Ler online: O CÃO DOS BASKERVILLES Arthur Conan Doyle

 

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Título original: The hound of the Baskervilles ´Publicado em Strand Magazine, agosto, 1901 – abril, 1902.

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os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98.

Doyle, Sir. Arthur Conan Doyle, 1859 — 1930

O Cão dos Baskervilles. Sir Arthur Conan Doyle  (The hound of the Baskervilles- First
edition, Strand Magazine) Tradução
Cao Ypiranga.
Pará de Minas,
MG, Brasil: Editora VirtualBooks.

 ISBN 978-85-7953-779-0

Ficção inglesa. Novela Policial. Brasil. Título. Tradução de Cao
Ypiranga)

 

 

 



O CÃO DOS BASKERVILLES

Arthur Conan Doyle

 

 

CAPÍTULO 1

SR. SHERLOCK HOLMES

 

O
Sr. Sherlock Holmes, que geralmente se levantava muito tarde pela manhã, exceto
nas infrequentes ocasiões em que passava acordado a noite toda, já estava
sentado à mesa do café.  Eu estava parado
sobre o tapete da lareira e havia apanhado a bengala que o nosso visitante
esquecera na noite anterior. Era um pedaço de madeira, de fina espessura, com
castão redondo, do tipo que é conhecido como “Penang lawyer“.  Abaixo
do castão havia uma banda larga de prata, quase de uma polegada de diâmetro.
“Para James Mortimer, M.R.C.S., de seus amigos do C.C.H.”, estava
gravado sobre ele, com a data de 1.884. Era apenas um tipo de bengala que o
antiquado médico de família costumava transportar: digna, sólida e
reconfortante.

“Bem,
Watson, o que você acha disso?”

Holmes
estava sentado de costas para mim, e eu não havia dado a ele indicação alguma
da minha ocupação.

“Como
você soube o que eu estava fazendo? Acho que você tem olhos atrás da cabeça.”

“Eu
tenho, pelo menos, um bule de café, prateado, bem-polido, na minha
frente”, disse ele. “Mas, diga-me, Watson, o que acha da bengala de
nosso visitante? Desde que fomos tão infelizes perdendo-o e não tendo noção
alguma de sua missão aqui, esta lembrança acidental torna-se importante.
Deixe-me ouvir a sua reconstituição sobre o homem por um exame da
bengala.”

“Eu
acho”, disse-lhe, seguindo tanto quanto podia os métodos do meu
companheiro, “que o Dr. Mortimer é um médico idoso, bem sucedido e
estimado, já que aqueles que o conhecem lhe deram esta prova de estima.”

 “Bom!”, disse Holmes.
“Excelente!”

“Acho
também que a probabilidade é a favor de ele ser um médico rural que faz um
grande número das suas visitas a pé.”

“Por
que acha isso?”

 “Por causa desta bengala, que deve ter
sido muito bonita, mas está tão usada que não me parece que possa pertencer a
um médico da cidade. A grossa ponteira de ferro está gasta, de modo que ele
deve ter caminhado muito com ela.”

 “Certo e lógico!”, disse Holmes.

 “E, além disso, há os amigos do C.C.H. Eu
acho que deve ser como caçar algo, no Clube de Caça, cujos membros,
possivelmente, deram-lhe tal presente em troca de alguma assistência cirúrgica
prestada por ele.”

    “Realmente, Watson, você está se
superando”, disse Holmes, empurrando a cadeira para trás e acendendo um
cigarro. “Eu sou obrigado a dizer que, em todos os elogios que fez a
respeito de minhas próprias realizações, tem habitualmente subestimado as suas
próprias habilidades. Pode ser que você não seja mesmo luminoso, mas não deixa
de ser um condutor de luz. Algumas pessoas, sem possuir gênio, têm o notável
poder de estimulá-lo. Confesso, meu caro, 
que sou seu devedor.”

    Ele nunca havia dito isso antes, devo
admitir que suas palavras me deram um imenso prazer, pois, muitas vezes, fiquei
magoado pela sua indiferença pela minha admiração e pelas tentativas que eu
havia feito para dar publicidade aos seus métodos. Fiquei orgulhoso, também, ao
perceber que eu tinha até agora dominado seu sistema a ponto de aplicá-lo de
maneira a obter sua aprovação. Ele agora tomou a bengala de minhas mãos e
examinou-a, por alguns segundos, com olhos nus. Depois, com uma expressão de
interesse, largou o cigarro e levando a bengala para a janela, examinou-a
novamente com uma lente convexa.

       “Interessante, embora
elementar”, disse ele ao voltar ao seu canto favorito do sofá. “Há,
certamente, uma ou duas indicações na bengala. Isso nos dá a base para várias
deduções.”

    “Alguma coisa me escapou?”,
perguntei com alguma auto importância. “Acredito que não há nada de
importante que eu não tenha percebido.”

    “Temo, meu caro Watson, que a maioria
de suas conclusões esteja errada. Quando eu disse que você me estimulava, quis
dizer, para ser franco, que ao notar os seus enganos, sou conduzido
ocasionalmente em direção à verdade. Não que você esteja totalmente errado
neste caso. O homem é certamente um médico do campo. E caminha um bocado.”

    “Então, eu estava certo.”

    “Até esse ponto.”

    “Mas isso é tudo.”

    “Não, não, meu caro Watson, não tudo,
de modo algum.  Gostaria de sugerir, por
exemplo: um presente a um médico é mais provável que venha de um hospital do
que de um grupo de caçadores, e quanto às iniciais ‘C.C.’ são colocadas antes
de “Hospital” e as palavras “Charing
Cross
” sugerem isso por si mesmas, muito naturalmente.”

    “Você pode estar certo.”

    “A probabilidade está nessa direção. E
se tomarmos isso como uma hipótese de trabalho, temos uma nova base a partir da
qual começaremos a nossa  reconstituição do
visitante desconhecido.”

    “Bem, então, supondo que C.C.H.
signifique Charing Cross Hospital,
que outras deduções podemos tirar?”

    “Nenhuma lhe sugere por si mesma? Você
conhece os meus métodos. Aplique-os!”

    “Eu só posso pensar na conclusão óbvia
de que o homem clinicou na cidade antes de ir para o campo.”

    “Acho que podemos arriscar um pouco
mais do que isso. Olhe-o sob esse aspecto. Em que ocasião seria mais provável
que este presente fosse dado? Quando é que os seus amigos se uniram para dar-lhe
uma demonstração de boa vontade? Obviamente no momento em que o Dr. Mortimer
retirou-se do serviço do hospital, a fim de clinicar por conta própria. Sabemos
que houve um presente. Acreditamos que houve uma mudança de um hospital da
cidade para uma clínica no campo. Então, levaria a nossa dedução longe demais
dizer que o presente foi por ocasião da mudança?”

    “Certamente, isso parece
provável.”

    “Agora, você pode observar que ele não
podia fazer parte da equipe do hospital, uma vez que apenas um homem bem
estabelecido, com uma clínica em Londres poderia ter essa posição, e essa
pessoa não deveria ir clinicar no interior. O que era ele, então?  Se ele estava no hospital e, apesar disso,
não fazia parte da equipe médica, só podia ser o cirurgião da casa ou o médico
da casa, pouco mais do que um residente. E ele saiu há cinco anos, a data está
na bengala. Portanto, o seu médico de família, sério, de meia-idade, desaparece
no ar rarefeito, meu caro Watson, e surge um rapaz jovem com menos de trinta anos,
amável, sem ambição, distraído e dono de um cão de estimação, que eu
descreveria mais ou menos como sendo maior do que um terrier e menor do que um mastim.”

    Eu ri incrédulo, quando Sherlock Holmes
recostou-se na poltrona e soprou pequenos anéis indecisos de fumaça para o
teto.

    “Quanto à última parte, não tenho
nenhum meio de conferir “, disse eu, “mas pelo menos não é difícil
descobrir alguns pormenores sobre a idade do homem e da carreira
profissional.” Da minha pequena prateleira médica, tirei o Medical Directory e busquei pelo nome.
Havia vários Mortimers, mas apenas um que poderia ser nosso visitante. Li o seu
recorte em voz alta.

    ‘Mortimer, James, M.R.C.S., 1882, Grimpen,
Dartmoor, Devonshire. Cirurgião residente, de 1882 até 1884, no Hospital
Charing Cross. Vencedor do Prêmio Jackson de Patologia Comparada, com o ensaio
intitulado ‘A Doença é uma Reversão?’ Membro correspondente da Sociedade Sueca
de Patologia, autor de Algumas Anomalias do Atavismo ­(Lancet, 1882). Journal of Psychology, março de 1883.
Médico oficial das freguesias de Grimpen, Thorsley e High Barrow.’

    “Não há menção aos caçadores locais,
Watson”, disse Holmes, com um sorriso malicioso, “mas um médico do
interior, como você, astutamente, observou. Acho que estou razoavelmente certo
em minhas deduções. Quanto aos adjetivos, se bem me lembro direito: ‘amável’,
‘sem ambição’ e ‘distraído’. Minha experiência diz que só um homem ‘amável’
recebe homenagens e ‘sem ambição’ abandona uma carreira em Londres por uma no
interior, e só um ‘distraído’ deixa sua bengala e não o seu cartão de visita,
depois de esperar uma hora na nossa sala.”

    “E o cachorro?”

    “Tem o hábito de carregar esta bengala
atrás de seu dono. Sendo um pedaço de pau pesado que o cão segura firmemente
pelo meio;  as marcas de seus dentes são
claramente visíveis. Mandíbula do cachorro, como mostra o espaço entre estas
marcas, é muito ampla, em minha opinião, para um terrier e não larga o suficiente para um mastim.  Poderia ser, sim, por Deus, é um spaniel de pelos encaracolados.”

    Ele havia se levantado e atravessado a sala
enquanto falava. Agora, parou no recesso da janela. Houve um tom de convicção
em sua voz, que me deixou surpreso.  

 “Meu caro amigo, como pode ter tanta
certeza disso?”

 “Pela simples razão de que estou a ver o
cão no degrau da nossa porta, e aí está o toque de campainha de seu
proprietário. Não se mova, eu imploro, Watson. Ele é seu irmão de profissão e a
sua presença pode ser útil para mim. Agora é o momento dramático do destino, Watson,
quando se ouve um passo na escada que está caminhando para dentro de nossa
vida, e você não sabe se para o bem ou para o mal. O que faz o Dr. James
Mortimer, o homem de ciência, visitar Sherlock Holmes, o especialista em crime?
Entre!”

    A aparência do nosso visitante foi uma
surpresa para mim, já que eu esperava um típico médico do interior. Era um
homem muito alto, magro, com um nariz comprido como um bico, que se projetava
entre dois aguçados olhos cinzentos, vivos e bem juntos, que brilhavam por trás
de um par de óculos de aros de ouro. Ele estava vestido de uma forma
profissional, mas com desleixo, visível por sua sobrecasaca suja e as calças
desgastadas. Embora jovem, tinhas as costas curvas e caminhava com a cabeça
para frente, com um aspecto geral de atenta benevolência. Quando entrou, seus
olhos caíram sobre a bengala na mão de Holmes, e ele correu para ela com uma
exclamação de alegria.

“Estou
tão satisfeito”, disse ele. “Eu não tinha certeza se a havia deixado
aqui ou no escritório da companhia de navegação. Não perderia essa bengala por
nada neste mundo.”

    “Um presente, pelo que vejo”,
disse Holmes.

    “Sim, senhor”.

    “Do Hospital Charing Cross?”

    “De um ou dois amigos de lá, por
ocasião do meu casamento.”

    “Ora, ora, isso é ruim!” disse
Holmes, sacudindo a cabeça.

    Dr. Mortimer piscou através de seus
óculos,  ligeiramente espantado.

    “Por que é ruim?”

    “Somente porque o senhor desarranjou
as nossas pequenas deduções. Seu casamento, diz o senhor?”

    “Sim, senhor. Casei, e assim deixei o
hospital, e com ele todas as esperanças de uma clínica de consultas. Foi
necessário para montar um lar próprio.”

    “Vamos, vamos, não estamos tão longe
da verdade, depois de tudo”, disse Holmes. “E agora, o Dr. James
Mortimer…”

    “Senhor, apenas senhor – um humilde M.
R. C. S.”

    “E um homem de mente precisa,
evidentemente.”

    “Um diletante na ciência, Sr. Holmes,
um colhedor de conchas nas praias do grande oceano desconhecido. Presumo que é
Sherlock Holmes a quem eu me dirijo e não…”

    “Não, este é meu amigo Dr.
Watson.”

“Prazer
em conhecê-lo, senhor. Ouvi mencionarem o seu nome em relação ao do seu amigo.
O senhor me interessa muito, Sr. Holmes. Dificilmente tinha esperado um crânio
tão dolicocefálico ou um desenvolvimento supra orbital tão bem marcado. O
senhor teria alguma objeção a eu passar o dedo pela sua fissura parietal?   Um molde do seu crânio, senhor, até o
original estar disponível, seria um ornamento para qualquer museu
antropológico. Não é minha intenção de ser inconveniente, mas confesso que
cobiço seu crânio.”

Sherlock
Holmes indicou uma cadeira ao nosso visitante.

“O
senhor é um entusiasta da sua linha de ideias, percebo, senhor, como sou da
minha”, disse ele.”Observo pelo seu indicador que o senhor faz os
seus próprios cigarros. Não faça cerimônia em acender um.”

   O homem tirou do bolso papel e fumo e
enrolou um cigarro com uma destreza surpreendente. Ele tinha dedos longos e
trêmulos tão ágeis e inquietos como as antenas de um inseto.

    Holmes ficou em silêncio, mas seus pequenos
olhares penetrantes revelaram o interesse que ele tinha por nosso curioso
visitante.

    “Eu presumo, senhor”, disse ele,
“que não foi simplesmente com o fim de examinar o meu crânio que o senhor
me deu a honra de passar por aqui ontem à noite e novamente hoje?”

    “Não, senhor, não, embora esteja feliz
por ter tido a oportunidade de fazer isso também.

 “Vim ao senhor, Sr. Holmes, porque reconheci
que eu próprio sou um homem pouco prático, e porque me defrontei subitamente
com um problema muito sério e extraordinário. Reconhecendo, como reconheço, que
o senhor é o segundo maior especialista da Europa…”

    “De fato, senhor! Posso perguntar quem
tem a honra de ser o primeiro?”, perguntou Holmes com alguma aspereza.

    “Para um homem de mente precisa e
científica, a obra de Monsieur Bertillon deve sempre apelar fortemente.”

    “Então, não é melhor o senhor
consultá-lo?”

    “Eu disse, senhor: ‘mente precisa e
científica’, mas, como um prático homem de negócios, o senhor é
reconhecidamente o primeiro.  Espero,
senhor, não ter inadvertidamente…”

    “Só um pouco”, disse Holmes.
“Acho, Dr. Mortimer, que o senhor agiria sabiamente se, sem prolongar
mais, sucintamente, explicasse-me qual a natureza exata do seu problema para o
qual procura o meu apoio.

 

 

 CAPÍTULO 2

A MALDIÇÃO DOS BASKERVILLES

 

    “Eu tenho em meu bolso um
manuscrito,” disse o Dr. James Mortimer.

    “Notei­o quando o senhor entrou na
sala”, disse Holmes.

    “É um velho manuscrito.”

    “Início do século XVIII, a menos que
seja uma falsificação.”

    “Como pode dizer isso, senhor?”

    “O senhor apresentou dois a cinco
centímetros dele ao meu exame durante todo o tempo em que esteve falando. Seria
um pobre especialista se eu não pudesse dar a data de um documento dentro de
uma década ou mais. Você pode eventualmente ter lido minha pequena monografia
sobre o assunto. Dato esse documento por volta de 1730.”

    “A data exata é 1742.” Dr.
Mortimer tirou-o de seu bolso. “Este documento de família foi entregue aos
meus cuidados por Sir Charles Baskerville, cuja súbita e trágica morte há cerca
de três meses atrás criou tanta excitação em Devonshire. Posso dizer que fui
seu amigo, bem como seu médico assistente. Ele era um forte homem de espírito,
astuto, prático, e tão sem imaginação como eu mesmo, no entanto, levava este
documento muito a sério, e sua mente estava preparada para tal fim, como acabou
surpreendendo-o.”

    Holmes apanhou o manuscrito e o estendeu
sobre o joelho.

    “Pode observar, Watson, o uso
alternativo do ‘S’ longo e curto. Ele é uma das várias indicações que me
permitiram fixar a data.”

    Olhei por cima do seu ombro para o papel
amarelo e a escrita desbotada. No cabeçalho estava escrito: “Mansão
Baskerville,” e abaixo, em números grandes e rabiscados: 1742.

    “Parece ser algum tipo de
declaração.”

    “Sim, é uma declaração de uma lenda
que corre na família Baskerville.”

    “Mas eu entendo que é algo mais
moderno e prático sobre o qual o senhor deseja me consultar?”

“A
maior parte moderna. Uma questão mais prática, urgente, que tem de ser
resolvida no prazo de vinte e quatro horas. Mas o manuscrito é curto e está
intimamente ligado ao caso. Com sua permissão, vou lê-lo para o senhor.”

    Holmes recostou-se na cadeira, juntou as
pontas dos dedos, e fechou os olhos, com um ar de resignação. Dr. Mortimer
virou o manuscrito para a luz e leu em voz alta, crepitante, a seguinte
narrativa curiosa do mundo antigo:

    ‘Sobre
a origem do Cão dos Baskervilles tem havido muitos relatos, mas como eu venho
de uma linha direta de Hugo Baskerville, e como eu tinha ouvido a história do
meu pai, que também tinha ouvido de seu, escrevi­a convencido de que ela
ocorreu da forma como está aqui definida. E gostaria que acreditassem, meus
filhos, que a mesma justiça que pune o pecado também pode, com bondade,
perdoá-lo, e que nenhuma condenação é tão pesada que não possa, através da
oração e do arrependimento, ser removida. Aprendam, então, a partir dessa
história, a não temerem os frutos do passado, mas, pelo contrário, a serem
circunspectos no futuro, que essas paixões infames, que a nossa família tem
sofrido tão gravemente, não se instalam novamente para nossa ruína.’

  
‘Saibam, então, que no tempo da Grande Rebelião (cuja história, escrita
por Lord Claredon, recomendo seriamente à atenção de vocês) esta Mansão de
Baskerville pertencia a Hugo do mesmo sobrenome, nem se pode negar que ele
fosse um homem malvado, profano, e sem Deus. Isto, na verdade, seus vizinhos o
poderiam ter perdoado, sabendo que os santos nunca floresceram naquelas
regiões, mas havia nele certo humor devasso e cruel que tornou seu nome célebre
no lugar. Aconteceu que esse Hugo veio a se apaixonar (se, de fato, tão obscura
paixão possa ser conhecida sob um nome tão doce) pela filha de um pequeno
proprietário rural que possuía terras perto da propriedade de Baskerville. Mas
a jovem donzela, sendo discreta e de boa reputação, sempre o evitava, pois
temia a sua fama. Então, aconteceu que, no dia de São Miguel, esse Hugo, com
cinco ou seis companheiros ociosos e ímpios, invadiram a fazenda e levaram a
moça com eles, no momento em que seu pai e irmãos encontravam ausentes, como
ele bem sabia. Quando a levaram para a Mansão, a moça foi posta num quarto
superior, enquanto Hugo e seus amigos sentavam-se para tomar uma longa
bebedeira, como era seu costume noturno. Agora, a pobre moça no andar de cima
provavelmente teria o seu juízo transtornado com as cantorias, os gritos e as
blasfêmias terríveis que chegavam até ela, porque diziam que as palavras usadas
por Hugo Baskerville, quando estava embriagado, eram abomináveis que podiam
destruir o homem que as dissesse. Finalmente, sob a tensão do seu medo, ela fez
aquilo que poderia ter intimidado o homem mais corajoso ou ativo, porque com a
ajuda da hera crescida que cobria (e ainda cobre) a parede sul, ela desceu sob
o beiral e se dirigiu para casa, através do pântano, procurando vencer as três
léguas entre a Mansão e a fazenda do seu pai.’

‘Aconteceu que algum tempo depois,
Hugo deixou por acaso seus convidados para levar comida e bebida, e talvez
outras coisas piores, à sua prisioneira, e encontrou a gaiola vazia, o pássaro
havia escapado. Depois disso, como indica, ele ficou como possuído pelo
demônio, porque descendo as escadas para o salão de jantar, saltou para cima da
grande mesa, jarras e talheres voaram diante dele; berrou em voz alta, diante
de todos os companheiros, que iria naquela noite entregar seu corpo e sua alma
às Forças do Mal se não alcançasse a moça, enquanto os comparsas ficaram
horrorizados com a sua fúria súbita. Hugo de Baskerville, que cada vez mais
desvairado ficava e mais bêbado do que os demais, vociferava que eles deveriam
colocar os cães atrás dela. Em seguida, saiu de casa, berrando aos seus
cavalariços que selassem a sua égua e soltassem a matilha; dando aos cães um
lenço da moça, colocando-os em fila e, assim, partiram fazendo grande alarido
sob o luar do pântano.’

   
‘Os comparsas ficaram boquiabertos, incapazes de compreender tudo que
havia sido feito com tanta pressa. Logo seus espíritos grosseiros despertaram
para a natureza do fato que provavelmente ia se consumar sobre o pântano.
Agora, motivados por Hugo, todos estavam em algazarra: alguns clamando por suas
pistolas, outros pelos seus cavalos, e os demais por seus frascos de vinho. Em
número de treze, montaram a cavalo e partiram em perseguição. A lua brilhava
acima deles, enquanto cavalgavam rapidamente aos pares, tomando a direção que a
moça devia ter tomado para alcançar sua própria casa.’

   
‘Tinham cavalgado dois ou três quilômetros quando passaram por um dos
pastores noturnos da charneca e indagaram a ele se havia visto a moça. E o
homem, como diz a história, estava tão louco de medo que mal podia falar, mas,
finalmente, ele disse que realmente tinha visto a moça infeliz, com os cães em
sua pista. ‘Mas eu vi mais do que isso’, disse ele, ‘Hugo Baskerville passou
por mim em sua égua negra, e atrás dele corria em silêncio um Cão do Inferno;
que Deus me livre de tê­lo alguma vez em meus calcanhares.’  Assim, os escudeiros bêbados amaldiçoaram o
pastor e seguiram em frente. Mas logo suas peles gelaram, porque veio um galope
desenfreado através do pântano, e a égua preta de Hugo surgiu, coberta por uma
neblina, e passou diante deles com a rédea arrastando-se pelo chão e a sela
vazia. Eles prosseguiram na cavalgada, lado a lado, por receio, seguindo pelo
pântano, embora cada um, se estivesse só, ficaria aliviado se pudesse virar a
cabeça do seu cavalo e tomar o caminho de volta. Por fim, alcançaram os cães;
estes, embora conhecidos por sua bravura e raça, encontravam-se reunidos no
alto de um barranco, ganindo de modo alarmante; alguns iam se afastando
furtivamente e outros, com os pêlos das costas eriçados, mantinham os olhos
fixos no estreito vale abaixo deles.’

   
‘Os homens tinham chegado a um impasse, os mais sóbrios não avançariam
nem mais um quilometro, mas três deles, os mais ousados, ou pode se dizer: os
mais bêbados seguiram em frente, descendo o barranco. O caminho se alargava
entre as duas grandes pedras,  que ainda
se pode ver por lá, que foram colocadas por algum povo esquecido, em tempo
muito antigo.  A lua estava brilhando
sobre a clareira e, bem no centro dela, jazia a infeliz moça que havia caído,
morta de medo e de fadiga. Mas não foi a visão de seu corpo, nem tampouco a do
corpo de Hugo Baskerville, ao lado do dela, que arrepiou os cabelos dos três
temerários cavaleiros, mas sim, a visão de um animal grande, negro, em forma de
cão, ainda maior do que qualquer cão que os olhos mortais tenham visto, estava
debruçado sobre o corpo de Hugo, estraçalhando-lhe a garganta. E, enquanto os
três cavaleiros olhavam o sinistro animal, ele arrancou um pedaço maior de
carne do pescoço de Hugo Baskerville e encarou-os e, nesse breve instante,
puderem ver os olhos em chamas e as mandíbulas gotejantes de sangue; os três
gritaram de pavor e cavalgaram em desespero através do pântano.  Um deles, dizem, morreu naquela mesma noite,
pelo que havia visto, e os outros dois tornaram-se homens debilitados pelo
resto de suas vidas.’

  
‘Essa é a história, meus filhos, da vinda do cão, que dizem ter
perseguido a família tão cruelmente desde então. Se eu a narrei é porque aquilo
que é conhecido claramente produz menos terror do que aquilo que é apenas
insinuado e imaginado. Também não se pode negar que muitos da família têm sido
infelizes em suas mortes, que têm sido súbitas, sangrentas e misteriosas. Ainda
assim, podemos abrigar-nos na bondade infinita da Providência, que não puniria
para sempre os inocentes além da terceira ou quarta geração como ameaça à
Sagrada Escritura. A essa Providência, meus filhos, por essas palavras,
recomendo-os e aconselho-os, a título de cautela, evitarem atravessar o pântano
nas horas tardias, em que os poderes do mal são exaltados.’

   
‘(De Hugo Baskerville para os seus filhos Rodger e John, com instruções
para não dizerem nada disso à sua irmã Elizabeth.)

    Quando o Dr. Mortimer terminou de ler essa
singular narrativa, empurrou seus óculos para a testa e ficou olhando para
Sherlock Holmes. O último bocejou e jogou a ponta do cigarro no fogo.

    “Há algo mais?” disse ele.

    “O senhor não acha isso
interessante?”

    “Para um colecionador de contos de
fadas.”

    Dr. Mortimer tirou do bolso um jornal
dobrado.

    “Agora, Sr. Holmes, dou-lhe algo um
pouco mais recente. Esta é a Devon County
Chronicle
de 14 de maio deste ano. É um breve relato dos fatos que
provocaram a morte de Sir Charles Baskerville, que ocorreu poucos dias antes
dessa data.”

    Meu amigo se inclinou um pouco para frente
e sua expressão tornou-se atenta. Nosso visitante reajustou os óculos e
começou:

    ‘A recente morte súbita de Sir Charles
Baskerville, cujo nome tem sido mencionado como o provável candidato liberal
por Mid-Devon, nas próximas eleições, lançou uma sombra sobre o condado. Embora
Sir Charles residisse na Mansão Baskerville por um período relativamente curto,
sua amabilidade de caráter e sua extrema generosidade conquistaram o carinho e
respeito de todos que tiveram contato com ele. Nesta época de nouveaux riches,
é estimulante encontrar um herdeiro de uma família do condado, que havia caído
em desgraças, ser capaz de fazer a sua própria fortuna e trazê-la de volta
consigo para restaurar a grandeza arruinada de sua linhagem. Sir Charles, como
é conhecido, ganhou grandes somas de dinheiro em especulação na África do Sul.
Mais sábio do que aqueles que continuam especulando, recebeu seus ganhos e
voltou para a Inglaterra com eles. Há apenas dois anos desde que ele foi
residir na Mansão Baskerville, todos conhecem suas grandes obras, esquemas de
reconstrução e melhorias que foram interrompidas pela sua morte. Não possuindo
filho, era seu desejo expresso abertamente que toda a região lucrasse, enquanto
ele fosse vivo, com a sua boa fortuna, e muitos têm razões pessoais para
lamentar seu fim prematuro. Suas doações generosas às obras de caridade locais
e do condado têm sido relatadas frequentemente nestas colunas.’

    ‘Não pode dizer que as circunstâncias
relacionadas à morte de Sir Charles tenham sido inteiramente esclarecidas pelo
inquérito, mas pelo menos foi feito o suficiente para afastar aqueles rumores a
que a superstição local deu origem. Não há qualquer motivo para suspeitar de
crime ou imaginar que a morte pudesse decorrer senão de causas naturais. Sir
Charles era viúvo, e há indício que a morte possa ter ocorrido por causa de
hábitos excêntricos. Apesar da sua fortuna considerável, ele era simples em
seus gostos pessoais, e seus empregados na Mansão Baskerville consistiam em um casal
chamado Barrymore, o marido fazendo as vezes de mordomo e a mulher de
governanta. O testemunho deles, corroborado pelo de vários amigos, tende a
mostrar que a saúde de Sir Charles estava por algum tempo comprometida, por
possuir uma lesão cardíaca, manifestada em mudanças de coloração de pele, falta
de ar e ataques agudos de depressão nervosa. Dr. James Mortimer, amigo e médico
assistente do falecido, testemunhou esses efeitos.’

   ‘Os fatos do caso são simples. Sir Charles
Baskerville tinha o hábito de todas as noites, antes de ir para a cama,
caminhar pela famosa Alameda dos Teixos da Mansão Baskerville. Os testemunhos
do casal Barrymore atestam esse seu costume. No quarto dia de maio, Sir Charles
havia declarado sua intenção de partir no dia seguinte para Londres e havia
ordenado a Barrymore para preparar a sua bagagem. Naquela noite, ele saiu como
de costume para a sua caminhada noturna, durante a qual tinha o hábito de fumar
um charuto. Ele nunca mais voltou com vida. À meia-noite, Barrymore, encontrando
a porta da sala ainda aberta, ficou alarmado, e, acendendo uma lanterna, foi em
busca do seu patrão. O dia tinha sido úmido, e pegadas de Sir Charles foram
facilmente rastreadas pela alameda. No meio caminho desse passeio há um portão
que dá para o pântano. Havia indícios de que Sir Charles estivera parado ali
por algum tempo. Ele então seguiu pela alameda e foi na extremidade oposta dela
que o seu corpo foi descoberto.’

‘Um
fato que não foi explicado é a declaração de Barrymore de que as pegadas do seu
patrão alteraram a partir do momento em que ele passou pelo portão e pareceu
que, dali em diante, andou nas pontas dos pés. Um tal de Murphy, um cigano
negociante de cavalos, estava no pântano não muito distante, na ocasião, mas
segundo sua própria confissão parece que não estava bem devido à bebida. Ele
afirma que ouviu gritos, mas é incapaz de dizer de qual direção vieram.  Nenhum sinal de violência foi descoberto no
corpo de Sir Charles, embora a evidência do médico apontou para uma distorção
facial quase inacreditável – tão grande que o Dr. Mortimer recusou, a
princípio, a acreditar que era realmente seu amigo e paciente que jazia diante
dele – foi explicado que isso é um sintoma não fora do comum nos casos de
dispneia e morte por exaustão cardíaca. Essa explicação foi confirmada pelo
exame post-mortem, que revelou uma
doença orgânica há muito estabelecida e o júri de instrução apresentou um
veredicto de acordo com a evidência médica. É bom que assim seja, porque
obviamente é da maior importância que o herdeiro de Sir Charles deva se
estabelecer na Mansão e continuar as boas obras tão tristemente interrompidas.
Se a descoberta prosaica do magistrado não pusesse finalmente um basta nas
histórias românticas que têm sido cochichadas em relação ao caso, teria sido
difícil encontrar um inquilino para a Mansão Baskerville. Entende-se que o
parente mais próximo é o senhor Henry Baskerville, se ainda estiver vivo, filho
do irmão mais novo de Sir Charles Baskerville. O jovem, quando se ouviu falar
dele pela última vez, estava na América, e investigações estão sendo feitas com
vista a informá-lo de sua boa sorte.’

    O Dr. Mortimer dobrou o seu jornal e o
colocou outra vez no bolso.

    “Esses são os fatos públicos, Sr.
Holmes, em relação à morte de Sir Charles Baskerville.”

    “Eu tenho que agradecer-lhe”,
disse Sherlock Holmes, “por chamar a minha atenção para um caso que
certamente apresenta algumas características de interesse. Observei alguns
comentários no jornal na época, mas eu estava muito preocupado com aquele
pequeno caso dos camafeus do Vaticano e, por agradar ao Papa, perdi o contato
com vários casos ingleses interessantes. Esse artigo, diz o senhor, contém
todos os fatos públicos?”

    “Contém.”

    “Então vamos ver os privados.”
Ele recostou-se,  juntou as pontas dos
dedos e assumiu sua expressão mais impassível e judiciosa.

    “Ao fazer isso”, disse o Dr.
Mortimer, que tinha começado a mostrar sinais de forte emoção. “Estou
dizendo que eu não confiei certos detalhes a ninguém. Meu motivo para não revelá­los
no inquérito do magistrado é que um homem de ciência evita colocar­se
publicamente na posição de parecer endossar uma superstição popular. E tinha
ainda o motivo da Mansão Baskerville, 
como diz  o jornal, de permanecer
desocupada se fosse feita qualquer coisa para aumentar a sua reputação já
bastante sinistra. Por ambos esses motivos, achei que estava justificado em
contar menos do que sabia, uma vez que nenhuma vantagem prática podia resultar
disso, mas com o senhor não há nenhum motivo por que não deva ser franco.”

    “O pântano é muito pouco habitado e
todos que lá vivem moram muito próximos. Por esta razão, eu via bastante Sir
Charles Baskerville. Com a exceção do Sr. Frankland, da Mansão Lafter, e do Sr.
Stapleton, o naturalista, não há outros homens instruídos no raio de muitos
quilômetros. Sir Charles era um homem retraído, mas o acaso da sua doença nos
reuniu e uma comunhão de interesses na ciência nos manteve assim. Ele havia
trazido muita informação científica da África do Sul, e passamos juntos muitas
noites encantadoras discutindo a anatomia comparada de Bushman e Hottentot.’

    ‘Nos últimos meses, tornou-se cada vez mais
claro para mim que o sistema nervoso de Sir Charles estava tenso ao ponto de
uma ruptura. Ele tinha tomado essa lenda, que li, tão excessivamente a sério,
tanto assim que, apesar de caminhar em seus próprios terrenos, nada o induzia a
sair para o pântano à noite. Incrível como possa parecer, Sr. Holmes, ele
estava honestamente convencido de que um destino terrível pairava sobre sua
família, e certamente os antecedentes que ofereciam aos seus antepassados não
eram nada animadores. A ideia de uma presença medonha o perseguia
constantemente e, em mais de uma ocasião, ele me perguntou se em minhas visitas
médicas à noite já vira alguma criatura estranha ou ouvira o latido de um cão.
Este último questionamento me fez por várias vezes, e sempre com uma voz que
vibrava de emoção.’

    ‘Lembro-me muito bem de dirigir-me à sua
casa, à noite, cerca de três semanas antes do evento fatal. Ele estava junto a
porta do salão. Eu descera do meu cabriolé e estava parado diante dele quando
vi os seus olhos se fixarem por cima do meu ombro e contemplarem além de mim
com uma horrível expressão de horror. Virei­me, rapidamente, e tive tempo apenas
de vislumbrar alguma coisa que tomei como sendo um grande bezerro preto
passando pelo alto da entrada. Ele ficou tão excitado e assustado que fui
obrigado a ir até o local onde o animal tinha sido visto e olhar ao redor. No
entanto, o incidente pareceu causar a pior impressão em sua mente. Fiquei com
ele durante toda a noite e, foi nessa ocasião, para explicar a emoção que ele
tinha demonstrado, que confiou à minha guarda a narrativa que li para os
senhores. Menciono esse pequeno episódio porque ele assume alguma importância
em vista da tragédia que se seguiu, mas eu estava convencido na ocasião de que
o assunto era completamente trivial e que essa excitação não tinha
justificação.’

   ‘Foi sob o meu conselho que Sir Charles
estava prestes a partir para Londres. Seu coração estava, eu sabia, afetado, e
a ansiedade constante em que vivia, no entanto, a causa poderia ser
quimérica,  estava, evidentemente, tendo
um efeito sério sobre a sua saúde. Pensei que alguns meses entre as distrações
da cidade mandaram-no de volta um novo homem. 
O Sr. Stapleton, um amigo em comum que estava muito preocupado com seu
estado de saúde, era da mesma opinião. No último instante, veio esta terrível
catástrofe.’

‘Na
noite da morte de Sir Charles, Barrymore, o mordomo, que fez a descoberta,
mandou Perkins, o criado, a cavalo me chamar, e como eu estava acordado até
tarde pude chegar à Mansão Baskerville dentro de uma hora após o evento.  Conferi e confirmei todos os fatos que foram
mencionados no inquérito. Segui as pegadas pela Alameda dos Teixos,  vi o ponto junto ao portão para o pântano
onde ele pareceu ter parado; notei a mudança no formato das pegadas após esse
ponto e verifiquei que não havia nenhuma outra pegada além das de Barrymore no
saibro macio, e, finalmente, examinei cuidadosamente o corpo, o qual não havia
sido tocado até a minha chegada. Sir Charles jazia de bruços, com os braços
abertos, os dedos no chão e com suas feições convulsionadas por alguma emoção
forte a tal ponto que mal poderia jurar pela sua identidade. Certamente, não
havia nenhum ferimento físico de qualquer espécie. Mas uma declaração falsa foi
feita por Barrymore no inquérito. Ele disse que não havia nenhum vestígio no
chão em volta do corpo. Ele não observou nenhum. Mas eu vi, a alguma distância,
mas frescas e nítidas. ‘

     “Pegadas?”

     “Pegadas.”

     “De homem ou de mulher?”

     Dr. Mortimer olhou estranhamente para nós,
por um instante, e sua voz baixou quase até um sussurro quando respondeu:

     “Sr. Holmes, eram as pegadas de um
cão gigantesco!”

 

 

CAPÍTULO 3

O PROBLEMA

  

   Confesso que diante dessas palavras um
tremor me percorreu o corpo. Houve uma emoção na voz do médico que mostrou que
ele próprio estava profundamente emocionado com que nos contara. Holmes
inclinou-se para frente, excitado; seus olhos traziam esse brilho duro e seco
que neles surgia quando estava profundamente interessado no assunto.

“O
senhor viu isso?”

“Tão
claramente como o estou vendo. “

“E
o senhor não disse nada?”

“De
que adiantava?”

“Como
foi que ninguém mais notou?”

    “As marcas estavam a vinte metros do
corpo e ninguém atribuiu a elas qualquer importância. Não creio que eu também
tivesse ligado ao acontecido, se não conhecesse a lenda.”

    “Há muitos cães pastores no
pântano?”

    “Sem dúvida, mas aquele não era um cão
pastor.”

    “O senhor diz que ele era
grande?”

    “Enorme.”

    “Mas ele não se aproximou do
corpo?”

    “Não.”

    “Que espécie de noite era?

    “Úmida e fria.”

    “Mas não estava chovendo?”

    “Não.”

    “Como é a alameda?”

    “Existem duas filas de sebes de teixos
antigos, de doze metros de altura e são impenetráveis. O caminho no centro tem
cerca de oito metros de diâmetro.”

    “Existe alguma coisa entre as sebes e
o caminho?”

    “Sim, há uma faixa de grama de cerca
de seis metros de largura em ambos os lados.”

    “Pelo que entendi a Alameda dos Teixos
é penetrada num ponto por um portão?”

    “Sim, o portão de cancela que leva
para o pântano.”

    “Existe alguma outra abertura?”

    “Nenhuma”.

    “De modo que, para chegar à Alameda
dos Teixos, tem que vir da casa ou então entrar pelo portão do pântano?”

    “Há uma saída através da casa pelo
jardim, no final da alameda.”

    “Sir Charles chegou a fazer
isso?”

    “Não, ele ficou umas cinquenta jardas
dela.”

    “Agora, diga-me, Dr. Mortimer – e isto
é importante – as marcas que o senhor viu estavam sobre o caminho e não sobre a
grama?”

    “Nenhuma marca poderia aparecer na
grama.”

    “Elas estavam do mesmo lado do caminho
que o portão do pântano?”

    “Sim, estavam na borda do caminho, no
mesmo lado que o portão do pântano”.

    “Esse detalhe me interessa muito.
Outro ponto: a cancela do portão estava fechada?”

    “Fechada e trancada.”

    “Qual a altura?”

    “Cerca de quatro pés de altura.”

    “Então, qualquer um poderia pular por
cima?”

    “Sim.”

    “E que tipo de marca o senhor viu
junto à cancela?”

    “Nenhuma em particular.”

    “Céus! Será que ninguém examinou?”

    “Sim, eu mesmo examinei.”

    “E não encontrou nada?”

    “Era tudo muito confuso. Sir Charles
evidentemente havia parado ali por cinco ou dez minutos.”

    “Como sabe disso?”

    “Porque as cinzas de seu charuto
caíram por duas vezes.”

    “Excelente! Este é um colega, Watson,
atento aos detalhes. Mas, e as marcas?”

    “Ele havia deixado suas próprias
marcas por todo aquele pequeno trecho de cascalho. Não pude discernir nenhuma
outra.”

    Sherlock Holmes bateu com a mão no joelho
num gesto de impaciência.

    “Se eu tivesse lá!”, exclamou
ele. “É, evidentemente, um caso de extraordinário interesse, e que
apresenta imensas oportunidades para um especialista científico. Essa página de
cascalho na qual eu poderia ter lido muito, mas foi apagada pela chuva e
desfigurada pelos tamancos de camponeses curiosos. Oh, Dr. Mortimer, Dr.
Mortimer, e pensar que o senhor podia ter me chamado! O senhor tem realmente
muito a responder-me.”

    “Eu não poderia chamá-lo, Sr. Holmes,
sem divulgar esses fatos para o mundo, e já dei as minhas razões para não
querer fazê-lo. Além disso, além de…”

    “Por que hesita?”

    “Há um reino em que o mais agudo e o
mais experiente dos detetives fica impotente.”

    “O senhor quer dizer que a coisa é
sobrenatural?”

    “Não quero positivar isso.”

    “Não, mas o senhor evidentemente acha
isso.”

    “Desde a tragédia, Sr. Holmes,
chegaram aos meus ouvidos vários incidentes que são difíceis de conciliar com a
ordem estabelecida pela Natureza”.

    “Por exemplo?”

    “Eu soube que, antes do terrível
acontecimento, várias pessoas haviam visto uma criatura no pântano que
corresponde a esse demônio antigo de Baskerville, e que não poderia ser
qualquer animal conhecido pela ciência. Todos concordavam que era uma criatura
enorme, luminosa, medonha e espectral. Interroguei esses homens: um sujeito
cabeça-dura, um ferreiro, um fazendeiro próxima à charneca; todos contam a
mesma história dessa aparição terrível, que corresponde exatamente ao cão do
inferno da lenda. Garanto-lhe que reina o terror no distrito e que nenhum
homem, por mais ousado que seja, atreve-se a atravessar o pântano à
noite.”

    “E o senhor, um homem treinado pela
Ciência, acredita que ele seja sobrenatural?”

    “Eu não sei em que acreditar.”

    Holmes encolheu os ombros.

    “Até agora as minhas investigações se
limitaram a este mundo”, disse ele. “De uma maneira modesta, combati
o mal, mas para enfrentar o Pai do Mal seria, talvez, uma tarefa demasiadamente
ambiciosa. Mas o senhor tem que admitir que a pegada é material.”

    “O cão original era suficientemente
material para rasgar a garganta de um homem e ainda era  diabólico.”

    “Vejo que o senhor se passou bastante
para os sobrenaturalistas. Mas agora, Dr. Mortimer, diga-me uma coisa: se o senhor
possui esses pontos de vista, por que veio me consultar? O senhor me diz, ao
mesmo tempo, que é inútil investigar a morte de Sir Charles, mas deseja que eu
faça isso.”

    “Eu não disse que desejava que o
senhor fizesse isso.”

    “Então, como posso ajudá-lo?”

    “Ao aconselhar-me sobre o que eu
deveria fazer com Sir Henry Baskerville, que chega à estação de Waterloo”,
Dr. Mortimer olhou para o relógio, “em exatamente uma hora e um
quarto…”

    “Ele é o herdeiro?”

    “Sim. Com a morte de Sir Charles,
investigamos o paradeiro desse jovem cavalheiro e descobrimos que era
agricultor no Canadá. Das notícias que nos chegaram, sabemos que ele é um
sujeito excelente, em todos os sentidos. Falo agora, não como um médico, mas
como um administrador e executor da vontade de Sir Charles.”

    “Não há outro reclamante, eu
presumo?”

    “Nenhum. O outro único parente que
pudemos localizar foi Sir Rodger Baskerville, o caçula de três irmãos, dos
quais o pobre Sir Charles era o mais velho. O segundo irmão, que morreu jovem,
é o pai desse rapaz Henry. O terceiro, Rodger, era a ovelha negra da
família.  Ele provém da velha estirpe
dominadora dos Baskervilles e era a própria imagem, dizem, do velho Hugo. Ele
tornou a Inglaterra quente demais para segurá-lo, fugiu para a América Central
e lá morreu em 1876, de febre amarela. Henry é o último dos Baskervilles. Em
uma hora e cinco minutos vou encontrá-lo na estação de Waterloo. Recebi um
telegrama avisando que ele chegaria a Southampton esta manhã. Agora, Sr.
Holmes, o que o senhor me aconselha a fazer com ele?”

    “Por que ele não deveria ir para a
casa de seus antepassados?”

    “Parece natural, não é? E ainda, deve
considerar que cada Baskerville que se dirige para lá encontra um destino
maligno. Tenho a certeza de que se Sir Charles pudesse ter falado comigo antes
de sua morte, teria me prevenido contra trazer esse rapaz, o último da velha
estirpe e herdeiro de uma grande fortuna, para aquele lugar diabólico. Ainda
assim, não se pode negar que a prosperidade de toda a zona rural, ao redor da
Mansão, que é pobre e desolada, depende muito de sua presença. Todas as boas
obras que foram feitas por Sir Charles cairão em pedaços se não houver nenhum
inquilino na Mansão. Temo estar influenciado demais pelo meu próprio interesse,
óbvio nessa questão, e é por isso que eu trago o caso diante do senhor e
peço-lhe conselho.”

    Holmes meditou por algum tempo.

    “Falando claramente, a questão é a
seguinte:”, disse ele. “há um motivo diabólico que faz Dartmoor uma
moradia insegura para um Baskerville, essa é a sua opinião?”

    “Pelo menos, poderia ir ao ponto de
dizer que há alguma evidência de que isso seja verdade.”

    “Exatamente. Mas, certamente, se sua
teoria sobrenatural estiver correta, ela pode causar mal ao jovem em Londres
tão facilmente como no Devonshire. Um demônio, com poderes meramente locais,
como uma sacristia paroquial, seria inconcebível.”

    “O senhor coloca o assunto mais
irreverentemente, Sr. Holmes, do que provavelmente o faria se estivesse em
contato pessoal com essas coisas. O seu conselho, então, como entendo, é que o
jovem estará tão seguro em Devonshire como em Londres. Ele vem em cinquenta minutos.  O que o senhor recomenda? “

    “Eu recomendo, senhor, que tome um
cabriolé, chame o seu spaniel, que
está arranhando a minha porta da frente, e vá para  Waterloo receber Sir Henry Baskerville.”

    “E depois?”

    “Não diga nada a ele, até que eu tenha
a minha opinião sobre o assunto.”

    “Quanto tempo vai demorar para ter
algo em mente?”

    “Vinte e quatro horas. Às dez horas,
amanhã, Dr. Mortimer, ficaria muito grato se o senhor me visitasse aqui e,
ajudaria os meus planos para o futuro, se o senhor trouxesse Sir Henry
Baskerville consigo.”

    “Vou fazer isso, Sr. Holmes.” Ele
rabiscou o encontro no punho da sua camisa e saiu apressado à sua maneira
estranha, olhando em volta, absorto. Holmes deteve-o no alto da escada.

       “Só mais uma pergunta, Dr.
Mortimer. O senhor diz que antes da morte de Sir Charles Baskerville várias
pessoas viram a aparição no pântano?”

    “Três pessoas viram.”

    “Será que alguém a viu depois?”

    “Eu não ouvi falar de nenhuma
mais.”

    “Obrigado. Bom dia.”

    Holmes voltou ao seu lugar, com aquele olhar
calmo de satisfação interior, significando que tinha uma tarefa agradável
diante de si.

    “Saindo, Watson?”

    “Se eu não posso ajudá-lo.”

    “Não, meu caro, é na hora da ação que
recorro a você para me ajudar. Isso tudo é esplêndido, realmente original em
alguns pontos de vista. Ao passar pela casa de Bradley, pode pedir a ele para
me mandar um quilo de tabaco mais forte? Obrigado. Seria bom, se você achasse
conveniente, não voltar antes do anoitecer. Ficaria então muito satisfeito de
comparar impressões quanto a este problema muito interessante que nos foi
apresentado nesta manhã.”

Eu
sabia que o isolamento e a solidão eram necessários ao meu amigo nessas horas
de intensa concentração mental, durante as quais ele pesava cada partícula de
evidência, construindo teorias alternativas, comparando uma contra as outras,
quais os pontos eram essenciais e quais imateriais. Por isso, passei o dia no
meu clube e não retornei a Baker Street até à noite. Eram quase nove horas
quando me vi na sala de estar, mais uma vez.

    Minha primeira impressão quando abri a
porta foi que havia um incêndio, porque a sala estava tão cheia de fumaça que a
luz do abajur sobre a mesa estava turva. Quando avancei, no entanto, meus
receios foram postos de lado, pois era a fumaça acre de tabaco forte e
ordinário que me entrou pela garganta, fazendo-me ter um acesso de tosse.
Através da fumaça, tive uma vaga visão de Holmes em seu roupão, encolhido na
poltrona com o cachimbo negro de barro entre os lábios. Vários rolos de papel
estavam em torno dele.

    “Pegou um resfriado, Watson?”
disse ele.

    “Não, é esta atmosfera venenosa.”

    “Acho que está bem espessa, agora que
mencionou.”

    “Espessa? Está intolerável.”

    “Abra a janela, então! Você esteve no
seu clube durante todo o dia, percebo.”

    “Meu caro Holmes!”

    “Estou certo?”

    “Certamente, mas como?”

    Ele riu da minha expressão confusa.

    “Há um frescor agradável em você,
Watson, o que torna um prazer exercer quaisquer pequenas faculdades que possua
à sua custa. Um cavalheiro sai num dia chuvoso e de muito lodo e volta
imaculado à noite, com o brilho ainda em seu chapéu e em suas botas; é sinal
que ele permaneceu imóvel o dia inteiro. Ele não é um homem que possua amigos
íntimos; onde, então, ele poderia ter ido? Não é óbvio?”

    “Bem, é bastante óbvio.”

    “O mundo está cheio de coisas óbvias
que, por acaso, ninguém jamais observa. Onde você acha que eu fui?”

    “Lugar algum.”

    “Pelo contrário, eu estive no
Devonshire.”

    “Em espírito?”

    “Exatamente. Meu corpo permaneceu
nesta poltrona e consumiu em minha ausência, lamento observar, que consumi dois
bules grandes de café e uma quantidade incrível de tabaco. Depois que você saiu
eu mandei pedir a Stamford um mapa da região, desta parte do pântano, e meu
espírito pairou sobre a região o dia todo. Sem modesta, pude encontrar os
caminhos naquela paragem.”

    “Um mapa em grande escala, eu
presumo?”

    “Muito grande”. Ele desenrolou
uma seção do mapa e segurou-a sobre o joelho. “Aqui você tem o distrito em
particular que nos diz respeito. Essa é a Mansão Baskerville, no meio.”

    “Com uma floresta em volta dela?”

    “Exatamente. Imagino que a Alameda dos
Teixos, embora não marcado sob esse nome, deve se estender ao longo desta
linha, com o pântano à direita, como você percebe. Este pequeno grupo de
edifícios aqui, é o povoado de Grimpen, onde o nosso amigo, Dr. Mortimer, tem a
sua casa. Dentro de um raio de cinco milhas há, como se vê, apenas habitações
muito esparsas. Aqui está Mansão Lafter, que foi mencionada. Há uma casa
indicada aqui que pode ser a residência do naturalista – Stapleton, se bem me
lembro, era o seu nome. Aqui estão duas quintas no terreno do pântano, High Tor
e Foulmire. E, há quartoze milhas de distância, a grande prisão de Princetown;
entre e ao redor destes pontos dispersos, estende o pântano desolado e sem
vida. Este, então, é o palco sobre o qual a tragédia foi encenada e sobre a
qual devemos ajudar a encená-la novamente.”

    “Deve ser um lugar selvagem.”

    “Sim, o cenário é digno. Se o diabo
deseja dar uma mãozinha nos assuntos dos homens.”

    “Então, está mesmo inclinando à
explicação sobrenatural.”

“Os
agentes do demônio podem ser de carne e osso, não podem? Há duas perguntas
esperando por nós desde o início. A primeira: se algum crime foi cometido; a
segunda: qual é o crime e como foi cometido? Claro, se a hipótese do Dr.
Mortimer estiver correta, estamos lidando com forças fora das leis ordinárias
da Natureza; será o fim de nossa investigação. Mas somos obrigados a esgotar
todas as outras hipóteses antes de cairmos nessa. Acho que vamos fechar essa
janela novamente, se você não se importa. É uma coisa singular, mas acho que
uma atmosfera concentrada ajuda a concentrar as ideias. Não levo isso ao ponto
de entrar numa caixa para pensar, mas esse é o resultado lógico das minhas
convicções. Você pensou no caso?”

    “Sim, eu tenho pensado muito nisso
durante o dia.”

    “O que você acha?”

   
“É muito desconcertante.”

    “Ele tem certamente um caráter
próprio. Há pontos de distinção a respeito. Essa mudança nas pegadas, por
exemplo; o que acha disso?”

    “Mortimer disse que o homem tinha
andado na ponta dos pés naquela parte da alameda.”

   
“Ele apenas repetiu o que havia dito a algum tolo no inquérito. Por
que um homem andou na ponta dos pés pela alameda?”

    “Então, o que foi?”

    “Ele estava correndo, Watson –
correndo desesperadamente, correndo para salvar a vida, correndo até que explodiu
o coração e caiu morto de bruços.”

    “Correndo de quê?”

    “Aí está o nosso problema. Há indícios
de que o homem estava louco de medo antes mesmo de começar a correr.”

    “Como pode dizer isso?”

    “Estou presumindo que a causa de seus
medos veio a ele através do pântano. Se for assim, e parece provável, somente
um homem que havia perdido o juízo teria fugido para longe de casa, em vez de
ter corrido para ela. Se a evidência do cigano pode ser tomada como verdadeira,
ele correu soltando gritos de socorro na direção, menos provável, para obter
ajuda. Depois: por quem estava ele esperando naquela noite, e por que estava
esperando por ele na Alameda dos Teixos em vez de em sua própria casa?”

    “Você acha que ele estava esperando
por alguém?”

    “O homem era idoso e doente. Podemos
compreender seu passeio à noite, mas o chão estava úmido e a noite inclemente.
É natural que ele ficasse por cinco ou dez minutos, conforme disse o Dr.
Mortimer. Eu deveria ter lhe dado mais crédito, deduzido a partir da cinza de
charuto?”

    “Mas ele saía todas as noites.”

    “Acho improvável que ficasse no portão
todas as noites. Pelo contrário, a evidência é que ele evitou o pântano.
Naquela noite, ele esperou ali. Era a noite anterior à sua partida para
Londres. Uma coisa leva a forma, Watson, torna-se mais coerente. Posso
pedir-lhe para me dar o meu violino e vamos adiar qualquer tipo de pensamento a
respeito deste assunto até nos encontrarmos com o Dr. Mortimer e Sir Henry
Baskerville pela manhã.”

 

 

CAPÍTULO 4

SIR HENRY BASKERVILLE

 

    A mesa do nosso café foi tirada cedo e
Holmes esperou de roupão pela entrevista prometida. Nossos clientes foram
pontuais no seu encontro, porque o relógio acabara de tocar dez horas quando o
Dr. Mortimer chegou, seguido pelo jovem baronete. O último era um homem
pequeno, alerto, de olhos escuros, cerca de trinta anos de idade, muito
robusto, com grossas sobrancelhas negras e um rosto forte e combativo. Ele
usava um terno de tweed vermelho
tingido e tinha a aparência castigada pelo tempo de alguém que passara a maior
parte de sua vida ao ar livre e ainda havia algo em seu olhar firme, de
tranquila segurança que indicava seu porte de cavalheiro.

    “Este é Sir Henry Baskerville,”
disse o Dr. Mortimer.

    “Oh, sim”, disse ele, “e o
estranho é que, Sr. Sherlock Holmes, se o meu amigo aqui não tivesse proposto
vir visitá-lo esta manhã, eu teria vindo por minha própria conta. Sei que o
senhor resolve pequenos enigmas, e tenho um esta manhã que precisa de mais
esforço mental do que sou capaz de dedicar a ele.”

    “Ora, sente-se, por favor, Sir Henry.
Entendi o senhor dizer que o senhor mesmo teve uma experiência notável desde
que chegou a Londres?”

    “Nada de muita importância, Sr.
Holmes. Apenas uma brincadeira,  como
não? Foi esta carta, se é que se pode chamá-la de carta, que me chegou esta
manhã.”

    Ele colocou um envelope sobre a mesa, e nós
todos nos inclinamos sobre ele. Era de qualidade comum, acinzentado. O
endereço, “Sir Henry Baskerville, Hotel Northumberland,” foi impresso
em caracteres irregulares, o carimbo “Charing
Cross
“, e da data de postagem da noite anterior.

    “Quem sabia que o senhor ia para o
Hotel Northumberland?” perguntou Holmes, olhando profundamente o nosso
visitante.

    “Ninguém poderia ter imaginado. Nós só
decidimos depois que encontrei com o Dr. Mortimer.”

    “Mas o Dr. Mortimer já estava, sem
dúvida, hospedado lá?”

    “Não, eu tinha ficado com um
amigo”, disse o médico. “Não havia nenhuma indicação possível que a
intenção era ir para o hotel.”

    “Curioso! Alguém parece profundamente
interessado em seus movimentos.”

Do
envelope, ele tirou uma meia folha de papel almaço dobrada em quatro.
Atravessada no meio dela, uma única frase havia sido formada pelo expediente de
colar palavras impressas sobre o papel. Lia-se:

    Se você dá valor à sua vida ou à sua
sanidade mental, mantenha-se afastado do pântano.

    Somente a palavra “pântano” foi
escrita a tinta.

    “Agora,” disse Sir Henry
Baskerville, “talvez o senhor me diga, Sr. Holmes, o que diabo significa
isso, e quem é que se interessa tanto pelos meus assuntos?”

    “O que o senhor acha disso, Dr.
Mortimer? O senhor deve conceder que não há nada de sobrenatural quanto a isto,
de qualquer maneira? “

    “Não, senhor, mas pode muito bem vir
de alguém que esteja convencido de que a coisa seja sobrenatural.”

    “Que coisa?”, perguntou Sir Henry
bruscamente. “Parece-me que todos os senhores, cavalheiros, sabem muito
mais do que eu sobre os meus próprios assuntos.”

    “O senhor vai partilhar do nosso
conhecimento antes de sair desta sala, Sir Henry. Prometo-lhe isso”, disse
Sherlock Holmes. “Vamos limitar-nos no momento, com a sua permissão, a
este documento muito interessante, que deve ter sido montado e posto no correio
ontem à noite. Você tem o Times de
ontem, Watson?”

    “Está aqui no canto.”

    “Permita-me incomodá-lo, a página de
dentro, por favor, com os editoriais?” Ele olhou rapidamente para ela,
correndo os olhos nas colunas para cima e para baixo. “O artigo principal
é este, sobre o livre comércio. Permita-me ler um trecho dele:

‘Vocês
podem ser convencidos a imaginar que o seu próprio ramo especial de comércio ou
a sua própria indústria sejam encorajados por uma tarifa protetora, mas é
evidente que essa legislação a longo prazo deve manter a riqueza afastada do
país, diminuir o valor das nossas importações e baixar as condições gerais de
vida nesta ilha.’

    “O que você acha disso, Watson?”,
gritou Holmes com grande alegria, esfregando as mãos de satisfação. “Não
acha que é um sentimento admirável?”

    Dr. Mortimer olhou para Holmes com um ar de
interesse profissional e Sir Henry Baskerville virou um par de olhos escuros
intrigados sobre mim.

    “Eu não sei muito sobre a tarifa e
coisas desse tipo”, disse ele, “mas me parece que saímos um pouco
fora da trilha no que diz respeito a esse bilhete.”

    “Pelo contrário, acho que estamos
particularmente quentes sobre a pista, Sir Henry. Watson aqui conhece mais a
respeito dos meus métodos do que o senhor, mas eu temo que, mesmo ele, não
tenha entendido completamente o significado desta frase.”

    “Não, confesso que não vejo nenhuma
conexão.”

    “E ainda assim, meu caro Watson, há
uma relação tão íntima que uma é extraída da outra. ‘Você’, ‘sua’, ‘vida’, ‘sanidade,’
valor ‘, ‘mantenha-se afastado’, ‘do’. 
Os senhores não veem agora de onde estas palavras foram tiradas?”

    “Incrível! O senhor está certo! Ora,
se isso não é inteligente!”, 
exclamou Sir Henry.

    “Se restou qualquer dúvida isso é
resolvido pelo fato de que ‘manter distância’ e ‘da’ estão cortadas em um
pedaço.”

    “Ora veja, é isso mesmo!”

    “Realmente, Sr. Holmes, isso excede
qualquer coisa que eu poderia ter imaginado”, disse o Dr. Mortimer,
olhando com espanto para meu amigo. “Posso compreender qualquer um dizer
que as palavras eram de um jornal, mas que o senhor possa dizer qual, e
acrescentar que elas vieram do editorial, é realmente uma das coisas mais
notáveis que jamais vi. Como conseguiu isso?”

    “Eu presumo, Dr. Mortimer, que o
senhor possa distinguir o crânio de um negro do de um esquimó?”

    “Certamente”.

    “Mas como?”

    “Porque esse é o meu hobby. As
diferenças são óbvias. A crista supra-orbital, o ângulo facial, a curva do
maxilar…”

    “E esse é o meu passatempo especial e
as diferenças são igualmente evidentes. Há tanta diferença para os meus olhos
entre o tipo de chumbo de um artigo do
Times
e a impressão desleixada de um vespertino de meio pêni, como pode
haver entre o seu negro e o seu esquimó. A detecção de tipos é um dos ramos
mais elementares de conhecimento para o perito criminal, embora eu confesse que
uma vez, quando eu era muito jovem, eu confundi o Leeds Mercury com o Western
Morning News.
Mas um editorial do
Times
é completamente diferente, e estas palavras não podiam ter sido
tiradas de nenhum outro.  Como isso foi
feito ontem, a grande probabilidade era que devêssemos encontrar as palavras no
exemplar de ontem.”

    “Tanto quanto eu posso segui-lo,
então, o Sr. Holmes”, disse Sir Henry Baskerville”, alguém cortou
esta mensagem com uma tesoura…”

    “Tesourinha de unhas”, afirmou
Holmes. “O senhor pode ver que era uma tesoura de lâminas muito curtas,
uma vez que o cortador teve que dar duas tesouradas em  ‘mantenha-se longe’.

    “Isso mesmo. Alguém, então, cortou as
palavras com uma tesoura de lâminas curtas e colou-as com goma”

    “Cola”, disse Holmes.

    “Com cola para papel. Mas quero saber
por que a palavra ‘pântano’ teve que ser escrita a tinta?”

    “Porque ele não pôde encontrá-la
impressa. As outras palavras eram todas simples e podiam ser encontradas em
qualquer exemplar, mas a palavra ‘pântano’ era menos comum.”

    “Ora, é claro, isso explicaria o fato.
O senhor notou mais alguma coisa nessa mensagem, Sr. Holmes?”

    “Há uma ou duas indicações, contudo,
de que foi tomado o maior cuidado para remover todas as pistas. O endereço, o
senhor observa, está escrito em letras de forma irregulares. Mas o Times é um jornal que, raramente, é
encontrado em quaisquer mãos a não ser naquelas dos altamente instruídos.
Podemos concluir, portanto, que a letra foi composta por um homem instruído que
desejava passar  por não instruído e seu
esforço para disfarçar a própria letra sugere que pode ser uma pessoa
conhecida. Novamente, o senhor pode observar que as palavras não estão coladas
numa linha precisa, mas que algumas estão muito mais altas do que as outras.
‘Vida’, por exemplo, está completamente fora do seu lugar adequado. Isso pode
indicar descuido, ou pode indicar agitação e pressa por parte do cortador.
Minha inclinação é para o último ponto de vista, uma vez que a matéria era,
evidentemente, importante e é pouco improvável que o compositor desta carta
fosse descuidado. Se ele estivesse com pressa isso abre uma questão
interessante de por que devia estar com pressa, já que qualquer carta postada
até de manhã cedo chegaria a Sir Henry antes dele deixar o hotel. O autor
receava uma interrupção, e de quem?”

    “Estamos entrando agora na região de
adivinhação,” disse o Dr. Mortimer.

    “Digamos que, em vez disso, para a
região das probabilidades de equilíbrio, e escolheremos as mais prováveis. É o
uso científico da imaginação, mas temos sempre alguma base material da qual
começaremos as nossas especulações. Agora, o senhor pode chamar de palpite, sem
dúvida, mas tenho quase certeza de que este endereço foi escrito num
hotel.”

    “Como pode dizer isso?”

    “Se você examinar com cuidado, verá
que a caneta e a tinta criaram problemas para o autor. A caneta respingou duas
vezes numa única palavra e secou três vezes num endereço curto,  mostrando que havia pouca tinta no tinteiro.
Agora, uma caneta ou tinteiro de uso particular, raramente, chegam em tal
estado, e a combinação dos dois deve ser muito rara. Mas o senhor conhece a
tinta de hotel e a caneta de hotel, onde é raro conseguir qualquer outra coisa.
Sim, hesito muito pouco em dizer que se pudéssemos examinar as cestas de papéis
dos hotéis em torno de Charing Cross, encontraríamos os restos do editorial
mutilado do Times. Poderíamos pôr as mãos diretamente na pessoa que mandou esta
mensagem singular. Ora, o que é isto?”

    Ele estava examinando cuidadosamente o
papel almaço, em que as palavras foram coladas, segurando-a apenas uma ou duas
polegadas dos olhos.

    “Bem?”

    “Nada”, disse ele, largando-o.
“É uma meia folha de papel vazia, sem sequer uma marca d’água. Acho que
extraímos o máximo que pudemos desta curiosa carta; e agora, Sir Henry,
aconteceu­lhe mais alguma coisa interessante desde que chegou a Londres?”

    “Acho que não.”

    “O senhor não observou ninguém
segui­lo ou a vigiá­lo?”

    “Parece que entrei direto na trama de
um romance barato”, disse o nosso visitante. “Por que alguém devia me
seguir ou me vigiar?”

    “Estamos chegando a esse ponto. O
senhor não tem mais nada a nos comunicar antes de entrarmos nessa
questão?”

    “Bem, isso depende do que o senhor
acha que vale a pena relatar.”

    “Eu acho que qualquer coisa fora da
rotina normal de vida vale a pena.”

    Sir Henry sorriu.

    “Eu não sei muito da vida britânica
por ter passado quase todo o meu tempo nos Estados Unidos e no Canadá, mas
espero que perder uma das botas, não faça parte da rotina normal da vida por aqui.”

    “O senhor perdeu uma de suas
botas?”

    “Meu caro senhor”, gritou o Dr.
Mortimer, “foi só um extravio. O senhor vai encontrá-la quando voltar ao
hotel. De que adianta incomodar o Sr. Holmes com ninharias desse tipo?”

    “Bem, ele me perguntou por qualquer
coisa fora da rotina comum.”

     “Exatamente”, disse Holmes,
“por mais tolo que o incidente possa parecer. O senhor disse que perdeu um
par de botas?

        “Bem, extraviado, de qualquer
maneira. Coloquei os dois pares de fora da minha porta, ontem à noite, e pela
manhã havia apenas um par. Não obtive nenhuma explicação satisfatória do
sujeito que as limpou. Pior de tudo é que as comprei na última noite no Strand,
nem as tinha usado.”

    “Se o senhor nunca as usou, por que as
pôs do lado de fora para serem limpas?”

    “Eram botas marrons e nunca foram
envernizadas. Foi por isso que as pus do lado de fora.”

    “Então devo entender que ao chegar a
Londres ontem, o senhor saiu imediatamente e comprou um par de botas?”

    “Eu comprei uma porção de outras
coisas. Dr. Mortimer, foi comigo.  O
senhor compreende, se vou ser um proprietário rural lá no sul, devo me vestir
segundo o papel e pode ser que eu tenha ficado um pouco descuidado em meus
hábitos lá no oeste. Entre outras coisas, comprei essas botas marrons, dei seis
dólares por elas e tive uma roubada antes mesmo de usá­las.”

    “Parece uma coisa singularmente inútil
para roubar”, disse Sherlock Holmes. “Confesso que partilho da crença
do Dr. Mortimer de que não passará muito tempo antes da bota desaparecida ser
encontrada.”

    “E, agora, senhores”, disse o
baronete com decisão, “parece-me que eu tenho falado bastante sobre o
pouco que eu sei. É tempo dos senhores cumprirem suas promessas e dar-me um
relato completo do que sabem.”

    “O pedido é muito razoável”,
respondeu Holmes. “Dr. Mortimer, eu acho 
que o senhor não poderia fazer melhor do que contar a sua história, como
contou para nós.”

    Assim encorajado, nosso amigo científico
tirou seus papéis do bolso e apresentou todo o caso, como tinha feito na manhã
anterior. Sir Henry Baskerville ouviu com a mais profunda atenção e com uma
exclamação ocasional de surpresa.

    “Bem, parece que recebi uma herança
com uma vingança”, disse ele, quando a longa narrativa estava acabada.
“É claro que eu ouvi o relato do cão desde o berço. É a história favorita
da família, mas nunca pensei em levá-la a sério. Mas a morte do meu tio; bem,
tudo parece estar em ebulição na minha cabeça, e nada ficou claro ainda. O
senhor parece não ter resolvido de todo em sua mente, se é um caso para um
policial ou para um clérigo.”

    “Justamente.”

    “E agora há este caso da carta para
mim no hotel. Suponho que isso se encaixe no seu lugar.”

    “Parece que é para nos mostrar que
alguém sabe mais do que nós sobre o que acontece na charneca,” disse o Dr.
Mortimer.

    “E também”, disse Holmes,
“que alguém não está com más intenções a seu respeito, já que o avisa do
perigo.”

    “Ou pode ser que ele deseje, para seus
próprios fins, afugentar-me.”

    “Bem, é claro, que é possível, também.
Estou muito grato ao senhor, Dr. Mortimer, por me mostrar um problema que
apresenta várias alternativas interessantes. Mas o ponto prático que temos que
decidir agora, Sir Henry, é se é ou não aconselhável para o senhor ir para a
Mansão Baskerville.”

    “Por que eu não deveria ir?”

    “Parece perigoso.”

    “O senhor quer dizer perigoso por
causa deste demônio familiar ou quer dizer por causa de seres humanos?”

    “Bem, isso é o que teremos de
descobrir.”

    “Seja o que for, a minha resposta é a
mesma. Não há diabo no inferno, Sr. Holmes, e não há homem na terra que possa
me impedir de ir para a casa de minha família, o senhor pode considerar essa
como a minha resposta final.”  Suas
sobrancelhas escuras se arquearam e o rosto corou-se de um vermelho escuro
enquanto ele falava. Era evidente que o temperamento ardente dos Baskervilles
não fora extinto neste seu último representante. “Enquanto isso”,
continuou ele, “mal tive tempo de pensar em tudo que os senhores me
contaram. É uma grande coisa para um homem entender e decidir em uma única
sessão a sua vida. Gostaria de ter uma hora tranquila sozinho para decidir.
Agora, olhe aqui, Sr. Holmes, são onze e meia e vou voltar logo ao meu hotel.
Espero que o senhor e seu amigo, o Dr. Watson, apareçam e almocem conosco às
duas. Vou ser capaz de dizer as coisas mais claramente e, por fim, o que acho
dessa coisa que me impressiona tanto.”

    “É conveniente para você,
Watson?”

    “Perfeitamente.”

    “Então os senhores podem nos esperar.
Devo chamar um coche?”

    “Eu prefiro caminhar, porque esse caso
me perturbou bastante.”

    “Eu vou acompanhá-lo em sua caminhada,
com prazer”, disse seu companheiro.

    “Então nos encontramos novamente às
duas horas. Au revoir, e
bom-dia!”

    Ouvimos os passos dos nossos visitantes
descendo a escada e a batida da porta da frente. Num instante Holmes havia
mudado do sonhador lânguido para o homem de ação.

    “Seu chapéu e botas, Watson, rápido!
Não temos um momento a perder!” Correu para o seu quarto em seu roupão e
estava de volta em poucos segundos numa sobrecasaca.  Descemos juntos a escada correndo e saímos
para a rua. O Dr. Mortimer e Baskerville ainda estavam visíveis a cerca de
duzentos metros na nossa frente na direção da Oxford Street.

    “Devo correr e detê-los?”

    “Por nada deste mundo, meu caro
Watson. Estou perfeitamente satisfeito com a sua companhia se você tolerar a
minha companhia. Nossos amigos são sábios, pois é certamente uma manhã muito
boa para um passeio a pé.”

    Ele acelerou o passo até que diminuiu a
distância que nos dividia pela metade. Em seguida, ainda mantendo uma centena
de metros atrás, seguimos pela Oxford Street e depois Regent Street abaixo. Os
nossos amigos pararam uma vez e olharam para uma vitrina e Holmes fez o mesmo.
Um instante depois, ele deu um grito de satisfação, e, seguindo a direção de
seus olhos ansiosos, vi que um cabriolé, com um homem dentro, que havia parado
do outro lado da rua, estava agora avançando lentamente mais uma vez.

    “Lá está o nosso homem, Watson! Venha!
Daremos uma boa olhada nele, se não pudermos fazer mais.”

    Naquele instante, eu estava ciente que uma
barba negra e um par de olhos penetrantes viraram-se para nós através da janela
lateral do cabriolé. Instantaneamente, o alçapão do teto voou para cima, alguma
coisa foi gritada para o cocheiro e o cabriolé voou como um louco pela Regent
Street. Holmes olhou em volta ansioso à procura de alguma coisa, mas não havia
nada à vista. Em seguida, ele correu em perseguição, em meio ao fluxo do
tráfego, mas a dianteira era muito grande e o cabriolé já estava fora de suas
vistas.

    “E agora?”, disse Holmes
amargamente quando saiu ofegante e branco em meio a maré de veículos. “Já
deparou com tanta má sorte e má gestão também? Watson, Watson, se você é um
homem honesto, deverá escrever sobre isso também e configurá-lo contra os meus
sucessos!”

    “Quem era o homem?”

    “Eu não tenho ideia.”

    “Um espião?”

    “Bem, era evidente pelo que ouvimos de
Baskerville ao relatar que foi seguido muito de perto por alguém, desde que
chegou a cidade. Como poderia saber tão rapidamente que foi no Hotel
Northumberland que ele hospedara? Se eles o seguiram no primeiro dia, concluí
que o seguiriam também no segundo. Você deve ter observado que fui duas vezes
até a janela enquanto o Dr. Mortimer estava lendo a sua lenda.”

    “Sim, eu me lembro.”

    “Eu estava olhando para os vagabundos
na rua, mas não vi nenhum. Estamos lidando com um homem inteligente, Watson.
Essa questão penetra muito fundo e embora eu não tenha me decidido se é uma
benevolente ou uma malévola influência que está em contato com a gente, estou
consciente de sua força e determinação. Quando nossos amigos nos deixaram,
imediatamente os segui, na esperança de identificar seus acompanhantes
invisíveis. Ele foi tão astuto que não se arriscou a seguir a pé, mas ele se
valeu de um cabriolé a fim de poder esperar escondido ou ultrapassá-los
depressa e, assim, escapar à atenção deles. Seu método tinha a vantagem
adicional de que se fossem para um cabriolé, ele estaria pronto para segui-los.
Ele tem, no entanto, uma desvantagem óbvia.”

    “Ele fica em poder do cocheiro.”

    “Exatamente.”

    “Que pena que não conseguiu o
número!”

    “Meu caro Watson, desajeitado como eu
fui, você certamente não imagina que eu tenha negligenciado um modo de obter o
número. Não. 2704 é o nosso homem. Mas isso não é para ser usado no
momento.”

    “Não vejo como pudesse ter feito
mais.”

    “Ao observar o cabriolé, eu devia ter
me virado instantaneamente e caminhado na direção contrária. Podia, então,
calmamente ter tomado um segundo cabriolé e seguido o primeiro a uma distância
respeitável, ou melhor ainda, ter ido para o Hotel Northumberland e esperado
lá. Quanto ao nosso desconhecido, que seguiria Baskerville até o hotel,
teríamos a oportunidade de jogar seu próprio jogo. Por uma ansiedade desmedida,
da qual o nosso adversário tirou vantagem, com extraordinária rapidez e
energia, traímo-nos e perdemos o nosso homem.”

    Estávamos passeando lentamente pela Regent
Street durante esta conversa e o Dr. Mortimer, com seu companheiro, haviam
desaparecido diante de nós há muito tempo.

    “Não há nenhum objetivo prático em
segui-los”, disse Holmes. “A sombra partiu e não vai voltar. Devemos
ver que outras cartas temos em mãos e jogá­las com decisão. Você pode jurar
reconhecer o homem dentro do cabriolé?”

    “Posso jurar apenas quanto à
barba.”

    “E assim eu poderia jurar, a partir do
qual entendo que com toda a probabilidade, é uma barba falsa.  Um homem esperto numa missão tão delicada não
precisa de uma barba exceto para esconder suas feições. Venha aqui,
Watson!”

    Ele entrou num dos escritórios de
mensageiros do bairro, onde foi saudado calorosamente pelo gerente.

    “Ah, Wilson, vejo que não se esqueceu
do pequeno caso no qual tive a felicidade de ajudá-lo?”

    “Não senhor, realmente não. O senhor
salvou o meu bom nome e talvez a minha vida.”

    “Meu caro amigo, você exagera. Tenho
alguma lembrança, Wilson, que teve entre seus um rapaz chamado Cartwright, que
mostrou alguma habilidade durante a investigação.”

“Sim,
senhor, ele ainda está conosco.”

    “Pode chamá-lo? Obrigado! E eu
gostaria de trocar esta nota de cinco libras.”

Um
garoto de quatorze anos com uma fisionomia brilhante e afiada havia atendido a
convocação do gerente. Ele estava parado agora, contemplando com grande
reverência o famoso detetive.

    “Deixe-me ver o Guia de Hotéis”,
disse Holmes. “Obrigado! Agora, Cartwright, aqui estão os nomes de vinte e
três hotéis, todos na vizinhança de Charing Cross. Você vê?”

    “Sim, senhor”.

    “Você vai visitar cada um deles.”

    “Sim, senhor.”

    “Você começará em cada caso dando ao
porteiro do lado de fora um xelim. Aqui estão vinte e três xelins.”

    “Sim, senhor.”

    “Você dirá a ele que deseja ver o
papel usado de ontem. Você dirá que um telegrama importante extraviou e que
você o está procurando. Compreendeu?”

    “Sim, senhor.”

    “Mas o que você está procurando
realmente é a página central do Times com
alguns buracos cortados nela com tesoura. Aqui está um exemplar do Times. E
esta a página. Você pode reconhecê-la facilmente, não pode?”

    “Sim, senhor.”

    “Em todos os casos o porteiro do lado
de fora mandará chamar o porteiro do vestíbulo, a quem você dará um xelim. Aqui
estão vinte xelins. Você então ficará sabendo provavelmente, em vinte casos dos
vinte e três, que o lixo do dia anterior foi queimado ou removido.  Nos outros três casos mostrarão a você um
monte de papéis e você procurará esta página do Times entre eles. As probabilidades são todas contra você de
encontrar alguma coisa. Aqui estão mais dez xelins para o caso de emergências.
Envia-me as respostas por telegrama, na Baker Street, antes do anoitecer. E
agora, Watson, só nos basta descobrir, por telegrama, a identidade do cocheiro,
número 2704, e depois iremos numa das galerias de quadros da Bond Street para
preencher o tempo até a hora de irmos ao Hotel Northumberland.

 

CAPÍTULO 5

TRÊS FIOS PARTIDOS

 

Sherlock
Holmes tinha, num grau muito notável, a capacidade de desligar sua mente à
vontade. Por duas horas, o estranho caso no qual tínhamos sido envolvidos
pareceu estar esquecido, e ele ficou inteiramente absorvido pelos quadros dos
mestres belgas modernos. Ele não falava de nada senão de arte, da qual tinha as
ideias mais primitivas, desde que saímos da galeria até nos vermos no Hotel
Northumberland.

    “Sir Henry Baskerville está lá em cima
a sua espera”, disse o funcionário. “Ele me pediu para conduzi-lo
para cima imediatamente quando chegasse.”

    “O senhor faz alguma objeção a eu
olhar o seu registro?”, indagou Holmes.

    “Nem um pouco.”

    O livro mostrava que dois nomes foram
adicionados após o nome de Baskerville. Um deles era Teophilus Johnson e
família, de Newcastle; o outro, a Sra. Oldmore e criada, de High Lodge, Alton.

    “Certamente esse deve ser o mesmo
Johnson que eu conhecia”, disse Holmes ao porteiro. “Um advogado, não
é, de cabelos grisalhos, e anda mancando?”

    “Não, senhor, este é o Sr.
Johnson,  o dono da mina de carvão, um
cavalheiro muito ativo, não mais velho do que o senhor.”

    “Não está enganado quanto ao seu
ramo?”

    “Não, senhor! Ele tem usado este hotel
por muitos anos, ele é muito bem conhecido por nós.”

“Ah,
isso resolve o assunto. Sra. Oldmore, também. Acho que me lembro do nome.
Desculpe a minha curiosidade, mas muitas vezes apelando para um amigo se
encontra o outro.”

    “Ela é uma senhora inválida, senhor.
Seu marido já foi prefeito de Gloucester. Ela sempre vem cá quando está na
cidade.”

    “Obrigado. Receio não poder
conhecê-la. Nós estabelecemos um fato muito importante com essas perguntas,
Watson”, continuou ele em voz baixa ao subirmos juntos. “Nós sabemos
agora que as pessoas que estão tão interessadas em nosso amigo não se
estabeleceram em seu próprio hotel. Isso significa que embora elas estejam,
como vimos, muito ansiosas em vigiá-lo, estão igualmente ansiosas de que eles
não as vejam. Agora, é um fato muito sugestivo.”

    “O que isso sugere?”

    “Isso sugere… olá, meu caro, qual é
o problema?”

    Ao chegarmos ao alto da escada esbarramos
no próprio Sir Henry Baskerville. Seu rosto estava vermelho de raiva e ele
segurava uma bota velha e empoeirada numa das mãos. Estava tão furioso que mal
conseguia articular, e quando o fez, 
falou num dialeto muito mais amplo e ocidental do que qualquer outro que
tivéssemos ouvido dele pela manhã.

“Parece
que estão me fazendo de otário neste hotel”, exclamou ele. “Vão
descobrir que começaram a mexer com o homem errado a menos que sejam
cuidadosos. Por Deus! Se esse sujeito não conseguir encontrar minha bota
perdida haverá problemas. Posso suportar uma piada com bom humor, Sr. Holmes,
mas eles exageraram um pouco desta vez.”

  “Ainda está procurando a sua bota?”

    “Sim, senhor, e pretendo
encontrá-la.”

    “Mas, certamente, disse que era uma
bota marrom nova?”

    “Assim foi, senhor. E agora é uma bota
preta velha.”

    “O quê? O senhor não quer
dizer…”

    “É exatamente isso o que quero dizer.
Eu tinha apenas três pares: o marrom novo, o preto velho e o de couro
envernizado, o que eu estou usando. Ontem à noite, eles levaram um pé do meu
marrom, e hoje roubaram um do preto. Bem, entendeu? Fale, homem, e não fique
olhando!”

   Um garçom alemão agitado havia aparecido em
cena.

  “Ainda nada, senhor. Fiz investigação em
todo o hotel, mas não ouvi uma palavra a respeito.”

   “Bem, ou essa bota volta antes do
anoitecer ou irei ver o gerente e dizer-lhe que vou deixar o hotel.”

   “Ela será encontrada, senhor,
prometo-lhe que se o senhor tiver um pouco de paciência ela será
encontrada.”

    “Faça com que seja, porque esta é a
última coisa minha que perderei neste covil de ladrões. Bem, bem, Sr. Holmes, o
senhor me desculpa por incomodá-lo com tal ninharia…”

   “Eu acho que vale a pena
incomodar-se.”

   “Ora, o senhor parece levar isso muito
a sério.”

   “Como o senhor explica isso?”

   “Eu só não tento explicar. Parece a
coisa mais louca e estranha que jamais me aconteceu.”

   “A mais estranha talvez…”, disse
Holmes, pensativo.

   “O que o senhor próprio acha disso?”

    “Bom, afirmo não compreendê-la ainda.
Este caso é muito complexo, Sir Henry. Quando tomado em conjunto, com a morte
de seu tio, não estou certo de que de todos os quinhentos casos de importância
capital de que cuidei, eu tenha tratado um tão complexo. Mas temos vários
tópicos em nossas mãos e as chances são de que um ou outro deles nos guie para
a verdade. Podemos perder tempo em seguir o caminho errado, mas mais cedo ou
mais tarde, devemos chegar ao certo.”

    Tivemos um almoço agradável no qual pouco
foi dito sobre o assunto que nos reuniu. Foi na sala privada, depois que Holmes
reparou, perguntou a Baskerville quais eram suas intenções.

    “Ir para a Mansão Baskerville.”

    “E quando?”

    “No final da semana.”

    “Em geral”, disse Holmes,
“Eu acho que a sua decisão é sensata. Tenho ampla evidência de que o
senhor está sendo seguido em Londres e, em meio a milhões desta grande cidade,
é difícil descobrir quem são essas pessoas ou qual pode ser o objetivo delas.
Se suas intenções são más, elas podem prejudicá-lo, e estaremos impotentes para
impedi-las. O senhor não sabe, Dr. Mortimer, que foi seguido esta manhã ao sair
da minha casa?”

     Dr. Mortimer estremeceu violentamente.

    “Seguido! Por quem?”

    “Isso, infelizmente, é o que eu não
posso dizer-lhe. O senhor tem entre os seus vizinhos ou conhecidos, em
Dartmoor, algum homem com barba preta, muito abundante?”

    “Não, ou deixe-me ver… sim,
Banymore, o mordomo de Sir Charles, é um homem com uma barba preta
abundante.”

    “Ah! Onde está Barrymore?”

    “Tomando conta da Mansão.”

    “É melhor nos certificarmos se ele
está realmente lá, ou se há qualquer possibilidade de que ele esteja em
Londres.”

    “Como se pode fazer isso?”

     “Dê­me um formulário de telegrama.
‘Está tudo pronto para Sir Henry?’ Creio que basta escrever isso.

    Endereçaremos para o Sr. Barrymore, Mansão
Baskerville. Qual é o posto telegráfico mais próximo? Grimpen. Muito bom. Vamos
enviar um segundo telegrama para o agente telegráfico de Grimpen: ‘O Telegrama
para o Sr. Barrymore tem que ser entregue em mãos. Se ele estiver ausente, por
favor, devolva o telegrama para Sir Henry Baskerville, Northumberland Hotel’.
Esse segundo telegrama deve nos informar, antes do anoitecer, se Barrymore está
no seu posto, no Devonshire, ou não.”

    “Isso mesmo”, disse Baskerville.
“A propósito,  Dr. Mortimer, quem é
esse Barrymore, afinal?”

    “Ele é o filho do velho caseiro, que
está morto. Eles cuidam da Mansão há quatro gerações. Até onde eu sei, ele e
sua esposa são tão respeitáveis como qualquer casal no município.”

    “Ao mesmo tempo”, disse
Baskerville, “está bastante claro que, desde que não haja ninguém da
família na Mansão, essas pessoas têm uma casa ótima, enorme e nada que
fazer.”

    “Isso é verdade.”

    “Será que Barrymore terá algum lucro
com testamento de Sir Charles?”, perguntou Holmes.

    “Ele e a mulher receberão quinhentas
libras cada um.”

    “Ah! Será que eles sabem que receberão
isso?”

    “Sim, Sir Charles gostava muito de
falar sobre os legados do seu testamento.”

    “Isso é muito interessante.”

    “Eu espero”, disse o Dr.
Mortimer, “que o senhor não olhe com olhos desconfiados para todos os que
receberem um legado de Sir Charles, pois eu também tive mil libras deixadas
para mim.”

    “De fato! E alguém mais?”

    “Havia muitas somas insignificantes
para indivíduos e um grande número de instituições públicas de caridade. O
resto todo foi para Sir Henry.”

    “E de quanto foi o resto?”

    “Setecentos e quarenta mil
libras.”

Holmes
ergueu as sobrancelhas, surpreso. “Eu não tinha ideia de que tão
gigantesca soma estava envolvida na herança”, disse ele.

    “Sir Charles tinha a reputação de ser
rico, mas não sabíamos o quanto ele era rico até chegarmos a examinar seus
valores mobiliários. O valor total da propriedade era de perto de um
milhão.”

    “Meu Deus! É um jogo para o qual um
homem pode muito bem jogar um jogo desesperado. E mais uma pergunta, Dr.
Mortimer. Supondo que aconteça alguma coisa ao nosso jovem amigo aqui – o
senhor perdoará a hipótese desagradável -, mas quem herdaria os bens?

    “Já que Rodger Baskerville, o irmão
caçula de Sir Charles, morreu solteiro, os bens iriam para os Desmonds, que são
primos distantes. James Desmond é um clérigo idoso em Westmoreland.”

    “Obrigado. Estes detalhes são todos de
grande interesse. O senhor conheceu o Sr. James Desmond?”

    “Sim, ele certa vez veio ao sul
visitar Sir Charles. É um homem de aparência venerável e leva uma vida de
santidade. Lembro-me de que ele se recusou a aceitar qualquer doação de Sir
Charles, mesmo quando foi insistido com ele…”.

    “E este homem de gostos simples seria
o herdeiro dos bens de Sir Charles.”

    “Ele seria o herdeiro da propriedade,
porque ela está vinculada. Ele também seria o herdeiro do dinheiro, a menos que
fosse disposto de outra forma pelo atual proprietário, que pode, naturalmente,
fazer o que quiser com ele.”

    “E o senhor já fez a sua vontade, Sir
Henry?”

    “Não, Sr. Holmes, não fiz. Não tive
tempo, porque só ontem é que soube como andavam as coisas. Mas, em todo caso,
acho que o dinheiro deve acompanhar o título e a propriedade. Essa era a ideia
do meu pobre tio. Como é o proprietário vai restaurar as glórias do
Baskervilles, se ele não tem dinheiro suficiente para manter a propriedade? A
casa, a terra, e o dinheiro devem andar juntos.”

    “Isso mesmo. Bem, Sir Henry, estou de
acordo com o senhor quanto à conveniência do senhor ir para o Devonshire sem
demora. Há apenas uma condição que devo impor. Que o senhor certamente não deva
ir sozinho.”

    “Dr. Mortimer retorna comigo.”

    “Mas o Dr. Mortimer tem sua clientela
para atender e a casa dele está a milhas de distância da sua. Com toda a boa
vontade no mundo, ele poderá não ser capaz de ajudá-lo.

     Não, Sir Henry, o senhor deve levar alguém
consigo, um homem de confiança, que esteja sempre ao seu lado.”

    “É possível o senhor próprio vir, Sr.
Holmes?”

    “Se as coisas chegarem a uma crise vou
fazer força para estar presente em pessoa, mas o senhor pode entender que, com
a minha extensa clientela para atender e com os constantes apelos que chegam a
mim de várias partes do país, é impossível para mim estar ausente de Londres
por um tempo indefinido. No momento, um dos nomes mais respeitados da
Inglaterra está sendo maculado por um chantagista e só eu posso impedir um
escândalo desastroso. O senhor vê que é impossível para mim ir para
Dartmoor.”

    “Quem o senhor recomendaria, então?

     Holmes colocou a mão no meu braço.

    “Se o meu amigo, aqui, se encarregasse
disso, não há nenhum homem que valha mais a pena ter ao seu lado quando o
senhor estiver num aperto. Ninguém pode dizer isso com mais confiança do que
eu.”

    A proposta me pegou totalmente de surpresa,
mas antes que eu tivesse tempo de responder, Baskerville agarrou-me pela mão e
apertou-a calorosamente.

    “Bem, agora, isso é realmente bondade
sua, Dr. Watson”, disse ele. “O senhor sabe como eu sou, e sabe tanto
sobre o assunto quanto eu. Se o senhor vier para a Mansão Baskerville e me
fizer companhia nunca me esquecerei disso.”

    A promessa de aventura sempre teve um
fascínio para mim, e eu fui complementado pelas palavras de Holmes e pelo
entusiasmo com que o baronete saudou-me como um companheiro.

    “Eu irei, com prazer”, respondi.
“Eu não sei como eu poderia empregar melhor o meu tempo.”

    “E você vai me relatar tudo,
minuciosamente”, disse Holmes. “Quando surgir uma crise, como
surgirá, direi a você como deve agir. Acho que até sábado todos possam estar
prontos?”

    “Isso lhe conviria, Dr. Watson?”

    “Perfeitamente.”

    “Então, no sábado, a menos que lhe
diga o contrário, nós nos encontraremos no trem das dez e meia para
Paddington.”

    Havíamos nos levantado para partir quando
Baskerville deu um grito de triunfo e, mergulhando num dos cantos, apanhou uma
bota marrom debaixo de um armário.

    “Minha bota perdida!”, exclamou
ele.

    “Que todas as nossas dificuldades
possam desaparecer com a mesma facilidade!”, disse Sherlock Holmes.

    “Mas isso é uma coisa muito
singular”, Dr. Mortimer comentou. “Eu revistei esta sala
cuidadosamente antes do almoço.”

    “E eu também”, disse Baskerville.
“Cada centímetro.”

    “Não havia certamente nenhuma bota
nela então.”

    “Nesse caso, o garçom deve ter
colocado aqui enquanto estávamos almoçando.”

    O alemão foi chamado, mas afirmou nada
saber sobre o assunto, nem pôde, qualquer inquérito, esclarecer a questão.
Outro item foi acrescentado à série constante e aparentemente sem propósito de
pequenos mistérios que se sucederam tão rapidamente. Deixando de lado toda a
história sombria da morte de Sir Charles, tínhamos uma linha de incidentes
inexplicáveis, todos dentro dos limites de dois dias, com o recebimento da
carta em letra de forma, o espião de barba preta no cabriolé, a perda da bota
marrom nova, a perda da bota preta velha, e agora a volta da bota marrom nova.
Holmes sentou-se em silêncio no coche quando voltávamos para Baker Street e eu
sabia,  a partir de suas sobrancelhas
arqueadas e a fisionomia ansiosa, que sua mente, como a minha, estava ocupada
no esforço para enquadrar algum esquema em que todos estes episódios estranhos
e aparentemente desconectados pudessem ser encaixados. Durante toda a tarde e
parte da noite, ele ficou perdido entre o tabaco e seus pensamentos.

    Pouco antes do jantar, dois telegramas lhe
foram entregues. O primeiro dizia:

   ‘Acabei de saber que Barrymore está na
Mansão. Baskerville.’

   O segundo:

   ‘Visitei vinte e três hotéis, como ordenado,
mas lamento informar, incapaz de descobrir vestígio folha cortada do Times.
Cartwright.’

   “Lá se vão dois dos meus tópicos,
Watson. Não há nada mais estimulante do que um caso em que tudo vai contra
você. Devemos nos lançar em outro rastro.”

    “Temos ainda o cocheiro que levou o
espião.”

    “Exatamente. Telegrafei ao registro
oficial para obter o seu nome e endereço. Não ficaria surpreso se isso fosse
uma resposta à minha pergunta.”

    O toque da companhia provou ser algo ainda
mais satisfatório do que uma resposta, pois, assim que a porta se abriu, um
companheiro de aparência rude entrou e era, evidentemente, o próprio homem.

“Recebi
uma mensagem da sede que um cavalheiro neste endereço havia perguntado pelo
número 2704”, disse ele.  “Eu
dirigi meu cabriolé estes sete anos e nunca tive uma reclamação. Vim direto da
cocheira para cá para perguntar-lhe pessoalmente o que tem contra mim.”

    “Não tenho nada contra você, meu bom
homem”, disse Holmes. “Pelo contrário, eu tenho meio-soberano para
você, se me der uma resposta clara às minhas perguntas.”

    “Bem, eu tive um bom dia e nenhum
erro”, disse o cocheiro, com um sorriso. “O que deseja me perguntar,
senhor?”

    “Primeiro o seu nome e endereço, no
caso de precisar de você outra vez.”

    “John Clayton, 3 Turpey Street, no Borough. Meu cabriolé é da Cocheira de Shipley, perto da estação de
Waterloo.”

    Sherlock Holmes tomou nota.

    “Agora, Clayton, diga-me tudo sobre o
passageiro que veio observar esta casa às dez horas da manhã e depois seguiu os
dois cavalheiros pela Regent Street.”

    O homem pareceu surpreso e um pouco
embaraçado.

   “Ora, não adianta eu lhe contar coisas,
porque o senhor já parece saber tanto quanto eu”, disse ele. “A
verdade é que o cavalheiro me disse que era detetive e que eu não devia contar
nada sobre ele a ninguém.”

    “Meu bom amigo, este é um caso muito
sério, e você pode encontrar-se em uma posição muito ruim se tentar esconder
algo de mim. Você diz que o seu passageiro lhe disse que ele era um
detetive.”

    “Sim, ele disse.”

    “Quando foi que ele disse isso?”

    “Quando ele me deixou.”

    “Ele disse alguma coisa mais?”

    “Ele mencionou o nome.”

    Holmes deu uma olhada rápida de triunfo
para mim.

   “Oh, ele mencionou seu nome, não é?
Isso foi imprudente. Qual era o nome que ele mencionou?”

    “Seu nome”, disse o cocheiro,
“era Sr. Sherlock Holmes.”

    Nunca vi meu amigo tão completamente
surpreso com a resposta do cocheiro. Por um instante, ele permaneceu sentado,
pasmo, em completo silêncio. Em seguida, explodiu em uma gargalhada.

    “Um toque, Watson, um toque
inegável!” disse ele. “Sinto uma lâmina tão ágil e flexível como a
minha própria. Ele me atingiu em cheio desta vez. Então, o nome dele era
Sherlock Holmes, não é?

    “Sim, senhor, esse era o nome do
cavalheiro.”

    “Excelente! Diga-me onde você o pegou
e tudo o que ocorreu.”

    “Ele me chamou às nove e meia na
Trafalgar Square. Ele disse que era detetive e ofereceu-me dois guinéus se eu
fizesse exatamente o que ele queria o dia todo, sem fazer perguntas. Fiquei
feliz o suficiente para concordar. Primeiro, seguimos até o Hotel
Northumberland e esperamos lá até dois cavalheiros saírem e tomarem um cabriolé
da fila. Seguimos o cabriolé deles até ele parar aqui perto.”

    “Nesta mesma porta”, disse
Holmes.

    “Bem, eu não posso ter certeza disso,
mas ouso dizer que meu passageiro sabia de tudo. Paramos no meio da rua e
esperamos uma hora e meia. Então, os dois cavalheiros passaram por nós,
andando, e nós seguimos pela Baker Street e para…”

    “Eu sei”, disse Holmes.

    “Até descermos três quartos da Regent
Street. Depois, meu passageiro levantou o alçapão e gritou para eu seguir
direto para a Estação de Waterloo o mais depressa que pudesse. Chicoteei a égua
e chegamos lá em menos de dez minutos. Depois, ele pagou os dois guinéus, como
combinado, e entrou na estação. Só que no momento em que estava indo embora
virou-se e disse: “Pode ser que lhe interesse saber que esteve
transportando o Sr. Sherlock Holmes. Foi assim que vim saber o nome.”

    “Compreendo. E você não o viu
mais?”

    “Não depois que ele entrou na
estação.”

    “E como você descreveria o Sr.
Sherlock Holmes?”

    O cocheiro coçou a cabeça. “Bem, ele
não era de todo um cavalheiro tão fácil de descrever. Teria uns quarenta anos
de idade, de estatura média, dois ou três centímetros mais baixo que o senhor.
Ele estava vestido como um dândi e tinha uma barba preta, corte quadrado no
final, e um rosto pálido. Não sei o que posso dizer mais do que isso.”

    “A cor dos seus olhos?”

    “Não, eu não posso dizer.”

    “Nada mais do que possa se
lembrar?”

    “Não, senhor, nada.”

    “Bem, então, aqui é o seu
meio-soberano. Há outro esperando por você, se você puder me trazer mais alguma
informação. Boa noite!”

    “Boa noite, senhor, e obrigado!”

    John Clayton partiu rindo e Holmes virou-se
para mim com um encolher de ombros e um sorriso triste.

    “Lá se vai o nosso terceiro segmento,
e acabamos onde começamos”, disse ele. “Que patife! Que astúcia! Ele
sabia o nosso número, sabia que Sir Henry Baskerville havia me consultado,
identificou quem eu era na Regent Street, imaginou que eu conseguira o número
do cabriolé e poria as mãos no cocheiro e, assim, mandou de volta este recado
audacioso. Vou lhe contar, Watson, desta vez conseguimos um inimigo digno de
nós. Levei um xeque-mate em Londres. Posso apenas desejar-lhe melhor sorte em
Devonshire. Mas não estou de mente tranquila quanto a isso.”

    “Quanto a quê?”

    “Sobre enviar você. É um negócio feio,
Watson, um negócio feio e perigoso, e quanto eu mais vejo, menos gosto. Sim,
meu caro colega, você pode rir, mas eu lhe dou minha palavra de que ficarei
muito satisfeito por ter você de volta são e salvo em Baker Street mais uma
vez.”

 

 

CAPÍTULO 6

A MANSÃO BASKERVILLE

 

    Sir Henry Baskerville e o Dr. Mortimer
estavam prontos no dia marcado, e partimos como combinado para Devonshire.
Sherlock Holmes foi comigo até a estação e, ao nos despedirmos, deu-me as suas
últimas instruções e conselhos.

    “Eu não vou exigir de sua mente
teorias ou desconfianças, Watson”, disse ele, “eu quero simplesmente
que me relate os fatos da maneira mais completa possível, pode deixar que cuido
da teorização”.

    “Que tipo de fatos?”, indaguei.

    “Qualquer coisa que possa parecer ter
relação, embora indireta, com o caso e, especialmente, as relações entre o
jovem Baskerville e seus vizinhos ou quaisquer novos particulares relativos à
morte de Sir Charles. Fiz algumas investigações nos últimos dias, mas os
resultados, como receava, foram negativos. Só uma coisa parece ser certa: o Sr.
James Desmond, que é o próximo herdeiro, é um senhor idoso de uma disposição
muito amável, de modo que esta perseguição não vem dele. Eu realmente acho que
podemos eliminá-lo completamente de nossos cálculos. Restam as pessoas que
realmente cercam Sir Henry Baskerville na charneca.”

    “Não seria bom, em primeiro
lugar,  livrarmo-nos desse casal
Barrymore?”

    “De maneira alguma. Você não poderia
cometer um erro maior. Se eles forem inocentes seria uma injustiça cruel, e se
eles forem culpados, devemos dar-lhes a chance de se entregarem. Não, não,
vamos preservá-los em nossa lista de suspeitos. Depois há um criado na Mansão,
se bem me lembro. Há dois agricultores na charneca. Há nosso amigo, Dr.
Mortimer, que eu acredito ser totalmente honesto e há a sua esposa, de quem
nada sabemos. Há este naturalista, Stapleton, e há a irmã, que dizem ser uma
jovem atraente. Há o Sr. Frankland, da Mansão Lafter, que também é um fator
desconhecido, e há um ou dois outros vizinhos. Essas são as pessoas que devem
ser o seu estudo especial.”

    “Farei o melhor que puder.”

    “Está com as armas, eu suponho?”

    “Sim, eu acho melhor levá-las.”

    “Certamente. Mantenha o seu revólver
por perto noite e dia e nunca relaxe a vigilância.”

    Nossos amigos já haviam reservado um vagão
de primeira classe, e estavam esperando por nós na plataforma.

    “Não, não temos notícia de qualquer
tipo,” disse o Dr. Mortimer em resposta às perguntas do meu amigo.
“Posso jurar uma coisa, que não fomos seguidos durante os últimos dois
dias. Nunca saímos sem manter uma vigilância restrita e ninguém escapou à nossa
atenção.”

    “Se mantiveram juntos, eu
presumo?”

    “Exceto ontem à tarde. Eu costumo
dedicar um dia de pura diversão quando venho para a cidade, então, passei no
museu do Colégio de Cirurgiões.”

    “E eu fui olhar as pessoas no
parque”, disse Baskerville. “Mas não tivemos nenhum problema de
qualquer espécie.”

    “Foi imprudente, da mesma
maneira”, disse Holmes, sacudindo a cabeça com muita gravidade. “Eu
imploro, Sir Henry, não saia sozinho. Uma grande desgraça pode cair sobre sua
cabeça se não tiver esse cuidado. Achou a sua outra bota?

    “Não, senhor, ela se foi para
sempre.”

    “De fato. Isso é muito interessante.
Bem, adeus”, acrescentou ele quando o trem começou a deslizar  pela plataforma. “Tenha em mente, Sir
Henry, uma das frases daquela velha lenda que o Dr. Mortimer leu para nós e
evite o pântano nas horas de escuridão, quando as forças do mal são
exaltadas.”

    Olhei de volta para a plataforma e vi a
figura alta e austera de Holmes de pé, imóvel, olhando fixamente para nós.

    A viagem foi rápida e agradável; passeia-a
travando um conhecimento mais íntimo com os meus dois companheiros e brincando
com o spaniel do Dr. Mortimer. Em
poucas horas a terra marrom havia se tornado avermelhada, o tijolo havia mudado
para o granito, e vacas vermelhas pastavam em campos bem cercados de sebes,
onde as gramíneas e a vegetação mais luxuriante revelavam um clima mais rico,
embora mais úmido. O jovem Baskerville olhava ansiosamente pela janela e
gritava alto de prazer ao reconhecer as características familiares do cenário
de Devonshire.

    “Eu estive numa boa parte do mundo
desde que saí daqui, Dr. Watson”, disse ele, “mas nunca vi um lugar
que se comparasse com este.”

    “Nunca vi um homem do Devonshire que
não jurasse por seu município”, comentei.

    “Isso depende da raça de homens tanto
quanto do município,” disse o Dr. Mortimer. “Um olhar sobre o nosso
amigo, presente aqui, revela a cabeça arredondada do celta, que carrega dentro
dela o entusiasmo celta e o poder de fixação. Digo que a cabeça do pobre Sir
Charles era de um tipo meio hibérnico, meio gaélico em suas características.
Mas o senhor era muito moço quando viu pela última vez a Mansão Baskerville,
não era?”

    “Eu era um menino por ocasião da morte
do meu pai, e nunca havia visto a Mansão, pois ele morava em uma pequena casa
na costa sul. De lá, eu fui direto para a casa de um amigo na América. Digo aos
senhores que tudo é tão novo para mim como para o Dr. Watson, e estou tão
ansioso quanto possível para ver a charneca.”

    “Está mesmo? Então o seu desejo é
facilmente atendido, porque aí está a sua primeira visão da charneca”,
disse o Dr. Mortimer, apontando pela janela do vagão.

Acima
dos quadrados verdes dos campos, da curva baixa de uma floresta, erguia-se à
distância uma colina cinzenta, melancólica, com um cume estranho, irregular,
indistinto e vago na distância, como alguma paisagem fantástica num sonho.
Baskerville permaneceu sentado por um longo tempo com os olhos fixos nela, e eu
li na sua fisionomia ansiosa o quanto ela representava para ele, essa primeira
visão daquele lugar estranho em que os homens do seu sangue haviam exercido o
poder por tanto tempo e deixado sua marca tão profunda. Ali estava ele sentado,
com seu terno de tweed e seu sotaque
americano, no canto de um prosaico transporte ferroviário; quando olhei para
seu rosto escuro e expressivo, senti mais do que nunca como ele era um
verdadeiro descendente daquela longa estirpe de homens de sangue nobre,
aguerridos e dominadores. Havia orgulho, coragem e força em suas sobrancelhas
grossas, as narinas sensíveis, e seus grandes olhos castanhos. Se naquela
charneca agreste uma investigação difícil e perigosa se apresentasse diante de
nós, este era pelo menos um companheiro em quem se podia confiar e assumir um
risco com a certeza de que ele iria bravamente compartilhar conosco.

O
trem parou numa pequena estação à margem da estrada e nós descemos. Do lado de
fora, além da cerca branca baixa, uma charrete com um par de cavalos estava nos
esperando. Nossa chegada foi evidentemente um grande acontecimento, porque o
chefe da estação e os carregadores se reuniram à nossa volta para levar a
bagagem. Era um lugar agreste, encantador e bucólico, mas fiquei surpreso ao
observar que junto ao portão estavam parados dois homens com uniformes escuros
de soldados que se inclinaram sobre seus fuzis curtos e olharam atentamente
para nós quando passamos. O cocheiro, um sujeitinho de feições abrutalhadas,
retorcidas, saudou Sir Henry Baskerville e, em alguns minutos depois, estávamos
voando rapidamente pela larga estrada branca. Pastagens onduladas subiam em
curva de ambos os lados, e velhas casas com frontões apareciam por entre a espessa
folhagem verde, mas atrás os campos pacíficos e ensolarados se erguiam escuros
contra o céu crepuscular, com a curva extensa e sombria do pântano interrompida
pelas colinas sinistras e irregulares.

    A charrete virou-se para uma estrada
lateral e fizemos uma curva ascendente através de atalhos usados por séculos de
rodas, margens altas dos dois lados, cobertos de musgo úmido e samambaias
pteridófitas e carnudas. Fetos bronzeados e espinheiros maculados brilhavam à
luz do sol poente. Ainda em constante ascensão, passamos por uma ponte estreita
de granito e contornamos uma torrente ruidosa que jorrava rapidamente para
baixo, espumando e rugindo em meio às pedras cinzentas. Estrada e torrente
corriam através de um vale denso, entre carvalhos e pinheiros. Em cada turno,
Baskerville soltava uma exclamação de alegria, olhando ansioso em volta e
fazendo perguntas incontáveis. Aos seus olhos, tudo parecia lindo, mas para mim
um tom de melancolia deitava-se sobre o campo, que tinha claramente a marca do
ano em declínio. Folhas amarelas acarpetavam os caminhos e caíam esvoaçando
sobre nós quando passávamos. O chocalhar das nossas rodas morreu à distância
quando passamos através da vegetação apodrecida – tristes oferendas, como me
pareceram, para a Natureza lançar diante da carruagem do herdeiro dos
Baskervilles que retornava.

    Uma curva íngreme de terreno coberto de
urzes, um estímulo periférico do pântano, estava diante de nós. No cume, rígida
e clara como uma estátua equestre sobre o seu pedestal, estava um soldado
montado, moreno e sério, com o fuzil suspenso em posição sobre o seu antebraço.
Ele estava vigiando a estrada pela qual viajávamos.

    “O que é isso, Perkins?”,
perguntou o Dr. Mortimer.

    Nosso cocheiro virou-se um pouco no seu
assento, em nossa direção.

    “Há um fugitivo de Princetown, senhor.
Faz três dias agora que ele está fora e os guardas vigiam todas as estradas e
todas as estações, mas até agora não o viram. Os agricultores por aqui não
gostam disso, senhor, e isso é um fato.”

    “Bem, sei que eles ganham cinco libras
se puderem dar informações.”

    “Sim, senhor, mas a possibilidade de
cinco libras é uma coisa muito arriscada em comparação com a possibilidade de
ter a garganta cortada. O senhor compreende, não é como qualquer condenado
comum. Esse é um homem que não se detém diante de nada.”

    “Quem é ele, então?”

    “É Selden, o assassino de Notting
Hill.”

Lembrei-me
bem do caso, porque foi um por que Holmes havia se interessado devido à
ferocidade peculiar do crime e à gratuita brutalidade que havia marcado todas
as ações do assassino. A comutação da sua sentença de morte tinha sido devido a
algumas dúvidas quanto à sua sanidade completa, tão atroz foi a sua conduta.
Nossa charrete havia chegado ao alto de uma elevação e diante de nós surgiu a
enorme extensão da charneca, salpicada de montículos funerários e picos
rochosos, retorcidos e escarpados. Um vento frio precipitou­se dela e
deixou-nos tremendo. Em algum ponto, naquela planície desolada, estava
emboscado esse homem diabólico, escondido numa toca, como um animal feroz, com
o coração cheio de perversidade contra toda a raça que o havia expulsado do seu
meio. Não faltava senão isto para completar o quadro sinistro e estéril, o
vento frio e o céu que escurecia. Mesmo Baskerville ficou em silêncio e apertou
mais o casaco em volta dele.

Havíamos
deixado os campos férteis atrás e abaixo de nós. Olhamos para eles atrás de nós
agora, com os raios inclinados de um sol baixo, transformando os córregos em
fios de ouro e brilhando sobre a terra vermelha revirada pelo arado e o amplo
emaranhado das florestas. A estrada diante de nós ficou mais sombria e selvagem
sobre as encostas castanho­avermelhadas e verde-oliva, salpicadas de pedras
gigantes. De vez em quando, passávamos por uma casa da charneca, com paredes e
telhados de pedra, sem nenhuma trepadeira para quebrar o seu contorno áspero.
De repente, olhamos para dentro de uma depressão parecida com uma taça,
salpicada de carvalhos e abetos atrofiados que tinham sido torcidos e dobrados
pela fúria de anos de tempestades. Duas torres altas e estreitas erguiam-se
sobre as árvores. O cocheiro apontou com o seu chicote.

“Mansão
Baskerville”, disse ele.

Seu
patrão havia se levantado e estava olhando com as faces coradas e os olhos
brilhantes. Alguns minutos mais tarde, havíamos chegado aos portões da casa do
porteiro, um labirinto de rendilhado fantástico em ferro forjado, com pilares
corroídos pelo tempo de cada lado, manchados de líquens e encimados pelas
cabeças de javali dos Baskervilles. O alojamento era uma ruína de granito negro
com vigas à mostra, mas diante dele havia um novo edifício, construído pela
metade, o primeiro fruto do ouro sul-africano de Sir Charles.

    Passamos pelo portão e entramos na avenida,
onde os ruídos das rodas foram novamente abafados pelas folhas; as árvores
antigas se atiravam para alto, formando um túnel sombrio sobre nossas cabeças.
Baskerville estremeceu quando olhou para o longo caminho escuro, no qual a casa
tremeluzia como um fantasma na extremidade oposta.

“Foi
aqui?”, ele perguntou em voz baixa.

    “Não, não, a Alameda do Teixos está no
outro lado.”

    O jovem herdeiro olhou em volta com um
rosto sombrio.

    “Não é de admirar que o meu tio
achasse que ia ter problemas num lugar como este”, disse ele. “É o
suficiente para assustar qualquer homem. Vou ter uma fileira de lâmpadas
elétricas até aqui dentro de seis meses, e vocês não o reconhecerão mais, com
mil velas Swan e Edison bem aqui em frente da porta de entrada.”

   A avenida abria­se numa ampla extensão de
turfa, e a casa estava diante de nós. Na luz fraca, pude ver que o centro era
um pesado bloco de construção, a partir do qual se projetava uma varanda. Toda
a frente estava coberta de hera, com um trecho aparado aqui e ali, onde uma
janela ou um brasão irrompia através do véu escuro. A partir desse bloco
central erguiam-se as torres gêmeas, antigas, com ameias, e perfuradas com
muitas lacunas. À direita e à esquerda das torres, ficavam alas mais modernas
de granito preto. Uma luz maçante brilhava através das pesadas janelas e, da
alta chaminé que saía do telhado muito inclinado, subia uma única coluna de
fumaça preta.

    “Benvindo, Sir Henry! Bem-vindo à
Mansão Baskerville!”

 Um homem alto havia saído da sombra da varanda
para abrir a porta da charrete. O vulto de uma mulher destacou-se contra a luz
amarela do vestíbulo. Ela saiu e ajudou o homem a desembarcar nossas
malas.   

“O
senhor não se importa de eu ir direto para casa, Sir Henry?, disse o Dr.
Mortimer. “Minha esposa está me esperando.”

    “Certamente o senhor ficará para
jantar conosco?”

    “Não, preciso ir. Provavelmente
encontrarei algum trabalho a minha espera. Eu ficaria para mostrar­lhe a casa,
mas Barrymore será um guia melhor do que eu. Adeus, e não hesite nunca, à noite
ou de dia, em mandar me chamar se puder ser-lhe útil.”

O
barulho das rodas extinguiu-se no caminho enquanto Sir Henry e eu entrávamos no
vestíbulo e a porta bateu pesadamente atrás de nós. Era um ótimo aposento em
que nos encontrávamos, grande, imponente e separado por painéis, com traves
enormes de carvalho escurecido pelo tempo. Na grande lareira antiga, atrás de
altos cães de ferro, um fogo de lenha crepitava e estalava. Sir Henry e eu
estendemos nossas mãos para ele, porque estávamos entorpecidos pela longa viagem.
Depois, ficamos olhando à nossa volta para a janela alta e fina de vidro
manchado de idade, os painéis de carvalho, as cabeças de veado, os brasões de
armas sobre as paredes, todos escuros e sombrios à luz velada da lâmpada
central.

    “É exatamente como eu imaginava”,
disse Sir Henry. “Não é a própria imagem de uma casa de família? E pensar
que esta deve ser a mesma mansão na qual minha gente morou durante quinhentos
anos. Parece­me solene pensar nisso.”

Vi
seu rosto moreno iluminar-se de entusiasmo juvenil enquanto olhava à sua volta.
A luz batia sobre ele onde estava parado, mas longas sombras estendiam-se pelas
paredes e pendiam como um dossel preto acima dele. Barrymore havia voltado dos
nossos quartos para onde levara nossa bagagem. Ele parou diante de nós com os
modos controlados de um criado bem treinado. Era um homem de aspecto notável,
alto, bonito, com uma barba preta, quadrada, pálido e de características
distintas.

    “O senhor desejaria que o jantar fosse
servido imediatamente, senhor?”

   
“Está pronto?”

    “Em poucos minutos, senhor. Os
senhores encontrarão água quente em seus quartos. Minha mulher e eu ficaremos
felizes, Sir Henry, de ficarmos com o senhor até o senhor ter tomado suas novas
providências, mas o senhor há de compreender que nas novas circunstâncias esta
casa exigirá uma criadagem considerável.”

    “Que novas circunstâncias?”

    “Eu só quis dizer, senhor, que Sir
Charles levava uma vida muito retirada e nós podíamos cuidar das suas
necessidades. O senhor, naturalmente, vai querer ter mais companhia e, assim,
vai precisar de mudanças em sua criadagem.”

    “Você quer dizer que você e sua mulher
desejam sair?”

    “Só quando for completamente
conveniente para o senhor.”

    “Mas a sua família tem estado conosco
há várias gerações, não tem? Eu lamentaria começar minha vida aqui rompendo uma
velha ligação de família.”

     Eu discerni alguns sinais de emoção no
rosto branco do mordomo.

    “Eu também sinto isso, senhor, e minha
mulher também. Mas para dizer a verdade, senhor, éramos ambos muito ligados a
Sir Charles e sua morte foi um choque para nós e tornou este ambiente muito
penoso para nós. Receio que nunca mais tenhamos tranquilidade de espírito na
Mansão Baskerville.”

    “Mas o que você pretende fazer?”

    “Não tenho nenhuma dúvida, senhor, de
que seremos bem-sucedidos nos estabelecendo em algum negócio. A generosidade de
Sir Charles nos deu os meios para isso. E agora, senhor, talvez seja melhor eu
lhes mostrar os seus quartos.”

Uma
galeria quadrada com balaustrada corria em volta do alto do velho vestíbulo,
com acesso por uma escada dupla. Desse ponto central, estendiam-se dois longos
corredores por toda a extensão do prédio, para os quais se abriam todos os
quartos. O meu próprio era na mesma ala que o de Baskerville e quase ao lado do
dele. Esses quartos pareciam ser muito mais modernos do que a parte central da
casa e é claro que as numerosas velas espalhadas por todos os lados
contribuíram um pouco para remover a impressão sombria que a nossa chegada
havia deixado em minha mente.

Mas a sala de jantar que se abria do
vestíbulo era um lugar de sombra e escuridão. Era um cômodo comprido com um
degrau separando o estrado, onde a família se sentava, da parte inferior
reservada para os seus dependentes. Numa extremidade, uma galeria do menestrel
a dominava. Traves negras cruzavam-se acima de nossas cabeças, com um teto
escurecido pela fumaça além delas. Com filas de archotes chamejantes para
iluminá-la, a cor e a grosseira exultação de um banquete de antigamente, ela poderia
ter se suavizado, mas agora, quando dois cavalheiros de roupas pretas estavam
sentados no pequeno círculo de luz lançado por uma lâmpada velada, a voz de uma
pessoa ficava abafada e o espírito submisso. Uma sombria linha de ancestrais em
todas as variedades de trajes, desde o cavalheiro Elisabetano para o fanfarrão
da Regência, fitava-nos do alto e intimidavam-nos com a sua companhia
silenciosa. Conversamos pouco, e pelo meu lado fiquei satisfeito quando a
refeição terminou e pudemos ir para a moderna sala de bilhar e fumar um
cigarro.

   
“Palavra, esse não é um lugar muito alegre”, disse Sir Henry.
“Suponho que a gente possa se adaptar a ele, mas me sinto um pouco fora do
quadro atualmente. Não me admiro que o meu tio ficasse um pouco apreensivo de
morar completamente sozinho numa casa como essa. Contudo, se isso lhe convém,
iremos deitar cedo esta noite e, talvez, as coisas possam parecer mais alegres
pela manhã.”

   
Afastei minhas cortinas antes de ir para a cama e olhei pela janela.

Ela se abria sobre o espaço gramado
que ficava em frente da porta do vestíbulo. Além, dois bosques de árvores
gemiam e agitavam–se ao um vento ascendente que aumentava. Uma meia-lua
irrompeu através das aberturas das nuvens que corriam. À sua luz fria, vi além
das árvores uma orla de rochas interrompida e a curva baixa e extensa do
pântano melancólico. Fechei a cortina, achando que a minha última impressão ia
ficar de acordo com o resto.

E, no entanto, essa não foi bem a
última. Sentia-me cansado e apesar disso alerta, virando-me inquieto de um lado
para o outro, procurando pelo sono que não vinha. Ao longe, um carrilhão batia
os quartos de hora, embora um silêncio mortal pesasse sobre a velha casa. De
repente, bem no meio da noite, chegou um som aos meus ouvidos, claro, ressonante
e inconfundível. Eram os soluços de uma mulher, o arquejo abafado e reprimido
de alguém dilacerado por uma mágoa incontrolável. Sentei-me na cama e fiquei
ouvindo atentamente. O barulho não podia ter sido longe e, certamente, era na
casa. Durante meia hora, esperei com cada nervo desperto, mas não veio nenhum
outro som, exceto, o do carrilhão e o farfalhar da hera sobre a parede.

 

 

CAPÍTULO 7

OS STAPLETONS DA CASA DE MERRIPIT

 

    A beleza fresca da manhã seguinte fez
alguma coisa para apagar de nossas mentes a impressão triste e cinza, que havia
sido deixado em nós dois da nossa primeira experiência na Mansão Baskerville.
Quando Sir Henry e eu nos sentamos para tomar café, o sol entrava pelas altas
janelas gradeadas, lançando manchas de aquarela de cores vivas sobre os brasões
de armas. O revestimento escuro das paredes brilhava como bronze aos raios
dourados, era difícil reconhecer que estávamos realmente na mesma sala que, na
noite anterior, tinha nos atingido melancolicamente as almas.

    “Acho que é a nós mesmos e não à casa
que temos que culpar!”, disse o baronete. “Estávamos cansados da
nossa viagem e congelados com a umidade, com a visão cinzenta do lugar. Agora
estamos descansados e bem, portanto, tudo está alegre mais uma vez.”

    “E ainda não foi totalmente uma
questão de imaginação”, respondi. “O senhor, por exemplo, ouviu
alguém, uma mulher, acho eu, chorando no meio da noite?”

    “Isso é curioso, porque quando eu
estava meio dormindo, ouvi algo do tipo. Esperei bastante tempo, mas não ouvi
mais nada, conclui que havia sonhado.”

    “Eu ouvi distintamente, e tenho
certeza de que era realmente o soluçar de uma mulher.”

    “Devemos perguntar a respeito
imediatamente.” Ele tocou a campainha e perguntou a Barrymore se ele podia
explicar o acontecido. Pareceu-me que as feições pálidas do mordomo ficaram
ainda um pouco mais pálidas quando ouviu a pergunta do seu patrão.

    “Há apenas duas mulheres na casa, Sir
Henry,” ele revelou. ” Uma é a copeira, que dorme na outra ala. A
outra é a minha mulher, e posso afirmar que o som não pode ter vindo
dela.”

    E, no entanto, ele mentiu quando disse
isso, pois acontece que, depois do café, encontrei a Sra. Barrymore no longo
corredor com o sol batendo em cheio sobre o seu rosto. Ela era uma mulher
grande, impassível, de feições grosseiras e com uma expressão severa e imóvel
na boca. Mas seus olhos denunciadores estavam vermelhos e olharam para mim por
entre pálpebras inchadas. Foi ela, então, que chorou durante a noite, e se ela
fez isso, seu marido devia saber disso. No entanto, ele havia assumido o risco
evidente da descoberta ao declarar que não fora ela. Por que ele havia feito
isso? E por que ela chorara tão amargamente? Em torno desse homem pálido, bonito
e de barba preta já estava acumulando uma atmosfera de mistério e de
melancolia. Fora ele, o primeiro a descobrir o corpo de Sir Charles, e tínhamos
apenas a sua palavra para todas as circunstâncias que levaram à morte do velho.
Seria possível que fora Barrymore, afinal, quem tínhamos visto na cabine do
coche na Regent Street? A barba poderia muito bem ter sido a mesma. O cocheiro
havia descrito um homem um pouco mais baixo, mas essa impressão poderia
facilmente ter sido errônea. Como poderia eu tirar a dúvida definitivamente?
Obviamente, a primeira coisa a fazer era falar com o agente do correio de
Grimpen e descobrir se o telegrama tinha sido entregue realmente nas próprias
mãos de Barrymore. Fosse a resposta qual fosse, eu devia, pelo menos, ter algo a
relatar a Sherlock Holmes.

                Sir Henry tinha numerosos
documentos para examinar após o café, de modo que o momento era propício para a
minha excursão. Foi uma agradável caminhada de quatro quilômetros ao longo da
margem da charneca, levando-me, finalmente, a uma pequena aldeia cinzenta, em
que dois edifícios maiores, o que provou ser um deles a pousada e o outro a
casa do Dr. Mortimer, erguiam-se bem acima do resto.  O agente do correio, que era também o dono do
armazém da aldeia, lembrava-se claramente do telegrama.

  “Certamente, senhor”, disse ele,
“mandei entregar o telegrama ao Sr. Barrymore exatamente como
ordenado.”

    “Quem entregou?”

   “Meu filho aqui. James, você entregou o
telegrama ao Sr. Barrymore na Mansão na semana passada, não entregou?”

    “Sim, pai, eu entreguei.”

    “Em suas próprias mãos?”,
perguntei.

    “Bem, ele estava no sótão, no momento,
de modo que eu não poderia entregá-lo em suas próprias mãos, mas o entreguei em
mãos da Sra. Barrymore e ela prometeu entregá-lo imediatamente.”

    “Você viu o Sr. Barrymore?”

    “Não, senhor, eu lhe disse que ele
estava no sótão.”

    “Se você não o viu, como sabe que ele
estava no sótão?”

    “Bem, certamente, a sua própria mulher
deveria saber onde ele está”, disse o agente do correio, irritado.
“Ele não recebeu o telegrama? Se houve algum engano compete ao próprio Sr.
Barrymore reclamar.”

    Parecia impossível prosseguir com o
inquérito para mais longe, mas ficou claro que, apesar do artifício de Holmes,
não tínhamos nenhuma prova de que Barrymore não estivesse estado em Londres o
tempo todo. Suponhamos, então, que esse mesmo homem foi o último a ver Sir
Charles vivo e o primeiro a seguir o novo herdeiro quando esse regressou à
Inglaterra. E daí? Seria ele o instrumento de outros ou tinha ele algum projeto
sinistro próprio? Que interesse podia ter ele em perseguir a família
Baskerville? Pensei no estranho aviso cortado do editorial do Times. Seria isso
obra sua ou era possivelmente obra de alguém inclinado a contrariar os seus planos?
O único motivo concebível era aquele que havia sido sugerido por Sir Henry, que
se a família pudesse ser afugentada um lar confortável e permanente estaria
garantido para os Barrymores. Mas certamente tal explicação seria completamente
inadequada para esclarecer a profunda e sutil intriga que parecia estar sendo
tecida, como uma teia invisível, em torno do jovem baronete. Holmes havia dito
que nenhum caso mais complexo chegara até ele em toda a sua longa série de
investigações sensacionais.  Eu orei,
enquanto caminhava de volta, ao longo da estrada cinzenta e solitária para que
o meu amigo pudesse, em breve, estar livre 
de suas preocupações e pudesse vir tirar essa pesada carga de
responsabilidade dos meus ombros.

    De repente, meus pensamentos foram
interrompidos pelo ruído de pés correndo atrás de mim e por uma voz que me
chamava pelo nome. Virei­me, esperando ver o Dr. Mortimer, mas para surpresa
minha era um estranho que estava me perseguindo. Era um homem pequeno, magro,
bem barbeado, com expressão afetada, louro e de queixo pequeno, entre trinta e
quarenta anos de idade, vestido com um terno cinzento e usando um chapéu de
palha. Uma caixa de lata para espécimes botânicos pendia do seu ombro e ele
segurava uma rede verde para borboletas em uma das mãos.

“O
senhor, estou certo, vai desculpar minha presunção, Dr. Watson”,  disse ele ao chegar ofegante onde eu estava.
“Aqui na charneca somos pessoas simples e não esperamos pelas
apresentações formais. O senhor provavelmente deve ter ouvido o meu nome do
nosso amigo comum, Mortimer. Eu sou Stapleton, da Casa de Merripit.”

    “A sua rede e a sua caixa teriam me
dito o mesmo”, disse eu, “porque eu sabia que o Sr. Stapleton era
naturalista. Mas como o senhor me conhece?”

    “Eu estive visitando Mortimer, e ele o
apontou para mim da janela do seu consultório quando o senhor passou. Como o
nosso caminho fica na mesma direção pensei que pudesse alcançá-lo e
apresentar-me. Espero que Sir Henry não tenha piorado com a sua viagem?”

    “Ele está muito bem, obrigado.”

    “Estávamos todos com bastante medo de
que após a triste morte de Sir Charles o novo baronete se recusasse a morar
aqui. É pedir muito a um homem rico vir para cá e enterrar-se num lugar como
este, mas não preciso dizer-lhe que isso significa muito para a região. Sir
Henry não tem, suponho, nenhum medo supersticioso a respeito?”

    “Eu não creio que isso seja
provável.”

    “É claro que o senhor conhece a lenda
do cão demônio que assombra a família?”

    “Eu ouvi algo sobre isso.”

    “É extraordinário como os camponeses
são crédulos por aqui! Qualquer número deles estão prontos para jurar que viram
uma criatura na charneca”. Ele falou com um sorriso, mas me pareceu, por
seus olhos, que ele levava o assunto mais a sério. “A história empolgou a
imaginação de Sir Charles, e não tenho nenhuma dúvida de que isso levou ao seu
trágico fim.”

    “Mas como?”

    “Seus nervos estavam tão excitados que
o aparecimento de qualquer cão pode ter tido um efeito fatal sobre o seu
coração doente. Imagino que ele realmente tenha visto algo do tipo naquela
última noite na Alameda dos Teixos. Temia que algum desastre pudesse ocorrer,
pois eu gostava muito do velho e eu sabia que o seu coração estava fraco.”

    “Como o senhor sabia disso?”

    “Meu amigo Mortimer me disse.”

    “O senhor acha, então, que algum cão
perseguiu Sir Charles e que, em consequência, ele morreu de medo?”

   “O senhor tem alguma explicação
melhor?”

   “Eu não cheguei a nenhuma
conclusão.”

   “E o Sr. Sherlock Holmes chegou?”

  As palavras me tiraram a respiração por um
instante, mas um olhar para o rosto plácido e olhos firmes de meu companheiro
mostraram que nenhuma surpresa tencionava me causar.

    “É inútil para nós fingir que não o
conhecemos, Dr. Watson”, disse ele. “As histórias do seu detetive
chegaram até nós aqui, e o senhor não poderia torná-lo célebre sem, também,
ficar conhecido. Quando Mortimer me disse o seu nome, não pôde negar a sua
identidade. Se o senhor está aqui, então, conclui-se que o Sr. Sherlock Holmes
está interessado no assunto e eu estou, naturalmente, curioso para saber qual é
a visão que ele adotará.”

    “Receio não poder responder a essa
pergunta.”

    “Posso perguntar se ele vai nos honrar
ele próprio com uma visita?”

    “Ele não pode deixar a cidade no
momento. Ele tem outros casos a que dedicar sua atenção.”

    “Que pena! Ele podia lançar alguma luz
nesse que é tão obscuro para nós. Mas quanto às suas próprias pesquisas, se
houver alguma maneira possível pela qual lhe possa ser útil, espero que me dê
suas ordens. Se eu tiver alguma indicação quanto à natureza das suas suspeitas,
ou como o senhor se propõe a investigar o caso, talvez, eu possa dar­lhe alguma
ajuda ou conselhos.

    “Eu lhe asseguro que estou aqui
simplesmente em uma visita ao meu amigo, Sir Henry, e que eu não preciso de
ajuda de qualquer espécie.”

    “Excelente!”, disse Stapleton.
“Está perfeitamente certo por ser cauteloso e discreto. Fui censurado com
justiça pelo que acho que foi uma intromissão injustificável e prometo-lhe que
não mencionarei o assunto outra vez.”

    Tínhamos chegado a um ponto onde um caminho
estreito e gramado desviava-se da estrada e acabava serpenteando por outro lado
a charneca. À direita, havia uma colina íngreme, salpicada de rochas que, em
épocas passadas, fora cortada para extração de uma pedreira de granito. A face
que estava voltada para nós formava um precipício escuro, com samambaias e
espinheiros, que cresciam de seus nichos. De uma elevação distante, flutuava
para o alto uma nuvem de fumaça cinzenta.

    “Uma caminhada moderada por este
caminho nos leva à Casa de Merripit”, disse ele. “Talvez o senhor
possa dispor de uma hora para eu poder ter o prazer de apresentá-lo a minha
irmã.”

    Meu primeiro pensamento foi que eu deveria
estar ao lado de Sir Henry. Mas depois me lembrei da pilha de papéis que a mesa
do seu escritório estava cheia. Ele estava certo de que eu não poderia ajudá-lo
nisso. E Holmes havia dito expressamente que eu deveria estudar os vizinhos em
torno da charneca. Aceitei o convite de Stapleton e nós nos viramos e juntos
seguimos pelo caminho.

    “É um lugar maravilhoso a
charneca”, disse ele, olhando em volta para as descidas ondulantes, longas
camadas verdes, com cristas de granitos irregulares, ancorados por intervalos
fantásticos. “Nunca se cansa da charneca. O senhor não pode imaginar os
segredos maravilhosos que ela contém. Ela é tão grande e tão estéril e tão
misteriosa.”

    “O senhor a conhece bem, então?”

    “Estou aqui há apenas dois anos. Os moradores
me chamariam de um recém-chegado. Viemos pouco depois de Sir Charles se
estabelecer. Mas os meus gostos me levaram a explorar todas as partes da região
em volta e acho que deve haver poucos homens que a conhecem melhor do que
eu.”

    “É difícil saber?”

    “Muito difícil. O senhor vê, por
exemplo, essa grande planície para o norte, com estranhas colinas saindo dela.
O senhor observa alguma coisa notável sobre ela?”

    “Seria um lugar raro para um
galope.”

    “O senhor naturalmente poderia pensar
assim e a ideia custou várias vidas antes. Está vendo aqueles pontos verdes
brilhantes espalhados espessamente sobre ela?”

    “Sim, eles parecem mais férteis do que
o resto.”

      Stapleton riu.

    “Esse é o grande Pântano de
Grimpen”, revelou ele. “Um passo em falso lá significa a morte
certeira para um homem ou um animal. Ontem mesmo vi um dos pôneis da charneca
marchar para dentro dele. E não saiu mais. Vi sua cabeça por muito tempo
esticando, parte do pescoço fora do lodaçal, mas este o sorveu por fim. Mesmo
nas épocas de secas é um perigo atravessá-lo, e, após as chuvas de outono, é um
lugar horrível. Ainda assim eu posso encontrar meu caminho até o próprio centro
dele e voltar vivo. Por Deus, lá está outro desses miseráveis pôneis!”

    Alguma coisa marrom estava se mexendo e
agitando-se entre os caniços verdes. Em seguida, apareceu um longo pescoço e
uma cabeça equina, contorcendo-se em agonia e um relincho terrível ecoou pela
charneca, deixando-me gelado de horror, mas os nervos do meu companheiro
pareciam ser mais fortes do que os meus.

    “Ele se foi!”, disse ele. “A
lama o tem agora. Dois, em dois dias, e muitos mais, talvez, pois eles têm o
hábito de ir lá, no tempo de seca, e nunca sabem a diferença até que o lodo os
tem em suas garras. É um lugar ruim o grande Pântano de Grimpen.”

    “E o senhor diz que pode
penetrá-lo?”

    “Sim, há um ou dois caminhos que um
homem muito ativo pode tomar. Descobri-os.”

    “Mas por que o senhor deseja entrar em
lugar tão horrível?”

    “Bem, o senhor está vendo as colinas
além? Elas são realmente ilhas cercadas por todos os lados pelo lamaçal
intransitável, que se arrasta em volta delas ao longo de anos; é lá que as
plantas raras e as borboletas estão, se a gente tiver a esperteza de
alcançá-las.”

    “Eu vou tentar a minha sorte algum
dia.”

    Ele me olhou com uma cara de surpresa.

    “Pelo amor de Deus tire essa ideia de
sua mente”, disse ele. “A sua morte recairia sobre a minha cabeça.
Afirmo-lhe que não haveria a menor possibilidade do senhor voltar vivo. E só me
lembrando de certos pontos de referência complexos que sou capaz de fazer
isso.”

   “Ora!”, exclamei. “O que é
isso?”

Um
gemido longo e baixo, indescritivelmente triste, varreu a charneca. Ele encheu
todo o ar e, contudo, era impossível dizer de onde veio. De um sopro maçante
cresceu até um rugido profundo e depois baixou novamente para um murmúrio
melancólico, pulsante mais uma vez. Stapleton olhou para mim, corri uma
expressão curiosa no rosto.

“Lugar
estranho!”, disse ele.

“Mas
o que é isso?”

    “Os camponeses dizem que é o Cão dos
Baskervilles chamando sua presa. Ouvi-lo uma ou duas vezes antes, mas nunca tão
alto assim.”

    Olhei em volta, com um arrepio de medo no
meu coração, para a planície enorme ondulante, maculada de manchas verdes de
juncos. Nada se movia sobre a vasta extensão, exceto, um par de corvos, que
crocitavam em voz alta atrás de nós.

    “O senhor é um homem instruído. Não
acredita em bobagens como essa, acredita?”, eu indaguei. “Qual a
causa de tão estranho som?”

    “O pântano faz barulhos estranhos, às
vezes. É o assentamento da lama ou a água subindo, ou algo assim.”

    “Não, não, isso foi uma voz
viva.”

    “Bem, talvez fosse. Você já ouviu um
alcaravão?”

    “Não, eu nunca ouvi.”

    “É um pássaro muito raro –
praticamente extinto na Inglaterra -, mas todas as coisas são possíveis no
pântano. Sim, eu não ficaria surpreendido ao saber que acabamos de ouvir o
grito do último dos alcaravão.”

    “Foi a coisa mais estranha que já ouvi
na minha vida.”   

    “Sim, é completamente estranha. Olhe
para além da encosta. Que acha deles?”

    Toda a encosta íngreme estava coberta de
anéis circulares cinzentos de pedra, uma porção deles, pelo menos.

    “O que são? Rebanho de
carneiros?”

    “Não, são as casas de nossos dignos
antepassados. O homem pré-histórico vivia densamente na charneca e, como
ninguém em particular viveu lá desde então, encontramos todas as suas pequenas
instalações exatamente como eles as deixaram. São suas cabanas sem telhados. O senhor
pode ver até a lareira e o leito deles se tiver a curiosidade de entrar.”

    “Mas é bem uma cidade. Quando foi
habitada?”

    “Pelo homem neolítico; sem data.”

    “O que eles fizeram?”

    “Eles levavam seu gado para pastar
nestas encostas, aprenderam a cavar o estanho quando a espada de bronze começou
a substituir o machado de pedra. Olhe para a vala grande na colina oposta. Essa
é a sua marca. Sim, encontrará alguns pontos muito singulares sobre o pântano,
Dr. Watson. Oh, desculpe-me um instante! É certamente uma cyclopides.”

    Uma pequena borboleta ou mariposa voara em
nosso caminho e, em um instante, Stapleton estava correndo com extraordinária
energia e velocidade em busca dela. Para meu espanto, a criatura voou direto
para o grande pântano, e meu conhecido não parou por um segundo, saltando de
tufo em tufo atrás dela, acenando no ar com a sua rede verde. Suas roupas
cinzentas e os gestos irregulares, em ziguezague, faziam­no parecer, ele
próprio, uma mariposa desmedida. Eu estava assistindo a sua perseguição com uma
mistura de admiração por sua atividade extraordinária e medo dele pisar na lama
traiçoeira, quando ouvi o som de passos e, voltando-se, deparei com uma mulher
perto de mim no caminho. Ela tinha vindo da direção em que a pluma de fumaça
indicava a posição da casa de Merripit, mas a depressão do pântano havia
escondido até que ela estivesse bem perto.

    Eu não podia duvidar que essa fosse a
Senhorita Stapleton de quem me haviam falado, uma vez que damas de qualquer
tipo devem ser poucas na charneca e eu lembrei que eu tinha ouvido alguém
descrevê-la como sendo de uma beleza ímpar. A mulher que se aproximou de mim
era certamente isso, um tipo raro de se ver. Não podia haver um contraste maior
entre irmão e irmã, porque Stapleton tinha tonalidade neutra, com cabelos
claros e olhos cinzentos, enquanto ela era mais morena do que qualquer outra
que eu tivesse visto na Inglaterra, magra, elegante e alta. Ela tinha um rosto
orgulhoso, finamente cinzelado, tão regular que poderia parecer impassível, não
fosse a boca sensível e os lindos olhos escuros e ansiosos. Com o seu talhe
perfeito e o vestido elegante ela era, de fato, uma estranha aparição no
caminho de uma charneca solitária. Seus olhos estavam sobre o irmão quando me
virei e, nesse momento, ela acelerou os passos em minha direção. Eu tinha
levantado o meu chapéu e estava prestes a fazer algum comentário explicativo,
quando suas próprias palavras conduziram todos os meus pensamentos numa nova
direção.

    “Volte!”, ela disse. “Vá
direto para Londres, imediatamente.”

    Eu só conseguia olhar para ela com uma
estúpida surpresa. Seus olhos brilhavam sobre mim e ela bateu no chão,
impaciente com o pé.

    “Por que eu deveria voltar?”,
perguntei.

    “Eu não posso explicar”, ela
falou em voz baixa e ansiosa, com a língua presa, um curioso balbuciar.
“Mas pelo amor de Deus, faça isso sem me questionar. Volte e nunca mais
coloque os pés na charneca de novo.”

    “Mas eu acabei de chegar.”

    “Homem, homem!”, exclamou ela.
“O senhor não pode perceber quando um aviso é para o seu próprio bem?
Volte para Londres! Ainda nesta noite! Fique longe deste lugar a qualquer
custo! Quieto, meu irmão está chegando. Nem uma palavra do que eu disse. Será
que o senhor se importaria de apanhar para mim aquela orquídea ali? Estamos
muito ricos em orquídeas na charneca, embora, é claro, o senhor esteja um pouco
atrasado para ver as belezas do lugar.”

    Stapleton havia abandonado a perseguição e
voltava até nós ofegante e corado pelo esforço.

    “Olá, Beryl!”, disse ele, e
pareceu-me que o tom de sua saudação não era de todo cordial.

    “Bem, Jack, você está muito
acalorado.”

    “Sim, eu estava correndo atrás de uma
cyclopides. Ela é muito rara e raramente encontrada no final do outono. Que
pena ela ter escapado!” Ele falou despreocupadamente, mas seus pequenos
olhos claros olhavam incessantemente da moça para mim.

    “Vejo que já se conheceram.”

    “Sim. Eu estava dizendo a Sir Henry
que era um pouco tarde para ele ver as verdadeiras belezas da charneca.”

    “Quem você pensa que ele seja?”

    “Eu imagino que deve ser Sir Henry
Baskerville.”

    “Não, não”, disse eu.
“Apenas um plebeu humilde, mas seu amigo. Meu nome é Dr. Watson.”

    Um rubor de irritação passou sobre seu
rosto expressivo. “Houve um mal entendido”, disse ela.

    “Ora, vocês não tiveram muito tempo
para falar”, comentou o irmão com os olhos interrogadores.

    “Eu falei como se o Dr. Watson fosse
um residente em vez de simplesmente um visitante”, disse ela. “Isso
não importa para ele se é cedo ou tarde para as orquídeas. Mas o senhor virá,
não é, ver a casa Merripit?”

Uma
curta caminhada levou­nos até ela, uma casa sombria da charneca, uma casa
desolada da charneca, certa vez, a fazenda de algum criador nos velhos dias
prósperos, mas agora, reformada e transformada numa moradia moderna. Um pomar
cercava­a, mas as árvores, como é comum na charneca, eram enfezadas e murchas,
e o aspecto de todo o lugar era miserável e melancólico. Fomos admitidos por um
estranho, enrugado, servo enferrujado revestido de idade, que parecia estar em
harmonia com a casa. Dentro, porém, havia salas grandes, mobiliadas com uma
elegância em que eu parecia reconhecer o gosto da senhora.  Quando olhei de suas janelas para a charneca
interminável, salpicado de granito ondulando sem interrupção até o horizonte
mais distante, não pude senão ficar curioso com o que podia ter atraído esse
homem altamente instruído e essa mulher linda para morarem num lugar desses.

    “Que local para escolher e morar,
não?”, disse ele, como em resposta ao meu pensamento. “Apesar de
tudo, conseguimos nos sentir razoavelmente felizes, não é, Beryl?

    “Muito felizes”, disse ela, mas
não havia nenhuma convicção em suas palavras.

    “Eu tinha uma escola”, disse
Stapleton. “Era no norte do país. O trabalho para um homem do meu
temperamento era mecânico e pouco interessante, mas o privilégio de viver com
os jovens, de ajudar a moldar aquelas mentes moças e de imprimir nelas o próprio
caráter e ideais da gente, era-me muito caro. Contudo, a sorte estava contra
nós. Uma grave epidemia eclodiu na escola e três dos meninos morreram. Nunca me
recuperei do golpe e muito do meu capital estava irremediavelmente perdido.
Ainda assim, se não fosse pela perda da companhia encantadora dos meninos, eu
poderia alegrar-me de minha própria desgraça, pois, com os meus gostos fortes
para a botânica e zoologia, acho um campo ilimitado de trabalho aqui, e minha
irmã é tão dedicada à Natureza quanto eu sou. Tudo isso, Dr. Watson, foi
trazido à sua mente, devido à sua expressão, quando olhou o pântano de nossa
janela.”

    “Certamente passou pela minha cabeça
que poderia ser um pouco maçante, menos para o senhor, talvez, do que para a
sua irmã.”

    “Não, não, eu nunca estou
aborrecida”, disse ela rapidamente.

    “Temos livros, temos os nossos
estudos, e temos vizinhos interessantes. Dr. Mortimer é um homem muito
instruído em sua própria especialidade. O pobre Sir Charles também foi um
companheiro admirável. Nós o conhecemos bem e sinto falta dele mais do que eu
posso dizer. O senhor acha que seria intromissão minha se eu fosse esta tarde
visitar Sir Henry para conhecê-lo?”

    “Tenho certeza de que ele ficaria
encantado.”

“Então,
talvez o senhor mencionasse que proponho fazer isso. Podemos em nossa maneira
humilde fazer algo para tornar as coisas mais fáceis para ele até se acostumar
com o seu novo ambiente. O senhor quer subir, Dr. Watson, e examinar a minha
coleção de lepidópteros? Acho que ela é a mais completa do sudoeste da
Inglaterra. Quando o senhor tiver terminado de examiná-la, o almoço estará
quase pronto.”

        Mas eu estava ansioso para voltar para
o meu posto. A melancolia da charneca, a morte do infeliz pônei, o estranho som
que havia sido associado com a sombria lenda dos Baskervilles, todas essas
coisas tingiram meus pensamentos de tristeza. Em seguida, no topo dessas
impressões mais ou menos vagas, viera o aviso definido e distinto da Senhorita
Stapleton, entregue com intenso fervor tal que eu não podia duvidar de haver
algum motivo grave e profundo por trás dele. Eu resisti a toda a pressão para
ficar para o almoço e iniciei imediatamente a minha viagem de regresso, tomando
o caminho coberto de relva pelo qual havíamos vindo.

    Parece, no entanto, que devia haver algum
atalho para aqueles que o conheciam, pois antes de eu ter chegado à estrada
fiquei espantado ao ver a Senhorita Stapleton sentada numa pedra ao lado do
caminho. Seu rosto estava lindamente corado pelo esforço e ela apertava a mão
contra peito.  

 “Corri o tempo todo a fim de alcançá-lo,
Dr. Watson”, disse ela. “Não tive sequer tempo para colocar o meu
chapéu. Não posso demorar ou o meu irmão dará falta de mim. Eu queria dizer ao
senhor como lamento o estúpido engano que cometi pensando que o senhor fosse
Sir Henry. Por favor, esqueça as palavras que eu disse,  que não se aplicam absolutamente ao
senhor.”

    “Mas não posso esquecê-las, Senhorita
Stapleton”, eu disse. “Sou amigo de Sir Henry, e o seu bem­estar é
uma preocupação que me diz muito de perto. Diga-me por que a Senhorita estava
tão ansiosa para que Sir Henry voltasse para Londres?”

    “Capricho de mulher, Dr. Watson.
Quando o senhor me conhecer melhor compreenderá que nem sempre posso dar os
motivos das coisas que digo ou faço.”

    “Não, não. Lembro-me da excitação em
sua voz. Lembro-me de olhar em seus olhos. Por favor, por favor, seja franca
comigo, senhorita Stapleton, pois desde que cheguei aqui estou consciente das
sombras em torno de mim. A vida tornou-se como um grande Pântano de Grimpen,
com pequenos trechos verdes em toda parte nos quais a gente pode se afundar e
sem nenhum guia para indicar o caminho. Diga-me, então, o que foi que a
Senhorita quis dizer e prometo-lhe transmitir o seu aviso a Sir Henry.”

    Uma expressão de irresolução passou por um
instante sobre o seu rosto, mas seus olhos tinham endurecidos novamente quando
ela me respondeu:

    “O senhor dá muita importância a isso,
Dr. Watson”, disse ela. “Meu irmão e eu estávamos muito chocados com
a morte de Sir Charles. Nós o conhecíamos intimamente e sabíamos que o seu
passeio favorito era pela charneca até a nossa. Ele ficou profundamente
impressionado pela maldição que pairava sobre a sua família e quando ocorreu
essa tragédia, percebi, naturalmente, que devia haver algum fundamento nos
medos que ele havia expressado. Fiquei aflita, portanto, ao saber que outro
membro da família viria morar aqui, achei que ele devia ser advertido do
perigo. Isso era tudo que eu queria transmitir.”

    “Mas qual é o perigo?”

    “O senhor conhece a história do
cão?”

    “Eu não acredito em tal absurdo.”

    “Mas eu acredito. Se o senhor tiver
qualquer influência sobre Sir Henry, afaste-o deste lugar que tem sido fatal
para a sua família. O mundo é grande. Porque quereria morar num lugar
perigoso?”

    “Por que este é um lugar perigoso?
Essa é a natureza de Sir Henry. Receio que, a menos que a Senhorita possa dar
uma informação mais definida do que essa, será impossível fazê-lo se mudar
daqui.”

    “Eu não posso dizer nada definitivo,
porque eu não sei de nada definido.”

    “Peço-lhe que responda a mais uma
pergunta, Senhorita Stapleton. Se a senhorita não pretendia me dizer mais do
que foi dito, quando me falou pela primeira vez, por qual motivo não quer que
seu irmão saiba do teor da nossa conversa? Não há nada para que ele, ou
qualquer outra pessoa, possa se opor.”

    “Meu irmão está muito ansioso para que
a Mansão seja habitada, pois ele acha que isso é para o bem das pessoas pobres
da charneca. Ele ficaria muito irritado se soubesse que eu disse qualquer coisa
que possa induzir Sir Henry a ir embora. Mas cumpri meu dever e agora não vou
dizer mais nada. Devo voltar ou ele vai sentir minha falta e suspeitará que
falei com o senhor. Adeus!”  Ela
virou-se e, em instantes, desapareceu entre as rochas espalhadas, enquanto eu,
com a minha alma cheia de vagos receios, segui meu caminho, em direção a Mansão
Baskerville.

 

 

CAPÍTULO 8

PRIMEIRO RELATÓRIO DO DR. WATSON

 

    A partir deste ponto em diante, vou seguir
o curso dos acontecimentos, transcrevendo minhas próprias cartas para Sherlock
Holmes, que estão diante de mim sobre a mesa. Está faltando uma página, mas, a
não ser por isso, elas estão exatamente como foram escritas e revelam meus
sentimentos e desconfianças na época, com mais precisão e clareza do que se eu
recorresse a minha memória sobre estes trágicos acontecimentos.

 

Mansão
Baskerville, 13 de outubro.

Meu
caro Holmes,

Minhas
cartas e telegramas anteriores mantiveram-no bastante informado quanto a tudo o
que tem ocorrido neste canto do mundo esquecido por Deus. Quanto mais tempo se
fica aqui, mais o espírito da charneca impregna a alma da gente com a sua
vastidão e também o seu encanto sombrio. Uma vez que se esteja sobre o seu
seio, deixa-se todos os vestígios da Inglaterra moderna para trás, mas por
outro lado, toma-se consciência, em toda parte, das casas e do trabalho do povo
pré-histórico. Por todos os lados, enquanto se anda, estão as casas destas
pessoas esquecidas, com seus túmulos e enormes monólitos que se supõe terem
marcado seus templos. Quando se olha para suas cabanas de pedra cinzenta contra
as encostas fragosas das colinas, deixa-se as próprias eras para trás e, se
virmos um homem vestido de peles engatinhar para fora da sua porta baixa, pondo
uma flecha com ponta de sílex na corda do seu arco, acharemos que sua presença
ali é mais natural do que a nossa própria. O estranho é que eles tenham vivido
tão concentrados no que deve ter sido sempre um solo muito estéril. Não sou
nenhum arqueólogo, mas posso imaginar que eles constituíam uma raça privada e
avessa às guerras, forçada a aceitar aquilo que nenhuma outra ocuparia.

Tudo
isso, entretanto, nada tem a ver com a missão para a qual você me mandou e,
provavelmente, será muito pouco interessante para a sua mente severa e prática.
Ainda posso me lembrar da sua completa indiferença quanto a se o Sol girava em
torno da Terra ou a Terra em torno do Sol. Permita­me, portanto, voltar aos
fatos relativos a Sir Henry Baskerville.

Se
você não recebeu nenhum relatório nos últimos dias é porque até hoje não havia
nada de importante a comunicar. Depois ocorreu um fato muito surpreendente, que
contarei a você no devido tempo. Mas, primeiro de tudo, preciso mantê-lo em
contato com alguns dos outros fatores da situação.

Um
destes, em relação ao qual pouco falei, é o condenado escondido na charneca. Há
fortes razões para crer que ele foi embora, o que é um alívio considerável para
os chefes de família desta região. Quinze dias se passaram desde a sua fuga,
durante a qual ele não foi visto e nada se ouviu falar sobre ele. Certamente é
inconcebível que ele possa ter ficado na charneca durante todo esse tempo.
Naturalmente, no que diz respeito ao seu esconderijo não há absolutamente
nenhuma dificuldade. Qualquer uma dessas cabanas de pedra lhe proporcionaria um
lugar conveniente. Mas não há nada para comer a menos que ele pegasse e matasse
uma das ovelhas da charneca. Achamos, portanto, que ele foi embora, e, em
consequência, os fazendeiros isolados dormem melhor.

Somos
quatro homens capazes nesta casa, de forma que podemos cuidar bem de nós
mesmos, mas confesso que tenho tido momentos de inquietação, quando penso nos
Stapletons. Eles moram a quilômetros de qualquer ajuda. Há uma criada e um
empregado velho, a irmã e o irmão, o último, um homem muito forte. Eles
ficariam impotentes nas mãos de um sujeito desesperado como esse criminoso de
Notting Hill, se este conseguisse porventura entrar. Tanto Sir Henry, como eu,
estamos preocupados com a situação deles e foi sugerido que Perkins, o criado,
fosse dormir lá, mas Stapleton não quer ouvir falar disso.

O
fato é que o nosso amigo, o barão, começa a demonstrar um interesse
considerável pela nossa bela vizinha. Não é de admirar, porque o tempo pesa
fortemente neste lugar solitário para um homem ativo como ele e ela é uma
mulher muito fascinante e bela. Há algo tropical e exótico em relação a ela que
forma um contraste singular com o seu irmão frio e pouco emotivo. Contudo, ele
também dá a ideia de chamas escondidas. Ele tem certamente uma influência muito
marcante sobre ela, porque eu a vi olhar continuamente para ele, enquanto
falava, como se estivesse procurando aprovação para o que dizia. Espero que ele
seja bom para ela. Há um brilho seco nos olhos dele, e uma expressão firme nos
seus lábios finos, que demonstram uma natureza positiva e possivelmente cruel.
Você o achará um estudo interessante.

Ele
veio visitar Baskerville naquele primeiro dia e na própria manhã seguinte
levou-nos, ambos, para mostrar o ponto onde se supõe que a lenda do cruel Hugo
tenha tido sua origem. Foi uma excursão de alguns quilômetros pela charneca até
um lugar tão desolado que poderia ter sugerido a história. Encontramos um curto
vale entre picos rochosos ásperos que leva a um espaço aberto, coberto de
relva. No meio dele, erguem-se duas grandes pedras, gastas e aguçadas na
extremidade superior, que parecem as presas enormes, corroídas, de algum animal
monstruoso; correspondia em tudo com a cena da antiga tragédia. Sir Henry ficou
muito interessado e perguntou a Stapleton mais de uma vez se ele acreditava
realmente na possibilidade da interferência do sobrenatural nos assuntos dos
homens. Ele falou em tom de brincadeira, mas era evidente que falava bastante
sério. Stapleton foi cauteloso em suas respostas, mas foi fácil perceber que
ele dizia menos do que podia e que não expressava sua opinião completa, em
consideração aos sentimentos do baronete. Ele nos contou casos semelhantes em
que famílias haviam sofrido alguma influência maligna e deixou-nos com a
impressão de que partilhava da opinião popular sobre o assunto.

Em
nosso caminho de volta, paramos para almoçar na casa de Merripit e foi lá que
Sir Henry conheceu a senhorita Stapleton. Desde o primeiro momento em que a viu
pareceu ficar fortemente atraído por ela e estarei muito enganado se o
sentimento não foi mútuo. Ele referiu­se a ela várias vezes ao voltarmos para
casa, e desde então dificilmente tem passado um dia em que não tenhamos visto
algo do irmão e da irmã. Eles jantaram aqui esta noite, e há alguma combinação
para nós irmos jantar com eles na próxima semana. Poder-se-ia imaginar que essa
união seria muito bem­vinda para Stapleton, e apesar disso, mais de uma vez,
surpreendi uma expressão de forte desaprovação em seu rosto, quando Sir Henry
estava prestando alguma atenção à sua irmã. Ele é muito ligado a ela, sem
dúvida, e levaria uma vida solitária sem ela, mas poderia parecer o máximo do
egoísmo se ele se interpusesse no caminho de um casamento tão brilhante para
ela. Contudo, estou certo de que ele não deseja que a intimidade deles se
transforme em amor e várias vezes tenho observado que ele tem se esforçado para
impedi-los de ficarem tête-à-tête. A propósito, suas instruções para que eu
nunca deixe Sir Henry sair sozinho se tornarão muito onerosas, se um romance
for acrescentado às nossas outras dificuldades. Minha popularidade logo
sofreria se eu fosse cumprir suas ordens ao pé da letra.

No
outro dia, quinta­feira para ser mais exato, o Dr. Mortimer almoçou conosco.
Ele tem estado escavando um túmulo em Long Down e conseguiu um crânio
pré-histórico que o enche de grande alegria. Nunca houve um entusiasta tão
sincero como ele! O casal Stapleton chegaram depois e o bom médico levou-nos
todos para a Alameda dos Teixos, a pedido de Sir Henry, para nos mostrar
exatamente como tudo aconteceu naquela noite fatal. É um passeio longo,
melancólico, à Alameda dos Teixos, entre duas paredes altas de sebes aparadas,
com uma faixa estreita de grama de cada lado. Na extremidade oposta, há um
pavilhão em ruínas. Na metade do caminho fica o portão da charneca, onde o
velho cavalheiro deixou a cinza do seu charuto. É um portão branco com um
trinco. Além dele, fica a ampla charneca. Lembrei­me da sua teoria do caso e
tentei imaginar tudo que havia ocorrido. Quando o velho parou lá viu alguma
coisa vindo pelo pântano, alguma coisa que o aterrorizou tanto que ele
perdeu  o juízo e correu até mais não
poder, até morrer de puro horror e exaustão. Lá estava o longo túnel sombrio
pelo qual ele fugiu. E de quê? De um cão pastor de ovelhas da charneca? Ou de
um cão espectral,  negro, silencioso e
monstruoso? Houve uma influência humana na questão? Será que o pálido e vigilante
Barrymore sabe mais do que quis contar? Tudo era obscuro e vago, mas sempre há
a sombra escura do crime por trás disso.

Conheci
um outro vizinho desde que escrevi da última vez. É o Sr. Frankland, da Mansão
Lafter, que mora a uns seis quilômetros ao sul. É um homem idoso, de rosto vermelho,
cabelos brancos e ar colérico. Sua paixão é pela Lei Inglesa, e ele gastou uma
grande fortuna em ações judiciais. Ele luta pelo simples prazer de lutar e está
igualmente pronto a tomar qualquer dos lados de uma questão, de forma que não
admira que tenha achado isso um divertimento caro. Algumas vezes ele fecha uma
servidão de passagem e desafia a paróquia a fazê-lo abri-la. De outras, derruba
com suas próprias mãos o portão de algum outro homem e declara que existiu ali
uma passagem desde tempos imemoriais, desafiando o proprietário a processá-lo
por invasão. Ele conhece bastante os direitos senhoriais e comunais, e aplica o
seu conhecimento algumas vezes a favor dos aldeãos de Femworthy e outras contra
eles, de forma que é periodicamente carregado em triunfo ou queimado em efígie,
segundo sua última sentença. Diz­se que ele tem cerca de sete processos em
curso atualmente, o que provavelmente engolirá o resto da sua fortuna,
arrancando assim o seu ferrão e deixando-o inofensivo futuramente. Fora a lei, ele
parece uma pessoa bondosa, afável, e só o menciono porque você foi específico
dizendo que eu devia mandar alguma descrição das pessoas que nos cercam. Ele se
ocupa curiosamente agora porque, sendo astrônomo amador, tem um excelente
telescópio com o qual se deita sobre o telhado da sua própria casa e vasculha a
charneca o dia inteiro na esperança de vislumbrar o condenado fugitivo. Se ele
limitasse suas energias a isso tudo estaria bem, mas há rumores de que ele
pretende processar o Dr. Mortimer por ter aberto uma sepultura sem a
autorização do parente mais próximo, porque ele desenterrou o crânio neolítico
do túmulo em Long Down. Ele ajuda a manter a nossa vida menos monótona e dá um
pouco de alívio cômico, onde é extremamente necessário.

    E agora, tendo­o atualizado quanto ao
condenado fugitivo, nos Stapletons, o Dr. Mortimer e Frankland da Mansão
Lafter, deixe­me terminar com o que é mais importante e contar­lhe mais sobre o
casal Barrymore e, especialmente, sobre o acontecimento surpreendente de ontem
à noite.

Primeiro,
sobre o telegrama experimental, que você mandou de Londres a fim de certificar
se Barrymore estava realmente aqui. Eu já expliquei que o testemunho do agente
do correio mostra que a experiência foi inútil e que não temos nenhuma prova
num sentido ou no outro. Eu disse a Sir Henry como andavam as coisas, e ele,
com a sua maneira positiva, fez Barrymore subir imediatamente e perguntou se
ele recebera o telegrama pessoalmente. Barrymore disse que sim.

    “Será que o menino entregou-o em suas
próprias mãos?”, perguntou Sir Henry.

    Barrymore pareceu surpreso, e pensando por
alguns segundos.

    “Não”, disse ele, “eu estava
no sótão no dia e minha esposa trouxe-o para mim.”

    “Você mesmo o respondeu?”

    “Não, eu disse à minha mulher o que
responder e ela desceu para escrevê-lo.”

    À noite, ele retornou ao tema da sua
própria vontade.

    “Eu não consegui entender o objeto de
suas perguntas esta manhã, Sir Henry”, disse ele. “Espero que elas não
signifiquem que eu tenha feito alguma coisa para perder a sua confiança?”

    Sir Henry teve de garantir-lhe que não era
isso e para pacificá-lo, deu-lhe uma parte considerável do seu velho guarda
roupa, por ter chegado de Londres as suas coisas.

    Sra. Barrymore é de interesse para mim. Ela
é uma pessoa pesada, sólida, muito limitada, intensamente respeitável, e tende
a ser puritana. Você dificilmente poderia conceber uma pessoa menos emocional.
No entanto, eu já lhe disse como, na primeira noite aqui, ouvi-a chorar
amargamente, e desde então eu tenho, mais de uma vez, observado vestígios de
lágrimas em seu rosto. Alguma tristeza profunda corrói-lhe o coração. Às vezes,
pergunto-me se ela tem uma lembrança de culpa que a assombra, outras vezes,
desconfio que Barrymore é um tirano doméstico. Sempre achei que havia alguma
coisa singular e questionável no caráter deste homem, mas a aventura da última
noite passada leva todas as minhas desconfianças ao máximo.

    E ainda que possa parecer um pequeno problema
em si mesmo. Você está ciente de que não sou uma pessoa que dorme muito e desde
que cheguei e estou de guarda nesta casa, meus sonos têm sido mais leves do que
nunca. Ontem à noite, cerca de duas da manhã, fui despertado por passos
furtivos passando pelo meu quarto. Levantei-me, abri a porta e olhei para fora.
Uma sombra longa perdia-se pelo corredor. Ela era lançada por um homem que
caminhava de mansinho pelo corredor com uma vela na mão. Ele estava em camisa e
calças, mas sem nada nos pés. Pude ver apenas o seu contorno, mas sua altura
revelou-me que era Barrymore. Ele andava muito devagar e prudentemente, e havia
algo indescritivelmente de culpado e furtivo em toda a sua aparência.

    Eu já lhe disse que o corredor é quebrado
pela varanda que corre em volta do salão, mas que continua do lado oposto.
Esperei até que ele tivesse passado e, em seguida, segui-o. Quando cheguei à
varanda, ele havia chegado ao fim do corredor e eu pude ver o brilho da luz
através de uma porta aberta, que entrava para dentro de  um dos quartos. Agora, todos estes quartos
estão sem mobília e desocupados, de maneira que, a expedição tornou-se mais
misteriosa do que nunca. A luz brilhava de forma constante, como se ele
estivesse imóvel. Eu esgueirei pelo corredor o mais silenciosamente que pude e
olhei pelo canto da porta.

Barrymore
estava agachado à janela com a vela erguida contra o vidro. Seu perfil estava
meio virado para mim, e sua fisionomia parecia rígida de expectativa, enquanto
olhava para a escuridão da charneca. Por alguns minutos, ele ficou parado
observando atentamente. Em seguida, ele deu um gemido profundo e com um gesto
de impaciência, apagou a luz. Instantaneamente, fiz o caminho de volta ao meu
quarto e, em instantes, vieram os passos furtivos passando mais uma vez em sua
viagem de regresso. Muito tempo depois, quando eu havia caído em um sono leve,
ouvi uma chave a girar na fechadura em algum lugar, mas eu não podia dizer de
onde vinha o som. O que tudo isso significa, eu não posso adivinhar, mas há
algum negócio secreto acontecendo nesta casa melancólica que, mais cedo ou mais
tarde, saberemos. Não o incomodo com as minhas teorias, pois você me pediu para
fornecer-lhe apenas os fatos. Tive uma longa conversa com Sir Henry esta manhã
e fizemos um plano de campanha com base nas minhas observações de ontem à
noite. Eu não vou escrever sobre isso agora, mas ele pode tornar o meu próximo
relatório uma leitura interessante.

 

 

CAPÍTULO 9

SEGUNDO RELATÓRIO DO DR. WATSON

 

A
luz na charneca.

 

Mansão
Baskerville, 15 de outubro.

Meu
caro Holmes,

    Se eu fui obrigado a deixá-lo sem muitas
novidades durante os primeiros dias da minha missão, você deve reconhecer que
estou a recuperar o tempo perdido e que os eventos estão agora se acumulando
muito e depressa sobre nós. Em meu último relatório, terminei com uma nota
sobre Barrymore na janela; já tenho uma previsão que, a menos que eu esteja
muito enganado, irá surpreendê-lo consideravelmente. As coisas tomaram um rumo
que eu não poderia ter previsto. Em alguns aspectos, elas tornaram-se muito
mais claras nas últimas quarenta e oito horas e, em outros, tornaram-se mais
complicadas. Mas lhe contarei tudo e você deve julgar por si mesmo. Antes do
café, na manhã seguinte à minha aventura, fui para o corredor e examinei o
quarto em que Barrymore tinha estado na noite anterior. A janela ocidental,
através da qual ele tinha olhado tão atentamente, tinha uma peculiaridade acima
de todas as outras janelas da casa – ela domina a vista mais próxima do
pântano. Existe uma abertura entre duas árvores que permite a alguém deste
ponto de observação olhar diretamente para o pântano, enquanto que, de todas as
outras janelas, só se pode vislumbrar uma visão distante. Segue, portanto, que
Barrymore, já que só esta janela serviria para o seu propósito, devia estar
procurando alguma coisa ou alguém no pântano. A noite estava muito escura, de
modo que eu mal posso imaginar como ele podia ter esperado ver alguém. Tinha-me
ocorrido que era possível estar envolvido em alguma intriga amorosa. Isso teria
explicado os seus movimentos furtivos e também o mal-estar de sua esposa. O
homem é um sujeito de aparência espantosa, muito bem equipado para roubar o
coração de uma garota do campo, de modo que essa teoria parecia ter algo a
apoiá-la. Aquela porta se abrindo que eu havia ouvido após ter voltado para o
meu quarto podia significar que ele havia saído para ter  algum encontro clandestino. Então, raciocinei
comigo mesmo de manhã, e eu lhe digo a direção das minhas suspeitas, por mais
que o resultado pode ter mostrado que elas eram infundadas.

    Mas qualquer que seja a verdadeira
explicação dos movimentos de Barrymore, achei que a responsabilidade de
mantê-la para mim, até que eu pudesse explicá-la era mais do que eu poderia
suportar. Eu tive uma entrevista com o baronete no seu escritório, após o café,
e eu disse a ele tudo o que havia visto. Ele ficou menos surpreso do que eu
havia esperado.

    “Eu sabia que Barrymore andava por aí
de noite, eu tive vontade de falar sobre isso”, disse ele. “Duas ou
três vezes, ouvi os seus passos de passagem, indo e vindo, mais ou menos na
hora que você mencionou”.

    “Talvez, então, ele faz uma visita a
cada noite àquela determinada janela”, sugeri.

    “Talvez faça. Se assim for, poderemos
segui­lo e ver o que procura. Gostaria de saber o que seu amigo Holmes faria,
se ele estivesse aqui.”

    “Eu acredito que ele faria exatamente
o que você sugeriu agora”, disse eu. “Ele seguiria Barrymore e veria
o que ele faz.”

    “Então, vamos fazê-lo juntos.”

    “Mas certamente ele nos ouvirá.”

“O
homem é bastante surdo, de qualquer maneira, devemos arriscar. Vamos ficar
sentados em meu quarto esta noite e esperar até ele passar.” Sir Henry
esfregou as mãos com prazer, e era evidente que ele saudava a aventura como um
alívio para a sua vida um tanto monótona na charneca.

    O baronete havia se comunicado com o
arquiteto que preparara os planos para Sir Charles e com um empreiteiro de
Londres, de forma que podemos esperar grandes mudanças a começarem aqui em
breve. Têm havido decoradores e vendedores de móveis de Plymouth, e é evidente
que o nosso amigo tem grandes ideias e meios para não poupar nenhum sacrifício
ou despesa para restaurar a grandeza da sua família. Quando a casa estiver
reformada e mobiliada de novo, tudo que ele precisará será de uma esposa para
torná-la completa. Cá entre nós, há sinais bastante claros de que isso não se
fará esperar se a dama estiver disposta, porque raramente vi um homem mais
babão com uma mulher do que ele com a nossa linda vizinha, a Senhorita Stapleton.
E, contudo, o curso do verdadeiro amor positivamente não corre tão suave como
se poderia esperar nas circunstâncias. Hoje, por exemplo, sua superfície foi
perturbada por uma agitação muito inesperada que causou ao nosso amigo
considerável perplexidade e aborrecimento.

    Depois da conversa que citei sobre
Barrymore, Sir Henry pôs o chapéu e se preparou para sair. Por intuição, fiz o
mesmo.

    “O que, você está indo, Watson?”
ele perguntou, olhando para mim de um modo curioso.

    “Isso depende se você está indo para o
pântano”, respondi.

    “Bem, você sabe quais são as minhas
instruções. Lamento me intrometer, mas você ouviu a insistência de Holmes para
que eu não deixasse sozinho, e, especialmente, quando se dirigisse ao pântano.”

    Sir Henry pôs a mão no meu ombro, com um
sorriso agradável.

    “Meu caro amigo”, disse ele,
“Holmes, com toda a sua sabedoria, não previu algumas coisas que têm
acontecido desde que estou na charneca. Você me entende? Estou certo de que
você é o último homem no mundo que gostaria de ser um desmancha-prazeres. Devo
sair sozinho.”

    Ele me colocou em uma posição muito
esquisita. Eu não sabia o que dizer ou fazer, e antes de me decidir, ele pegou
sua bengala e foi embora.

    Mas quando cheguei a pensar no assunto, a
minha consciência me censurou amargamente por ter sob qualquer pretexto lhe
permitido sair da minha vista. Imaginei quais seriam os meus sentimentos se
tivesse que voltar e confessar a você que havia ocorrido uma infelicidade
devido ao meu pouco caso pelas suas instruções. Eu lhe asseguro minhas
bochechas coraram ao ter esses pensamentos. Mesmo agora podia não ser tarde
demais para alcançá-lo, portanto, parti imediatamente na direção da casa de
Merripit.

    Corri ao longo da estrada na minha
velocidade máxima sem ver sinal de Sir Henry até chegar ao ponto onde o caminho
da charneca se bifurca. Receei que tivesse vindo na direção errada, subi uma
colina da qual pudesse dominar o terreno, a mesma colina cortada pela pedreira
escura. Dali, pude vê-lo. Ele estava no caminho do pântano cerca de um quarto
de milha e uma senhora estava a seu lado, que só poderia ser a Senhorita
Stapleton. Era claro que já havia um entendimento entre eles e que o encontro
fora marcado. Eles caminhavam lentamente, numa conversa profunda e eu a vi
fazendo pequenos movimentos rápidos com as mãos como se estivesse sendo muito
séria no que estava dizendo, enquanto ele ouvia atentamente e, uma ou duas
vezes, sacudiu a cabeça discordando fortemente. Eu estava entre as rochas a
observá-los, muito confuso quanto ao que devia fazer em seguida. Segui-los e
interromper a conversa íntima deles pareceu-me um ultraje, mas meu dever ainda
era nunca deixá-lo fora das minhas vistas. Esse ato de espionagem sobre um
amigo era uma tarefa odiosa. Ainda assim, eu não podia ter melhor recurso do
que observá-lo do alto da colina e, para limpar minha consciência, confessei a
ele, mais tarde, que eu tinha feito. É verdade que, se qualquer perigo
repentino o tivesse ameaçado, eu estava muito longe para ajudá-lo, e ainda
assim, tenho certeza de que você vai concordar comigo, que a posição era muito
difícil, e que não havia mais nada que eu pudesse fazer.

    Nosso amigo, Sir Henry, e a senhorita
pararam no caminho e ficaram profundamente absorvidos em sua conversa quando
percebi de repente que não era a única testemunha da entrevista deles. Um
farrapo verde flutuando no ar atraiu minha atenção, e outro olhar me mostrou
que este era carregado numa vara por um homem que estava se movendo no meio do
terreno irregular. Era Stapleton com a sua rede de borboletas. Ele estava muito
mais perto do par do que eu e pareceu estar indo na direção deles. Neste
instante, Sir Henry puxou a Senhorita Stapleton para o seu lado. Seu braço
estava em volta dela, mas me pareceu que ela estava fazendo força para se
afastar dele com o rosto virado. Ele abaixou a cabeça para a dela e ela
levantou uma mão, como se tivesse protestando. No momento seguinte, vi-os se
separarem de repente e virarem-se apressados. Stapleton era a causa da
interrupção. Ele estava correndo loucamente na direção deles, com a sua rede
absurda pendurada atrás. Gesticulava e quase dançou de excitação diante dos
amantes. O que a cena significava, eu não podia imaginar, mas me pareceu que
Stapleton estava insultando Sir Henry, que oferecia explicações e tornou-se
mais irritado quando o outro se recusou a aceitá-las. A senhorita ficou em
orgulhoso silêncio. Finalmente, Stapleton girou nos calcanhares e fez um sinal
chamando a sua irmã de maneira peremptória que, depois de um olhar hesitante
para Sir Henry, afastou-se, ao lado do irmão. Os gestos irritados do
naturalista mostraram que a senhorita estava incluída em sua indignação. O
baronete ficou por um minuto olhando para eles e ele caminhou lentamente pelo
caminho pelo qual havia vindo, com a cabeça pendente, a própria imagem da
tristeza.

    O que tudo isso significava eu não podia
imaginar, mas estava profundamente envergonhado de ter testemunhado uma cena
tão íntima sem o conhecimento do meu amigo. Desci a colina correndo, portanto,
e encontrei­me com o baronete embaixo. Seu rosto estava rubro de cólera e sua
fronte enrugada, como alguém que está sem saber o que fazer.

    “Olá, Watson! De onde você veio?”
disse ele. “Você não quer dizer que você veio atrás de mim, apesar de
tudo?”

    Expliquei tudo a ele: como eu tinha achado
impossível ficar atrás, como eu o havia seguido, e como havia testemunhado tudo
o que havia ocorrido. Por um instante, seus olhos arderam em chamas para mim e
ele irrompeu afinal num riso triste.   

“Podia
pensar que no meio dessa pradaria fosse razoavelmente seguro para um homem ter
privacidade”, disse ele, “mas, por Deus, toda a região parece ter
saído para me ver fazer a corte – e uma pobre corte, ainda por cima! Onde você
conseguiu um lugar?”

    “Eu estava naquela colina.”

    “Numa fila bem atrás, hein? Mas o
irmão dela estava bem na frente. Você o viu cair sobre nós?”

    “Sim, eu vi.”

    “Alguma vez lhe ocorreu que ele deve
ser louco, esse irmão dela?”

    “Eu não posso dizer que tenha me
ocorrido.”

    “Eu ouso dizer. Sempre o considerei
bastante são até hoje, mas pode acreditar em mim que ele ou eu devíamos estar
numa camisa­de­força. O que é que há comigo, afinal de contas? Você viveu perto
de mim por algumas semanas, Watson. Diga­me francamente, agora! Há alguma coisa
que me impeça de ser um bom marido para uma mulher que eu ame?”

    “Eu diria que não.”

    “Ele não pode objetar quanto à minha
posição na vida, portanto, deve ser de mim mesmo que ele tem birra. O que tem
ele contra mim? Que eu saiba nunca magoei nenhum homem ou mulher na vida. Ainda
assim, ele não me deixaria tocar nas pontas dos dedos dela.”

    “Ele disse isso?”

    “Isso e muito mais eu lhe digo,
Watson, eu só a conheço a poucas semanas, mas desde o início senti que ela foi
feita para mim e ela também. Ela fica feliz quando está comigo, e isso eu juro.
Há uma luz nos olhos de uma mulher que fala mais alto que as palavras. Mas ele
nunca nos deixa ficar juntos, e foi só hoje que vi, pela primeira vez, uma
possibilidade de trocar algumas palavras com ela em paz. Ela estava satisfeita
de se encontrar comigo, mas quando se encontrou comigo, não era de amor que ela
falaria, e ela não me deixaria falar disso também se pudesse ter impedido. Ela
ficou repetindo que este era um lugar perigoso e que ela nunca seria feliz até
que eu o deixasse. Eu disse a ela que desde que a vira não estava com nenhuma
pressa em deixá-lo, e que se ela quisesse realmente que eu fosse embora, a
única maneira de conseguir isso seria ela indo comigo. Com isso ofereci em
outras tantas palavras para casar­me com ela, mas antes que ela pudesse
responder lá veio esse irmão dela, correndo para nós com a cara de louco. Ele
estava simplesmente branco de raiva e aqueles olhos claros dele estavam
incendiados de fúria. O que estava eu fazendo com a dama? Como eu me atrevia a
oferecer a ela atenções que lhe eram de mau gosto? Será que eu acho que porque
eu era um baronete eu poderia fazer o que eu quisesse? Se ele não fosse irmão
dela eu saberia melhor como responder a ele. Seja como for, eu disse que os
meus sentimentos para com sua irmã eram tais que eu não estava envergonhado e
que esperava que ela pudesse me honrar se tornando minha esposa. Isso não
pareceu melhorar as coisas, assim perdi as estribeiras; respondi­lhe mais
acaloradamente do que devia, talvez, considerando que ela estava ao lado.
Portanto, tudo terminou com ele indo embora com ela, como você viu, e aqui
estou, um homem tão confuso como qualquer outro neste condado. Apenas me diga o
que isso significa, Watson, e ficarei lhe devendo mais do que jamais posso
esperar pagar­lhe.

    Tentei uma ou duas explicações, mas, na
verdade, eu estava completamente perplexo. O título do nosso amigo, sua
fortuna, sua idade, seu caráter e sua aparência estão todos a seu favor e eu
não sei nada contra ele a não ser o destino sinistro que pesa sobre a sua
família. Que as investidas dele fossem rejeitadas tão bruscamente sem qualquer
referência aos desejos da própria dama, e que ela aceitasse a situação sem
protestos, é muito surpreendente. No entanto, as nossas conjecturas foram
colocadas em repouso por uma visita do próprio Stapleton naquela tarde. Ele
veio para oferecer desculpas por sua grosseria da manhã, e depois de uma longa
entrevista privada com Sir Henry em seu escritório, o resultado da conversa
deles foi que o rompimento de relações estava completamente sanado, e que
devíamos jantar na Casa de Merripit na próxima sexta-feira como prova disso.

    “Eu não digo que ele não seja
louco”, disse Sir Henry “Eu não posso esquecer o seu olhar quando
correu para mim esta manhã, mas devo dizer que nenhum homem poderia fazer um
pedido de desculpas mais brilhante do que ele fez.”

    “Ele deu alguma explicação para a sua
conduta?”

    “Sua irmã é tudo em sua vida, diz ele.
Isso é natural suficiente, e eu estou contente que ele entenda o valor dela.
Eles sempre estiveram juntos e, de acordo com seu relato, ele tem sido um homem
muito solitário tendo apenas ela como companhia, só de pensar em perdê-la foi realmente
terrível para ele. Ele não tinha entendido, disse ele, que eu estava ficando
ligado a ela, mas quando ele viu com seus próprios olhos que era realmente
assim, e que ela poderia ser tirada dele, isso lhe deu um choque tão grande
que, por algum tempo, ele não foi responsável pelo que ele disse ou fez. Ele
estava muito triste por tudo o que se passara e reconhecia como fora tolo e
egoísta ao imaginar que ele poderia segurar uma mulher bonita como a irmã para
si mesmo por toda a sua vida. Se ela tivesse de deixá­lo, ele preferia que
fosse para um vizinho como eu do que qualquer outra pessoa. Mas, de qualquer
maneira, foi um duro golpe para ele e levaria algum tempo antes que pudesse se
preparar para enfrentá-lo. Ele retiraria toda a oposição de sua parte se eu
prometesse deixar as coisas como estavam por três meses e contentasse-me
cultivando a amizade da senhorita sem exigir o seu amor. E eu prometi e, assim,
está a questão.

    Portanto, um dos nossos pequenos mistérios
foi esclarecido. É algo que tocou fundo em qualquer lugar deste pântano em que
estamos debatendo. Sabemos agora por que Stapleton olhou com desfavor ao
pretendente à mão de sua irmã – mesmo quando esse pretendente era tão elegível
como Sir Henry. E agora eu passo para outra contenda desse emaranhado de
enigmas, o mistério dos soluços durante a noite, do rosto maculado de lágrimas
da Sra. Barrymore, da viagem secreta do mordomo para a janela de treliça a
oeste. Felicite-me, meu caro Holmes, e diga-me que eu não o tenha decepcionado
como um agente – que não se arrepende da confiança que depositou em mim ao me
enviar para cá. Todas essas coisas foram totalmente esclarecidas pelo trabalho
de uma noite.

Eu
disse ‘pelo trabalho de uma noite’, mas, na verdade, foi por duas noites de
trabalho, pois na primeira o resultado foi totalmente nulo. Sentei-me com Sir
Henry em seu quarto até quase três horas da manhã, mas nenhum som de qualquer
tipo, excetuando o badalar do relógio bem acima das escadas. Foi uma vigília
muito melancólica e terminou com cada um de nós caindo no sono, em nossas
respectivas cadeiras. Felizmente, não ficamos desencorajados, estávamos
determinados a tentar novamente. Na noite seguinte, diminuímos a luz da lâmpada
e ficamos fumando cigarros, sem fazer o menor ruído. Foi incrível como as horas
se arrastaram lentamente, mas nos 
ajudavam, através delas, tínhamos o mesmo tipo de interesse que o
paciente caçador deve sentir ao observara 
armadilha na qual espera que a caça possa cair. Uma badalada, duas, e
quase havíamos desistido pela segunda vez, desesperados, quando, num instante,
nós dois nos endireitamos como uma flecha em nossas cadeiras, com todos os
nossos sentidos cansados e vivamente alertados mais uma vez. Havíamos ouvido o
ranger de um passo no corredor.

    Ouvimo-lo passar diante de nós muito
furtivamente até morrer à distância. Em seguida, o baronete gentilmente abriu a
porta e saímos em perseguição. Já o nosso homem já havia contornado a galeria,
e o corredor estava em completa escuridão. Seguimos em frente, suavemente, até
chegarmos a outra ala. Chegamos bem a tempo de vislumbrar um vulto alto, de
barba preta, com os ombros curvos, enquanto este seguia pé ante pé pelo
corredor. Depois ele passou pela mesma porta que antes, e a luz da vela o
emoldurou na escuridão e lançou um único raio amarelo através do corredor
escuro. Seguimos furtivamente em direção a ele, experimentando cada tábua do
soalho antes de nos atrevermos a pôr todo o nosso peso sobre ela. Havíamos
tomado a precaução de deixar nossas botas atrás mas, mesmo assim, as velhas
tábuas gemeram e estalaram sob os nossos passos. Algumas vezes parecia
impossível ele deixar de ouvir a nossa aproximação. Contudo, felizmente, o
homem é bastante surdo, e estava inteiramente absorvido com o que estava fazendo.
Quando finalmente chegamos à porta e olhamos por ela vimos que ele estava
agachado junto à janela, com a vela na mão, o rosto branco e atento, comprimido
contra a vidraça, exatamente, como eu o havia visto duas noites antes.

Não
tínhamos nenhum plano de campanha, mas o baronete é um homem para quem a
maneira mais direta é sempre a mais natural. Ele entrou no quarto e, ao fazer
isso, Barrymore saltou da janela com um silvo agudo da respiração e ficou de
pé, lívido e trêmulo diante de nós. Seus olhos escuros, brilhando na máscara
branca do seu rosto, estavam cheios de horror e espanto, enquanto olhava de Sir
Henry para mim.

    “O que você está fazendo aqui,
Barrymore?”

    “Nada, senhor.” Sua agitação era
tão grande que ele mal podia falar e as sombras saltavam para cima e para baixo
com o tremor da sua vela. “Era a janela, senhor. Eu revisto, à noite, para
ver se todas as janelas estão bem fechadas.”

    “No segundo andar?”

    “Sim, senhor, todas as janelas.”

    “Olha aqui, Barrymore”, disse Sir
Henry severamente, “nós decidimos extrair a verdade de você, portanto,
evitará problemas para você contá-la antes cedo do que tarde. Vamos, agora!
Nada de mentiras! O que você estava fazendo nessa janela?”

    O sujeito olhou para nós, impotente, torceu
as mãos como alguém na última extremidade da dúvida e da agonia.

    “Eu não estava fazendo nada de errado,
senhor. Estava segurando uma vela contra a janela.”

    “E por que você estava segurando uma
vela à janela?”

    “Não me pergunte, Sir Henry – não me
pergunte que eu lhe dou minha palavra, senhor, que o segredo não me pertence, e
que não posso contá-lo; se ele não dissesse respeito a ninguém, senão a mim
mesmo, eu não tentaria escondê­lo do senhor.”

    Uma ideia súbita ocorreu-me e eu tomei a
vela da mão trêmula do mordomo.

    “Ele deve ter estado segurando­a para
dar algum tipo de sinal”, eu disse. “Vamos ver se há alguma
resposta.” Eu segurei a vela como ele tinha feito e olhei para a escuridão
da noite, lá fora. Vagamente pude discernir a escuridão das árvores e a  extensão do pântano, um pouco mais claro,
pois a lua estava entre nuvens. E, então, eu dei uma exclamação de alegria,
porque pude ver um pequeno ponto de luz amarela paralisado no véu escuro e
brilhava firmemente no centro do quadrado negro emoldurado pela janela.

    “Lá está ela!”, exclamei.

    “Não, não, senhor, não é nada,
absolutamente nada!”, interrompeu o mordomo: “Eu lhe garanto,
senhor…”

    “Move a vela através da janela,
Watson!”, exclamou o baronete. “Veja, a outra luz também faz os
mesmos movimentos! Agora, malandro, você nega que é um sinal? Vamos, fale! Quem
é o seu cúmplice lá fora, e que conspiração é essa que vem fazendo?”

    O rosto do homem tornou-se abertamente
desafiador.

    “É assunto meu, e não o seu. Eu não
vou dizer.”

    “Então, você está despedido
imediatamente.”

    “Muito bem, senhor. Se tenho que sair,
sairei.”   

    “E você vai em desgraça. Por Deus,
você pode muito bem ter vergonha de si mesmo. Sua família viveu com a minha há
várias gerações, sob este teto, e cá eu encontro você metido numa conspiração
contra mim.”

    “Não, não, senhor, não, não contra o
senhor!”

     Era a voz de uma mulher, e a Sra.
Barrymore, mais pálida e mais horrorizada do que o marido, estava à porta. Sua
figura volumosa em um xale e uma saia poderia ter sido cômica se não fosse a
intensidade de emoção no seu rosto.

    “Nós temos que ir, Eliza. É o fim de
tudo. Você pode embalar nossas coisas”, disse o mordomo.

    “Oh, John, John, fui eu que lhe fiz
isto! A culpa é minha, Sir Henry, toda minha. Ele não fez nada, a não ser por
mim e porque eu pedi a ele.”

    “Fale, então! O que significa
isso?”

    “Meu irmão infeliz está morrendo de
fome na charneca. Nós não podemos deixá-lo morrer em nossa porta. A luz é um
sinal para ele de que a comida está pronta, e sua luz lá longe é para mostrar o
local para onde levá­la.”

    “Então, o seu irmão é…”

    “É fugitivo, senhor… Selden, o
criminoso.”

    “Essa é a verdade, senhor”, disse
Barrymore. “Eu disse que o segredo não me pertencia e que não podia
contá­lo ao senhor. Mas agora o senhor o ouviu e verá que se há uma trama ela
não é contra o senhor.”

    Esta, então, foi a explicação das
expedições furtivas à noite e da luz na janela. Sir Henry e eu ficamos olhando
para a mulher com espanto. Seria possível que essa pessoa impassivelmente
respeitável fosse do mesmo sangue que um dos mais notórios criminosos do país?

    “Sim, senhor, o meu nome era Selden, e
ele é meu irmão caçula. Nós fizemos demais a sua vontade quando era menino, e
cedemos a ele em tudo até ele vir a pensar que o mundo fora feito para o seu
prazer, e que podia fazer o que quisesse nele. Depois, quando ele cresceu,
meteu-se com más companhias e ficou com o diabo no corpo até partir o coração
da minha mãe e arrastar o nosso nome na lama. De crime em crime, ele afundou
cada vez mais, até que apenas a misericórdia de Deus livrou­o do cadafalso; mas
para mim, senhor, ele sempre foi o garotinho de cabelos anelados que criei e
com quem brinquei como uma irmã mais velha faria. Foi por isso que ele fugiu da
prisão, senhor. Ele sabia que eu estava aqui e que não poderia recusar-me a
ajudá-lo. Quando ele se arrastou até aqui certa noite, cansado e esfomeado, com
os guardas rentes nos seus calcanhares, o que podíamos fazer? Nós o recebemos,
alimentamos e cuidamos dele. Depois o senhor voltou, e meu irmão achou que ele
ficaria mais seguro na charneca do que em qualquer outra parte até passar o
clamor público, assim, ficou escondido lá. Mas de duas em duas noites, nós nos
certificávamos de que ele ainda estava lá pondo uma luz na janela e, se
houvesse resposta, meu marido levava um pouco de pão e carne para ele. Cada dia
esperávamos que ele tivesse ido embora, mas enquanto ele estivesse lá não
podíamos abandoná­lo. Essa é toda a verdade, já que sou uma mulher cristã,
honesta e o senhor verá que se há culpa na questão, ela não está com o meu
marido, mas comigo, por quem ele fez tudo isso.”

    As palavras da mulher vieram com uma
seriedade intensa e impregnada de convicção.

    “Isto é verdade, Barrymore?”

    “Sim, Sir Henry. Cada palavra.”

    “Bem, não posso culpá-lo por apoiar
sua própria mulher. Esqueça o que eu disse. Vão para o seu quarto, vocês dois,
e falaremos mais sobre esse assunto pela manhã.”

    Quando eles foram embora, olhamos outra vez
para fora pela janela. Sir Henry a havia aberto, e o vento frio da noite bateu
em nossos rostos. Ao longe, na distância negra, ainda brilhava aquele ponto
minúsculo de luz amarela.

    “Fico imaginando como ele teve coragem”,
disse Sir Henry.

    “A vela deve ter sido colocada de tal
maneira que só possa ser vista daqui.”

    “Muito provável. A que distância você
acha que está?”

    “Perto de Cleft Tor, eu acho.”

    “Não está a mais de uma ou duas milhas
de distância.”

    “Nem tanto.”

    “Bom, não pode estar muito longe se
Barrymore tem de levar a comida a ele. Ele está esperando, esse vilão, ao lado
daquela vela. Por Deus, Watson, eu vou sair para pegar esse homem!”

    A mesma ideia havia me ocorrido. Não era
como se os Barrymore nos tivessem feito confidências. O segredo deles fora
confessado à força. O homem era um perigo para a comunidade, um canalha
absoluto para quem não havia nem piedade, nem desculpa. Estávamos apenas
cumprindo o nosso dever em aproveitar essa oportunidade de colocá-lo de volta
onde não pudesse fazer mal algum. Com sua natureza brutal e violenta, outros
teriam de pagar o preço, se lavássemos nossas mãos. Qualquer noite, por
exemplo, os nossos vizinhos Stapletons podiam ser atacados por ele, e pode ter
sido esse pensamento que colocou Sir Henry tão interessado na aventura.

    “Eu também irei”, disse eu.

    “Então pegue o seu revólver e calce
suas botas. Quanto mais cedo partirmos melhor, pois o sujeito é capaz de apagar
a luz e fugir.”

    Em cinco minutos, estávamos do lado de fora
e começamos a nossa expedição. Caminhamos apressados através do matagal escuro,
em meio ao gemido impassível do vento de outono e o farfalhar das folhas que
caíam. O ar da noite estava pesado, com o cheiro de umidade e deterioração. De
vez em quando, a lua espreitava entre nuvens por um instante, mas as nuvens
estavam se movendo sobre a face do céu e assim que saímos na charneca, uma
chuva fina começou a cair. A luz ainda cintilava constantemente à nossa frente.

    “Você está armado?”, perguntei.

    “Tenho um chicote de caça.”

    “Devemos nos aproximar dele
rapidamente, pois se diz que é um sujeito desesperado. Vamos pegá-lo de
surpresa e tê-lo à nossa mercê antes que ele possa resistir.”

    “Eu indago, Watson”, disse o
baronete”, o que Holmes ia dizer disto? Que tal hora de escuridão em que o
poder do mal é exaltado?” 

    Como em resposta às suas palavras
ergueu­se, de repente, da vasta escuridão da charneca, um grito estranho que eu
já havia escutado nas margens do grande Pântano de Grimpen. Ele veio com o
vento através do silêncio da noite, um murmúrio longo e profundo, depois um
uivo crescente e, por fim, o triste gemido morreu. Novamente, soou o grito e
repetiu, com o ar pulsando com ele, estridente, selvagem e ameaçador. O
baronete pegou minha manga e seu rosto brilhava branco através da escuridão.

“Meu
Deus, o que é isso, Watson?”

“Eu
não sei. É um som que eles têm sobre o pântano. Eu já ouvi isso antes.”

  Ele morreu à distância e um silêncio absoluto
fechou-se sobre nós. Ficamos forçando nossos ouvidos para ouvir mais, porém
nada veio.

   “Watson”, disse o baronete,
“foi o ganido de um cão.”

    Meu sangue gelou nas veias, pois não havia
uma pausa em sua voz, que revelou, de súbito, um horror que havia se apoderado
dele.

    “Como eles chamam esse som?”,
perguntou ele.

    “Quem?”

    “O povo do campo.”

    “Oh, eles são pessoas ignorantes. Por
que você deve se importar como eles o chamam?”

    “Diga-me, Watson. Que eles dizem disto?”

     Eu hesitei, mas não consegui fugir à
pergunta.

     “Eles dizem que é o grito do Cão dos
Baskervilles.”

     Ele gemeu e ficou em silêncio por alguns
instantes.

    “Era um cão de caça”, disse por
fim, “mas parecia vir de quilômetros de distância, lá longe, eu
acho.”

    “É difícil dizer de onde veio.”

    “Ele cresceu e diminuiu com o vento.
Não é essa a direção do grande Pântano de Grimpen?”

    “Sim, é.”

    “Bem, ele estava lá em cima. Vamos,
Watson, você não acha que era o ganido de um cão? Eu não sou uma criança. Você
não precisa ter medo de dizer a verdade.”

    “Stapleton estava comigo quando eu o
ouvi da última vez. Ele disse que poderia ser o chamado de um pássaro
estranho.”

    “Não, não, era um cão. Meu Deus, será
que há alguma verdade em todas essas histórias? Será possível que eu esteja
realmente em perigo por uma causa tão obscura? Você não acredita nisso, Watson?

    “Não, não.”

    “E ainda assim, uma coisa é rir disso
em Londres, e outra é ficar aqui na escuridão da charneca e ouvir um ganido
como esse. E meu tio! Havia a pegada do cão ao seu lado, onde ele estava caído.
Tudo se encaixa. Eu não acho que eu seja um covarde, Watson, mas esse som
pareceu congelar o meu próprio sangue. Sinta minha mão!”

    Ela estava tão fria como um bloco de
mármore.

    “Amanhã vai estar tudo certo.”

    “Eu não acho que vou conseguir tirar
esse grito da minha cabeça. Que você aconselha que façamos agora?”

    “Vamos voltar?”

    “Não, por Deus, não! Saímos para
buscar o nosso homem e vamos fazê-lo. Nós atrás do condenado, e um cão do
inferno, tão provável, atrás de nós. Venha. Vamos concluir isso mesmo que todos
os demônios do inferno estejam soltos na charneca.”

      Cambaleamos lentamente pela escuridão,
com o vulto negro das colinas escarpadas ao nosso redor e o pontinho de luz
amarela ardente e constante à nossa frente. Não há nada tão enganoso como a
distância de uma luz numa noite escura como breu, e, às vezes, o brilho parecia
estar longe, no horizonte, e outras vezes, poucos metros de nós. Mas,
finalmente, pudemos ver de onde ele vinha e, então, ficamos sabendo que
estávamos realmente muito próximos. Uma vela gotejante estava enfiada numa
fenda das rochas que a flanqueavam de cada lado para manter o vento longe dela
e, também, para impedir que ficasse visível, salvo no sentido da Mansão
Baskerville. Uma pedra de granito escondeu a nossa abordagem e, agachados atrás
dela, olhamos por cima, para o sinal luminoso. Era estranho ver essa única vela
queimando lá no meio do pântano, sem nenhum sinal de vida perto dela – apenas a
uma chama reta, amarela e o brilho da pedra em cada lado.

    “O que vamos fazer agora?”,
sussurrou Sir Henry. 

    “Espere aqui. Ele deve estar perto
dessa luz. Vamos ver se podemos obter um vislumbre maior dele.”

  Mal as palavras foram pronunciadas pela minha
boca quando ambos o vimos. Sobre as rochas, na fenda de que a vela queimava,
projetava-se um rosto amarelo, terrível, de animal, marcado por paixões
infames. Sujo de lama, com uma barba eriçada e cabelos emaranhados, pendentes;
bem podia ter pertencido a um daqueles velhos selvagens que habitavam as tocas
das encostas das colinas.  A luz embaixo
dele refletia­se em seus olhos pequenos, astutos, que olhavam ferozmente para a
direita e para a esquerda através da escuridão, como um animal ardiloso e
selvagem que ouviu os passos dos caçadores.

    Alguma coisa evidentemente havia despertado
suas suspeitas. Pode ser que Barrymore tivesse algum sinal particular que
tivesse deixado de dar, ou o sujeito podia ter algum outro motivo para achar
que nem tudo estava bem, mas pude perceber os seus temores no seu rosto
perverso. A qualquer instante, ele podia apagar a luz de repente e desaparecer
na escuridão. Pois, saltei para frente e Sir Henry fez o mesmo. No mesmo
instante, o condenado gritou uma maldição para nós e arremessou uma pedra que
se estilhaçou contra a rocha que havia nos abrigado. Vi de relance seu vulto
baixo agachado, de constituição forte, quando se pôs de pé e virou-se para
correr. No mesmo instante, por um feliz acaso, a lua irrompeu as nuvens.
Corremos sobre o cume da colina, e lá estava o nosso homem correndo a grande
velocidade para o outro lado, saltando sobre as pedras em seu caminho, com a
agilidade de um cabrito montês. Um tiro certeiro do meu revólver poderia
detê­lo, mas eu o havia trazido apenas para me defender se fosse atacado e não
para atirar em um homem desarmado que estava fugindo.

Éramos
ambos corredores velozes e razoavelmente bem treinados, mas logo descobrimos
que não tínhamos chance de alcançá­lo. Vimo-lo por um longo tempo à luz da lua
até que ele se tornou apenas um pequeno ponto se movendo rapidamente entre os
rochedos, no declive de uma colina distante. Corremos e corremos até ficarmos
completamente sem fôlego, mas a distância entre nós crescia cada vez mais.
Finalmente, paramos e sentamo-nos ofegantes sobre duas rochas, enquanto o
víamos desaparecendo na distância. 

    E foi nesse momento que ocorreu a coisa
mais estranha e inesperada.  Havíamos nos
levantado de nossas rochas e estávamos nos virando para ir para casa, tendo
abandonado a nossa perseguição inútil. A lua estava baixa à direita e o pico
irregular de um monte de granito erguia­se contra a curva inferior do seu disco
prateado. Lá, delineada, tão negra como uma estátua de ébano naquele pano de
fundo brilhante, vi o vulto de um homem sobre o pico rochoso. Não pense que era
uma ilusão, Holmes. Garanto-lhe que nunca na minha vida vi nada de mais
clareza. Até onde posso julgar, o vulto era de um homem alto e magro. Ele ficou
parado com as pernas um pouco afastadas, os braços cruzados, a cabeça baixa,
como se estivesse meditando sobre aquela vastidão enorme de turfa e granito que
se estendia diante dele. Ele podia ser o próprio espírito daquele lugar
terrível. Não era o presidiário. Esse homem estava longe do lugar onde o último
havia desaparecido. Além disso, era um homem muito mais alto. Com um grito de
surpresa, apontei­o para o baronete, mas no instante durante o qual eu me
virara para segurar o seu braço, o homem desapareceu. Lá estava o pico agudo de
granito ainda cortando a beirada inferior da lua, mas o seu cume não revelava
nenhum traço daquele vulto silencioso e imóvel.

    Eu queria ir naquela direção para revistar
o pico, mas ele estava a alguma distância. Os nervos do baronete ainda estavam
abalados pelo grito, que recordava a história sombria de sua família e ele não
estava com disposição a novas aventuras. Ele não vira o homem solitário sobre o
pico rochoso e não pôde sentir a excitação que essa estranha presença em sua atitude
dominadora havia provocado em mim.

“Um
guarda, sem dúvida”, disse ele. “O pântano está cheio deles desde que
este sujeito escapou.” Bem, talvez a sua explicação possa estar no caminho
certo, mas eu gostaria de ter alguma prova disso. Hoje pretendemos comunicar ao
pessoal de Princetown onde eles devem procurar seu homem desaparecido, mas é
duro não termos realmente tido o triunfo de trazê­lo de volta como nosso
prisioneiro. Tais são as aventuras de ontem à noite, e você deve reconhecer,
meu caro Holmes, que tenho feito muito bem na questão do relatório. Muita coisa
do que conto a você é sem dúvida bastante irrelevante, mas acho ainda que é
melhor comunicar­lhe todos os fatos e deixá­lo escolher por si mesmo aqueles
que sejam mais úteis a você, ajudando­o em suas conclusões.  Nós estamos, certamente, fazendo algum
progresso.  No que diz respeito ao casal
Barrymore, descobrimos o motivo dos seus atos e isso esclareceu em muito a
situação. Mas a charneca com os seus mistérios e os seus estranhos habitantes
continua tão inescrutável como sempre. Talvez, em meu próximo relatório, eu
possa ser capaz de lançar alguma luz sobre isto, também. O melhor de tudo seria
se você pudesse vir até nós. De qualquer maneira, terá notícias minhas outra
vez durante os próximos dias.

 

CAPÍTULO 10

TRECHOS DO DIÁRIO DO DR. WATSON

 

 Até aqui, tenho sido capaz de citar os
relatórios que encaminhei, durante estes primeiros dias, a Sherlock Holmes.
Agora, no entanto, cheguei a um ponto em minha narrativa onde sou obrigado a
abandonar esse método e confiar mais uma vez nas minhas lembranças, auxiliado
pelo diário que guardei na época. Alguns trechos me levarão às cenas que estão
indelevelmente fixadas com todos os detalhes em minha memória. Então, avançando
nos relatos, a partir da manhã que se seguiu à nossa perseguição abortiva ao
condenado e às nossas outras experiências estranhas no pântano.

 

16
de outubro.

 

Um
dia sombrio e nebuloso com uma garoa. A casa estava coberta com nuvens
ondulantes, que se erguiam de vez em quando para mostrar as curvas sombrias da
charneca, com veias finas, prateadas sobre as encostas das colinas e rochedos
distantes e brilhantes onde a luz golpeava suas 
superfícies molhadas. A melancolia reinava do lado de fora e de dentro
da charneca. O baronete teve uma sombria reação por causa da agitação da noite.
Eu próprio estou consciente de um peso no coração e de uma sensação de perigo
iminente – perigo sempre presente, que é mais terrível ainda pelo motivo de não
conseguir defini­lo.

    E não terei razão para sentir tais
sentimentos? Considerei a longa sequência de incidentes apontando para alguma
influência sinistra que nos rodeava. Poderia ocorrer a morte do último ocupante
da Mansão, cumprindo exatamente a lenda da família. Há sucessivos relatos de
camponeses sobre o aparecimento da estranha criatura no pântano. Por duas
vezes, eu ouvi com o som que lembrava o latido distante de um cão. É incrível e
impossível que isso permaneça realmente fora das leis ordinárias da Natureza.
Um cão espectral que deixa pegadas materiais e enche o ar com o seu uivo
certamente não é ilusório. Stapleton pode acreditar nessa superstição e
Mortimer também, mas se eu tenho uma qualidade, é a do bom senso, nada vai me
fazer acreditar numa coisa dessa. Agir desse modo seria descer ao nível desses
camponeses pobres, que não se contentam com um mero cão diabólico, mas têm
necessidades de descrevê-lo com a boca e os olhos vomitando o fogo do inferno.
Holmes não ouviria tais fantasias e eu sou o seu representante. Mas fatos são
fatos e, por duas vezes, ouvi os ganidos vindos do pântano. Suponhamos que
houvesse realmente algum cão enorme solto pelo pântano, isso iria muito longe
para explicar tudo. Mas onde um cão desses poderia ficar escondido, onde
conseguiria a comida, de onde veio, como é que ninguém o vira de dia? Deve-se
confessar que uma explicação natural oferece quase tanta dificuldade quanto
qualquer outra. E, além do cão, há fatos de ações humanas em Londres, o homem
do coche, a carta que alertou Sir Henry contra a charneca – esta, pelo menos,
era real, mas poderia ter sido obra de um amigo protetor tão facilmente como de
um inimigo. Onde está esse amigo ou inimigo agora? Será que ele permaneceu em
Londres, ou nos seguiu até aqui? Será que ele… poderia ser ele o estranho que
vi sobre o pico rochoso? 

É
verdade que só o vi uma vez, e rapidamente, além disso, há algumas coisas a que
estou pronto a jurar. Não é ninguém que eu já tenha visto aqui, já conheci
todos os vizinhos. O estranho era muito mais alto do que Stapleton, mais magro
que Frankland. Um estranho, então, ainda está nos seguindo, da mesma maneira
que um estranho nos seguiu em Londres. Nunca conseguimos nos livrar dele. Se eu
pudesse pôr minhas mãos nesse homem, poderíamos encontrar o fim de nossas
dificuldades. A esse único propósito devo agora dedicar todas as minhas
energias.

    Meu primeiro impulso foi dizer a Sir Henry
todos os meus planos. Meu segundo impulso e mais prudente é jogar o meu próprio
jogo e falar o menos possível com qualquer pessoa. Ele é silencioso e
distraído. Seus nervos foram estranhamente abalados por aquele som na charneca.
Não direi nada que aumente suas ansiedades, mas tomarei minhas próprias medidas
para alcançar meu objetivo.   

Tivemos
uma pequena cena hoje, após o café da manhã. Barrymore pediu licença para falar
com Sir Henry e eles ficaram trancados no escritório por algum tempo. Sentado
na sala de bilhar, eu ouvi mais de uma vez o tom das vozes elevarem-se e tive
uma ideia aproximada sobre a discussão. Depois de um tempo, o baronete abriu a
porta e chamou-me.

    “Barrymore acha que tem motivo de
queixa”, disse ele. “Ele acha que foi injusto de nossa parte sair
caçando o seu cunhado quando ele, por sua espontânea vontade, contou o
segredo.”

    O mordomo estava parado muito pálido, mas muito
senhor de si diante de nós.

    “Posso ter falado muito calorosamente,
senhor”, disse ele, “e se falei certamente peço que me perdoe. Fiquei
muito surpreso quando ouvi os dois cavalheiros voltarem esta manhã e soube que
estiveram perseguindo Selden. Ele já tem bastante contra o que lutar sem eu pôr
mais gente na sua pista.”

    “Se você tivesse nos contado, por sua
livre e espontânea vontade, teria sido bem diferente”, disse o baronete,
“você só nos contou, ou melhor, sua mulher nos contou, quando foram
forçados.”

    “Não pensei que fosse se aproveitar
disso, Sir Henry, verdade que não pensei.”

    “O homem é um perigo público. Há casas
isoladas espalhadas pela charneca e ele é um sujeito que faz qualquer ato para
se dar bem. Basta dar uma só olhadela em seu rosto para ver isso. Veja a casa
do Sr. Stapleton, por exemplo, sem empregados, senão ele próprio para
defendê-la. Não há segurança para ninguém até que ele esteja sob sete
chaves.”

    “Ele não vai entrar em nenhuma casa,
senhor. Dou-lhe minha palavra de honra quanto a isso. E nunca mais vai
incomodar ninguém neste país. Garanto-lhe, Sir Henry, que dentro de muito
poucos dias os arranjos necessários terão sido feitos e ele estará a caminho da
América do Sul. Pelo amor de Deus, senhor, peço-lhe para não deixar a polícia
saber que ele ainda está na charneca. Eles desistiram da busca aqui, e ele pode
ficar escondido quieto até o navio estar pronto para ele. O senhor não pode
denunciá-lo sem causar problemas para mim e minha mulher. Peço-lhe, senhor,
para não dizer nada à polícia.”

    “O que você acha, Watson?” 

    Encolhi os ombros.

     “Se ele fosse com segurança para fora
do país aliviaria os contribuintes de um fardo.”

    “E quanto à possibilidade de ele
assaltar alguém antes de ir embora?”

    “Ele não faria nada tão louco, senhor.
Fornecemos a ele tudo que ele possa precisar. Cometer um crime seria revelar
onde está escondido.”

    “Isso é verdade”, disse Sir
Henry. “Bem, Barrymore…”

    “Deus o abençoe, senhor, e obrigado do
fundo do meu coração! Se ele fosse preso outra vez, isso teria matado minha
pobre mulher.”

    “Acho que estamos ajudando e
favorecendo um crime, Watson. Mas, depois do que ouvimos, acho que não posso
entregar o homem, portanto, está terminado. Está bem, Barrymore, você pode
ir.”

    Com algumas palavras entremeadas de
gratidão, o homem se virou, mas hesitou e depois voltou.

    “O senhor foi tão bom para nós,
senhor, que eu gostaria de fazer o melhor que pudesse para o senhor em
retribuição. Eu sei uma coisa, Sir Henry, e talvez devesse tê­la dito antes,
mas foi muito depois do inquérito que eu a descobri. Nunca disse uma palavra
sequer sobre isso a ninguém. É sobre a morte do pobre Sir Charles.”

    O baronete e eu ficamos de pé.

    “Sabe como ele morreu?”

    “Não, senhor, eu não sei.”

    “E então?”

    “Eu sei por que ele esteve no portão
àquela hora. Foi para se encontrar com uma mulher.”

    “Encontrar-se com uma mulher?
Ele?”

    “Sim, senhor”.

    “E o nome da mulher?”

    “Eu não posso dar-lhe o nome, senhor,
mas eu posso dar-lhe as iniciais. Suas iniciais eram LL.”

    “Como é que você sabe disso,
Barrymore?”

    “Bem, Sir Henry, o seu tio recebeu uma
carta naquela manhã. Geralmente ele recebia muitas cartas, porque ele era um
homem público e bem conhecido pelo seu coração bondoso, de forma que todo mundo
que estivesse com problemas gostava de recorrer a ele. Mas naquela manhã, por
acaso, havia apenas essa carta, portanto, reparei mais nela. Vinha de Coombe
Tracey e estava endereçada com letra de mulher.”

    “E daí?”

    “E daí, senhor, eu não pensei mais
sobre o assunto e nunca teria feito se não fosse por minha esposa. Apenas
algumas semanas atrás, ela estava limpando o escritório de Sir Charles – não
tinha sido tocado desde a sua morte – e encontrou as cinzas de uma carta
queimada na parte de trás da grelha. A maior parte dela estava carbonizada aos
pedaços, mas uma pequena tira, o fim de uma página, pendia inteira, e o que
estava escrito ainda podia ser lido, embora estivesse cinzento num fundo preto.
Pareceu-nos ser um pós-escrito no final da carta e disse: ‘Por favor, como o
senhor é um cavalheiro, queime esta carta e esteja no portão às dez horas’,
embaixo disso estavam assinadas as iniciais L.L.”

    “Você tem essa tira?”

    “Não, senhor, ela se esfarelou em
pedaços depois de mexermos nela.”

    “Sabe se Sir Charles recebeu outras
cartas com a mesma letra?”

    “Bem, senhor, eu não prestava muita
atenção às cartas. Não notaria essa se por acaso não tivesse chegado
sozinha.”

    “E você não tem ideia de quem seja
L.L.?”

    “Não, senhor. Não mais do que o
senhor. Mas espero que se pudermos pôr as mãos nessa senhora, saberemos mais
sobre a morte de Sir Charles.”

    “Eu não consigo entender, Barrymore,
como você chegou a esconder esta informação tão importante.”

    “Ora, senhor, isso foi imediatamente
após ocorrer aquele nosso próprio problema. E depois também, senhor, nós dois
gostávamos muito de Sir Charles, como devíamos, considerando tudo o que ele
tinha feito por nós. Revolver isso não podia ajudar o nosso pobre patrão e é
bom ter cuidado quando há uma senhora no caso. Mesmo o melhor de nós…”

    “Pensou que isso poderia ferir a sua
reputação?”

    “Bem, senhor, achei que nada de bom
podia resultar disso. Mas agora o senhor foi bom para nós e  achei que estaria sendo injusto com o senhor
não dizendo nada sobre a carta.”

    “Muito bom, Barrymore, você pode
ir.”  Quando o mordomo nos deixou,
Sir Henry virou­se para mim: “Bem, Watson, o que você acha desta nova
luz?”

    “Parece que deixara a escuridão mais
negra do que antes.”

    “Também acho isso. Mas se pelo menos
pudéssemos identificar L.L. isso poderia esclarecer a coisa toda. Teríamos
ganho pelo menos isso. Sabemos que há alguém que conhece os fatos se pudermos
encontrá­la. O que você acha que devo fazer?”

    “Comunicar isso tudo imediatamente a
Holmes. Isso dará a ele a pista que vem procurando. Estou muito enganado se
isso não o trará aqui.”

Fui
imediatamente para o meu quarto e escrevi meu relatório da conversa da manhã
para Holmes. Era evidente para mim que ele estava muito ocupado ultimamente,
pois as respostas que eu recebia de Baker Street eram poucas e curtas, sem
nenhum comentário sobre as informações que eu havia fornecido e, raramente,
qualquer referência à minha missão. Sem dúvida, o seu caso de chantagem
absorvia todas as suas faculdades, e, além disso, esse novo fator certamente
deveria prender a sua atenção e renovar o seu interesse. Eu gostaria que ele
estivesse aqui.

 

17
de outubro.

 

Choveu
hoje o dia todo, fazendo a hera farfalhar e gotejar os beirais. Pensei no
condenado lá fora na charneca descampada, fria e sem abrigo. Pobre diabo!
Quaisquer que fossem os seus crimes, ele havia sofrido o bastante para
expiá-los. E então pensei naquele outro, o rosto do cabriolé, a figura contra a
lua. Estaria ele também lá fora, naquele dilúvio – o vigilante invisível -, o
homem das trevas?

À
tarde, pus o meu impermeável e dei uma longa caminhada pela charneca
encharcada, cheio de pensamentos sombrios, com a chuva batendo no meu rosto e o
vento assoviando nos meus ouvidos. Deus ajude aqueles que vagueiam para dentro
do grande pântano agora, porque até as terras firmes e elevadas estão se
tornando um lamaçal. Encontrei o pico rochoso negro sobre o qual havia visto o
observador solitário e seu cume escarpado. Olhei através das fendas
melancólicas. Rajadas de chuva passavam pela sua superfície avermelhada, e as
nuvens pesadas, cor de ardósia, pendiam baixas sobre a paisagem, arrastando
espirais cinzentos para baixo, nos lados das colinas fantásticas. Na depressão
distante, à esquerda, as duas torres finas da Mansão Baskerville, agora meio
escondidas pela neblina, erguiam­se acima das árvores. Eram os únicos sinais de
vida humana que eu podia ver, salvo apenas as cabanas pré-históricas
estabelecidas sobre as encostas dos morros. Em nenhum lugar, havia qualquer
vestígio do homem solitário que eu tinha visto há duas noites passadas.

    Enquanto caminhava de volta, fui alcançado
pelo Dr. Mortimer conduzindo sua charrete por uma trilha irregular e áspera,
que partia da casa isolada da fazenda de Foulmire. Ele tem sido muito atencioso
conosco e não passa um dia sem que ele venha a Mansão para saber como estamos.
Ele insistiu para que eu subisse na charrete, dando-me uma carona até a Mansão.
Achei­o muito perturbado pelo desaparecimento do seu pequeno spaniel. Ele havia fugido para o pântano
e não voltara. Consolei­o como pude, mas pensei no pônei no Pântano de Grimpen
e imagino que ele não verá mais o seu cachorrinho.

    “A propósito, Mortimer”, disse
eu, quando nos sacudíamos pela estrada irregular, “Eu suponho que haja
poucas pessoas morando a uma distância que se possa ir de charrete daqui que
você não conheça?”

    “Dificilmente alguma, acho eu.”

    “Você pode, então, dizer-me o nome de
alguma mulher cujas iniciais sejam L.L?”

    Ele pensou por alguns segundos.

    “Não”, disse ele. “Há alguns
ciganos por quem não posso responder, mas entre os agricultores e pobres não há
ninguém com essas iniciais. Espere um pouco”, e depois de uma pausa,
acrescentou: “Há Laura Lyons, as iniciais dela são L.L., mas ela mora em
Coombe Tracey.”

    “Quem é ela?”, perguntei.

    “Ela é filha de Frankland.”

    “O quê! Do velho Frankland, o
maluco?”

    “Exatamente. Ela se casou com um
artista chamado Lyons que veio desenhar na charneca. Ele provou ser um grande
patife e logo a abandonou. Pelo que ouço dizer não foi o único culpado. Seu pai
se recusou a ter qualquer relação com ela, porque ela havia se casado sem o seu
consentimento e, talvez, por um ou dois outros motivos também. Assim sendo,
entre os dois pecadores, o marido e o pai, a garota tem passado um mau
pedaço.”

    “Onde ela mora?”

    “Creio que o velho Frankland lhe dá
uma mesada insignificante, mas não pode dar mais, porque os seus negócios estão
consideravelmente falidos. Por pior que ela tenha agido, não podia permitir que
ela passasse necessidades. A história dela circulou e várias pessoas daqui
contribuíram, de alguma maneira, para que ela ganhasse a vida honestamente.
Stapleton foi um e Sir Charles outro. Eu mesmo dei uma ninharia. Era para
estabelecê-la num negócio de datilografia.”

Ele
quis saber o propósito das minhas perguntas, mas consegui satisfazer a sua
curiosidade sem contar­lhe muito, pois não há nenhum motivo para que tenhamos
que confiar completamente em alguém. 
Amanhã cedo irei até Coombe Tracey e, se eu puder ver essa Sra. Laura
Lyons, de reputação equívoca, um grande passo terá sido dado no sentido de
esclarecer um incidente nesta cadeia de mistérios. Certamente, estou adquirindo
a sabedoria da serpente, porque quando Mortimer insistiu nas suas perguntas até
uma extensão inconveniente, perguntei­lhe a que tipo pertencia o crânio de
Frankland e, desse modo, não ouvi mais nada senão craniologia durante todo o
trajeto. Não foi impunemente que morei anos com Sherlock Holmes.

Tenho
apenas outro incidente para relatar, neste dia tempestuoso e melancólico. Foi a
minha conversa com Barrymore ainda há pouco, que me deu mais um trunfo que
usarei no devido tempo.

Mortimer
havia ficado para jantar e depois ele e o baronete foram jogar écarté. O mordomo trouxe o meu café na
biblioteca e aproveitei a oportunidade para fazer algumas perguntas a ele.

    “Ora”, disse eu, “seu
estimado parente partiu ou ainda está escondido aqui?”

    “Eu não sei, senhor. Não sei, senhor.
Peço a Deus que tenha ido, porque só me causou problemas aqui! Não tive
notícias dele desde que deixei comida pela última vez, e isso foi há três
dias.”

    “Não o viu mais?”

    “Não, senhor, mas a comida tinha
desaparecido quando fui lá.”

    “Então, certamente, ele estava
lá?”

    “Assim se pode pensar, senhor, a menos
que outro homem a tenha tirado.”

    Sentei com a minha xícara de café a meio
caminho de meus lábios e olhei para Barrymore.

    “Você sabe que há outro homem,
então?”

    “Sim, senhor, há outro homem na
charneca.”

    “Você já o viu?”

    “Não, senhor.”

    “Como sabe dele?”

    “Selden me falou sobre ele, senhor, há
uma semana ou mais. Ele está escondido também, mas não é um condenado, pelo que
posso entender. Não gosto disso, Dr. Watson. Digo-lhe francamente, senhor, que
não gosto disso.” Ele falou com uma súbita paixão de seriedade.

    “Agora, escute-me, Barrymore! Não
tenho nenhum interesse nesse assunto senão por causa de seu patrão. Vim para cá
com um único objetivo: ajudá-lo. Diga-me, francamente, do que é que você não
gosta?”

    Barrymore hesitou por um momento, como se
estivesse arrependido da sua explosão ou achado difícil exprimir em palavras os
próprios sentimentos.

    “São todas essas extravagâncias,
senhor”, exclamou ele por fim, erguendo a mão em direção à janela batida
pela chuva que dava para o pântano. “Há o mal em algum lugar e há uma
vilania negra fervendo, quanto a isso eu juro que há! Ficaria mais aliviado,
senhor,  se visse Sir Henry regressando a
Londres!”

    “Mas o que é que o assusta?”

    “Veja a morte de Sir Charles! Isso foi
bastante doloroso, apesar de tudo o que o magistrado disse. Veja os ruídos na
charneca à noite. Não há um único homem capaz de atravessá-la após o
pôr-do-sol, mesmo que seja pago para isso. Veja esse estranho escondido, lá
longe, observando e esperando! O que ele está esperando? O que significa tudo
isso? Não significa nada de bom para alguém com o nome de Baskerville, e muito
satisfeito eu ficarei em largar tudo isso, no dia em que chegarem os novos
empregados de Sir Henry e estiverem prontos para cuidar da Mansão.”

    “Mas quanto a esse estranho”,
disse eu. “Você pode me dizer alguma coisa sobre ele? O que disse Selden?
Ele descobriu onde ele se esconde, ou o que ele está fazendo?”

    “Ele o viu uma ou duas vezes, mas ele
é um sujeito fechado e não conta nada. A princípio pensou que ele fosse da
polícia, mas logo descobriu que ele tinha alguma profissão própria. É uma
espécie de cavalheiro, até onde pôde ver, mas o que ele estava fazendo não pôde
saber ainda.”

    “E onde foi que ele disse que o homem
vivia?”

    “Entre as velhas casas da encosta. As
cabanas de pedra onde os antigos costumavam viver.”

    “Mas e quanto à sua comida?”

    “Selden descobriu que ele tem um
menino que trabalha para ele, leva e traz para ele tudo que precisa. Ouso dizer
que ele vai buscar em Coombe Tracey o que precisa.”

    “Muito bem, Barrymore. Podemos falar
mais sobre isso em outra ocasião.” Quando o mordomo foi embora fui à
janela e olhei através da vidraça manchada pelas nuvens que passavam e pelas
silhuetas agitadas das árvores varridas pelo vento. A noite parecia selvagem
dentro de casa, como deveria estar na cabana de pedra sobre o pântano. Que
paixão de ódio terá levado esse homem a espreitar em tal lugar em tal hora! E
qual o propósito profundo e sincero pode ter ele para determinar tal provação?
Ali, naquela cabana, parece estar vivendo o centro desse problema todo que
muito tem me atormentado. Juro que não deixarei passar outro dia sem ter feito
algo que um homem possa fazer para atingir o âmago do mistério.

 

 

CAPÍTULO 11

O HOMEM SOBRE O PICO ROCHOSO

 

O
trecho de meu diário, que constituiu o último capítulo, atualizou a minha
narrativa até o dia 18 de outubro, ocasião em que esses estranhos
acontecimentos começaram a se moverem rapidamente para a sua terrível
conclusão. Os incidentes dos próximos dias seguintes estão indelevelmente
gravados na minha memória e posso contá­los sem referências às anotações feitas
na época. Começarei, deste modo, no dia que sucedeu àquele em que ficaram
estabelecidos dois fatos de grande importância, um sobre a Sra. Laura Lyons, de
Coombe Tracey, que havia escrito para Sir Charles Baskerville e marcado um
encontro com ele no lugar e à mesma hora em que ele veio a falecer; o outro
fato, é sobre o homem escondido na charneca, que poderia ser encontrado entre
as cabanas de pedra, na encosta da colina. Com estes dois fatos em meu poder,
achei que a minha inteligência ou a minha coragem deviam ser deficientes, se eu
não pudesse lançar alguma outra luz sobre esses pontos escuros.

Não
tive nenhuma oportunidade de contar ao baronete, na noite anterior, o que
soubera a respeito da Sra. Lyons, porque o Dr. Mortimer ficou jogando cartas
com ele até muito tarde da noite. No café da manhã, contudo, informei-o sobre
minha descoberta e perguntei a ele se queria me acompanhar até Coombe Tracey.
No começo, ele ficou muito ansioso para ir, mas pensando melhor, pareceu-nos
que se eu fosse sozinho os resultados poderiam ser melhores. Quanto mais formal
tornássemos a visita, menos informações poderíamos obter. Deixei Sir Henry para
trás, não sem alguns escrúpulos de consciência e parti em minha nova missão.

Quando
cheguei a Coombe Tracey, disse a Perkins para guardar os cavalos e fiz
perguntas sobre a senhora a quem eu viera interrogar. Não tive nenhuma
dificuldade em descobrir onde morava, que era num lugar central e bem
determinado. Uma criada introduziu­me sem cerimônia. Quando entrei na sala, a
senhora que estava sentada diante de uma máquina de escrever Remington,
ergueu­se com um sorriso agradável de boas­vindas. Sua fisionomia ficou
desapontada, contudo, quando viu que eu era um estranho e sentou­se novamente,
perguntando­me o objetivo de minha visita.

A
primeira impressão que a Sra. Lyons deixava era de extrema beleza. Seus olhos e
cabelos eram da mesma cor de avelã e suas faces, embora consideravelmente
sardentas, eram coradas pela frescura encantadora da pele morena, como o
vermelho vive no coração de uma rosa. Admiração foi, repito, a minha primeira
impressão. Mas a segunda, foi de crítica. Havia alguma coisa sutilmente errada
com o rosto, certa aspereza de expressão, certa dureza, talvez no olhar, na
frouxidão dos lábios que afetavam sua beleza quase perfeita. Mas esses,
naturalmente, foram pensamentos posteriores. No momento, fiquei simplesmente
consciente de que me encontrava na presença de uma mulher muito bonita e que
ela me indagava sobre o motivo de minha visita. Eu não tinha compreendido bem,
até aquele instante, como a minha missão era delicada.

    “Tive o prazer”, disse eu,
“de conhecer o seu pai.”

    Foi uma introdução desajeitada e a senhora
me fez sentir isto.

    “Não há nada em comum entre eu e meu
pai”, disse ela. “Não devo nada a ele e seus amigos não são meus
amigos. Se não fosse o falecido Sir Charles Baskerville e alguns outros
corações compassivos, eu poderia morrer de fome que meu pai pouco se
importaria.”

    “E sobre o falecido Sir Charles
Baskerville que vim aqui vê­la.”

    As sardas sobressaíram mais ainda no rosto
da senhora.

    “O que posso dizer sobre ele?”,
perguntou ela e seus dedos tocaram nervosamente nas teclas da máquina de
escrever.

    “A senhora o conhecia, não é
verdade?”

    “Eu já disse que muito devo à sua
bondade. Se sou capaz de me sustentar, é devido, em grande parte, ao interesse
que ele mostrou pela minha infeliz situação.”

    “Correspondia com ele?”

A
dama ergueu os olhos rapidamente com um brilho de raiva nos seus olhos
castanhos.

    “Qual é o objetivo dessas
perguntas?” ela perguntou abruptamente.

    “O objetivo é evitar um escândalo
público. É melhor eu fazê­las aqui do que o assunto sair fora do nosso
controle.”

Ela
estava silenciosa e seu rosto ainda estava muito pálido. Por fim, ergueu os
olhos de um modo um tanto desafiador e afoito.   

“Bem,
eu vou responder”, disse ela. “Quais são as suas perguntas?”

    “A senhora se correspondia com Sir
Charles?”

    “Certamente, escrevi­lhe uma ou duas
vezes para agradecer a sua delicadeza e generosidade.”

    “Sabe as datas das cartas?”

    “Não.”

    “Alguma vez encontrou com ele?”

    “Sim, uma ou duas vezes, quando ele
veio a Coombe Tracey. Ele era um homem muito reservado e preferiu fazer o bem
em segredo.”

    “Mas se a senhora o viu tão raramente
e escreveu tão raramente, como ele soube o suficiente sobre os seus negócios
para poder ajudá­la, como a senhora diz que ele fez?”

   Ela enfrentou a minha pergunta com a máxima
presteza.

    “Havia vários cavalheiros que
conheciam a minha triste história e se uniram para me ajudar. Um foi o Sr.
Stapleton, um vizinho e amigo íntimo de Sir Charles. Era extremamente amável e
foi através dele que Sir Charles soube do meu caso.”

Eu
já sabia que Sir Charles Baskerville havia tornado Stapleton seu esmoler em
várias ocasiões, portanto, a afirmação da senhora trazia consigo o selo da
verdade.

    “Alguma vez escreveu a Sir Charles
pedindo a ele para encontrar­se com a senhora?”, prossegui.

A
Sra. Lyons corou de raiva outra vez.

    “Realmente, senhor, esta é uma
pergunta muito extraordinária.”

    “Sinto muito, senhora, mas devo
repeti-la.”

    “Então, eu respondo: certamente que
não.”

    “Nem no próprio dia da morte de Sir
Charles?”

    O rubor desapareceu num instante e um rosto
mortal estava diante de mim. Seus lábios secos não conseguiam dizer um ‘Não’,
mas eu mais vi do que ouvi.

    “Certamente a sua memória a
engana”, disse eu. “Posso até citar uma passagem da sua carta. Ela
diz: ‘Por favor, por favor, já que o senhor é um cavalheiro, queime esta carta
e esteja no portão às dez horas’.”

    Pensei que ela fosse desmaiar, mas ela se
recuperou com um esforço supremo.

    “Será que não existem mais
cavalheiros?”, indagou, ofegante.

    “Estou cometendo uma injustiça com Sir
Charles. Ele queimou a carta. Mas, às vezes, uma carta pode ser legível mesmo
quando queimada. Reconhece agora que a escreveu?”

    “Sim, eu a escrevi”, ela gritou,
derramando de sua alma uma torrente de palavras. “Eu a escrevi. Porque eu
deveria negar? Eu não tenho nenhuma razão para envergonhar-me. Queria que ele
me ajudasse. Eu acreditava que, se conseguisse uma entrevista, poderia ganhar a
sua ajuda, por isso, pedi-lhe para me encontrar.”

    “Mas por que àquela hora da noite?”

    “Porque eu acabara de saber que ele
estava indo para Londres no dia seguinte e ficaria por lá vários meses. Havia
razões pelas quais eu não poderia chegar lá mais cedo.”

    “Mas por que um encontro no jardim, em
vez de uma visita a casa?”

    “Acha que uma mulher pode ir sozinha a
essa hora da noite na casa de um homem solteiro?”

    “O que aconteceu quando chegou
lá?”

    “Eu não fui.”

    “Sra. Lyons!”

    “Não fui, eu juro por tudo o que é
sagrado. Que eu nunca fui lá. Algo interveio e me impediu de ir.”

    “Que intervenção foi essa?”

    “Isso é um assunto particular. Eu não
posso dizer.”

    “Reconhece, então, que marcou uma
entrevista com Sir Charles à hora exata e local exato onde ele encontrou a
morte, mas nega que  tenha
comparecido.”

    “Essa é a verdade.”

    Novamente a interroguei sobre esse detalhe,
mas não consegui passar desse ponto.

    “Senhora Lyons”, disse eu, quando
me levantei a partir desta entrevista inconclusiva: “a senhora está
assumindo uma responsabilidade muito grande e colocando­se numa posição muito
falsa por não confessar absolutamente tudo o que sabe. Se eu tiver que pedir o
auxílio da polícia a senhora descobrirá como está seriamente comprometida. Se a
senhora é inocente, por que negou no primeiro caso ter escrito a Sir Charles
naquela data?”

    “Porque eu receava que pudesse ser
tirada alguma falsa conclusão disso e ver-me envolvida num escândalo.”

    “E por que a senhora foi tão
insistente para que Sir Charles destruísse a sua carta?”

    “Se o senhor tivesse lido a carta
saberia.”

    “Eu disse que não li toda a
carta.”

    “Citou alguns trechos”.

    “Citei o post scriptum. A carta, como já disse, foi queimada e não era toda
legível. Pergunto mais uma vez: por que fazia tanta questão que Sir Charles
destruísse a carta que recebeu no dia de sua morte.”

    “O assunto é muito particular.”

    “Motivo mais forte para a senhora
evitar uma investigação pública.”

 “Vou contar ao senhor, então. Se o senhor
já ouviu alguma coisa sobre a minha infeliz história, saberá que fiz um
casamento precipitado e tive motivos para me arrepender dele.”

    “Eu tenho ouvido isso.”

    “Minha vida tem sido uma perseguição
incessante de um marido que detesto. A lei está do lado dele e a cada dia
enfrento a possibilidade dele poder me forçar a ir viver com ele. Na ocasião em
que escrevi essa carta a Sir Charles, soube que havia uma perspectiva de
recuperar a minha liberdade completa se pudesse arcar com as despesas. Isso
significava muito para mim, paz de espírito, felicidade, respeito próprio,
tudo. Eu conhecia a generosidade de Sir Charles e achei que se ele ouvisse a
história dos meus próprios lábios me ajudaria.”

    “Então, como é que a senhora não
foi?”

    “Porque recebi ajuda, no intervalo, de
outra fonte.”

    “Por que, então, a senhora não
escreveu a Sir Charles e explicou isso?”

    “É o que eu devia ter feito se não
tivesse lido sobre a sua morte no jornal, na manhã seguinte.”

    A história da mulher era coerente e nem uma
de minhas perguntas foram capazes de abalá-la. Eu só poderia tirar a prova,
verificando se, de fato, ela ajuizara ação de divórcio contra o marido, na
ocasião da tragédia.

Era
pouco provável que ela se atrevesse a dizer que não teria estado na Mansão
Baskerville se realmente tivesse estado, porque seria necessário um trole para
levá­la até lá, e não podia ter voltado a Coombe Tracey senão às primeiras
horas da manhã. Uma excursão dessas não podia ser mantida em segredo. A
probabilidade era, portanto, de que ela estivesse dizendo a verdade ou, pelo
menos, parte da verdade. Eu saí confuso e desanimado. Mais uma vez havia
chegado àquele beco sem saída que parecia ter sido obstruído em todos os
caminhos pelos quais eu tentava chegar ao objetivo da minha missão. E apesar
disso quanto mais eu pensava no rosto da senhora e nos seus modos, mais eu
sentia que alguma coisa estava sendo escondida de mim. Por que ela ficara tão
pálida? Por que lutava contra cada admissão até esta ser extraída dela à força?
Por que tivera que ser tão reticente por ocasião da tragédia? Certamente a
explicação de tudo isso não podia ser tão inocente como ela queria me fazer
crer. No momento, não devia continuar mais nessa direção; tinha que me voltar
para a outra pista, que parecia existir entre as cabanas de pedra, sobre as
colinas.

E
essa era uma pista muito vaga. Percebi isso ao regressar e notar como colina
após colina apresentavam vestígios do povo antigo. A única indicação de
Barrymore tinha sido de que o estranho morava numa dessas cabanas abandonadas e
centenas delas estão espalhadas por toda a charneca. Mas eu tinha a minha
própria experiência como guia, já que vira o homem de pé, no cume do pico
rochoso. Agora, devia ser o centro de minha busca. A partir de lá, eu devia explorar
cada cabana da charneca até dar com a certa. Se esse homem estivesse dentro de
um delas, eu iria encontrá-lo e o obrigaria a me contar pelos seus próprios
lábios – apontaria o meu revólver para ele se fosse necessário -, quem era ele
e por que nos seguira por tanto tempo. Ele podia escapar de nós por entre a
multidão da Regent Street, mas ficaria difícil escapar de mim nesta charneca
solitária. Por outro lado, se eu encontrasse a cabana e o seu inquilino não
estivesse dentro dela, ficaria lá, por mais longa que fosse a vigília, até ele
voltar. Holmes o havia perdido de vista, em Londres. Seria realmente um triunfo
para mim se pudesse achá­lo, onde o meu mestre havia falhado.

        A sorte tinha estado contra nós
repetidas vezes nesta investigação, mas agora finalmente ela vinha em meu
auxílio. E o mensageiro da boa nova não foi nenhum outro do que o Sr.
Frankland, que estava parado, com as suíças grisalhas e o rosto vermelho, do
lado de fora do portão do seu jardim, que se abria para a estrada pela qual eu
seguia.

    “Bom dia, Dr. Watson”, exclamou
ele com desusado bom humor. “O senhor precisa realmente deixar os seus
cavalos descansarem e entrar para tomar um cálice de vinho e
felicitar-me.”

Meus
sentimentos para com ele estavam longe de serem amistosos depois do que eu
havia ouvido sobre o tratamento que dera à filha, mas eu estava ansioso para
mandar Perkins e o coche para casa e a oportunidade era boa. Desci e mandei um
recado para Sir Henry de que voltaria a pé a tempo para o jantar. Depois, segui
Frankland até a sua sala de jantar.

    “É um grande dia para mim, Dr. Watson,
um dos dias memoráveis da minha vida”, exclamou ele com muitos risos
reprimidos. “Consegui realizar dois feitos. Quero mostrar a eles nestas
partes que lei é lei, e que há um homem aqui que não tem medo de invocá­la.
Estabeleci uma servidão de passagem pelo meio do velho parque de Middleton,
diretamente no meio dele, Dr. Watson, a noventa metros de sua própria porta da
frente. O que acha disso? Ensinaremos a esses magnatas que eles não podem
passar tiranicamente sobre os direitos dos plebeus, diabos os levem! E fechei a
floresta onde a família Femworthy costumava fazer piquenique. Essa gente
infernal parece pensar que não há nenhum direito de propriedade, e que eles
podem formigar por onde quiserem com seus papéis e suas garrafas. Ambos os
casos resolvidos, Dr. Watson, e ambos a meu favor. Não tinha tido um dia
desses, desde que processei Sir John Morland por invasão, porque ele atirou em
seu próprio parque.

“Como
o senhor conseguiu isso?”

    “Procurei referências nos livros, Dr.
Watson. Vale a pena ler, Frankland versus Morland, Tribunal Superior de
Justiça. Custou-me duzentas libras, eu tenho o meu veredicto.”

    “Será que fez algum bem?”

    “Nenhum, senhor, nenhum. Orgulho-me em
dizer que não tenho nenhum interesse na questão. Ajo inteiramente com um
sentido de dever público. Não tenho nenhuma dúvida, por exemplo, de que a
família Fernworthy me queimará em efígie esta noite. Eu disse à polícia da
última vez que eles fizeram isso que devia impedir essas exibições vergonhosas.
A Polícia do Condado está num estado escandaloso, senhor, e não me deu a
proteção a que tenho direito. O caso Frankland versus Regina levará a questão à
atenção do público. Eu disse a eles que eles teriam ocasião de lamentar o
tratamento que me dispensaram e as minhas palavras já se tornaram
realidade.”

    “Como assim?”, perguntei.

    O velho assumiu uma expressão muito astuta.

    “Porque posso dizer a eles o que eles
estão loucos para saber; mas nada me convencerá a ajudar os patifes de qualquer
maneira.”

 Estive procurando com empenho alguma desculpa
pela qual pudesse me livrar dos seus mexericos, mas agora comecei a desejar
ouvir mais. Eu havia visto o suficiente da natureza caprichosa do velho pecador
para compreender que qualquer indicação forte, de interesse. seria a maneira
mais certa de interromper as suas confidências.

    “Algum caso de invasão, sem
dúvida?”, eu disse de maneira indiferente.

    “Ah, meu rapaz, uma questão muito mais
importante do que isso! E quanto ao condenado na charneca?

     Levei um susto.

    “O senhor quer dizer que sabe onde ele
está?”, eu disse.

    “Pode ser que eu não saiba exatamente
onde ele está, mas estou absolutamente certo de que posso ajudar a polícia a
pôr as mãos nele. Nunca lhe ocorreu que a maneira de pegar esse homem é
descobrir onde ele consegue a comida e assim segui­la até ele?”

Ele
certamente parecia estar chegando, incomodamente, perto da verdade.

“Sem
dúvida”, disse eu. “Mas como o senhor sabe que ele está em alguma
parte da charneca?”

    “Sei porque vi com os meus próprios
olhos o mensageiro que leva a comida para ele.”

Meu
coração sucumbiu por Barrymore. Era uma coisa séria cair em poder desse velho
abelhudo e vingativo. Mas seu comentário seguinte tirou um peso da minha alma.

    “O senhor ficaria surpreso de saber
que a comida dele é levada por uma criança. Eu o vejo todo dia pelo meu
telescópio sobre o telhado. Ele passa pelo mesmo caminho à mesma hora, e para
quem ele deve estar indo senão para o condenado.”

    Isto era sorte, mesmo! E, não obstante,
suprimi toda aparência de interesse. Uma criança! Barrymore havia dito que o
nosso desconhecido era abastecido por um rapaz. Foi na pista dele e não na do
condenado, que Frankland havia tropeçado. Se eu conseguisse saber o que ele
sabia, isso podia me economizar uma busca longa e cansativa. Mas a
incredulidade e a indiferença eram evidentemente minhas cartas mais fortes.

    “Eu diria que é muito mais provável
que seja o filho de algum dos pastores da charneca levando o jantar do seu
pai.”

    A mínima aparência de oposição tocou fogo
no velho autocrata. Seus olhos olharam malignamente para mim e suas suíças
grisalhas se eriçaram como as de um gato enfurecido.

    “De fato, senhor!” disse ele,
apontando para o vasto pântano. “Está vendo aquele pico rochoso negro lá
longe? Bem, está vendo a colina baixa além com moitas espinhosas em cima?
Aquela é a parte mais rochosa de toda a charneca. Aquele é um lugar onde um
pastor teria probabilidade de ficar? A sua sugestão, Dr. Watson, é
completamente absurda.”

    Respondi humildemente que havia falado sem
conhecer todos os fatos. Minha submissão agradou­o e levou­o a outras
confidências.

“Pode
ter certeza, senhor, que tenho muito bons fundamentos antes de chegar a uma
opinião. Vi o menino várias vezes com a sua trouxa. Todos os dias e, algumas
vezes, duas vezes por dia, pude… mas espere um momento, Dr. Watson. Os meus
olhos me enganam ou há no momento alguma coisa se movendo na encosta daquela
colina.”

    Estava a vários quilômetros de distância,
mas pude ver nitidamente um pontinho preto contra o verde e o cinzento escuros.

    “Venha, senhor, vem!” gritou
Frankland, subindo as escadas. “O senhor verá com os seus próprios olhos e
julgará por si mesmo.”

O
telescópio, um instrumento formidável, montado sobre um tripé, estava sobre as
folhas de chumbo do telhado. Frankland encostou o olho vigorosamente a ele e
deu um grito de satisfação.

   
“Depressa, Dr. Watson, depressa, antes que ele passe por cima da
colina!”

    Lá estava ele, realmente, um menino pequeno
com uma pequena trouxa sobre o ombro, subindo a colina com esforço e
lentamente. Quando chegou ao topo, vi o vulto misterioso delineado por um
instante contra o frio céu azul. Ele olhou em volta, com um aspecto furtivo e
dissimulado, como alguém que receia ser perseguido. Depois desapareceu sobre a
colina.

    “Bem! Estou certo?”

    “Há um menino, sem dúvida, que parece
ter alguma missão secreta.”

    “E qual é a missão até um policial de
condado pode imaginar. Mas eles não ouvirão de mim nem uma palavra, e
imponho­lhe a obrigação do segredo, também, Dr. Watson. Nem uma palavra! O
senhor compreende!”

    “Como quiser.”

    “Eles têm me tratado vergonhosamente,
vergonhosamente. Quando os fatos surgirem ‘Frankland versus Regina’, arrisco­me
a pensar que uma onda de indignação percorrerá o país. Nada me convenceria a
ajudar a polícia em qualquer sentido. Eles pouco se importariam que pudesse ter
sido eu, em vez da minha efígie, que estes patifes queimariam na estaca.
Certamente o senhor não está indo embora? O senhor me ajudará a esvaziar a
garrafa em homenagem a esta grande ocasião!”

Mas
eu resisti a todas as suas solicitações e consegui dissuadi-lo da sua intenção
anunciada de me acompanhar até a casa. Segui pela estrada enquanto os seus
olhos estavam sobre mim, e depois atalhei pela charneca e dirigi-me para a
colina rochosa sobre a qual o menino havia desaparecido. Tudo estava trabalhando
a meu favor, e jurei que não seria por falta de energia ou perseverança que eu
perderia a oportunidade que o destino havia lançado em meu caminho.

O
sol já estava se pondo quando cheguei ao alto da colina, e as longas encostas
abaixo de mim estavam todas verdes, douradas de um lado e cinzentas e sombrias
do outro. Uma neblina baixa pairava sobre o horizonte longínquo, do qual se
projetavam as formas fantásticas dos picos rochosos de Belliver e Vixen. Sobre
a vasta extensão não havia nenhum som e nenhum movimento. Uma grande ave
cinzenta, uma gaivota ou um maçarico, pairava no espaço azul do céu. Ela e eu
parecíamos ser as únicas coisas vivas entre a enorme abóbada do céu e o deserto
sob ele. A cena descampada, a sensação de isolamento e o mistério e a urgência
da minha tarefa lançaram um calafrio no meu coração. O menino não podia ser
visto em parte alguma. Mas bem abaixo de mim, numa fenda das colinas, havia um
círculo de velhas cabanas de pedra e, no meio delas, havia uma que conservava
uma cobertura suficiente para servir como proteção contra o vento. Meu coração
saltou dentro de mim quando a vi. Esse devia ser o abrigo onde o estranho se
escondia. Por fim, meu pé estava no limiar do seu esconderijo, seu segredo
estava ao meu alcance.

Quando
me aproximei da cabana, caminhando tão cuidadosamente quanto Stapleton faria
quando, com a rede em posição e chegava perto da borboleta escolhida,
certifiquei-me de que o lugar havia realmente sido usado como habitação. Um
vago caminho por entre os rochedos levava até a abertura dilapidada que servia
de porta. Tudo estava em silêncio. O desconhecido podia estar escondido ali, ou
podia estar vagando pela charneca. Meus nervos vibravam com a sensação da
aventura. Atirando o meu cigarro para o lado, cerrei a mão sobre a coronha do
meu revólver e indo rapidamente até a porta, olhei para dentro. O lugar estava
vazio.

Mas
havia amplos sinais de que eu não seguira um rastro falso. Ali era certamente
onde o homem morava. Alguns cobertores enrolados num impermeável jaziam sobre a
própria laje de pedra sobre a qual o homem neolítico certa vez dormira. As
cinzas de uma fogueira estavam amontoadas numa grade rústica. Ao lado dela
havia alguns utensílios de cozinha e um balde com água pela metade. Uma
confusão de latas vazias mostrava que o lugar havia sido ocupado por algum
tempo, e vi, quando meus olhos ficaram acostumados à luz enfraquecida, uma
canequinha e uma garrafa meio cheia de aguardente, colocadas num canto. No meio
da cabana, uma pedra chata servia como mesa, e sobre esta estava uma pequena
trouxa de pano, a mesma, sem dúvida, que eu havia visto pelo telescópio sobre o
ombro do menino. Continha um pedaço de pão, uma língua em lata e duas latas de
pêssegos em conserva. Quando a larguei novamente, após tê­la examinado, meu
coração deu um pulo ao ver que embaixo dela havia uma folha de papel com algo
escrito. Levantei­a, e isto foi o que li, rabiscado a lápis, grosseiramente: ‘O
Dr. Watson foi até Coombe Tracey.’

Por
um minuto, fiquei parado ali com o papel na mão refletindo sobre essa curta
mensagem. Era eu, então, e não Sir Henry, que estava sendo seguido por esse
homem misterioso. Ele próprio não havia me seguido, mas havia posto um agente,
o menino, talvez, na minha pista, e esse era o seu relatório. Provavelmente, eu
não tinha dado um passo desde que estava na charneca que não tivesse sido
observado e anotado. Sempre houvera essa sensação de uma força invisível, uma
rede fina puxada em volta de nós com habilidade e delicadeza infinitas,
segurando­nos, tão levemente, que só em algum momento supremo é que se percebia
estar emaranhado em suas malhas.

Se
havia um relatório, podia haver outros, portanto, olhei em volta da cabana em
busca deles. Não havia nenhum vestígio, nada parecido, nem pude descobrir
qualquer sinal que pudesse indicar o caráter ou as intenções do homem que
morava nesse lugar singular, salvo que ele devia ser de hábitos espartanos e
dava pouca importância aos confortos da vida. Quando pensei nas fortes chuvas e
olhei para o teto escancarado, compreendi como devia ser forte e imutável o
propósito que o havia mantido naquela habitação inóspita. Seria ele o nosso
inimigo maligno, ou era ele por acaso o nosso anjo da guarda? Jurei que não
deixaria a cabana até saber.

Do
lado de fora, o sol estava se pondo e o horizonte a oeste estava em chamas
escarlates e douradas. Seu reflexo era enviado de volta em manchas avermelhadas
pelos charcos distantes que jaziam no meio do grande pântano. Lá estavam as
duas torres da Mansão Baskerville, e lá uma mancha distante de fumaça que
marcava a aldeia de Grimpen. Entre as duas, atrás da colina, estava a casa de
Stapleton. Tudo era bonito, suave e tranquilo à luz dourada da noitinha e,
quando eu olhava para eles, minha alma não partilhava em nada da paz da
Natureza, mas tremia diante da incerteza e do terror daquela entrevista que a
cada instante se aproximava mais. Com os nervos vibrando, mas com um firme
propósito, sentei­me no recesso escuro da cabana e esperei com paciência
sombria a chegada do seu inquilino.

E
então o ouvi finalmente. De longe, veio o ruído vivo de uma bota batendo numa
pedra. Depois outro e ainda outro, chegando cada vez mais perto. Encolhi­me no
canto mais escuro e engatilhei a pistola em meu bolso, resolvido a não me
descobrir até ter a oportunidade de ver alguma coisa do estranho. Houve uma
longa pausa que mostrou que ele havia parado. Depois mais uma vez, os passos se
aproximaram e uma sombra caiu atravessada na abertura da cabana.

    “Está uma noite encantadora, meu caro
Watson”, disse uma voz muito conhecida. “Acho realmente que você
ficará mais confortável fora do que dentro.”

 

CAPÍTULO 12

MORTE NO PÂNTANO

 

Por
um segundo ou dois, fiquei sentado sem fôlego, incapaz de acreditar nos meus
ouvidos. Então, meus sentidos e minha voz voltaram, enquanto um peso esmagador
de responsabilidade pareceu, num instante, ter sido erguido da minha alma.
Aquela voz fria, incisiva e irônica não podia pertencer senão a um homem em
todo o mundo.

    “Holmes!”, exclamei.
“Holmes!”

    “Venha”, disse ele, “e tenha
cuidado com o revólver.”

Abaixei­me
sob a verga grosseira e lá estava ele sentado sobre uma pedra do lado de fora
com os olhos cinzentos dançando com diversão ao caírem sobre as minhas feições
espantadas. Ele estava magro e cansado, mas sereno e alerta, com o seu rosto
agudo bronzeado pelo sol e maltratado pelo vento. Com seu terno de tweed e boné de pano, parecia qualquer
outro turista sobre a charneca, e havia conseguido, com aquele amor felino pela
limpeza pessoal que era uma de suas características, que o seu queixo ficasse
tão liso e sua roupa tão perfeita como se estivesse na Baker Street.

    “Nunca fiquei mais satisfeito de ver
alguém em minha vida”, disse eu ao apertar­lhe a mão.

    “Ou mais espantado, né?”

    “Bem, devo confessar que sim.”

    “A surpresa não foi toda de um lado
só, garanto­lhe. Não tinha nenhuma ideia de que você havia encontrado o meu
retiro ocasional, menos ainda que você estivesse dentro dele, até eu chegar a
vinte passos da porta.”

    “Minha pegada, eu presumo?”

    “Não, Watson; receio não poder
reconhecer a marca dos seus pés entre todas as marcas de pés do mundo. Se você
desejar seriamente me enganar deve mudar de charutaria, porque quando vejo a
ponta de um cigarro marcada Bradley, Oxford Street, sei que o meu amigo Watson
está nas vizinhanças. Você a verá lá ao lado do caminho. Você a jogou fora, sem
dúvida, naquele momento supremo em que investiu para dentro da cabana
vazia”

    “Exatamente.”

    “Achei o máximo – e sabendo de sua
tenacidade admirável, estava convencido de que você estava sentado como em uma
emboscada, com uma arma ao alcance, esperando que o inquilino voltasse. Então,
você realmente pensou que eu fosse o criminoso?”

    “Eu não sabia quem era, mas estava
resolvido a descobrir.”

    “Excelente, Watson! E como você me
localizou? Você me viu, talvez, na noite da caçada ao condenado, quando eu
estava tão imprudente a ponto de permitir que a lua se erguesse atrás de
mim?”

    “Sim, eu vi você, então.”

    “E não tenho nenhuma dúvida; procurou
em todas as cabanas até que veio a esta?”

    “Não, o seu garoto foi observado, e
isso me deu uma orientação de onde procurar.”

    “O velho cavalheiro com o telescópio,
sem dúvida. Não sabia o que era quando vi pela primeira vez a luz intermitente
brilhando na lente.” Ele levantou-se e espreitou para dentro da cabana.
“Ah, vejo que Cartwright trouxe alguns suprimentos. Que papel é este?
Então, você esteve em Coombe Tracey, não esteve?”

    “Estive.”

    “Para ver a Sra. Laura Lyons?”

    “Exatamente.”

    “Bem feito! Nossas pesquisas têm
corrido evidentemente em linhas paralelas e quando unirmos os nossos resultados
teremos um conhecimento razoavelmente completo do caso.”

    “Bem, estou satisfeito do fundo do
coração de você estar aqui, porque realmente a responsabilidade e o mistério
estavam ambos se tornando demais para os meus nervos. Mas como, em nome de que
milagre você veio aqui; o que você tem feito? Pensei que você estivesse em
Baker Street, trabalhando naquele caso de chantagem.”

    “Isso foi o que eu quis que você
pensasse.”

    “Então, você me usou e apesar disso
não confia em mim!”, exclamei com alguma amargura. “Acho que mereço
melhor tratamento de suas mãos, Holmes.”

    “Meu caro amigo, você tem sido
inestimável para mim neste e em muitos outros casos, e peço­lhe que me perdoe
se fiz um truque com você. Na verdade, foi em parte para seu próprio bem que
fiz isso, e foi a minha avaliação do perigo que você corria que me levou a vir
aqui e examinar a questão por mim mesmo. Se eu estivesse com Sir Henry e você,
é certo que o meu ponto de vista teria sido o mesmo que o seu e minha presença
teria prevenido os nossos adversários muito formidáveis para ficarem em guarda.
Assim, pude andar por aí, como provavelmente não poderia ter feito se estivesse
morando na Mansão, e continuo sendo um fator desconhecido no negócio, pronto a
lançar todo o meu peso num momento crítico.”

    “Mas por que se esconder de mim?”

    “Porque se você soubesse não poderia
ter­me ajudado e poderia, provavelmente, ter levado à minha descoberta. Você
poderia querer me contar alguma coisa ou, em sua bondade, teria me trazido um
ou outro conforto e, assim, correríamos um risco desnecessário. Trouxe
Cartwright comigo para cá, você se lembra do sujeito baixinho do Escritório do
Expresso, e ele tem cuidado dos meus desejos simples: um pedaço de pão e um
colarinho limpo. O que um homem quer mais? Ele me proporcionou um par de olhos
extra sobre um par de pés muito ativo e ambos têm sido inestimáveis”

    “Então, meus relatórios têm sido
desperdiçados!” Minha voz tremeu quando recordei as dificuldades e o
orgulho com que os havia redigido.

    Holmes pegou um maço de papéis do bolso.

    “Aqui estão os seus relatórios, meu
caro amigo, e bastante manuseados, garanto­lhe. Tomei medidas excelentes, e
eles se atrasam apenas um dia em seu caminho. Devo cumprimentá-lo calorosamente
pelo zelo e a inteligência que você demonstrou num caso extraordinariamente
difícil.”

Eu
estava bastante magoado pelo logro que havia sido praticado comigo, mas o
carinhoso elogio de Holmes afastou a raiva da minha mente. Senti também no meu
íntimo que ele tinha razão no que dissera e que era realmente melhor para o
nosso propósito que eu não soubesse que ele estava na charneca.

    “Assim é melhor”, disse ele,
vendo a ascensão da sombra em meu rosto. “E agora me conte o resultado da
sua visita a Sra. Laura Lyons, não foi difícil para mim imaginar que foi para
vê­la, porque sei que ela é a única pessoa em Coombe Tracey que pode nos ajudar
nessa questão. Na verdade, se você não tivesse ido hoje é muito provável que eu
tivesse ido amanhã.”

O
sol havia se posto e o crepúsculo estava caindo sobre a charneca. O ar esfriara
e nós entramos na cabana para nos esquentar. Lá, sentados juntos à meia­luz,
contei a Holmes a minha conversa com a senhora. Tão interessado estava ele que
tive de repetir uma parte dela duas vezes antes de ele se dar por satisfeito.

    “Isso é o mais importante”, disse
ele quando eu havia concluído. “Ele preenche uma lacuna que eu tinha sido
incapaz de transpor neste caso muito complexo. Você sabe, talvez, que existe
uma grande intimidade entre essa dama e Stapleton?”

    “Eu não sabia da grande
intimidade.”

    “Não pode haver nenhuma dúvida a
respeito disso. Eles se encontram, eles se escrevem, há um entendimento
completo entre eles. Agora isso coloca uma arma muito poderosa em nossas mãos.
Se eu pudesse usá­la pelo menos para afastar sua esposa…”

    “A esposa dele?”

    “Eu estou dando-lhe algumas
informações, agora, em troca de tudo o que você me deu. A senhora que tem
passado até aqui como senhorita Stapleton é, na realidade, a sua esposa.”

    “Deus do céu, Holmes! Você tem certeza
do que está dizendo? Como pode ele ter permitido que Sir Henry se apaixonasse
por ela?”

    “O fato de Sir Henry se apaixonar não
podia fazer mal a ninguém, exceto, a Sir Henry. Ele cuidou especialmente para
que Sir Henry não tivesse relações com ela, como você mesmo observou. Repito
que a dama é sua mulher e não sua irmã.”

    “Mas, por qual motivo essa farsa
elaborada?”

    “Porque ele previu que ela seria muito
mais útil para ele no papel de uma mulher livre.”

    Todos os meus instintos não articulados,
minhas desconfianças vagas, tomaram corpo subitamente e se concentraram no
naturalista. Naquele homem impulsivo, pálido, com seu chapéu de palha e sua
rede de borboletas, pareci ver alguma coisa terrível, uma criatura de paciência
e astúcia infinitas, com um rosto sorridente e um coração assassino.

    “É ele, então, que é o nosso inimigo,
foi ele que nos seguiu em Londres?”

    “Então, eu decifrei o enigma.”

    “E o aviso deve ter vindo dela!”

    “Exatamente.”

A
forma de alguma vilania monstruosa, entrevista, meio imaginada, avultou através
da escuridão que havia me rodeado por tanto tempo.

    “Mas você está certo disso, Holmes?
Como você sabe que a mulher é casada com ele?”

    “Porque ele até agora se esqueceu de
contar a você um trecho verdadeiro da autobiografia por ocasião do primeiro
encontro com você, e arrisco-me a dizer que se arrependeu disso muitas vezes.
Certa vez, ele foi diretor de um colégio no norte da Inglaterra. E não há
ninguém mais fácil de se seguir a pista do que um diretor de colégio. Há
agências escolásticas pelas quais se pode identificar qualquer homem que tenha
estado na profissão. Uma pequena investigação mostrou­me que um colégio sofrera
um fracasso em circunstâncias atrozes e que o homem que era dono dele, o nome
era diferente, havia desaparecido com a mulher. As descrições se casam muito
bem. Quando eu soube que o homem desaparecido era dedicado à entomologia a
identificação ficou completa.”

    A escuridão estava diminuindo, mas muita
coisa ainda estava escondida pelas sombras.

    “Se essa mulher é realmente casada com
ele, onde entra a Sra. Laura Lyons?”, perguntei.

    “Esse é um dos pontos sobre o qual as
suas próprias pesquisas lançaram uma luz. A sua entrevista com a dama
esclareceu muito a situação. Eu não sabia sobre o projetado divórcio entre ela
e seu marido. Nesse caso, considerando Stapleton como um homem livre, ela
contava sem dúvida em se tornar mulher dele.”

    “E quando ela souber?”

    “Ora, então podemos encontrar uma dama
prestativa. Deve ser o nosso primeiro dever vê-la, nós dois, amanhã. Você não
acha, Watson, que está longe do seu pupilo há bastante tempo? O seu lugar deve
ser na Mansão Baskerville.”

As
últimas riscas vermelhas haviam desaparecido a oeste e a noite havia caído
sobre a charneca. Algumas estrelas desbotadas estavam brilhando num céu
violeta.”

    “Uma última pergunta, Holmes”, eu
disse quando me levantei. “Certamente não há nenhuma necessidade de
segredo entre mim  e você. Qual é o
significado disso tudo? O que procura ele?”

    A voz de Holmes abaixou quando respondeu:

    “É assassinato, Watson, refinado, a
sangue­frio, assassinato deliberado. Não me pergunte detalhes. Minhas redes
estão se fechando sobre ele, assim como as dele estão sobre Sir Henry, e com a
sua ajuda ele já está quase à minha mercê. Não há senão um perigo que pode nos
ameaçar. É dele atacar antes de estarmos prontos para fazê­lo. Mais um dia,
dois no máximo, e tenho o meu caso completo, mas, até então, cuide do seu
pupilo tão de perto como uma mãe extremosa vigiou alguma vez o seu filho
doente. A sua missão hoje justificou-se por si mesma e, apesar disso, quase
cheguei a desejar que você não tivesse saído do lado dele; volte!”

Um
grito horrível, um brado de horror e angústia, explodiu no silêncio da
charneca. Esse grito medonho transformou o sangue em gelo em minhas veias.

    “Oh, meu Deus!”, disse eu ofegante.
“O que é isso? O que significa?”

    Holmes havia ficado de pé num salto, e vi o
seu vulto escuro e atlético na porta da cabana, com os ombros abaixados, a
cabeça projetada para frente e o rosto explorando a escuridão.

    “Silêncio!”, sussurrou ele.
“Silêncio!”

O
grito havia sido alto devido à sua veemência, mas havia ressoado de algum lugar
afastado na planície escura. Agora, explodiu nos nossos ouvidos, mais perto,
mais alto, mais urgente do que antes.

    “Onde está ele?” Holmes murmurou,
e eu vi pela excitação da sua voz que ele, o homem de ferro, estava abalado até
a alma. “Onde está, Watson?”

    “Ali, eu acho.” Eu apontei para a
escuridão.

    “Não, ali!”

    Mais uma vez o grito de agonia passou pela
noite soturna, mais alto e muito mais perto do que nunca. E um novo som
misturou­se com ele, um troar sussurrado, profundo, musical e apesar disso
ameaçador, aumentando e diminuindo como o murmúrio baixo e constante do mar.

    “O cão!”, exclamou Holmes.
“Venha, Watson, venha! Que os céus nos ajudem a não chegarmos tarde
demais!”

Ele
tinha começado a correr rapidamente pela charneca, e eu havia seguido os seus
calcanhares. Mas agora, de alguma parte, por entre o terreno irregular à nossa
frente, veio um último grito desesperado e depois uma pancada forte e
ensurdecedora. Nós paramos e ficamos ouvindo. Nenhum outro som rompeu o
silêncio pesado da noite sem vento.

    Vi Holmes pôr a mão na testa como um homem
distraído. Ele bateu com os pés no chão.

    “Ele chegou antes de nós, Watson.
Estamos atrasados.”

    “Não, não, claro que não!”

    “Que tolo fui em me conter. E você,
Watson, veja no que dá abandonar o seu protegido! Mas, por Deus, se o pior
aconteceu, vamos nos vingar!”

Corremos
cegamente pela escuridão, tropeçando contra pedras, forçando o nosso caminho
através de moitas de tojo, subidas ofegantes e correndo pelas encostas, indo
sempre na direção dos sons terríveis que haviam chegado até nós. A cada
elevação, Holmes olhava ansiosamente em volta, mas as sombras eram espessas
sobre a charneca, e nada se movia sobre a sua superfície triste.

    “Você pode ver alguma coisa?”

    “Nada.”

    “Mas, ouça, o que é isso?”

 Um gemido baixo havia chegado aos nossos
ouvidos. Lá estava ele novamente à nossa esquerda! Nesse lado, uma crista de
rochas terminava numa escarpa vertical que dominava uma encosta juncada de
pedras. Na sua superfície desigual estava esparramado um objeto escuro,
irregular. Quando corremos na direção dele, o contorno vago assumiu uma forma
definida. Era um homem prostrado de bruços sobre o chão, com a cabeça dobrada
sob si num ângulo horrível, os ombros redondos, e o corpo encolhido como se
estivesse no ato de dar um salto mortal. Tão grotesca era a atitude que não
pude perceber no momento que aquele gemido tinha sido a entrega da sua alma.
Nem um sussurro, nem um roçagar, erguia­se agora do vulto escuro sobre o qual
nos abaixamos. Holmes pôs sua mão sobre ele e levantou­a novamente com uma
exclamação de horror. A chama do fósforo que ele riscou brilhou sobre os seus
dedos empastados e sobre a poça horrível que se ampliava lentamente do crânio
esmagado da vítima. E brilhou sobre mais alguma coisa que deixou as nossas
entranhas reviradas e desfalecidas dentro de nós, o corpo de Sir Henry
Baskerville.

Não
havia nenhuma possibilidade de qualquer de nós esquecer aquele terno peculiar
de tweed avermelhado, o mesmo que ele
havia usado na primeira manhã em que o havíamos visto na Baker Street. Tivemos
um único vislumbre dele, e depois o fósforo piscou e se apagou, ao mesmo tempo
em que a esperança havia desertado de nossas almas. Holmes gemeu e seu rosto
pálido brilhava na escuridão.

“O
animal! O animal!”, exclamei com os punhos cerrados. “Oh, Holmes,
nunca me perdoarei por tê­lo deixado entregue à sua sorte.

    “Eu sou mais culpado do que você,
Watson. A fim de ter o meu caso bem esclarecido e completo, desperdicei a vida
do meu cliente. Esse é o maior golpe que recaiu sobre mim em minha carreira.
Mas como eu podia saber que ele arriscaria a sua vida sozinho na charneca
apesar de todos os meus avisos?”

    “Devemos ter ouvido os gritos dele,
meu Deus; esses gritos. E, além disso, não conseguimos salvá-lo. Onde está esse
cão feroz que o levou à morte? Ele pode estar escondido entre as rochas, neste
instante. E Stapleton, onde está ele? Ele deve responder por esta ação.”

    “Vai pagar. Cuidarei disso. Tio e
sobrinho foram assassinados; o primeiro morreu de susto, pela visão de uma fera
que ele pensava ser sobrenatural, o outro levado ao seu fim em sua fuga louca
para fugir dela. Mas agora temos que provar a relação entre o homem e a fera.
Exceto, pelo que ouvimos, não podemos jurar sequer quanto à existência da
última, já que Sir Henry morreu evidentemente da queda. Mas, por Deus, astuto
como ele é, o sujeito estará em meu poder antes de outro dia terminar!”

Ficamos
de pé com os corações amargurados dos dois lados do corpo desfigurado,
esmagados por esse desastre súbito e irrevogável que havia levado todos os
nossos esforços longos e cansativos a um fim tão lamentável. Depois, quando a
lua se ergueu, subimos até o alto das rochas de cima das quais o nosso pobre
amigo havia caído, e do cume contemplamos a charneca escura, meio prata e meio
sombras. Ao longe, a quilômetros de distância, na direção de Grimpen, uma luz
amarela firme e isolada estava brilhando. Ela só podia vir da casa retirada de
Stapleton. Com uma praga amarga, sacudi meu punho para ela enquanto olhava.

“Por
que não podemos pegá­lo imediatamente?”

“O
nosso caso não está completo. O sujeito é desconfiado e astuto até o último
grau. Não se trata do que nós sabemos, mas do que podemos provar. Se fizermos
um movimento em falso, o vilão ainda pode nos escapar.”

    “O que podemos fazer?”

    “Haverá bastante o que fazer para nós
amanhã. Esta noite só podemos realizar os últimos ritos para o nosso pobre
amigo.”

    Juntos descemos a encosta escarpada e
aproximamo-nos do corpo, negro e claro contra as pedras prateadas. A agonia
daquelas pernas contorcidas provocou-me um espasmo de dor e encheu meus olhos
de lágrimas.

    “Temos que pedir ajuda, Holmes! Nós
não podemos carregá­lo a distância toda até a Mansão. Céus, você está
louco?”

    Ele havia soltado um grito e inclinando-se
sobre o corpo. Agora estava dançando, rindo e apertando a minha mão. Poderia
esse ser o meu amigo sério e retraído? Esses eram fogos escondidos, de fato!

    “Uma barba! Uma barba! O homem tem uma
barba!”

    “A barba?”

    “Não é o baronete – é – por isso, é
meu vizinho, o condenado!”

Com
pressa febril viramos o corpo de frente, e aquela barba gotejante estava
apontada para a lua fria e clara no alto. Não podia haver nenhuma dúvida quanto
à testa saliente e aos olhos afundados de animal. É verdade que foi o mesmo
rosto que havia olhado ferozmente para mim à luz da vela de cima da pedra, o
rosto de Selden, o criminoso.

    Depois, num instante, tudo se tornou claro
para mim. Lembrei­me de como o baronete havia me contado que dera o seu velho
guarda­roupa a Barrymore. Este o havia passado adiante a fim de ajudar Selden
em sua fuga. Botas, camisa, boné, era tudo de Sir Henry. A tragédia ainda era
bastante negra, mas esse homem havia pelo menos merecido a morte pelas leis do
seu país. Contei a Holmes como estavam as coisas, com o meu coração borbulhando
de gratidão e alegria.

    “Então, as roupas tinham causado a
morte do pobre diabo”, disse ele. “É evidente que o cão foi lançado
na pista de algum objeto de Sir Henry, a bota que foi surrupiada do hotel, com
toda a probabilidade, e assim descobriu este homem. Há uma coisa muito singular,
contudo: como foi que Selden, no escuro, veio a saber que o cão estava em sua
pista?”

    “Ele ouviu.”

    “Ouvir um cão na charneca não levaria
um homem duro como este condenado a esse paroxismo de terror a ponto de
arriscar a recaptura, gritando desesperadamente por socorro. Pelos seus gritos,
ele deve ter corrido uma longa distância após saber que o animal estava na sua
pista. Como ele sabia?”

    “Um mistério maior para mim é por que
esse cão, supondo que todas as nossas conjeturas estejam corretas…”

    “Eu presumo que nenhuma.”

    “Bem, então, por que esse cão estava
solto esta noite? Suponho que nem sempre ele corra solto pela charneca.
Stapleton não o deixaria ir a menos que tivesse motivos para pensar que Sir
Henry estivesse aqui.”

    “Minha dificuldade é a mais formidável
das duas, porque eu acho que teremos em breve uma explicação sua, ao passo que
a minha pode permanecer para sempre um mistério. A questão agora é, o que
devemos fazer com o corpo deste pobre diabo? Não podemos deixá­lo aqui para as
raposas e os corvos.”

    “Eu sugiro que o ponhamos dentro de
uma das cabanas até podermos nos comunicar com a polícia.

­Exatamente.
Não tenho nenhuma dúvida de que você e eu possamos carregá-lo até lá. Ora,
Watson, o que é isto? É o próprio homem, por tudo que é maravilhoso e
audacioso! Nem uma palavra que revele as suas suspeitas, nem uma palavra, ou
meus planos se desmoronam no chão.”

Um
vulto estava se aproximando de nós pela charneca e eu vi o brilho vermelho
fraco de um charuto. A luz brilhava sobre ele, e pude distinguir a forma
agitada e o andar lépido do naturalista. Ele parou quando nos viu, e depois
avançou novamente. “Ora, Dr. Watson, não é o senhor, é? O senhor é o
último homem que eu teria esperado ver cá fora na charneca a essa hora da noite.
Mas, meu Deus, o que é isso? Alguém ferido? Não, não me diga que é o nosso
amigo Sir Henry!” Ele passou por mim depressa e abaixou­se sobre o homem
morto. Ouvi uma aspiração viva e o charuto caiu dos seus dedos.

   “Quem… quem é esse?”, gaguejou
ele.

    “É Selden, o homem que escapou da
Princetown.”

    Stapleton virou um rosto medonho para nós,
mas por um esforço supremo havia superado o seu espanto e o seu desapontamento.
Ele olhou vivamente de Holmes para mim.

    “Meu Deus! Que caso mais chocante!
Como ele morreu?”

    “Parece que partiu o pescoço caindo
sobre as pedras. Meu amigo e eu estávamos passeando pela charneca quando
ouvimos um grito.”

    “Eu ouvi um grito, também. Foi isso
que me fez sair. Eu estava inquieto quanto a Sir Henry.”

    “Por que sobre Sir Henry em
particular?” Eu não poderia deixar de perguntar.

    “Porque eu havia sugerido que ele
viesse. Quando não veio fiquei surpreso e, naturalmente, preocupado pela sua
segurança quando ouvi gritos na charneca…”, seus olhos dispararam de
novo do meu rosto para Holmes: “o senhor ouviu mais alguma coisa além de
um grito?”

    “Não”, disse Holmes, “O
senhor ouviu?”

    “Não.”

    “O que quer dizer, então?”

    “Oh, o senhor conhece as histórias que
os camponeses contam sobre um cão fantasma, e assim por diante. Diz-se que o
ouvem à noite na charneca. Eu estava imaginando se havia alguma prova desse som
esta noite.”

    “Não ouvimos nada do tipo”, disse
eu.

    “E qual é a sua teoria sobre a morte
desse pobre homem?”

    “Não tenho nenhuma dúvida de que a
ansiedade e o abandono o fizeram perder o juízo. Ele correu pela charneca num
estado de loucura e, eventualmente, caiu aqui, quebrando o pescoço.”

    “Isso parece a teoria mais
razoável”, disse Stapleton, e ele deu um suspiro que julguei indicar
alívio. “O que o senhor acha disso, Sr. Sherlock Holmes?”

    Meu amigo se curvou aos elogios.

    “Foi rápido na identificação”,
disse ele.

    “Estamos esperando-o por estas bandas
desde que o Dr. Watson desceu. Você está a tempo de ver uma tragédia.”

    “Sim, é verdade. Eu não tenho nenhuma
dúvida de que a explicação do meu amigo vai cobrir os fatos. Vou levar uma
lembrança desagradável de volta a Londres comigo amanhã.”

    “Oh, você volta amanhã?”

    “Essa é a minha intenção.”

    “Espero que sua visita tenha lançado
alguma luz sobre essas ocorrências que têm nos confundido?”

    Holmes encolheu os ombros.

    “Não se pode ter sempre o sucesso que
se espera. Um investigador precisa de fatos, e não de lendas ou rumores. Não
foi um caso satisfatório.”

    Meu amigo falou da sua maneira mais franca
e despreocupada. Stapleton ainda olhava fixamente para ele. Depois se virou
para mim.

    “Eu sugeriria levar esse pobre sujeito
para minha casa, mas isso daria tanto medo à minha irmã que não me sinto no
direito em fazer isso. Acho que se puséssemos alguma coisa sobre o seu rosto,
ele ficará em segurança até de manhã.”

E
assim foi providenciado. Resistindo à oferta de hospitalidade de Stapleton,
Holmes e eu partimos para a Mansão Baskerville, deixando que o naturalista
voltasse sozinho. Olhando para trás, vimos o vulto afastando-se lentamente pela
ampla charneca e atrás dele aquela mancha negra sobre a encosta prateada que
mostrava onde estava caído o homem que chegara ao seu fim de modo horrível.

    “Nós estamos em apertos”, disse
Holmes, enquanto caminhávamos juntos através do pântano. “Que nervos tem o
sujeito! Como se dominou, diante daquilo que deveria ter sido tremendo choque
para ele, ver que outra pessoa fora vítima de sua armadilha! Que eu lhe disse
em Londres, Watson, e eu digo agora, que nunca tivemos um inimigo mais digno de
cruzar armas conosco.”

    “Lamento que ele o tenha visto.”

    “Também senti, a princípio. Mas não
podia ser evitado.”

    “Que influência acha você que terá
sobre seus planos o fato de saber que você está aqui?”

    “Poderá fazer com que se torne mais
cauteloso, ou poderá levá-lo a tomar medidas desesperadas, imediatamente. Como
a maioria dos criminosos inteligentes, é possível que tenha absoluta confiança
em sua inteligência e julgue que nos enganou completamente.”

    “Por que não devemos prendê-lo de uma
vez?”

    “Caro Watson, você nasceu para homem
de ação. Seu instinto é sempre fazer alguma coisa enérgica. Mas, suponhamos, só
como hipótese, que o prendêssemos hoje à noite, de que nos adiantaria? Nada
podemos provar contra ele. Aí está a sua diabólica astúcia! Se ele agisse
através de um ser humano, poderíamos conseguir provas, mas, se trouxéssemos
esse enorme cão à luz do dia, não nos ajudaria a pôr uma corda à volta do
pescoço de seu dono.”

    “Certamente temos um caso.”

    “Nem sombra de um… suposição apenas
e conjecturas. Devemos ser ridicularizados no tribunal se aparecêssemos com
semelhante história e tais provas.”

    “E a morte de Sir Charles?”

    “Ele foi encontrado morto, sem o menor
sinal de violência. Você e eu sabemos que morreu de susto e sabemos também o
que foi que o assustou; mas, como conseguir que doze jurados criteriosos
acreditem nisto? Que sinais há, de um cão? Onde estão as marcas das patas?
Claro que sabemos que um sabujo não morde um cadáver e que Sir Charles estava morto,
antes de ter chegado a seu lado. Mas temos de provar isso e não estamos em
condições de fazê-lo.”

    “Pois bem, e hoje? Agora?”

    “Não estamos muito mais adiantados,
não há, também desta vez, ligação direta entre o cão e a morte do condenado.
Nem vimos o cão. Ouvimos ganidos, mas não podemos dizer que estava no encalço
desse homem. Há uma ausência completa de motivo. Não, caro amigo; temos de
compreender que, no momento presente, não temos um caso que vale a pena correr
qualquer risco, e devemos conseguir estabelecer um.”

    “E como é que você se propõe a fazer
isso?”

    “Tenho grande esperança no auxílio da
senhora Laura Lyons, quando ficar inteirada do verdadeiro estado de coisas. E
também tenho um plano. Por hoje, chega de tragédia, mas espero que não passe
outro dia, sem que eu consiga ficar por cima, finalmente.”

    Não poderia tirar mais nada dele, já andava
perdido em pensamentos, tanto que chegamos aos portões de Baskerville.

    “Vai entrar?”

    “Sim, eu não vejo nenhuma razão mais
para esconder-me; mas uma última palavra, Watson, não diga nada ao Sir Henry a
respeito do cão. Deixe que pense que Selden morreu acidentalmente, como
Stapleton quis que pensássemos. Assim, terá os nervos em melhor estado, para
suportar a prova por que terá de passar amanhã, quando for jantar com aquela
gente, como está combinado, conforme você me contou, em seu relatório. “

    “Ele e eu.”

    “Então, apresente suas desculpas,
porque ele precisa ir sozinho. Isso será facilmente arranjado. Agora, se for
muito tarde para jantar, eu acho que nós dois estamos prontos para a
ceia.”

 

 

CAPÍTULO 13

ARMANDO AS REDES

 

Sir
Henry ficou mais alegre do que admirado, ao ver Sherlock Holmes, pois esperara,
naqueles dias, que os últimos acontecimentos o trouxessem de Londres. Mas ergueu
as sobrancelhas, quando ficou sabendo que meu amigo não tinha bagagem e nem
explicação para isso. Nós dois logo o suprimos de roupa. Enquanto ceávamos
tardiamente, Holmes e eu explicamos ao baronete a parte dos acontecimentos
noturnos que achamos útil revelar-lhe. Mas, primeiramente, tive de cumprir a
desagradável tarefa de participar ao casal Barrymore a morte de Selden. Para
ele, pode ter sido um alívio, mas a mulher chorou amargamente, com a cabeça
escondida no avental. Para o mundo inteiro, ele era um homem violento, meio
animal e meio demônio, mas, para a irmã, continuaria sendo o menino
voluntarioso de sua infância, a criança que se agarrara à sua mão. Mal é
realmente o homem que não tem uma mulher para chorá-lo.

“Estive
mofando em casa o dia inteiro, desde que Watson saiu de manhã”, disse o
baronete. “Creio que mereço parabéns, pois cumpri minha promessa. Se não
tivesse jurado que não sairia sozinho, poderia ter tido uma noite mais animada,
pois recebi recado de Stapleton, convidando-me a ir até lá.”

“Não
duvido de que teria tido uma noite mais animada”, replicou Holmes
secamente. “Por pensar nisso, não creio que saiba que estivemos chorando a
sua morte?”

    Sir Henry abriu os olhos.

“Como
foi isso?”

    “Aquele pobre coitado estava vestido
com suas roupas. Presente do seu servo, que deu a ele; poderá ter problemas com
a polícia.”

    “Isso é improvável. Não havia marca de
espécie alguma, tanto quanto eu sei.”

    “Sorte para o servo. Para ser exato,
sorte para todos nós, já que, neste caso, estávamos do lado contrário à lei.
Não sei se, como detetive consciencioso, meu primeiro dever não seria prender a
casa toda. Os relatórios de Watson são documentos profundamente
comprometedores.”

    “Mas, quanto ao caso?”, perguntou
o baronete. “Conseguiu deslindar a meada? Não creio que Watson e eu
tenhamos progredido muito, desde que viemos para cá.”

“Creio
que estou em condições de poder tornar a situação mais clara a seus olhos,
dentro de pouco tempo. Foi um caso muito difícil e complicado. Há vários pontos
que ainda precisam ser deslindados, mas, em todo o caso, vai indo.”

“Tivemos
uma experiência desagradável, como Watson lhe deve ter contado. Ouvimos o cão
no pântano, de modo que posso jurar que não é tola superstição. Aprendi alguma
coisa sobre cães, lá no Oeste, e sei quando ouço um. Se o senhor conseguir pôr
uma focinheira nesse aí, estarei pronto a jurar que é o maior detetive do
mundo.

“Creio
que poderei pôr-lhe uma focinheira e uma corrente, se o senhor estiver disposto
a ajudar-me.”

    “Eu acho que vai amordaçá-lo e
acorrentá-lo; tudo bem se vai me ajudar.”

    “Farei o que quiserem.”

    “Muito bem, e vou pedir-lhe também que
me obedeça cegamente, sem perguntar sempre a razão.”

    “Como quiser.”

    “Se fizer assim, acho que o nosso
pequeno problema logo será resolvido. Eu não tenho nenhuma dúvida.”

    Ele interrompeu-se de repente e olhou
fixamente por sobre minha cabeça, para a parede. A luz batia-lhe no rosto e sua
expressão era tão absorta, que poderia ter sido o rosto nítido de uma estátua
clássica, personificação de vivacidade e expectativa.

    “O que é isso?” nós dois
exclamamos.

    Quando Holmes baixou os olhos, vi que
estava procurando dominar alguma profunda emoção. O rosto estava controlado,
mas os olhos tinham um brilho exultante.

    “Perdoe a admiração de um
conhecedor”, disse ele, fazendo um gesto em direção aos retratos, na
parede oposta. “Watson não admite que eu entenda de arte, mas é pura
inveja, porque nossas opiniões divergem. Ali está uma bela coleção de
retratos.”

    “Fico satisfeito por ouvi-lo dizer
isto”, disse Sir Henry, olhando com alguma surpresa para o meu amigo.
“Não tenho a pretensão de saber muito sobre essas coisas, e eu seria
melhor juiz de um cavalo ou um boi do que de um quadro. Não pensei que o senhor
tivesse tempo para essas coisas.”

    “Sei se uma coisa é boa, quando a
vejo, como estou vendo agora. Poderia jurar que ali está um Kneller, aquela
senhora de vestido de seda azul. É o cavalheiro de peruca deve ser um Reynolds.
São todos retratos de família, creio?”

    “Todos.”

    “Você sabe os nomes?”

    “Barrymore andou esforçando-se por
ensinar-me e creio que sei bem a lição.”

    “Quem é o cavalheiro com o
telescópio?”

“E
o contra-almirante Baskerville, que serviu sob as ordens de Rodney, nas Índias
Ocidentais. O homem de casaco azul e rolo de papel na mão é William
Baskerville, que foi presidente das Comissões da Câmara dos Comuns, sob
Pitt.”

    “E esse cavalheiro à minha frente,
aquele de veludo preto e rendas?”

    “Ah, o senhor tem o direito de saber,
é o causador de toda a nossa infelicidade, o malvado Hugo, que deu origem ao
Cão de Baskerville. Provavelmente jamais nos esqueceremos dele.”

    Olhei com interesse e com alguma surpresa
para o retrato.

    “Meu Deus!” disse Holmes.
“Parece um sujeito calmo, suave, mas garanto que há uma expressão
diabólica escondida em seus olhos. Imaginei-o mais robusto e mais valentão.

    “Não há nenhuma dúvida sobre a
autenticidade, o nome e a data de 1647 estão na parte detrás da tela.”

    Holmes falou pouco, mas o retrato do velho
fanfarrão parecia atraí-lo, pois seus olhos não desviaram do retrato, durante o
jantar. Somente mais tarde, depois que Sir Henry se retirou, foi que consegui
acompanhar o curso de seus pensamentos. Ele levou-me à sala de banquetes, de
candelabro na mão, erguendo-o para o retrato da parede.

    “Você vê alguma coisa aí?”

Olhei
para o chapéu largo, de plumas, os cabelos cacheados, a gola branca e o rosto
comprido, severo. Não era um rosto brutal e sim afetado, duro e malevolente,
com lábios finos e firmes, olhar frio e intolerante.

    “Parece-se com alguém que você
conheça?”

    “Há qualquer coisa de Sir Henry, no
queixo.”

    “Talvez uma ligeira semelhança. Mas,
espere um instante!” Ele subiu numa cadeira e, segurando a luz na mão
esquerda, curvou o braço direito sobre o chapéu e à volta dos cachos.

    “Deus do céu!” exclamei admirado.

O
rosto de Stapleton saltara do quadro.

    “Ah, agora você percebeu. Meus olhos
estão habituados a examinar rostos e não adornos. A primeira qualidade do
investigador é poder ver através de um disfarce.”

    “Mas isso é extraordinário. Pode ser o
retrato dele.”

    “Sim, um interessante caso de
atavismo, que parece ser tanto moral quanto físico. O estudo de retratos de
família bastaria para converter-nos à teoria da reencarnação. O sujeito é
Baskerville, disto não há dúvida.”

    “Com projetos para a sucessão.”

    “Exatamente, o caso, representado por
este retrato, forneceu-nos o mais óbvio dos elos que faltavam. Temos o homem em
nosso poder, Watson, temos o homem e garanto que, antes que anoiteça, amanhã,
ele estará se debatendo em nossa rede, impotente como uma de suas borboletas,
num alfinete, numa rolha e num cartão, ele irá fazer parte da coleção de Baker
Street!”

Ele
soltou uma de suas raras gargalhadas, ao desviar-se do retrato. Não o vejo rir
com frequência e isso é sempre mau augúrio para alguém.

Acordei
cedo no dia seguinte, mas Holmes estava já de pé desde cedo, pois o vi sair da
alameda, já todo vestido.

    “Sim, vamos ter um dia cheio”,
disse ele, esfregando as mãos de contentamento, só de pensar em agir. “As redes
estão todas armadas e vamos começar a puxá-las. Antes que acabe o dia,
saberemos se pegamos o nosso peixe, ou se ele conseguiu escapar às malhas.”

    “Você já esteve no pântano?”

    “Enviei um telegrama, de Grimpen, para
Princetown, comunicando a morte de Selden. Creio que posso prometer que nenhum
de vocês será incomodado por causa desse assunto. E comuniquei-me também com o
meu fiel Cartwright, que, com toda a certeza, ficaria penando à porta de minha
cabana de pedra, como cão à sepultura do dono, se eu não o
tranquilizasse.”

    “Qual é o próximo passo?”

    “Falar com Sir Henry. Ah, aqui está
ele!”

    “Bom dia, Holmes”, disse o
baronete. “Você é um general que planeja uma batalha, com seu ajudante de
ordens.”

    “Essa é a situação exata. Watson
estava perguntando pelas ordens.”

    “E eu também.”

    “Muito bem. Você tem um compromisso,
pelo que sei, de jantar com os nossos amigos, o casal Stapleton, esta
noite.”

    “Espero que venha também. Eles são
gente muito hospitaleira e estou certo de que ficariam muito satisfeitos em
vê-lo.”

    “Receio que Watson e eu tenhamos que
ir para Londres.”

    “Para Londres?

    “Sim, acho que podemos ser mais úteis
lá nas circunstâncias atuais.”

    O rosto do baronete encompridou
perceptivelmente.

    “Eu esperava que vocês fossem me
assistir durante este caso. A Mansão e a charneca não são lugares muito
agradáveis quando se está sozinho.”

    “Meu caro amigo, você tem que confiar
em mim sem questionar e fazer exatamente o que lhe pedir. Pode dizer aos seus
amigos que ficaríamos felizes de ter ido com você, mas que negócios urgentes
exigiram a nossa presença na cidade. Esperamos voltar muito breve ao
Devonshire. Você se lembrará de dar a eles essa mensagem?”

    “Se você insistir nisso.”

    “Não há alternativa, eu garanto.”

    Vi pela fronte anuviada do baronete que ele
estava profundamente magoado pelo que considerava uma deserção nossa.

    “Quando você deseja ir?”,
perguntou ele friamente.

    “Imediatamente após o café da manhã.
Vamos num coche para Coombe Tracey, mas Watson vai deixar as suas coisas como
uma promessa de que voltará para a sua companhia. Watson, mande um bilhete para
Stapleton dizendo-lhe que lamenta não poder ir.”

    “Também estou com vontade de ir para
Londres com vocês”, disse o baronete. “Por que devo ficar aqui
sozinho?”

    “Porque esse é o seu posto de serviço.
Porque você me deu a sua palavra que faria o que lhe mandasse, e estou dizendo
para você ficar.”

    “Tudo bem, então, eu vou ficar.”

    “Mais uma instrução! Quero que vá de
coche para a Casa de Merripit. Mande o coche de volta e diga-lhes que pretende
voltar a pé para casa.”

    “Para atravessar o pântano?”

    “Sim.”

    “Mas isso é uma coisa que você tantas
vezes me alertou para não fazer.”

    “Desta vez você pode fazer isso com
segurança. Se eu não tivesse toda confiança na sua coragem e determinação não
sugeriria isso, mas é essencial que o faça.”

    “Então farei.”

    “E se você dá valor à sua vida não
atravesse o pântano em qualquer direção a não ser pelo caminho reto que vai da
Casa de Merripit até o caminho de Grimpen, que é o seu caminho correto para
casa.”

    “Eu vou fazer como diz.”

    “Muito bem. Gostaria de ir embora o
mais depressa possível após o café, de maneira a chegar a Londres à
tarde.”

Eu
fiquei muito espantado com esse programa, embora me lembrasse de Holmes ter
dito a Stapleton na noite anterior que sua visita terminaria no dia seguinte.
Não me tinha passado pela mente que ele iria querer que eu fosse com ele, nem
pude compreender como podíamos estar ambos ausentes num momento que ele próprio
declarara ser crítico. Não havia nada a fazer senão obedecer, portanto,
dissemos adeus ao nosso contrito amigo e, duas horas depois, estávamos na
estação de Coombe Tracey e havíamos mandado o coche em sua viagem de volta. Um
garoto pequeno estava esperando na plataforma.

    “Alguma ordem, senhor?”

    “Você vai tomar esse trem para a
cidade, Cartwright. No momento em que chegar, mandará um telegrama para Sir
Henry Baskerville, em meu nome, para dizer que, se ele encontrar o caderninho
de notas que deixei cair, deve mandá-lo registrado pelo correio para Baker
Street.”

    “Sim, senhor.”

    “E pergunte no escritório da estação
se há um recado para mim.”

     O rapaz voltou com um telegrama, que
Holmes entregou a mim. Ele dizia:

     ‘Telegrama recebido. Indo para aí com mandado
não assinado. Chego cinco e quarenta, Lestrade.’

    “Este telegrama é em resposta ao meu
desta manhã. Ele é o melhor dos profissionais, acho eu, e podemos precisar da
sua ajuda. Agora, Watson, acho que não podemos empregar melhor o nosso tempo do
que visitando a nossa conhecida, Sra. Laura Lyons.”

Seu
plano de ação estava começando a se tornar evidente. Ele usaria o baronete a
fim de convencer os Stapletons de que havíamos ido embora, enquanto, na
verdade, voltaríamos no instante em que seríamos necessários. Aquele telegrama
de Londres, se mencionado por Sir Henry aos Stapletons, devia afastar as
últimas suspeitas de suas mentes. Eu já podia ver as nossas redes envolvendo
aquele lúcio de queixo redondo.

A
Sra. Laura Lyons estava no escritório e Sherlock Holmes iniciou sua entrevista
com uma franqueza e objetividade que a espantaram assustadoramente.

    “Estou investigando as circunstâncias
que cercaram a morte do falecido Sir Charles Baskerville.” disse ele.
“Meu amigo aqui, o Dr. Watson, informou-me o que a senhora havia
comunicado a ele e também o que a senhora ocultou em relação a esse
assunto.”

    “O que eu escondi?”, perguntou
ela, em tom desafiador.

    “A senhora confessou que pediu a Sir
Charles para estar no portão às dez horas. Nós sabemos que esse foi o lugar e a
hora da sua morte. A senhora escondeu qual a relação que houve entre estes
acontecimentos.”

    “Não há nenhum vínculo.”

    “Nesse caso, a coincidência deve
realmente ser extraordinária. Mas acho que teremos sucesso em estabelecer uma
relação afinal de contas. Desejo ser franco com a senhora, Sra. Laura Lyons.
Consideramos este caso como assassinato e a prova pode implicar não só o seu
amigo Sr. Stapleton, como também a mulher dele.”

    A senhora saltou de sua cadeira.

    “A mulher dele!”, exclamou ela.

    “O fato não é mais segredo. A pessoa
que tem passado por sua irmã é, na realidade, sua mulher.”

A
Sra. Lyons havia se sentado. Suas mãos estavam agarradas aos braços da cadeira
e vi que as unhas cor-de-rosa tinham ficado brancas com a pressão.

    “A mulher dele!” disse ela
novamente. “A mulher dele! Ele não é um homem casado.”

    Sherlock Holmes encolheu os ombros.

    “Prove para mim! Prove para mim. Se
você pode fazê-lo!” O brilho feroz dos seus olhos falou mais do que
quaisquer palavras.

    “Vim preparado para isso”, disse
Holmes, tirando vários documentos do bolso. “Aqui está uma fotografia do
casal tirada em Nova York, há quatro anos. Está endossada ‘Sr. e Sra.
Vandeleur’ , mas a senhora não terá nenhuma dificuldade em reconhecê-lo, e a
ela também, se a conhecer de vista. Aqui estão três descrições escritas de
testemunhas dignas de confiança do Sr. e da Sra. Vandeleur, que nessa época
tinham o colégio particular de St. Oliver. Leia-as e veja se pode duvidar da
identidade dessas pessoas.”

    Ela olhou para elas e depois ergueu os
olhos para nós com o rosto imóvel e rígido de uma mulher desesperada.

    “Holmes”, disse ela, “esse
homem ofereceu-se para se casar comigo com a condição de eu conseguir o
divórcio do meu marido. Ele mentiu para mim, o vilão, de todas as maneiras
possíveis. Ele jamais me disse uma palavra verdadeira. E por que, por quê?
Imaginei que tudo fosse para o meu próprio bem. Mas agora vejo que nunca fui
nada senão um instrumento em suas mãos. Por que devo continuar fiel a ele que
nunca foi fiel a mim? Por que devo tentar protegê-lo das consequências dos seus
próprios atos malévolos? Pergunte-me o que quiser, e não esconderei nada. Uma
coisa eu juro ao senhor: quando escrevi a carta nunca desejei mal algum para o
velho cavalheiro, que foi o meu amigo e muito bondoso comigo.”

    “Eu acredito na senhora. A narração
desses acontecimentos deve ser muito penosa para a senhora e, talvez, eu a tome
mais fácil se lhe contar o que ocorreu, e a senhora pode me corrigir se eu
cometer algum engano. O envio dessa carta foi sugerido à senhora por
Stapleton?”

    “Ele a ditou.”

    “Suponho que o motivo que ele deu foi
que a senhora receberia ajuda de Sir Charles para as despesas legais relativas
ao seu divórcio?”

    “Exatamente.”

    “E depois de a senhora ter enviado a
carta ele convenceu-a a não comparecer ao encontro?”

    “Ele me disse que feriria o seu
respeito próprio o fato de algum outro homem ter de dar o dinheiro com esse
objetivo e que embora ele próprio fosse um homem pobre, dedicaria o seu último
pêni para remover os obstáculos que nos separavam.”

    “Ele parece ter um caráter muito
coerente. E depois a senhora não soube de mais nada até ler as notícias da
morte no jornal?”

    “Não.”

    “E ele a fez jurar não contar nada
sobre o seu encontro com Sir Charles?”

    “Ele fez. Ele disse que a morte foi
muito misteriosa e que certamente desconfiariam de mim se os fatos fossem
revelados. Ele me assustou para eu ficar em silêncio.”

    “Isso mesmo. Mas a senhora nunca
desconfiou?”

    Ela hesitou e baixou os olhos.

    “Eu o conhecia”, disse ela.
“Mas se ele tivesse sido fiel a mim, eu seria sempre fiel a ele.”

    “Acho que a senhora teve sorte”,
disse Sherlock Holmes. “A senhora o teria em seu poder, ele sabia disso, e
a senhora está viva. A senhora tem andado por alguns meses muito perto da beira
do precipício. Devemos desejar-lhe bom dia agora, Sra. Lyons, e é provável que
a senhora muito em  breve tenha notícias
nossas novamente.”

    “O nosso caso está se completando e
desvanecendo-se após dificuldades iniciais”, disse Holmes quando estávamos
esperando a chegada do expresso da cidade. 
“Logo estarei em condição de poder colocar, numa única narrativa
articulada, um dos crimes mais singulares e sensacionais dos tempos modernos.
Os estudantes de criminologia irão se lembrar de incidentes análogos em Grodno,
na Rússia, no ano de 66, e, naturalmente, há os assassinatos de Anderson, na
Carolina do Norte, mas este caso possui algumas características que são inteiramente
próprias. Mesmo agora, não temos nada contra esse homem astuto. Mas ficarei
muito surpreso se ele não estiver bastante enrascado antes de irmos para a cama
esta noite.”

O
expresso de Londres entrou resfolegando na estação e um homem pequeno e forte,
parecido com um buldogue, saltou de um vagão de primeira classe. Nós três
apertamos as mãos, e vi imediatamente pela maneira reverente pela qual Lestrade
olhava para o meu companheiro que ele havia aprendido um bocado desde o tempo
em que eles haviam trabalhado juntos pela primeira vez. Pude me lembrar bem do
desprezo que as teorias do intelectual costumavam, então, excitar no homem
prático.

    “Tudo bem?”, perguntou ele.

    “Temos o maior caso de todos os
anos”, disse Holmes. “Temos duas horas antes de precisarmos pensar em
partir. Acho que devemos empregá-las jantando e, depois, Lestrade, vamos tirar
o nevoeiro de Londres da sua garganta, dando-lhe um gole de ar puro da noite de
Dartmoor. Nunca esteve lá? Acho que não vai se esquecer de sua primeira visita”.

 

 

CAPÍTULO 14

O CÃO DOS BASKERVILLES

 

Um
dos defeitos de Sherlock Holmes, se é que, realmente, se pode chamar isso de
defeito, era que ele era excessivamente relutante  a comunicar os seus planos completos a
qualquer outra pessoa até o instante da sua realização. Em parte, isso vinha
sem dúvida da sua própria natureza magistral, que adorava dominar e surpreender
aqueles que estavam à sua volta. Em parte, também da sua cautela profissional,
que o impedia sempre de correr quaisquer riscos. O resultado, contudo, era
muito penoso para aqueles que estavam atuando como seus agentes e assistentes.
Eu havia sofrido isso muitas vezes, mas nunca tanto quanto durante aquela longa
viagem de trole no escuro. A grande provação estava diante de nós; pelo menos
estávamos prestes a fazer o nosso esforço final, e, apesar disso, Holmes não
havia dito nada, e pude apenas imaginar qual seria o curso da sua ação. Meus
nervos formigaram de expectativa quando finalmente o vento frio sobre os nossos
rostos e os espaços vazios, escuros, dos dois lados da estrada estreita me
disseram que estávamos, mais uma vez, de volta à charneca. Cada passo dos
cavalos e cada volta das rodas estavam nos levando mais perto da nossa aventura
suprema.

A
nossa conversa foi prejudicada pela presença do cocheiro do coche alugado, de
forma que fomos forçados a falar de assuntos triviais quando os nossos nervos
estavam tensos de emoção e expectativa. Foi um alívio para mim, após essa
limitação pouco natural, quando passamos, finalmente, pela casa de Frankland e
vimos que estávamos chegando perto da Mansão e da cena da ação. Nós não fomos
de coche até à porta, mas descemos perto do portão da avenida. O coche foi pago
e mandado imediatamente de volta para Coombe Tracey, enquanto começávamos a
caminhar para a Casa de Merripit.

“Você
está armado, Lestrade?”

O
detetive sorriu.

“Enquanto
estiver com as minhas calças, tenho um bolso traseiro e, enquanto tiver meu
bolso traseiro, tenho algo dentro dele.”

“Ótimo!
Meu amigo e eu também estamos prontos para emergências.”

“O
senhor está muito enigmático quanto a este caso, Sr. Holmes. Qual é o jogo
agora?”

“Um
jogo de espera.”

“Palavra,
não parece um lugar muito alegre”, disse o detetive com um arrepio,
olhando em volta para as encostas sombrias da colina e o imenso lago de
nevoeiro que pairava sobre o Pântano de Grimpen. “Eu vejo as luzes de uma
casa à nossa frente.”

“Essa
é a Casa de Merripit e o fim da nossa jornada. Devo pedir­lhes que caminhem na
ponta dos pés e que não falem acima de um sussurro.”

Seguimos
cautelosamente pelo caminho como se estivéssemos nos dirigindo para a casa, mas
Holmes nos deteve quando estávamos a cerca de duzentos metros dela.

“Pode
ser aqui”, disse ele. “Essas rochas à direita formam uma proteção
admirável.”

“Temos
que esperar aqui?”

“Sim,
faremos a nossa pequena emboscada aqui. Entre nesta cavidade, Lestrade. Você já
esteve dentro da casa, não esteve, Watson? Pode dizer a posição das peças?
Quais são as janelas gradeadas nesta extremidade?”

“Eu
acho que são as janelas da cozinha.”

“E
além, a que brilha tanto?”

“É
certamente a sala de jantar.”

“As
cortinas estão levantadas. Você conhece melhor a disposição do terreno. Avance
em silêncio calmamente e veja o que eles estão fazendo, mas pelo amor de Deus
não os deixe perceber que estão sendo vigiados!”

Desci
pelo caminho na ponta dos pés e abaixei­me por trás de um muro baixo que
cercava o pomar atrofiado. Rastejando na sua sombra, cheguei a um ponto onde eu
pude olhar diretamente através da janela sem cortinas.

Havia
apenas dois homens na sala, Sir Henry e Stapleton. Estavam sentados com seus
perfis voltados para mim dos dois lados de uma mesa redonda. Os dois estavam
fumando charutos, e havia café e vinho diante deles. Stapleton estava falando
com animação, mas o baronete parecia pálido e distraído. Talvez, a lembrança
daquela caminhada solitária pela charneca de mau agouro tivesse pesado
fortemente em sua mente.

Enquanto
eu os observava, Stapleton ergueu­se e deixou a sala, enquanto Sir Henry enchia
o seu copo outra vez e recostava­se na sua cadeira, fumando o charuto. Ouvi o
ranger de uma porta e o ruído nítido de botas sobre o saibro. Os passos
passaram pelo caminho do outro lado do muro, sob o qual eu me agachara. Olhando
por cima, vi o naturalista parar diante da porta de uma dependência no canto do
pomar. Uma chave girou numa fechadura e quando ele entrou, houve um ruído
curioso de luta vindo de dentro. Ele ficou apenas um minuto lá dentro e depois
ouvi a chave girar mais uma vez; ele passou por mim entrando em casa. Vi­o
reunir­se outra vez ao seu convidado e voltei furtivamente em silêncio para
onde meus companheiros estavam, esperando para contar­lhes o que havia visto.

“Você
diz, Watson, que a dama não está lá?”, perguntou Holmes quando terminei
meu relatório.

“Isso
mesmo.”

“Onde
ela pode estar, já que não há nenhuma luz em qualquer outro cômodo a não ser na
cozinha?”

“Nem
imagino onde ela está.”

Eu
havia dito que sobre o grande Pântano de Grimpen pairava uma cerração branca e
carregada. Continuava a vir progressivamente em nossa direção e acumulava-se
como um muro no lado oposto, baixa, porém, espessa e bem demarcada. A lua
brilhava sobre ela e parecia um grande campo de gelo cintilante, com os cumes
dos picos rochosos distantes como rochas arrebatadas sobre a sua superfície. O
rosto de Holmes virou­se na direção dela e, com impaciência, resmungou:

“Está
se movendo em nossa direção, Watson.”

“É
sério?”

“Muito
sério, na verdade. A única coisa na terra que poderia ter transtornado os meus
planos. Ele não pode demorar muito agora. Já são dez horas. O nosso sucesso e
até a vida dele depende dele sair de lá antes que a cerração cubra todo o
caminho.”

A
noite se achava polida e agradável acima de nós. As estrelas brilhavam frias e
nítidas, enquanto uma meia­lua banhava toda a cena com uma luz branda e
incerta. Diante de nós, sobressaia o vulto escuro da casa, com o seu telhado
adornado e chaminés; as janelas de baixo estendiam­se em direção ao pomar e à
charneca. Uma delas apagou­se de repente. Os criados haviam deixado a cozinha.
Restava apenas o lampião da sala de jantar onde os dois homens, o anfitrião
assassino e o convidado inofensivo, ainda conversavam fumando seus charutos.

A
cada minuto, aquela planície branca que cobria metade da charneca arrastava-se
cada vez mais para perto da casa. As primeiras sinuosidades da neblina já se
enroscavam no quadrado dourado da janela iluminada. O muro oposto do pomar já
estava invisível e as árvores se projetavam no vapor branco. Enquanto a
observávamos, as sinuosidades da neblina, que se arrastava em volta dos cantos
da casa, envolvendo-a com uma barreira tão densa que o andar superior e o
telhado pareciam flutuar como uma embarcação anormal num mar sombrio de brumas.
Holmes bateu com a mão na pedra diante de nós e os pés no chão com impaciência.

 “Se ele não sair num quarto de hora, o
caminho ficará coberto. Dentro de meia hora não poderemos ver nem as nossas
mãos diante de nós.”

 “Vamos recuar para mais longe, em um
terreno mais elevado?”

“Sim,
acho que isso seria melhor.”

Desse
modo, à medida que a barreira de cerração deslocava­se para frente, recuávamos
diante dela até chegarmos a oitocentos metros da casa e aquele volumoso mar
branco, com a lua prateando sua orla superior, ainda avançava sobre nós de
maneira lenta e inevitável.

“Estamos
indo longe demais”, disse Holmes. “Não podemos correr o risco de ele
ser alcançado antes de poder chegar até nós. Devemos ficar onde estamos a todo
custo.” Ele caiu de joelhos e encostou o ouvido no chão. “Graças a
Deus, acho que estou ouvindo ele se aproximar.”

O
som de passos rápidos cortou o silêncio da charneca. Agachados, entre as pedras,
olhávamos atentos para a barreira encimada de prata diante de nós. Os passos
ficaram mais altos e, através da cerração, como através de uma cortina, emergiu
o homem que aguardávamos. Ele olhou em volta surpreso ao sair na noite polida e
agradável. Depois, caminhou rapidamente pela trilha, passou perto de nós e
continuou subindo a longa encosta atrás de nós. Enquanto andava, ele olhava
continuamente por cima dos ombros, como um homem que estivesse pouco à vontade.

“Quietos!”,
exclamou Holmes; ouvi o estalido metálico de uma pistola engatilhando.
“Cuidado! Ele está vindo!”

Existia
um patear fraco, vivo e contínuo vindo de alguma parte no centro da cerração
que se arrastava. A nuvem estava a quarenta metros de onde nós encontrávamos;
olhamos fixamente para ela, todos três, incertos do horror que estava prestes a
irromper do meio dela. Eu estava junto ao cotovelo de Holmes e olhei por um
instante para o seu rosto. Estava pálido e jubiloso, com os olhos brilhando
vivamente ao luar. Mas, de repente, eles se fixaram em frente, num olhar rígido
e fixo, e seus lábios separaram-se, assombrados. No mesmo instante, Lestrade
soltou um grito de terror e lançou-se de bruços no chão. Dei um salto, com
minha mão inerte agarrada à pistola, com a mente entorpecida pela aparição
horrível que havia saltado sobre nós, vinda das sombras da cerração. Era um
cão, um cão enorme, negro como o carvão, mas não um cão que olhos mortais
tivessem visto. Brotava fogo de sua boca, seus olhos brilhavam, seu focinho, os
pêlos do pescoço estavam esboçados em chamas cintilantes. Nunca em um sonho
delirante, de um cérebro em desordem completa, podia ser arquitetado nada mais
selvagem, mais aterrador, mais infernal do que o aspecto escuro e a aparência
selvagem que irrompeu sobre nós, em meio a parede de neblina.

Com
longos saltos, a assombrosa criatura negra descia o caminho aos pulos, seguindo
firme os passos do nosso amigo. Ficamos tão entorpecidos pela aparição que
permitimos que ela passasse diante de nós sem termos tempo para recuperarmos a
coragem. Depois, Holmes e eu atiramos ambos juntos, e a criatura soltou um uivo
medonho, revelando que, pelo menos, fora atingida. Mas ela não se deteve,
continuou seguindo em frente, aos saltos. Ao longe, na trilha iluminada, vimos
Sir Henry olhando para trás com o rosto branco ao luar, as mãos erguidas de
terror, olhando desamparado para a coisa terrível que o caçava.

Mas
o grito de dor do cão havia lançado todos os nossos temores aos quatro ventos.
Se ele era vulnerável, era mortal, e se podíamos feri­lo, podíamos matá-lo.
Nunca vi um homem correr como Holmes correu naquela noite. Sou considerado
ligeiro de pés, mas ele me ultrapassou tanto quanto eu ultrapassei o pequeno
policial. Diante de nós, ao corrermos pela trilha, ouvimos grito após grito de Sir
Henry e o rosnar profundo do cão. Cheguei a tempo de ver a besta saltar sobre
sua vítima, atirá-la ao chão e lançar­se à sua garganta. Mas, no instante
seguinte, Holmes disparara cinco tiros do seu revólver no flanco da criatura.
Com um último uivo de agonia e uma mordida enraivecida no ar, ela rolou de
costas com os quatro pés agitando­se furiosamente e, depois, tombou frouxamente
para o lado. Eu me abaixei, ofegante, e comprimi minha pistola contra a sua
cabeça terrível e cintilante, mas foi inútil pressionar o gatilho. O cão
gigantesco estava morto.

Sir
Henry continuava apático onde havia caído. Arrancamos o seu colarinho e Holmes
murmurou uma prece de gratidão quando viu que não havia nenhum sinal de
ferimento e que o socorro havia chegado a tempo. As pálpebras do nosso amigo
estremeciam e ele fez um grande esforço para se mexer. Lestrade enfiou seu
frasco de conhaque entre os dentes do baronete e dois olhos assustados ficaram
em nós.

“Meu
Deus!” ele sussurrou. “O que foi? Que, em nome de Deus, o que foi
isso?”

 “Ele está morto, seja lá o que for”,
disse Holmes. “Arrasamos com o fantasma da família de uma vez para
sempre.”

A
criatura que jazia diante de nós era terrível em tamanho e força. Não era um
cão de caça puro e não era um mastim puro, mas parecia ser uma combinação dos
dois, esquelético, selvagem e tão grande como uma pequena leoa. Mesmo agora, na
imobilidade da morte, as mandíbulas enormes pareciam gotejar uma chama azulada
e os olhos pequenos, profundos e cruéis estavam orlados de fogo. Coloquei minha
mão no focinho brilhante e quando a levantei, meus próprios dedos inflamavam e
cintilavam na escuridão.

“Fósforo”,
eu disse.

“A
astúcia de preparação”, disse Holmes, farejando o animal morto. “Não
há nenhum cheiro que pode ter interferido com o poder do seu faro. Devemos-lhe
profundas desculpas, Sir Henry, por tê-lo exposto a esse susto. Eu estava
preparado para um cão, mas não para uma criatura como esta. E a cerração
deu-nos pouco tempo para recebê-la.”

“Você
salvou a minha vida.”

“Tendo
primeiro a posto em perigo. Tem forças bastante para se levantar?”

“Dê-me
mais um gole desse conhaque e estarei pronto para qualquer coisa. Assim! Agora,
se quiser me ajudar. O que você propõe fazer?”

“Deixá-lo
aqui. Você não está preparado para outras aventuras esta noite. Se esperar, um
ou outro de nós, voltará com você para a Mansão.”

Ele
tentou levantar-se cambaleando, mas ainda estava medonhamente pálido e tremendo
em todos os membros. Nós o ajudamos a ir até uma pedra, onde se sentou, ainda
trêmulo, com o rosto afundado nas mãos.

“Temos
que deixá-lo agora”, disse Holmes. “O resto do nosso trabalho tem que
ser feito e cada momento é importante. Temos o nosso caso, e agora queremos
apenas o nosso homem.”

“Pode
apostar um contra mil que não vamos encontrá-lo na casa”, continuou ele ao
refazermos nossos passos rapidamente pela trilha. “Os tiros devem ter dito
a ele que o jogo terminou.”

“Estávamos
afastados a alguma distância e essa cerração pode tê­los amortecido”, eu
disse.

“Ele,
com certeza, seguiu o cão para chamá-lo, disso vocês podem estar certos. Não,
não, ele se foi a esta altura! Mas nós vamos procurá-lo em casa e
certificarmo-nos disso!”

A
porta da frente da casa estava aberta, entramos apressados e fomos de cômodo em
cômodo, para espanto de um velho criado trôpego, que se encontrou conosco no
corredor. Não havia nenhuma luz, salvo na sala de jantar, mas Holmes apanhou o
lampião e não deixou nenhum canto da casa inexplorado. Não pudemos ver nenhum
sinal do homem que estávamos procurando. No piso superior, a porta de um dos
quartos estava trancada.

“Há
alguém aqui”, gritou Lestrade. “Posso ouvir um movimento. Abra essa
porta!”

Um
gemido e um ruído vieram de dentro. Holmes atingiu a porta logo acima da
fechadura com a sola do pé e essa se abriu. Com a pistola na mão, nós três
entramos no quarto.

Mas
não havia nenhum sinal do vilão desesperado que esperávamos encontrar. Em vez
disso, deparamo-nos com um objeto tão estranho e tão inesperado que ficamos
parados por um momento olhando para ele com espanto.

O
quarto havia sido arrumado como um pequeno museu e as paredes estavam cobertas
por certo número de caixas, com tampas de vidro, repletas de coleções de
borboletas e mariposas, cuja formação tinha sido o passatempo desse homem
complexo e perigoso. No centro do quarto, existia uma viga vertical, que havia
sido colocada em algum período como suporte aos barrotes de madeira comidos
pelo cupim que sustentavam o telhado. A esse poste, encontrava-se amarrado uma
pessoa, tão enfaixada e encoberta pelos lençóis, os quais tinham sido usados
para amarrá­la, que não se podia dizer, no momento, se era um homem ou uma
mulher. Uma toalha passava em volta da garganta e estava presa atrás do pilar.
Outra, cobria-lhe a parte inferior do rosto, e acima dela, dois olhos, cheios
de tristeza e vergonha e um questionamento terrível, contemplavam-nos. Em
segundos, arrancamos a mordaça, desenfaixado os laços e a Sra. Stapleton caiu
no chão diante de nós. Quando a sua bela cabeça tombou sobre o peito, vi, em
seu pescoço, o nítido vergão vermelho de uma chicotada.

“O
animal!”, exclamou Holmes. “Aqui, Lestrade, sua garrafa de conhaque!
Ponha-a na cadeira! Ela desmaiou de maus tratos e exaustão.”

Ela
abriu os olhos novamente.

“Ele
está vivo?”, perguntou ela. “Será que escapou?”

“Ele
não pode escapar de nós, minha senhora.”

“Não,
não, não me refiro ao meu marido. Sir Henry? Ele está em segurança?”

“Sim.”

“E
o cão?”

“Está
morto.”

Ela
soltou um longo suspiro de satisfação.

“Graças
a Deus! Graças a Deus! Oh, esse maldito! Veja como ele me tratou!” Ela
atirou os braços para fora das mangas, e vimos com horror que todos eles
estavam manchados com hematomas. “Mas isso não é nada! Nada. É minha mente
e alma que ele torturou e profanou. Eu pude suportar isso tudo, maus tratos,
solidão, uma vida de impostura, tudo, desde que pudesse me agarrar ainda à
esperança de que tinha o seu amor, mas agora sei que, nisso, também tenho sido
joguete e seu instrumento.” Ela irrompeu num pranto apaixonado enquanto
falava.

“A
senhora não tem nenhuma boa vontade para com ele, madame”, disse Holmes.
“Conte­nos onde podemos encontrá­lo. Se a senhora alguma vez o ajudou no
mal, ajude­nos agora e, assim, expie.”

“Há
apenas um lugar onde ele pode ter fugido”, ela respondeu. “Há uma
velha mina de estanho numa ilha no meio do pântano. Era lá que ele guardava o
seu cão e foi lá, também, que ele fez preparativos para que pudesse ter um
refúgio. Para lá, é que ele fugiria.”

O
nevoeiro jazia como lã branca contra a janela. Holmes ergueu o lampião em
direção a ela.  

“Veja”,
disse ele. “Ninguém poderia encontrar o seu caminho no Pântano de Grimpen
esta noite.”

Ela
riu e bateu palmas. Seus olhos e dentes brilhavam com alegria feroz.

 “Ele pode encontrar seu caminho para
entrar, mas nunca para sair”, exclamou ela. “Como pode ele ver as
varas orientadoras esta noite? Nós as plantamos juntos, ele e eu, para marcar o
caminho através do pântano. Oh, se eu pudesse ao menos tê­las arrancado hoje.
Então, de fato, os senhores o teriam a sua mercê!”

Era
evidente para nós que toda a perseguição era em vão até que a cerração tivesse
dissipada por completo. Deixamos Lestrade de posse da casa, enquanto Holmes e
eu voltamos com o baronete para a Mansão Baskerville. A história dos Stapletons
não podia mais ser escondida dele, mas ele recebeu o golpe bravamente quando
soube a verdade sobre a mulher que havia amado. Mas o choque das aventuras da
noite havia destruído os seus nervos e, antes de amanhecer, ele estava
delirante e com febre alta, sob os cuidados do Dr. Mortimer. Os dois estavam
destinados a viajar juntos, dando uma volta do mundo, antes de Sir Henry se
tornar, mais uma vez, o homem são e robusto que era antes de se tomar dono
daquela propriedade de mau agouro.

E,
agora, chego rapidamente à conclusão desta narrativa singular, na qual tentei
fazer o leitor partilhar daqueles receios sombrios e suspeitas vagas, que
assombraram as nossas vidas por tanto tempo e terminaram de maneira tão
trágica. Na manhã seguinte à morte do cão, a cerração desaparecera e fomos
guiados pela Sra. Stapleton até o ponto onde ela e o marido haviam feito o
caminho através do lodaçal. Quando vimos a ansiedade e a alegria com que ela
nos pôs na pista do seu marido, isso nos ajudou a compreender o horror da vida
dessa mulher. Nós a deixamos parada sobre a fina península de terra firme e
turfosa que se estreitava para dentro do amplo lodaçal. A partir dali, pequenas
varas plantadas aqui e ali mostravam onde o caminho ziguezagueava, de tufo em
tufo de junco, por entre buracos espumantes de verde e atoleiros imundos que vetavam
o caminho para a mina de estanho. Caniços opulentos e luxuriantes e plantas
aquáticas viscosas exalavam um cheiro de podridão e um vapor pestilento e
pesado em nossos rostos. Um passo em falso nos mergulhava até a coxa no
lamaçal. Sua viscosidade tenaz segurava os nossos calcanhares quando andávamos
e, quando afundávamos nela, era como se alguma mão maligna estivesse nos
puxando para baixo, para dentro daquelas profundezas obscenas, tão feroz e
intencional era a pressão com que nos prendia. Só uma vez, vimos o traço de que
alguém havia passado por aquele caminho perigoso antes de nós. Do meio de um
tufo, que brotava para fora do lodo, projetava­se uma forma escura. Holmes
abaixou­se até a cintura quando saiu do caminho para pegá­la e se não estivéssemos
lá para puxá­lo para fora, com certeza, jamais poria os pés em terra firme
outra vez. Ele segurava uma velha bota preta no ar. ‘Meyers, Toronto’, estava
impresso do lado de dentro do couro.

“Vale
a pena um banho de lama”, disse ele. “É bota do nosso amigo Sir Henry
que foi furtada.”

“Jogado
aqui por Stapleton, na fuga.”

“Exatamente.
Ele a manteve em sua mão após usá-la para manter o cão em cima da pista. Ele
fugiu quando soube que o jogo acabou, ainda segurando ela. E a jogou fora neste
ponto, durante a fuga. Sabemos, pelo menos, que ele veio até aqui em
segurança.”

Nada
mais que isso conseguimos apurar, embora houvesse muito que pudéssemos
imaginar. Não havia nenhuma possibilidade de encontrar pegadas no pântano,
porque a lama que subia brotava rapidamente sobre elas, mas quando chegamos por
fim a um terreno mais firme, além do brejo, nós todos as procuramos
ansiosamente. Mas nem o mais ligeiro sinal delas jamais foi visto. Se a terra
contasse uma história verídica, então, Stapleton jamais chegara àquela ilha de
refúgio, em direção a qual lutou através da cerração na noite anterior. Em
alguma parte, no coração do grande Pântano de Grimpen, no fundo da viscosidade
imunda do enorme atoleiro que o havia sorvido, esse homem frio e de coração
cruel está enterrado para sempre.

Encontramos
muitos vestígios dele na ilha cercada de lodo, onde ele havia escondido o seu
selvagem aliado. Uma enorme roda e um poço cheio de detritos mostravam a
posição da mina abandonada. Ao lado dela, em ruínas, as casinhas dos mineiros,
expulsos sem dúvida pelo cheiro infecto do pântano. Em uma dessas casinhas,
encontramos um grampo de ferro e uma corrente com uma quantidade de ossos
roídos, os quais mostravam onde o animal estaria confinado. E um esqueleto com
um emaranhado de cabelo castanho, entre os escombros.

“Um
cão!”, disse Holmes. “Por Deus, um spaniel
de pelos encaracolados. Pobre Mortimer, nunca verá o seu animal de estimação
outra vez. Bem, pelo que sei este lugar não contém qualquer outro segredo que
já não tenhamos revelado. Ele pôde esconder o seu cão, mas não pôde calar sua
voz e, daí, aqueles gritos, que, mesmo à luz do dia, não eram agradáveis de
ouvir. Numa emergência, ele podia guardar o cão na dependência de Merripit, mas
era sempre um risco e foi só no dia marcado, que ele considerou como o fim de
todos os seus esforços, que se atreveu a fazer isso. Esta pasta aqui, nesta
lata, sem dúvida, é a mistura luminosa com a qual a criatura era besuntada.
Isso foi sugerido, naturalmente, pela história do cão diabólico da família, e
pelo desejo de amedrontar o velho Sir Charles até matá­lo. Não admira que o
pobre diabo do condenado corresse e gritasse, da mesma forma como o nosso amigo
fez, como nós mesmos teríamos feito, quando víssemos essa criatura saltando
através da escuridão da charneca a nosso encalço. Foi um artifício astuto,
porque, além da possibilidade de levar sua vítima à morte, que camponês se
aventuraria a investigar, com demasiado empenho a respeito dessa criatura se a
tivesse visto, como muitos viram, na charneca? Eu disse em Londres, Watson, e
digo outra vez, agora; nunca, até o presente dia, ajudamos a caçar um homem
mais perigoso do que esse que jaz lá longe” ­ ele girou seu braço comprido
em direção à extensão do pântano, salpicado de manchas verdes que se estendiam
à distância até se fundir com as encostas avermelhadas da charneca.

 

 

CAPÍTULO 15

UMA RETROSPECTIVA

 

Era
fim de novembro, e Holmes e eu estávamos sentados, numa noite fria e nebulosa,
ambos ao lado de um fogo resplandecente em nossa sala da Baker Street. Desde o
desfecho trágico da nossa visita ao Devonshire, ele esteve ocupado com dois
casos da mais alta importância; no primeiro, havia denunciado a conduta atroz
do Coronel Upwood em relação ao famoso escândalo das cartas do Clube
Noripareil, ao passo que, no segundo, havia defendido a infeliz Mme.
Montpensier da acusação de assassinato que pendia sobre ela em relação à morte
da sua enteada, Mlle. Carére, a jovem que, como se deve lembrar, foi encontrada
seis meses mais tarde viva e casada em Nova York. O meu amigo estava de
excelente humor pelo sucesso que havia se seguido a uma sucessão de casos
difíceis e importantes, de forma que pude convencê-lo a discutir os detalhes do
mistério de Baskerville. Eu havia esperado pacientemente pela oportunidade,
porque sabia que ele nunca permitiria que os casos se superpusessem, e que sua
mente límpida e lógica fosse afastada de seu trabalho por muito tempo. Sir
Henry e o Dr. Mortimer encontravam-se em Londres, a caminho da longa viagem que
havia sido recomendada para a restauração dos nervos abalados do baronete. Eles
nos visitaram naquela mesma tarde, de forma que era natural que o assunto
surgisse para discussão.

    “Todo o curso dos
acontecimentos”, disse Holmes, “do ponto de vista do homem, que se
chamava Stapleton, foi simples e direto, embora para nós, que no começo não
tínhamos nenhum meio de saber os motivos dos seus atos e podíamos saber apenas
uma parte dos fatos, tudo parecesse excessivamente complexo. Tive a vantagem de
duas conversas com a Sra. Stapleton e o caso agora foi tão completamente
esclarecido que não sei se há alguma coisa que tenha permanecido oculta para
nós. Você encontrará algumas anotações sobre o assunto na letra B da minha
lista indexada de casos.”

    “Talvez tenha a bondade de me fazer de
memória um resumo do curso dos acontecimentos.”

    “Certamente, embora não possa garantir
que tenha todos os fatos em mente. A concentração mental intensa tem uma
maneira curiosa de apagar o que passou. O advogado que tem o seu caso na ponta
dos dedos e pode discutir com um especialista sobre o seu próprio assunto
descobre que uma semana ou duas de tribunal afastará isso tudo para longe da sua
cabeça mais uma vez. Assim, cada um dos meus casos substitui o último e Mlle.
Carére apagou a minha lembrança da Mansão Baskerville. Amanhã, provavelmente,
algum outro pequeno problema pode ser submetido à minha atenção, o que, por sua
vez, desalojará a bela dama francesa e o infame Upwood. No que diz respeito ao
caso do cão, contudo, vou dar­lhe o curso dos acontecimentos o mais exato que
puder, e você sugerirá qualquer coisa que eu possa ter esquecido.

    “Minhas investigações mostram além de
qualquer dúvida que o retrato não mentiu e que esse sujeito era realmente um
Baskerville. Ele era filho daquele Rodger Baskerville, o irmão caçula de Sir
Charles, que fugiu com uma reputação sinistra para América do Sul, onde se
disse ter morrido sem se casar. Na verdade, ele se casou e teve um filho, esse
sujeito, cujo nome verdadeiro é o mesmo do seu pai. Ele se casou com Beryl
Garcia, uma das belas de Costa Rica e, tendo roubado uma soma considerável de
dinheiro público, mudou o nome para Vandeleur e fugiu para a Inglaterra, onde
se estabeleceu com um colégio à leste do Yorkshire. Seu motivo para tentar essa
linha especial de negócio foi por haver encetado um conhecimento com um tutor
tuberculoso na viagem para casa, e haver usado a capacidade deste homem para tomar
o empreendimento um sucesso. Fraser, o tutor, morreu, contudo, e o colégio que
havia começado bem caiu do descrédito para a infâmia. Os Vandeleurs acharam
conveniente mudar o nome para Stapleton e ele trouxe os restos da sua fortuna,
seus planos para o futuro e o seu gosto pela entomologia para o sul da
Inglaterra. Eu soube no Museu Britânico que ele era uma autoridade reconhecida
no assunto e que o nome de Vandeleur havia sido ligado permanentemente a uma
certa mariposa que ele havia, no seu tempo de Yorkshire, sido o primeiro a
descrever.

“Chegamos
agora àquela parte de sua vida que provou ser de um interesse tão intenso para
nós. O sujeito havia, evidentemente, investigado e descoberto que só duas vidas
interpunham­se entre ele e uma propriedade valiosa. Quando foi para o
Devonshire, seus planos eram, creio, excessivamente vagos, mas que ele estava
com más intenções desde o princípio é evidente pela maneira como levou sua
mulher consigo disfarçada como sua irmã. A ideia de usá­la como chamariz já estava
claramente em sua mente, embora ele possa não ter tido certeza de como os
detalhes da sua trama deviam ser dispostos. Ele pretendia no fim ter a
propriedade e estava pronto a usar qualquer instrumento ou correr qualquer
risco para esse fim. Seu primeiro ato foi estabelecer­se o mais perto possível
do seu lar ancestral, e o seu segundo foi cultivar uma amizade com Sir Charles
Baskerville e com os vizinhos.”

“O
próprio baronete contou a ele sobre o cão da família e, assim, preparou o
caminho para a sua própria morte. Stapleton, como continuarei a chamá­lo, sabia
que o coração do velho era fraco e que um choque o mataria. Isso ele tinha
sabido pelo Dr. Mortimer. Ele havia ouvido também que Sir Charles era
supersticioso e havia levado muito a sério essa lenda sombria. Sua mente
engenhosa sugeriu instantaneamente um meio pelo qual o baronete pudesse ser
morto e, apesar disso, dificilmente seria possível imputar a culpa ao
verdadeiro assassino.”

“Tendo
concebido a ideia, começou a executá­la com perícia. Um planejador comum teria
se contentado em trabalhar com um cão selvagem. O uso de meios artificiais para
tornar a criatura diabólica foi um lampejo de gênio da parte dele. O cão, ele
comprou em Londres de Ross e Mangles, os comerciantes da Fulham Road. Era o mais
forte e mais selvagem em poder deles. Ele o trouxe para o sul pela linha North
Devon e caminhou uma grande distância pela charneca a fim de levá­lo para casa
sem provocar nenhum comentário. Em suas caçadas de insetos, ele já havia
aprendido a penetrar no Pântano de Grimpen e, desse modo, encontrou um
esconderijo seguro para o cão. Ali, ele o manteve no canil e esperou o momento
oportuno para soltá-lo.”

 “Mas esse momento levou algum tempo para
chegar. O velho cavalheiro não podia ser atraído para fora dos seus terrenos à
noite. Várias vezes Stapleton escondeu­se por perto com o seu cão, mas sem
resultado. Foi durante essas andanças infrutíferas que ele, ou melhor seu
aliado, foi visto pelos camponeses e a lenda do cão diabólico recebeu uma nova
dimensão. Ele havia esperado que sua mulher pudesse levar Sir Charles à ruína,
mas aqui ela provou ser inesperadamente independente. Ela não procuraria
enredar o velho cavalheiro numa ligação sentimental que pudesse entregá­lo ao
seu inimigo. Ameaças e até, lamento dizer, pancadas, não conseguiram obrigá-la
a cooperar. Ela não teria nada a ver com isso e por algum tempo Stapleton ficou
num impasse.”

“Ele
encontrou uma saída para as suas dificuldades através da oportunidade que Sir
Charles, que havia expressado amizade por ele, proporcionara, encarregando­o da
sua caridade no caso dessa infeliz mulher, a Sra. Laura Lyons. Apresentando­se
como solteiro, ele adquiriu completa influência sobre ela, e dando­lhe a
entender que, no caso dela obter o divórcio do seu marido, ele se casaria com
ela. Seus planos foram levados de repente a uma fase decisiva pelo seu
conhecimento de que Sir Charles estava prestes a deixar a Mansão a conselho do
Dr. Mortimer, com cuja opinião ele próprio pretendia concordar. Ele devia agir
imediatamente ou a sua vítima podia ficar fora do seu alcance. Por isso, fez
pressão sobre a Sra. Lyons para escrever aquela carta, implorando ao velho para
conceder­lhe uma entrevista na noite anterior a da sua partida para Londres.
Depois, através de um argumento astucioso, impediu­a de ir e, assim, teve a
oportunidade pela qual havia esperado.”

“Voltando
de coche para Coombe Tracey à noite, ele chegou a tempo de pegar o seu cão,
pintá-lo com essa tinta infernal e levar o animal até o portão onde o velho
cavalheiro se encontrava. O cão, incitado pelo dono, saltou por cima da cancela
do portão e perseguiu o infeliz baronete, que fugiu gritando pela Aleia dos
Teixos. Naquele túnel sombrio, devia realmente ter sido uma visão horrível ver
aquela criatura preta enorme, com as mandíbulas em chamas e os olhos candentes,
saltando atrás da sua vítima. Ele caiu morto no fim da aleia de ataque cardíaco
e terror. O cão havia ficado sobre a margem gramada enquanto o baronete havia
corrido pelo caminho, de forma que nenhuma pista senão a do homem era visível.
Ao vê­lo caído imóvel, a criatura provavelmente aproximou­se para farejá­lo,
mas encontrando­o morto havia se afastado novamente. Foi então que ela deixou a
marca que foi realmente observada pelo Dr. Mortimer. O cão foi chamado e levado
às pressas para o seu covil no Pântano de Grimpen e foi deixado um mistério que
confundiu as autoridades, alarmou a região e, finalmente, trouxe o caso ao
campo da nossa observação.”

 “Isso quanto à morte de Sir Charles
Baskerville. Percebe-se a astúcia diabólica dele, porque realmente seria quase
impossível criar um caso contra o verdadeiro assassino. Seu único cúmplice era
um cão que jamais poderia denunciá­lo e a natureza grotesca do lugar só serviu
para torná­lo mais eficaz. Ambas as mulheres relacionadas com o caso, a Sra.
Stapleton e a Sra. Laura Lyons, foram deixadas com uma forte desconfiança
contra Stapleton. A Sra. Stapleton sabia que ele tinha planos quanto ao velho e
também da existência do cão. A Sra. Lyons não sabia nenhuma destas coisas, mas
havia ficado impressionada pela morte ocorrer na ocasião de um encontro não
desmarcado, que só ele sabia. Contudo, ambas estavam sob a influência dele, e
ele não tinha nada a recear delas. A primeira metade da sua tarefa fora
realizada com sucesso, mas o mais difícil ainda permanecia.”

“É
possível que Stapleton não soubesse da existência de um herdeiro no Canadá. De
qualquer maneira, ele saberia disso muito em breve pelo seu amigo, o Dr.
Mortimer, que contou a ele todos os detalhes da chegada de Sir Henry
Baskerville. A primeira ideia de Stapleton foi que esse jovem estranho do
Canadá pudesse ser morto, possivelmente, em Londres sem ir absolutamente até o
Devonshire. Ele não confiava na sua mulher desde que ela se recusara a ajudá­lo
em preparar uma armadilha para o velho, e não se atrevia a deixá­la por muito
tempo longe dele com medo de perder a influência sobre ela. Foi por esse motivo
que a levou para Londres consigo. Eles se hospedaram, como descobri, no Hotel
Mexborough, na Craven Street, que foi realmente um daqueles visitados pelo meu
agente em busca de provas. Ali, ele manteve a mulher prisioneira no quarto
enquanto ele, disfarçado com uma barba, seguiu o Dr. Mortimer até a Baker
Street e depois até a estação e ao Hotel Northumberland. Sua mulher tinha
alguma ideia dos seus planos, mas ela tinha medo do marido, medo fundado
no  tratamento brutal, que não se atreveu
a escrever para prevenir o homem que ela sabia estar em perigo. Se a carta
caísse nas mãos de Stapleton sua própria vida não estaria segura. Finalmente,
como sabemos, ela adotou o expediente de cortar as palavras que formariam a
mensagem, e endereçar a carta numa letra disfarçada. Chegou o baronete, e
deu-lhe o primeiro alerta para o iminente perigo.”

“Era
essencial para Stapleton arranjar alguma peça de vestuário de Sir Henry para
que, no caso de ser obrigado a usar o cão, pudesse ter sempre os meios de
lançá­lo na sua pista. Com presteza e audácia características, ele cuidou disso
imediatamente, e não podemos duvidar de que o engraxate ou a camareira do hotel
foram bem subornados para ajudá­lo em seu desígnio. Por acaso, contudo, a
primeira bota que foi conseguida para ele era nova e, portanto, inútil para o
seu objetivo. Então, ele a fez ser devolvida e obteve outra, um incidente muito
instrutivo, já que provou conclusivamente em minha mente que estávamos lidando
com um cão verdadeiro, porque nenhuma outra suposição poderia explicar essa
ansiedade de obter uma bota velha e essa indiferença pela nova. Quanto mais
grotesco é um incidente, com mais cuidado, ele merece ser examinado, e o
próprio ponto que parece complicar um caso é, quando devidamente considerado e
cientificamente manipulado, aquele que tem mais probabilidade de
elucidá­lo.”

“Depois
tivemos a visita dos nossos amigos na manhã seguinte, seguidos sempre por
Stapleton no coche. Pelo seu conhecimento do nosso endereço e da minha
aparência, bem como, da sua conduta geral, estou inclinado a pensar que a
carreira criminosa de Stapleton não está limitada de maneira alguma a este caso
isolado de Baskerville. É sugestivo o fato de durante os últimos três anos ter
havido quatro roubos consideráveis na Região Oeste, para nenhum dos quais
qualquer criminoso jamais foi preso. O último desses, em Folkstone Court, em
maio, foi notável pelo disparo a sangue­frio no pajem, que surpreendeu o ladrão
mascarado e solitário. Não posso duvidar que Stapleton obtivera seus recursos
dessa maneira e que, durante anos, ele tem sido um homem desesperado e
perigoso.”

“Tivemos
um exemplo de sua presteza naquela manhã, em que se livrou de nós com tanto
sucesso e também da sua audácia em mandar de volta o meu próprio nome através
do cocheiro. Desde aquele momento, ele compreendeu que eu havia assumido o caso
em Londres, e que, portanto, não havia nenhuma chance para ele aqui. Ele voltou
para Dartmoor e esperou a chegada do baronete.”

 “Um momento!”, disse eu. “Você
descreveu, sem dúvida, a sequência dos acontecimentos corretamente, mas há um
ponto que você deixou sem explicação. Que fim levou o cão quando o seu dono
esteve em Londres?”

“Eu
dediquei alguma atenção a esse ponto e, sem dúvida, ele é importante. Não pode
haver nenhuma dúvida de que Stapleton tinha um confidente, embora seja pouco
provável que ele alguma vez tivesse se colocado em seu poder, partilhando todos
os seus planos com ele. Havia um velho empregado na Casa de Merripit cujo nome
era Anthony. Sua ligação com os Stapletons pode ser remontada há vários anos,
até o tempo em que dirigiu o colégio, de forma que ele devia saber que seu
patrão e patroa eram realmente marido e mulher. Esse homem desapareceu e fugiu
do país. É sugestivo que Anthony não é um nome comum na Inglaterra, ao passo
que Antonio é em todos os países hispânicos ou hispano­americanos. O homem,
como a própria Sra. Stapleton, falava inglês bem, mas com um sotaque ciciado
curioso. Eu mesmo vi esse velho atravessar o Pântano de Grimpen pelo caminho
que Stapleton havia demarcado. E muito provável, portanto, que, na ausência do
seu patrão, fosse ele que cuidasse do cão, embora nunca possa ter sabido o fim
para que o animal era usado.”

 “Os Stapletons foram depois para o
Devonshire, no sul, para onde foram seguidos em breve por Sir Henry e você. Uma
palavra agora quanto à minha própria posição na ocasião. Provavelmente, você
deve se recordar que quando examinei o papel sobre o qual as palavras impressas
foram coladas fiz um exame minucioso da marca d’água. Ao fazer isso, segurei­o
a poucos centímetros dos meus olhos e percebi um ligeiro aroma do perfume
conhecido como jasmim branco. Há setenta e cinco perfumes e é muito necessário
que um especialista em crimes possa distinguir uns dos outros e mais de uma vez
têm ocorrido casos em minha própria experiência que dependeram do seu pronto
reconhecimento. A fragrância sugeria a presença de uma dama, e os meus
pensamentos já começavam a se voltar para o casal Stapleton. Dessa maneira, eu
havia me certificado do cão, e havia desconfiado do criminoso antes mesmo de
irmos para a região.”

“O
meu jogo era vigiar Stapleton. Era evidente, contudo, que eu não podia fazer
isso se estivesse com vocês, já que ele ficaria de sobreaviso. Enganei todo
mundo, portanto, inclusive você, e fui para o sul secretamente quando pensavam
que eu estava em Londres. Minhas provações não foram tão grandes como imaginou,
embora esses detalhes triviais nunca devam interferir na investigação de um
caso. Fiquei a maior parte do tempo em Coombe Tracey e só usei a cabana da
charneca quando foi necessário ficar perto da cena da ação. Cartwright tinha
vindo comigo e em seu disfarce como menino do campo foi de grande ajuda para
mim. Eu dependia dele para a comida e a roupa limpa. Enquanto eu estava
observando Stapleton, Cartwright estava frequentemente observando você e de
maneira que eu podia manter na mão todos os cordões.”

“Eu
já disse a você que os seus relatórios me chegavam rapidamente, sendo
reenviados instantaneamente da Baker Street para Coombe Tracey. Eles me
ajudaram muito e, especialmente, aquela peça incidentalmente verdadeira da
biografia do casal Stapleton. Pude estabelecer a identidade do homem e da
mulher. O caso havia sido consideravelmente complicado pelo incidente do
condenado foragido e das relações entre ele e os Barrymores. Isso também você
esclareceu de forma muito eficiente, embora eu já tivesse chegado às mesmas
conclusões pelas minhas próprias observações.”

 “No momento em que você me descobriu na
charneca, eu tinha um conhecimento completo de todo o negócio, mas não tinha um
caso que pudesse ir a um júri. Mesmo a tentativa de Stapleton contra Sir Henry,
naquela noite, que terminou com a morte do infeliz condenado não nos ajudaria a
provar nada contra o nosso homem. Parecia não haver nenhuma alternativa senão
pegá­lo em flagrante, e para isso tínhamos que usar Sir Henry como isca,
sozinho e, aparentemente, desprotegido. Fizemos isso e, ao custo de grave
choque para o nosso cliente, conseguimos completar o nosso caso e levar
Stapleton à sua destruição. Que Sir Henry tivesse sido exposto a isso é, devo
confessar, um descrédito para a minha condução do caso, mas não tínhamos nenhum
meio de prever o espetáculo terrível e paralisante que o animal apresentou, nem
podíamos prever a cerração que permitiu que ele surgisse sobre nós tão
inesperadamente. Tivemos sucesso em nosso objetivo a um custo que tanto o
especialista como o Dr. Mortimer me asseguram ser temporário. Uma viagem longa
pode permitir ao nosso amigo se recuperar não só dos seus nervos abalados, como
também dos seus sentimentos feridos. Seu amor pela dama era profundo e sincero
e, para ele, a parte mais triste de todo esse caso negro foi ter sido enganado
por ela.”

 “Resta apenas indicar o papel que ela
desempenhou em tudo isso. Não pode haver nenhuma dúvida de que Stapleton
exercia uma influência sobre ela que pode ter sido amor ou pode ter sido medo,
ou muito provavelmente ambos, já que não são de maneira alguma emoções
incompatíveis. Ela era, pelo menos, absolutamente eficaz. Por ordem dele, ela
concordou em passar por sua irmã, embora ele encontrasse os limites do seu
poder quando procurou fazer dela o acessório direto do assassinato. Ela estava
pronta para avisar Sir Henry desde que pudesse sem implicar seu marido, e
tentou fazer isso várias vezes. O próprio Stapleton parece ter tido ciúmes e
quando viu o baronete fazendo a corte à dama, embora isso fizesse parte do seu
próprio plano, não pôde interromper uma explosão apaixonada, que revelou a alma
inflamada e que os seus modos retraídos escondiam tão astutamente. Encorajando
a intimidade, ele certificou-se de que Sir Henry iria frequentemente à Casa de
Merripit e que teria, mais cedo ou mais tarde, a oportunidade que desejava. No
dia do crime, no entanto, sua mulher voltou-se de repente contra ele. Ela havia
sabido de alguma coisa sobre a morte do condenado e sabia que o cão estava
sendo guardado na dependência na noite em que Sir Henry ia jantar lá. Ela
responsabilizou o marido pelo crime pretendido e seguiu-se uma cena furiosa,
revelando, pela primeira vez, que ela tinha uma rival no seu amor. A fidelidade
dela transformou­se num instante num ódio amargo e ele percebeu que ela ia
traí-lo. Portanto, amarrou­a, para que ela não tivesse nenhuma possibilidade de
avisar Sir Henry e esperou, sem dúvida, que quando toda região atribuísse a
morte do baronete à maldição da sua família, como certamente faria, ele poderia
recuperar a fidelidade dela, fazendo-a aceitar o fato consumado e manter
silêncio sobre o que sabia. Nisso acho que, de qualquer maneira, ele cometeu um
engano, e que, se nós não estivéssemos lá, a sorte dele estaria selada apesar
disso. Uma mulher de sangue espanhol não perdoa um agravo desses tão
facilmente. E agora, meu caro Watson, sem me referir aos meus apontamentos, não
posso fazer um relato mais detalhado para você deste caso curioso. Não sei se
alguma coisa essencial foi deixada sem elucidação.”

“Ele
não podia ter esperado matar Sir Henry de susto como havia feito com o velho
tio com o seu cão diabólico.”

“O
animal era selvagem e estava meio faminto. Se a sua aparência não matasse sua
vítima de susto, pelo menos paralisaria a resistência que ela pudesse
oferecer.”

“Sem
dúvida. Resta apenas uma dificuldade. Se Stapleton herdasse, como poderia ele
explicar o fato de ele, o herdeiro, estar vivendo escondido sob outro nome tão
perto da propriedade? Como ele poderia afirmar isso sem causar suspeita e ser
objeto da investigação?”

 “Essa é uma dificuldade formidável, e
receio que você esteja pedindo demais quando espera que eu resolva isso. O
passado e o presente estão dentro do campo da minha investigação, mas o que um
homem pode fazer no futuro é uma questão difícil de responder. A Sra. Stapleton
ouviu o marido discutir o problema em várias ocasiões. Havia três condutas
possíveis. Ele podia reivindicar a propriedade da América do Sul, estabelecer
sua identidade diante das autoridades inglesas lá e, assim, obter a fortuna sem
jamais vir à Inglaterra; ou podia adotar um disfarce elaborado durante o curto
período em que precisasse estar em Londres; ou, novamente, poderia fornecer as
provas e documentos a um cúmplice, apresentando-o como herdeiro, conservando o
direito a uma magnitude da renda dele. Não podemos duvidar pelo que sabemos
dele que ele teria encontrado algum meio de se sair da dificuldade. E agora,
meu caro Watson, tivemos algumas semanas de trabalho intenso, e por uma noite,
acho eu, devemos voltar nossos pensamentos para coisas mais agradáveis. Tenho
um camarote para Les Huguenots. Já
ouviu o De Reszkes? Posso, então, pedir-lhe que esteja pronto em meia­hora para
jantarmos no Marcini, a caminho do
teatro?”


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APRENDENDO PORTUGUÊS – Lição 02 – ARREAR X ARRIAR



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