quase o estrangulando, é que
conseguimos convencê-lo de que o seu esforço era em vão e, mesmo assim, não nos
sentimos seguros enquanto não lhe amarramos os pés e as mãos. Isso feito, ele
ficou aos nossos pés sem fôlego e completamente fora de combate.

“Temos
o coche dele estacionado lá fora”, disse Sherlock Holmes. “Servirá
para levá-lo à Scotland Yard. E agora, senhores”, persistiu ele, com um
sorriso ameno, “chegamos ao fim do nosso pequeno mistério. Podem fazer as
perguntas que quiserem, e não há possibilidade alguma de não
respondê-las.”

 

SEGUNDA PARTE

O PAÍS DOS SANTOS

 

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

 

SOBRE A GRANDE
PLANÍCIE ALKALI

 

 

Na
parte central do grande continente norte-americano, estende um deserto árido e
repulsivo, que por muitos anos foi uma barreira contra o avanço da civilização.
A partir da Sierra Nevada ao Nebraska, e desde o rio Yellowstone, ao norte, até
o rio Colorado, ao sul, é uma região de desolação e silêncio profundo. Nem a
natureza deixa de ser sombria. Composta por montanhas cobertas de neve e vales
sombrios e ameaçadores. Há rios velozes que correm através dos canyons e há
vastas planícies que, no inverno, embranquecem de neve, e no verão ficam
cinzentas por uma poeira salina e alcalina. Em todo canto, preservam as
características comuns de esterilidade, falta de hospitalidade e miséria.

Não
existem habitantes nesta terra de desespero. Uma tribo de pawnees ou de blackfeet
pode, ocasionalmente, atravessá-la, a fim de atingir outras terras de caça, mas
até mesmo os mais resistentes e corajosos ficam contentes em perder de vista
essas impressionantes planícies e penetrar uma vez mais nas pradarias. O coiote
esgueira sorrateiramente entre o matagal; as
aves de rapina incisam fortemente o ar, e os
desajeitados ursos pardos atravessam as escuras ravinas em busca de sustento,
como podem, entre as rochas. Estes são os únicos moradores no deserto.

Em
todo o mundo não pode haver visão mais sombria do que a da encosta norte da Sierra Blanco. Até onde o olhar alcança
estende-se a grande planície, toda polvilhada de manchas de álcali, cortada por
tufos dos arbustos anões de chaparrais. No limite extremo do horizonte,
ergue-se uma longa cadeia de montanhas com seus picos robustos salpicados de
neve. Nesta grande extensão do país, não há nenhum sinal de vida, nem de
qualquer coisa pertencente à vida. Não há pássaro no céu azul-aço, nem
movimento na terra fosca e cinzenta, acima de tudo, há um silêncio absoluto.
Não há som de vida nesse impressionante deserto, nada além do silêncio… um
desalento completo subjugando o coração.


foi dito que sobre essa vasta planície não há nada pertencente à vida, pode não
ser totalmente verdade. Olhando para baixo da Sierra Blanco, vê-se um caminho
projetado através do deserto, que serpenteia além e se perde na distância
extrema. Encontra-se esburacado pelas rodas e marcado pelos pés de muitos
aventureiros. Aqui e ali, estão espalhados objetos brancos que brilham ao sol e
destacam-se contra o depósito maçante de rochas alcalinas. Abordem-se e
examinem-nos! Eles são ossos: alguns grandes e grossos, outros menores e mais
delicados. Os primeiros pertenceram a bovinos, e os últimos, a seres humanos.
Por mil e quinhentas milhas pode-se traçar essa rota fúnebre de caravanas por
cima desses restos dispersos daqueles que tombaram no esquecimento.

Olhando
para esse cenário, lá se encontrava, em 4 de maio de 1847, um viajante
solitário. Sua aparência era tal que poderia ter sido muito bem um gênio ou um
demônio da região. Um observador teria achado difícil dizer se ele estava mais
perto dos quarenta ou dos sessenta anos. Seu rosto era magro e abatido e a pele
era marrom, parecendo pergaminho, bem esticada sobre os ossos salientes; seu
cabelo castanho e barba estavam crescidos, raiados de branco, seus olhos fugiam
das órbitas, ardendo num brilho incomum, enquanto que a mão agarrada ao rifle
não possuía mais carne do que a de um esqueleto. Inclinado, apoiava-se à arma
para ficar em pé, ainda assim a sua figura esticada e o conjunto maciço de seus
ossos sugeriam uma constituição rija e vigorosa. Seu rosto magro, e as suas
vestes, que pendiam folgadas sobre seus membros murchos, proclamavam o ensejo
da sua aparência senil e decrépita. O homem estava morrendo… morrendo de fome
e de sede.

Ele
cruzou dolorosamente a ravina, indo além da elevação, na vã esperança de
encontrar alguns sinais de água. Agora a grande planície de salina estendia
diante de seus olhos e corria em direção às montanhas brutais, sem sinal algum
de vegetação que pudesse indicar a presença de umidade. Em toda aquela ampla
paisagem não havia um único fulgor de esperança. Ele reparou a selvagem
paisagem questionando nos olhos o norte, o leste e o oeste e, então, percebeu
que suas andanças tinham chegado ao fim, e que ali, naquele rochedo estéril,
ele estava prestes a morrer. “Por que aqui, e não em uma cama de plumas,
daqui a vinte anos?”, murmurou, enquanto se sentava no abrigo rochoso.

Antes
de sentar, havia depositado no solo o seu rifle inútil, e também um grande
pacote amarrado em um xale cinza, que ele trazia pendente ao ombro direito.
Parecia ser um pouco pesado demais para sua força, ao baixá-lo, deixou que
tocasse o chão com alguma violência. Instantaneamente, rompeu do pacote cinza
um escasso gemido, e dele saiu um rosto miúdo, temeroso, de acesos olhos
castanhos, e dois pequenos punhos lentiginosos.

“Você
me machucou!”, disse uma voz infantil, em tom de censura.

“Foi
sem querer”, o homem respondeu penitentemente, “Não era a minha
intenção.” Enquanto falava, desembrulhou o grande pacote cinza expondo uma
meninazinha bonita, de cerca de cinco anos de idade, calçada com delicados
sapatos e um vestido rosa, com seu avental de linho, revelando todos os
cuidados que sua mãe tivera ao vesti-la. A criança estava pálida e abatida, mas
seus braços e pernas saudáveis mostraram que ela tinha sofrido menos do que o
seu companheiro.

“Como
está agora?”, ele indagou ansiosamente, pois ela ainda estava esfregando
os cachos dourados que cobriam a parte de trás de sua cabeça.

“Um
beijo e passa”, ela disse, com gravidade, mostrando a parte lesada para
ele. “Isso é o que a mamãe costumava fazer. Onde está a mamãe?”

“Mamãe
se foi. Eu acho que você vai vê-la antes do tempo.”

“Foi
embora!”, disse a meninazinha. “Engraçado, ela não disse adeus, ela
sempre me diz adeus. Diz até quando vai tomar chá com a titia. Agora ela está
longe já faz três dias. Não está com sede? Não tem água nem tem nada para
comer?”

“Não,
não temos nada, querida. Você só precisa ser paciente por algum tempo, e então
você vai ficar bem. Coloque a cabeça aqui e vai se sentir melhor. Não é fácil
falar com os lábios esticados que nem couro, mas acho que é melhor você saber
de tudo. O que é que você tem aí?”

“Coisas
bonitas! Coisas boas”, disse a garotinha com entusiasmo, segurando dois
fragmentos cintilantes de mica. “Quando a gente vai voltar para casa, vou
dar pro meu irmão Bob.”

“Em
breve, você vai ver coisas mais bonitas do que isto”, disse o homem confiante.
“É só esperar um pouco. Eu ia dizer que… você se lembra de quando
deixamos o rio?”

“Oh,
lembro.”

“Bem,
nós pensamos em encontrar outro rio em breve. Mas havia algo errado, na
bússola, ou no mapa, ou algo assim, e o rio não apareceu. A água acabou. Apenas
algumas gotas para você e …e…”

“E
não pode se lavar”, interrompeu ela, gravemente, olhando para seu rosto
sujo.

“Não,
nem beber. E o Sr. Bender, ele foi o primeiro a partir para o céu, depois o
índio Pete, depois a Sra. McGregor, e depois Johnny Hones, e depois, querida,
sua mãezinha.”

“Então,
mamãe também morreu!”, exclamou a garotinha, ocultando o rosto no avental
e soluçando copiosamente.

“Sim,
foram todos, exceto eu e você. Então eu pensei que houvesse alguma chance de
encontrar água nesta direção, coloquei você em meu ombro e viemos juntos. Mas
nossa situação não melhorou. Há uma chance muito pequena para nós agora!”

“Vamos
morrer?”, perguntou a criança, contendo os soluços, e erguendo o rosto
molhado de lágrimas.

“Eu
acho que não vai demorar muito.”

“Por
que você não disse isso antes?”, disse ela, rindo festivamente. “O
senhor me deu um susto. Agora, já sei que nós vamos morrer, e vamos para junto
da mamãe.”

“Sim,
você vai, minha querida.”

“E
o senhor também. Conto para ela que foi bom para mim. Ela encontra com a gente
na porta do céu, com um enorme jarro de água, e um monte de bolos de trigo
sarraceno, quentes e tostados de ambos os lados, como Bob e eu gostamos. Quanto
tempo falta? “

“Eu
não sei… não muito.” Os olhos do homem estavam fixos no horizonte, ao
norte. Na abóbada azul do céu tinham aparecido três pontinhos que aumentavam de
tamanho a cada momento, tão rapidamente à medida que eles se aproximavam. Eram
três grandes pássaros escuros, que circulavam sobre as cabeças dos dois andarilhos
e, em seguida, pousaram em cima das rochas próximas a eles. Eram bútios, os
bútios do oeste, cuja vinda é o precursor da morte.

“Galos
e galinhas”, disse a menina alegremente, apontando para os vultos de mau
agouro, e batendo as mãos para enxotá-los. “Conta para mim, Deus fez este
país?”

“É
claro que ele fez”, disse seu companheiro, espantado com aquela pergunta
inesperada.

“Ele
fez o Illinois e o Missouri”, a menina continuou. “Eu acho que alguém
fez esta parte. Não é tão bem feito. Esqueceram-se da água e das árvores.”

“Quer
rezar agora?”, perguntou o homem timidamente.

“Não
é noite ainda”, respondeu ela.

“Isso
não importa. Não é muito regular, mas Deus não vai se importar com isso, pode
apostar nisso. Reza as orações que costumava rezar todas as noites no carroção
quando a gente estava nas planícies.”

    “Por que não reza comigo?”,
perguntou a criança, com os olhos perscrutadores.

    “Eu esqueci”, ele respondeu.
“Não rezo desde que eu era da altura desta arma. Acho que nunca é tarde
demais. Reza que eu vou repetindo.”

“Então
precisa ajoelhar, e eu também”, disse ela, estendendo o xale na poeira.
“Coloca as mãos assim. Faz bem.”

Seria
uma visão estranha se tivessem sendo observados por alguém além dos bútios.
Lado a lado, no estreito xale, ajoelhados os dois andarilhos, a criançazinha
tagarela e o aventureiro imprudente e endurecido. O rostinho rechonchudo e o
rosto anguloso e desfigurado estavam ambos voltados para o céu sem nuvens, em
súplica sincera, receando o desconhecido com quem em breve estariam face a
face, enquanto as duas vozes – uma fina e clara, a outra profunda e dura –
uniam-se, suplicando misericórdia e perdão. A oração terminou e eles retomaram
a sombra do rochedo, até que a criança adormeceu aninhada no seu largo peito
protetor. Ele velou seu sono por algum tempo, mas a natureza provou ser
demasiado mais forte do que ele. Por três dias e três noites, não se permitiu
um único momento de repouso. Lentamente suas pálpebras baixaram sobre os olhos
cansados, a cabeça foi pendendo sobre o peito, até que a barba grisalha se
mesclou às tranças de ouro da meninazinha, e ambos caíram no sono, o mesmo sono
profundo e sem sonhos.

Tivesse
o andarilho permanecido acordado por mais meia-hora, teria uma visão bizarra
diante dos olhos. Distante, num ponto extremo da planície alcalina, elevava-se
uma nódoa de poeira, muito leve no início, dificilmente distinta entre as
brumas da distância, mas, aos poucos, foi crescendo mais e mais, amplamente,
até formar algo sólido, bem definido no meio da nuvem, que só poderia ser
criada por uma grande multidão de criaturas movendo na direção deles. Em climas
mais férteis, um observador teria chegado à conclusão de que uma dessas grandes
manadas de bisontes, que pastam nas pradarias, estava se aproximando. Mas
obviamente isso seria impossível naquelas paragens áridas. No meio do turbilhão
de poeira, que se aproximava do rochedo solitário sob qual repousavam os dois
andarilhos, a cobertura de lonas dos carroções e as figuras de cavaleiros
armados começaram a se mostrar com mais nitidez através da poeira, e logo toda
a aparição se revelou tratar-se de uma grande caravana em direção ao oeste. E
que caravana!

Quando
a frente dela tinha atingido a base das montanhas, a retaguarda ainda não era
visível no horizonte. Através de toda a enorme planície estendia-se a ondulada
comitiva de carroções e carretas, de homens a cavalo e a pé. Inúmeras mulheres
cambaleavam sob os fardos, algumas crianças caminhavam ao lado dos carroções e
outras espiavam das coberturas alvejadas das carretas. Evidentemente, não se
tratava de um bando ordinário de imigrantes, mas sim, de nômades que tinham
sido compelidos, por forças das circunstâncias, a buscar novos territórios.
Ascendia, no ar claro, o barulho confuso e estrondoso dessa grande massa humana,
com o ranger das rodas e o relinchar dos cavalos. Mas esse barulho todo não foi
o suficiente para despertar os dois viajantes fatigados sob o rochedo.

Na
frente da coluna, vinham cavaleiros de rostos graves e férreos, vestidos com
roupas sombrias, tecidas em casa, e armados com fuzis. Ao chegarem à base do
escarpado, pararam, e formaram um breve conselho.

“Os
poços são para a direita, meus irmãos”, disse um deles, de lábios duros,
bem barbeado, com o cabelo grisalho.

“À
direita de Sierra Blanco… por isso,
devemos chegar ao Rio Grande”, disse outro.

“Não
tenham medo pela falta de água”, gritou um terceiro. “Aquele que a
fez brotar das rochas não vai abandonar agora o seu povo escolhido.”

“Amém!
Amém!”, respondeu todo o grupo.

Estavam
prestes a retomar a jornada, quando um dos mais jovens, que possuía olhos mais
perscrutadores que os demais, soltou uma exclamação e apontou para o rochedo
abrupto, acima deles. Sob o cume rochoso, vibrava qualquer contorno rosa,
mostrava-se intenso e brilhante contra as envolventes rochas cinzentas.
Enxergando-a, eles frearam com ímpeto os cavalos e empunharam as armas de fogo,
enquanto outros cavaleiros vieram a galope para reforçar a vanguarda. A palavra
“pele-vermelha” estava em todos os lábios.

“Não
pode haver índios aqui”, disse o homem idoso que parecia estar no comando.
“Nós passamos dos pawlees, e não
há outras tribos até cruzarmos as grandes montanhas.”

“Devo
ir à frente e ver o que é, irmão Stangerson?”, perguntou um deles.

“Eu
vou junto”, gritou várias vozes.

“Deixe
seus cavalos aqui embaixo e nós esperamos aqui”, respondeu o ancião.

Em
segundos, os rapazes tinham desmontado, prendidos os cavalos, e subiam a
encosta íngreme que conduzia ao objeto que havia provocado a sua curiosidade.
Eles avançaram com rapidez e silêncio, com a confiança e destreza de batedores
treinados. Os observadores abaixo podiam vê-los saltar de pedra em pedra até
que as suas figuras se destacaram por completo contra o céu. O jovem que foi
primeiro a dar o alarme ia à frente. De repente, seus seguidores o viram
levantar as mãos, tomado de espanto, e, ao se juntarem a ele, foram afetados da
mesma maneira pela visão que depararam seus olhos.

No
pequeno planalto de penedos estéreis havia um único rochedo descomunal, lá
estava um homem de elevada estatura, de barba comprida e feições duras, com uma
magreza excessiva. Seu rosto plácido e a respiração regular mostravam que
dormia profundamente. Ao lado dele, repousava uma criança com seus braços
roliços e cândidos, circundando-lhe o pescoço musculoso, tendo a cabecinha de
cabelos dourados sobre a sua túnica de algodão. Seus lábios rosados estavam
entreabertos, mostrando a linha regular dos dentes alvos, esboçando um sorriso
encantador em meio aos traços infantis. Suas rechonchudas pernas brancas,
calçadas com meias alvejadas e sapatos limpos, de fivelas luzentes,
contrastavam com os membros compridos e magrelos do seu companheiro. Na borda
do rochedo, bem acima deste estranho casal, lá estavam três bútios solenes,
que, ao verem os recém-chegados, crocitaram estridentemente de decepção e,
mal-humorados, bateram asas distanciando-se dali.

Os
bramidos dos três pássaros repulsivos despertaram os adormecidos, que olharam
espantados em volta. O homem levantou-se cambaleante e olhou para a planície que,
antes de pegar no sono encontrava-se tão desolada, agora estava atravessada por
vários homens e animais. Seu rosto assumiu uma expressão de incredulidade
quando ele olhou, e ele passou a mão ossuda sobre os olhos. “Isto é o que
eles chamam de delírio, eu acho”, ele murmurou. A criança estava ao lado
dele, agarrada à aba de seu casaco, não dizia nada, reparava em torno, com os
olhos abismados e interrogativos da infância.

A
expedição de resgate rapidamente foi capaz de convencer os dois náufragos que a
sua presença não era nenhuma ilusão. Um deles apanhou a menina e colocou-a ao
ombro, enquanto dois outros apoiaram o seu magríssimo companheiro, ajudando-o a
descer até os carroções.

“Meu
nome é John Ferrier”, explicou o andarilho. “Eu e a menina somos que
restou de vinte e uma pessoas. O resto morreu de sede e fome bem longe, ao
sul.”

“Ela
é sua filha”, perguntou alguém.

“Eu
acho que agora ela é”, falou o homem, em desafio, “ela é minha filha,
porque eu a salvei. Nenhum homem vai levá-la de mim. Ela será Lucy Ferrier, a
partir deste dia. Quem são os senhores?”, indagou-o, olhando com
curiosidade para os rostos robustos e bronzeados dos salvadores. “Parecem
trazer algo poderoso nos olhos”.

“Somos
quase dez mil”, disse um dos jovens, “somos os perseguidos filhos de
Deus… os escolhidos do anjo Moroni.”

“Eu
nunca ouvi falar sobre ele”, disse o andarilho. “Parece ter escolhido
uma multidão.”

“Não
zombe do que é sagrado”, disse o outro, com firmeza. “Somos os que
acreditam nas Escrituras Sagradas, gravadas em letras egípcias, em placas de
ouro batido, que foram entregues ao santo Joseph Smith, em Palmyra. Viemos de
Nauvoo, do estado de Illinois, onde havíamos fundado o nosso templo. Procuramos
um refúgio contra o homem violento e ateu, mesmo que seja no coração do deserto.”

O
nome de Nauvoo, evidentemente, despertou algumas lembranças em John Ferrier.
“Eu entendo”, disse ele, “Vocês são os mórmons”.

“Sim,
somos os mórmons”, responderam todos, a uma só voz.

“E
para onde vão?”

“Nós
ainda não sabemos. A mão de Deus está nos guiando sob a pessoa do nosso
Profeta. Vamos levá-lo à sua presença. Ele dirá o que devemos fazer com
você.”

Eles
chegaram à base da colina e, nesta altura, foram cercados por uma multidão de
peregrinos… mulheres pálidas, de aparência submissa; crianças robustas e
sorridentes, e homens ansiosos, de olhos francos. Muitos deram gritos de
espanto e de comiseração, quando perceberam a juventude de um dos forasteiros e
a miséria do outro. Mas a escolta não parou, no entanto, foi em frente, seguida
por uma grande multidão de mórmons, até chegar a um carroção, que se distinguia
dos outros pelo tamanho, ostentação e elegância. Seis cavalos estavam atrelados
a ele, enquanto os outros tinham uma parelha ou, no máximo, duas. Ao lado do
condutor estava sentado um homem que não teria mais de trinta anos de idade,
mas cuja cabeça admirável e a expressão resoluta expunham-no como o líder. Ele
estava lendo um livro de couro marrom, mas quando a multidão se aproximou, ele
colocou-o de lado, e ouviu atentamente a narração do episódio. Então, ele se
virou para os dois náufragos.

“Se
os levarmos conosco”, disse ele, em palavras solenes, “só poderá ser
como crentes da nossa fé. Não queremos lobos no nosso rebanho. Bem melhor que
os seus ossos embranquecem neste deserto do que serem um pontinho de declínio
que mais tarde poderá corromper toda a fruta. Você vem com a gente nestes
termos?”

“Acho
que eu vou com vocês sob quaisquer termos”, disse Ferrier, com tal ênfase
que as pessoas idosas não puderam conter o sorriso. Somente o líder manteve sua
expressão solene e impressionante.

“Leve-o,
irmão Stangerson”, disse ele, “dê-lhe de beber e de comer, e à
criança também. Que seja a sua tarefa também instruí-los acerca de nossa santa
religião. Já atrasamos por tempo suficiente. Em frente! Avante para o
Sião!”

“Avante
para o Sião”, repetiu a multidão de mórmons, e as palavras ondularam pela
comprida caravana, passando de boca em boca, até que se extinguiu num murmúrio
ao longe. Sob o estalar de chicotes e o ranger de rodas, os carroções
puseram-se em movimento e, logo depois, toda a caravana estava outra vez
serpenteando pelo deserto. O ancião, sob cujos cuidados os dois náufragos
tinham sido confiados, levou-os para a sua carroça, onde uma refeição já os
esperava.

“Vocês
ficam aqui”, disse ele. “Em poucos dias, recuperarão as forças.
Lembre-se de que agora e para sempre pertencerão à nossa religião. Brigham
Young assim o disse, e ele falou com a voz de Joseph Smith, que é a voz de
Deus.”

 

 

CAPÍTULO SEGUNDO

 

A FLOR DO UTAH

 

 

Não
é este o lugar para evocarmos as provações e privações sofridas pelos migrantes
mórmons antes de chegarem ao seu porto final. Das margens do Mississipi às
encostas ocidentais das Montanhas Rochosas, eles lutaram com uma constância
quase sem paralelo na história. Homens e animais selvagens, fome, sede, cansaço
e doenças… todos os impedimentos que a natureza poderia colocar-lhes no
caminho – tudo foi superado com a tenacidade anglo-saxônica. No entanto, a
longa viagem e os terrores acumulados tinham abalado até mesmo os corações dos
mais vigorosos entre eles. Não houve um só que não caísse de joelhos, em oração
sincera, quando avistaram o amplo vale de Utah, banhado pela luz do sol, e
ouviram dos lábios de seu líder que aquela era a terra prometida, que aqueles hectares
virgens seriam dos mórmons para todo o sempre.

Logo
Brigham Young rapidamente provou ser um hábil administrador, bem como um chefe
decidido. Mapas e gráficos foram elaborados e preparados para a construção da
futura cidade. Em torno, as terras foram divididas e doadas a cada um segundo a
sua importância. Os comerciantes foram chamados aos seus negócios e os
artesãos, às suas vocações. As ruas e as praças da cidade foram surgindo como
que por um passe de mágica. No campo, houve drenagem e cobertura, plantio e
limpeza, e já no próximo verão toda a região cobria de ouro com a cultura do
trigo. Tudo prosperou nesse assentamento curioso. Acima de tudo, o grande
templo que havia sido construído no centro da cidade tornava-se maior e mais
alto. A partir das primeiras luzes do amanhecer até o fechamento do crepúsculo,
o vibrante do martelo e o soar da serra jamais silenciavam no monumento que os
migrantes erguiam para aquele que os havia conduzido seguros por tantos
perigos.

Os
dois sobreviventes, John Ferrier e a meninazinha, que tinha compartilhado sua
sorte e sido adotada como filha, acompanharam os mórmons até o fim de sua
peregrinação. A pequena Lucy Ferrier sentiu-se confortada no carroção do ancião
Stangerson, em companhia das suas três mulheres e do seu filho, um menino
obstinado com a idade de doze anos. Tendo-se refeita, com a elasticidade da
infância, do choque causado pela morte de sua mãe, logo se tornou a predileta
das mulheres, reconciliando-se nessa nova vida, naquela casa ambulante coberta
de lona. Entretanto, Ferrier, tendo se recuperado de suas privações,
distinguiu-se como um guia útil e um caçador infatigável. Tão rapidamente que
conquistou a estima dos seus novos companheiros, que, quando chegaram ao fim da
jornada errante, recompensaram-no, por unanimidade, com um pedaço de terra tão
grande e tão fértil quanto às terras dos demais colonos, com exceção do próprio
Young, e de Stangerson, Kemball, Johnston e Drebber, que eram os quatro Anciãos
principais.

Na
terra recebida, John Ferrier construiu para si uma sólida casa de troncos de
árvores, que foi sendo ampliada nos anos seguintes, até se transformar numa
espaçosa casa. Ele era um homem de senso prático, sabia conduzir seus negócios
e era muito habilidoso com as mãos. Sua constituição férrea permitia-lhe
trabalhar de manhã e à noite cultivando, da melhor maneira, as suas terras.
Assim, aconteceu que sua fazenda e tudo o que lhe pertencia prosperou muito. Em
três anos, era o mais bem instalado dos seus vizinhos, em seis, era próspero,
em nove, ficara rico, e, em doze anos, não havia em toda a Salt Lake City meia
dúzia de colonos que pudessem rivalizar com ele. A partir do grande mar
interior até as distantes Montanhas Wasatch, não existia nome mais conhecido do
que o de John Ferrier.

Havia
um assunto, e somente um, no qual ele feria as suscetibilidades dos seus
correligionários. Nenhum argumento ou persuasão poderia induzi-lo a criar um
harém, à maneira de seus companheiros. Nunca explicara os motivos dessa
persistente recusa, contentando-se, dissipado e inflexivelmente, em manter a
sua determinação. Havia alguns que o acusavam de tibieza na religião que
adotara, e outros que lhe atribuíam essa conduta por apego à riqueza, para não
incorrer em despesas. Outros, mais de uma vez, falaram de encanecido amor por
uma moça de cabelos louros que tinha definhado nas margens do Atlântico. Seja
qual for a razão, Ferrier permaneceu estritamente celibatário. Em todos os
outros aspectos conformou-se com a religião do jovem assentamento, e ganhou a
reputação de ser um homem ortodoxo e honrado.

Lucy
Ferrier cresceu na casa de troncos, e ajudou seu pai adotivo em todas as suas
empresas. O ar puro das montanhas e o odor balsâmico dos pinheiros fizeram-lhe
as vezes de mãe e governante. Com o passar dos anos, foi se tornando mais alta,
mais forte, de passo mais elástico e faces mais coradas. Muitos viajantes, ao
passarem pela estrada, corriam os olhos pela fazenda de Ferrier e sentiam
reviver na mente pensamentos há muito esquecidos quando observavam sua figura,
ágil e feminina, correndo pelos trigais, ou galopando no mustang de seu pai,
com a graça e a desenvoltura de uma verdadeira filha do oeste. Então, o botão
floresceu em flor e, no ano que viu seu pai se tornar o mais rico dos
agricultores, transformou-se na jovem americana mais bela que qualquer outra em
toda a costa do Pacífico.

Não
foi, contudo, o pai o primeiro a descobrir que a menina se tornara mulher;
raramente isso acontece em tais casos. Essa mudança misteriosa é muito sutil e
demasiado gradual para ser medida por datas. E muito menos a própria garota o
sabe, até que o tom de uma voz ou o toque de uma mão acaba inquietando-lhe o
coração, com uma mistura de altivez e de receio, e uma nova e mais ampla
natureza desperta dentro de si. Poucas são as que não se podem lembrar-se desse
dia e evocar o pequeno incidente que lhes anunciou o início de uma nova vida.
No caso de Lucy Ferrier, a ocasião foi em si mesma atinada o suficiente, além
da futura influência sobre o seu destino e de muitos outros.

Era
uma manhã ardente de junho, e os Santos dos Últimos Dias trabalhavam como as
abelhas, cuja colmeia, eles escolheram para o seu emblema. Nos campos e nas
ruas, subia o mesmo zumbido do labor humano. Pelas estradas poeirentas, desciam
filas de mulas sobrecarregadas, todas indo para o oeste, para a febre do ouro,
que desencadeara na Califórnia, e a rota por terra passava pela cidade dos
Eleitos. Havia também rebanhos de ovelhas, manadas de bois que vinham das
pastagens distantes e comitivas de migrantes cansados, de homens e cavalos
igualmente cansados pela jornada interminável. Através de toda essa aglomeração
heterogênea, abrindo caminho com a habilidade de um talentoso cavaleiro,
galopava Lucy Ferrier, com o rosto corado pelo exercício e os compridos cabelos
castanhos flutuando atrás dela. Ela levava uma incumbência do pai para a
cidade, e foi galopando, como sempre fizera antes, com toda a intrepidez da
juventude, pensando apenas em sua tarefa e como realizá-la.

Os
aventureiros empoeirados fitaram-na com assombro, e até mesmo os índios, sempre
impassíveis, viajando abrigados nas suas peles, relaxaram o seu estoicismo
habitual maravilhados com a beleza da jovem cara-pálida.

Ela
tinha alcançado os arredores da cidade quando encontrou o caminho bloqueado por
uma grande manada de bois, conduzida por meia dúzia de vaqueiros de aspecto
selvagem, vindos das planícies. Em sua impaciência, forçou o cavalo a vencer o
obstáculo, conduzindo-o para o que lhe pareceu uma passagem. Mas, apenas o
mustang dera alguns passos, o gado fechou a estreita passagem, e ela se viu
totalmente incorporada ao fluxo de longos chifres e olhos em brasa. Acostumada
a lidar com o gado, não se encontrava alarmada com a situação, aproveitando
todas as oportunidades para insistir com seu cavalo, na esperança de abrir
caminho através da manada. Infelizmente, os chifres de uma rês, por acaso ou
não, entrou em contato violento contra o flanco do mustang, assustando-o. Em
instantes, ergueu-se sobre as patas traseiras com um relincho de raiva, empinou
e corcoveou de uma maneira que teria arremessado da sela outro cavaleiro menos
habilidoso. A situação prosseguiu perigosamente; cada mergulho do cavalo
excitado arremessava-o igualmente contra os chifres dos bois, enlouquecendo-o
cada vez mais. A garota fazia de tudo para se manter firme na sela, pois um
deslize significaria uma morte horrível sob os cascos dos animais aterrorizados
em compressão. Desacostumada a emergências repentinas, sua cabeça começou a
rodar, e seu aperto sobre o freio relaxou. Sufocada pela nuvem de poeira que
subia e pelo vapor das criaturas comprimidas, poderia ter abandonado seus
esforços por causa do desespero, se uma voz gentil não lhe assegurasse a
assistência. No mesmo instante, uma mão vigorosa e bronzeada segurou o cavalo
assustado pelo freio, forçando caminho através da manada, e logo a conduziu
para fora do cerco.

“Espero
que não esteja ferida, senhorita”, disse o seu salvador, respeitosamente.

Ela
olhou para seu rosto bronzeado, varonil, e riu atrevidamente.

“Tive
muito medo”, disse ela, ingenuamente, “quem teria pensado que Poncho
se assustaria com um monte de vacas?”

“Graças
a Deus, você se manteve na sela”, ele disse, com sinceridade. Era um
sujeito alto, jovem, de aparência selvagem, montado em um cavalo malhado
poderoso, vestido com um blusão áspero de caçador, com um longo rifle jogado
sobre os ombros. “Acho que você é a filha de John Ferrier,” ele
comentou: “Eu vi você sair da sua casa. Dê-lhe lembranças da parte de
Jefferson Hope, de St. Louis. Se ele é o Ferrier que eu penso, foi muito amigo
de meu pai.”

“Não
é melhor vir e perguntar-lhe você mesmo”, inquiriu ela, timidamente.

O
jovem parecia satisfeito com a sugestão, e seus olhos escuros brilhavam com
prazer. “Eu vou fazer isso”, disse ele, “estamos nas montanhas
há dois meses, e não estamos em condições de fazer qualquer visita no momento.
Tenho que levar isso em conta.”

“Ele
terá muito que lhe agradecer, e eu também”, ela respondeu, “ele gosta
muito de mim. Se eu tivesse sido pisoteada, ele nunca superaria isso.”

“Nem
eu”, disse seu companheiro.

“Você!
Bem, eu não vejo motivo para isso. Você não é nem mesmo um amigo nosso.”

O
rosto bronzeado do jovem caçador fez-se tão sombrio com essa observação que
Lucy Ferrier se pôs a rir alto.

“Não,
eu não quis dizer isso”, disse ela, “claro, você é um amigo agora.
Tem que nos visitar. Agora, tenho que ir, senão meu pai nunca mais me confiará
nem uma tarefa. Adeus!”

“Adeus”,
respondeu ele, levantando seu sombrero largo,
e inclinando-se sobre a sua mãozinha. Ela fez o mustang girar, chicoteou-o, e
cavalgou pela larga estrada, em meio a nuvem de pó.

O
jovem Jefferson Hope montou com seus companheiros, sombrio e taciturno. Ele e
os demais tinham estado nas montanhas de Nevada em busca de prata, e estavam
retornando para Salt Lake City, na esperança de levantar capital suficiente
para explorar alguns filões que haviam descoberto. Estava tão envolvido no
projeto quanto qualquer um dos companheiros até que o incidente com a garota
desviara o rumo de seus pensamentos. A vista da bela moça, tão franca e
saudável como a brisa da Sierra, tinha agitado profundamente o seu vulcânico e
indomável coração. Quando ela desapareceu dos seus olhos, percebeu que sua vida
encaminhava para um novo estágio crítico e, que nem a prata nem quaisquer especulações,
poderiam ser tão importantes para ele como este novo e absorvente
acontecimento. O amor que surgia em seu coração não era uma fantasia, mutável e
súbita de um menino, mas sim a paixão, selvagem e feroz de um homem de vontade
férrea e temperamento imperioso. Estava acostumado a ter sucesso em tudo o que
empreendia. Jurou para si mesmo que não iria falhar nessa nova empreitada, o
esforço humano e a perseverança poderiam torná-lo bem sucedido.

Ele
visitou John Ferrier, naquela noite, e muitas vezes mais, até seu rosto se
tornar familiar na casa da fazenda. John, isolado no vale, e absorvido em seu
trabalho, tinha pouca chance de saber o que acontecia pelo mundo exterior
durante os últimos doze anos. Mas Jefferson Hope foi capaz de contar todos os
fatos que sabia duma maneira que interessou Lucy, assim como ao seu pai.

Ele
tinha sido um pioneiro na Califórnia e narrava histórias curiosas sobre
fortunas acumuladas e perdidas. Tinha sido também um explorador de prata,
caçador, mineiro e vaqueiro. Para onde quer que sopre o vento da aventura, lá
estive Jefferson Hope. Logo se tornou o amigo favorito do velho fazendeiro,
falava eloquentemente, atribuindo a si certas virtudes. Em tais ocasiões, Lucy
ficava em silêncio, mas seu rosto corava e seus olhos brilhavam felizes,
deixando muito claramente que seu jovem coração não mais lhe pertencia. Seu
honesto pai talvez não observasse esses sintomas, mas eles, seguramente, não
passavam despercebidos ao homem que havia conquistado suas afeições.

Numa
noite de verão, ele veio galopando pela estrada e parou no portão. Ela estava
na porta, e desceu para encontrá-lo. Ele jogou as rédeas sobre a cerca e
caminhou até a entrada.

“Estou
de partida, Lucy”, disse ele, tomando-lhe as duas mãos nas suas e olhando
com ternura para seu rosto. “Agora não lhe pedirei que venha comigo, mas,
da próxima vez, estará disposta a vir?”

“E
quando vai ser isso?”, ela perguntou, corando e rindo.

“Daqui
a dois meses. Voltarei para buscá-la, minha querida. Não há ninguém que possa
ficar entre nós.”

“E
que dirá meu pai?”, ela quis saber.

“Ele
já deu o seu consentimento, desde que as minas produzam alguma coisa. Eu não
tenho o menor receio quanto a isso.”

“Oh,
então está tudo bem; se você e meu pai organizaram tudo, não há mais a ser
dito,” ela sussurrou, com a face apoiada em seu peito largo.

“Graças
a Deus!”, disse, com a voz rouca, inclinando-se e beijando-a. “Tudo
está resolvido, então. Quanto mais tempo eu ficar, mais difícil será ir embora.
Eles estão esperando por mim no canyon. Adeus, minha querida… adeus. Em dois
meses, você me verá de novo.”

Dizendo
isso, ele se desvencilhou dela, lançando-se sobre o cavalo, galopou
furiosamente, sem olhar para trás uma só vez, como se temesse que a sua
resolução sucumbisse se olhasse para amada. Ela ficou no portão, acompanhando-o
com o olhar até ele desaparecer de sua vista. Em seguida, voltou para a casa;
era a garota mais feliz do Utah.

 

 

CAPÍTULO TERCEIRO

 

JOHN FERRIER FALA COM O PROFETA

 

 

Três
semanas se passaram desde que Jefferson Hope e seus companheiros partiram de
Salt Lake City. O coração de John Ferrier ficava em sobressalto quando pensava
no retorno do jovem e da perda iminente de sua filha adotiva. No entanto, o
rosto feliz e brilhante da filha reconciliava-o com adaptação mais do que
qualquer argumento. Ele estava determinado, no fundo de seu coração resoluto,
jamais permitir que sua filha se casasse com um mórmon. Uma união que ele não
considerava como uma instituição sagrada, mas como uma vergonha e uma desgraça.
Tudo o que ele podia ponderar da doutrina dos mórmons, nesse ponto, era
inflexível. Mas tinha que selar os lábios sobre o assunto, naqueles dias,
expressar uma opinião tão heterodoxa era uma questão muito perigosa na Terra dos
Santos.

Sim,
era uma questão perigosa… tão perigosa que até mesmo os mais beatos apenas
ousavam sussurrar suas opiniões religiosas com cuidado para que algo que saísse
dos lábios não fosse mal interpretado e trouxesse-lhes um rápido castigo. As
vítimas da perseguição, agora, tinham se tornados perseguidores fanáticos. A
Inquisição de Sevilha, o Vehmgericht alemão, nem as sociedades secretas da
Itália, foram capazes de colocar uma máquina em movimento mais formidável do
que aquela que estendia a sua sombra sobre o Estado de Utah.

A
invisibilidade e o mistério anexado a essa organização tornava-a duplamente
terrível. Parecia onisciente e onipotente, mas nenhuma pessoa a via nem a
ouvia. O homem que se erguesse contra a Igreja desaparecia sem que ninguém
soubesse para onde fora ou o que lhe tinha acontecido. Sua esposa e seus filhos
o aguardavam em casa, mas nenhum pai jamais retornou para dizer-lhes como ele
se saiu nas mãos de seus juízes secretos. Uma palavra imprudente ou um ato
precipitado eram seguidos pela aniquilação, ainda não se sabia que tipo de
natureza poderosa e terrível pairava sobre todos. Não é de admirar que os
homens andassem tremendo de medo e que, nem mesmo no coração do deserto,
ousassem sussurrar as dúvidas que os oprimiam.

No
início, esse poder vago e terrível foi exercido apenas sobre os recalcitrantes
que, tendo abraçado a fé mórmon, depois desejaram pervertê-la ou abandoná-la.
Logo, porém, ampliou o seu campo. A oferta de mulheres adultas foi acabando e a
poligamia, sem uma população feminina para a qual apelar, tornava uma doutrina
estéril, de fato. Estranhos rumores começaram a circular… havia rumores de
imigrantes assassinados e acampamentos destruídos em regiões onde nunca se
haviam visto índios. Novas mulheres apareciam nos haréns dos anciãos…
mulheres que definhavam e choravam, trazendo nos rostos os traços de um horror
inextinguível. Andarilhos tardios referiam-se a grupos de homens armados e
mascarados, que furtiva e silenciosamente passavam por eles na escuridão. Esses
boatos e histórias tomavam forma e substância e eram repetidamente
corroborados, até que se resumiram num nome bem definido. Até hoje, nas
fazendas solitárias do Oeste, o nome do Bando de Danite, ou os Anjos
Vingadores, é um sinistro e um mau agouro.

Um
conhecimento mais amplo da organização que produzia resultados tão terríveis e
servia para aumentar, em vez de diminuir o terror que ela inspirava nas mentes
dos homens. Ninguém sabia quem pertencia a essa sociedade cruel. Os nomes dos
participantes em atos sangrentos e violentos, cometidos em nome da religião,
foram mantidos em profundo segredo. O próprio amigo a quem confiasse as dúvidas
quanto ao Profeta e à sua missão poderia ser um daqueles que sairia à noite em
busca de uma reparação exata, terrível com o fogo e a espada. Por isso, cada
homem temia o próximo, e ninguém falava das coisas que estavam mais próximas de
seu coração.

Uma
bela manhã, John Ferrier estava prestes a partir para os seus campos de trigo,
quando ouviu o clique do trinco, e, olhando pela janela, viu um homem de
meia-idade, ruivo e robusto, caminhando em direção à porta. Seu coração pulou
para a boca, pois não era ninguém menos que o grande Brigham Young em pessoa.
Receoso, pois ele sabia que tal visita não lhe era de bom augúrio. Ferrier
correu à porta para receber o chefe dos Mórmons. Este, porém, recebeu friamente
as suas saudações, e o seguiu de rosto severo até a sala de estar.

“Irmão
Ferrier”, disse ele, tomando o assento e olhando intensamente para o
agricultor sob os cílios claros, “os verdadeiros crentes têm sido bons
amigos para você. Nós o recolhemos quando morria de fome no deserto,
compartilhamos a nossa comida, levamo-lo são e salvo para o Vale dos
Escolhidos, demos-lhe um bom quinhão de terra e permitimos que enriquecesse sob
a nossa proteção. Não é assim?”

“É
assim”, respondeu John Ferrier.

“Em
troca de tudo isso, pedimos apenas uma condição: que abraçasse a verdadeira fé,
e obedecesse, em todos os sentidos, nossos costumes. Foi isso o que prometeu
fazer, mas, na verdade, tem negligenciado.”

“Como
tenho negligenciado”, perguntou Ferrier, erguendo as mãos em protesto.
“Não tenho contribuído para o fundo comum? Não tenho frequentado o templo?
Não tenho?”

“Onde
estão suas esposas?”, perguntou Young, olhando em volta. “Chame-as,
para que eu possa cumprimentá-las.”

“É
verdade que não me casei”, respondeu Ferrier. “Mas as mulheres eram
poucas, e havia muitos que tinham reivindicações melhores do que eu, e nunca
fui um homem solitário. Sempre tive a companhia da minha filha.”

“É
dessa filha que quero falar com você”, disse o líder dos mórmons.
“Ela cresceu e se tornou a flor do Utah, e tem agradado aos olhos de
muitos, que são ricos na terra.”

John
Ferrier gemeu internamente.

“Há
histórias sobre ela que eu não gostaria de acreditar… histórias que a dão
como noiva de um gentio. Pode ser fofoca de línguas ociosas. Qual é a regra do
décimo terceiro mandamento do Santo Joseph Smith? Que toda virgem pertencente
da verdadeira fé deve casar com um dos eleitos. Pois se ela casar com um gentio,
comete um pecado grave. Sendo assim, é impossível que você, professando o credo
santo, permita que sua filha viole esse mandamento.”

John
Ferrier não deu resposta, ficou mexendo nervosamente com seu chicote.

“Nesse
único ponto é que toda a sua fé será posta à prova… deste modo foi decidido
no Conselho Sagrado dos Quatro. Sua filha é moça, e não queremos que se case de
cabelos grisalhos, nem desejamos privá-la de escolha. Nós, os Anciãos, temos
muitas novilhas, mas os nossos filhos também devem ser abastecidos. Stangerson
tem um filho e Drebber tem outro, e qualquer desses rapazes receberia de bom
grado sua filha na casa deles. Deixaremos que ela escolha entre eles. Eles são
jovens e ricos, e da verdadeira fé. O que diz a isso? “

Ferrier
permaneceu em silêncio por algum tempo, com as sobrancelhas aprumadas.

“Dê-nos
mais algum tempo”, disse ele, por fim. “Minha filha é muito jovem…
mal chegou à idade de se casar.”

“Ela
terá um mês para escolher”, disse Young, levantando-se da cadeira.
“Ao fim desse tempo, queremos a sua resposta.”

Ele
atravessava a porta, quando se virou com o rosto corado e olhos brilhantes.
“Seria melhor para você, John Ferrier”, trovejou ele:  “que você e sua filha fossem agora dois
esqueletos abandonados na Sierra Blanco,
do que contrapor a sua débil vontade contra as ordens dos Quatro Santos!”

Com
um gesto ameaçador de mão, ele fechou a porta atrás de si, e Ferrier ouviu seus
passos pesados, triturando o longo caminho de pedregulhos.

Ainda
estava sentado, com o cotovelo sobre o joelho, pensando como deveria abordar
aquele assunto com a filha, quando uma mão suave pousou sobre a sua, e olhando
para cima, achou-a de pé, ao lado dele. Trazia um olhar pálido e assustado no
rosto, revelando-lhe que havia ouvido o que se passara naquela sala.

“Era
impossível não ouvir”, disse ela, em resposta ao seu olhar. “A voz
dele ecoava pela casa. Ah, meu pai, meu pai, o que devemos fazer?”

“Não
tenha medo”, respondeu ele, puxando-a para si e acariciando-lhe os cabelos
castanhos com a sua mão larga e áspera. “Nós vamos achar uma saída, de
alguma forma ou de outra. Não mudou de ideia a respeito do rapaz?”

Um
soluço e uma pressão na mão paterna foram a única resposta.

“Não,
claro que não. Nem eu gostaria de ouvi-la dizer o contrário. Ele é um bom
rapaz, é um cristão, muito mais do que essas pessoas daqui, apesar de toda
oração e pregação deles. Amanhã parte uma expedição para Nevada, arranjarei um
modo de enviar-lhe uma mensagem, avisando-o sobre a decisão dos Anciões. Se não
me engano a respeito do rapaz, chegará aqui mais depressa que o
telégrafo”.

Lucy
riu, através das lágrimas, diante do comentário do pai.

“Quando
ele vier, vai nos aconselhar sobre o que fazer. Mas é pelo senhor, meu querido
pai, que temo. Ouve-se… ouve-se histórias terríveis sobre aqueles que se
opõem ao Profeta; algo terrível acontece com eles”.

“Mas
ainda não nos opusemos a ele”, respondeu-lhe o pai. “Será como olhar
para rajadas de vento quando o fizermos. Temos um mês pela frente, no final de
tudo, mas antes de findar esse prazo acho que já teremos deixado Utah.”

“Deixar
o Utah!”

“Não
vejo outra saída.”

“Mas…
e a fazenda?”

“Reuniremos
todo o dinheiro que pudermos e abandonaremos o resto. Para dizer a verdade,
Lucy, não é a primeira vez que eu penso em fazer isso. Não concordo em rastejar
diante de qualquer homem, como essas pessoas daqui fazem diante desse
detestável profeta. Sou um americano, nasci livre, e não me acostumo a essa
coisas. Acho que estou velho demais para aprender. Se ele começar a se meter
nesta fazenda, poderá receber uma carga de chumbo pela frente.”

“Mas
ele não nos deixará ir embora”, opôs sua filha.

“Espere
até que Jefferson chegue e, então, trataremos do assunto. Enquanto isso, não se
preocupe, minha querida, nem fique de olhos vermelhos, senão ele pode me pedir
contas disso quando colocar os olhos em você. Não há nada a ser temido, por
enquanto, não há perigo algum.”

John
Ferrier pronunciou essas observações consoladoras em um tom muito confiante,
mas não pode deixar conferir as trancas das portas; e, naquela noite, limpou
cuidadosamente e carregou a antiga espingarda, pendurada na parede de seu
quarto.

 

 

CAPÍTULO QUARTO

 

UM VOO PARA A VIDA

 

 

Na
manhã que se seguiu a sua conversa com o profeta mórmon, John Ferrier foi a
Salt Lake City, encontrou-se com um conhecido seu que partia para as Montanhas
Nevadas, e confiou-lhe uma mensagem para Jefferson Hope. Nela, ele expunha ao
jovem o iminente perigo que os ameaçava, e quão necessário era seu regresso.
Tendo feito assim, ele se sentiu mais aliviado e voltou para casa com um
conforto no coração.

Enquanto
se aproximava da fazenda, ficou surpreso ao ver dois cavalos enlaçados em cada
moirão da porteira. Ainda mais surpreso ficou quando, ao entrar em casa,
encontrou dois jovens de posse da sua sala de estar. Um deles, de rosto pálido
e comprido, estava recostado na cadeira de balanço, com os pés apoiados sobre a
estufa. O outro, um jovem de pescoço de touro e aparências inchadas e
grosseiras, estava parado em frente à janela, com as mãos nos bolsos,
assobiando uma canção popular. Ambos acenaram para Ferrier quando ele entrou, e
o que estava sentado na cadeira de balanço puxou a conversa.

“Talvez
o senhor não nos conheça”, disse ele. “Este aqui é o filho do ancião
Drebber, e eu sou Joseph Stangerson, que viajou com você no deserto quando o
Senhor estendeu a sua mão e o acolheu no verdadeiro rebanho.”

“Como
Ele acolheu todas as nações no momento certo”, disse o outro numa voz
nasalada; “Ele mói lentamente, mas sua moagem é extremamente
superior.”

John
Ferrier inclinou-se friamente. Ele já sabia quem eram seus visitantes.

“Viemos”,
continuou Stangerson, “a conselho de nossos pais, para solicitar a mão de
sua filha para qualquer um de nós, aquele que pareça preferível a ela ou ao
senhor. Como eu tenho quatro esposas e o irmão Drebber, aqui, tem sete,
parece-me que tenho mais direito.”

“Não,
não, irmão Stangerson”, exclamou o outro, “a questão não é quantas
esposas temos, mas quantas podemos manter. Meu pai acaba de me dar os seus
moinhos, sou o homem mais rico.”

“Mas
minhas perspectivas são melhores”, disse o outro, calorosamente.
“Quando o Senhor levar meu pai, terei sua terra e sua fábrica de
curtimento de couro. Além disso, sou o mais velho e tenho um cargo mais alto na
Igreja.”

“Então,
será a donzela que vai decidir”, voltou o jovem Drebber, sorrindo para o
seu próprio reflexo no vidro. “Vamos deixar tudo para a sua decisão.”

Durante
esse diálogo, John Ferrier tinha ficado furioso na porta, contendo-se para não chicotear
os dois visitantes.

“Olhe
aqui”, disse ele, finalmente, caminhando até eles. “Quando a minha
filha mandar chamá-los, podem vir aqui, mas antes disso não quero ver novamente
as fuças de vocês.”

Aos
olhos deles essa competição pela mão da donzela era uma grande honraria, tanto
para ela, como para seu pai.

“Há
duas maneiras de sair da sala”, gritou Ferrier, “pela porta ou pela
janela. Qual prefere usar?”

Seu
rosto moreno estava tão selvagem e suas mãos magras tão ameaçadoras, que os
visitantes apressaram em se retirar. O velho fazendeiro seguiu-os até a porta.

“Deixe-me
saber quando tiverem resolvidos qual dos dois será o noivo”, disse ele,
sarcasticamente.

“Isto
não ficará assim!” Stangerson gritou, lívido de ódio “Acaba de
desafiar o Profeta e o Conselho dos Quatro. Vai se arrepender até o fim de seus
dias.”

“A
mão do Senhor será pesada sobre você”, gritou o jovem Drebber: “Ele
surgirá e ferirá você!”

“Então,
eu vou começar a ferir”, exclamou Ferrier, furiosamente, e teria saído em
busca de sua arma se Lucy não o tivesse detido, segurando-lhe o braço. Antes
que ele pudesse escapar dela, o barulho dos cascos dos cavalos avisava-lhe que
já se encontravam fora de seu alcance.

“Patifes
e hipócritas!”, exclamou, enxugando o suor da testa: “Eu preferiria
vê-la em seu túmulo, minha menina, a vê-la casada com um deles.”

“Eu
também, pai”, respondeu ela, decidida, “mas Jefferson logo estará
aqui.”

“Sim.
Não vai demorar muito para ele chegar. Quanto mais cedo melhor, pois não sei qual
será o próximo passo deles.”

Na
verdade, foi um bom motivo para unir o velho e rijo agricultor à filha adotiva.
Em toda a história da colônia nunca houve um caso de desobediência direta à
autoridade dos Anciãos. Se pequenas falhas foram punidas tão severamente, qual
não seria o destino daquele rebelde? Ferrier sabia que sua riqueza e posição
não teriam proveito para ele. Outros, tão bem conhecidos e tão ricos como ele,
tinham sido eliminados e os seus bens doados à Igreja. Ele era um homem
corajoso, mas temia os horrores sombrios que pendiam sobre ele. Qualquer perigo
conhecido poderia enfrentar sem pestanejar, mas esse suspense era enervante
para ele. Ocultou da filha os seus temores, fingindo tranquilidade, embora ela,
com o olhar atento de afeição, via claramente que ele estava pouco à vontade.

Ele
esperava receber alguma mensagem ou protesto de Young quanto à sua conduta e –
não estava enganado -, a repreensão veio de uma forma inesperada. Ao
levantar-se na manhã seguinte, para sua surpresa, encontrou um pequeno
retângulo de papel preso na colcha de sua cama por um alfinete, um pouco mais
acima de seu peito. Em que foi escrito, em negrito, com letras dispersas:

“Vinte
e nove dias são dados para se emendar, e depois…”

As
reticências eram mais atemorizantes do que qualquer outra ameaça poderia ter
sido. Como aquela advertência entrara em seu quarto era o que deixava John
Ferrier imensamente intrigado, pois seus empregados dormiam nas dependências
isoladas da casa, e as portas e janelas tinham sido trancadas. Ele amassou o
papel e jogou-o fora, não mencionando nada a respeito à filha, mas o incidente
atingiu-lhe friamente o coração. Os vinte e nove dias eram, evidentemente, os
dias restantes do mês que Young lhe havia dado. Que força ou coragem poderiam valer
contra um inimigo armado com tais poderes misteriosos? A mão que prendera o
alfinete poderia tê-lo golpeado no coração, sem tempo para saber quem o tinha
golpeado.

Ainda
mais abalado ficou na manhã seguinte. Ele mal se sentou à mesa para tomar o
café da manhã, quando Lucy com um grito de surpresa apontou para cima. No
centro do teto foi rabiscado, com um tição, aparentemente, o número 28. Para a
filha era algo ininteligível, e ele não quis esclarecer. Nessa noite, ele
sentou-se com a sua arma e ficou de vigia. Não viu nem ouviu nada, mas de manhã
viu que um grande 27 tinha sido pintado do lado de fora de sua porta.

Assim
se seguiram os dias, e todas as manhãs, tão certas como o alvorecer, ele
constatava que seus inimigos invisíveis mantinham o registro, marcando de
alguma forma visível quantos dias ainda de graça lhe restavam. Às vezes, os
números fatais apareciam nas paredes, outras vezes sobre o piso,
ocasionalmente, em pequenos cartazes colados no portão do jardim ou nas grades
do alambrado. Mesmo com toda a sua vigilância, John Ferrier não conseguia
descobrir de onde esses avisos diários procediam. Um terror quase supersticioso
vinha sobre ele à vista dos números. Ele tornou-se abatido e inquieto, e seus
olhos tinham a aparência perturbada de uma criatura acuada. Agora havia apenas
uma esperança na vida, que era a chegada do jovem caçador de Nevada.

Os
vinte dias haviam se tornado quinze, e os quinze, dez, mas não havia notícias
do ausente. Um por um, os números iam diminuindo, e nenhum sinal dele. Sempre
que um cavaleiro galopava ruidosamente pela estrada, ou um cocheiro gritava às
suas parelhas, o velho fazendeiro corria ao portão, pensando que a ajuda
chegara finalmente. Quando viu os cinco dias darem lugar a quatro e os quatro a
três, ele perdeu toda a esperança de escapar. Sozinho, com conhecimento
limitado das montanhas que cercavam a fazenda, sentia-se impotente. As estradas
mais frequentadas eram estritamente vigiadas e protegidas, e ninguém podia
passar sem uma ordem do Conselho. Para qualquer lado que se volvesse não lhe
parecia haver nenhum jeito de evitar o golpe que pairava sobre ele. No entanto,
o velho nunca vacilou na sua resolução: antes perder a própria vida do que
consentir ato de servilismo que considerava a desonra de sua filha.

Numa
noite, estava sentado sozinho pensando profundamente sobre seus problemas,
procurando em vão um meio de afastá-los. Naquela manhã, havia aparecido o
número 2 em cima do muro de sua casa, e no dia seguinte seria o último do prazo
concedido: O que aconteceria então? Toda espécie de vagos e terríveis
pressentimentos lhe sobrecarregavam a imaginação. E sua filha… que seria dela
após a sua morte? Não haveria como fugir da rede invisível que os envolvia?
Deixou cair a cabeça sobre a mesa e chorou ao pensar diante da sua impotência.

Mas
que era aquilo? No silêncio, ouviu um breve ruído, como se arranhasse o tampo
da porta da entrada… era um som baixo, mas muito distinto no silêncio da
noite. Ele foi à porta da casa. Ferrier se arrastou pelo corredor, escutando
atentamente. Houve uma pausa por alguns instantes, e então o som baixo e
insidioso recomeçou. Alguém estava, evidentemente, batendo muito de leve nos
tampos da porta. Seria algum assassino vindo ao meio da noite para cumprir as
ordens homicidas do tribunal secreto? Ou algum emissário marcando que o último
dia de graça havia chegado? John Ferrier sentiu que a morte instantânea seria
melhor do que o suspense que  lhe abalava
os nervos e gelava-lhe o coração. Saltando para frente, tirou o ferrolho e
abriu a porta.


fora, tudo quieto e silencioso. A noite era fulgente, as estrelas faiscavam
intensamente. O agricultor lançou os olhos pelo jardim, além do muro e do
portão, reparando a estrada, mas não deparou com ninguém. Com um suspiro de
alívio, Ferrier voltou a olhar para a direita e para a esquerda, até que,
olhando para os próprios pés, viu, para seu espanto, um homem estendido, com o
rosto colado no chão, com os braços e as pernas abertas.

Tão
nervoso ficou diante daquela cena que se encostou à parede, levando a mão à
garganta para sufocar um grito indesejado. O primeiro pensamento que lhe
ocorreu foi que a figura prostrada era um homem ferido ou a morrer, mas
percebeu que ele se arrastava pelo chão e, em pouco tempo, o viu entrar na sala
com a rapidez e o sigilo de uma serpente. Uma vez dentro da casa, o homem
ergueu-se, fechou a porta, e revelou ao surpreendido agricultor o seu feroz
rosto, de expressão decidida: era Jefferson Hope.

“Meu
Deus!”, engasgou John Ferrier. “Como você me assustou! O que o fez vir
assim?”

“Dê-me
comida”, o outro disse, com voz rouca. “Há quarenta e oito horas que
não ponho nada na boca.” Dizendo isso, atirou-se à carne fria e ao pão que
ainda estavam sobre a mesa da ceia do anfitrião, devorou-os vorazmente.
“Será que Lucy suportou bem a situação?”, perguntou, depois de
aplacar a fome.

“Sim.
Ela não sabe do perigo”, respondeu o pai.

“Assim
está bem. A casa está vigiada por todos os lados. Foi por isso que vim
rastejando. Eles podem ser muito astutos, mas não o bastante para apanharem um
caçador Washoe.”

John
Ferrier sentia-se outro homem ao ver que, a partir daquele instante, podia
contar com esse aliado. Tomando a áspera mão do jovem, apertou-a cordialmente.
“Você é um homem que merece a minha admiração”, disse ele. “Não
há muitos homens que viriam compartilhar do meu perigo e dos meus
problemas.”

“Disse
tudo, parceiro”, respondeu o jovem caçador. “Eu tenho um respeito
pelo senhor, mas se estivesse sozinho neste negócio, pensaria duas vezes antes
de colocar minha cabeça nesse ninho de vespas. É Lucy que me traz aqui, e antes
que lhe aconteça qualquer coisa, eu desconfio que haja um homem a menos na
família Hope de Utah.”

“O
que devemos fazer?”

“Amanhã
é o último dia, e se não agirmos esta noite, estaremos perdidos. Tenho uma mula
e dois cavalos esperando no Ravine Eagle. De quanto dinheiro dispõe?”

“Dois
mil dólares em ouro, e cinco em notas”.

“Isso
é o suficiente. Tenho outro tanto comigo. Podemos alcançar Carson City através
das montanhas. É melhor acordar Lucy. A sorte é que os criados não dormem
dentro de casa.”

Enquanto
Ferrier foi chamar a filha, Jefferson Hope fez um pequeno volume de todos os
víveres que pôde encontrar, depois encheu um garrafão de água, pois sabia, por
experiência, que os poços nas montanhas eram poucos e distantes entre si. Mal
havia completado os preparativos e o agricultor retornou com a filha, vestida e
pronta para partir. A saudação entre os namorados foi calorosa, mas muito
breve, os minutos eram preciosos, e havia muito a ser feito.

“Temos
que partir imediatamente”, disse Jefferson Hope falando em voz baixa, mas
decidida, como quem percebe a extensão do perigo, contendo a emoção para
atendê-la. “As entradas da frente e detrás da casa estão vigiadas, mas,
com cautela, podemos fugir pela janela lateral e atravessar os campos. Uma vez
na estrada, estaremos apenas dois quilômetros do Ravine Eagle, onde se
encontram os cavalos. Ao raiar do dia, deveremos estar no meio das
montanhas.”

“E
se formos detidos?”, perguntou Ferrier.

Hope
bateu no cabo do revólver que se projetava à frente de sua túnica. “Se
eles são demais para nós, deve ter dois ou três deles com a gente”, disse
ele com um sorriso sinistro.

As
luzes do interior da casa foram apagadas e, da janela escura, Ferrier olhou os
campos que tinham sido seus e que agora estava prestes a abandonar para sempre.
Ele estava preparado para esse sacrifício e, ao refletir na honra e felicidade
de sua filha, superava qualquer pesar ante a sua fortuna arruinada. Tudo
parecia tão plácido e ditoso, o farfalhar das árvores e o trecho amplo
silencioso do trigal; era difícil acreditar que o espírito homicida pairava
sobre todo esse magnífico cenário. No entanto, o rosto esbranquiçado e
irrequieto do jovem caçador indicava que, ao aproximar-se da casa, vira o suficiente
para se alarmar.

Ferrier
carregava a bolsa de ouro e dinheiro, Jefferson Hope as escassas provisões e
água, enquanto Lucy, uma trouxa na qual reunira os seus pertences mais
valiosos. Abrindo a janela devagar e com o maior cuidado, esperaram até que uma
nuvem densa escurecesse um pouco mais o céu e, em seguida, um a um, desceram
para o pequeno jardim. De respirações quase suspensas, as três figuras,
agachadas, chegaram ao abrigo de sebe e, por fim, à lacuna que se abria para o
milharal. Haviam acabado de chegar a este ponto, quando o jovem, detendo os
seus dois companheiros, arrastou-os para a sombra, onde permaneceram calados e
temerosos.

A
longa existência nas pradarias tinha dado a Jefferson Hope ouvidos de lince.
Ele e seus acompanhantes mal se haviam abaixado, quando se ouviu o pio
melancólico de uma coruja montanhesa, ouvida a poucos metros deles, que foi
imediatamente respondido por outro pio a uma pequena distância. No mesmo
instante, um vulto escuro e indefinido surgiu na fissura para a qual eles se
dirigiram e emitiu novamente aquele pio lamentoso e lúgubre; a esse novo pio,
um segundo homem apareceu na obscuridade.

“Para
amanhã à meia-noite”, disse o primeiro, que parecia estar em posição de
autoridade. “Quando a ave piar três vezes.”

“Ele
está bem”, devolveu o outro. “Devo dizer, irmão Drebber?”

“Passe-lhe
a senha, e ele que a passe aos outros. Nove por sete!”

“Sete
para cinco”, repetiu o outro, e as duas figuras esvoaçaram em direções
opostas. Suas palavras finais, evidentemente, uma espécie de senha e
contrassenha. No instante em que seus passos se perderam na distância,
Jefferson Hope pôs-se de pé, e ajudou seus companheiros a atravessar a
abertura, liderando, em seguida, o caminho através dos campos, a toda
velocidade, apoiando e quase carregando a jovem, quando as forças pareciam-lhe
faltar.

“Depressa,
depressa!”, repetia ele, de vez em quando. “Estamos passando a linha
das sentinelas. Tudo depende da rapidez. Apressem-se!”

Uma
vez na estrada, puderam prosseguir mais rapidamente. Só uma vez encontraram com
alguém, mas conseguiram se esconder em um campo e, desse modo, evitar serem
reconhecidos. Antes de chegarem à cidade, o caçador tomou uma bifurcação,
andaram por um caminho acidentado e estreito, que os levou às montanhas. Dois
picos escuros e irregulares, no meio das trevas, pairavam acima, e entre eles
passava o desfiladeiro que levava ao Ravine Eagle, onde tinham ficado os
cavalos. Com infalível instinto, Jefferson Hope achou caminho entre as pedras
gigantescas e, ao longo do leito de um rio seco, até rochas escarpadas, onde os
fiéis animais os esperavam. A jovem foi içada para a mula, o velho Ferrier
montou num cavalo, mantendo a sua bolsa de dinheiro junto a si; Jefferson Hope
pulou na sela do outro animal, tomando a dianteira para guiá-los através da
passagem escarpada e perigosa.

Foi
um percurso desconcertante para quem não estava acostumado a enfrentar natureza
em seus piores aspectos. De um lado, erguia-se um grande rochedo de mil metros
ou mais, negro, íngreme e ameaçador, com longas colunas basálticas sobre sua
superfície áspera, como as costelas de um monstro petrificado. Por outro lado,
havia um caos selvagem de pedras e detritos impedindo o caminho. No meio,
corria uma vereda de faixas irregulares, tão estreitas em certos lugares que
tiveram que seguir em fila indiana, e era tão acidentada que somente cavaleiros
experimentados seriam capazes de andar por ela. No entanto, apesar de todos os
perigos e dificuldades, os fugitivos traziam o coração leve, porque a cada
passo aumentava a distância entre eles e o terrível despotismo do qual fugiam.

Logo
tiveram uma prova que ainda estavam dentro da jurisdição dos Santos. Chegaram à
parte mais selvagem e desolada do desfiladeiro, quando a menina deu um gemido,
alarmada, e apontou para cima. Sobre uma rocha, com vista para a passagem, que
se recortava escuro e liso contra o céu, lá estava uma sentinela solitária.
Viu-os tão logo que fora percebida por eles, e deu a sua interpelação militar
de “Quem vem lá?” retumbando pela ravina silenciosa.

“Viajantes
de Nevada”, disse Jefferson Hope, com a mão sobre o rifle que pendia da
sela.

Eles
podiam ver o observador solitário dedilhando a sua arma e olhando para baixo em
direção a eles, como se a resposta não o tivesse satisfeito.

“Com
licença de quem?”, ele perguntou.

“Dos
Quatro Santos”, respondeu Ferrier. Suas experiências entre os mórmons
ensinaram-lhe que era a mais alta autoridade a qual poderia se referir.

“Nove
por sete”, gritou a sentinela.

“Sete
para cinco”, voltou Jefferson Hope prontamente, lembrando a contrassenha
que ouvira no jardim.

“Passem,
e que o Senhor esteja convosco”, disse a voz lá cima. Além de seu posto, a
passagem ampliava-se e os cavalos foram capazes de romper a trote. Olhando para
trás, puderam ver o observador solitário apoiado sobre sua arma, e então,
souberam que tinham passado o último posto vigiado do povo eleito e que a
liberdade estava à frente deles.

 

 

CAPÍTULO QUINTO

 

OS ANJOS VINGADORES

 

 

Durante
toda a noite, trilharam por desfiladeiros intrincados e por caminhos
irregulares. Mais de uma vez perderam o rumo, mas o profundo conhecimento que
Hope possuía das montanhas permitiu-lhe que recuperasse a pista mais uma vez.
Quando amanheceu, uma cena maravilhosa de beleza selvagem se fez diante deles.
Em todas as direções, os grandes picos cobertos de neve cercavam-nos, um atrás
do outro, até se perderem no horizonte distante. Tão íngremes eram os declives
rochosos, de um e outro lado, que os lariços e os pinheiros pareciam suspensos
sobre as suas cabeças, só precisando de uma rajada de vento para ser
arremessado sobre eles. Nem todo esse receio era totalmente imaginário, pois
todo o estéril vale estava densamente coberto de troncos e pedras que haviam
despencado de uma maneira similar. E, no momento exato em que eles passavam,
uma graúda rocha rolou, trovejando com um chocalho rouco e o eco repetiu nas
gargantas inabitadas, assustando os cavalos que se lançaram a galope.

Quando
o sol se levantou lentamente acima do horizonte, a leste, os cumes das grandes
montanhas foram se iluminando um após o outro, como lâmpadas em uma festa, até
que todos ficaram rubros e faiscantes. O magnífico espetáculo animou o coração
dos três fugitivos, renovando-lhes as energias. Junto a uma torrente selvagem,
que brotava de uma ravina, fizeram uma breve suspensão na travessia e deram de
beber aos cavalos, enquanto participavam apressados de uma rápida refeição.
Lucy e seu pai, de bom grado, teriam descansados mais um pouco, mas Jefferson
Hope foi inexorável: “Eles estão no nosso encalço”, disse ele.
“Tudo depende da nossa velocidade. Uma vez seguros em Carson, poderemos
descansar para o resto de nossas vidas.”

Durante
o dia todo, eles prosseguiram a luta através dos desfiladeiros e, à tardinha,
calcularam que levavam mais de trinta milhas de vantagem sobre os inimigos. À
noite, escolheram ficar sob a base de uma rocha escarpada, que oferecia
proteção contra o vento frio, aconchegados uns aos outros para se aquecerem,
desfrutaram de algumas horas de sono. Antes de o sol nascer, já se puseram de
pé e voltaram à marcha mais uma vez. Não viram sinal algum de seus
perseguidores e Jefferson Hope achou que estavam, finalmente, fora do alcance
da terrível organização. Ele mal sabia o quão longe podia alcançar aquela mão
de ferro, qual o prazo seria preciso para fechar sobre eles e esmagá-los.

Na
metade do segundo dia de fuga, as suas poucas provisões começaram a escassear.
Isso não inquietou o caçador, pois havia caça abundante nas montanhas e ele,
frequentemente, dependeu de seu rifle para prover as necessidades da vida.
Escolhendo um canto abrigado, ele empilhou alguns ramos secos e fez uma
fogueira para que se aquecessem, pois agora se encontravam quase a cinco mil
metros acima do nível do mar, e o ar era intenso e aguçado. Tendo amarrado os
cavalos, e despedido de Lucy, pôs a arma ao ombro, e partiu em busca de caça.
Olhando para trás, viu o velho e a jovem acocorados junto ao fogo ardente, e,
mais ao fundo, os três animais imóveis. Em seguida, as rochas intermediárias
esconderam-nos dos seus olhos.

Ele
caminhou por um par de milhas através de uma ravina sem sucesso, embora notasse
marcas nas cascas das árvores e outras indicações de que havia numerosos ursos
nas imediações. Finalmente, após duas ou três horas de busca infrutífera,
quando já pensava em voltar desapontado, ergueu-se por acaso e ao lançar os
olhos para cima, viu uma cena que enviou um frêmito de prazer ao coração. No
topo de um cume, três ou quatro centenas de metros acima dele, havia uma
criatura que se assemelha a uma ovelha na aparência, mas armado com um par de
chifres gigantescos. O grande chifre – assim chamado -, era provavelmente o
guardião de um bando invisível aos olhos do caçador, mas, felizmente, estava
indo na direção oposta, e não tinha percebido o caçador. Deitando-se ao abrigo
de uma rocha, ele apoiou seu rifle sobre uma pedra e mirou bem o seu objetivo
antes de puxar o gatilho. O animal saltou no ar, cambaleou por um momento para
a beira do precipício e depois desabou para o vale abaixo.

A
caça era demasiado pesada para ser posta ao ombro, de modo que o caçador
contentou-se em cortar-lhe um quarto e parte do flanco. Com este troféu por
cima do ombro, ele apressou-se em regressar, pois a noite já se aproximava. Ele
mal tinha começado a caminhar, quando percebeu que tinha que enfrentar outra
dificuldade. Em sua ânsia, havia se afastado das ravinas que conhecia, e não
era fácil escolher encontrar o caminho pelo qual viera. O vale em que se
encontrava dividia-se e subdividia-se em muitos desfiladeiros, tão parecidos
entre si que era impossível distinguir um do outro. Ele enveredou um por um
quilômetro ou mais, até que chegar a um regato numa elevação que ele tinha
certeza de nunca ter visto antes. Convencido de que havia tomado o caminho
errado, arriscou outro, mas teve o mesmo resultado. A noite estava chegando
rapidamente e estava quase escuro, quando ele finalmente encontrou o
desfiladeiro que lhe era familiar. Mesmo assim, não foi fácil manter o caminho
certo, pois a lua ainda não tinha surgido e os altos penhascos de cada lado
faziam uma obscuridade ainda mais profunda. Sobrecarregado com o fardo, cansado
de tantos esforços, ele avançava cambaleante, mantendo em seu coração a certeza
de que a cada passo vencido, estaria mais próximo de Lucy, e que levava consigo
o suficiente para garantir-lhes provisão suficiente para o resto da viagem.


havia chegado à entrada do desfiladeiro onde os tinha deixado. Mesmo na
escuridão, podia reconhecer os contornos que compunham os penhascos. Eles, com
certeza, aguardavam-no ansiosos, pensou ele, após aquelas longas cinco horas de
ausência. Com alegria no coração, colocou o fardo no chão e levou as mãos à
boca e fez soar um brado prolongado pelo vale, anunciando a sua chegada.
Deteve-se um instante à espera de resposta. Nenhum som veio a não ser o eco de
seu próprio grito que batia nas tristes e silenciosas ravinas e regressava aos
seus ouvidos em incontáveis repetições. Mais uma vez ele bradou, ainda mais
alto do que antes, e novamente não ouviu a resposta dos amigos, que deixara
ali. Um terror vago e sem nome tomou conta de seu íntimo; ele precipitou-se
freneticamente para o desfiladeiro, abandonando a preciosa carga.

Quando
dobrou a quina da garganta, viu o local onde o fogo fora aceso. Ainda
cintilavam algumas brasas, mas a fogueira não tinha sido evidentemente avivada
desde a sua partida. O mesmo silêncio morto e pesado reinava em toda parte.
Agora, com todos os receios transformados em certezas, ele avançou-se. Não
havia nenhuma criatura viva perto dos restos do fogo: os cavalos, o velho, a
jovem, todos tinham desaparecido. Era evidente que algum desastre súbito e
terrível tinha acontecido durante sua ausência… um desastre que tinha
abarcado todas eles, e ainda não deixara sequer um traço.

Espantado
e atordoado com o golpe, Jefferson Hope sentiu sua cabeça girar, e teve de
apoiar sobre o seu rifle para se salvar da queda. Ele era essencialmente um
homem de ação e rapidamente se recuperou de sua impotência temporária. Aproveitando
um tição da fogueira ardente, soprou-o até que faiscasse e a chama avivasse;
começou a examinar o pequeno acampamento. O chão estava todo marcado de cascos
de cavalos, mostrando que um grande número de homens montados havia arrebatado
os fugitivos, e o rumo das pegadas indicava claramente que eles tinham voltado
para Salt Lake City. Teriam levado de volta seus companheiros com eles?
Jefferson Hope quase se convenceu de que eles deveriam ter feito isso, quando
seu olhar caiu sobre um objeto que fez todos os nervos de seu corpo formigarem.
Pouco mais adiante, a um lado do acampamento, havia um amontoado de terra
avermelhada, que seguramente não estava ali antes. Não havia dúvida que se
tratava de uma sepultura recém-cavada. O jovem caçador se aproximou, percebeu
uma forquilha plantada sobre ela, com uma folha de papel presa na fenda da
bifurcação. A inscrição sobre o papel era breve, mas expressiva:

 

 

JOHN
FERRIER

QUE
FOI DE SALT LAKE CITY,

FALECIDO
A 4 DE AGOSTO DE 1860

 

O
homem robusto de idade, a quem ele deixara havia poucas horas, tinha ido embora
do mundo dos vivos, e isso era tudo, apenas aquele epitáfio improvisado.
Jefferson Hope olhou desesperadamente em torno para ver se havia uma segunda
sepultura, mas não havia nenhuma outra sepultura. Lucy fora levada de volta por
seus terríveis perseguidores para cumprir um destino comum: tornar-se mais uma
mulher no harém do filho de algum Ancião. Quando o jovem compreendeu qual seria
o destino dela e, reconhecendo a sua impotência para impedi-lo, desejou,
também, estar deitado ao lado do velho fazendeiro em sua última morada, em
taciturno repouso.

Mais
uma vez, no entanto, seu ativo espírito sacudiu a letargia que brotava do
desespero. Outra coisa não lhe restava fazer agora, poderia pelo menos dedicar
o resto de sua vida à vingança. Com a paciência irredutível e perseverança,
Jefferson Hope possuía também o espírito de vingança, aprendido talvez na
convivência com os índios. Desolado diante do fogo, sentia que a única coisa
que poderia amenizar a sua dor seria uma vingança, profunda e completa, feita
com próprias mãos, em cima de seus inimigos. Determinou que, a partir desse
momento, a sua impetuosa vontade e a sua incansável energia seriam dedicadas a
esse fim. Com um rosto sombrio e lívido, refez seus passos para onde deixara a
caça; avivou o fogo e preparou alimento suficiente para durar alguns dias. Pôs
o fardo ao ombro e pôs-se a andar de volta às montanhas, no rastro dos Anjos
Vingadores.

Durante
cinco dias, com os pés feridos, exausto, arrastou-se pelos desfiladeiros que já
havia percorrido a cavalo. À noite, deitava-se entre as pedras e admitia a si
próprio algumas horas de sono, mas antes mesmo do sol surgir, já estava
novamente a caminho. No sexto dia, chegou a Ravine Eagle, de onde tinham
iniciado a sua fatídica fuga. Daí, ele pode olhar para baixo e avistar a terra
dos mórmons. Desgastado e esgotado, ele apoiou-se sobre o seu rifle e ergueu o
punho feroz e descarnado contra a cidade silenciosa que se estendia abaixo
dele. Foi quando ele, fixando a vista, observou que havia bandeiras em algumas
das ruas principais e outros sinais de festa. Ele ainda especulava sobre o
significado daquilo, quando ouviu o barulho de cascos e viu um homem montado a
cavalo vindo em sua direção. Quando se aproximou, reconheceu-o como sendo um
mórmon, chamado Cowper, a quem tinha prestado mais de um favor. Abordou-o na
esperança de saber qual fora o destino de Lucy.

“Sou
Jefferson Hope”, disse ele. “Você se lembra de mim.”

O
mórmon olhou com espanto indisfarçável… na verdade, era difícil reconhecer
neste esfarrapado andarilho, despenteado, com o rosto medonho e feroz, e olhos
selvagens, o valente caçador de dias anteriores. Tendo ficado surpreendido ao
conferir a identidade do andarilho, a surpresa do homem transformou-se em
consternação.

“Você
deve estar louco para vir aqui”, ele falou. “E a minha própria vida
valerá pouco se me pegam conversando com você. Há um mandado contra você
expedido pelos Quatro Santos, por ter ajudado os Ferrier a fugir.”

“Não
tenho medo deles, nem de seus mandados”, disse Hope, gravemente.
“Você deve saber alguma coisa sobre este assunto, Cowper. Eu suplico-lhe
por tudo que lhe é sagrado que responda apenas algumas perguntas. Nós sempre
fomos amigos. Pelo amor de Deus, não se recuse a responder-me.”

“De
que se trata?”, perguntou o mórmon, inquieto. “Seja rápido. As
próprias rochas têm ouvidos e as árvores, olhos.”

“O
que aconteceu com Lucy Ferrier?”

“Ela
se casou ontem com jovem Drebber. Mantenha-se, homem, mantenha-se, parece que
está morrendo”.

“Não
se preocupe comigo”, disse Hope, fragilmente, sem uma gota de sangue no
rosto, deixara-se cair sobre o rochedo. “Casada, você disse?”

“Sim,
casou-se ontem… é por isso que a Casa de Esmolas está com bandeiras. Houve um
debate entre o jovem Drebber e o jovem Stangerson sobre quem ficaria com ela.
Os dois faziam parte da patrulha que perseguiu os Ferrier, e Stangerson
julgava-se com mais direitos por ter eliminado o pai dela. O direito sobre ela
foi  discutido no conselho e o lado de
Drebber mostrou-se mais forte, de modo que o Profeta deu-a para ele. Ninguém a
terá por muito tempo, porque ainda ontem vi a morte no seu rosto. Ela mais
parece um fantasma que uma mulher. Você está indo, então?”

“Sim,
eu estou indo”, disse Jefferson Hope, deixando o assento de pedra. Seu
rosto parecia esculpido em mármore, de tão duro e sem expressão, enquanto em
seus olhos brilhava uma luz sinistra.

“Aonde
você vai?”

“Não
importa”, ele respondeu, e, pondo a arma sobre o ombro, afastou-se pelo
desfiladeiro, rumando-se para longe, para o coração da montanha, para onde vão
almas dos animais selvagens. Entre eles, não haveria nenhum outro animal tão
feroz e tão perigoso quanto ele.

A
predição do mórmon realizou-se com demasiada presteza. Nunca se soube se foi a
terrível morte de seu pai ou os efeitos do odioso casamento em que fora
compelida, mas a pobre Lucy jamais voltou a erguer a cabeça; foi definhando e
morreu dentro de um mês. Seu estúpido marido, que a desposara, principalmente
por causa da propriedade de John Ferrier, não demonstrou muito arrependimento
com a perda, mas suas outras esposas choraram por ela; na véspera do enterro,
velaram-lhe o corpo, como é o costume Mórmon. Estavam elas reunidas em volta do
caixão, nas primeiras horas da manhã, quando viram a porta se abrir e entrar na
sala um homem de aparência selvagem, castigado pelo tempo, em roupas
esfarrapadas. Sem olhar nem dizer palavra alguma às mulheres, todas espantadas
com a sua presença, ele marchou até a figura branca silenciosa, que outrora
continha a alma pura de Lucy Ferrier. Inclinou-se sobre a morta, comprimindo
seus lábios com reverência na testa gélida dela, e depois, pegando-lhe a mão,
tirou-lhe do dedo a aliança de casamento. “Ela não deve ser enterrada com
isto,” bradou com um grunhido feroz na voz e, antes que dessem o alarme,
desceu as escadas, desaparecendo. Tão estranho e tão breve foi o episódio que
as próprias testemunhas acharam difícil de acreditar ou convencer as outras
pessoas sobre o ocorrido se não fosse pelo fato inegável de que o aro de ouro,
que indicava o noivado e o casamento, havia desaparecido.

Durante
alguns meses, Jefferson Hope permaneceu entre as montanhas, levando uma vida
errática e selvagem, e nutrindo em seu coração o desejo feroz de vingança que o
dominava. Corriam histórias pela cidade a respeito de uma figura sinistra que
foi vista rondando os subúrbios, e que assombravam os desfiladeiros das
montanhas solitárias. Certa vez uma bala assobiou pela janela da casa de
Stangerson e foi alojar-se na parede bem próximo dele. Em outra ocasião, quanto
Drebber passava sob um penhasco uma gigantesca pedra precipitou-se de grande
altura e teria lhe dado uma morte horrível se não houvesse se atirado ao chão.
Os dois jovens mórmons não demoraram a descobrir a razão destes fatos que
atentavam contra suas vidas, e levaram repetidas expedições às montanhas na
esperança de capturar ou matar o inimigo, mas jamais obtiveram sucesso. Então,
eles adotaram a precaução de nunca saírem sozinhos ou depois do anoitecer, e de
terem sempre sentinelas guardando suas casas. Algum tempo depois, como o seu
oponente não foi mais visto nem ouvido, eles puderam relaxar essas medidas,
esperando que o passar do tempo lhe tivesse acalmado a sede de vingança.

Longe
disso, só a fizera aumentar.  A mente do caçador
era de natureza dura e implacável, e a ideia predominante de vingança tinha
tomado posse completamente dela, não havendo espaço para qualquer outro
sentimento. Ele era, acima de tudo, um homem prático; e logo percebeu que mesmo
a sua férrea constituição não poderia suportar a pressão incessante a que ele a
submetia. Exposição ao relento e a falta de alimentos saudáveis estavam a
consumi-lo. Se morresse na montanha como um cão, que seria feito da sua
vingança, então? E na morte ainda tinha certeza de ultrapassá-la. Ele percebeu
que jogava o jogo de seus inimigos, então, relutantemente, voltou às velhas
minas de Nevada, para recuperar a saúde e acumular dinheiro suficiente para lhe
permitir prosseguir, sem privações, no seu objetivo.

Sua
intenção era se ausentar por um ano no máximo, mas uma série de circunstâncias
imprevistas impediu sua saída das minas por quase cinco anos. No final desses
anos todos, no entanto, sua memória e seu desejo de vingança eram tão afiados
como naquela noite trágica, quando esteve diante da sepultura de John Ferrier.
Disfarçado, e sob um nome falso, voltou para Salt Lake City, indiferente ao que
lhe pudesse acontecer, desde que obtivesse justiça. Na cidade, más notícias o
aguardavam. Houve um cisma entre o Povo Eleito, poucos meses antes, alguns dos
membros mais jovens da Igreja haviam se rebelado contra a autoridade dos
Anciãos e o resultado foi a secessão de certo número dos descontentes, que
tinham deixado o Utah e se tornado gentios. Entre estes se encontravam Drebber
e Stangerson, e ninguém sabia para onde tinham ido. Rumores diziam que Drebber
conseguira converter uma grande parte de sua propriedade em dinheiro e que
tinha partido em ótimas condições financeiras, enquanto seu companheiro,
Stangerson, estava relativamente sem recursos. Não havia nenhum indício deles,
nem quanto ao seu paradeiro.

Muitos
homens vingativos teriam abandonado todo o pensamento de vingança em face de
tal dificuldade, mas Jefferson Hope nunca vacilou por um só momento. Com os
parcos recursos que possuía, ganhando por emprego que podia pegar, viajou de
cidade em cidade, pelos Estados Unidos, em busca de seus inimigos. Os anos se
passaram, seus cabelos negros ficaram grisalhos, mas ainda assim ele vagou
movido pelo único objetivo que o mantinha vivo. Finalmente, sua perseverança
foi recompensada. Foi apenas ver um rosto em uma janela, mas isso lhe bastou
para saber que ali, em Cleveland, no Ohio, moravam os homens que perseguira por
toda a vida. Ele voltou aos aposentos miseráveis com o plano de vingança todo
arranjado. Aconteceu, porém, que Drebber, olhando de sua janela, havia
reconhecido o vagabundo na rua, e tinha lido em seus olhos uma intenção
assassina. Ele correu a um juiz, acompanhado por Stangerson, que se tornou seu
secretário particular, e declararam que suas vidas estavam em perigo por causa
de ciúme e ódio de um antigo rival. Naquela noite, Jefferson Hope foi levado
sob custódia e, não tendo fiadores, foi mantido preso por algumas semanas.

Quando
finalmente foi liberado, encontrou vazia a casa de Drebber e soube que ele e
seu secretário tinham partido para a Europa.

Mais
uma vez o vingador havia fracassado e novamente o seu ódio concentrado o
instigou a prosseguir na perseguição. Faltavam-lhe, porém, recursos financeiros
e, por algum tempo, teve que voltar ao trabalho, economizando cada dólar para
sua próxima viagem. Por fim, depois de ter recolhido o suficiente para se
manter, partiu para a Europa, rastreando os seus inimigos, seguindo-os de
cidade em cidade, exercendo humildes trabalhos no caminho, mas sem nunca
alcançar os fugitivos. Quando chegou a São Petersburgo, eles já tinham partido
para Paris, e quando chegou lá, soube que eles tinham acabado de partir para
Copenhague. Na capital dinamarquesa, também chegou com alguns dias de atraso,
pois tinham viajado para Londres, onde finalmente conseguiu encontrá-los.
Quanto ao que sucedeu nesta cidade, não podemos fazer melhor do que transcrever
a própria narrativa do velho caçador, como está devidamente registrado no
diário do Dr. Watson, ao qual já devemos muitas obrigações.

 

 

CAPÍTULO SEXTO

 

CONTINUAÇÃO DAS MEMÓRIAS DO DR. JOHN
WATSON

 

 

A
resistência furiosa do nosso prisioneiro aparentemente não indicava nenhuma
ferocidade para conosco, ao ver-se impotente e subjugado por nós, sorriu de
maneira afável, e disse esperar que não nos tivesse ferido durante a luta.
“Eu acho que você vai querer me levar à delegacia de polícia”,
comentou a Sherlock Holmes. “O meu coche está à porta. Se me desamarrarem
as pernas, posso descer sem ajuda. Não sou tão leve como costumava ser.”

Gregson
e Lestrade trocaram olhares, como se pensassem que esta proposição feita um
tanto ousada, mas ao mesmo tempo Holmes aceitou a palavra do prisioneiro, e
soltou a toalha que lhe prendia os tornozelos. Ele se levantou e esticou as
pernas, como que para assegurar-se de que estavam livres mais uma vez.
Lembro-me que pensei, quando olhei para ele, que raramente tinha posto os olhos
em um homem tão corpulento, de rosto queimado de sol, trazendo uma expressão de
determinação e energia que eram tão formidáveis quanto a sua força física.

“Se
houver uma vaga para chefe de polícia, acho que você é o homem indicado”,
disse ele, olhando com uma admiração indisfarçável para o meu companheiro
arrendatário. “A maneira como seguiu meu rastro é uma precaução.”

“É
melhor virem comigo”, disse Holmes aos dois detetives.

“Eu
posso levá-lo”, disse Lestrade.

“Ótimo!
E Gregson pode entrar comigo. Você também, doutor. Tem tido muito interesse no
caso, pode vir com a gente.”

Concordei
alegremente, e descemos juntos. Nosso prisioneiro não fez nenhuma tentativa de
fuga, entrou calmamente no coche que fora seu, e nós o seguimos. Lestrade subiu
na boleia e instigou o cavalo e levou-nos, em um tempo muito curto, ao nosso
destino. Fomos introduzidos a uma pequena câmara, onde um inspetor de polícia
anotou o nome do nosso prisioneiro e os nomes dos homens de cuja morte era
acusado. O oficial era um homem de rosto pálido, sem emoção, que cumpria as
suas funções de uma forma maçante e mecânica. “O preso será colocado
diante dos magistrados no decorrer da semana”, disse ele, “enquanto
isso, Sr. Jefferson Hope, tem alguma coisa que gostaria de declarar? Devo
adverti-lo de que as suas palavras serão registradas e poderão ser usadas
contra o senhor.”

“Tenho
muita coisa a dizer,” disse o prisioneiro, lentamente. “Quero contar
aos senhores toda a história.”

“Não
é melhor deixar isso para o seu julgamento?”, perguntou o inspetor.

“Talvez
eu não seja julgado”, ele respondeu. “Não precisa me olhar assustado.
Não é suicídio, que estou pensando. O senhor não é médico? ” Ele voltou
seus ferozes olhos para mim ao fazer esta última pergunta.

“Sim,
eu sou”, respondi.

“Então,
ponha a mão aqui”, disse ele, com um sorriso, gesticulando com os pulsos
algemados em direção ao peito.

Eu
fiz isso, e prontamente observei uma extraordinária palpitação na região
cardíaca. As paredes do seu peito pareciam tremer como um edifício frágil
dentro do qual trabalhasse um poderoso motor. No silêncio do gabinete, eu ouvi
um zumbido maçante que procedia da mesma fonte.

“Meu
Deus!”, exclamei. “Você tem um aneurisma da aorta!”

“Isso
é o que eles chamam”, disse ele, placidamente. “Eu fui a um médico na
semana passada e ele me disse que a coisa está para explodir dentro de poucos
dias. Nestes últimos anos tenho piorado muito. Adquiri isso por causa da
superexposição e da alimentação precária nas montanhas de Salt Lake. Eu fiz o
meu trabalho, agora, não me importo com o tempo me resta, mas eu gostaria de
deixar um relato do que aconteceu. Não quero ser lembrado como um assassino
comum.”

O
inspetor e os dois detetives tiveram uma discussão apressada, se era
conveniente deixá-lo contar a sua história.

“O
doutor acha que há perigo imediato?”, perguntou o inspetor.

“Sem
a menor dúvida”, respondi.

“Nesse
caso, é o nosso dever, no interesse da justiça, tomar seu depoimento”,
disse o inspetor. “Está autorizado a fazer as suas declarações, mas volto
a avisá-lo de que as suas palavras serão registradas.”

“Eu
vou sentar, com sua licença”, disse o prisioneiro, adequando a ação à
palavra. “Este meu aneurisma me deixa cansado facilmente por qualquer
coisa, e a briga que tivemos, há meia hora, piorou muito a minha situação.
Estou à beira da sepultura, e não há porque mentir. Cada palavra que eu vou
dizer é a absoluta verdade, e como vão usá-la no futuro é uma questão
irrelevante para mim.”

Com
estas palavras, Jefferson Hope recostou-se na cadeira e começou a sua notável
narrativa. Falava de maneira calma e metódica, como se os acontecimentos
narrados por ele fossem comuns. Posso garantir a exatidão do que menciono, por
eu ter tido acesso ao caderno de anotações de Lestrade, no qual as palavras do
prisioneiro foram reproduzidas exatamente como foram proferidas.

“Isso
não importa muito aos senhores porque eu odiava esses homens”, disse ele,
“é o suficiente dizer que eles eram culpados da morte de dois seres
humanos… um pai e uma filha… e que consequentemente deviam pagar por esses
crimes com a própria vida. Como já havia muito tempo que o tinham cometido, era
impossível obter uma condenação contra eles em qualquer tribunal. Sabia, no
entanto, que eles eram culpados, e decidi ser juiz, júri e carrasco, todos ao
mesmo tempo. No meu lugar, como homens de brio, os senhores fariam o mesmo.

“Há
vinte anos, essa jovem, de quem falei, ia se casar comigo, mas ela foi forçada
a se casar com Drebber, e morreu de desgosto por isso. Peguei o anel de
casamento de seu dedo morto e eu jurei que ele morreria olhando para esta
aliança, e que seus últimos pensamentos seriam para o crime pelo qual era
punido. Levei-a sempre comigo, e segui-os através de dois continentes, até que
os apanhei. Eles pensaram que iam me cansar, mas não conseguiram fazer isso. Se
eu morrer amanhã, como é muito provável, morro sabendo que o meu trabalho neste
mundo foi feito, e bem feito. Eles encontraram a morte pelas minhas mãos. Não
há mais nada por esperar nem por desejar.

“Eles
eram ricos e eu, pobre, de modo que não foi fácil segui-los. Quando cheguei a
Londres, meu bolso estava vazio e vi que precisava trabalhar em qualquer coisa
para viver. Conduzir cavalos ou montá-los foi sempre tão natural para mim, como
andar, de maneira que me apresentei ao dono de uma cocheira e logo consegui
emprego. A minha obrigação era levar todas as semanas certa quantia ao proprietário
e o que excedesse ficaria para mim. Raramente sobrava alguma coisa. O trabalho
mais difícil foi aprender sobre as ruas londrinas, porque eu acho que de todos
os labirintos mais confusos estão naquela cidade. Sempre trazia  comigo um mapa da cidade e uma vez que
aprendi a localização dos principais hotéis e estações, comecei a me sair muito
bem.

“Levei
tempo para descobrir onde os dois patifes estavam vivendo, saí investigando até
que finalmente os encontrei. Estavam ambos numa pensão, em Camberwell, do outro
lado do rio. Uma vez encontrados, não teriam a minha misericórdia. Eu tinha
deixado crescer a barba e não havia possibilidade alguma deles me reconhecer.
Eu os seguiria como um cão, até que chegasse a minha oportunidade. Estava determinado
e eles não iriam escapar novamente de mim.”

“Mas
por pouco não o conseguiram. Para onde quer que fossem pelas ruas de Londres,
eu estava sempre em seus calcanhares. Às vezes, seguia-os com o meu coche,
outras, a pé, mas o primeiro modo era melhor, pois eles não conseguiam ficar
longe de mim. “Foi só no início da manhã ou tarde da noite que conseguia
ganhar alguma coisa, por isso, comecei a ficar atrasado com o dono da cocheira.

“Eles
foram muito espertos. Devem ter pensado que havia certa possibilidade de
estarem sendo seguidos, porque nunca saíam sozinhos, e jamais depois do
anoitecer. Durante duas semanas, segui-os todos os dias, e eles nunca se
separaram. Drebber ficava bêbado a metade do tempo, mas Stangerson não vacilava
para não serem apanhados desprevenidos. Eu os vigiava de manhã à noite, sem
encontrar a menor chance, mas não desanimei, porque qualquer coisa me dizia que
a hora deles tinha chegado. Meu único temor era que esta coisa em meu peito
estourasse cedo demais e meu trabalho ficasse por fazer.

“Numa
noite, eu estava descendo a Torquay Terrace, como a rua era chamada em que eles
moravam, quando vi uma movimentação de um coche à porta. Vi quando trouxeram
uma bagagem e logo depois apareceram Drebber e Stangerson e embarcaram.
Chicoteei o meu cavalo e os segui muito angustiado, com receio de perdê-los de
vista, porque estavam mudando de pensão. Saltaram na Euston Station; deixei um
menino segurando o meu cavalo e os segui até a plataforma. Ouvi-os indagando
pelo trem de Liverpool e o guarda responder-lhes que acabara de partir e só
dentro de algumas horas haveria outro. Stangerson pareceu aborrecido com isso,
mas Drebber, pelo contrário, estava bastante satisfeito com o contratempo.
Fiquei tão próximo deles, em meio da agitação de passageiros, que pude ouvir
cada palavra que trocaram entre si. Drebber disse que tinha um pequeno assunto
particular a resolver e pediu ao outro que o esperasse na estação e, assim que
resolvesse o assunto pendente, juntar-se-ia a ele. Seu companheiro protestou,
lembrando-lhe que tinham resolvido andar sempre juntos. Drebber respondeu que o
assunto era muito delicado e que precisava ir sozinho. Não consegui ouvir o que
Stangerson respondeu, mas o outro começou a dizer palavrões, advertindo-o de
que ele não passava de seu empregado e que o pagava para servi-lo e não para
lhe dar ordens. O secretário acabou se conformando e, simplesmente, negociou
com ele, se por acaso perdesse o último trem, iria encontrá-lo no Hotel
Halliday. Drebber ainda afirmou que estaria de volta à plataforma antes das
onze, e encaminhou-se para fora da estação.

“O
momento pelo qual eu tinha esperado tanto tempo, finalmente, chegara. Eu tinha
meus inimigos ao alcance de minhas mãos. Juntos, podiam se proteger, mas
separados, não teriam chance alguma. Eu só não poderia agir com precipitação.
Meus planos já estavam formados. Não há satisfação alguma na vingança, se o
inimigo não tem tempo para perceber quem é que lhe castiga e por qual motivo.
Mas eu tinha meus planos bem organizados; eu teria a oportunidade de punir o
homem que me prejudicara, mostraria a ele o motivo da punição e o pecado que
cometera. Aconteceu que, alguns dias antes, um cavalheiro tinha ido ver algumas
casas na Brixton Road e esqueceu a chave de uma delas no meu coche. Na mesma
tarde, retornou em busca da chave, devolvi, mas aproveitei o intervalo para
tomar um molde dela e fazer outra igual. Desta maneira, eu teria acesso seguro,
pelo menos, a um ponto nesta grande cidade, onde poderia agir sem interrupções.
Como levar Drebber àquela casa era um problema difícil que teria resolver.

“Ele
desceu a rua e entrou em um ou dois bares, permanecendo por quase meia hora no
último deles. Quando saiu, cambaleava, evidentemente. Havia uma carruagem
diante do meu coche e ele saltou dentro. Segui-o tão de perto que o focinho do
meu cavalo não se afastou mais de um metro da traseira da carruagem. Passamos
pela Waterloo Bridge e seguimos por quilômetros de ruas até que, para meu
espanto, encontramo-nos novamente na pensão em que ele deixara algum tempo
atrás. Eu não podia imaginar com qual intenção ele voltava ali; avancei mais um
pouco e parei o meu coche a uns cem metros da casa. Ele entrou e a carruagem
foi embora. Dê-me um copo de água, por favor. Fico com a boca seca de tanto
falar.”

Entreguei-lhe
o vidro, e ele bebeu.

“Assim
está melhor”, disse ele. “Bem, eu esperei por um quarto de hora, ou
mais, quando de repente veio um barulho dentro de casa, como se pessoas
brigassem. No momento seguinte, a porta foi aberta e dois homens apareceram, um
dos quais era Drebber e o outro era um rapaz que eu nunca tinha visto antes.
Esse sujeito tinha Drebber pelo colarinho e, quando chegou à entrada da pensão,
deu-lhe um empurrão e um pontapé que o lançou quase no meio da rua.
“Canalha!”, gritou, vibrando a bengala para ele: “Eu vou te
ensinar a insultar uma garota honesta!” Ele estava tão enfurecido que
teria golpeado Drebber com sua bengala, se ele não tivesse cambaleado rua
abaixo, tão rápido quanto suas pernas puderam levá-lo. Correu até a esquina,
vendo o meu carro, acenou-me, e pulou dentro “Leve-me ao Hotel
Halliday”, disse ele.

“Quando
entrou no coche, meu coração palpitou de alegria que, por um momento, receei
que o aneurisma rebentasse. Eu dirigi devagar, refletindo no que deveria fazer.
Eu poderia levá-lo a periferia da cidade e, em um lugar deserto, ter minha
última entrevista com ele. Eu tinha quase decidido isso, quando ele próprio
resolveu o problema para mim. A mania de beber havia apoderado dele novamente e
mandou-me estacionar diante do primeiro bar. Entrou e recomendou-me que o
esperasse. Lá ficou até a hora de fechar, e quando saiu, estava tão bêbado que
não foi capaz de reconhecer-me, então, eu soube que seu destino estava em
minhas mãos.”

“Não
pensem que eu pretendia matá-lo a sangue frio. Seria justiça pura, se eu
tivesse feito isso, mas eu não podia conformar apenas com a sua morte rápida.
Tinha decidido dar-lhe uma oportunidade de salvar a própria vida. Entre os
muitos trabalhos que tive na América, durante a minha vida errante, um deles
foi ser porteiro e varredor do laboratório do York College. Um dia, um
professor discorria sobre venenos e mostrou aos seus alunos um tipo de
alcaloide, como ele o chamou, que havia extraído do veneno de flechas dos
índios sul-americanos, afirmando que era tão potente que a mínima dose causava
morte instantânea. Memorizei o frasco em que esse preparado estava guardado e,
quando todos se foram, recolhi uma pequena quantidade. Eu era um aprendiz de
farmacologia razoável, então, transportei o alcaloide para duas pequenas
pílulas solúveis e coloquei cada uma delas numa caixa com outra pílula
semelhante, mas sem o veneno. Determinei que, quando chegasse a ocasião, os
meus inimigos escolheriam uma pílula cada um e eu tomaria a que restasse. Seria
tão mortal e muito menos ruidoso do que disparar com um revólver envolvido por
um lenço. A partir desse dia, tive sempre as duas caixinhas com as pílulas a
mão, até que chegou o tempo de utilizá-las.

“Passava
da meia-noite, e seria uma madrugada selvagem e sombria, o vento soprava forte
e chovia torrencialmente. Lúgubre estava o tempo lá fora. Mas por dentro, eu
estava feliz… tão feliz que poderia gritar de tanta felicidade. Se algum dos
senhores já desejou ardentemente uma coisa durante vinte longos anos e de
repente a encontrasse ao alcance da mão, poderiam muito bem compreender os meus
sentimentos. Acendi um cigarro e fumei para acalmar os nervos, mas minhas mãos
tremiam e as têmporas latejavam de emoção. Enquanto conduzia o coche, podia ver
o velho John Ferrier e a doce Lucy sorrindo para mim, em meio a escuridão; via
isso com tanta nitidez como vejo agora os senhores nesta sala. Durante todo o
percurso, eles estiveram à minha frente, um de cada lado do cavalo, até que
parei diante da casa  da Brixton Road.

“Não
havia ninguém por lá, nem som algum para ser ouvido, exceto os pingos da chuva,
que não cessavam de cair. Quando olhei pela janela do coche, encontrei Drebber
todo encolhido em um sono profundo de embriaguez. Sacudi-o pelo braço: “É
hora de descer.”, disse a ele.

“Tudo
bem, cocheiro.”, respondeu ele.

“Acho
que pensou que tínhamos chegado ao hotel indicado por ele, pois ele desceu sem
dizer uma palavra e seguiu-me pelo jardim. Tive de caminhar ao lado dele para
mantê-lo estável, encontrava-se completamente alcoolizado. Quando chegamos a
porta, abria-a e conduzi-o à sala da frente. Dou-lhes a minha palavra que
durante todo o percurso, pai e filha andaram na nossa frente.

“Está
infernalmente escuro”, ele comentou.

“Em
breve, teremos uma luz”, eu disse, riscando um fósforo e acendendo uma
vela de cera que havia trazido comigo. “E agora, Enoch Drebber”, eu
falei, virando-se para ele, e colocando a luz da vela diante do meu rosto,
“quem sou eu?”

“Ele
olhou para mim com os olhos turvos de bêbado, então, eu vi uma expressão de
horror em suas feições: acabara de me reconhecer. Cambaleou para trás, com um
rosto lívido; vi o suor brotar em sua testa, enquanto os dentes batiam uns nos
outros. À vista disso, recostei a porta e soltei uma gargalhada por uns
segundos. Eu sempre soube que a vingança seria doce, mas jamais esperei sentir
um contentamento na alma como aquele.”

“Cão
maldito”, vociferei, “Andei no seu rastro desde Salt Lake City até
São Petersburgo e você sempre me escapou. Agora, finalmente suas andanças
chegaram ao fim, porque um de nós não verá o sol nascer amanhã.” Ele se
encolheu, enquanto eu falava, via em seu rosto alarmado que tinha a certeza
absoluta de que estava diante de um louco. Então, eu estava louco. O sangue
martelava as minhas têmporas como se fosse uma marreta, e eu acredito que eu
teria tido um ataque de algum tipo, se o sangue não tivesse jorrado pelo meu
nariz, aliviando-me.

“Que
pensa agora de Lucy Ferrier?”, gritei-lhe, fechando a porta, e sacudindo a
chave diante de seu rosto. “A punição demorou, mas chegou
finalmente.” Seus lábios tremiam covardemente enquanto eu falava. Teria
implorado pela vida, mas sabia muito bem que isso seria inútil.

“Vai
me assassinar?”, gaguejou.

“Não
é assassinato”, respondi. “Quem fala em assassinar um cachorro louco?
Você teve misericórdia da minha querida garota, quando a arrastou do túmulo de
seu pai para levá-la ao seu maldito e vergonhoso harém?”

“Não
foi eu quem matou o pai dela”, gritou ele.

“Mas
foi você quem despedaçou o seu coração inocente”, eu gritei, empurrando a
caixinha com as pílulas para ele. “Deus é que será o nosso juiz. Escolha
uma e engula. Em uma existe a morte, em outra, a vida. Vou pegar a que você
deixar. Vamos ver se há justiça sobre a terra, ou se somos governados pelo
acaso.”

“Ele
tentou escapar, implorando por misericórdia, mas eu tirei a minha faca e a
encostei em sua garganta, aí, me obedeceu. Então, eu engoli a outra pílula, e
ficamos um diante do outro, em silêncio, por um minuto ou mais, aguardando para
saber quem viveria e quem morreria. Devo descrever o seu olhar quando sentiu as
primeiras dores anunciando que o veneno estava em seu corpo? Eu ri quando tive
a certeza disso, e pus a aliança de Lucy sob seus olhos. Viveu apenas mais uns
segundos, pois a ação do alcaloide foi rápida. Um espasmo de dor contorceu suas
feições, ele jogou as mãos para frente, cambaleou e, em seguida, com um grito
rouco, caiu pesadamente no chão. Virei-o com o pé, e coloquei minha mão sobre o
seu coração. Não havia nenhum movimento. Ele estava morto!”

“O
sangue continuava a correr do meu nariz, mas eu ainda não havia tomado
conhecimento desse fato. Não sei como me veio à cabeça a ideia de escrever com
ele na parede. Talvez fosse uma ideia maliciosa de deixar para a polícia uma
pista falsa, pois me sentia leve e contente. Lembrei-me de um alemão ter sido
encontrado morto em Nova York com a palavra Rache escrita no peito, e os
jornais noticiaram que uma sociedade secreta teria feito aquilo. Imaginei que
se isso confundiu os nova-iorquinos iria confundir os londrinos, então,
mergulhei meu dedo no meu próprio sangue e escrevi a palavra em um lugar
conveniente na parede. Depois voltei para o meu coche e não encontrei ninguém
na rua, pois a noite ainda achava-se muito tempestuosa. Eu tinha conduzido o
coche a certa distância da casa, quando eu coloquei a mão no bolso onde
habitualmente mantinha a aliança de Lucy, e descobri que não estava lá. Fiquei
atordoado com isso, pois era a única lembrança que eu tinha dela. Conclui que
poderia tê-la deixado cair quando me abaixei sobre o corpo de Drebber.
Regressei e, deixando o coche em uma rua lateral, fui corajosamente até a
casa… pois eu estava disposto a tudo, menos a perder o anel. Quando cheguei à
entrada, dei-me com um oficial da polícia que vinha saindo e só conseguiu afastar
as suas suspeitas, fingindo estar irremediavelmente bêbado.”

“Foi
assim que Enoch Drebber chegou ao seu fim. Restava-me fazer o mesmo com
Stangerson e, assim, cobrar a dívida de John Ferrier. Sabia que ele estava
hospedado no Hotel Halliday, então, passei o dia todo o vigiando, mas ele não
deu as caras. Imaginei que suspeitasse de algo, já que Drebber não aparecera.
Stangerson era astuto, sempre em guarda. Se ele pensava que poderia escapar de
mim, mantendo-se dentro do quarto, estava muito enganado. Logo descobri qual
era a janela de seu quarto e, na manhã seguinte, aproveitei algumas escadas que
estavam deitadas nos fundos do hotel e, assim, alcancei o seu quarto naquela
cinzenta manhã. Acordei-o e disse-lhe que tinha chegado a sua hora de responder
pela vida que havia tirado há tantos anos atrás. Descrevi-lhe a morte de
Drebber e eu lhe dei a mesma escolha da pílula envenenada. Mas ao invés de
pegar a oportunidade de salvação que eu lhe dava, pulou da cama e agarrou a
minha garganta. Em autodefesa, esfaqueei-lhe o coração. De qualquer modo, esse
teria sido mesmo o seu fim, a Providência não teria permitido que sua mão
culpada escolhesse a pílula sem veneno.

“Pouco
me resta dizer, pois estava quase pronto para partir. Ainda trabalhei por um ou
dois dias, com a intenção de me manter até que pudesse economizar o suficiente
para voltar à América. Estava hoje no meu quarto, quando um garoto maltrapilho
chegou, perguntando por um cocheiro chamado Jefferson Hope e dizendo que um
cavalheiro pedia o meu carro no 221-B da Baker Street. Fui lá sem suspeitar de
nada, antes que eu tivesse tempo de pensar direito, este jovem algemou meus
pulsos com uma rapidez que eu nunca vira em minha vida. Essa é toda a minha
história, meus senhores. Podem considerar-me um assassino, mas eu sustento que
eu sou um instrumento de justiça como os senhores o são”.

Foi
emocionante a narrativa daquele homem e tão impressionante a sua maneira de
agir que ficamos sentados, em silêncio e absorvidos pelas suas palavras. Até
mesmo os detetives profissionais, habituados com todos os tipos de crime,
ficaram muito interessados na história daquele homem. Quando terminou, nós
permanecemos sentados por alguns minutos, em plena quietude, que só era
quebrada pelo ruído do lápis de Lestrade, que dava os últimos retoques em suas
anotações taquigráficas.

“Há
apenas um ponto sobre o qual eu gostaria de uma informação,” Sherlock
Holmes disse por fim. “Quem era o seu cúmplice, que veio procurar o anel
anunciado por mim?”

O
prisioneiro piscou o olho para o meu amigo jocosamente. “Eu posso dizer os
meus próprios segredos”, disse ele, “mas eu não coloco outras pessoas
em apuros. Eu vi o anúncio e achei que poderia ser uma cilada ou podia ser
mesmo o anel que eu queria. Um amigo se ofereceu para ir e conferir. E o senhor
há de convir que ele cumpriu isso de forma inteligente.

“Não
há dúvida”, disse Holmes, com entusiasmo.

“Agora,
meus senhores”, comentou o inspetor gravemente, “as formalidades da
lei devem ser cumpridas. Na quinta-feira, o detido será levado diante dos
magistrados, e a presença dos senhores será necessária. Até então eu serei
responsável por ele.” Tocou a campainha, no tempo em que falava, e
Jefferson Hope foi conduzido para o interior da chefatura por um par de
guardas, enquanto meu amigo e eu nos retirávamos; tomamos um coche de volta à
Baker Street.

 

 CAPÍTULO SÉTIMO

 

CONCLUSÃO

 

 

Todos
nós tínhamos sido citados para comparecer perante os magistrados na
quinta-feira, mas quando chegou o dia, não houve ocasião para dar o nosso
testemunho. Um juiz mais importante tomou o assunto em mãos e Jefferson Hope
tinha sido convocado perante um tribunal onde seria julgado com a mais estrita
justiça. Na noite que se seguiu à sua captura, o aneurisma rebentou e, de
manhã, ele foi encontrado estendido no chão da cela, com um sorriso plácido no
rosto, como se ele tivesse sido capaz, em seus momentos finais, de olhar para
trás e achado sua útil vida e concluído que cumprira bem a missão a que se
propôs.

“Gregson
e Lestrade ficarão furiosos com a morte dele”, observou Holmes, quando
conversamos sobre isso na noite seguinte. “Onde vão colocar a
culpabilidade agora?”

“Não
vejo ajuda alguma deles em sua captura”, eu respondi.

“O
que você faz neste mundo é uma questão irrelevante”, respondeu meu
companheiro, amargamente. “A questão é, o que você pode fazer as pessoas
acreditarem que você tenha realmente feito. Não importa”, ele continuou,
mais intensamente, depois de uma pausa. “Eu não teria renunciado a essa
investigação por nada. Não houve nenhum caso melhor que eu recorde. Simples
como foi, havia vários pontos mais instrutivos sobre ele.”

“Simples!”,
exclamei.

“Bem,
na verdade, dificilmente poderia classificá-lo como de outra maneira”,
disse Sherlock Holmes, sorrindo com a minha surpresa. “A prova de sua
simplicidade intrínseca é que, sem qualquer ajuda, com deduções muito comuns,
fui capaz, em três dias, de por as mãos no criminoso.”

“Isso
é verdade”, concordei.

“Já
lhe expliquei que as circunstâncias fora do comum são geralmente um guia e não
um obstáculo. Ao resolver um problema deste tipo, a única coisa grande a fazer
é ser capaz de raciocinar retrospectivamente. Essa é uma prática muito útil, e
muito fácil, mas as pessoas não exercitam muito. Nos assuntos da vida
quotidiana, é mais útil raciocinar para frente, e para que o passado possa ser
negligenciado. Há cinquenta indivíduos que raciocinam sinteticamente para um
que raciocina analiticamente.”

“Confesso”,
disse eu, “que não compreendi muito bem.”

“Eu
não esperava que compreendesse. Deixe-me ver se eu posso tornar isso mais
claro. A maioria das pessoas, após descrevermos uma série de fatos, vai nos
dizer qual seria o resultado. Elas podem colocar esses eventos em suas mentes e
deduzir o que vai acontecer. Há poucas pessoas, no entanto, que são capazes de
deduzir, a partir de suas próprias consciências interiores e conhecendo apenas
as etapas dos fatos, os episódios que provocaram o resultado. Essa capacidade a
que me refiro, quando falo em raciocinar retrospectivamente, ou
analiticamente.”

“Agora
entendo”, concordei.

“No
nosso caso, foi nos dado os resultados e tivemos que deduzir o resto. Agora me
deixe demonstrar as diferentes etapas do meu raciocínio. Começamos pelo início.
Aproximei-me da casa, como você sabe, a pé, e com a minha mente totalmente
livre de todas as impressões. Eu, naturalmente, comecei por analisar a rua, e
aí, como eu já expliquei para você, vi claramente as marcas de um coche, que,
verificando o inquérito, deve ter estacionado lá durante a noite. Eu
convenci-me que era um coche e não um transporte privado pela bitola estreita
das rodas. O coche comum de Londres é consideravelmente menos largo que da
carruagem de um cavalheiro.”

“Esse
foi o primeiro ponto esclarecido. Então, caminhei lentamente pelo jardim, que
possui um solo particularmente argiloso, adequado para deixar impressões. Sem
dúvida, para você ele apareceu ser uma simples pista de lama, mas, aos meus
olhos treinados, cada marca em sua superfície tinha um significado. Não há ramo
da ciência da dedução que é tão importante e tão negligenciado quanto à arte de
identificar os rastros. Felizmente, sempre lhe dediquei muita atenção, e minha
prática excessiva tornou-se uma segunda natureza para mim. Eu notei as pegadas
profundas dos policiais, mas vi também as marcas dos dois homens que tinham primeiro
passado pelo jardim. Era fácil dizer que antecediam as demais, porque em certos
trechos, as marcas tinham sido totalmente apagadas pelas subsequentes. Desta
forma, o meu segundo elo foi formado, e dizia-me que os visitantes noturnos
eram em número de dois, um notável pela sua altura (como eu calculei a partir
do comprimento de sua passada), e o outro elegantemente vestido, a julgar pela
pequena e elegante impressão deixada por suas botas.”

“Ao
entrar na casa, essa última suposição foi confirmada. Meu homem bem calçado
estava diante de mim. O alto, então, havia cometido o assassinato, se é que
houvera assassinato. Não havia nenhum ferimento no corpo do morto, mas a
expressão agitada em seu rosto me garantiu que ele havia previsto seu destino.
Pessoas que morrem por causa de uma doença cardíaca ou qualquer outra causa
natural e súbita, nunca apresentam as feições contraídas. Depois, cheirando os
lábios do cadáver, detectei um cheiro ligeiramente azedo e cheguei à conclusão
de que o veneno tinha sido imposto a ele. Mais uma vez, tive a certeza de que o
veneno tinha sido infligido a ele por causa do ódio e do pavor expressos em seu
rosto. Pelo método da exclusão, tinha chegado a esse resultado, pois nenhuma
outra hipótese daria para conhecer todos os fatos. Não imagine que era uma
ideia muito inédita. A administração forçada de veneno não é uma coisa nova nos
anais criminais. Os casos de Dolsky, em Odessa, e de Leturier, em Montpellier,
não deixariam de ocorrer a um toxicologista.

“E
agora vinha a grande pergunta: por qual razão? Roubo não fora o motivo do
crime, pois nada foi levado. Seria política, então, ou era uma mulher? Essa foi
a pergunta que me confrontei. Desde o começo, eu estava inclinado para a última
hipótese. Assassinos políticos estão muito afoitos em terminar o seu trabalho e
escapar. Este assassinato, ao contrário, foi cometido deliberadamente, e o
autor havia deixado seus rastros por toda a sala, mostrando que ali permanecera
por longo tempo. Devia ser um caso pessoal 
e não político, corroborando para a vingança de um homem metódico.
Quando a inscrição na parede foi descoberta, fiquei mais inclinado a essa
opinião. Aquela coisa era evidentemente uma falsa indicação. Quando encontraram
o anel, eu já havia resolvido a questão. É evidente que o assassino o tinha
usado para lembrar à sua vítima alguma mulher morta ou ausente. Foi neste
momento que eu perguntei a Gregson se, no seu telegrama para Cleveland, tinha
pedido qualquer informação sobre algum ponto particular da vida pretérita do
senhor Drebber. Ele respondeu, você se lembra, negativamente.

“Então,
passei a fazer um exame cuidadoso pela sala, que me confirmou a minha opinião
com relação à estatura do assassino, e forneceu-me os detalhes adicionais
quanto ao charuto Trichinopoly e o comprimento de suas unhas. Já havia chegado
à conclusão, por encontrar sinais de luta, e que o sangue que cobria o assoalho
tinha jorrado do nariz do assassino, em consequência da sua agitação. Pude
perceber que a trilha de sangue coincidia com as suas pegadas. É raro que um
homem, não sendo abarrotado de sangue, irrompa uma hemorragia desta natureza
num momento de grande conflito, então, arrisquei a opinião de que o criminoso
era, provavelmente, um homem robusto e corado. Os eventos provaram que eu tinha
julgado corretamente.”

“Tendo
deixado a casa, comecei a fazer o que Gregson tinha negligenciado. Telegrafei
ao chefe da polícia de Cleveland, limitando minha pergunta às circunstâncias
relacionadas ao casamento de Enoch Drebber. A resposta foi conclusiva. Ele me
disse que Drebber já havia pedido a proteção da lei contra um antigo rival em
amor, chamado Jefferson Hope, e que esse mesmo Hope estava na Europa. Eu sabia
que tinha nas mãos a chave para o mistério, e tudo o que restava era localizar
o assassino.”

“Eu
determinara em minha mente que o homem que entrou na casa com Drebber não era
outro senão o homem que tinha dirigido o coche. As marcas das rodas
demonstravam-me que o cavalo tinha caminhado de um modo que não teria sido
possível se alguém tivesse ficado no coche, no comando de tudo. Onde, então,
poderia estar o cocheiro senão no interior da casa? Seria absurdo supor que
qualquer homem sensato cometeria um crime deliberadamente diante de uma
terceira pessoa, que com certeza acabaria um dia, delatando-o. Por fim, supus
que se um homem desejasse seguir alguém por toda a Londres como um cão de caça,
não poderia adotar melhor ofício, ou melhor, disfarce do que ser cocheiro.
Todas estas considerações me levaram à conclusão irresistível que Jefferson
Hope devia ser procurado entre os cocheiros da metrópole.”

“Se
ele o fora, não havia razão para supor que tivesse deixado de o ser. Pelo
contrário, sob o seu ponto de vista a, qualquer mudança brusca de atividade
provavelmente chamaria a atenção sobre ele; e, com certeza, por um tempo, pelo
menos, continuou a exercer essas funções. Não havia razão para imaginar que
tivesse mudado de nome. Por que ele deveria mudar seu nome em um país onde
ninguém conhecia a sua verdadeira identidade? Organizei então o meu grupo de
detetives e o enviei sistematicamente para cada proprietário de coche em
Londres, até que encontraram o homem que eu queria. Como eles conseguiram e
quão rápido foi feito tudo nem preciso dizer, ainda os fatos estão frescos em
sua mente. O assassínio de Stangerson foi um incidente inteiramente inesperado,
mas que não poderia ter sido impedido. Através do segundo crime, como você
sabe, tomei posse dos comprimidos, de cuja existência eu já suspeitava. Como
vê, a coisa toda é uma cadeia de sequências lógicas sem interrupção ou
falha.”

“É
maravilhoso!”, exclamei. “Seus méritos deviam ser reconhecidos
publicamente. Você devia publicar um relato do caso. Se não fizer, eu farei
para você.”

“Pode
fazer o que quiser, doutor”, respondeu ele. “Veja aqui!”, continuou
ele, entregando-me um jornal, “leia isso!”

Era
o último exemplar diário do Echo, e no parágrafo em que ele assinalava, era
dedicado ao caso em questão.

“O
público”, disse, perdeu um julgamento sensacional devido à morte súbita de
Hope, que era suspeito do assassinato do Sr. Enoch Drebber e do Sr. Joseph
Stangerson. Os detalhes do caso provavelmente nunca serão conhecidos, mas
estamos informados de que o crime foi o resultado de uma velha rixa romântica,
na qual amor e mormonismo tinham a sua parte. Parece que ambas as vítimas
pertenceram, na sua juventude, a Igreja dos Santos dos Últimos Dias, e Hope, o
prisioneiro falecido, veio também de Salt Lake City. Se o caso não teve maior
repercussão, pelo menos, trouxe à tona a maneira impressionante e a eficiência
de nossa força policial de detetives, e servirá como uma lição para todos os
estrangeiros, que devem resolver as suas contendas em casa, e não trazê-las
para o solo britânico. Não é um segredo que o crédito desta inteligente captura
pertence inteiramente aos conhecidos oficiais da Scotland Yard, os senhores
Lestrade e Gregson. O homem foi capturado, ao que parece, no apartamento de
certo Sr. Sherlock Holmes, que, como um amador, mostrou algum talento na linha
de investigação e que, com tais instrutores, poderá, com o tempo, alcançar
algum grau nesta habilidade. Espera-se que algum mérito especial seja conferido
aos dois agentes como justo reconhecimento pelos seus serviços.”

“Não
foi o que eu disse quando começamos?”, exclamou Sherlock Holmes com uma
risada. “Esse é o resultado de todo o nosso Um Estudo em Vermelho: para
eles obter um mérito especial!”

“Pouco
importa”, eu respondi, eu tenho todos os fatos no meu diário e o público
tomará conhecimento deles. Enquanto isso, você deve ficar satisfeito,
consciente do sucesso, como o avarento romano:

Populus me sibilat, at mihi plaudo
Ipse domi simul ac nummos contemplar in arca.” [2]

 

***



[1]Um tolo sempre
acha outro mais tolo que o admira.” (N. do T.)

[2]  “Vaiam-me na rua, mas em casa me aplaudo
ao contemplar o meu dinheiro no cofre.” (N. do T.)

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APRENDENDO PORTUGUÊS – Lição 01 – MONTANDELA X MORTADELA


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