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ISBN 978-85-7953-756-1 – Todos os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98. – Conrad, Joseph (Józef Teodor Konrad Korzeniowski – 1857 – 1924) CORAÇÃO DAS TREVAS (Heart of Darkness) Tradução: Cao Ypiranga . Pará de Minas, MG, Brasil.
CORAÇÃO DAS TREVAS
Joseph Conrad
PARTE I
O Nellie, um escaler de cruzeiro, balançou quando a âncora foi lançada, sem vibração alguma nas velas, e ficou em repouso. A enchente tinha chegado, o vento estava quase calmo, e o destino do escaler era descer o rio, mas a única coisa a fazer era esperar a virada da maré.
O estuário do Tâmisa se estendia diante de nós como o início de uma hidrovia interminável. No horizonte, o mar e o céu pareciam soldados um ao outro sem uma emenda, e, nesse espaço luminoso, as velas curtidas das barcaças à deriva com a maré pareciam paralisadas compondo feixes de pontiagudos triângulos vermelhos, onde cintilavam os reflexos de seus mastros envernizados. Uma névoa descansava sobre as praias, que corria para o mar e diluía no meio da bruma. O ar estava escuro acima de Gravesend, e, mais para trás ainda, parecia condensado em uma melancolia magoada, imóvel, remoendo sobre a maior e mais grandiosa cidade na terra. O diretor da Companhia era nosso capitão e nosso anfitrião. Nós quatro observávamos afetivamente suas costas, enquanto ele permanecia na proa olhando para o mar. Em todo o rio, não havia nada que parecia mais náutico do que ele. Parecia-se com um piloto que, entre marinheiros, personificava a lealdade. Era difícil admitir que o seu trabalho não estivesse lá, no luminoso estuário, mas atrás dele, dentro da escuridão envolvente.
Entre nós havia, como já disse em outra ocasião, o vínculo com o mar. Além de manter os nossos corações unidos durante longos períodos de separação, tinha o efeito de nos fazer tolerantes uns com os outros – e até mesmo nas convicções. O advogado – o melhor dos velhos companheiros – teve, por causa de seus muitos anos e muitas virtudes, a única almofada no convés e havia deitado no único tapete. O Contador já tinha trazido uma caixa de dominó e estava brincando de arquitetura com as peças ósseas. Marlow estava sentado à popa, de pernas cruzadas, encostado no mastro da mezena. Ele tinha bochechas afundadas, uma tez amarela, as costas retas, de um aspecto ascético, e, com seus braços caídos, as palmas das mãos para cima, semelhante a um ídolo indiano. O diretor, satisfeito com a posição da âncora, caminhou pela popa e sentou-se entre nós. Trocamos algumas palavras preguiçosamente. Depois houve silêncio a bordo do iate. Por algum motivo ou outro, não começou o jogo de dominó. Sentíamos meditativos e aptos para nada, apenas em plácida contemplação. O dia terminava com uma serenidade de brilho ainda requintado. A água brilhava pacificamente; o céu, sem uma mancha, era uma imensidão de luz benigna e sem mácula, a névoa excessiva sobre o pântano de Essex era como um tecido transparente e radiante, pendurado sobre os morros arborizados do interior e drapejando sobre as margens baixas, em dobras diáfanas. Só havia tristeza para o oeste, pairando sobre o fluxo superior do rio, tornando-o mais sombrio a cada minuto, como se estivesse irritado com a abordagem do sol.
E, finalmente, o sol, em sua queda oblíqua e imperceptível, submergiu no horizonte, do branco brilhante mudou-se para um vermelho fosco, sem raios e sem calor, como se estivesse prestes a se apagar de repente, ferido de morte pelo toque de melancolia que pairava sobre a multidão de homens.
Imediatamente, veio uma mudança sobre as águas e a sua serenidade tornou-se menos brilhante e mais profunda. O velho rio, em seu amplo alcance, descansou sereno com o declínio do dia, depois de séculos de bons serviços prestados aos que povoaram suas margens, alastrando-se com tranquila dignidade de um canal que conduz aos confins da terra. Olhávamos para o venerável fluxo, não no rubor vívido de um dia curto que vem e parte para sempre, mas sob a augusta luz das memórias permanentes. E, de fato, nada é mais fácil para um homem que tem, como se costuma dizer, “de seguir o mar” com reverência e carinho, do que evocar o grande espírito do passado sobre o fluxo inferior do rio Tâmisa. A corrente subia e descia em seu trabalho incessante, repleta de lembranças de homens e navios que conduzira ao lar ou às batalhas marítimas. Ele tinha conhecido e servido a todos os homens que fizeram o orgulho da nação, de Sir Francis Drake a Sir John Franklin, todos os cavaleiros, com título ou sem título – os grandes cavaleiros andantes do mar. Conduzira todos os navios cujos nomes são como joias cintilando na noite dos tempos, desde o Golden Hind, que retornou com seus largos costados entulhados de tesouros, para ser visitado por Sua Majestade, a Rainha, e desapareceu em seguida nos confins da História, até o Erebus e Terror, destinados a outras conquistas – e que nunca mais regressaram. O rio tinha conhecido os navios e os homens. Eles tinham navegado de Deptford, de Greenwich, de Erith – os aventureiros e os colonizadores; navios de reis e navios de homens; capitães, almirantes, os funestos intrusos do comércio do Oriente e os comissionados generais das frotas das Índias Orientais. Caçadores de ouro ou perseguidores da fama, todos eles tinham descido aquele rio, tendo a espada à mão e, muitas vezes, a tocha, mensageiros dos poderosos da terra-firme, portadores de uma centelha do fogo sagrado. Quanta grandeza não tinha flutuado sobre a vazante desse rio até atingir o mistério de uma terra desconhecida!… Os sonhos dos homens, a semente de repúblicas, os germes de impérios.
O sol se pôs, o anoitecer desceu sobre as águas e as luzes começaram a surgir ao longo da costa. O farol de Chapman, uma coisa de três pernas, fincado em uma lama lisa, brilhava fortemente. Luzes de navios moviam-se ao longo do canal – uma grande agitação de luzes subindo e descendo. E mais a oeste, no trecho superior do rio, ocupado pela monstruosa cidade, ainda estava assinalado, agourentamente no céu, uma escuridão que dominava a luz do sol, um clarão lúgubre sob as estrelas.
“E esse também”, disse Marlow, de repente, “tem sido um dos lugares mais sombrios da terra.”
Ele era o único de nós que ainda “seguia o mar”. O pior que poderia ser dito dele era que ele não representava a sua classe. Ele era um marinheiro, mas era, também, um andarilho, enquanto a maioria dos marinheiros leva, por assim dizer, uma vida sedentária. Eles são do tipo que gosta de ficar em casa, e sua casa – o navio – está sempre com eles, o mesmo acontecendo com o seu país – o mar. Um navio é muito semelhante a outro, e o mar é sempre o mesmo. Na imutabilidade de seu meio ambiente, as terras estrangeiras, os rostos estrangeiros, a variável mudança de vida, tudo passa por eles dissimulado, não por uma sensação de mistério, mas por uma ignorância levemente desdenhosa, e não há nada de misterioso a um marinheiro a não ser o mar em si, que é o senhor de sua existência e tão inescrutável quanto o Destino. Quanto ao resto, depois de suas horas de trabalho, um passeio casual ou uma farra eventual na costa são suficientes para lhe revelar o segredo de todo um continente, e, na maioria das vezes, descobre que não vale a pena conhecer o segredo. As histórias dos marinheiros têm uma simplicidade direta, todo o significado delas cabe dentro da casca de uma noz. Mas Marlow não era um marujo típico (a não ser por sua disposição em contar histórias), e para ele o significado de um episódio não situava no seu interior, como um caroço, mas do lado de fora, envolvendo a narrativa que o exprimiu, tal como um brilho revela a névoa, à semelhança de um desses enevoados halos que às vezes se tornam visíveis pela iluminação espectral do luar.
Sua observação não pareceu de todo surpreendente. Era típica de Marlow e foi aceita em silêncio. Ninguém se deu o trabalho nem sequer de resmungar, e, em seguida, ele disse, muito lentamente:
“Eu estava pensando em tempos muito antigos, quando os romanos chegaram aqui pela primeira vez, há novecentos anos – outro dia… A luz surgiu neste rio a partir da época dos… dos Cavaleiros, dizem vocês? Sim, mas como o fogo correndo pela planície, como o faiscar de um relâmpago nas nuvens. Nós vivemos no brilho transitório – que pode durar enquanto a velha terra girar. Mas até ontem a escuridão esteve aqui. Imaginem o que devia sentir o comandante de um belo . . . como se chama mesmo?… trirreme no Mediterrâneo, ao receber ordens repentinamente de vir para o norte; ter de atravessar a terra dos gauleses o mais rápido possível; de assumir o comando de uma dessas embarcações de legionários – um maravilhoso grupo de homens práticos que deve ter sido, também – usados para criar alguma civilização, aparentemente, às centenas, em um mês ou dois, se é que podemos acreditar no que lemos a respeito disso. Imaginem esse homem aqui – neste fim do mundo -, diante de um mar cor de chumbo e um céu cor de fumaça, num tipo de navio que possuía a rigidez de uma sanfona; e subindo o rio com sortimentos, ou ordens, ou o que você prefira; bancos de areia, pântanos, selvas, selvagens – muito pouca coisa para se comer apropriada a um homem civilizado, nada mais para beber a não ser a água do Tâmisa, sem o vinho de Falerno, nada de descidas à terra. Aqui e ali, um acampamento militar perdido em uma restinga, como uma agulha no palheiro – frio, nevoeiro, tempestades, doenças, exílio e morte -, morte que se esconde no ar, na água, no meio na selva. Eles deviam morrer como moscas, aqui. Oh, sim – ele fez isso, fez isso muito bem, sem dúvida, e sem pensar muito sobre esse assunto, a não ser mais tarde, talvez, para se gabar de tudo que havia passado ali. Eram homens suficientes para enfrentar as trevas. E ele talvez estivesse animado, de olho numa oportunidade de promoção para a frota em Ravenna, se ele tivesse bons amigos em Roma e sobrevivesse ao clima terrível. Ou pensem num jovem cidadão decente, com uma toga -, talvez envolvido demais com os dados, vocês sabem -, vindo para cá na comitiva de algum prefeito, ou coletor de impostos, ou até mesmo de um comerciante, para resgatar sua fortuna. Desembarga em um pântano, marcha pela selva, e, em algum posto perdido no interior, sente a selvageria, a selvageria plena, que se fecha em torno dele – toda aquela vida misteriosa que amotina na selva, na selva, no coração dos homens selvagens. Mas não existe uma iniciação em tais mistérios. Ele tem que viver no meio do incompreensível, que também é detestável. E há um fascínio também, que vai agir sobre ele – o fascínio do abominável -, vocês sabem, imaginem o arrependimento crescente, o desejo de fugir, o nojo impotente, a entrega, o ódio.”
Ele fez uma pausa.
“Notem” – recomeçou ele, levantando o braço dobrado em ângulo reto e a palma da mão virada para fora; antes, tinha a pose de um Buda em pregação, vestido de roupas europeias e sem uma flor de lótus – “notem, nenhum de nós se sentira exatamente assim. O que nos salva é a eficiência, a devoção à eficiência. Mas esses sujeitos, realmente, não eram grande coisa. Eles não eram colonizadores; sua administração era apenas extrativista, e nada mais, suponho. Eram conquistadores, e para isso basta à força bruta – nada para se vangloriar quando se tem, já que a sua força é apenas um acidente decorrente da fraqueza dos outros. Eles pegavam o que podiam obter, simplesmente, porque as coisas estavam ali para serem agarradas. Foi apenas roubo com violência, agravado por homicídio em grande escala, e os homens vão para isso às cegas – como é muito adequado aos que deparam com as trevas. A conquista da terra, o que, de um modo geral, significa tomá-la daqueles que têm uma pele de cor diferente da nossa ou um nariz ligeiramente mais achatado do que o nosso, não muito agradável de ver quando observado por um tempo demasiadamente longo. O que redime esses atos é apenas uma ideia subentendida; não uma pretensão sentimental, mas uma ideia, uma crença altruísta na ideia – algo que você pode estabelecer, curvar-se diante e oferecer um sacrifício para…”
“Ele calou-se. Chamas deslizavam pelo rio, pequenas chamas verdes, chamas vermelhas, chamas brancas, perseguindo-se, ultrapassando, juntando-se e entrecruzando-se, para em seguida se separarem, de modo vagaroso ou rápido. O tráfego da grande cidade continuava, enquanto a noite aprofundava sobre o rio insone. Nós continuávamos olhando e esperando pacientemente – não havia mais nada a fazer até a mudança da maré -, mas foi só depois de um longo silêncio, que ele disse, com uma voz hesitante: “Suponho que vocês, companheiros, recordem da ocasião em que fui marinheiro de água doce por um tempo”; e estávamos fadados, antes da maré subir, a ouvir outra das experiências inconclusivas de Marlow.
“Eu não quero incomodá-los demais com o que me aconteceu pessoalmente”, ele começou, mostrando nesta observação a fraqueza de muitos contadores de histórias que parecem, muitas vezes, ignorar o que de fato o seu público gostaria de ouvir: “Contudo, para que compreendam o efeito que ela teve em mim, vocês devem saber como eu cheguei lá, o que eu vi, como subi aquele rio até o lugar onde encontrei aquele pobre coitado. Ali era o ponto mais distante alcançado pela navegação fluvial e o ponto culminante da minha experiência. Parecia, de certa forma, que alguma luz tinha sido lançada sobre mim, e sobre a minha mente também. Foi sombria o suficiente – e lamentável-, de forma alguma extraordinária, nem muito clara; ainda assim, parecia irradiar um tipo de luz.
“Eu acabara de retornar a Londres, como vocês se lembram, depois de muito tempo pelo oceano Índico, Pacífico, e Mar da China – uma dose regular do Oriente – seis anos mais ou menos, e eu estava vadiando aproximadamente, incomodando vocês, companheiros, nos seus trabalhos, invadindo seus lares, como se tivesse uma missão divina de civilizá-los. Por algum tempo isso foi muito agradável, mas acabei por me cansar de tanto descansar. Comecei, então, a procurar um navio – que acho ser o trabalho mais difícil na terra. Mas os navios não queriam sequer olhar para mim. E, também, logo me cansei desse jogo.
“Ora, quando eu era garoto tinha paixão por mapas. Ficava olhando horas a fio para a América do Sul, a África, a Austrália, e sonhava com todas as glórias da exploração. Naquela época, havia muitos espaços vazios na terra, e quando eu vi um que parecia particularmente convidativo no mapa (e todos eles pareciam que eram) eu colocava o dedo sobre ele e dizia: ‘Quando eu crescer, eu vou visitá-lo.’ O Polo Norte era um desses lugares, lembro muito bem. Bem, eu não fui lá, e não vou tentar agora. O encanto se quebrou. Os outros lugares ficavam espalhados ao redor do equador e em todas as latitudes possíveis, nos dois hemisférios. Estive em alguns deles e… bem, não vamos falar sobre isso. Mas havia um – o maior, o mais vazio, por assim dizer -, que me atraía ardentemente.
“É bem verdade que nessa época não era um espaço vazio. Tinha sido preenchido, desde a minha infância, com rios e lagos e nomes. Ele tinha deixado de ser um espaço vazio com seu delicioso mistério – uma mancha branca sobre o qual um menino podia sonhar gloriosamente. Tornou-se um lugar de trevas. Mas havia nele um rio especial, um poderoso rio desmedido, que você pode ver no mapa, semelhante a uma cobra imensa e desenrolada, com a cabeça mergulhada no mar, o corpo em repouso curvando-se na distância, ao longo de um vasto país, e sua cauda perdida nas profundezas da terra; e, quanto eu olhei para o mapa numa vitrine, ele me fascinou como uma serpente fascinaria um pássaro – um pássaro pequeno e tolo. Então, lembrei-me que havia uma grande empresa, uma Companhia que comercializava naquele rio. Com os diabos, falei para mim mesmo, eles não podem negociar sem utilizar algum tipo de embarcação nessa extensão de água doce – barcos a vapor! Por que não tentar obter o comando de um deles? Fui andando pela Rua Fleet, mas sem conseguir me livrar da ideia. A serpente tinha me encantado.
“Vocês compreendem, era uma empresa continental, aquela sociedade comercial, mais eu tinha muitos bons contatos no Continente, pois segundo eles a vida lá é mais barata, e não é tão detestável quanto parece.
“Lamento reconhecer que comecei a preocupá-los. Era um recomeço para mim. Não estava acostumado a fazer as coisas dessa forma, vocês sabem. Sempre segui o meu próprio caminho, com minhas próprias pernas, onde minha mente me conduzisse. Eu mesmo não acreditaria que pudesse agir assim; mas, então – vejam vocês – eu senti de alguma forma que devia chegar lá por bem ou por mal. Então, eu os preocupava. Os homens disseram ‘Meu caro amigo’, e não fizeram nada, então – vocês nem vão acreditar nisso – resolvi recorrer às mulheres. Eu, Charlie Marlow, coloquei as mulheres para trabalhar a fim de conseguir-me um emprego. Céus! Bem, vejam vocês, eu estava com ideia fixa. Eu tinha uma tia, uma alma querida e entusiasmada. Ela escreveu: ‘Será um prazer, estou pronta para fazer qualquer coisa, qualquer coisa por você. É uma ideia gloriosa. Conheço a esposa de um alto diretor da administração e também um homem que tem muita influência’, etc. Ela estava determinada a fazer muito barulho para me nomear capitão de um barco a vapor fluvial, se essa era a minha fantasia.
“É claro que tive a minha nomeação. Consegui o posto com rapidez. Parece que a Companhia havia recebido a notícia de que um dos seus capitães tinha sido morto em uma briga com os nativos. Era a minha chance, e isso me deixou ainda mais ansioso por partir. Somente muitos meses mais tarde, quando eu procurei recuperar o que restou do meu corpo, eu soube a origem da briga, um desentendimento por causa de algumas galinhas. Sim, duas galinhas pretas. Fresleven – esse era o nome do sujeito, um dinamarquês – julgou-se prejudicado de alguma forma no negócio, então ele foi à terra firme e começou a espancar o chefe da aldeia com uma vara. Oh, não me surpreendi quando me contaram isso, nem mesmo quando me falaram do comportamento de Fresleven, uma criatura gentil, mais afável que já andou sobre duas pernas. Sem dúvida, que ele era; mas já fazia dois anos que ele se encontrava ali, vocês sabem, e ele provavelmente sentiu a necessidade de afirmar finalmente a sua autoestima, e surrou o negro velho sem piedade, enquanto seu povo testemunhava atônito, até que um homem (foi-me dito que era o filho do chefe) desesperado diante dos gritos do ancião veio correndo e desferiu um golpe de lança no homem branco – e é claro que foi muito fácil alojá-la entre suas omoplatas. Então, toda a população correu para a selva, esperando que acontecesse todo tipo de calamidades, enquanto, por outro lado, a tripulação do navio, antes comandada por Fresleven, também se afastou em pânico, sob o comando do engenheiro, eu acredito. Aparentemente, ninguém pareceu se incomodar muito com os restos mortais de Fresleven, até eu chegar e assumir seu cargo. Mas eu não podia deixar as coisas como estavam; quando, porém, surgiu afinal uma oportunidade de conhecer o meu predecessor, a grama que crescia através de suas costelas era alta o suficiente para esconder seus ossos. Eles estavam todos lá. O ser sobrenatural não havia sido tocado depois de sua queda. E a aldeia estava deserta, as cabanas enegrecidas e abandonadas, apodrecendo, tudo inclinado dentro dos recintos desmantelados. Uma calamidade tinha chegado ali, com certeza. As pessoas tinham desaparecido. Um terror louco os havia dispersado, homens, mulheres e crianças desembestaram pela selva e nunca mais retornaram. O que aconteceu às galinhas, não se sabe, mas presumo que, por causa do progresso, foram dizimadas; no entanto, por causa deste glorioso caso, obtive a minha nomeação, bem antes do que eu esperava.
“Corri como um louco para dar conta dos preparativos para a viagem, e menos de quarenta e oito horas, estava atravessando o Canal para me apresentar aos meus empregadores e assinar o contrato. Em poucas horas, cheguei a uma cidade que sempre me faz pensar num sepulcro pintado de branco. Um preconceito, sem dúvida. Não tive dificuldade em encontrar os escritórios da Companhia. Era o negócio mais importante da cidade, e todo mundo que conheci sentia-se orgulhoso por tê-lo. Eles iam fundar um império ultramarino e fazer muito dinheiro com o comércio.
“Uma rua estreita e deserta, imersa nas sombras, casas altas, janelas com inumeráveis venezianas, um silêncio mortal, capim brotando entre as pedras, à direita e à esquerda, imensas e pesadas portas duplas entreabertas. Esgueirei-me através de uma dessas fendas e subi uma escada varrida e sem adornos, tão árida como um deserto, e abri a primeira porta que encontrei. Duas mulheres, uma gorda e outra magra, sentadas em cadeiras de palhinha, tricotando com lã preta. A magra levantou-se e caminhou na minha direção – de olhos baixos e sem parar de tricotar – e no momento em que eu me preparava para sair do seu caminho, como se estivesse diante de uma sonâmbula, ela parou e ergueu os olhos. Seu vestido era tão simples e liso como o tecido de um guarda-chuva; fez meia-volta e conduziu-me a uma sala de espera. Dei o meu nome, e olhei em volta. Uma mesa de negociação no centro, cadeiras comuns ao longo das paredes, e, em uma extremidade, um grande e brilhante mapa, marcado com todas as cores do arco-íris. Havia uma grande quantidade de vermelho – bom de ver a qualquer momento, porque se sabe que algum trabalho real está sendo realizado ali-; um ou dois lotes de azul, um pouco de verde, manchas de laranja, e, na Costa Oriental, uma mancha púrpura, para mostrar onde se agrupam os pioneiros do progresso e bebem a boa cerveja Lager. No entanto, eu não estava indo para nenhum desses lugares. Meu destino era o amarelo. Bem no centro. E ali estava o rio – fascinante, mortal – como uma cobra. Meu Deus! Uma porta se abriu, e nela apareceu a cabeça branca e formal de um secretário, mas com uma expressão de compaixão no rosto, e seu indicador magro me fez sinal para entrar no santuário. A luz era fraca e uma pesada escrivaninha disposta bem no meio. Atrás dela, via-se a estrutura adiposa e pálida metida numa sobrecasaca. Era o grande homem em pessoa. Ele possuía um metro e setenta de altura, pelo que julguei, mas tinha em suas mãos o controle de milhões. Apertamos as mãos, imagino, ele murmurou coisas vagas, considerou satisfatório o meu francês, ‘Bon Voyage’.
“Cerca de quarenta e cinco segundos mais tarde, vi-me de novo na sala de espera, diante do compadecido secretário, que, cheio de desolação e simpatia, fez-me assinar alguns documentos. Acredito que me comprometi, entre outras coisas, a não divulgar nem um dos segredos comerciais. Bem, não vou fazê-lo agora.
“Comecei a me sentir um pouco desconfortável. Vocês sabem que não estou acostumado com esse cerimonial, e havia algo de sinistro na atmosfera. Era como se tivesse passado a fazer parte de uma conspiração – não sei bem – alguma coisa que não era muito correta. Senti alívio ao sair dali. Na sala de entrada, as duas mulheres tricotavam febrilmente a sua lã preta. As pessoas estavam chegando e a mais nova andava para lá e para cá encaminhando o pessoal. A mais velha continuava sentada na sua cadeira. Seus chinelos de pano estavam apoiados em um aquecedor de pés, e um gato repousava em seu colo. Usava uma touca branca e engomada na cabeça, tinha uma verruga na bochecha, e óculos de aros de prata pendurado na ponta do nariz. Olhou-me por cima dos óculos. A rápida e a indiferente placidez daquele olhar me incomodaram. Dois jovens com semblante inocente e jovial estavam sendo escoltados até a sala de espera e ela jogou para eles o mesmo olhar rápido de sabedoria despreocupada. Ela parecia saber tudo sobre eles e sobre mim, também. Uma sensação estranha tomou conta de mim. Parecia sinistra e profética. Muitas vezes, longe dali, pensava nessas duas mulheres, que guardavam a porta das Trevas, tricotando sua lã preta como se tecesse uma mortalha, uma encaminhando, encaminhando continuamente ao desconhecido, a outra examinando os rostos tolos e despreocupados com os seus velhos olhos indiferentes. Ave! Velha tricoteira de lã preta. ‘Morituri te salutant’. Não foram muitos, dentre todos aqueles que seus olhos observaram, que ela tornou a por os olhos; nem a metade deles.
“Havia ainda uma visita ao médico. ‘Uma simples formalidade’, assegurou-me o secretário, com um ar solidário a todas as minhas enfermidades. Assim, surgiu um rapaz com um chapéu tombado sobre o olho esquerdo, algum escriturário, supus – deve haver escriturários na Companhia, embora a casa mantivesse tão silenciosa como se estivesse situada na cidade dos mortos – veio de alguma parte do andar de cima e conduziu-me com ele. Vestia-se de maneira pobre e descuidada, com manchas de tinta nas mangas da jaqueta e sua gravata era grande e revolta sob um queixo que tinha a forma de um bico de bota velha. Ainda era cedo e o médico não havia chegado, então eu propus uma bebida, logo ele deixou transparecer a veia de jovialidade. Quando nos sentamos diante de nossos vermutes, ele se pôs a glorificar os negócios da Companhia, e expressei minha surpresa por ele não estar envolvido em um empreendimento de além-mar. Ele ficou muito sério e contido de repente. ‘Eu não sou tão idiota quanto pareço, como disse Platão a seus discípulos’, disse ele sentenciosamente, esvaziou o copo com grande resolução e levantou-se.
“O velho médico sentiu meu pulso, evidentemente pensando em outra coisa ao mesmo tempo. ‘Bom, muito bom’, ele murmurou, e depois com certa ansiedade me perguntou se eu permitiria que medisse o meu crânio. Bastante surpreendido, eu disse que sim, e ele então, usando uma espécie de calibrador, começou a tomar todas as medidas e dimensões cranianas, tomando notas com muito cuidado. Era um homenzinho com barba por fazer, metido num casaco puído, tipo uma gabardine, com os pés enfiados em chinelos, considerei-o um tolo inofensivo. ‘Sempre peço permissão, no interesse da Ciência, para medir os crânios de quem vai para lá’, disse ele. ‘E quando voltam, também?’, perguntei. ‘Ah, nunca torno a vê-los’, ele comentou, ‘e, além disso, as mudanças acontecem no interior, você sabe.’ Ele sorriu, como se houvesse dito uma piada. ‘Então, está indo para lá. Excelente. Interessante, também.’ Lançou-me um olhar de curiosidade e fez mais uma anotação. ‘Algum caso de loucura na família?’, ele perguntou, em um tom prosaico. Senti-me muito irritado. ‘É uma pergunta no interesse da Ciência, também?’ ‘Seria’, respondeu ele, sem tomar conhecimento de minha irritação, ‘interessante para a Ciência observar as mudanças mentais dos indivíduos, no local, mas…’ ‘O senhor é um alienista?’, interrompi sua conclusão. ‘Todo médico deveria ser – um pouco’, respondeu, de maneira imperturbável. ‘Tenho uma pequena teoria e os senhores que vão para lá poderão me ajudar a provar. Essa é a minha parte nas vantagens que meu país deve colher em posse de tal território tão magnífico. A mera riqueza, deixo para os outros. Perdoe-me pelas perguntas, mas é o primeiro cidadão inglês que tenho oportunidade de examinar…’ Apressei-me a assegurar-lhe que não tinha nada de extraordinário. ‘Se eu fosse’, afirmei, ‘não estaria falando assim com o senhor.’ ‘O que diz é muito profundo e, provavelmente, incorreto’, comentou ele com uma risada. ‘Evite a irritação mais do que a exposição ao sol. ‘Adieu’. Como se diz em sua língua? Adeus. Ah! Adeus. ‘Adieu’. Nos trópicos, a pessoa deve conservar a calma acima de tudo.’ Ergueu um dedo em sinal de advertência… ‘Du calme, du calme. Adieu.’
“Só mais uma coisa restava a fazer – dizer adeus à minha excelente tia. Encontrei-a triunfante; tomamos uma xícara de chá – o último chá decente que eu iria provar durante muito tempo – e, em uma sala tranquilizadora, como seria de esperar a sala de estar de uma senhora, tivemos uma longa e tranquila conversa junto à lareira. No curso dessas confidências, ficou bastante claro para mim que eu tinha sido apresentado para a esposa de um alto dignitário, e só Deus sabe para quantas pessoas mais, além disso, como uma criatura excepcional e talentosa – uma ótima aquisição para a Companhia – um homem que não se encontra todo dia. Deus do céu! Eu estava indo para comandar rio acima um vapor ordinário, com um insignificante apito. Parecia, no entanto, que eu também era um dos Trabalhadores, com inicial maiúscula, vocês sabem. Algo parecido com um mensageiro da luz, algo como uma espécie de apóstolo de qualidade inferior. Havia um monte de besteira sobre o assunto circulando na imprensa e nas conversas daquele tempo, e a excelente senhora, vivendo bem no centro de toda essa conversa fiada, deixou-se empolgar. Ela falou sobre ‘arrancar todos aqueles milhões de criaturas ignorantes de seus abomináveis costumes’, até que, palavra de honra, fui ficando bastante desconfortável. Aventurei-me a insinuar que os objetivos da Companhia era visar o lucro.
“’Você esquece, querido Charlie, que o trabalhador é digno de seu salário’, disse ela, animada. É estranho como as mulheres podem ficar afastadas da verdade. Elas vivem em um mundo próprio, que não se parece com nada que já existiu nem jamais existirá. É um mundo muito bonito, e se elas fossem configurá-lo, cairia aos pedaços antes do primeiro pôr do sol. Algum confuso fato, com o qual nós, os homens, aprendemos a conviver alegremente desde o dia da criação, que fosse iniciado e logo se desfizesse.
“Depois disso, ela me abraçou, disse para usar flanela, e não me esquecer de escrevê-la com frequência, e assim por diante – e saí. Na rua – não sei por qual motivo – veio-me a estranha sensação de que era um impostor; uma reação insólita que eu, acostumado a debandar para qualquer parte do mundo num prazo de vinte e quatro horas, refletindo menos que a maioria dos homens quando atravessa uma rua, tive por um momento – não vou dizer de hesitação, mas uma pausa instável, diante dessa situação tão banal. A melhor forma que posso explicar a vocês é dizer que, por um segundo ou dois, eu me senti como se estivesse prestes a partir, não para o interior de um continente, mas para o centro da terra.
“Parti num vapor francês, que fazia escala em todo maldito porto que encontrava em sua rota, com o único propósito, pelo que pude verificar, de desembarcar soldados e oficiais de alfândega. Pude contemplar o litoral. Observei toda a costa enquanto o navio ia passando diante dela, era como se eu tentasse solucionar um enigma. Ela se estendia ali diante de mim – sorrindo, franzindo a testa, convidativa, grandiosa, insípida, ou selvagem, e sempre muda, mas com um ar sussurrante: ‘venha me decifrar’. Era quase inexpressiva, como se ainda em formação, com um aspecto de uma severidade monótona. Bem à beira de uma selva colossal, tão verde-escura que parecia ser quase negra, margeada por uma espumosa franja branca, correndo em linha reta, como se fosse uma régua, longe, muito longe ao longo de um mar azul cujo brilho era obscurecido por uma névoa rasteira. O sol estava forte, a terra parecia brilhar e gotejar vapores. Aqui e ali surgiam manchas de um branco acinzentado, agrupadas dentro da espuma branca, com uma bandeira tremulando acima delas. Assentamentos com alguns séculos de existência, e ainda não maiores do que uma cabeça de alfinete visto assim de longe. Nosso navio avançava, parava, desembarcava soldados; prosseguia, e mais adiante desembarcava funcionários de alfândegas que iam arrecadar impostos numa região que parecia um deserto abandonado por Deus, em locais onde não havia mais que um barracão de zinco e um mastro de bandeira, perdidos naqueles ermos; desembarcavam mais soldados – para cuidar dos funcionários da Alfândega, presumivelmente. Alguns, eu ouvi dizer, afogavam ao atravessar a arrebentação, se isso acontecia ou não, ninguém parecia particularmente preocupado em averiguar. Eles eram apenas despejados na praia, e nós continuávamos a viagem. Todo dia a costa continuava sendo a mesma como se nunca saíssemos do lugar; passamos, porém, por vários lugares onde se fazia comércio e cujos nomes, como por exemplo, Gran’ Bassam e Little Popo, pareciam pertencer a alguma sórdida farsa representada diante de um pano de fundo sinistro. A ociosidade de um passageiro, meu isolamento entre todos esses homens com quem eu não tinha nenhum ponto de contato, a oleosidade e a languidez do mar, as trevas quase uniformes da costa, parecia manter-me longe da realidade das coisas, preso a uma ilusão tristonha e sem sentido. Ouvia a voz das vagas na arrebentação com um prazer positivo, como se fosse o discurso de um irmão. Era algo natural, que tinha suas razões, um significado. De vez em quando, um barco vindo da costa, punha-nos em contato momentâneos com a realidade. Aproximava-se conduzido por remadores negros. Podia-se ver de longe o branco de seus olhos brilhando. Eles gritavam, cantavam, seus corpos banhados de suor, seus rostos eram como máscaras grotescas – esses sujeitos tinham osso, músculos, uma vitalidade selvagem, uma intensa energia em movimento, que era tão natural e verdadeira como a arrebatação ao longo da costa. Sua presença ali não precisava de uma justificativa. Era um conforto poder contemplá-los. Por um tempo, sentia que pertencia ainda a um mundo de fatos simples, mas esse sentimento não iria durar muito. Algo iria ocorrer para afastá-lo. Uma vez, eu me lembro, deparamo-nos com um navio-de-guerra, ancorado ao largo da costa. Não havia nem mesmo um galpão por lá, mas ele estava bombardeando os arbustos. Parecia que os franceses travavam uma de suas guerras naquelas paragens. Seu estandarte pendia frouxo do mastro, como um trapo, os canos dos longos canhões de seis polegadas projetavam-se à frente ao longo do casco inferior, gorduroso e viscoso, levantando e abaixando preguiçosamente, fazendo oscilar os delgados mastros. Na imensidão desabitada da terra, céu e água, lá estava ele, incompreensível, disparando contra um continente. Bum!, fazia um dos canhões de seis polegadas, e uma chamazinha brilhava e desaparecia, um pouco de fumaça branca surgia e desaparecia, um projétil pequeno dava um grito fraco – e nada acontecia. Nada poderia acontecer. Havia um toque de insanidade naquela operação, um sentido de gracejo lúgubre à vista; e não foi dissipado quando alguém a bordo assegurando-me solenemente que havia um acampamento de nativos – que ele os chamou de inimigos! – escondido em algum lugar fora do alcance dos olhos.
“Entregamos-lhe suas correspondências (ouvi dizer que os seus tripulantes estavam morrendo de febre à razão de três homens por dia), mas seguimos em frente. Fizemos escalas em outros lugares de nomes burlescos, onde a alegre dança da morte e comércio prosseguia numa atmosfera tão terrena e silenciosa como a de uma superaquecida catacumba; ao longo de toda a costa disforme, delimitada pela perigosa arrebentação, como se a natureza procurasse afastar os intrusos; entrando e saindo de rios, córregos de morte em vida, cujos bancos foram apodrecendo em lama, cujas águas, espessas e lodosas, invadiam os manguezais contorcidos, que pareciam se contorcer diante de nós no auge de um impotente desespero. Em nenhum lugar paramos por um tempo suficiente para obter uma impressão particularizada, mas um abrangente sentimento de assombro vago e opressivo crescia dentro de mim. Era como se fizéssemos uma peregrinação exaustiva por lugares repletos de sugestões para pesadelos.
“Passaram-se mais de trinta dias antes que eu avistasse a foz do grande rio. Ancoramos ao largo da sede do governo. Mas meu trabalho só começaria a duzentas milhas adiante. Assim, tão logo me foi possível, continuei a viagem até um lugar situado a trinta milhas dali.
“Comprei passagem para viajar num pequeno vapor marítimo. O capitão era um sueco, e sabendo que eu era um homem do mar, convidou-me para a ponte de comando. Era um moço magro, louro e taciturno, de cabelos longos e escorridos e andar gingado. Ao deixarmos o miserável ancoradouro, ele balançou a cabeça com desprezo na direção da terra: “Estava vivendo lá?”, perguntou. Eu disse: ‘Sim’. ‘Gente fina, esses sujeitos do governo, não acha?’, continuou, falando em inglês com grande precisão e considerável amargura. ‘É engraçado o que algumas pessoas são capazes de fazer por uns poucos francos por mês. Gostaria de saber o que acontece com esse tipo de gente quando embrenha no interior dessas selvas.’ Eu disse a ele que esperava sabê-lo disso em breve. ‘Correto-o-o!’, exclamou ele. Ele se arrastou para o outro lado, mantendo o olhar vigilante à frente. ‘Não esteja tão certo’, continuou ele. ‘Noutro dia, recolhi um homem que se enforcou no caminho. Era sueco também’. ‘Enforcou-se! Por quê, em nome de Deus?’, perguntei. Ele continuou com o olhar vigilante. ‘Quem sabe? Podia ser sol demais para ele, ou o lugar, talvez.’
“Finalmente chegamos a um cabo formado por rochas elevadas. Um penhasco rochoso apareceu, montes de terra revolvida nas margens, casas em um morro, outras com telhados de ferro, entre um desperdício de escavações, ou dependuradas nas encostas. O ruído constante de corredeiras mais acima pairava sobre esse cenário de devastação descampada. Muitas pessoas, em sua maioria, negras e nuas, movimentavam-se como formigas. Um cais se projetava rio adentro. Uma luz ofuscante afogava o cenário, às vezes, em um repentino brilho recrudescente. ‘Aí está o posto de sua Companhia’, disse o sueco, indicando três construções de madeira parecendo galpões, numa encosta rochosa. ‘Vou mandar levar suas coisas. Quatro caixas, não são mesmo? Então, adeus.’
“Deparei-me com uma caldeira se chafurdando na grama e, logo adiante, encontrei uma trilha que levava morro acima. Ela seguia na direção do penhasco e também passava por um local onde se achava emborcado um vagão de ferrovia, sem uma das rodas. A coisa parecia tão morta quanto à carcaça de um animal. Deparei-me com mais peças de máquinas em decomposição, uma pilha de trilhos enferrujados. À esquerda, um grupo de árvores formava um ponto obscuro, onde as coisas escuras pareciam agitar-se debilmente. Pisquei os olhos, o caminho era íngreme. Um apito soou à minha direita e vi pessoas negras correndo. Uma detonação pesada e maçante sacudiu o chão e uma nuvem de fumaça saiu do penhasco, e isso foi tudo. Nenhuma mudança se tornou visível na superfície da rocha. Estavam construindo uma ferrovia. O penhasco não era obstáculo algum; mas essa explosão sem sentido demonstrava que todo o trabalho continuava em curso.
“Um leve tilintar atrás de mim fez-me virar a cabeça. Seis homens negros avançavam em fila, labutando para subir a trilha. Andavam eretos e devagar, equilibrando pequenos cestos cheios de terra sobre suas cabeças, o tilintar marcava o ritmo de seus passos. Tiras de panos negros tinham sido enroladas em torno de seus lombos e suas pontas curtas balançavam-se de um lado para outro às suas costas, como caudas. Podia-se perceber todas as suas costelas, e as articulações de seus membros eram como nós de uma corda; cada um tinha um colar de ferro no pescoço e todos estavam conectados entre si por uma corrente, cujos elos oscilavam entre eles, tilintando ritmicamente. Outro estrondo no penhasco me fez lembrar de repente daquele navio-de-guerra que eu havia visto bombardear o continente. Era o mesmo tipo de estrondo, de sinistra voz; mas esses homens, por nenhum esforço de imaginação, poderiam ser chamados de inimigos. Eram chamados de criminosos, e a lei, ultrajada, assim como os canhões retumbantes, havia chegado a eles, como um mistério insolúvel do mar. Seus peitos descarnados ofegavam juntos, as narinas dilatadas tremiam violentamente, os olhos se mantinham fixos no alto da colina. Passaram a seis polegadas de mim sem sequer me olharem, com aquela indiferença completa e mortal de infelizes selvagens. Atrás dessa matéria bruta, um dos que haviam sido resgatados da selvageria, o produto das novas forças de trabalho, passeava com ar desanimado, carregando um rifle a tiracolo. Usava uma túnica militar na qual faltava um botão, e vendo um homem branco no caminho, ajeitou a arma em seu ombro com entusiasmo. Um mero ato de prudência, pois os homens brancos eram muito semelhantes entre si à certa distância, que ele não saberia dizer quem eu era. Logo se tranquilizou, e com um largo sorriso branco e maroto, e um rápido olhar nos acorrentados, pareceu-me querer aproximação, exaltando a sua confiança. Afinal, eu também fazia parte da grande causa, daqueles elevados e justos processos.
“Em vez de subir, virei à esquerda e comecei a descer. Minha ideia era deixar o agrupamento de acorrentados sumir de vista antes que subisse a colina. Vocês sabem que eu não sou particularmente emotivo. Já tive de atacar e de me defender, por muitas vezes – sem medir as consequências -, de acordo com as exigências ao tipo de vida que encontrei pela frente. Já encarei o demônio da violência, o demônio da ganância, o demônio do desejo desmedido; mas, por todas as estrelas!, tratava-se de demônios fortes, corpulentos, de fogo nos olhos, que dominavam e conduziam homens – homens, eu digo vocês. Mas ali, na encosta, eu previ, sob o sol ofuscante daquela terra que eu iria conhecer outro tipo de demônio, frouxo, fingido, de olhar pusilânime, de uma loucura voraz e impiedosa. Como ele poderia ser, eu só iria descobrir vários meses depois, milhares de quilômetros adiante. Por um momento, fiquei chocado, como se recebesse uma advertência. Finalmente, desci obliquamente a colina, em direção ao grupo de árvores que havia visto.
“Desviei-me de uma enorme cratera artificial que alguém estivera cavando na encosta, cuja finalidade não me foi possível adivinhar. De qualquer maneira, não se tratava de uma pedreira, nem de uma escavação para extração de areia. Era apenas uma cratera. E é possível que tivesse ligado ao desejo filantrópico de dar aos criminosos algo para fazer. Não sei. Então, quase caí dentro de uma estreita ravina, pouco mais do que uma cicatriz na encosta. Descobri que um lote de manilhas importado para a construção da colônia tinha sido retirado dali. Não havia uma que não estivesse quebrada. Uma destruição totalmente sem sentido. Alcancei por fim o grupo de árvores. Meu objetivo era andar a sombra por alguns momentos; mas, uma vez ali, pareceu-me que tinha entrado no círculo sombrio de algum Inferno. As corredeiras ficavam próximas, e um ruído ininterrupto, uniforme, poderoso e violento, enchia o silêncio lúgubre do bosque – em que nada agitava o ar e nem uma folha se mexia -, de um som misterioso, como se o ritmo arrancado da terra no espaço se houvesse, de repente, tornado audível.
“Escuras formas agachadas estavam ali, deitadas, sentadas entre as árvores, encostadas nos troncos, agarradas a terra, meio visíveis, meio ocultas pela penumbra, todas em atitudes de dor, abandono e desespero. Outra mina explodiu no alto do penhasco, seguido de um leve tremor de terra sob os meus pés. O trabalho continuava em andamento. Trabalho! E este era o lugar para onde alguns dos ajudantes haviam se retirado para morrer.
“Eles estavam morrendo lentamente – era óbvio. Não eram inimigos, não eram criminosos, e agora já nem seres terrenos eram; nada além de sombras negras, doentes e famintas, deitadas confusamente, amontoadas na sombra esverdeada. Foram trazidos de todos os recantos da costa, com toda a legalidade legitimada por contratos temporários, perdidos nessas paragens ásperas, alimentando-se com comidas estranhas, adoecendo, tornando-se ineficientes ao trabalho, e, então, sendo autorizados a rastejar para longe e descansar. Estas formas moribundas estavam livres como o ar – e quase tão translúcidas como ele. Comecei a distinguir o brilho dos olhos sob as árvores. Então, olhando para baixo, vi um rosto perto das minhas mãos. Os ossos negros reclinados, com um ombro encostado na árvore, e, lentamente suas pálpebras se ergueram e os olhos fundos se voltaram para mim, enormes e vazios, uma espécie de cegueira, uma cintilação branca nas profundezas das órbitas, apagando-se lentamente. O homem parecia jovem – quase um menino – mas vocês sabem, no caso deles, é difícil dizer a idade com precisão. Não me ocorreu outra coisa a fazer senão lhe oferecer um dos excelentes biscoitos do navio sueco que eu tinha em meu bolso. Os dedos fecharam-se lentamente sobre ele e assim ficaram – sem nenhum outro movimento e sem nenhum outro olhar. Ele havia amarrado um pouco de tecido de lã branca em volta de seu pescoço – Por quê? Onde conseguiu aquilo? Era como um emblema – um ornamento, um amuleto – um ato propiciatório? Haveria realmente alguma ideia associada àquela tira? Era surpreendente ver ao redor do seu pescoço negro, o pedaço de pano branco vindo de além-mar.
“Perto da mesma árvore mais dois feixes escuros, cheios de ângulos agudos, sentados com as pernas encolhidas. Um deles, com o queixo apoiado sobre os joelhos, mantinha o olhar fixo no vácuo de uma maneira chocante e intolerável. Seu irmão fantasma descansava sua testa sobre os braços, como se tentasse superar o grande cansaço, e outros tantos estavam espalhados por ali em todo tipo de pose, em contorcido colapso, como em algum quadro de massacre ou peste. Enquanto eu permanecia ali parado, horrorizado, uma dessas criaturas ergueu-se, apoiada nas mãos e nos joelhos, e saiu andando de quatro até o rio, para beber água. Recolheu a água na mão em concha, bebeu, em seguida, sentou-se à luz do sol, cruzando as canelas diante de si, depois de um tempo, deixou a cabeça cair sobre o seu peito peludo.
“Eu não queria mais vadiar na sombra e tratei de apressar o passo na direção do posto. Perto dos edifícios, encontrei um homem branco, trajado com tão inesperada elegância que, no primeiro momento, imaginei estar diante de uma visão. Vi um colarinho alto e engomado, punhos brancos, uma jaqueta de alpaca fina, calças brancas, uma gravata imaculada e botas envernizadas. Sem chapéu. O cabelo repartido, escovado e oleado, sob um guarda-sol forrado de verde, seguro por uma mão branca e grande. Ele era incrível, e trazia uma caneta atrás da orelha.
“Apertei as mãos desse milagre e soube que era chefe de contabilidade da Companhia, e que todo o serviço de contabilidade era feito naquele posto. Havia saído por um momento, disse ele, ‘para obter uma lufada de ar fresco’. A expressão soava maravilhosamente estranha, como sugestão de uma vida sedentária e burocrática. Eu não teria mencionado esse sujeito a vocês, se não fosse o fato de ter sido de seus lábios que ouvi pela primeira vez o nome do homem que está tão indissoluvelmente ligado às minhas lembranças dessa época. Além disso, eu respeitava o sujeito. Sim; eu respeitava seus colarinhos, seus punhos largos, seus cabelos escovados. Sua aparência era certamente o de um manequim de cabeleireiro; em meio à grande desmoralização da terra, mantinha a sua aparência. Isso era ter princípio. Seus colarinhos e camisas engomados eram uma conquista do caráter. Já estava ali havia quase três anos, e não pude deixar de lhe perguntar como ele conseguiu manter as roupas naquelas condições. Ele corou e declarou com modéstia: ‘Tenho ensinado uma das mulheres nativas do posto. Foi difícil. Ela detestava o trabalho.’ Assim, esse homem tinha conseguido algo. Dedicava a seus livros de contabilidade, que se encontravam na mais perfeita ordem.
“Tudo o mais no posto estava em profunda desordem – as mentes, as coisas, os edifícios. Levas de negros empoeirados e de pés chatos chegavam e partiam; um estoque de bens manufaturados, algodão ordinário, miçangas e rolos de arame fluíam para as profundezas da escuridão, recebendo em troca um precioso filete de marfim.
“Tive de esperar no posto durante dez dias – uma eternidade. Fiquei alojado em uma cabana situada no pátio, mas para me ver livre do caos reinante, às vezes, refugiava-me no escritório do contador. Fora construído de tábuas horizontais, tão mal rejuntadas que quando ele se debruçava em sua mesa alta, ficava com o corpo todo cortado por finas estrias de sol. Nem era preciso abrir a janela para iluminar a sala. E era quente, lá dentro. Moscas enormes zumbiam de modo infernal e eram dotadas não de ferrões, mas de punhais. Geralmente, eu sentava no chão, enquanto ele, em sua aparência impecável (e até mesmo um pouco perfumado), empoleirado em um banco alto, escrevia, escrevia. Às vezes, ele levantava-se para fazer exercícios. Quando trouxeram para o seu escritório um catre com um homem doente (um trabalhador qualquer vindo do interior), ele se mostrou levemente aborrecido. ‘Os gemidos desse doente´, disse ele, ‘desviam a minha atenção. E é preciso muita atenção para evitar erros na escritura, neste clima’.
“Um dia ele comentou, sem levantar a cabeça, ‘no interior, o senhor com certeza irá conhecer o Sr. Kurtz.’ Quando lhe perguntei quem era o Sr. Kurtz, ele me explicou que se tratava de um agente de primeira classe; vendo a minha decepção com essa informação, acrescentou lentamente, largando a caneta na mesa: ‘Ele é uma pessoa muito notável’. Suscitei mais perguntas, fazendo-o me revelar que o Sr. Kurtz naquele presente momento era o encarregado de um posto comercial muito importante, localizado em plena região do marfim, ‘bem no centro da selva. Ele manda mais marfim para cá do que todos os outros encarregados juntos…’ E voltou a escrever. O homem no catre já não tinha forças para gemer. As moscas zumbiam numa grande paz.
“De repente, houve um murmúrio crescente de vozes e um grande tropel de pés. Havia chegado uma caravana. Um murmúrio violento explodiu do outro lado das pranchas. Todos os carregadores estavam falando juntos e, em meio ao tumulto, ouvia-se a voz lamentável do agente principal “desistindo’ de tudo pela vigésima vez naquele dia… O contador levantou-se vagarosamente. ‘Que zoeira terrível’, disse ele. Atravessou o quarto suavemente para ir observar o enfermo, e voltando, disse-me: ‘Ele não ouve.’ ‘Como! Morreu?’, perguntei, assustado. ‘Não, ainda não’, ele respondeu, com muita serenidade. Então, aludindo com um lance de cabeça para o tumulto no pátio lá fora. ‘Quando alguém tem que fazer a escrituração correta, chega-se odiar esses selvagens – odiá-los até a morte.’ Ele permaneceu pensativo por um momento. ‘Quando encontrar com o Sr. Kurt’, continuou ele, ‘diga-lhe de minha parte que tudo aqui’ – olhou para a mesa – ‘está muito satisfatório. Não gosto de escrever para ele – com os mensageiros que temos, nunca se sabe quem pode se apossar de sua carta naquele Posto Central.’ Ele me olhou por um momento com os olhos mansos e protuberantes. ‘Ah, ele irá longe, muito longe’, ele recomeçou. ‘Ele será alguém na Administração antes do tempo. Eles, lá em cima – o Conselho Europeu, o senhor sabe – tem planos para ele’.
“Ele voltou ao seu trabalho. A algazarra lá fora tinha cessado, e na saída, parei na porta. No burburinho constante das moscas, o agente de regresso à pátria estava deitado febril e insensível; o outro, debruçado sobre os seus livros, ia dando lançamentos corretos de transações igualmente corretas, e uns quinze metros abaixo da soleira da porta, eu podia ver as copas das árvores, estáticas, no bosque da morte.
“No dia seguinte, deixei finalmente o posto com uma caravana de sessenta homens, para uma marcha de mais de trezentos quilômetros.
“Não há muito que contar sobre essa viagem. Trilhas e trilhas, caminhos a espalhar sobre a terra vazia, passando através de vegetação muito alta, através de vegetação queimada, através de selvagens, descendo e subindo ravinas frias, para cima e para baixo por colinas escaldantes; e uma solidão, uma imensa solidão, ninguém, nem uma cabana. A população havia partido há muito tempo atrás. Bem, se um bando de negros misteriosos armados com todos os tipos de armas terríveis, de repente, começasse a percorrer a estrada entre Deal e Gravesend, obrigando os camponeses da direita e da esquerda a transportar cargas pesadas para eles, aposto que em pouco tempo as redondezas ficariam desertas. Só que naquelas imediações as habitações tinham desaparecido também. Ainda passei por várias aldeias abandonadas. Há algo pateticamente infantil nas ruínas de uma choça de palha. Dia após dia, com o tropel de sessenta pares de pés descalços atrás de mim, cada par com uma carga de sessenta libras. Acampar, cozinhar, dormir, levantar acampamento, marchar. De vez em quando, um carregador, morto em plena labuta, era largado em repouso no meio do capim alto à beira do caminho, com uma cabaça de água vazia e o comprido cajado deitado ao seu lado. Um grande silêncio em torno e acima. Talvez, em alguma noite tranquila, o rufar distante de tambores, sumindo, aumentando, um imenso tremor, frouxo; um som estranho, atraente, sugestivo e selvagem – e, talvez, com um significado tão profundo como o soar de sinos em um país cristão. Certa vez, um homem branco, metido em um uniforme desabotoado, acampou no meio do caminho, com uma escolta armada de esquálidos nativos de Zanzibar, muito hospitaleiro e festivo – para não dizer embriagado -, declarou que estava cuidando da manutenção da estrada. Posso dizer que não vi qualquer estrada nem qualquer obra de manutenção, a não ser que o corpo de um negro de meia-idade, com um buraco de bala na testa, no qual tropecei literalmente umas três milhas mais adiante, pudesse ser considerado uma melhoria permanente. Eu tinha um companheiro branco, também, não era um mau sujeito, mas era corpulento demais e com o hábito exasperante de desmaiar quando subia as escaldantes encostas das colinas, situadas a quilômetros de distância de qualquer sombra e água fresca. É irritante, vocês sabem, ter de ficar segurando o próprio paletó como um guarda-sol, sobre a cabeça de um homem, enquanto ele não recobre os sentidos. Não pude deixar de lhe perguntar o que tinha ido fazer ali afinal. ‘Ganhar dinheiro, é claro. Que acha?’, respondeu com desdém. Então ele teve uma febre e foi preciso ser transportado em uma rede pendurada numa vara na horizontal. Como pesava cem quilos, tive brigas intermináveis com os carregadores. Eles empacavam ou fugiam, sumindo no meio da noite com a sua carga – um verdadeiro motim. Então, uma noite, eu fiz um discurso em inglês, com gestos, dos quais nem um só escapou aos sessenta pares de olhos diante de mim, e na manhã seguinte partimos com a rede na frente da comitiva. Uma hora depois, deparei-me com toda aquela geringonça destruída em um arbusto – o homem, rede, gemidos, cobertores, horrores. A pesada vara havia esfolado seu pobre nariz. Ele estava muito ansioso, queria que eu salvasse alguém, mas não havia sequer a sombra de um carregador por perto. Lembrei-me do velho médico – “Seria interessante para a Ciência monitorar as mudanças mentais dos indivíduos na selva.” Eu senti que estava me tornando cientificamente interessante. No entanto, tudo isso foi sem propósito algum. Quinze dias depois, avistei novamente o grande rio e caminhei trôpego para o Posto Central, situado num braço do rio, cercado por mato e selva, com uma margem de lama fedorenta de um lado, e dos outros lados, delimitado por uma desmantelada cerca de juncos. Uma lacuna negligenciada na cerca era o portão, e, à primeira olhadela pelo local, seria o suficiente para saber que um diabo frouxo comandava o espetáculo. Homens brancos com longos bastões nas mãos apareceram apáticos entre os prédios, vieram dar uma olhada em mim, e depois, meteram-se em algum lugar fora de minhas vistas. Um deles, gordo e falante, de bigodes pretos, informou-me com grande volubilidade e muitas digressões, assim que me apresentei, que o meu vapor estava no fundo do rio. Fiquei aturdido. O quê? Como assim? Por quê? Oh, estava ‘tudo bem’, o gerente ‘em pessoa’ estava lá. ‘Todo mundo se comportou magnificamente, esplendidamente!’ O senhor deve’, disse ele numa agitação, ‘ir ver o gerente-geral agora mesmo. Ele o espera.’
“Não percebi logo o verdadeiro significado daquele naufrágio. Imagino que só compreendi isso agora, mas não estou muito certo ainda, nenhuma certeza, na verdade. Certamente, o acontecimento era muito estúpido – quando penso nisso – para ser considerado totalmente natural. Ainda assim… Mas naquele momento me pareceu apenas como um incômodo. O vapor tinha afundado. Eles haviam partido dois dias antes, com uma pressa repentina, rios acima, com o gerente a bordo, a cargo de um capitão voluntário, e menos de três horas mais tarde, rasgaram a parte inferior do barco nas pedras e ele afundou perto da margem sul. Perguntei a mim mesmo que iria eu fazer ali, agora que meu barco estava perdido. Na realidade, ia ter trabalho de sobra tentando pescar a embarcação no fundo do rio. Tratei de pôr mãos à obra logo no dia seguinte. Isso, e os reparos que tive que fazer quando resgatei as peças avariadas levaram alguns meses.
“Minha primeira entrevista com o gerente foi curiosa. Ele não me convidou para se sentar depois da minha caminhada de vinte milhas naquela manhã. Ele era comum na aparência, nas maneiras e na voz. Tinha altura mediana e constituição normal. Seus olhos, de um azul comum, eram talvez extremamente frios, e ele, certamente, poderia descer seu olhar sobre uma pessoa tão afiado e pesado como um machado. Mas, mesmo nestes momentos, o resto de sua pessoa parecia negar essa intenção. Fora isso, existia apenas uma expressão indefinível e fraca nos seus lábios, algo furtivo… um sorriso – não chegava a ser um sorriso – lembro-me disso, mas eu não posso explicar isso. Era inconsciente, aquele sorriso, embora logo que acabasse de dizer alguma coisa a expressão furtiva se intensificava por um instante. Ele chegava ao final de seus discursos como um rótulo aplicado sobre as palavras para fazer o significado da frase mais comum parecer absolutamente inescrutável. Ele era um comerciante comum, desde a sua juventude agia naquela região – nada mais. Ele era obedecido, mas não inspirava nem o amor nem medo, nem mesmo o respeito. Inspirava inquietação. Era isso mesmo: inquietação. Não era uma inquietação bem definitiva – apenas um mal-estar – nada mais. Vocês não têm ideia como é eficaz de uma… uma faculdade … como essa pode ser. Ele não possuía o menor talento para organização; nem iniciativa, nem mesmo uma certa noção de ordem. Isso ficava evidente diante do deplorável estado em que se encontrava o posto. Ele não tinha instrução, nem inteligência. Seu cargo tinha chegado a ele – por quê? Talvez porque ele jamais ficasse doente… Ele havia cumprido três mandatos de três anos ali… Porque a saúde triunfante na debandada geral das constituições é um tipo de poder em si mesmo. Quando ia para casa, de licença, farreava em grande escala – pomposamente. Um marujo em terra – com uma diferença – na aparência, isso era possível deduzir na sua conversa informal. Ele não criava nada, somente mantinha a rotina – isso era tudo. Mas ele era grande. Mas era grande pela simples razão de que era impossível dizer o que poderia controlar um homem daquele tipo.
“Nunca revelou o seu segredo. Talvez não houvesse nada dentro dele. Essa suspeita fazia pensar, pois naquelas bandas não havia controles externos. Certa vez, quando várias doenças tropicais tinham derrubado quase todos os agentes no posto, ouviram-no dizer: ‘Os homens que vêm pra cá não deviam ter entranhas.’ Ele selou seu enunciado com aquele sorriso, como se fosse uma porta que se abria para uma escuridão que ele tinha sob a sua guarda. Vocês imaginam que eu tinha visto coisas, mas o selo estava lá. Quando se irritou com as brigas constantes dos homens brancos sobre precedência na hora das refeições, mandou fazer uma imensa mesa redonda, para a qual foi preciso construir um galpão especial. Passou a ser ali o refeitório do posto. Ele sentava no lugar principal – todos os demais eram nada. Sentia-se que possuía uma convicção inalterável. Ele não era civilizado nem incivil. Era calado. Permitia que seu ‘garoto’ – um jovem negro e obeso da costa – tratasse os homens brancos, na sua frente, com irritante insolência.
“Ele começou a falar logo que me viu. Que eu tinha ficado muito tempo na estrada. Ele não podia esperar. Teve que começar sem mim. Os postos situados rio acima precisavam ser reabastecidos. Houve tantos atrasos que ele não sabia quem estaria morto e quem estaria vivo, e como estariam – e assim por diante. Ele não prestou atenção às minhas explicações, enquanto brincava com um bastão de lacre, repetiu várias vezes que a situação era ‘muito grave, muito grave.’ Havia rumores de que um dos postos, de muita importância, estava em perigo, e seu chefe, o Sr. Kurtz, estava doente. Esperava que isso não fosse verdade. ‘Sr. Kurtz era…’ Eu me senti cansado e irritado. Interrompi-o dizendo que ouvira falar sobre o Sr. Kurtz na costa. ‘Ah! Então eles falam sobre ele por lá”, ele murmurou para si mesmo. Recomeçou, assegurando-me de que o Sr. Kurtz era o melhor agente que possuíam, um excepcional homem, da maior importância para a Companhia; portanto, eu podia entender sua ansiedade. Ele estava, disse ele: ‘muito, muito preocupado’. Ele remexeu em sua cadeira e exclamou: ‘Ah, Sr. Kurtz!’, quebrou o pau de lacre e pareceu estupefato pelo acidente. Em seguida, quis saber ‘quanto tempo seria necessário para’… eu o interrompi novamente. Estava faminto, vocês sabem, e mantinha-me de pé, também. Eu estava com fome. ‘Como eu posso saber?’, indaguei: ‘Nem vi ainda o naufrágio – alguns meses, sem dúvida.’ Toda essa conversa me pareceu tão fútil. ‘Alguns meses’, ele disse. ‘Bem, vamos dizer que serão três meses antes de partirmos. Sim, isso deve ser o tempo. Então, saí afoito de sua cabana (ele morava sozinho numa cabana de barro que tinha uma espécie de varanda) resmungando comigo mesmo o que pensava dele. Ele era um idiota tagarela. Depois reformulei minha opinião, surpreendido pela sua minúcia extrema como havia estimado o tempo necessário para o caso.
“Eu fui trabalhar no dia seguinte, voltando, por assim dizer, às costas aquele posto. Parecia-me ser essa a única maneira de manter o meu domínio sobre os fatos redentores da vida. Ainda assim, deve-se olhar em nossa volta algumas vezes; então, eu vi esse posto, e todos aqueles homens caminhando sem rumo sob o sol do pátio.
“Perguntava a mim mesmo que significava tudo aquilo. Eles andavam daqui e prali com os seus longos e absurdos cajados nas mãos, como um bando de peregrinos sem fé, enfeitiçados e aprisionados dentro de uma cerca apodrecida. A palavra ‘marfim’ vibrava no ar, sussurrada, suspirada. Vocês pensariam que eles estavam orando por meio dela. Uma mancha, de uma ganância imbecil, explodia sobre tudo isso, como um sopro de um cadáver. Por Deus! Nunca vi nada tão irreal na minha vida. E do lado de fora, a selva silenciosa em torno desta partícula apurada de terra me pareceu algo grande e invencível, como o mal ou a verdade, esperando pacientemente pelo fim daquela fantástica invasão.
“Ah, aqueles meses! Bem, não importa. Várias coisas aconteceram. Uma noite, uma choça de palha atulhada de peças de chita, estampas de algodão, miçangas e não sei mais o quê, explodiu em um braseiro, tão repentinamente, que se teria pensado que a terra se abrira para deixar um fogo vingador consumir todo aquele lixo. Eu estava fumando o meu cachimbo, tranquilamente, ao lado do meu desmantelado barco e vi todos eles com os braços elevados, pulando desnorteados diante do clarão do fogo, quando o homem corpulento, de bigodes, veio correndo para o rio, com um balde de lata na mão, e garantiu-me que todo mundo estava se comportando ‘esplendidamente, magnificamente’, recolheu cerca de um litro de água e regressou. Notei que havia um buraco no fundo do balde.
“Dirigi-me calmamente até o local. Não havia pressa. A coisa toda tinha pegado fogo como uma caixa de fósforos. Desde o princípio, via-se que o caso era perdido. O fogo subiu a grande altura, obrigando todo mundo a recuar, clareando tudo – e extinguiu. A cabana se transformou num monte de cinzas incandescentes. Perto dali, um negro estava sendo espancado. Diziam que ele, de alguma forma, havia causado o incêndio; seja como for, o fato é que ele gritava espantosamente. Eu o vi sentado à sombra, durante vários dias, parecendo muito doente e tentando se recuperar; algum tempo depois, levantou-se e partiu – e a selva, sem um único som, recebeu-o em seu seio novamente. Quando me aproximei do brilho, vindo das trevas, parei por acaso atrás de dois homens, que conversavam. Ouvi o nome de Kurtz ser pronunciado, em seguida, as palavras: ‘aproveitar desse infeliz acidente.’ Um dos homens era o gerente, desejei-lhe boa noite. ‘Você já viu algo assim – hein? É incrível’, ele disse, e afastou-se. O outro homem permaneceu. Era um agente de primeira classe, jovem, cavalheiro, um pouco reservado, com uma barba um pouco bifurcada e um nariz adunco. Ele era retraído diante dos outros agentes; por sua vez, diziam que ele os espionava, a serviço do gerente. Quanto a mim, mal havia falado com ele antes. Começamos a conversar e fomo-nos afastando das ruínas sibilantes. Então ele me convidou para ir até o seu quarto, que ficava no prédio principal do posto. Ele riscou um fósforo e percebi que este jovem aristocrata não tinha apenas um estojo de prata, mas também uma vela inteira só para ele. Naquela época, o gerente era o único homem que deveria ter o direito a velas. Esteiras nativas cobriam as paredes de barro, e uma coleção de lanças, azagaias, escudos e facas estava pendurado em troféus. O trabalho confiado a esse homem era a fabricação de tijolos – isso que me informaram; mas não havia um fragmento sequer de tijolo em qualquer parte do posto, e ele se encontrava ali há mais de um ano – à espera. Parece que ele não poderia fazer tijolos por falta de alguma coisa, eu não sei o quê – palha, talvez. De qualquer forma, essa palha não podia ser encontrada ali, e como era provável que não pudesse vir da Europa, não pareceu claro para mim que ele estivesse aguardando a palha por um ato de criação especial, talvez. No entanto, eles estavam todos esperando – todos os dezesseis ou vinte peregrinos – para alguma coisa parecida; dou-lhes a minha palavra que não pareceu uma ocupação desagradável, do jeito que eles esperavam, embora a única coisa que veio a eles foi a doença – tanto quanto eu pude observar. Passavam o tempo todo fazendo intrigas e indispondo uns contra os outros de uma maneira inteiramente estúpida. Havia um ar de conspiração sobre o posto, mas isso não deu em nada; é claro que era tão irreal quanto qualquer outra coisa – a pretensão filantrópica do empreendimento todo, como a sua conversa, o seu governo, como o seu falso trabalho. O único sentimento real era o desejo de ser nomeado para um posto comercial, onde o marfim obtido pudesse render-lhes boas porcentagens. Eles viviam em meio às intrigas, às calúnias, odiavam-se apenas por causa disso – mas para de fato poderem levantar um dedo que fosse -, oh, não. Por céus! Há alguma coisa, afinal, num mundo que permite a um homem roubar um cavalo enquanto outro não pode nem mesmo olhar para um cabresto. Roubar um cavalo sem maiores cerimônias. Muito bem. Ele o fez. Talvez ele possa montar. Mas há uma maneira de olhar para um cabresto que provocaria o mais caridoso dos santos a dar um chute.
“Eu não tinha ideia do motivo de sua sociabilidade, mas conversávamos lá dentro; de repente, ocorreu-me que o rapaz estava tentando chegar a algum lugar. Na verdade, estava me sondando. Ele aludia constantemente à Europa, às pessoas que eu deveria conhecer lá – fazendo perguntas principalmente sobre meus conhecidos e contatos na cidade sepulcral, e assim por diante. Seus olhinhos brilhavam como placas de mica – com muita curiosidade – embora tentasse manter certo ar de indiferença. A princípio espantei, mas logo fiquei muito curioso para saber o que pretendia descobrir através de mim. Eu não poderia imaginar que houvesse em minha pessoa algo que valesse o seu tempo. Era muito divertido ver como ele se confundia, pois, em verdade, meu corpo estava apenas cheio de calafrios, e minha cabeça não tinha nada a não ser a determinação de recuperar aquele miserável barco a vapor. Era evidente que ele me tomou por um prevaricador perfeitamente sem vergonha. Finalmente, ele ficou com raiva, e, para esconder a sua contrariedade furiosa, bocejou. Pus-me de pé. Então, notei um pequeno esboço de uma pintura a óleo, em um painel, representando uma mulher de olhos vendados, carregando uma tocha acesa. O fundo era sombrio – quase negro. O movimento da mulher era imponente, e o efeito do reflexo da tocha sobre seu rosto, sinistro.
“O quadro me prendeu a atenção, e ele também parou ao meu lado, polidamente, segurando uma garrafa de champanhe vazia (um conforto medicinal) com a vela enfiada no gargalo. Para a minha pergunta, ele disse que o Sr. Kurtz tinha pintado aquilo – neste mesmo posto, fazia mais de um ano – enquanto aguardava meios para chegar ao seu posto definitivo. ‘Diga-me, por favor’, eu pedi, ‘quem é este Sr. Kurtz?’
“O chefe do Posto do Interior”, ele respondeu em um tom curto, desviando o olhar. ‘Muito obrigado’, eu disse, rindo. ‘E o senhor é o fabricante de tijolos do Posto Central. Todos sabem disso.’ Ele ficou em silêncio por um tempo. ‘Ele é um prodígio’, falou, afinal. ‘Ele é um emissário de piedade, da ciência e do progresso, e diabo sabe o que mais. Queremos’, ele começou a declamar, de repente, ‘para a orientação da causa que nos foi confiada pela Europa, por assim dizer, uma inteligência superior, largas simpatias, uma unidade de propósito.’ ‘Quem diz isso?, perguntei. ‘Muitos deles ‘, respondeu ele. ‘Alguns chegaram mesmo a escrever a respeito, em vista disso, ele veio para cá, um ser especial, como o senhor deve saber.’ ‘Por que eu deveria saber?’, interrompi-o, realmente surpreso. Ele não prestou atenção. ‘Sim. Hoje ele é chefe do melhor posto, e, no próximo ano, será assistente do gerente, dois anos a mais e… não ouso dizer o que o senhor já sabe o que ele será em dois anos. O senhor é da turma nova – a turma dos virtuosos. As mesmas pessoas que o enviaram especialmente para cá, também, enviaram o senhor. Oh, não diga não, eu tenho os meus próprios olhos para confiar…´ Tive um lampejo de compreensão. Os conhecidos influentes da minha querida tia estavam produzindo um efeito inesperado sobre aquele jovem. Quase soltei uma gargalhada. ‘Tem o hábito de ler a correspondência confidencial da Companhia?’, indaguei-lhe. Ele não soube o que dizer. Foi muito divertido. ‘Quando o Sr. Kurtz’, continuei, severamente, ‘for o Gerente Geral, o senhor não terá mais essa oportunidade.’
“Ele apagou a vela de repente e nós saímos. A lua já tinha nascido. Vultos negros andavam com passo lerdo de um lado para outro, jogando água no braseiro, que chiava intermitentemente; o vapor subia à luz da lua, o negro espancado gemia num canto qualquer. ‘Que zoeira faz esse animal!’, comentou o incansável homem dos bigodes, aproximando-se de nós. ‘Bem merecido. Transgressão – punição – bang! Sem a menor piedade, impiedade. Esse é o único jeito. Isto irá prevenir a todos os incendiários no futuro. Acabei de dizer isso ao gerente…’ Nesse momento ele notou quem era o meu companheiro, e ficou cabisbaixo. ‘Não foi ainda para a sua cama’, disse ele, com uma espécie de cordialidade servil; ‘Que é tão natural. Ah, perigo, agitação.’ Ele desapareceu e fui para a beira do rio, e o outro seguiu-me. Ouvi um murmúrio sarcástico junto ao meu ouvido: ‘Bando de imbecis… Vão para…’ Os peregrinos podiam ser visto em grupinhos, gesticulando, discutindo. Vários tinham ainda os seus cajados nas mãos. Acredito realmente que levavam os cajados para a cama. Além da cerca, a selva erguia-se como um espectro ao luar, em débil agitação, através dos ruídos abafados daquele deplorável pátio, o silêncio da terra vinha diretamente até o coração da gente – com o seu mistério, sua grandeza, e a surpreendente realidade da vida nela escondida. O negro ferido gemeu debilmente em algum lugar próximo dali e depois foi buscar um profundo suspiro que me fez apressar o ritmo dos passos, afastando-me dali. Senti que uma mão se enfiava sob meu braço. ‘Meu caro senhor’, disse o sujeito: ‘Não quero ser mal interpretado, especialmente pelo senhor, que vai ver o Sr. Kurtz muito antes que eu tenha esse prazer. Não gostaria que ele fizesse uma ideia falsa de minha atitude…
“Eu deixei que aquele Mefistófeles de papel machê prosseguisse, e pareceu-me que se eu tentasse, poderia enfiar meu dedo indicador através dele, e não encontraria nada dentro, a não ser talvez, um pouco de poeira solta. Vejam vocês que ele vinha planejando se tornar assistente do gerente de comum acordo com o seu superior imediato, e eu pude ver que a vinda de Kurtz havia perturbado os dois um pouco. Ele falava precipitadamente, e eu não tentei impedi-lo. Meus ombros estavam apoiados nos destroços do meu barco, que fora arrastado encosta acima como se fosse a carcaça de um grande animal do rio. O cheiro de barro – de barro primevo, por Deus! -, estava em minhas narinas, e a quietude elevada da selva primitiva estava diante dos meus olhos; havia manchas brilhantes no riacho negro. A lua havia espalhado por cima de tudo uma camada fina de prata – sobre a grama, sobre a lama, em cima do muro de vegetação emaranhada, bem mais alto que a parede de um templo, sobre o grande rio que eu podia ver através de um espaço sombrio brilhante, reluzente, fluindo amplamente sem um murmúrio.
Tudo isso era grandioso, expectante, silente, enquanto aquele homem tagarelava sobre si mesmo. Gostaria de saber se o silêncio sobre a face da imensidão que nos contemplava significaria um apelo ou uma ameaça. Quem éramos nós que estávamos ali perdidos? Seríamos capazes de dominar aquela mudez ou ela que nos dominaria? Percebi como era grande, espantosamente grande, aquela coisa que não podia falar, quem sabe, também não podia ouvir. Que haveria no seu interior? Eu podia ver um pouco de marfim saindo de lá, e eu tinha ouvido que o Sr. Kurtz estava lá, já tinha ouvido o suficiente sobre isso, também – Deus sabe como! Não trouxe qualquer imagem com ele – não mais do que se tivessem me dito que um anjo ou um demônio estava lá, eu acreditava nisso da mesma forma que um de vocês pode acreditar que há habitantes no planeta Marte. Conheci uma vez um marinheiro escocês que tinha certeza, a certeza absoluta, de que havia pessoas em Marte. Se você pedia-lhe alguma ideia de como eles eram, ele ficava desconcertado e resmungava que ‘andavam de quatro’. Se você debochasse, ele – embora um homem de sessenta anos – desafiava-o para uma briga. Eu não iria tão longe a ponto de lutar por causa de Kurtz, mas cheguei perto o suficiente disso quando menti por ele. Vocês sabem que não admito, detesto mentiras, não porque seja mais honesto do que o resto da humanidade, mas simplesmente porque a ideia me assombra. Há uma nódoa de morte, um sabor de mortalidade nas mentiras – que é exatamente o que eu odeio e detesto no mundo – e procuro esquecer. Isso me faz infeliz e doente, como algo de podre que eu mordesse me faria. Temperamento, eu suponho. Bem, eu fui perto disso o suficiente ao deixar que aquele jovem tolo acreditasse que eu tinha de fato alguma influência ou prestígio na Europa. Eu me transformei por alguns instantes numa fraude tão grande quanto à representada por aquele bando de peregrinos enfeitiçados que estavam ali. Isso simplesmente porque eu tinha uma noção de que, de alguma forma, seria de grande ajuda para Kurtz, a quem na época ainda não conhecia – vocês podem entender isso? Ele era apenas um nome para mim; eu não via o homem nesse nome da mesma forma que vocês veem. Podem enxergá-lo? Podem ver a sua história? Podem ver alguma coisa? Tenho a impressão de estar tentando lhes contar um sonho – faço uma tentativa em vão, porque relato algum de um sonho pode transmitir a sensação de sonho, essa mescla de absurdo, surpresa e desconcerto, num tremor de revolta em que nos debatemos, essa noção de ser capturado pelo inacreditável, que é da própria essência dos sonhos…”
Ele ficou em silêncio por um tempo.
“… Não, é impossível; é impossível transmitir aos outros as sensações, a sensação exata de qualquer época de nossa existência – o que torna a sua verdade, o seu significado – a sua essência sutil e penetrante. É impossível. Nós vivemos, como sonhamos – sozinhos…”
Ele parou de novo, como se refletindo, em seguida, acrescentou:
“É claro, companheiros, que podem ver mais do que eu poderia ver na ocasião. Vocês me veem e sabem quem sou…”
A escuridão se tornara tão profunda que nós, os ouvintes, mal conseguíamos enxergar uns aos outros. Por um longo tempo ele, sentado à parte, tinha sido não mais do que uma voz para nós. Não se ouviu uma palavra de ninguém. Os outros podiam estar dormindo, mas eu estava acordado. Ouvia, desperto, à espera da frase, da palavra que me desse a pista para o leve mal-estar inspirado por essa narrativa que parecia se moldar sem ajuda de lábios humanos, no denso ar noturno do rio.
“… Sim – eu deixei que ele prosseguisse”, Marlow começou de novo, “e pensar o que quisesse sobre os poderes que estavam atrás de mim! E não havia nada atrás de mim a não ser aquele miserável, velho e mutilado barco a vapor contra o qual eu estava encostado, enquanto ele falava fluentemente sobre: a necessidade de cada um chegar lá. E quando se chega aqui, o senhor já sabe, que não é para olhar a lua. O Sr. Kurtz era um ‘gênio universal’, mas mesmo para um gênio seria mais fácil trabalhar com as ‘ferramentas mais adequadas – homens inteligentes’. Ele não fabricava tijolos – por que, havia uma impossibilidade física no caminho – como eu estava bem consciente, e se ele fazia o trabalho de um secretariado para um gerente, era porque ‘nenhum homem sensato’ rejeita desenfreadamente a confiança de seus superiores. Será que eu era capaz de entender? Sim, eu era. O que mais eu queria? Pelos céus! O que eu realmente queria era rebites. Rebites para seguir com o trabalho – para consertar a fenda no casco. Eu precisava de rebites. Havia caixotes cheios deles no litoral – caixotes e mais caixotes, empilhados uns sobre os outros, rachados, arrebentados! Você chutava rebites a cada passo no pátio daquele posto lá no alto da encosta. Rebites desciam rolando para o bosque da morte. Você poderia encher seus bolsos com rebites tendo dificuldade apenas de se curvar – e não havia um rebite a ser encontrado onde você realmente desejaria encontrá-lo. Tínhamos as placas de metal necessárias, mas não dispúnhamos de nada com que prendê-las. E toda semana, o mensageiro, um negro solitário, de bolsa no ombro e cajado na mão, deixava a nossa estação para a costa; e, várias vezes por semana, uma caravana chegava com bens comerciais – medonhas peças de algodão de estamparia berrante, que davam arrepios na gente só de ver, contas de vidro valendo um centavo a grosa, detestáveis lenços de algodão salpicados de pintas. E sem rebites. Três carregadores bastariam para trazer toda a quantidade suficiente para pôr aquele barco flutuando de novo.
“Ele estava se tornando confidencial agora, mas eu penso que a minha atitude de indiferença deve tê-lo irritado afinal, porque julgou necessário informar-me que não temia Deus nem o diabo, muito menos qualquer reles ser humano. E eu lhe disse que podia ver isso muito bem, mas o que eu queria era certa quantidade de rebites – e rebites era o que realmente queria Kurtz, se ele soubesse da situação… ‘Meu caro senhor ‘, ele resmungou, ‘Eu escrevo a partir do que me é ditado.’ Exigi os rebites. Havia uma maneira para isso – para um homem inteligente. Ele mudou de atitude; tornou-se muito frio, e de repente começou a falar sobre um hipopótamo; perguntou se dormia a bordo do navio (eu não saía de perto do barco dia e noite, desde o resgate), eu não estava sendo perturbado. Havia um velho hipopótamo que tinha o mau hábito de sair à noite caminhando a esmo pelos terrenos do posto. Os peregrinos costumavam surgir em bloco e descarregar todos os tipos de armas que conseguiam deitar a mão sobre o animal. Alguns até chegavam mesmo a ficar de tocaia a noite inteira. Embora, toda essa energia fosse desperdiçada. ‘Aquele animal tem o corpo fechado’, foi o que ele disse, ‘mas pode acreditar que isso só sucede com os bichos daqui. Nenhum homem – você me compreende? – homem algum aqui tem uma vida protegida assim.’ Ele ficou ali por um momento, à luz do luar, com seu delicado nariz adunco, um pouco torto e os seus olhos de mica brilhando sem piscar; então, com um seco boa noite, afastou-se. Pude ver que ele estava perturbado e consideravelmente perplexo, o que me fez sentir mais esperançoso do que tinha estado até então. Foi um grande alívio para eu deixar a companhia daquele sujeito e voltar ao meu influente amigo – o maltratado, torcido e arruinado barco. Subi a bordo. Retinia sob meus pés como uma lata de biscoito Huntley & Palmer vazia, chutada ao longo de uma sarjeta; não era nada tão sólido e muito menos bem acabado como uma dessas latas, mas eu tinha gasto bastante horas de trabalho duro nele, o suficiente para amá-lo. Nenhum amigo influente poderia ter me servido melhor. Ele tinha me dado a chance de me mostrar um pouco – de descobrir o que eu poderia ser capaz de fazer. Não, eu não gosto de trabalhar. Sempre preferi ficar à toa, pensando em todas as coisas boas que podem ser feitas. Eu não gosto de trabalhar – homem algum gosta – mas eu gosto do que está na obra – a chance de encontrar-se com a sua própria realidade – algo para si mesmo, não para os outros – aquilo que nenhum outro homem jamais pode saber. Eles só podem ver o resultado simples, e nunca podem perceber o que ele realmente significa.
“Eu não fiquei surpreso ao ver alguém sentado à popa, no convés, com as pernas balançando sobre a lama. Vocês compreendem, eu fiz amizade com os poucos mecânicos que havia naquela estação, a quem os outros peregrinos naturalmente desprezavam, devido às suas maneiras pouco educadas, suponho. Esse era o capataz – sua profissão era a fabricação de caldeira – um bom trabalhador. Ele era magro, ossudo, com cara amarelada e olhos grandes e profundos. Possuía um ar preocupado e uma cabeça tão calva quanto à palma da minha mão, mas o seu cabelo ao cair parecia ter grudado ao seu queixo e tinha prosperado nessa nova localidade, pois a sua barba pendia até a sua cintura. Ele era viúvo, com seis filhos (que ele havia deixado a cargo de uma irmã ao ir para ali), e a paixão de sua vida era o voo dos pombos. Ele era um entusiasta e conhecedor do assunto. Ele se deliciava com pombos. Depois de horas de trabalho, vinha a minha cabana para uma conversa sobre seus filhos e seus pombos; no trabalho, quando ele tinha que rastejar na lama sob o fundo do barco a vapor, ele protegia a barba amarrando uma espécie de guardanapo que trazia especialmente para esse fim, e que tinha alças passando sobre suas orelhas. À noite, ele podia ser visto agachado à beira do rio lavando a capa de barba no riacho, com grande cuidado, em seguida, estendendo-o solenemente em um arbusto para secar.
“Eu dei um tapa nas costas dele e gritei: ‘Vamos ter rebites!’ Ele ficou de pé, exclamando: ‘Não! Rebites!’, como se não pudesse acreditar no que ouvia. Então, em voz baixa: ‘O senhor … hein?´ `Eu não sei por que nos comportamos como lunáticos´. Coloquei meu dedo junto do meu nariz e balancei a cabeça misteriosamente. ‘Bom para você!’, ele gritou, estalando os dedos acima da cabeça, levantando um pé. Tentei cantarolar. Nós cabriolamos pelo convés de ferro, fizemos um barulho terrível no casco que retumbou na selva virgem, na outra margem do riacho, enviando de volta uma trovoada sobre o posto adormecido. O barulho deve ter feito alguns peregrinos se acordarem em seus barracos. Uma figura escura eclipsou a porta iluminada da cabana do gerente, desaparecendo em seguida e, um segundo ou mais, a porta desapareceu, também. Paramos, e o silêncio, expulso pelos nossos pés repercutiu outra vez no recessos da terra. A grande muralha da vegetação, uma massa exuberante formada por um emaranhado de troncos, ramos, folhas, galhos, folhagens, imóvel sob o luar, era como uma invasão desordenada de vida sem som, uma onda veio rolando das plantas empilhadas, encrespada, pronta para tombar sobre o rio, para varrer a nossa insignificante existência. Mas isso continuou imóvel. Uma explosão amortecida de arremessos poderosos e roncos chegou-nos de longe, como se um icthyosaurus estivesse tomando um banho brilhante no grande rio. ‘Depois de tudo’, disse o fabricante de caldeira, em um tom sensato, ‘por que não iríamos conseguir os rebites?’ Por que não, de fato! Eu não sabia de nenhuma razão para não obtê-los. ‘Eles vêm em três semanas’, eu disse, confiante.
“Mas eles não chegaram. Ao invés de rebites veio uma invasão, uma imposição, uma visitação. Veio em seções durante as próximas três semanas, cada seção chefiada por um jumento carregando um homem branco em roupas novas e sapatos marrons, curvados, balançando a cabeça à direita e à esquerda para os impressionados peregrinos. Um bando de negros briguentos e mal-encarados, com os pés em chagas, marchava atrás dos jumentos; muitas barracas, bancos de acampamento, caixas de latas, caixas brancas e fardos marrons eram atirados no pátio, e o ar de mistério se aprofundava um pouco mais com a confusão do posto. Cinco parcelas vieram desse jeito com o ar absurdo de uma fuga desordenada, como se tivessem saqueado inúmeras lojas de roupas e provisões; e podia se pensar que, após o saque, eles estavam carregando os frutos dos roubos para a selva, para uma divisão equitativa. Foi uma confusão inexplicável de coisas decentes em si, mas que a estupidez humana fez olhar como os despojos de ladrões.
“Aquele devotado bando dava a si próprio à denominação de Expedição Exploradora do Eldorado, e eu acredito que tinham jurado algum segredo. A conversa, no entanto, foi uma conversa de sórdidos piratas – eram imprudentes sem ousadia, gananciosos sem audácia e cruéis sem coragem -; não havia um átomo de previsão ou de intenção séria em todo batalhão, e eles não pareciam cientes de que essas coisas são necessárias em qualquer trabalho neste mundo. Seu desejo era extrair o tesouro das entranhas da terra, e a sua finalidade moral não ia além dos assaltantes que arrombam um cofre. Quem pagou as despesas dessa empresa nobre, eu não sei; mas o tio do nosso gerente era o líder do bando.
“No exterior, ele parecia um açougueiro de um bairro pobre, e seus olhos transmitiam uma astúcia sonolenta. Ostentava uma pança de gordura sobre pernas curtas, e durante todo o tempo em que sua quadrilha infestou o posto não falou com ninguém a não ser com o sobrinho. Podia-se ver os dois perambulando o dia todo, com as cabeças unidas em uma eterna confabulação.
“Eu já havia desistido de me preocupar com os rebites. A nossa capacidade para esse tipo de loucura é mais limitada do que se pode supor. Eu disse: ‘Danem-se!’ – e deixei as coisas correrem; eu tinha muito tempo para a meditação e, de vez em quando, voltava meus pensamentos para Kurtz. Não que eu estivesse muito interessado nele. Não. Ainda assim, eu estava curioso para saber se esse homem, que tinha vindo para ali imbuído com ideias morais de algum tipo, chegaria mesmo ao topo do poder, depois de tudo, e como ele iria se definir sobre o seu trabalho, quando chegasse lá.”
PARTE 2
“Uma noite eu estava deitado no convés do meu barco a vapor, ouvi vozes que se aproximavam – eram o sobrinho e o tio passeando ao longo da margem do rio. Deixei a cabeça repousar de novo nos braços e já começava a cochilar quando alguém falou, praticamente junto ao meu ouvido: ‘Eu sou tão inofensivo como uma criança, mas não gosto que me deem ordens; sou o gerente, ou não sou? Recebi ordens de mandá-lo para lá. Ele é incrível…’ Percebi que os dois estavam em pé, na praia, ao lado da proa do barco a vapor, logo abaixo da minha cabeça; não me movi, não me ocorreu mover-me. Estava com sono. ‘É desagradável!, resmungou o tio. ‘Ele pediu à Administração para ser enviado para lá’, disse o outro, ‘com a ideia de mostrar o que podia fazer; e fui instruído para ficar de acordo. Olhe a influência que o homem deve ter. É terrível!’ Ambos concordaram que era terrível, então fizeram várias observações bizarras: ‘Faça chuva e bom tempo – um homem – o Conselho – pelo nariz’ – fragmentos de frases absurdas que acabaram levando a melhor sobre a minha sonolência, de forma que eu já estava praticamente desperto e alerta quando o tio disse: ‘O clima pode resolver essa dificuldade para você. Ele está sozinho lá?’ ‘Sim’, respondeu o gerente; ‘ele enviou o seu assistente rio abaixo com um bilhete para mim nos seguintes termos: Mande esse pobre diabo para longe daqui e trate de não me arranjar mais ninguém dessa espécie. Prefiro ficar sozinho a ter de aguentar o tipo de gente que vocês colocam ao meu dispor. Foi mais de um ano atrás. Você pode imaginar maior atrevimento?’ ‘Qualquer outra coisa desde então?’, perguntou o outro com a voz rouca. ‘Marfim’, falou o sobrinho, ‘muito marfim… de primeira qualidade, aos montes, o que é irritante partindo dele. ‘E com isso?’, questionou com um ronco pesado. ‘Fatura’, foi a resposta disparada para fora, por assim dizer. Então, fez-se silêncio. Eles estavam falando a respeito de Kurtz.
“A essa altura eu já estava inteiramente desperto, mas como me achava confortavelmente à vontade, continuei deitado ali, imóvel, não encontrando nenhum incentivo para mudar de posição. ‘Como é que esse marfim pôde vir de tão longe?’, rosnou o velho, que parecia muito irritado. O outro explicou que tinha vindo numa frota de canoas a cargo de um mestiço inglês, auxiliar de Kurtz e que, aparentemente, o próprio Kurtz tivera a intenção de vir também, já que o seu posto, na ocasião, encontrava-se com as provisões inteiramente esgotadas, mas depois de ter avançado cerca de trezentas milhas, ele decidiu, de súbito, que voltaria, o que fez sozinho numa pequena canoa, com quatro remadores, deixando que o mestiço continuasse descendo rio abaixo com o marfim. Os dois companheiros pareciam surpresos que alguém tivesse tentado realizar tal coisa. Não encontravam uma explicação adequada para aquela atitude. Quanto a mim, parecia estar vendo Kurtz pela primeira vez. Foi uma ideia diferente: a canoa, quatro selvagens a remar e o homem solitário branco a virar as costas de repente para sede da empresa, para o alívio, em pensamentos para casa – talvez; virando o seu rosto para as profundezas da selva, para o seu posto vazio e desolado; eu não sabia o motivo. Talvez ele fosse simplesmente um sujeito decente, preso ao seu trabalho para seu próprio bem. Seu nome, entendem, não tinha sido pronunciado uma única vez. Ele era ‘o homem.’ O mestiço, que, tanto quanto eu podia perceber, havia realizado uma viagem difícil, com grande prudência e coragem, era invariavelmente mencionada como ‘aquele canalha’. O ‘canalha’ havia informado que o ‘homem’ estivera muito doente – e não tinha se recuperado completamente. Os dois que estavam abaixo de mim se afastaram alguns passos e caminharam de um lado para o outro mantendo certa distância; pude ouvir pouco: ‘posto militar – médico – duzentas milhas – completamente sozinho agora – atrasos inevitáveis – nove meses sem notícias – estranhos rumores’. Eles se aproximaram novamente, no momento que o gerente ia dizendo: ‘Ninguém, que eu saiba, a não ser um tipo de mercador ambulante – um sujeito pestilento -, marfim tirando dos nativos’. Quem era esse sujeito de quem falavam agora? Deduzi, apanhando fragmentos da conversa, que se tratava de alguém que estava agindo presumivelmente na área de Kurtz e não era aprovado pelo gerente. ‘Nós não estaremos livres de uma concorrência desleal até que um desses sujeitos seja enforcado como um exemplo’, disse ele; ‘Certamente’, resmungou o outro; ‘pegá-lo e enforcá-lo. Por que não? – qualquer coisa – qualquer coisa pode ser feita neste país, é o que eu digo. Ninguém aqui, você entende, aqui, pode pôr em perigo a sua posição – e por quê? Você suporta o clima – você vai sobreviver a todos eles. O perigo está na Europa, mas lá, antes de partir, eu tomei o cuidado de…’ Eles se afastaram e sussurraram algo, depois, suas vozes ficaram audíveis: ‘Essa extraordinária série de atrasos não é culpa minha, fiz o meu melhor.’ O homem gordo suspirou. ‘Muito triste’. ‘E o absurdo pestilento do seu discurso’, continuou o outro, ‘ele me incomodou bastante quando esteve aqui. Cada posto deve ser como um farol na estrada para melhorar as coisas, um centro de comércio, claro, mas também para a humanização, instrução. Imagine – aquele idiota. E ele quer ser gerente. Não, é…’ Nesse ponto ele parou, sufocado por uma indignação sem limite, e eu levantei a cabeça um pouquinho e fiquei surpreso ao ver quão perto eles estavam de mim – bem debaixo que eu poderia ter cuspido em seus chapéus. Eles olhavam para o chão, absortos em seus pensamentos. O gerente dava breves batidas na perna com um raminho: seu sagaz parente levantou a cabeça: ‘Você tem passado bem desde que veio para cá?, perguntou ele. O outro recomeçou: ‘Quem? Eu? Oh, estou ótimo – ótimo mesmo. Mas o resto – oh, meu Deus; todos doentes. Eles morrem tão rápido, também, que não tenho o tempo de enviá-los para fora do país – é inacreditável!’ ‘Hum… é assim’, resmungou o tio. ‘Ah, meu filho, confie nisso. Digo, confie nisso’. Eu o vi estender o braço curto como se fosse uma nadadeira num gesto que envolveu a selva, o riacho, a lama, o rio – parecia acenar perante a face iluminada da terra num apelo traiçoeiro à morte que ali estava à espreita, ao mal oculto, à escuridão profunda do seu coração. Foi tão assustador que eu me levantei de um salto e olhei para a borda da selva, como se eu tivesse esperando algum tipo de resposta qualquer àquela tenebrosa demonstração de confiança. Vocês conhecem as noções tolas que chegam a um, por vezes. O silêncio confrontava com aquelas duas figuras com a sua paciência sinistra, à espera do falecimento daquela fantástica invasão.
“Ambos praguejaram em voz alta – de puro susto, creio eu – e, fingindo não terem dado pela minha presença, deram meia-volta e afastaram-se na direção do posto. O sol estava baixo, inclinando-se para frente, e os dois, caminhando lado a lado, curvados para frente, pareciam arrastar penosamente, encosta acima, suas ridículas sombras de dimensão desigual, que os seguiam, vagarosas, deslizando por sobre o capim, sem flexionar uma única folha.
“Poucos dias depois, a Expedição Eldorado partiu, adentrou a paciente selva, que se fechou sobre eles como o mar sobre um mergulhador. Muito tempo depois chegou a notícia de que todos os jumentos estavam mortos. Nada sei sobre o destino dos animais de menor valor. Eles, sem dúvida, como o resto de nós, encontraram o que mereciam. Não perguntei. Eu estava bastante animado na ocasião com a perspectiva de me encontrar com Kurtz muito em breve. Quando digo ‘em breve’, falo em termos relativos. Passaram-se dois meses a partir do dia que deixamos o canal até o momento que chegamos à margem abaixo do posto de Kurtz.
“Subir aquele rio era o mesmo que viajar para trás no tempo até os primórdios do mundo, quando as vegetações se amotinaram sobre a terra e as grandes árvores reinavam. Um rio vazio, um grande silêncio, uma selva impenetrável. O ar estava quente, denso, abafado. Não havia nenhuma alegria no brilho da luz do sol. Os longos trechos da hidrovia corriam, abandonados, para dentro de sombrias distâncias. Nos prateados bancos de areia, hipopótamos e jacarés tomavam sol lado a lado. As águas ampliadas fluíam por entre uma multidão de ilhas arborizadas; uma pessoa se perdia facilmente naquele rio, como se estivesse num deserto, e topava o dia todo contra os bancos de areia, tentando encontrar o canal, até pensar que estivesse enfeitiçado e separado para sempre de tudo aquilo que conhecera um dia – em algum lugar distante – em outra existência talvez. Havia momentos em que o passado voltava à mente, como, às vezes, acontece quando não se tem um momento de sobra para si mesmo; mas veio na forma de um sonho inquieto, lembrado com assombro entre as realidades esmagadoras deste estranho mundo de plantas, e água, e silêncio. E essa calmaria da vida não se assemelhava à mínima paz. Era a quietude de uma força implacável sobre uma intenção inescrutável. Ela olhava para você com um aspecto vingativo, que eu me acostumei depois e não mais pude vê-la; não tinha tempo; eu estava ocupado em adivinhar o caminho do canal. Tive de discernir, na maioria das vezes, por inspiração, os sinais dos ocultos bancos de areia; e ficar atento às pedras submersas; eu estava aprendendo a cerrar os dentes espertamente, antes que meu coração saísse pela boca, quando raspava por acaso algum obstáculo camuflado e infernal que teria arrancado a vida daquele barco a vapor de lata, afogando todos os peregrinos; eu tinha que manter um vigia para os sinais de madeira morta que poderiam ser cortadas no meio da noite para uso no dia seguinte. Quando você tem que se preocupar com esses tipo de coisas, com meros incidentes de superfície, a realidade – a realidade, eu digo a vocês – desaparece. A verdade interior está escondida – por sorte, felizmente. Mas eu a sentia do mesmo modo, sentia muitas vezes o seu silêncio misterioso observando meus truques de macaco, assim como observa vocês, companheiros, quando se equilibram em suas respectivas cordas-bambas por… quanto é mesmo o valor? – meia-coroa por cambalhota?
“Tente ser mais educado, Marlow”, resmungou uma voz, e eu soube que havia pelo menos um ouvinte acordado, além de mim.
“Peço-lhe seu perdão. Esqueci-me da dor profunda que faz parte do resto do preço. E, de fato, o que é a questão dos preços, se o truque for bem feito? Vocês fazem seus truques muito bem. Eu também não me saí mal, já que consegui que o meu barco não afundasse logo na minha primeira viagem. Isso me espanta até hoje. Imaginem um homem de olhos vendados que dirige um coche por uma estrada esburacada. Eu suava e tremia consideravelmente diante daquela empreitada, posso confessar a vocês. Afinal, para um marinheiro, raspar o fundo da coisa que supostamente deveria apenas flutuar o tempo todo, entregue sob seus cuidados, é um pecado imperdoável. Ninguém pode não saber disso, mas esquece daquele baque – não é mesmo? É um golpe direto no coração. Você se lembra dele, você sonha com ele, você acorda à noite pensando nele – anos depois – suando frio novamente. Não tenho a pretensão de dizer que o vapor flutuou o tempo todo. Por mais de uma vez teve de ser empurrado por vinte canibais, que chapinhavam no lodo ao redor dele. Tínhamos alistados alguns desses selvagens, para fazerem parte da tripulação. Bom pessoal – os canibais – mas no seu devido lugar. Eram homens com os quais se podia trabalhar, sou grato a eles e, afinal de contas, não devoraram uns aos outros diante de mim: haviam trazido consigo uma provisão de carne de hipopótamo que apodrecera, fazendo com que o mistério da selva começasse a feder nas minhas narinas. Ufa! Ainda agora sinto aquele cheiro. Estavam a bordo comigo o gerente e três ou quatro peregrinos com os seus cajados – todos completos. Às vezes nos deparávamos com um posto à beira do rio, agarrados às saias do desconhecido, e os homens brancos correndo para fora de um casebre desmantelado, com largos gestos de alegria e surpresa e boas-vindas, o que nos parecia muito estranho – tinham a aparência de serem mantidos ali em cativeiro por força de um feitiço. A palavra marfim soava no ar por um tempo – e novamente voltávamos ao silêncio, ao longo dos trechos vazios, contornando as pacíficas curvas do rio, entre os muros elevados de nosso caminho sinuoso, reverberando em aplausos ocos as batidas das pás da roda na água. As árvores, milhões de árvores, enormes, imensas, erguendo-se nas alturas e em seus pés, abraçando as margens e contra a corrente, arrastava-se o pequeno e fuliginoso vapor, como um besouro lento rastejando no chão de um pórtico imponente. Isso nos fazia sentirmos muito pequenos, muito perdidos, mas sentimento ainda não nos punha totalmente deprimentes. Afinal, se éramos pequenos, o besouro encardido ainda seguia rastejando – e era exatamente o que queríamos. Para onde os peregrinos imaginavam que ele se arrastava, não sei dizer. Para algum lugar onde eles esperavam obter algo; eu aposto! Para mim, ela se arrastava em direção de Kurtz – exclusivamente; mas quando os canos de vapor começaram a vazar nossa marcha se tornou muito vagarosa. O rio se abria diante de nós e fechava-se atrás de nós, como se a selva tivesse estendido displicentemente através das águas para impedir o nosso caminho de volta. Penetrávamos cada vez mais profundamente no coração das trevas. Reinava uma grande quietude ali. À noite, às vezes, o ruído dos tambores, por trás da cortina de árvores, subia o rio e permanecia suspenso, fracamente, como se pairasse no ar bem acima de nossas cabeças, até o primeiro clarão do dia. Se aquilo significava paz, guerra, ou oração, não poderia dizer. As madrugadas eram anunciadas pela descida de um frio silêncio; os lenhadores dormiam, as fogueiras quase extintas, o estalido de um galho seco nos punha em sobressalto. Éramos viajantes numa terra pré-histórica, numa terra que tinha o aspecto de um planeta desconhecido. Poderíamos imaginar como os primeiros homens a tomarem posse de uma herança amaldiçoada, a ser subjugada à custa de profunda angústia excessiva e muita labuta. Mas, de repente, contornamos com dificuldade uma curva do rio, vislumbramos paredes de junco, telhados pontiagudos de palha, e uma explosão de gritos, um turbilhão de braços negros, uma massa de mãos batendo palmas, de pés batendo no chão, de corpos oscilantes, de olhos revirados, sob a inclinação de folhagem densa e imóvel. O vapor ia devagar à borda de um frenesi negro e incompreensível. O homem pré-histórico estava nos amaldiçoando, rezando para nós, acolhendo-nos – quem poderia dizer? Estávamos impedidos de compreender o que nos cercava; nós deslizamos diante deles como fantasmas, perplexos e secretamente chocados como fariam homens normais diante de uma explosão de entusiasmo entre loucos, num hospício. Não conseguimos entender porque estávamos distantes demais, e não podíamos nos lembrar porque estávamos viajando na noite dos tempos primeiros, daqueles tempos que já se foram, deixando dificilmente algum sinal – e nenhuma lembrança.
“A terra parecia sobrenatural. Estávamos acostumados a vê-la como se fosse um monstro acorrentado e conquistado, mas ali – ali você podia olhar para uma coisa monstruosa e livre, era sobrenatural, e os homens eram – não, eles não eram inumanos. Bem, vocês sabem, essa era a pior parte – a suspeita de serem inumanos. Eles viam lentamente. Eles uivavam e saltavam, e giram, e faziam caretas horríveis; mas o que impressionava a gente era precisamente a ideia de que eram criaturas humanas – como vocês – a ideia de nosso parentesco remoto com esse tumulto selvagem e apaixonado. Horrível. Sim, foi horrível o suficiente, mas se fossemos homem o suficiente, admitiríamos que dentro de nós, havia, o menor traço, uma resposta à franqueza terrível daquele alarido, uma suspeita fraca de haver um sentido ali que nós – tão remotos a partir do crepúsculo das primitivas idades – poderíamos compreender. E por que não? A mente do homem é capaz de qualquer coisa, porque tudo está dentro dela, todo o passado, assim como todo o futuro. Que havia ali, afinal? Alegria, medo, tristeza, devoção, bravura, ira – quem pode dizer? Mas a verdade – a verdade despida de seu manto do tempo. Deixe que os tolos observem a cena e tremem – o homem sabe, e pode encarar sem pestanejar. Mas ele tem de ser pelo menos tão homem quanto aqueles que ali estão na margem do rio. Ele deve conhecer a verdade – com a sua própria essência verdadeira – com sua própria força inata. Princípios de nada servem. Aquisições, roupas, trapos bonitos – trapos que voariam à primeira sacudidela. Não; o que se deseja é uma crença deliberada. Eu ouço, eu admito, mas tenho uma voz, também, e para o bem ou para o mal é o meu discurso que não pode ser silenciado. É claro que um tolo, apavorado e com bons sentimentos, está sempre seguro. Quem é que está grunhindo aí? Vocês podem imaginar que não fui à praia para uivar e dançar. Bem, não – eu não fui. Talvez por causa de meus bons sentimentos; que meus bons sentimentos se danem! Eu não tinha tempo. Eu tive que lidar com chumbo e tiras de cobertor de lã, ajudando a consertar os vazamentos dos canos – eu digo a vocês – tinha também de cuidar do leme e esforçar-me para burlar todos aqueles troncos submersos, numa tentativa de manter à tona aquela lata-velha, por bem ou por mal. Havia superfície nessas coisas suficiente para salvar um homem mais sábio. E para completar eu tinha de tomar conta do indígena que exercia a função de foguista. Ele era um espécime melhor; sabia acender uma caldeira vertical. Ele estava ali, abaixo de mim, e, palavra de honra, olhar para ele era tão edificante quanto ver um cão em uma paródia de calças e num chapéu de penas, andando sobre as patas traseiras. Uns poucos meses de treinamento tinham feito alguma coisa por aquele sujeito realmente aproveitável. Ele vigiava o manômetro e o medidor de água com um evidente esforço de intrepidez – e tinha dentes limados, também, o pobre diabo, a carapinha raspada em alguns lugares, em padrões bizarros e três cicatrizes ornamentais em cada bochecha. Ele deveria ter ficado batendo palmas e os pés na areia, em vez disso, ele estava trabalhando duro, um escravo de bruxaria estranha, cheio de conhecimentos novos. Ele era útil porque ele tinha sido instruído; e o que ele sabia era o seguinte – que se a água naquela coisa transparente desaparecesse, o espírito maligno que havia dentro da caldeira se zangaria por causa de sua grande sede e partiria para uma vingança terrível. Assim, ele suava e esbofava-se para alimentar o fogo, observando temerosamente o vidro com medo (com um amuleto improvisado, feito de trapos, atados a seu braço, e um pedaço de osso polido, tão grande como um relógio, trespassado no lábio inferior), enquanto as margens arborizadas deslizavam por nós lentamente, o ruído curto era deixado para trás, as milhas intermináveis de silêncio – e nós rastejávamos adiante, para Kurtz. Mas os troncos submersos eram numerosos, a água traiçoeira e rasa, e a caldeira parecia ter mesmo um demônio ranzinza dentro dela; em consequência, nem eu, nem o foguista tínhamos muito tempo para perscrutar os nossos pensamentos assustadores.
“Cerca de cinquenta quilômetros abaixo do posto interior, encontramos uma cabana de juncos, um poste inclinado e melancólico, com os farrapos irreconhecíveis de algo que tinha sido uma bandeira de algum tipo, tremulando ali, e uma quantidade de lenha cuidadosamente empilhada. Foi um achado inesperado. Alcançamos a margem e sobre a pilha de lenha encontrada, achamos um pedaço de tábua onde haviam sido escritas algumas palavras a lápis, já desbotadas. Deciframos, dizia o seguinte: ‘Madeira para vocês. Apressem-se. Aproximem-se com cautela.’ Havia uma assinatura, mas era ilegível – não era Kurtz – era uma palavra muito mais comprida. Apressem-se. Para onde? Rio acima? Aproximem-se com cautela. Nós não tínhamos feito isso. Mas o aviso não podia dizer a respeito do lugar onde ele se encontrava, pois só poderia ser lido depois que a pessoa se aproximasse. Algo estava errado lá em cima. Mas o quê – o quanto? Essa era a questão. Fizemos vários comentários desfavoráveis sobre a imbecilidade daquele estilo telegráfico. O mato em volta não dizia nada, e não nos permitia enxergar além. Uma cortina rasgada de sarja vermelha pendurada na porta da cabana oscilava com tristeza em nossos rostos. A habitação estava abandonada; via-se, porém, que um homem branco tinha vivido ali não fazia muito tempo. Permanecia ali uma mesa rústica – uma prancha apoiada em dois cavaletes; uma pilha de lixo estava depositada em um canto escuro, e junto à porta, apanhei um livro. Tinha perdido a capa, e suas páginas estavam reduzidas a um estado de extrema sujeira e maciez, de tão manuseadas; a lombada, entretanto, tinha sido caprichosamente recosturada com linha branca, que ainda se conservava limpa. Foi uma descoberta extraordinária. Seu título era ‘Uma Investigação Sobre Algumas Questões do Trabalho dos Marinheiros’, por um certo Towser, Towson – um nome assim – Mestre da Marinha de Sua Majestade. A matéria parecia bastante enfadonha, com diagramas ilustrativos e repulsivas tabelas de algarismos, e a edição era de sessenta anos atrás. Manuseei aquela extraordinária relíquia com toda a delicadeza possível, receoso de que se desintegrasse em minhas mãos. Dentro, Towson ou Towser inquiria gravemente sobre a capacidade de resistência de correntes e cabos de um navio, e coisas desse gênero e outras questões semelhantes. Não era um livro muito cativante, mas à primeira vista você podia perceber que havia uma sinceridade de intenção, uma honesta preocupação em estabelecer a maneira correta de se executar um determinado tipo de trabalho, e isso fazia com que aquelas modestas páginas, concebidas tantos anos antes, brilhassem com uma luz que não era apenas profissional. O velho e simples marinheiro, com sua conversa sobre correntes e cabrestantes, fez-me esquecer da selva e os peregrinos, numa deliciosa sensação de ter encontrado algo incontestavelmente real. O simples fato de estar aquele livro ali já era maravilhoso; mais extraordinárias, porém, eram as anotações rabiscadas a lápis na margem, indubitavelmente relativas ao texto. Eu mal podia acreditar em meus olhos! Elas estavam em código! Isso mesmo, em código, ao que parecia. Imaginem um homem ir parar naquele fim de mundo levando consigo um livro com aquelas descrições, estudando-o – e fazendo anotações – usando códigos! Tratava-se de um mistério extravagante.
“Por certo tempo, eu tinha estado vagamente consciente de um barulho preocupante, e quando levantei os olhos percebi que a pilha de lenha tinha desaparecido e que o gerente, acompanhado de todos os peregrinos, gritava por mim da beira do rio. Enfiei o livro no bolso. Asseguro a vocês que abandonar a sua leitura foi para mim o mesmo que deixar a proteção de uma velha e sólida amizade.
“Dei partida no motor claudicante. ‘Deve ser aquele comerciante miserável – aquele intruso’, observou o gerente, lançando um olhar malévolo para o lugar onde tínhamos estado. ‘Ele deve ser inglês’, falei. `Isso não vai impedir que se meta em encrencas, se não tiver cuidado’, resmungou o gerente sombriamente. Com fingida inocência, observei que ninguém estava livre de encrencas neste mundo.
“A correnteza era mais rápida agora, o vapor parecia em seu último suspiro, a roda da popa girava frouxamente, e, de repente, peguei-me ouvindo, na ponta dos pés, as próximas batidas do motor do barco. Eu esperava que a coisa miserável fosse pifar a qualquer momento. Era como ver os últimos suspiros de uma vida. Mas ainda nos arrastávamos. Às vezes, eu escolhia uma árvore um pouco à frente para medir nosso progresso na direção de Kurtz, mas a perdia, invariavelmente, antes de alcançá-la. Para manter os olhos fixos em uma coisa era demais para a paciência humana. O gerente exibia uma resignação maravilhosa. Eu estava nervoso e irritado e comecei a discutir comigo mesmo se iria ou não conversar francamente com Kurtz, mas antes que eu pudesse chegar a qualquer conclusão, ocorreu-me que falar ou ficar em silêncio, na verdade, qualquer ação minha, seria uma mera futilidade. Que importa que qualquer um de nós soubesse ou ignorasse? O que importa quem era gerente? Às vezes, temos uns lampejos, uma percepção das coisas. O essencial nesse caso jaz nas profundezas, bem abaixo da superfície, além do meu alcance, e além do meu poder de interferir.
“Quando caía a noite do segundo dia, julgávamos estar a cerca de oito milhas da estação de Kurtz. Eu queria prosseguir, mas o gerente assumiu um ar grave e disse que a navegação lá em cima era tão perigosa que seria aconselhável, estando o sol muito baixo, esperar onde estávamos até a manhã seguinte. Além disso, ele salientou que, se o aviso para abordagem cautelosa era para ser seguida, era preciso nos aproximarmos durante o dia – não ao entardecer ou à noite. Foi uma decisão sensata. Oito milhas significava quase três horas de navegação a vapor para nós; e eu também podia ver ondulações um tanto suspeitas na extremidade superior do rio. No entanto, eu estava mais irritado do que posso dizer com aquela demora, e sem razão, também, já que uma noite a mais não poderia fazer muita diferença depois de tantos meses de espera. Como tínhamos muita lenha, e cautela era a palavra de ordem, atracamos no meio da corrente. Naquele trecho, o rio era estreito e reto, cercado por altos barrancos, lembrando o corte feito por uma estrada de ferro. O crepúsculo veio antes de o sol se pôr. A corrente corria suave e rápida, mas uma imobilidade muda assentou sobre as margens. As árvores vivas, atadas umas às outras pelas trepadeiras e cada arbusto vivo do mato, havia se transformado em pedra, mesmo o galho mais fino, a folha mais leve. Não pareciam adormecidos – era artificial, como em um estado de transe; nem o som mais fraco, de qualquer tipo, podia ser ouvido. Eu olhava espantado, e começava a suspeitar que estivesse surdo – e, então, a noite veio de repente, e deixou-nos cegos, também. Por volta das três da manhã, algum peixe de grande porte saltou na água e o barulho alto do seu salto me fez pular como se uma arma tivesse sido disparada. Quando o sol se levantou, havia uma névoa branca, muito quente e pegajosa, e que nos pôs mais cegos do que a própria noite; ela não se movimentava, nem passava, ela estava ali, estacionada a nossa volta, como algo sólido. Às oito ou nove, talvez, ela se ergueu como uma persiana. Tivemos um vislumbre da imponente multidão de árvores, da selva imensa e emaranhada, com a bola do sol em chamas pairando sobre ela – tudo perfeitamente paralisado – e depois a persiana branca veio de novo, suavemente, como se deslizando em sulcos untados; eu pedi para que a âncora, que tinha começado a ser içada, para ser solta novamente. Antes que parasse de correr com o seu guizo abafado, um grito, um grito muito alto, como de uma desolação infinita, soou lentamente no ar opaco. Ele cessou. Um clamor, modulado em desacordos selvagens, encheu nossos ouvidos. Era tão inesperado lamento que fez meus cabelos se arrepiarem sob o boné; eu não sei como ele atingiu os demais: para mim parecia que a própria neblina tivesse gritado, assim de repente, e aparentemente vindo de todos os lados ao mesmo tempo, de uma vez, despertando aquele alvoroço tumultuado, de triste lamento. Isso culminou em um surto apressado de gritos quase insuportavelmente excessivos, que parou, deixando-nos endurecidos em uma variedade de atitudes tolas, e obstinadamente ouvindo o quase tão terrível e excessivo silêncio. ‘Bom Deus! Qual é o significado?’, gaguejou junto do meu cotovelo um dos peregrinos, um homenzinho gordo, com cabelo cor de areia e costeletas vermelhas, que usava botas de borracha e pijama cor-de-rosa, enfiado em suas meias. Dois outros permaneceram boquiabertos durante um minuto inteiro, enquanto, em seguida, correram para dentro da pequena cabine, reapareceram em poucos segundos, postando-se no convés com Winchesters engatilhadas nas mãos. O que podíamos ver era apenas o navio em que achávamos, seus contornos embaçados como se tivesse a ponto de dissolver, e uma faixa nublada de água, talvez dois metros de largura, em volta dela – e isso era tudo. O resto do mundo estava longe, tão longe quanto os nossos olhos e ouvidos estavam ocupados. Apenas em algum lugar. Sumira, desaparecera; varrido, sem deixar um sussurro ou uma sombra atrás de si.
“Encaminhei-me para a proa e dei ordem para que fosse recolhida a maior parte da corrente, de maneira que pudéssemos levantar âncora rapidamente, em caso de necessidade. ‘Será que eles vão atacar?’, sussurrou uma voz reverente. ‘Vamos ser todos abatidos neste nevoeiro’, murmurou o outro. Os rostos se contraíram com a tensão, as mãos tremeram um pouco, os olhos esqueciam-se de piscar. Foi muito curioso notar o contraste entre as expressões dos homens brancos e a dos negros de nossa tripulação, que eram igualmente estranhos àquela parte do rio, embora suas casas estivessem apenas cerca de oitocentas milhas de distância. Os brancos, naturalmente muito perturbados, davam também a impressão de estarem dolorosamente chocados com aquela absurda gritaria. Os outros tinham uma expressão alerta, naturalmente interessados; mas seus rostos eram essencialmente tranquilos, mesmo os daqueles que mostravam os dentes enquanto puxavam a corrente. Vários deles trocavam frases curtas, resmungando, que pareciam resolver o assunto de modo satisfatório. Seu chefe, um jovem negro, de peito largo, gravemente envolto num severo manto azul-escuro, orlado de franjas, com narinas ferozes e seus cabelos caprichosamente arrumados em lustrosos caracóis, estava perto de mim. ‘Aha!’, eu disse, simplesmente em sinal de cordialidade. ‘Pega ele’, ele retrucou, abrindo seus olhos injetados de sangue e mostrando os seus dentes afiados – ‘Pega eles! Dá eles pra nós’. ‘Para vocês?’, perguntei; ‘O que vocês fariam com eles? ‘Comia eles’, ele disse secamente, e, apoiando seu cotovelo no gradil, olhou para a névoa com um ar de grande dignidade e profundamente pensativo. Eu teria, sem dúvida, ficado propriamente horrorizado, se não tivesse me ocorrido que ele e seus amigos deviam estar famintos; que eles vinham se tornando cada vez mais famintos, ao menos nesse último mês. Eles tinham sido contratados por seis meses (não creio que qualquer um deles tivesse a mínima ideia da passagem do tempo, como a que acabamos por adquirir ao final de eras incontáveis. Ainda pertenciam aos primórdios do tempo – não tinham uma experiência herdada para que pudéssemos ensinar-lhes), e, claro, desde que houvesse um pedaço de papel escrito mais de acordo com uma lei ridícula elaborada abaixo do rio, ninguém se importava com o modo como viveriam. Certamente eles trouxeram com eles alguma carne podre de hipopótamo, que não poderia ter durado muito tempo, de qualquer maneira, mesmo que os peregrinos não houvessem, em meio a sonoros protestos, jogado uma quantidade considerável dela no rio. Parecia um procedimento arbitrário, mais foi, realmente, uma questão de legítima defesa. Ninguém consegue respirar as emanações de um hipopótamo morto acordando, dormindo, e comendo, mantendo ao mesmo tempo o seu precário apego à existência. Além disso, eles haviam recebido, todas as semanas, três pedaços de arame de bronze, cada um com cerca de vinte centímetros de comprimento; teoricamente, podiam comprar as suas provisões, usando aquilo como moeda, junto às aldeias ribeirinhas. Vocês podem ver como aquilo funcionava. Ou não havia aldeias, ou os povos eram hostis, ou então o diretor, que, tal como o resto de nós se alimentava de enlatados, ocasionalmente misturados com carne de bode velho, não queria parar o vapor por algum motivo mais ou menos recôndito. Então, a não ser que engolissem o próprio fio de arame ou fizessem anzóis com ele para fisgar peixes, não vejo que tipo de utilidade tinha para eles o seu extravagante salário. Devo dizer que eles eram pagos com uma regularidade digna de uma grande e respeitável empresa comercial e honrada. De resto, a única coisa para comer – embora não parecesse comestível – que vi em sua posse eram uns bolos de algo que parecia uma massa mal cozida, com uma cor de lavanda suja, que eles mantinham embrulhados dentro de folhas e que, de tempos em tempos, engoliam um pedaço, mas tão pequeno que dava a impressão de que se tratava mais de uma ação simbólica sem qualquer propósito sério de alimentação. Por que, em nome de todos os torturantes demônios da fome, eles não nos atacavam – eram trinta contra cinco – para logo fazerem uma farta refeição? Espanta-me sempre quando penso sobre isso hoje em dia. Eram homens grandes e poderosos, que não possuíam uma grande capacidade de medir as consequências, corajosos, fortes até, embora suas peles não mais fossem lustrosas e seus músculos tão rijos. E eu vi algo de restrição, um desses mistérios, que desafiam todas as probabilidades, tinha entrado em jogo ali. Eu olhava para eles com um interesse subitamente redobrado – não porque me ocorrera que eu poderia ser devorado por eles em breve, embora, confesso a vocês, que somente então percebi – sob uma nova luz, por assim dizer – quão enfermos os peregrinos pareciam estar, e eu esperava, sim, positivamente esperava que meu aspecto não fosse tão – como direi? – tão… pouco apetitoso: um toque de fantástica vaidade que caiu bem com a sensação onírica que permeava todos aqueles meus dias. Talvez eu estivesse um pouco febril, também. Não podemos passar o tempo todo apalpando o próprio pulso. Frequentemente, eu tinha ‘um pouco de febre’, ou algum toque de algum outro sintoma – as patadas lúdicas da selva, as trivialidades preliminares que antecediam as investidas mais violentas que chegariam no tempo devido. Sim; eu olhava para eles como qualquer outro ser humano faria, com uma curiosidade acerca de seus impulsos, motivações, capacidades, fraquezas, quando fossem submetidos ao teste de uma necessidade física inexorável. Foi superstição, nojo, medo, paciência, – ou algum tipo de honra primitiva. Nenhum medo pode suportar a fome, nenhuma paciência pode saciá-la, o nojo simplesmente não coexiste com a fome; e quanto à superstição, crenças, e aquilo que você pode chamar de princípios são menos do que farelo soprado pelo vento. Vocês conhecem a crueldade de uma fome prolongada, o seu tormento exasperante, seus pensamentos obscuros, a ferocidade sombria que ela gera? Bem, eu conheço. Um homem necessita de toda a sua força inata para lutar propriamente contra a fome. É realmente mais fácil enfrentar com bravura a desonra e a perdição da própria alma do que esse tipo de fome prolongada. Triste, mas verdadeiro. E aqueles sujeitos, também, não tinham qualquer razão terrena de escrúpulos. Freios! Eu esperaria o mesmo tipo de freio da parte de uma hiena rondando em meio aos cadáveres em um campo de batalha. Mas havia o fato com que me defrontava – o fato deslumbrante, para ser visto como a espuma sobre mares profundos, como uma ondulação sobre um enigma imponderável, um mistério maior -, quando pensei nele: o tom curioso e inexplicável de desespero naquele clamor selvagem que passara por nós na margem do rio, por trás da cegante brancura da neblina.
“Dois peregrinos estavam brigando, por meio de sussurros apressados, a respeito de que margem seria, ‘Esquerda, ‘ ‘Não, não; como poderia? Direita, é claro que é a direita’. ‘E muito sério’, soou a voz do gerente atrás de mim; ‘eu ficaria desolado se algo de ruim ocorresse ao Sr. Kurtz antes de o alcançarmos’. Olhei para ele e não tive a mínima dúvida de que estava sendo sincero. Era exatamente o tipo de homem que gosta de manter as aparências. Essa era a sua contenção. Mas quando murmurou algo a respeito de partir de imediato, nem sequer me dei ao trabalho de respondê-lo. Eu sabia, e ele sabia que isso não era possível. Se nos libertássemos daquilo que nos mantinha presos no fundo, ficaríamos absolutamente soltos no ar, no espaço. Não saberíamos precisar o rumo que tomaríamos – se rio acima ou rio abaixo, ou se o atravessaríamos – até alcançarmos uma margem ou a outra – e então não saberíamos, a princípio, em qual delas estaríamos. Evidentemente, não me movi. Não me passava pela mente a ideia de um acidente. Não se poderia encontrar um lugar mais letal para um naufrágio. Ainda que não morrêssemos prontamente afogados, com certeza pereceríamos sem demora, de um modo ou de outro. ‘Autorizo-o a assumir todos os riscos’, disse ele, após um curto silêncio. ‘Recuso-me a assumir qualquer um’, respondi a seguir; que era exatamente a resposta que ele esperava, embora o tom possa tê-lo surpreendido. ‘Bem, devo acatar a sua decisão. O senhor é o capitão’, afirmou, com acentuada polidez. Dei de ombros para ele em sinal de minha apreciação, e olhei através do nevoeiro. Quanto tempo duraria? Era a espera mais desoladora. A aproximação a esse Kurtz, escarafunchando marfim nesse mato miserável, assediado por muitos perigos e dificuldades, como se tivesse sido uma princesa encantada a dormir em um castelo fabuloso. ‘Será que eles vão atacar, que você acha?’, perguntou o gerente, em tom confidencial.
“Eu não achava que eles atacariam, por uma série de razões lógicas. O denso nevoeiro era a primeira. Se partissem das margens em suas canoas, ficariam perdidos, do mesmo modo que nós, se tentássemos avançar. Além disso, percebi que a selva em ambas as margens é praticamente impenetrável – contudo havia olhos lá dentro, olhos que nos tinham avistado. A selva à beira do rio era de fato muito fechada, mas a vegetação por trás dela era rala e de fácil penetração.
As selvas ribeirinhas eram certamente muito densas, mas a vegetação rasteira por trás era obviamente penetrável; entretanto, durante o breve período em que a neblina subira; eu não tinha avistado qualquer canoa nas redondezas – com certeza, nenhuma próxima do vapor. Mas o que fazia a ideia de ataque algo inconcebível para mim era a natureza do ruído, dos grilos que havíamos ouvido. Não tinham o caráter ameaçador que denotasse a intenção de hostilidade imediata. Inesperados, selvagens e violentos como eles haviam sido, deixaram em mim uma impressão irresistível de tristeza. O vislumbre do vapor tinha por algum motivo enchido aqueles selvagens de uma dor incontida. Se houvesse algum perigo, comentei, era o da nossa proximidade de uma grande paixão humana liberada. Até mesmo o sofrimento extremo pode acabar se transformando em violência, mas é mais comum que assuma a forma de apatia…
“Vocês precisavam ter visto o medo dos peregrinos. Eles não encontravam ânimo para um sorriso forçado, nem mesmo para insultar-me; mas creio que pensavam que estava louco – com medo, talvez. Pronunciei uma palestra inteira. Meus caros amigos, não adiantava a gente se preocupar… Manter um vigia? Bem, vocês podem imaginar que eu olhava para o nevoeiro procurando sinais de que se ergueria, como um gato vigia um rato; mas para qualquer outra função, nossos olhos eram tão úteis quanto se estivéssemos enterrados numa profundidade de quilômetros, dentro de um monte de algodão em rama. Era assim que nos sentíamos também – sufocados, quentes, asfixiados. Além do mais, tudo o que eu disse, embora parecesse extravagante, mostrou-se de acordo com os fatos. O que mais tarde imaginamos ter sido um ataque, foi realmente uma tentativa de nos repelir. A ação estava muito longe de ser agressiva – não era sequer uma ação defensiva, no sentido mais usual: ela foi tomada sob a tensão do desespero, e sua essência era puramente defensiva.
“Desenvolveu-se, devo dizer, duas horas depois que a neblina subiu, e seu início deu-se num ponto, falando por alto, perto de dois quilômetros abaixo do posto de Kurtz. Havíamos acabado de contornar uma curva com grande dificuldade, quando avistei uma ilhota, um mero montículo de relva verde brilhante, bem no meio do rio. Era a única do tipo; porém, à medida que avançamos mais naquela área, notei que se tratava da cabeça de um longo banco de areia, ou melhor, de uma cadeia de canteiros rasos que se estendia no meio do rio. Eram incolores, à flor da água e o lodo podia ser visto um pouco abaixo da superfície, exatamente como se vê a espinha de um homem, descendo pelo meio de seu dorso, sob a pele. Pelo que pude perceber, tanto fazia passar à direita ou à esquerda. É óbvio que eu não conhecia qualquer um dos dois canais. As margens eram muito semelhantes, nos dois lados, a profundidade parecia ser a mesma: mas como eu fora informado que o posto ficava do lado ocidental, naturalmente, rumei para a passagem do oeste.
“Mal tínhamos penetrado nele quando me dei conta de que era muito mais estreito do que eu tinha imaginado. À nossa esquerda, havia um baixio longo e contínuo e, à direita, uma margem alta e íngreme coberta por uma densa vegetação. Acima do mato, as árvores estavam em fileiras cerradas. Os ramos pendiam cerrados sobre a correnteza, e de espaço em espaço, o galho de alguma grande árvore projetava-se rigidamente sobre o córrego. A tarde ia bem adiantada, o aspecto da selva era obscuro, e uma larga faixa de sombra já caía sobre a água. Nessa sombra navegávamos – bem devagar, como vocês devem imaginar. Desviei a embarcação para bem perto da margem, por ser maior a profundidade ali, conforme me indicava a vara de sondagem.
“Um de meus amigos famintos e indulgentes fazia sondagens na proa, bem abaixo de onde eu me encontrava naquele vapor – era exatamente como uma barcaça com convés. No convés, havia duas pequenas casas com portas e janelas. A caldeira ficava na extremidade e as máquinas bem à popa. Acima de tudo havia um leve telhado, apoiado em pilares. A chaminé se projetava através dessa coberta e, à sua frente, erguia-se uma pequena cabine feita de tábuas finas, que funcionava como casa do leme. Lá dentro, havia um divã, dois bancos de campanha, um rifle Martini-Henry carregado, encostado num canto, uma mesinha e a roda do leme. Tinha uma porta larga na frente e uma ampla veneziana de cada lado. Todas elas ficavam bem abertas, é claro. Eu passava os meus dias empoleirado ali, na extremidade da proa naquele telhado, diante da porta. À noite, eu dormia, ou tentava dormir, no divã. Um negro atlético pertencente a uma tribo do litoral e instruído pelo meu infortunado predecessor era o timoneiro. Ele ostentava um par de brincos de bronze, trajava-se com um pedaço de tecido azul que ia da cintura aos tornozelos, e achava-se o dono do mundo. Era o tipo mais instável e tolo que eu já conhecera. Segurava o leme cheio de empáfia quando estávamos por perto: mas assim que nos afastávamos, ele se tornava a presa instantânea de um pavor abjeto, permitindo que aquele vapor, caindo aos pedaços, tomasse conta de si em um minuto. Eu estava olhando para baixo, observando a vara de sondagem, e sentindo-me muito irritado de ver que a cada nova tentativa, uma porção maior dela ficava fora do rio, quando vi o sondador desistir do seu trabalho repentinamente, e estatelar-se sobre o convés, sem ao menos se dar ao trabalho de recolher a sonda. Ele continuou agarrado a ela, contudo, desenhando uma trilha na água. Ao mesmo tempo, o foguista, que eu podia ver que estava embaixo de mim, sentou-se abruptamente perante a sua fornalha e abaixou a cabeça. Fiquei perplexo. Então precisei olhar para o rio com grande agilidade, pois havia um tronco submerso bem adiante. Flechas, pequenas flechas estavam voando sobre nós – uma nuvem delas; passavam zunindo diante do meu nariz, caindo aos meus pés, batendo atrás de mim, na parede externa da minha cabine. Todo esse tempo, o rio, a praia, a selva estavam muito silenciosos – perfeitamente silenciosos. Tudo o que eu podia ouvir era o pesado baque da roda de popa sobre a água e o barulho dessas coisas. Livramo-nos do tronco desajeitadamente. Flechas, por Deus! Estávamos sendo atacados! Apressei-me para fechar a veneziana que dava para a margem. O tolo timoneiro tinha as mãos à malagueta da roda do leme, erguia os joelhos bem alto, batendo seus pés, rangendo os dentes, como um cavalo em rédeas. Que loucura! E navegávamos em ziguezague a pouco mais de três metros da margem. Tive de curvar-me inteiramente para puxar a pesada veneziana, e avistei um rosto entre as folhas na mesma altura do meu, olhando-me furiosamente e com firmeza e, então, repentinamente, como se um véu tivesse sido tirado de meus olhos, divisei nas profundezas da entrelaçada escuridão, peitos desnudos, braços, pernas, olhos fulgurantes – a selva estava infestada de membros humanos em movimento, cintilantes, bronzeados. Os galhos se agitavam, oscilavam e farfalhavam, as flechas voavam de dentro deles e, então, a veneziana fechou-se. ‘Mantenha o barco em linha reta’, eu disse ao timoneiro. Ele ergueu sua cabeça rígida, com o rosto para frente; mas os seus olhos rolavam, ele continuou, erguendo e baixando os seus pés gentilmente, sua boca espumava um pouco. ‘Fique quieto’, afirmei furioso. Era como se tivesse dado ordens a uma árvore para que não balançasse ao vento. No tombadilho, abaixo de mim, havia uma grande balbúrdia de pés agitados; exclamações confusas; uma voz berrou: ‘Podemos voltar?’ Vislumbrei adiante uma ondulação em forma de V. O quê? Outro tronco submerso! Uma fuzilaria explodiu sob os meus pés. Os peregrinos tinham começado a atirar com as suas Winchesters e estavam simplesmente descarregando chumbo a esmo dentro daquela selva. Uma fumaceira infernal subiu e deslocou-se lentamente para diante. Blasfemei contra aquilo. Agora não mais podia enxergar a ondulação ou o tronco submerso. Fiquei na entrada da porta, perscrutando, e as flechas chegavam a enxames. Elas poderiam estar envenenadas, mas sua aparência era a de que não salvariam um gato. A selva começou a uivar. Nossos lenhadores soltaram um grito de guerra; o estampido de um rifle atrás de mim foi ensurdecedor. Olhei sobre o meu ombro, e a cabine de comando ainda estava repleta de ruídos e de fumaça, quando me lancei sobre a roda do leme. O palerma do negro tinha largado tudo, abrira o postigo e estava mandando fogo com o meu Martini-Henry. Ergueu-se diante daquela imensa abertura, observando, e eu gritei para que ele voltasse, enquanto endireitava a súbita guinada do vapor. Não havia espaço para manobra, mesmo que eu quisesse, pois o tronco submerso estava em algum lugar muito próximo, adiante de nós, naquela fumaça confusa; não havia tempo a perder, de modo que eu apenas dirigi o barco para perto da margem, muito perto mesmo, onde eu sabia que havia mais profundidade.
“Seguimos lentamente, acompanhando os arbustos que se projetavam sobre a água, em meio a um remoinho de galhos quebrados e folhas que voavam. A saraivada abaixo parou um momento, como previ que se daria, assim que a munição se esgotasse. Joguei minha cabeça para trás quando o zunido de um dardo atravessou a cabine de comando, entrando por uma veneziana e saindo pela outra. Olhando para além daquele timoneiro maluco, que agitava o rifle descarregado e bradando em direção à margem, enxerguei vagas formas de homens correndo agachados, saltando, esgueirando-se, distintos, incompletos, evanescentes. Algo grande surgiu no ar diante da janela, o rifle caiu na água, e o homem deu um passo para trás rapidamente, olhou para mim por cima do ombro de uma maneira extraordinária, profunda, familiar, e caiu aos meus pés. A lateral de sua cabeça bateu duas vezes na roda do leme, e a extremidade de algo parecido com uma bengala girou, fazendo um grande estrondo ao derrubar um banquinho. Era como se, após ter arrancado aquilo de alguém na margem, ele tivesse perdido o equilíbrio em razão do esforço. A fumaça fina havia desaparecido, tínhamos nos livrado do tronco submerso, e olhando para frente eu via que, dentro de uns cem metros, estaríamos livres para navegar para longe da margem; mas eu sentia os meus pés tão quentes e molhados que tive de olhar para baixo. O homem havia rolado sobre o próprio dorso e olhava fixamente para mim: ambas as suas mãos agarravam aquela bengala. Era a haste de uma lança que, atirada ou enfiada pela janela, atingira-o no lado, bem abaixo das costelas; a lâmina estava enterrada em seu corpo, por um corte pavoroso; meus sapatos estavam encharcados; uma poça de sangue vermelho-escuro brilhava imóvel sob o timão; seus olhos brilhavam com um lustro surpreendente. A fuzilaria irrompeu novamente. Ele olhou para mim ansioso, agarrando-se à lança como algo precioso, apavorado com a possibilidade de que eu tentasse retirá-la dele. Eu precisava fazer um grande esforço para libertar os meus olhos do seu olhar e cuidar do leme. Com uma das mãos, apalpei minha cabeça para encontrar a corda do apito, que acionei diversas vezes, nervosamente. O tumulto de raivosos brados de guerra cessou no mesmo instante e, então, das profundezas da selva saiu um gemido trêmulo e prolongado de temor e de extremo desespero, como se pode imaginar o voo da última esperança da terra. Havia uma grande comoção na selva; a chuva de flechas cessou, uns poucos dardos zuniram agudamente – depois, silêncio, no qual o lânguido bater da roda de popa chegava claramente até os meus ouvidos. Com dificuldade, virei o leme a estibordo no instante em que o peregrino de pijama cor-de-rosa, muito excitado e agitado, apareceu na entrada da porta. ‘O gerente me enviou…’, começou ele a falar em um tom oficial, e parou imediatamente. ‘Meu Deus!’, ele disse, olhando para o homem ferido.
“Nós ficamos ali – dois homens brancos – postados ao lado dele, com o seu olhar brilhante e inquisidor a nos envolver. Declaro que era como se ele fosse em breve nos fazer alguma pergunta numa linguagem compreensível, mas ele morreu sem emitir um som, sem mover um membro, sem contrair um único músculo. Só no último momento, como que em resposta a algum sinal que não podíamos ver a algum sussurro que não podíamos ouvir, ele franziu a testa fortemente, o que deu à sua negra máscara mortuária uma expressão inimaginavelmente sombria, lúgubre e ameaçadora. O brilho inquisidor do seu olhar desvaneceu-se rapidamente e em seu lugar ficou uma luz baça e vidrada. “Pode dirigir?”, perguntei ao agente ansiosamente. Ele vacilou, mas eu o agarrei pelo braço, o que o fez compreender que era minha intenção entregar-lhe o leme, quer ele concordasse ou não. Para lhe dizer a verdade, eu estava morbidamente ansioso para trocar os meus sapatos e as minhas meias. ‘Ele está morto’, murmurou o sujeito, terrivelmente impressionado. ‘Não há dúvida a esse respeito’, respondi, enquanto lutava desesperadamente com os cordões dos sapatos. ‘E, por sinal, imagino que o Sr. Kurtz deve estar igualmente morto a essa altura’.
“Naquele momento, era essa a ideia predominante na minha cabeça. A sensação que eu sentia era de profunda decepção, como se acabasse de descobrir que tinha lutado por uma coisa totalmente inconsistente. Eu não poderia ter ficado mais desgostoso se tivesse vindo de tão longe expressamente para falar com o Sr. Kurtz. Falar com… joguei um sapato no rio, e compreendi, nesse momento, que era exatamente com isso que eu estava contando – com uma conversa com Kurtz. Fiz a estranha descoberta, vejam vocês, que eu jamais o imaginara em ação, mas apenas conversando. Eu não havia dito a mim mesmo: ‘Agora você nunca chegará a vê-lo’, ou ‘Agora nunca poderá apertar a sua mão’, e sim, ‘Agora você nunca poderá ouvi-lo’. O homem me aparecia como uma voz. Não que eu não o conectasse com algum tipo de ação. Não me haviam contado com todos os tons de inveja e admiração que ele colecionara, negociara, trapaceara ou roubara mais marfim do que todos os agentes unidos? Essa não era a questão. A questão era que ele era uma criatura dotada de elevados dons e que, dentre todos esses dons, o que mais sobressaía, o que fazia dele uma presença real, era o seu talento para falar, para usar as palavras… o dom da expressão, o desconcertante, o iluminador, o mais exaltado e mais desprezível, o fluxo pulsante de luz, ou o fluxo enganoso do coração de uma escuridão impenetrável.
“O outro pé de sapato voou para dentro do deus-demônio daquele rio. Disse comigo mesmo. ‘Que diabo.’ Está tudo acabado. Chegamos tarde demais; ele desapareceu – o dom desapareceu por meio de alguma lança, flecha ou porrete. Jamais ouvirei a voz daquele sujeito, afinal. E a minha tristeza era de uma emoção alarmante e extravagante, tal qual aquela que notara nos uivos de lamento dos selvagens na selva. Não poderia sentir uma desolação mais solitária se me houvessem roubado uma crença ou se eu tivesse perdido meu destino na vida… Por que alguém suspira assim, desse modo horripilante? Absurdo? Bem, absurdo. Santo Deus! Não poderá nunca o homem… olhe aqui, dá-me um pouco de tabaco.
“Houve uma pausa de profundo silêncio, depois um fósforo incendiou-se, e o delgado rosto de Marlow surgiu consumido, oco, com dobras despencadas e pálpebras caídas, e com um aspecto de concentrada atenção; e cada vez que ele chupava vigorosamente o cachimbo, seu rosto parecia recuar e avançar dentro da noite, ao lampejo intermitente da pequenina chama. O fósforo apagou-se.
‘Absurdo!’, bradou, ‘É esse o mal de se tentar contar… Aqui estão todos vocês, cada um atracado com dois bons endereços, como um casco com duas âncoras, um açougueiro na esquina, um policial na outra, excelentes apetites e temperatura normal – estão ouvindo – normal do começo ao fim do ano. E alguém vem e diz-me, Absurdo! Absurdo… absurdo uma ova!’ Meus caros amigos, o que se pode esperar de um homem que num momento de puro nervosismo acabara de jogar pela amurada da embarcação um par de sapatos novos? Agora que penso nisso, é incrível que eu não tenha derramado lágrimas. Orgulho-me, de modo geral, de minha fortaleza interior. Eu tinha ficado chocado com a ideia de haver perdido o supremo privilégio de ouvir o talentoso Kurtz. Mas estava enganado, é claro. Oh, sim, ouvi mais que o suficiente. E também estava certo. Uma voz. Ele era pouco mais que uma voz. E ouvi – a dele, dela, aquela voz, outras vozes – todas elas eram um pouco mais que vozes – e a própria recordação daquele período permanece em torno de mim, imponderável, como uma vibração moribunda de uma imensa tagarelice, tola, atroz, sórdida, selvagem ou simplesmente vil, sem qualquer espécie de sentido. Vozes, vozes – até mesmo a própria moça – agora…”
Ele ficou em silêncio por um longo tempo.
“Eu fiz desaparecer o fantasma de seus dons contando uma mentira”, ele começou, de repente. “Moça? O quê? Mencionei uma moça? Oh, ela está fora disso – completamente fora. Elas – as mulheres, quero dizer – estão fora disso. Devemos ajudá-las a se manterem no seu lindo mundo particular, já que o nosso corre o risco de se tornar cada vez pior. Oh, ela tinha de estar fora disso. Vocês deviam ter ouvido o desenterrado corpo do Sr. Kurtz dizendo, ‘Minha Prometida’. Teriam logo notado como ela estava inteiramente fora. E o elevado osso frontal do Sr. Kurtz! Dizem que os cabelos continuam crescendo, às vezes, mas aquele… ah … espécime era impressionantemente calvo. A selva havia tocado suavemente a sua cabeça, e, vejam, era como uma bola… uma bola de marfim; a selva o havia acariciado, e… vejam… ele se encolhera; ela o levara, amara-o, envolvera-o, entrara-lhe nas veias, consumira-lhe a carne, e selara a alma dele com a sua própria por meio de cerimônias inconcebíveis de alguma iniciação diabólica. Ele era o seu mimado e paparicado favorito. Marfim? Eu diria que sim. Montanhas dele, pilhas dele. A velha choupana de barro estava abarrotada até o teto. Era de presumir que não houvesse sobrado uma única presa de elefante no país inteiro, em cima ou embaixo da terra. ‘A maioria é fóssil’, comentou o gerente, depreciativamente. Não eram mais fósseis do que eu: mas eles dizem tratar-se de fóssil sempre que resulta de escavação. Parece que os negros enterram as presas algumas vezes… mas evidentemente não poderiam enterrar aquele lote numa profundidade suficiente para salvar o talentoso Sr. Kurtz de seu destino. Enchemos o vapor com ele, e tivemos de empilhar uma boa parte no convés. Assim ele podia ver e desfrutar enquanto pudesse ver, porque a apreciação desse favor permanecera com ele até o fim. Vocês deviam tê-lo ouvido falar, ‘Meu marfim’. Eu ouvi. ‘Minha prometida, meu marfim, meu posto, meu rio, meu . . .’ – tudo pertencia a ele. Isso me fazia prender a respiração, à espera de ver a selva explodir numa tremenda gargalhada que deslocaria do lugar as estrelas do céu. O que importava era saber a quem ele pertencia, quais eram os poderes das trevas que reivindicavam a sua posse. Essa era a reflexão que fazia com que nos arrepiássemos pelo corpo inteiro. Era impossível – e nem adiantava – tentar imaginar. Ele assumira uma alta posição entre os demônios da terra – quero dizer, literalmente. Vocês não podem compreender. Como poderiam? – com um sólido pavimento debaixo de seus pés, cercados por vizinhos gentis, prontos para apoiá-los ou criticá-los, andando delicadamente entre o açougueiro e o policial, no sagrado terror do escândalo, prisões e manicômios – como podem imaginar a que região particular dos tempos primitivos os desembestados pés de alguém podem levá-lo, por meio da solidão – solidão extrema, sem um policial – por meio do silêncio – extremo silêncio, onde nenhuma voz de advertência de um vizinho gentil pode ser ouvida, sussurrando a opinião pública? Essas coisas pequenas fazem a grande diferença. Quando se vão, precisamos recobrar nossa própria força inata, na própria capacidade de fidelidade. É evidente que podemos ser tolos o bastante para não cometer erros – embotados demais até para saber que estamos sendo assaltados pelos poderes das trevas. É verdade, nenhum tolo jamais barganhou a sua própria alma com o diabo: o tolo é tolo em demasia ou o demônio é demônio em demasia – não sei qual é o caso. Ou você pode ser uma criatura tão elevada que chega a ser surda e cega para tudo o que não seja visões e sons celestiais. Então a terra para você é apenas uma escala – e se viver desse modo será um ganho ou uma perda, não pretenderei afirmar. Mas a maioria de nós não se encaixa num perfil ou no outro. A terra para nós é um lugar para se viver, onde também temos de nos defrontar com visões, com sons, com cheiros, por Deus! Sentir o odor de hipopótamo morto, por assim dizer, sem ser contaminado. E aí, não percebem? É aqui que entra a nossa força, a fé em nossa habilidade para cavar buracos imperceptíveis para enterrar a coisa… nosso poder de devoção, não a nós mesmos, mas a um obscuro e exaustivo trabalho. E isso já é difícil o bastante. Vejam, não estou tentando desculpar ou explicar – estou tentando atender a minha própria necessidade de compreender… Aquele… O Sr. Kurtz… A sombra do Sr. Kurtz. Aquele iniciado espectro vindo do fundo de lugar algum me honrou com sua espantosa confiança antes de sumir inteiramente. Isso ocorreu porque podia falar inglês comigo. O Kurtz original educara-se parcialmente na Inglaterra, e – como teve a bondade de afirmar – suas simpatias estavam no lugar certo. A mãe era meio inglesa, seu pai era meio francês. Toda a Europa havia contribuído para a fabricação de Kurtz; e com o passar do tempo fiquei sabendo que, muito apropriadamente, a Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Bárbaros tinha confiado a ele o preparo de um relatório, que lhe iria servir de guia no futuro. Ele o escrevera. Tive a oportunidade de vê-lo e de lê-lo. Era persuasivo, vibrava com eloquência, mas complexo em demasia, penso. Havia encontrado tempo para escrever dezessete páginas com letra miúda. Mas isso deve ter sido antes que os seus – digamos – nervos sofressem alguns danos, levando-o a presidir certas danças à meia-noite, que terminavam com rituais inenarráveis, os quais – até onde pude relutantemente deduzir do que ouvi em diversas ocasiões – eram oferecidos a ele – vocês entendem? – ao próprio Sr. Kurtz. Mas era uma bela peça literária. O parágrafo inicial pareceu-me, entretanto, à luz de informações posteriores, de mau presságio. Ele começava argumentando que nós, os brancos, considerando o progresso que já tínhamos alcançado, ‘devemos forçosamente ser encarados por eles (os selvagens) como seres sobrenaturais, aproximamo-nos deles com o poder de uma divindade’, e assim por diante. ‘Pelo simples exercício de nossa vontade podemos exercer um poder para o bem praticamente ilimitado’, etc. A partir desse ponto, ele se erguia a uma grande altura, levando-me consigo. O discurso era magnífico, embora difícil de lembrar, vocês sabem. Dava-me a ideia de uma exótica imensidão, governada por uma augusta benevolência. Fez-me arder de entusiasmo. Esse era o ilimitado poder da eloquência – das palavras – das ardentes e nobres palavras. Não havia dicas práticas para interromper o fluxo mágico das frases, a não ser que uma espécie de nota de rodapé na última página, garatujada obviamente tempos depois, numa caligrafia irregular, possa ser considerada como a exposição do método. Era muito simples e, ao final desse comovente apelo, todos os sentimentos altruístas brilhavam em nós, luminosos e terríficos, como um clarão de relâmpago num céu sereno. ‘Exterminemos todos os bárbaros!’ A parte curiosa é que ele aparentemente se esquecera inteiramente daquele valioso pós-escrito, pois, mais tarde, quando num certo sentido ele voltou a si, rogou-me repetidamente para que cuidasse bem do ‘meu panfleto’ (como o chamava), que, certamente, no futuro poderia ter uma influência positiva em sua carreira. Eu estava muito bem informado sobre todas essas coisas e, além do mais, acabei por ficar também encarregado de zelar pela memória dele. Eu fizera o possível por ela para ganhar o direito indiscutível, se assim preferisse, de relegá-la a um eterno descanso na lata de lixo do progresso, entre todos os detritos e, falando figurativamente, todos os gatos mortos da civilização. Mas aí vocês veem, eu não posso escolher. Ele não será esquecido. O que quer que tenha sido, não foi comum. Ele tinha o poder de encantar ou assustar as almas rudimentares, conduzindo-as a uma condenada dança de feiticeiros em sua honra; também podia encher as almas pequenas dos peregrinos com amargos pressentimentos: ele tinha ao menos um amigo devotado, e conquistara uma alma no mundo que não era nem rudimentar nem maculada pelo egoísmo. Não; não posso esquecê-lo, embora não esteja preparado para afirmar que o sujeito valesse exatamente a vida que perdemos para chegar até ele. Sentia uma terrível saudade do meu último timoneiro; sentia saudades dele inclusive quando o seu corpo ainda se encontrava estirado na cabine de comando. Talvez, vocês considerem um estranho exagero o meu pesar por um selvagem que não significava mais que um grão de areia num negro Saara. Bem, vocês não veem? Bem, vocês hão de compreender que ele tinha feito alguma coisa, tinha pilotado o barco; durante alguns meses eu o tive às minhas costas… um auxiliar… um instrumento. Era um tipo de parceria. Ele pilotava para mim – eu tomava conta dele, preocupava-me com as suas deficiências e, então, criara assim uma ligação sutil da qual só tomei consciência quando se rompeu de repente. E a íntima profundidade daquele olhar que ele me deu, quando foi ferido, permanece até hoje em minha memória – como a reivindicação de um longínquo parentesco feita num momento supremo.
“Pobre infeliz! Se ao menos tivesse deixado aquela janela em paz. Ele não podia ser contido, não podia – tal como Kurtz – uma árvore balançada pelo vento. Assim que pus um par de chinelos secos, arrastei-o para fora, não sem antes arrancar o chuço enterrado em seu flanco, operação que confesso ter realizado com meus olhos bem fechados. Seus calcanhares saltaram juntos sobre o pequeno degrau; seus ombros comprimiam o meu peito; eu o abraçava por trás, desesperadamente. Oh, ele era pesado, muito pesado; mais pesado que qualquer outro homem da terra, eu imaginava. Então, sem mais cerimônias, eu o atirei por sobre a amurada. A corrente agarrou-o como se fosse um feixe de relva, e ainda observei quando o corpo rolou duas vezes antes de perdê-lo de vista para sempre. Todos os peregrinos estavam reunidos na coberta, junto com o gerente, perto da cabine do piloto, tagarelando como um bando de gralhas agitadas, e houve um murmúrio escandalizado no meio deles diante da desumana presteza com que eu agira. Por que desejavam manter aquele cadáver ali eu não posso imaginar. Embalsamá-lo, talvez? Mas eu também tinha ouvido um outro murmúrio, e muito sinistro, no convés de baixo. Meus amigos lenhadores estavam igualmente escandalizados, e demonstravam uma razão mais forte – embora eu confesse que o motivo era em si mesmo inadmissível. Oh, inteiramente! Eu havia decidido que se o meu finado timoneiro tivesse de ser comido, haveria de ser pelos peixes, unicamente. Fora um timoneiro de segunda classe enquanto vivo, mas agora que estava morto, havia se tornado uma tentação de primeira classe, e possivelmente cansaria algum problema assustador. Além do mais, eu estava ansioso para assumir o comando, já que o homem do pijama cor-de-rosa mostrava-se um pateta para lidar com o leme.
“Foi o que fiz assim que o simples funeral chegou ao fim. Navegávamos à meia velocidade, mantendo-nos bem no centro do rio, e eu ouvia a conversa à minha volta. Haviam desistido de Kurtz, haviam desistido do posto; Kurtz estava morto, e o posto tinha sido incendiado – e assim por diante. O peregrino ruivo não cabia em si mesmo com a ideia de que ao menos aquele pobre Kurtz tinha sido devidamente vingado, ”Digam-me uma coisa, vocês não acham que fizemos uma bela selvageria naquela selva, hein? O que você acha?” Ele positivamente dançava o sanguinário e patife ruivinho. E quase desmaiou quando viu o homem ferido! Não pude deixar de aproveitar o momento para dizer: ‘De qualquer maneira, vocês fizeram uma bela fumaceira’.
“Eu havia notado, pelo jeito como a folhagem no topo dos arbustos farfalhava e voava para todos os lados, que quase todos os tiros tinham passado muito alto. Não se pode atingir um alvo se não fizer mira e atirar tendo a arma apoiada no ombro: mas aqueles sujeitos atiravam tendo a arma apoiada no quadril, e com os olhos fechados. Voltei a afirmar – e eu estava certo – que a debandada fora causada pelo estridente apito do vapor. Após isso, eles esqueceram Kurtz, e começaram a vaiar-me com protestos indignados.
“O gerente estava de pé, junto ao timão, murmurando confidencialmente a respeito da necessidade de descermos bastante o rio antes do anoitecer, quando avistei na distância uma clareira nas margens do rio e o contorno de algum tipo de edifício. ‘O que é aquilo? ‘, perguntei. Ele bateu palmas, maravilhado, “O posto!’, gritou. Aproximei-me da margem imediatamente, ainda a meia-velocidade.
“Com a ajuda do binóculo avistei a encosta de um morro com umas poucas árvores e nenhuma vegetação rasteira. Um comprido edifício, caindo aos pedaços, no topo, estava meio enterrado atrás do mato; os grandes buracos no telhado de palha pareciam negros quando vistos de longe; a selva fazia o pano de fundo. Não havia muro ou cerca de espécie alguma; mas havia vestígios da existência prévia de algo assim, pois junto da casa meia dúzia de finas estacas permaneciam de pé, enfileiradas, rudemente desbastadas, e com as extremidades ornamentadas com bolas esculpidas. A cerca, ou o que quer que houvesse entre ela havia desaparecido. É claro que a selva cercava tudo aquilo. A margem do rio estava limpa e, na beira da água, vi um branco sob um chapéu que parecia uma roda de carro, acenando insistentemente com o seu braço estendido. Examinando a borda da selva, acima e abaixo, eu estava quase certo de que enxergava movimentos – formas humanas deslizando aqui e ali. Naveguei com prudência, depois desliguei os motores e deixei o vapor à deriva. O homem na margem começou a gritar, apressando-nos ao desembarque. ‘Fomos atacados’, bradou o gerente. ‘Eu sei, eu sei. Mas está tudo bem agora’, gritou de volta o outro, com o máximo do entusiasmo. ‘Venham até cá. Está tudo bem. Estou contente por vê-los.’
“Seu aspecto me fez lembrar alguma coisa que eu tinha visto em algum lugar – alguma coisa engraçada. Enquanto manobrava para encostar o barco, perguntava a mim mesmo, ‘Com quem se parece esse sujeito?’ De repente me lembrei. Ele parecia um arlequim. Sua roupa, feita provavelmente de algodão cru, estava inteiramente coberta de remendos de cores vivas – azuis, vermelhos, amarelos… remendos nas costas, na frente, nos cotovelos, nos joelhos; um debrum colorido no paletó, uma barra escarlate nas calças… E a luz do sol dava a ele uma aparência ao mesmo tempo muito festiva e esmerada, pois se podia perceber com que capricho aqueles remendos tinham sido feitos. Um rosto imberbe e juvenil, uma pele muito clara, feições indefinidas, o nariz descascando, afáveis olhos azuis, sorrisos e carrancas se sucedendo em sua fisionomia franca, como o sol e a sombra numa planície varrida pelo vento.
‘Cuidado, capitão!’, gritou ele, ‘um tronco apareceu aí na noite passada’. ‘O quê? Outro obstáculo?’ Confesso que praguejei vergonhosamente. Por pouco não fazia um rombo no meu estropiado barco, para dar o toque final naquela inefável viagem. O arlequim da beira do rio levantou para mim o seu nariz achatado. ‘O senhor é inglês?’, perguntou, todo sorridente. ‘Você é?’, berrei do leme.
“Os sorrisos desapareceram e ele sacudiu a cabeça, com pesar por me desapontar. Mas logo se animou de novo. ‘Isso não importa”, exclamou, encorajadoramente. ‘Estamos com tempo?’, perguntei. ‘Ele está lá em cima’, respondeu, com um aceno de cabeça na direção do alto do morro e assumindo, de repente, um ar melancólico. Seu rosto era como um céu de outono – nublado num momento, límpido no outro.
”Quando o gerente, escoltado pelos peregrinos, todos eles armados até os dentes, dirigiram-se para a casa, esse sujeito subiu a bordo. ‘Sabe, eu não gosto disso. Esses nativos estão nos arbustos’, afirmei. ‘Ele me assegurou veementemente que tudo estava bem. ‘São pessoas simples’, acrescentou. ‘Bem, estou feliz que tenham vindo. Precisei de todo o meu tempo para mantê-los afastados’, ‘Mas o senhor disse que tudo estava bem’, exclamei. ‘Oh, eles não querem fazer nenhum mal’, ele disse; e quando o olhei com espanto, ele se corrigiu. ‘Não exatamente’. Depois, com vivacidade: ‘Meu Deus, a sua cabine de comando precisa de uma limpeza!’ E logo a seguir me aconselhava a manter bastante vapor na caldeira para fazer funcionar, caso houvesse algum problema. ‘Um bom apito fará mais por vocês do que todos os seus rifles. É um povo simples’, repetiu. Tagarelava num ritmo tão acelerado que estava me deixando aturdido. Parecia estar querendo compensar um longo período de silêncio e, na verdade, chegou a insinuar isso, com uma risada. ‘Você não conversa com o Sr. Kurtz?’, perguntei. ‘Não se pode conversar com aquele homem: só se pode ouvi-lo’, exclamou, com severa exaltação. ‘Mas agora… ‘ Acenou o braço e, num piscar de olhos, encontrava-se nas maiores profundezas da melancolia. Em um momento recobrou a alegria com um salto, tomou as minhas mãos, balançou-as continuamente, enquanto tagarelava: ‘… Irmão marinheiro… honra… prazer… deleite… apresentar-me… russo… filho de um arcebispo… Governo de Tambov… Quê? Tabaco! Tabaco inglês; o excelente tabaco inglês? Isso é generoso. Se eu fumo? Onde já se viu um marujo que não fuma?’
“O cachimbo aliviou-o e gradualmente compreendi que fugira da escola, ganhara o mar num navio russo; tornara a fugir; servira algum tempo em navios ingleses; e estava agora reconciliado com o arcebispo. Insistiu nisso. ‘Mas quando se é jovem, é preciso ver as coisas, adquirir experiência, ter ideias, alargar a mente.’ ‘Aqui”, interrompi. ‘Nunca se sabe! Aqui eu conheci o Sr. Kurtz’, afirmou, jovialmente solene e com censura. Segurei minha língua depois disso. Parece que ele convencera uma empresa holandesa do litoral a equipá-lo com mercadorias e partira rumo ao interior com o coração anuviado, e sem ter ideia do que lhe aconteceria, tal qual um bebê. Andara peregrinando por aquele rio ao longo de quase dois anos, sozinho, isolado de todos e de tudo. ‘Segurei minha língua depois disso. ‘Não sou tão jovem quanto pareço. Tenho vinte e cinco anos’, disse. ‘A princípio, o velho Van Shuyten me mandou para o diabo’, narrou com intenso prazer. ‘Mas me agarrei a ele, e conversei e conversei, até que finalmente ele teve medo que eu tomasse a pata traseira do seu cão favorito, então, deu-me algumas mercadorias baratas e algumas armas, e disse-me que esperava jamais tornar a ver o meu rosto novamente, o bom e velho holandês, Van Shuyten. Mandei-lhe um pequeno carregamento de marfim há cerca de um ano, de modo que não me possa chamar de pequeno ladrão quando eu retornar. Espero que ele tenha recebido. Quanto ao mais, não me importo. Tenho um pouco de lenha empilhada para o senhor. Ali, erguia-se a minha antiga casa. O senhor a viu?’
“Entreguei-lhe o livro de Towson. Ele fez um gesto como se fosse me dar um beijo, mas se conteve. ‘O único livro que me restava, e pensei que o tivesse perdido’, falou, contemplando-o com êxtase. ‘O senhor sabe, acontecem tantos acidentes com um homem que viaja sozinho, o senhor sabe. As canoas, às vezes, afundam e a gente tem de desaparecer quando as pessoas ficam nervosas.’ Ele folheou as páginas. ‘O senhor escreveu essas notas em russo?’, perguntei. Ele concordou com a cabeça. ‘Pensei que estavam escritas em código’, falei. Ele riu, depois ficou sério. ‘Tive muitos problemas para manter essa gente afastada’, afirmou. ‘Queriam matá-lo?’, indaguei. ‘Oh, não!’, ele exclamou, e conteve-se. ‘E por que nos atacaram?’, prossegui. Ele hesitou, depois falou contrafeito: ‘Não querem que ele se vá’. ‘Não querem?’, perguntei curioso. Ele assentiu com a cabeça, num gesto cheio de mistério e sabedoria. ‘Estou lhe afirmando’, exclamou, ‘esse homem abriu a minha mente’. Abriu os braços, olhando para mim com seus pequenos olhos azuis que eram perfeitamente redondos.”
PARTE 3
“Eu olhava para ele, cheio de assombro. Lá estava ele diante de mim, envolto em seus retalhos, como se ele tivesse fugido de uma trupe de mímicos, entusiasmados, fabulosos. Sua existência era improvável, inexplicável, e completamente desconcertante. Ele era um problema insolúvel. Era inconcebível o modo como sobrevivera, como havia chegado tão longe, como havia conseguido permanecer ali. Por que não desaparecera instantaneamente? ‘Eu ia avançando aos poucos’, disse, ‘e depois mais um tanto, até que eu tivesse ido tão longe que não mais soubesse como regressar. Eu tenho tempo de sobra. Eu me arranjo. O senhor deve levar Kurtz o mais rápido – o mais rápido – é o que eu digo’. O brilho da juventude envolveu os seus trapos multicoloridos, a sua indigência, a solidão da intrínseca desolação de suas inúteis peregrinações. Meses a fio – anos a fio – sua vida não valera o soldo de um dia; e ali estava galantemente e despreocupadamente vivo, indestrutível para todos os efeitos, e tudo em virtude de uma decisão tomada na juventude, num momento de audácia irrefletida. Fui seduzido por um tipo de admiração – algo próximo à inveja. Havia um brilho que o fazia prosseguir, a magia o conservara incólume. Era certo que ele nada queria da selva além do espaço para respirar e para seguir adiante. Sua necessidade era existir, e mover-se à custa dos maiores riscos, e com o máximo de privação. Se algum dia, um espírito de aventura absolutamente puro, desinteressado e desprovido de qualquer senso prático chegou a habitar um ente humano, esse ente era aquele jovem coberto de remendos. Quase invejei a posse daquela chama modesta e luminosa. Ela parecia ter consumido a sua ideia de ego tão inteiramente, que mesmo enquanto conversava conosco, esquecíamo-nos que fora ele – o homem diante de nossos olhos – que passara por tudo aquilo. Mas não invejava sua dedicação a Kurtz. Ele não refletira sobre ela. A coisa acontecera e ele a aceitara com impulsivo fatalismo. Devo dizer que a mim isso pareceu, sob todos os aspectos, a coisa mais perigosa que lhe tinha acontecido até então.
“Eles vieram juntos inevitavelmente, como dois navios em calmaria, pertos um do outro e acabaram roçando seus flancos, afinal. Suponho que Kurtz queria uma audiência, porque em certa ocasião, quando acamparam na selva, eles conversaram a noite toda, ou, mais provavelmente, Kurtz tinha falado. ‘Conversamos sobre tudo’, ele disse bastante arrebatado por aquela lembrança, “Esqueci-me de que existia algo chamado sono. A noite passou tão rápida quanto uma hora. Tudo! Tudo!… De amor, também’. ‘Ah, ele lhe falou sobre o amor!’ eu disse, considerando o fato muito divertido. ‘Não é o que o senhor está pensando’, exclamou, quase apaixonadamente. ‘Foi em termos gerais. Ele me fez enxergar certas coisas… coisas’.
“Jogou seus braços para o alto. Estávamos no convés naquela hora, e o chefe dos meus lenhadores, descansando por perto, voltou para ele os seus olhos pesados e brilhantes. Olhei em volta, e não sei por que, mas posso assegurar-lhes que jamais, jamais aquela terra, aquele rio, aquela seiva, e o próprio arco daquele céu resplandecente me pareceram tão desprovidos de esperança e tão sombrios, tão impenetráveis ao pensamento humano, tão impiedosos às fraquezas humanas. ‘E, desde então, o senhor tem estado com ele, é claro’, eu disse.
“Pelo contrário. Parece que o relacionamento entre ambos havia sido rompido por motivos vários. Segundo informou-me orgulhoso, ele havia conseguido tratar de Kurtz em duas ocasiões que estivera enfermo (ele fez alusão a ela como se fosse a alguma façanha arriscada), mas em regra Kurtz errava sozinho nas profundezas da selva. ‘Frequentemente, ao vir para este posto, eu tinha de aguardar dias e mais dias até que ele aparecesse’, disse. ‘Ah, valia a pena aguardar! – às vezes’. ‘O que fazia ele? Explorações, ou o quê?’, perguntei. ‘Oh, sim, evidente.’ Kurtz descobrira muitas aldeias, e um lago também – ele não sabia exatamente em que direção; era perigoso perguntar demais, mas quase sempre essas expedições eram em busca de marfim. ‘Mas ele não tinha mercadorias com as quais negociar nesse período’, objetei. ‘Ainda há uma sobra considerável de cartuchos’, respondeu, desviando seu olhar. ‘Falando francamente, ele saqueou a região’, eu disse. Ele assentiu. ‘Não sozinho, é claro! O homem murmurou algo a respeito das aldeias em torno do tal lago. ‘Kurtz conseguiu que a tribo o seguisse, não foi?’, sugeri. Ele mostrou-se um pouco irrequieto. ‘Eles o adoravam’, disse. O tom dessas palavras foi tão extraordinário que olhei para ele, em busca de uma compreensão mais profunda. Estava curioso para ver sua ansiedade misturada com relutância em falar de Kurtz. O homem enchia a sua vida, ocupava os seus pensamentos, influenciava as suas emoções. ‘O que poderíamos esperar?’, explodiu; ‘ele chegou a eles como com trovões e relâmpagos, o senhor sabe – e eles jamais tinham visto algo assim – e tão terrível. Ele sabia como ser muito terrível. Não pode julgar o Sr. Kurtz como se fosse um homem comum. Não, não, não agora – apenas para lhe dar uma ideia – não me importo de dizer, senhor, ele queria me salvar também, um dia – mas eu não o julgo.’ ‘Atirar no senhor!’, exclamei. ‘Por quê?’ ‘Bem, eu tinha um pequeno carregamento de marfim com que o chefe daquela tribo vizinha à minha casa me presenteara. Veja, eu costumava matar a caça para eles. Bem, ele queria o marfim, e não queria ouvir meus argumentos. Declarou que atiraria em mim se não lhe entregasse o marfim e depois sumisse da região, porque ele tinha o poder para fazê-lo, e tinha vontade de fazê-lo, e não havia nada na terra que poderia impedi-lo de matar quem ele bem entendesse. E isso era bem uma verdade. Dei-lhe o marfim. Que me importava! Mas não desapareci. Não, não. Não poderia deixá-lo. Tinha de ser cauteloso, é claro, até que pudéssemos voltar a ser amigos. Ele ficou doente pela segunda vez. Depois tive de manter-me a distância, mas eu não me importava. Ele passava a maior parte de seus dias naquelas aldeias junto ao lago. Quando vinha até o rio, às vezes, acolhia-me bem, outras vezes, eu precisava agir com toda a cautela. Aquele homem sofria demais. Odiava tudo isto, mas por alguma razão não conseguia livrar-se daqui. Quando tive uma chance, implorei-lhe que tentasse partir enquanto era tempo; oferecia-me para regressar com ele. E ele dizia sim, e depois ele ficava; partia em outra caçada ao marfim; desaparecia durante semanas; esquecia-se de si mesmo em meio àquele povo… esquecia-se de si mesmo, o senhor sabe’. ‘Ora! É um louco’, afirmei. Ele protestou indignado. ‘O Sr. Kurtz não podia estar louco. Se eu pudesse ter ouvido o que ele havia dito fazia apenas dois dias não teria ousado insinuar semelhante coisa…’ Eu tinha apanhado meu binóculo enquanto conversávamos, e estava observando a margem, vasculhando o limite da selva em cada lateral e atrás da casa. A consciência de que havia gente atrás daqueles arbustos, gente tão silenciosa, tão quieta – tão silenciosa e quieta quanto a casa arruinada na colina – deixava-me incomodado. Não havia sinal na face da natureza daquela espantosa história que não estava sendo exatamente contada, mas sugerida a mim, eram desoladas exclamações, completadas com jogadas de ombro, frases interrompidas, insinuações que terminavam com suspiros profundos. A selva estava imóvel, como uma máscara – pesada como a porta fechada de uma prisão; eles olhavam com seu ar de oculta sabedoria, paciente expectativa, inabordável silêncio. O russo estava explicando para mim que fazia pouco tempo que o Sr. Kurtz tinha vindo para a beira do rio, trazendo consigo todos os guerreiros da tribo do lago. Ele estivera ausente por vários meses – fazendo-se adorar, suponho – e descera inesperadamente, com a intenção, a julgar pelas aparências, de realizar uma incursão do outro lado do rio ou de descer a correnteza. Evidentemente o apetite por mais marfim levara a melhor sobre – como devo dizer? – as aspirações menos materiais. Todavia, sua saúde havia piorado muito de repente. ‘Soube que ele estava prostrado, sem perspectivas de melhoras, e então subi… assumi o risco’, disse isso. ‘Oh! Ele está mal, muito mal.’ Dirigi o meu binóculo para a casa. Não havia sinais de vida, mas havia o telhado arruinado, a comprida parede de barro aparecendo por sobre o mato, com três pequenas janelas quadradas, sem qualquer simetria: tudo aquilo trazido ao alcance de minha mão, por assim dizer. E, então, fiz um movimento brusco, e uma das últimas estacas daquela cerca desaparecida saltou no campo de meu binóculo. Vocês se lembram de que fiquei chocado, à distância, por certas tentativas de ornamentação um tanto notáveis, no ruinoso aspecto do lugar? Agora, de repente, eu via as coisas mais de perto, e minha primeira reação foi recuar bruscamente a cabeça, como se tivesse recebido uma pancada. Comecei, então, a examinar com o binóculo estaca por estaca, e percebi o meu engano. Aquelas bolas não eram ornamentais, mas simbólicas; eram expressivas e perturbadoras, chocantes e desconcertantes – alimento para o cérebro, mas também para os abutres, se tivesse havido algum olhando do céu cá para baixo: mas de qualquer modo para aquelas formigas que eram laboriosas o bastante para escalar as estacas. Teriam sido ainda mais impressionantes aquelas cabeças nas estacas, se suas faces não estivessem viradas para a casa. Apenas uma, a primeira que eu divisara, estava voltada para mim. Não fiquei tão chocado quanto vocês possam imaginar. O pulo que dei para trás não foi nada realmente, apenas um movimento de surpresa. O que eu esperava ver ali era uma bola de madeira, vocês entendem. Retomei deliberadamente à primeira que avistara – e lá estava ela, negra, seca murcha, com olhos fechados – uma cabeça que parecia adormecida no alto daquela estaca e que, com seus lábios secos e murchos, deixando à mostra uma estreita fileira de dentes, estava sorrindo, também, sorrindo continuamente de algum sonho eterno e jocoso, naquele eterno sono.
“Eu não estou a revelar quaisquer segredos comerciais. Na verdade, o gerente disse depois que os métodos do Sr. Kurtz haviam arruinado o posto. Não tenho opinião sobre esse ponto, mas eu quero que vocês entendam claramente que não havia nada exatamente rentável no fato de aquelas cabeças estarem ali. Elas só mostraram que o Sr. Kurtz não tinha restrição na satisfação de suas várias paixões, que ele sentia falta de algo – alguma materiazinha que, quando surgia a necessidade premente, não podia ser encontrada embaixo de sua eloquência magnífica. Se ele sabia dessa deficiência, não posso dizer; acho que o conhecimento lhe chegou afinal – mas somente bem no final. Mas a selva descobrira-o cedo e lograra sobre ele uma terrível vingança pela fantástica invasão. Acho que lhe sussurrou coisas sobre si mesmo que ele não conhecia; coisas de que ele não tinha a concepção até que ele se aconselhou com esta grande solidão – e o sussurro provou ser irresistivelmente fascinante. Ecoava alto dentro dele porque ele no fundo era vazio… Abaixei o binóculo, e a cabeça que tinha aparecido perto o suficiente para que eu falasse com ela, pareceu ter saltado, de súbito, a uma distância inacessível de mim.
“O admirador do Sr. Kurtz estava um pouco cabisbaixo. Com voz apressada, indistinta, pôs-se a assegurar-me que ele não se atrevera a remover aqueles – digamos – símbolos. Ele não temia os nativos; eles não se moveriam até que o Sr. Kurtz falasse. Sua ascendência era extraordinária. Os acampamentos daquela gente cercavam o local, e os líderes iam ter com ele diariamente. Eles se arrastavam… ‘Não tenho o menor interesse em saber qual o ritual que usavam para se aproximar do Sr. Kurtz’, gritei. Curioso, a sensação que me invadiu de que esses detalhes seriam mais intoleráveis do que a visão daquelas cabeças espetadas nos paus, sob as janelas do Sr. Kurtz. Afinal, era apenas uma visão selvagem, e enquanto eu parecia ter sido transportado, num único lance, para alguma região sombria de horrores sutis, onde a pura e simples selvageria era realmente um alívio, já que era algo que tinha o direito de existir – obviamente – debaixo do sol. O jovem olhou-me com surpresa; suponho não lhe haver ocorrido que o Sr. Kurtz não era nenhum ídolo meu. Ele esquecera que eu não ouvira aqueles esplêndidos monólogos sobre… o quê, mesmo? – o amor, a justiça, a conduta da vida e não sei o que mais; ele se arrastava como se fosse o mais selvagem entre todos. ‘Eu não fazia ideia das condições’, disse-me, ‘essas cabeças eram cabeças de rebeldes’. Deixei-o profundamente chocado ao soltar uma risada. Rebeldes! Qual seria a próxima definição que eu iria ouvir? Qual seria a definição seguinte que eu estava para ouvir. Houvera inimigos, criminosos, e trabalhadores – e esses eram rebeldes. Aquelas cabeças rebeladas pareciam-me bastante subjugadas em cima daquelas estacas. ‘O senhor não pode imaginar como esse tipo de vida representa uma verdadeira provação para um homem como Kurtz’, exclamou o último discípulo de Kurtz. ‘Bem, e quanto ao senhor?’, indaguei. ‘Eu? Eu! Sou um homem simples. Não tenho grandes pensamentos. Não quero coisa alguma de ninguém. Como pode comparar-me ao…?’ Seus sentimentos estavam exaltados demais para falar e, de repente, entrou em colapso. ‘Não compreendo’, gemeu. ‘Tenho feito o possível para mantê-lo vivo, e isso é o que basta. Não tive participação em nada disso. Não tenho habilidades. Há meses que não existe aqui uma só gota de remédio ou qualquer coisa que sirva para a dieta de um doente. Ele foi vergonhosamente abandonado. Um homem como ele, com todas aquelas ideias! É vergonhoso… vergonhoso! Eu … eu… faz dez noites que não durmo…’
“Sua voz se perdeu no silêncio da noite. As longas sombras da selva haviam deslizado pelo morro enquanto conversávamos e avançado muito além da choupana arruinada e sua simbólica fileira de estacas. Tudo aquilo fora envolvido pela escuridão, enquanto nós ali embaixo ainda nos encontrávamos sob a luz do sol, e o trecho do rio adiante da clareira reluzia num esplendor estático e deslumbrante, com uma curva lamacenta e obscurecida acima e mais uma abaixo. Nem uma alma viva foi vista na costa. Os arbustos não farfalhavam.
“De repente, da esquina da casa, um grupo de homens apareceu, como se tivesse brotado do chão. Eles tinham mato pela cintura e formavam um corpo compacto, carregando uma maca improvisada no meio deles. Instantaneamente, no vazio da paisagem, ouviu-se um grito cuja estridência perfurou o ar como uma flecha pontiaguda voando bem no rumo do coração da terra, e, como por encanto, um caudal de seres humanos – todos nus – empunhando chuços, arcos, escudos, de olhar desvairado e gestos selvagens, derramaram-se na clareira pela selva sombreada e absorta. Os arbustos se agitaram, a relva balançou durante algum tempo, e depois tudo ficou em silêncio, em atenta imobilidade.
“‘Agora, se ele não disser a coisa certa a eles, estamos todos terminados’, disse o russo junto de mim. O punhado de homens que carregava a maca tinha parado também, a meio caminho do barco, como se petrificados. Vi quando o homem na maca sentou-se, esguio e com o braço erguido, acima da altura dos ombros dos carregadores. ‘Vamos esperar que o homem que sabe falar tão bem sobre o amor em geral consiga encontrar alguma razão particular para nos poupar desta vez’, eu disse. Ressentia-me amargamente do absurdo perigo da situação em que nos encontrávamos, como se o fato de estar à mercê daquele fantasma atroz fosse uma contingência desonrosa. Não ouvíamos um único som, mas através do binóculo, enxerguei o fino braço estendido em posição de comando, o queixo movendo-se, os olhos daquela aparição brilhando sombriamente, distante, com a sua cabeça ossuda que acenava em convulsão grotesca. Kurtz – Kurtz – isso significa curto em alemão, não é? Pois bem, o nome tinha tanto de verdade quanto tudo o mais em sua vida – e em sua morte. Parecia ter ao menos uns dois metros e dez centímetros de altura. A sua coberta caíra, e seu corpo emergira miserável e apavorante como que de dentro de uma mortalha. Eu enxergava as suas costelas que se agitavam todas, os ossos de seu braço acenando. Era como se uma imagem animada da morte, esculpida em marfim envelhecido, estivesse sacudindo a mão com ameaças a uma multidão paralisada de homens feita de bronze escuro e reluzente. Vi-o abrir a boca enorme – e isso lhe deu uma aparência sinistra e voraz, como se ele quisesse engolir todo o ar, toda a terra, todos os homens que estavam à sua frente. Uma voz profunda alcançou-me debilmente. Ele devia estar gritando. A maca estremeceu quando os carregadores cambalearam adiante e, quase ao mesmo tempo, percebi que a multidão de selvagens começava a se desvanecer sem que houvesse nenhum movimento visível de recuo, como se a selva que havia expelido tão subitamente aqueles seres, agora os sugasse de repente, como o ar é puxado numa longa aspiração.
“Alguns dos peregrinos atrás das macas carregavam as suas armas – duas espingardas, um potente rifle e um leve revólver carabina – os raios daquele Júpiter lamentável. O gerente inclinou-se sobre ele murmurando, enquanto ele andava ao lado de sua cabeça. Levaram-no para uma das cabinas – um cômodo que comportava apenas uma cama e uns dois tamboretes, vocês sabem. Havíamos trazido a sua correspondência atrasada, e muitos envelopes rasgados e cartas abertas pareciam um lixo que enchia sua cama. A mão dele remexia debilmente no meio dos papéis. Fiquei impressionado com o fogo que brilhava nos seus olhos e a serena frouxidão de seu rosto. Ele não era o total esgotamento da doença. Ele não dava a impressão de estar sentindo nenhuma dor. Aquela sombra parecia saciada e calma, como se naquele momento estivesse saturada de todas as emoções.
“Ele puxou uma das cartas, e, olhando direto nos meus olhos, disse: ‘Estou alegre em conhecê-lo’. Alguém tinha escrito a ele sobre mim. Aquelas recomendações especiais vinham à tona de novo. Uma voz! Uma voz! Era grave, profunda, vibrante, enquanto o homem não parecia capaz de um sussurro. No entanto, ele teve força suficiente dentro dele – sem dúvida artificial – para quase acabar conosco, como vocês irão ver a seguir.
“O gerente surgiu silenciosamente à porta; eu saí imediatamente e ele fechou a cortina à minha passagem. O russo, observado curiosamente pelos peregrinos, olhava para a margem. Segui a direção do seu olhar.
“Era possível distinguir, na distância, negros vultos humanos, correndo indistintamente contra a sombria borda da selva e, perto do rio, duas figuras de bronze, apoiando-se em lanças compridas, erguiam-se à luz do sol sob fantásticos adornos de cabeça de peles malhadas, belicosos e paralisados em um repouso de estátua. E da direita para a esquerda, ao longo da praia ainda iluminada, aproximava-se uma estranha e deslumbrante aparição sob a forma de uma mulher.
“Ela caminhava com passos medidos, envolta em tecidos listrados com franjas, pisando a terra orgulhosamente, com um ligeiro tilintar e o brilho de ornamentos bárbaros. Caminhava de cabeça erguida, o cabelo arranjado ao feitio de um capacete; tinha perneiras de bronze até os joelhos, luvas de fios de bronze até os cotovelos, uma pinta escarlate na face morena e inumeráveis colares de contas de vidro à volta do pescoço; de seu corpo pendiam bizarras coisas, amuletos, dádivas dos feiticeiros, que tremeluziam a cada passo seu. O que trazia sobre a sua pessoa devia valer várias presas de elefante. Era selvagem e soberba, tinha olhos selvagens e magníficos: havia algo de sinistro e pomposo em seu passo deliberado. E no silêncio que se estendeu subitamente por toda aquela entristecida terra, toda aquela vasta solidão, o imenso corpo misterioso e fecundo da vida parecia contemplá-la, meditativo, como se olhasse para a imagem de sua própria alma ardente e apaixonada.
“Ela veio caminhando até chegar defronte do nosso barco e, ali parou, virando-se para nós. A sua sombra comprida caía até a beira da água. Seu rosto tinha um ar trágico e desvairado, reflexo de uma dor profunda, surda, desesperada, em que se mesclava o temor de uma penosa disposição prontamente delineada. Ela ficou parada a nos olhar, imóvel, e – à semelhança da selva – com um ar de quem medita tristemente sobre algum propósito inescrutável. Um minuto se passou e, então, ela deu um passo à frente. Houve um tênue tilintar, um reluzir de metal dourado, uma agitação de tecidos franjados, e ela parou como se o coração tivesse falhado. O rapaz ao meu lado resmungou. Os peregrinos murmuraram às minhas costas. Ela olhou para todos nós como se a sua vida dependesse da firmeza inabalável de seu olhar. De repente, abriu os braços nus e ergueu-os rigidamente acima da cabeça, como que tomada por um desejo incontrolável de tocar o céu e, ao mesmo tempo, as sombras velozes projetavam-se pela terra, envolviam o rio e o vapor num abraço sombrio. Um silêncio formidável pairava sobre a cena.
“Ela voltou-se lentamente e continuou o seu caminho, seguindo ao longo da margem e penetrando na selva à esquerda. Apenas uma vez seus olhos brilharam em nossa direção em meio à escuridão da selva, antes de desaparecer.
“‘Se ela tivesse mostrado intenção de subir a bordo acho que eu lhe daria um tiro’, disse o homem dos remendos, nervosamente. ‘Eu tenho arriscando a minha vida diariamente nas duas últimas semanas tentando mantê-la afastada da casa. Um dia, ela entrou e armou uma confusão danada por causa desses míseros trapos que peguei no depósito para remendar minhas roupas. Eu não estava decentemente vestido. Pelo menos achei que foi por isso, pois ela esbravejou diante de Kurtz durante uma hora, apontando de vez em quando para mim. Não entendo o dialeto da tribo. Para minha sorte, acho que Kurtz estava doente demais naquele dia para se importar, ou teria me dado mal. Não consigo entender… Não… é demais para mim. Ah, mas agora tudo acabou.’
“Nesse momento, ouvi a voz penetrante de Kurtz por trás da cortina: ‘Salva-me!’ ‘Salvar o marfim, você quer dizer’. ‘Não me venha com essa. Salva-me! Ora, já tive de salvá-lo. Você está atrapalhando meus planos agora. Doente! Doente! Não estou tão doente quanto você gostaria que estivesse. Mas isso não importa. Ainda levarei avante as minhas ideias – eu voltarei. Mostrarei a você o que pode ser feito. Você e suas ideias desprezíveis… você está interferindo comigo. Eu voltarei. Eu… ‘
“O gerente saiu. Deu-me a honra de pegar-me pelo braço e levar-me para um canto. ‘Ele está muito mal, muito mal’, disse. Ele considerou necessário um suspiro, mas esqueceu de ser consistentemente triste. ‘Fizemos tudo o que podíamos por ele, não é verdade? Mas não há como esconder o fato; o Sr. Kurtz causou mais prejuízos do que benefícios à Companhia. Ele não percebeu que o momento ainda não era propício para uma ação mais enérgica. Cautela … cautela… é esse o meu lema. Devemos ser cautelosos ainda. O posto está fechado para nós temporariamente. Deplorável! O comércio todo vai sofrer com isso. Não nego que exista marfim em grande quantidade – fóssil em sua maior parte. Devemos salvá-lo, a qualquer custo… mas veja como nossa posição é precária… e por quê? Porque o método é insano.’ ‘O senhor’, disse eu, olhando para a margem, ‘chama isso de método insano?’ ‘Sem dúvida’, exclamou ele, com fervor. ‘Você não acha?’ ‘Mas não há método algum’, murmurei após algum tempo. ‘Exatamente’, exclamou. ‘Eu previa isso. Demonstra uma completa falta de juízo. É meu dever apontar para isso da maneira apropriada.’ ‘Oh’, disse eu; ‘aquele sujeito… como é mesmo o nome dele?… o oleiro, fará um relatório apresentável para o senhor.’ Ele pareceu perturbado por um instante. Tinha a impressão que jamais havia respirado uma atmosfera tão vil, voltei meus pensamentos para Kurtz, em busca de alívio – decididamente de alívio. ‘Apesar de tudo, acho que o Sr. Kurtz é um homem notável’, disse eu, com ênfase. Ele teve um sobressalto, atirou-me um olhar frio e pesado, disse bem baixinho que ‘ele era’ e deu as costas para mim. Minha hora de consideração acabara ali; vi-me confundido como partidário de Kurtz e seus métodos para os quais o momento não havia chegado: eu era insano. Ah, mas já era alguma coisa ter ao menos uma opção entre pesadelos.
“Na realidade, eu havia me voltado para a selva, não para o Sr. Kurtz, que devo admitir, estava praticamente morto e enterrado. E, por um momento, pareceu-me que eu também fora enterrado em uma grande cova, abarrotada de indizíveis segredos. Senti um peso intolerável oprimindo-me o peito, o cheiro da terra molhada, a presença invisível de corrupção vitoriosa, a escuridão de uma noite inacessível… O russo bateu-me no ombro. Ouvi-o resmungar e gaguejar qualquer coisa a respeito de ‘irmão marinheiro’ – não poderiam esconder – conhecimento de assuntos que afetam a reputação do Sr. Kurtz.’ Esperei por ele, evidentemente, o Sr. Kurtz não estava no seu túmulo; suspeito que, para ele, Kurtz era um dos imortais. ‘Bem!’, disse eu, finalmente, ‘fale. Na verdade, eu sou amigo do Sr. Kurtz…por assim dizer.’
Ele declarou, com grande formalidade, que se nós não tivéssemos a ‘mesma profissão’, ele manteria o assunto em segredo, sem se importar com as consequências. ‘Suspeitava que houvesse muita má vontade da parte daqueles brancos que…’ ‘Você tem razão’, disse eu, lembrando-me de certa conversa que me chegara aos ouvidos. ‘Na opinião do gerente você devia ser enforcado.’ A preocupação que ele mostrou ao ouvir isso me divertiu, a princípio. ‘Acho bom eu dar o fora de mansinho’, disse ele sinceramente. ‘Nada mais posso fazer por Kurtz agora, e eles logo encontrariam algum pretexto. O que poderia impedi-los? Há um posto militar a trezentas milhas daqui.’ ‘E para falar a verdade, o melhor que você faz é ir embora’, disse eu, ‘se tiver amigos entre os selvagens das redondezas’. ‘Muitos’, respondeu, ‘São gente simples… e eu nada quero, o senhor sabe.’ Ficou parado, mordendo os lábios, e depois disse: ‘Não quero que nenhum mal aconteça a esses brancos daqui, mas, claro, estava pensando na reputação do Sr. Kurtz… mas o senhor é ‘meu irmão do mar’ e …’ ‘Não se preocupe’, falei ao fim de algum tempo. ‘A reputação do Sr. Kurtz está a salvo comigo.’ Eu não sabia o quanto havia de verdade nessas minhas palavras.
“Informou-me, baixando a voz, que fora Kurtz quem ordenara o ataque contra o vapor, ‘Às vezes, odiava a ideia de ser levado daqui… E, outras vezes… Mas eu não entendo dessas coisas. Sou um homem simples. Ele achou que poderia assustá-lo… que o senhor desistiria, imaginando que ele estivesse morto. Eu não tinha meios de detê-lo. Oh, este último mês foi terrível para mim… ‘ ‘Muito bem’, falei. ‘Ele está bem agora. ‘ ‘É…’, murmurou ele, aparentemente sem muita convicção. ‘Obrigado’, falei; ‘vou manter os olhos bem abertos.’ ‘Mas de maneira disfarçada…hein?’, pediu ele, ansiosamente. ‘Mas em silêncio, hein?’ pediu ansiosamente. ‘Seria terrível para a sua reputação se alguém aqui…’ Prometi discrição completa com uma expressão de grande seriedade. ‘Tenho uma canoa e três negros à minha espera não muito longe daqui. Vou-me embora. O senhor poderia me ceder alguns cartuchos de Martini-Henry?’ Claro que podia, e foi o que fiz, com o necessário sigilo. Ele se serviu também, dando-me uma piscadela, de um pouco do meu fumo. ‘Para um homem do mar, o senhor entende o bom fumo inglês.’ À porta da cabine de comando, ele se voltou, ‘Diga-me uma coisa, por acaso o senhor não terá aí um par de sapatos sobrando?’ Ergueu uma perna. ‘Veja’. As solas estavam amarradas por tiras que continham nós, como uma sandália, sob os pés nus. Alcancei um par antigo, que ele olhou com admiração antes de enfiá-lo embaixo de seu braço esquerdo. Em um de seus bolsos (vermelho) transbordavam os cartuchos, e de outro (azul-escuro), espreitava a ponta da ‘Investigação de Towson’, etc., etc. Ele parecia considerar-se perfeitamente equipado para um novo encontro com a selva. ‘Ah, jamais, jamais me encontrarei com um homem daqueles de novo. O senhor devia tê-lo ouvido recitar poesia – de sua própria autoria, além do mais, ele me disse. Poesia!’ Ele revirava os olhos ao se lembrar dessas delícias. ‘Oh, ele ampliou-me os horizontes!’ ‘Adeus”, eu disse. Ele apertou-me a mão e desapareceu na noite. Às vezes, eu me pergunto se realmente o vi, se é possível ter existido semelhante fenômeno!…
“Quando acordei pouco depois da meia-noite veio-me à mente a sua advertência, com a velada alusão a um perigo que naquela escuridão marchetada de estrelas me pareceu bastante real para me fazer levantar a fim de dar uma olhada ao meu redor. Sobre a colina uma grande fogueira ardia, devidamente iluminando um canto tortuoso da casa do posto. Um dos agentes, com um piquete de alguns dos nossos negros, armados para esse fim, tomava conta do marfim; mas nas profundezas da selva, rubros fulgores que balançavam, que pareciam afundar e emergir do solo, em meio às confusas formas de coluna de imenso negror, mostravam a exata posição do acampamento onde os adoradores do Sr. Kurtz mantinham sua vigília inquieta. As monótonas batidas de um grande tambor enchiam o ar de surdas vibrações e prolongadas ressonâncias. O constante e frouxo som de muitos homens cantando, cada um para si mesmo; algum misterioso encantamento saía da escura e lisa muralha da selva como o zunido das abelhas saindo de uma colmeia, e tinha um estranho efeito narcótico sobre os meus sentidos mal despertados. Acho que cochilei debruçado na amurada, até o momento em que uma algazarra repentina, uma violenta explosão de delírio represado me fez despertar, estarrecido e perplexo. O barulho cessou repentinamente, e a fala frouxa baixa prosseguiu, com um efeito de um audível e tranquilizante silêncio. Olhei casualmente para dentro da pequena cabine. Uma luz ardia dentro, mas o Sr. Kurtz não se encontrava lá.
“Eu acho que eu teria levantado um clamor se eu tivesse acreditado em meus olhos, mas não dei crédito a princípio – tal era a impossibilidade da coisa. A coisa parecia tão impossível. O fato é que eu estava completamente paralisado de terror, de puro e abstrato terror, que nada tinha a ver com qualquer forma definida de perigo físico. O que tornou essa emoção tão arrasadora foi – como poderei defini-lo? – o choque moral que recebi, como se algo inteiramente monstruoso, intolerável ao pensamento e odioso para a alma, tivesse sido lançado sobre mim inesperadamente. Isso durou, é óbvio, apenas uma fração de segundo e, então, o senso comum de perigo vulgar, a possibilidade de uma súbita investida e um massacre, ou algo desse tipo, que eu percebia iminente, foi positivamente bem-vindo e reconfortante. Isso me pacificou, de fato, tanto que não dei o alarme.
“Lá estava um agente todo abotoado dentro de um grande casaco e dormindo numa cadeira sobre o convés, a menos de um metro de mim. A gritaria não o tinha acordado; ele ressonava suavemente. Deixei-o entregue ao seu sono e saltei para terra. Não traí o Sr. Kurtz – foi-me ordenado que eu jamais o traísse – estava escrito que eu deveria ser leal ao pesadelo de minha escolha. Estava ansioso para lidar sozinho com aquela sombra – e até hoje eu não sei por que eu estava com tanto ciúme de compartilhar com qualquer um a escuridão peculiar daquela experiência.
“Assim que cheguei à margem avistei uma trilha – uma trilha larga que atravessava o mato. Recordo-me com que exultação disse a mim mesmo: ‘Ele não pode andar – ele está engatinhando – peguei-o. ‘ A grama estava molhada de orvalho. Comecei a andar depressa, com os punhos cerrados. Acho que me passava vagamente pela cabeça a ideia de saltar sobre ele e dar-lhe uma sova. Não estou bem certo. Tive alguns pensamentos imbecis. A velha que tricotava com o gato no colo intrometeu-se em minhas lembranças como a pessoa mais imprópria para estar sentada no outro lado de uma situação como aquela. Vi uma fileira de peregrinos cuspindo chumbo no ar com suas Winchesters mantidas à altura dos quadris. Pensei que jamais regressaria ao vapor, e imaginei-me vivendo sozinho e desarmado na selva até uma idade bem avançada. Essas coisas bobas, vocês sabem. Lembro-me também de ter confundido o toque do tambor com as batidas do meu coração, tendo ficado satisfeito com a sua tranquila regularidade.
“Continuei a seguir a trilha, entretanto, mais adiante parei e fiquei à escuta. A noite estava muito clara; um escuro espaço azul falseando de orvalho e com a luz das estrelas, no qual vultos negros erguiam-se perfeitamente imóveis. Julguei perceber um movimento à minha frente. Eu me sentia estranhamente seguro de tudo nessa noite. Na verdade, deixei a trilha e saí correndo num largo semicírculo (creio piamente que rindo sozinho) para adiantar-me àquela agitação, àquele movimento que eu avistara – se de fato eu tinha visto algo. Eu circundava Kurtz como se aquilo fosse um jogo de meninos.
“Encontramo-nos de repente, e eu teria caído sobre ele se ele não tivesse percebido minha aproximação e se levantado a tempo. Pôs-se de pé, cambaleante – um vulto comprido, pálido, indistinto, como um vapor exalando da terra, a oscilar ligeiramente, nebuloso e mudo, ali diante de mim, enquanto, às minhas costas, as fogueiras tremeluziam no meio das árvores e, da selva, subia o murmúrio de muitas vozes. Eu o interceptara astutamente; mas quando de fato o confrontei, parece que retomei os meus sentidos, e enxerguei o perigo em suas devidas proporções – Não estava de modo algum acabado. Suponhamos que ele começasse a gritar? Embora mal pudesse ficar de pé, ainda havia bastante energia em sua voz. ‘Vá embora… esconda-se’, disse ele, com aquele tom profundo. Era horrível. Olhei para trás. Estávamos a trinta metros da fogueira mais próxima. Um vulto negro ergueu-se, avançou com suas longas e negras pernas, acenando com seus longos e negros braços através do clarão. Tinha chifres – de antílope, creio – na cabeça. Algum bruxo ou feiticeiro, sem dúvida, de aparência bastante demoníaca. ‘O senhor sabe o que está fazendo?’, sussurrei. ‘Perfeitamente’, respondeu, elevando a voz para pronunciar essa única palavra, que me soou muito distante e ainda assim alta, como uma saudação num alto-falante. ‘Se fizer barulho, estamos perdidos’, pensei comigo. Evidentemente, não era caso para troca de socos, mesmo sem levar em conta a aversão natural que eu sentia em bater naquela sombra… naquela coisa errante e atormentada. ‘O senhor estará perdido’, falei, ‘totalmente perdido.’ A gente tem, de vez em quando, um lampejo de inspiração, vocês sabem. O fato é que eu disse a coisa certa, embora, na verdade, fosse impossível a ele estar mais irremediavelmente perdido do que já se achava naquele exato momento em que os alicerces da nossa amizade estavam sendo assentados…para suportar… suportar… até o fim… até muito além do fim.
“‘Eu tinha planos imensos’, ele murmurou indeciso. ‘Sim’, disse eu. ‘mas, se tentar gritar, esmago sua cabeça com…’ Não havia nem um pau nem uma pedra por perto. ‘Vou lhe enforcar de verdade’, corrigi. ‘Estava no limiar de coisas grandes’, alegou, com voz saudosa e num tom tão melancólico, que fez meu sangue correr gelado pelas artérias. ‘E agora me vem esse patife, esse imbecil …’ ‘A sua fama na Europa está garantida de qualquer forma’, declarei com firmeza. Eu não queria me ver forçado a enganá-lo, entendem… Na verdade, do ponto de vista prático, isso seria de muito pouca utilidade. Tentei quebrar o encanto – o pesado e mudo encanto da selva – que parecia atraí-lo para seu impiedoso seio, ao despertar esquecidos e brutais instintos, através da lembrança de paixões gratificantes e monstruosas. Eu estava certo de que fora isso, unicamente isso, que o havia arrastado até a borda da floresta, pelo meio do mato rasteiro, rumo ao clarão das fogueiras, ao ritmo latejante dos tambores, ao murmúrio de encantamentos diabólicos; unicamente isso havia seduzido sua alma desregrada, fazendo com que ultrapassasse os limites das aspirações permitidas. E – não percebem? – o terror daquela situação não residia no risco de levar uma paulada na cabeça – embora eu tivesse vívida consciência desse perigo, também – mas no fato de eu ter de lidar com um ser a quem eu não podia apelar em nome de coisa alguma, elevada ou inferior. Tinha, como faziam os negros, de invocá-lo – a ele mesmo – à sua própria exaltada e incrível degradação. Não havia nada acima ou abaixo dele, eu sabia disso. Ele metera os pés na Terra, desvencilhando-se dela. O homem era espantoso! Havia reduzido a própria Terra a pedaços – aos pontapés – e agora estava só; e eu, defronte dele, não sabia dizer se pisava no chão ou flutuava no ar. Tenho contado a vocês o que falamos… repetindo as frases que pronunciamos, mas de que adianta? Eram palavras comuns, do dia a dia – os sons familiares, vagos, trocados corriqueiramente ao despertar de cada manhã. Mas e daí? Para mim, elas traziam em si a fabulosa insinuação de palavras ouvidas em sonhos, de frases proferidas em pesadelos. E a sua alma! Se já houve alguém que lutou com uma alma, esse alguém sou eu. E olhem que eu não estava discutindo com nenhum demente. Acreditem ou não, sua mente encontrava-se em perfeita lucidez, concentrada, é verdade, nele próprio com intensidade medonha, mas lúcida: e nisso residia minha única oportunidade… a não ser, é claro, a de matá-lo ali mesmo, o que não era uma boa ideia, pois faria um barulho inevitável. Mas sua alma havia enlouquecido. Ficando sozinho na selva, olhara para dentro de si mesmo e, por Deus! Garanto a vocês que enlouquecera. Eu tinha – creio que para pagar meus pecados – de passar por aquela provação de olhar para dentro dele também. Nenhum rasgo de eloquência seria capaz de destruir tão arrasadoramente a nossa crença na humanidade quanto a sua crise final de sinceridade. Lutava consigo mesmo, também. Eu a tudo assistia, vendo-o… ouvindo-o. Vi o mistério inconcebível de uma alma que não conhecia barreiras, nem fé, nem medo, embora lutasse cegamente contra si própria. Eu soube manter a cabeça razoavelmente fria, mas quando finalmente consegui estendê-lo de novo no leito minha testa estava banhada de suor e minhas pernas tremiam como se eu tivesse carregado meia tonelada nas costas, por aquele morro abaixo. E, no entanto, eu havia apenas servido de apoio, seus braços ossudos em volta do meu pescoço – e ele não era muito mais pesado do que uma criança.
“Quando partimos no dia seguinte, ao meio-dia, a multidão, de cuja presença atrás da cortina de árvores eu estivera extremamente consciente durante o tempo todo, seguiu novamente para fora da selva, ocupando a clareira e cobrindo toda a encosta do morro de corpos nus e bronzeados, trêmulos e ofegantes. Fiz o vapor subir um pouco o rio, depois dei meia-volta e comecei a descer a correnteza, com dois mil olhos acompanhando as evoluções daquele assustador demônio do rio, que resfolegava e espadanava água com sua medonha cauda, soprando fumaça negra no ar. Ao longo da margem do rio, agrupados na frente da primeira fileira, três homens, cobertos da cabeça aos pés com barro vermelho-fogo, pavoneavam-se de um lado para o outro, inquietos. À beira do rio, na frente da primeira fila de gente, três homens lambuzados de barro vermelho-vivo da cabeça aos pés caminhavam com ar pomposo de um lado para outro, sem parar. Quando novamente nos emparelhamos a eles, todos se voltaram para o rio, batendo os pés, agitando as cabeças enfeitadas com chifres e oscilando seus corpos escarlates; depois, chacoalharam um punhado de penas pretas, uma pele de bicho toda roída com uma cauda pendente, cuja forma lembrava uma cabeça seca. Eles gritavam em coro, a intervalos regulares, uma enfiada de palavras que em nada faziam lembrar os sons de uma linguagem humana; e os profundos murmúrios da multidão, subitamente interrompidos, pareciam respostas a alguma ladainha satânica.
“Tínhamos levado Kurtz para a casa do leme; havia mais ar ali. Deitado no catre, ele olhava para fora, através do postigo. Houve um rebuliço no meio da compacta massa humana, e a mulher das faces bronzeadas e capacete na cabeça veio correndo até a borda extrema da água. Estendeu as mãos, gritando uma coisa qualquer e toda multidão selvagem assumiu o grito em coro estrondoso de articulado, elocução rápida, sem fôlego.
“‘O senhor entende isso?’, perguntei.
“Ele continuava olhando para fora com um olhar ardente, anelante, em que havia um misto de ódio e melancolia. Nada respondeu, mas percebi um sorriso, um sorriso de significado indecifrável, que aparecia em seus lábios pálidos, e que logo se contorceram convulsivamente. ‘Se entendo?’, disse ele devagar, ofegante, como se as palavras lhe tivessem sido arrancadas por uma força sobrenatural.
“Puxei a corda do apito, e assim agi porque vi os peregrinos, no convés, engatilhando os seus rifles com o ar de quem está percebendo uma boa diversão. Diante do súbito e estridente apito houve um movimento de abjeto terror no meio daquele compacto aglomerado de corpos. ‘Não faça isso! Não os afugente!’, protestou alguém no convés, desconsoladamente. Puxei o cordão várias vezes. Eles saíram em disparada, correndo sem rumo, saltando, agachando-se, como se pudessem desviar do som aterrorizante que se propagava pelo ar. Os três homens pintados de vermelho atiraram-se no chão, com a cara voltada para a margem, como se tivessem sido mortalmente baleados. Somente a mulher bárbara, soberba, continuou como se nada tivesse acontecido, seus braços nus em nossa direção e sobre o rio lúgubre e reluzente.
“E depois que a multidão de imbecis foi para baixo, no convés, começou sua pequena diversão, e eu não pude ver mais nada por causa da fumaça.
“A correnteza barrenta fluía com velocidade para fora do coração das trevas, levando-nos em direção ao mar com o dobro da velocidade de nossa marcha rio acima; e a vida de Kurtz fluía também rapidamente, esgotando-se, esgotando-se de seu coração para desaguar no mar do tempo inexorável. O gerente tinha um ar plácido; não o afligia agora nenhuma preocupação vital. Lançou sobre nós dois um rápido olhar, compreensivo e satisfeito: o “caso” tinha sido resolvido de uma forma bastante satisfatória. Percebi que havia de chegar o momento em que sobraria apenas eu dentre os adeptos do ‘método ineficaz’. Os peregrinos me olhavam com desagrado. Eu estava, por assim dizer, incluído entre os mortos. É estranho como eu aceitara essa parceria infeliz, essa escolha forçada entre pesadelos de uma terra tenebrosa invadida por fantasmas ordinários e gananciosos.
“Kurtz discursava. Uma voz! Uma voz! Uma voz, que ressoou profundamente até o momento derradeiro. Uma voz que sobrevivera às suas próprias forças para ocultar nas magníficas manobras da eloquência as trevas infecundas de seu coração. Oh, ele lutava! ele lutava! O que restara de seu cérebro exaurido era agora atormentado por imagens nebulosas – imagens de riqueza e glória que giravam obsequiosamente em torno de seu inextinguível talento para se exprimir com nobreza e arrogância. Minha Prometida, meu posto, minha carreira, minhas ideias – eram os temas daquelas expressões ocasionais de sentimentos elevados. A sombra do Kurtz original rondava a cabeceira do seu oco e vazio simulacro, cuja sina era ser sepultado em breve no barro daquela terra primitiva. Mas tanto os amores diabólicos como o ódio extraordinário dos mistérios em que havia peneirado lutavam pela posse daquela alma saturada de emoções primárias, ávida de falsa glória, de deferências enganosas e de todas as formas de sucesso e poder.
“Às vezes, ele era infantil. Desejava ser recebido por reis nas estações de estradas de ferro, em seu retorno de alguma espectral e ignota região onde pretendia realizar grandes feitos. ‘É só mostrar que somos capazes de realizar empreendimentos lucrativos, e o reconhecimento de nossa capacidade será ilimitado”, dizia. ‘É claro que precisamos levar sempre em conta os motivos certos.’ Os longos trechos do rio, que pareciam todos iguais, bem como as curvas monótonas, que pareciam sempre as mesmas, passavam pelo vapor com sua multidão de árvores seculares a contemplarem pacientemente a passagem daquele fuliginoso fragmento de um outro mundo, precursor da mudança, de conquistas, de comércio, de massacres, de bênçãos. Eu olhava para frente no comando. ‘Feche a janela’, disse Kurtz, de repente, um dia. ‘Não suporto ficar olhando para isso.’ Fechei. Houve um breve silêncio. ‘Oh, eu ainda esmago o seu coração!’, gritou ele para a selva invisível.
“O motor enguiçou – como eu já esperava – e tivemos de encostar à beira de uma ilha, para reparos. Esse atraso foi a primeira coisa que abalou a confiança de Kurtz. Certa manhã, ele me deu um pacote de papéis e uma fotografia – tudo amarrado com um cadarço de sapato- ‘Guarde isso para mim’, disse. ‘Aquele imbecil (o gerente) é bem capaz de bisbilhotar as minhas caixas quando eu não estiver por perto.’ À tarde, fui vê-lo. Estava deitado de costas, de olhos fechados, e eu já me retirava silenciosamente quando o ouvi murmurar, ‘Viver honestamente e morrer, morrer…’ Fiquei à escuta. Não houve mais nada. Estaria ele ensaiando algum discurso em seu sono ou repetindo um fragmento de uma frase de algum artigo de jornal? Ele andara escrevendo para jornais e pretendia fazê-lo novamente, ‘para o aprofundamento das minhas ideias. É um dever.’
“Sua escuridão era impenetrável”. Eu o olhava como quem observa um homem deitado no fundo de um abismo, onde a luz do sol jamais brilha. Mas eu não tinha muito tempo para perder com ele, porque estava ajudando o maquinista a desmontar os cilindros com vazamento, a desentortar uma biela, dentre outros afazeres. Passavam os dias em meio a uma confusão infernal de ferrugem, limalha, parafusos, ferrolhos, chaves, martelos e furadeiras – coisas que eu abominava, porque não sei lidar com elas. Cuidava da pequena forja que, por sorte, tínhamos a bordo; trabalhava exausto sobre o maldito monte de ferro-velho, a não ser quando as pernas tremiam demais para ficar de pé.
“Uma noite, ao entrar na cabina com uma vela ouvi-o dizer com voz ligeiramente trêmula: ‘Estou deitado aqui no escuro esperando a morte’. A luz estava a um palmo dos seus olhos. Forcei a mim próprio a murmurar, ‘Oh, um absurdo!’, e fiquei sobre ele, como se paralisado.
“Ocorrera então uma mudança em sua fisionomia que eu nunca tinha visto antes, e espero não tornar a ver. Oh, não que tivesse ficado emocionado. Eu fiquei fascinado. Era como se um véu tivesse sido tirado. Enxerguei naquele rosto de marfim uma sombra de orgulho, de poder impiedoso, de terror covarde – de um intenso e irremediável desespero. Estaria ele revivendo sua vida em cada detalhe, com seus desejos, tentações e entregas durante aquele momento supremo de plena consciência? Gritou, então, num sussurro, para alguma imagem, alguma visão – gritou duas vezes, um grito que não era mais que um sopro:
‘O horror! O horror! ‘
“Apaguei a vela e saí da cabine. Os peregrinos estavam no refeitório, jantando, e eu tomei o meu lugar defronte do gerente, que levantou olhar interrogador. Ele se reclinou, sereno, com aquele seu sorriso peculiar selando as profundezas inexprimíveis de sua mediocridade. Um enxame contínuo de pequenas moscas voava pela lâmpada, pela toalha da mesa, pelas nossas mãos e rostos. De repente, o garoto do gerente pôs a insolente cabeça negra na porta e disse num tom de sarcástico desdém:
‘”O sinhô Kurtz… está morto.’
“Todos os peregrinos saíram correndo para ver. Eu permaneci onde estava e continuei o meu jantar. Acho que fui considerado um bruto insensível. No entanto, não comi muito. Havia uma lâmpada ali – uma luz, compreendem?… e lá fora estava tão escuro, de uma escuridão abominável. Não mais me aproximei do homem notável que havia pronunciado um julgamento sobre as aventuras de sua alma sobre a terra. A voz se extinguira. Que mais havia restado? Mas eu sei; é claro, que no dia seguinte os peregrinos enterraram algo em um buraco lamacento.
“E depois, eles quase me enterraram.
“No entanto, como podem ver, não fui me juntar ao Sr. Kurtz, não. Fiquei para sonhar o pesadelo até o fim e mostrar minha lealdade a Kurtz mais uma vez. Destino. Meu destino! Coisa engraçada é a vida – misterioso arranjo de lógica implacável para um propósito frívolo. O máximo que podemos esperar dela é que nos proporcione um certo conhecimento de nós mesmos, que chega tarde demais uma safra de remorsos inesgotável. Eu entrei em luta contra a morte. É a batalha menos interessante que se pode imaginar. Desenrola-se em meio a uma bruma cinza e impalpável, sem nada debaixo dos nossos pés e nada ao nosso redor, sem espectadores, sem clamor nem glória, sem grande desejo de vitória nem grande temor de derrota, num mórbido clima de morno ceticismo, sem muita fé nos nossos próprios direitos, e menos ainda nos do nosso adversário. Se este é o formato da última palavra em sabedoria, então a vida é um enigma maior do que muitos de nós podem imaginar. Eu estava a um passo da minha última oportunidade para me pronunciar, e descobri humilhado, que provavelmente não teria nada para dizer. Esta é a razão pela qual afirmo que Kurtz foi um homem notável. Ele teve alguma coisa para dizer; e disse. Depois que eu próprio estive à beira do abismo, passei a compreender mais claramente o significado daquele seu olhar estático, que não enxergava a chama da veia mas era suficientemente amplo para abarcar o universo inteiro, suficientemente penetrante para atingir todos os corações que pulsam nas trevas. Ele havia recapitulado tudo – e feito o seu julgamento. ‘O horror!’ Era um homem notável. Afinal, isso representava a expressão de alguma forma de fé; havia pureza, convicção, e uma vibrante nota de revolta nesse grito sussurrado; representava a face assustadora de uma verdade apenas entrevista uma estranha conjunção de desejo e ódio. E não é da minha própria experiência que me recordo melhor – uma visão cinzenta, sem forma, repleta de dor física, e de um desprezo pela efemeridade de todas as coisas… Até mesmo da própria dor. Não! É a experiência dele que tenho a impressão de ter vivido. É bem verdade que ele deu o último passo, transpôs a borda do abismo ao passo que a mim me foi permitido recuar, deter o pé que hesitava. E talvez nisso consista toda a diferença. Talvez, toda a sabedoria, toda a verdade e toda a sinceridade estejam condensadas nesse inapreciável momento no tempo durante o qual transpomos o limiar do invisível. Talvez! Gosto de imaginar que minhas palavras finais não teriam sido de desprezo ou indiferença. Melhor o seu grito – muito melhor! Era um grito de afirmação, de vitória moral, conquistada por derrotas incontáveis, por medos e prazeres abomináveis. Ainda assim, foi uma vitória! Foi por isso que permaneci leal a Kurtz até o fim e, mesmo depois, quando, após muito tempo, voltei a ouvir, não a sua própria voz, mas o eco de sua extraordinária eloquência lançada em mim por uma alma de pureza tão translúcida como uma rocha de cristal.
“Não, não me enterraram, embora tenha havido um período do qual mal me recordo, estremecido de horror que estava, como uma passagem por algum mundo incompreensível, onde não existia esperança nem desejo. Achei-me de volta à cidade sepulcral, ressentindo o espetáculo das pessoas a andar laboriosas pelas ruas, na pressa de surripiar dinheiro umas das outras, de engolir sua comida infame e sua maldita cerveja, de sonhar seus sonhos mesquinhos e idiotas. Elas invadiam meus pensamentos. Eram intrusos, cujo conhecimento de vida era para mim uma pretensão irritante porque eu tinha certeza de que eles não conheciam as mesmas coisas que eu conhecia. Suas condutas, que eram simplesmente condutas de indivíduos comuns, tratando de seus negócios para garantir uma segurança perfeita, eram ofensivas para mim como a ultrajante ostentação da loucura diante de um perigo que ela é incapaz de compreender. Não sentia nenhum desejo especial de esclarecê-los, mas sentia alguma dificuldade em conter minha vontade de rir nas suas caras tão cheias de estúpida autoridade. Acho que não me sentia muito bem naqueles dias. Circulava pelas ruas – havia muitos assuntos para serem resolvidos – forçando um sorriso amargo para as pessoas muito respeitáveis. Admito que o meu comportamento era imperdoável; mas era certo, também, que minha temperatura naqueles dias raramente se mantinha normal. Os esforços de minha prestimosa tia para me “restaurar as forças” se concentravam num alvo totalmente errado. Não eram as minhas forças que precisavam ser restauradas, era minha imaginação que tinha de ser aquietada. Eu conservava o pacote de papéis que Kurtz me havia dado, sem saber muito bem o que fazer com ele. Sua mãe morrera recentemente, sendo velada, segundo me disseram, por sua Prometida. Um homem limpo e barbeado, com modos de oficial e usando óculos de armação dourada, visitou-me um dia e fez perguntas, a princípio indiretas, depois cuidadosamente mais contundentes a respeito do que lhe agradava denominar certos ‘documentos’. Isso não me causou surpresa, porque eu já tinha tido duas brigas com o gerente, lá na selva, a respeito do assunto. Eu me havia recusado a abrir mão do mais insignificante pedaço de papel contido naquele pacote, e mantive a mesma atitude diante do homem dos óculos de ouro. Ele acabou por se mostrar sinistramente ameaçador, argumentando com muita veemência que a Companhia tinha o direito a todas as informações, por mais insignificantes que fossem, referentes aos seus ‘territórios’. E acrescentou: ‘O conhecimento que o Sr. Kurtz tinha de regiões inexploradas devia ser, forçosamente, muito vasto e específico tendo em vista sua grande capacidade e as deploráveis circunstâncias em que ele acabou por se envolver. Garanti a ele que o conhecimento do Sr. Kurtz, embora abrangente, não contemplava os problemas do comércio ou da administração. Invocou, então, o nome da ciência. ‘Seria uma perda imensurável, se’, etc. Ofereci a ele o relatório sobre ‘A Repressão dos Costumes Selvagens’, com o post-scriptum arrancado. Apanhou-o ansiosamente, mas terminou torcendo o nariz com um ar de desprezo. ‘Não é isso o que tínhamos o direito de esperar’, ressaltou. ‘Não espere mais do que isso’, respondi. ‘Existem apenas cartas particulares.’ Ele se retirou depois de me ameaçar com um processo judicial, e não voltei a vê-lo. Dois dias depois, entretanto, apareceu outro sujeito, dizendo-se primo de Kurtz e mostrando-se ansioso por ouvir todos os pormenores sobre os últimos momentos de seu estimado parente. Incidentalmente, deu-me a entender que Kurtz teria sido, em essência, um grande músico, ‘Ali estava um grande talento em potencial’, disse o homem, que era organista, imagino, com cabelos grisalhos que escorriam pela gola engordurada de seu casaco. Eu não tinha motivos para duvidar de sua afirmação, e até hoje não sou capaz de dizer qual era a profissão de Kurtz, se é que teve alguma, nem qual era o maior dos seus talentos. Achava que fosse um pintor que escrevia para jornais ou então um jornalista que pintava, mas até mesmo seu primo (que cheirava rapé durante a nossa conversa) não sabia dizer ao certo o que ele havia sido. Era um gênio universal e, nesse particular, concordei com o velhote que, em seguida, assoou o nariz ruidosamente num vasto lenço de algodão e se retirou numa agitação senil, levando consigo algumas cartas da família e memorandos sem importância. Por fim, apareceu um jornalista ansioso para saber alguma coisa sobre o destino de seu ‘caro colega’. Esse visitante informou-me que a esfera apropriada para Kurtz deveria ter sido a política ‘do lado popular’.
Tinha sobrancelhas grossas e retas, o cabelo espetado, à escovinha, e um monóculo preso a uma larga fita; tornando-se expansivo, confessou-me que, na sua opinião, Kurtz escrevia realmente muito mal ‘mas, por Deus’, como aquele homem sabia falar! Era capaz de eletrizar multidões. Botava fé naquilo que dizia… Entende… Fé! Tinha a capacidade de acreditar nas coisas… Qualquer coisa. Teria sido um esplêndido líder de um partido extremista. ‘ ‘Qual partido?’, perguntei, ‘Qualquer um’, respondeu. ‘Ele era um… Um extremista.’ Eu também não pensava assim? Admiti que pensava. ‘Você sabia’, perguntou, com um súbito lampejo de curiosidade, ‘o que o induzira a ir para lá?’ ‘Sim’, respondi, entregando-lhe imediatamente o famoso relatório para publicação, caso achasse conveniente. Examinou o texto rapidamente, resmungando o tempo todo, julgou que ‘serviria’, e retirou-se com esse espólio.
“E assim me restou, no final, um delgado pacote de cartas e o retrato da moça. Ela me parecia bela… quero dizer, tinha uma bela expressão. Sei que a luminosidade pode criar efeitos ilusórios, mas dava para ver que nenhum artifício de luz ou de ângulo poderia ter transferido tão delicadas nuanças de autenticidade àqueles traços. Ela parecia predisposta a ouvir, sem qualquer restrição mental, sem desconfiança, sem pensar um só momento em si própria. Decidi que iria procurá-la para lhe entregar em mãos o retrato e as cartas. Curiosidade? Sim… e um outro sentimento, talvez. Tudo que havia pertencido a Kurtz tinha escapulido de minhas mãos: sua alma, seu corpo, seu posto, seus pianos, seu marfim, sua carreira. Restavam apenas sua memória e sua Prometida e de uma certa maneira eu queria entregar isso também ao passado, para que tudo o que ainda restava dele em minhas mãos fosse enviado pessoalmente por mim para esse olvido que é a última palavra do nosso destino comum. Não estou me defendendo. Eu não tinha uma ideia clara do que realmente desejava. Talvez fosse um impulso inconsciente de fidelidade ou da satisfação de uma dessas necessidades que se ocultam por trás dos fatos da existência humana. Não sei. Não sei dizer. Mas fui vê-la.
“Eu pensava que a lembrança dele era como a lembrança de todos os mortos que se acumulam na vida de todo homem – uma tênue marca deixada no cérebro por sombras que ali caíram em sua passagem rápida e final; mas diante da porta alta e imponente, por entre as altas casas de uma rua tão calma e recatada como uma bem cuidada alameda de um cemitério, veio-me à mente a imagem dele na maca, abrindo a boca vorazmente, como se fosse devorar toda a terra, com toda a humanidade. Ele voltou a viver, então, diante de mim; e exatamente da maneira como sempre tinha vivido – como uma sombra que jamais se saciara das grandiosas aparências, ou das terríveis realidades; uma sombra mais negra que a sombra da noite, nobremente envolta nas dobras de uma soberba eloquência. A visão parecia entrar na casa comigo – a maca, os carregadores, fantasmas, a multidão selvagem de devotos obedientes, a escuridão da selva, o brilho do rio entre as curvas tenebrosas, o bater do tambor, regular e abafado como o bater de um coração – o coração de uma escuridão triunfante.
“Foi um momento de triunfo para a selva, um ataque invasor e vingativo que me pareceu que teria de enfrentar sozinho pela salvação de outra alma. E a lembrança do que eu ouvira Kurtz dizer lá longe, enquanto vultos ornados de chifres se moviam atrás de mim ao clarão das fogueiras, dentro da paciente mata, voltou à minha mente, e ouvi de novo aquelas frases entrecortadas, em sua sinistra e aterradora simplicidade. Lembrei-me de sua súplica abjeta, suas ameaças abjetas, a escala colossal de seus desejos vis, a maldade, o tormento, a angústia tempestuosa de sua alma. Lembrei-me de suas abjetas súplicas, de suas abjetas ameaças. E mais tarde, creio ter tido oportunidade de ver o lado comedido, acomodado, de seu temperamento, quando ele me disse um dia: ‘Esse lote de marfim agora é realmente meu. A Companhia não pagou por ele. Eu mesmo o recolhi, à custa de risco pessoal. Contudo, temo que tentem reclamá-lo como deles. Hum! Caso difícil, esse. Que é que o senhor acha que devo fazer? Resistir? Hein? O que eu quero é apenas justiça.’ Ele só queria justiça…somente justiça. Toquei a campainha da porta de mogno no térreo, e enquanto esperava, parecia que ele encarava-me através do painel vítreo… a fixar-me com aquele olhar amplo e imenso, abraçando, condenando, odiando todo o universo. Pareceu-me ouvir seu grito sussurrado: ‘O horror! O horror!’
“A noite caía. Tive de esperar numa majestosa sala de estar com três janelas compridas que iam do chão ao teto e assemelhavam-se a três colunas luminosas e acortinadas. O dourado dos estofados e das pernas curvilíneas das mobílias reluziam em curvas indistintas. A magnífica lareira de mármore tinha uma brancura fria e monumental. Um piano de cauda repousava pesadamente num canto, com negros reflexos nas superfícies planas, como um soturno sarcófago envernizado. Uma porta alta se abriu e tornou a se fechar. Levantei-me.
“Ela veio caminhando na minha direção como se flutuasse na penumbra da sala, toda vestida de negro, o rosto pálido. Estava de luto. Já havia passado mais de um ano desde a morte dele, mais de um ano desde que a notícia havia chegado; ela parecia que ia lembrar e manter o luto para sempre. Segurou minhas duas mãos nas suas e murmurou, ‘Fiquei sabendo que o senhor vinha’. Notei que não era muito jovem… quero dizer, que não tinha um ar juvenil. Tinha maturidade que a capacitava para a fidelidade, a crença e o sofrimento. A sala parecia ter ficado mais escura, como se toda a triste claridade daquele nublado entardecer se houvesse refugiado em sua fronte. Aqueles cabelos louros, aquele rosto pálido, aquele semblante puro pareciam cercados por um halo esmaecido, de onde seus olhos escuros me contemplavam. O olhar era inocente, profundo, seguro e verdadeiro. Mantinha ereta aquela cabeça sofredora como se sentisse orgulho do seu sofrimento, como quem dissesse: ‘Eu… somente eu sei lastimá-lo como merece’. Mas enquanto ainda segurávamos as mãos um do outro perpassou pela sua fisionomia uma expressão de tão trágica desolação que eu percebi não ser ela uma dessas criaturas que são joguetes do Tempo. Para ela, Kurtz havia morrido no dia anterior. E, por Deus!, a impressão que ela passou foi tão forte que também para mim ele parecia ter morrido na véspera – não, naquele exato momento. Vislumbrei os dois, no mesmo lapso de tempo – a morte dele e a dor dela; a dor dela, no mesmo instante da morte dele. Compreendem? Eu os vi juntos – os ouvi juntos. Ela dissera, depois de respirar fundo: ‘Eu sobrevivi’, enquanto meus ouvidos atentos pareciam ouvir nitidamente, mesclado com seu tom de desesperado pesar, o sussurro que resumia a eterna condenação dele. Perguntei a mim mesmo o que estava fazendo ali, e uma sensação de pânico me dominou o coração, como se eu me tivesse metido num lugar cheio de mistérios cruéis e absurdos, impróprios para serem vistos por um ser humano. Ela apontou uma cadeira. Sentamo-nos. Depositei delicadamente o pacote numa mesinha, e ela colocou a mão sobre ele… ‘O senhor o conheceu bem’, murmurou, após um momento de pesaroso silêncio de luto.
“‘As amizades crescem depressa por lá’, respondi”. ‘Conhecia-o tão bem quanto é possível a um homem conhecer outro.’
“‘E o senhor o admirava’, disse ela. ‘Era impossível conhecê-lo sem admirá-lo. Não era?’
‘”Era um homem notável’, disse, inseguro. Depois, diante de seu olhar fixo e suplicante, que parecia esperar por mais palavras de minha boca, prossegui: ‘Era impossível não… ‘
“‘Amá-lo’, completou, impetuosamente, silenciando-me, numa mudez apavorante. ‘Como isso é verdade! Como isso é verdade! Mas quando se pensa que ninguém o conheceu tão bem quanto eu! Eu possuía toda a sua nobre confiança. Eu o conhecia melhor do que ninguém.’
“‘Ninguém o conheceu melhor’, repeti. E talvez fosse verdade. Mas a cada palavra dita à sala tornava-se mais escura, e somente sua fronte, lisa e branca, continuava iluminada pela inextinguível luz do amor e da fé.
‘”O senhor foi amigo dele’, ela prosseguiu. ‘Amigo dele’, repetiu, um pouco mais alto. ‘Deve ter sido, se ele lhe deu isto e o enviou a mim. Sinto que posso falar com o senhor… e, oh, preciso falar. Quero que o senhor… o senhor, que ouviu as suas últimas palavras… saiba que tenho sido digna dele… Não se trai por orgulho… Sim! Tenho orgulho de saber que o compreendi melhor do que qualquer um na terra… ele mesmo me disse isso. E desde que sua mãe morreu, não tive mais ninguém… ninguém para… para…”
“Eu a ouvia. A escuridão se adensava. Eu nem mesmo tinha certeza de que ele me havia dado o pacote certo. Desconfio seriamente de que desejara confiar as minhas mãos um outro pacote que, após a sua morte, vira o gerente examinando sob uma lâmpada. E a moça continuava a falar, aliviando a sua dor, certa da minha solidariedade. Falava com a mesma sofreguidão com que um homem sedento bebe água. Fiquei sabendo que o seu noivado com Kurtz não tinha tido a aprovação da família dela. E, na verdade, não estou muito certo de que ele não tivesse sido pobre a vida inteira. Dera-me alguma razão para saber que fora a insatisfação com sua relativa pobreza que o conduzira para lá.
“‘… Quem não se tornaria seu amigo, uma vez que o ouvisse falar?’, dizia ela, ‘Ele despertava nas pessoas aquilo que elas tinham de melhor.’ Olhava para mim com intensidade, ‘Esse é o dom dos grandes homens’, prosseguiu, e o som de sua voz baixa parecia ser acompanhado de todos os outros sons, carregados de mistério, desolação e dor – o murmúrio do rio, o farfalhar das árvores sacudidas pelo vento, os sussurros da multidão, os débeis ecos de incompreensíveis palavras gritadas de muito longe, o ciciar de uma voz que falava do outro lado do umbral de trevas eternas. ‘Mas o senhor ouviu-o falar. O senhor sabe!’ – exclamou ela.
“‘Sim, eu sei’, falei com desespero no coração, mas me curvando diante da fé que havia nela, diante daquela grande e redentora ilusão que brilhava com um fulgor sobrenatural na escuridão, na escuridão triunfante da qual eu não poderia defendê-la… da qual eu não poderia nem sequer defender de mim mesmo.
“‘Que perda para mim… para nós!’, corrigiu-se com bela generosidade, acrescentando num murmúrio: ‘Para o mundo”. Sob os últimos raios do crepúsculo, pude ver o brilho de seus olhos, cheios de lágrimas… Lágrimas que se recusavam a cair.
”Eu fui muito feliz… muito afortunada… me sentia muito orgulhosa’, prosseguiu. ‘Afortunada demais. Feliz demais por algum tempo. E agora serei infeliz para… para o resto da vida.’
“Levantou-se; seus cabelos louros pareciam captar toda a luz que restara, num brilho dourado. Levantei-me também.
“‘E de tudo isso’, prosseguiu lamentando, ‘de todas as suas promessas, de toda sua grandeza, de sua mente generosa, do seu nobre coração, nada restou… nada além de uma lembrança. O senhor e eu…’
”Lembraremos dele para sempre’, apressei-me em dizer.
“‘Não’, exclamou. ‘Não é possível que tudo isso se perca – que uma vida assim seja sacrificada a não deixar nada… além de tristeza. O senhor conhece os grandes planos que ele tinha. Eu os conhecia, também… Talvez não pudesse compreendê-los… Mas outros sabiam deles. Alguma coisa tem de ficar. Suas palavras, pelo menos, não morreram.’
‘”Suas palavras permanecerão’, disse eu.
“‘E seu exemplo’, murmurou para si mesma. ‘As pessoas se inspiravam nele… Sua bondade brilhava em cada gesto. Seu exemplo… ‘
‘”É verdade’, disse eu. ‘Seu exemplo também. Sim, seu exemplo. Havia me esquecido disso. ‘
“‘Mas eu não. Não posso… Não consigo acreditar… Ainda não. Não consigo acreditar que nunca mais voltarei a vê-lo, que ninguém nunca mais o verá novamente, jamais, jamais, jamais.’
“Esticou os braços, como que tentando alcançar um vulto que se afastava, estendendo-os negros e com as pálidas mãos apertadas através do estreito e esmaecido clarão da janela. ‘Nunca mais tornarei a vê-lo! Eu o via com toda a nitidez. E hei de ver este persuasivo fantasma enquanto viver, e eu a verei, uma sombra trágica e familiar, assemelhando-se naquele gesto a outra, trágica também, enfeitada de amuletos inúteis, estendendo os braços trigueiros e nus sobre o brilho do rio infernal, o rio das trevas. Então, de repente, ela, disse bem baixinho: ‘Morreu como viveu’.
“‘O seu fim’, disse eu, com uma raiva surda agitando minhas entranhas, ‘foi inteiramente digno de sua vida.’
“‘E eu não estava ao seu lado’, murmurou. Minha raiva desvaneceu-se, abafada por um sentimento de infinita piedade.
“‘Tudo o que podia ter sido feito… ‘, resmunguei em voz baixa.
“‘Ah, mas eu acreditava nele mais do que ninguém no mundo, mais do que na própria mãe, mais do que ele próprio. Ele precisava de mim! De mim! Eu teria guardado como se fosse um tesouro cada suspiro seu, cada palavra, cada gesto, cada olhar.’
“‘Senti uma espécie de aperto no peito: ‘Não fique assim’, disse eu, com voz abafada.
“‘Perdoe-me, eu”… Eu tenho chorado por muito tempo em silêncio… Em silêncio… O senhor esteve com ele… Até o final, penso na solidão dele. Ninguém perto para compreendê-lo como eu o teria compreendido. Talvez ninguém para ouvi-lo…’
“‘Até o último momento”, disse eu, trêmulo, ‘Ouvi suas últimas palavras…’ Calei-me, aterrorizado.
“‘Repita-as’, murmurou num tom de partir o coração, ‘Eu preciso… preciso… de alguma coisa… alguma coisa… para… poder prosseguir vivendo.’
“Estive a ponto de gritar para ela: ‘Você não está ouvindo?’ A escuridão repetia num murmúrio persistente à nossa volta, um sussurro que parecia ir crescendo ameaçadoramente como os sussurros premonitórios de um vendaval. ‘O horror! O horror! ‘
“‘Suas últimas palavras… para guardar para sempre’, ela insistiu. ‘Não percebe que eu o amava… eu o amava… eu o amava!’
“Eu me recompus e disse, lentamente: ‘A última palavra que ele pronunciou foi… o seu nome.’
“Eu ouvi um leve suspiro e depois o meu coração parou emudecido por um grito terrível de exultação, um grito de inconcebível triunfo e dor indescritível.
‘Eu sabia… Tinha certeza!’ Ela sabia. Ela tinha certeza… Ouvi seu choro; ela havia escondido o rosto entre as mãos. Pareceu-me que a casa iria entrar em colapso antes que eu pudesse escapar, que os céus cairiam em cima de minha cabeça. Mas não aconteceu nada. Os céus não caem por uma ninharia dessas. Teriam caído, por acaso, se eu tivesse conferido a Kurtz a justiça que ele merecia? Ele não tinha dito que queria apenas justiça? Mas não pude. Não pude dizer a ela. Teria sido muito tenebroso… tenebroso demais…”
Marlow calou-se, e continuou sentado ali, um pouco afastado, indistinto e mudo como um Buda em meditação. Ninguém se mexeu por um tempo. ‘Perdemos o início da vazante’, disse o diretor de repente. Eu levantei minha cabeça. A vista foi impedida por uma massa de nuvens escuras que escondia o horizonte, e a correnteza tranquila, que conduzia aos extremos confins da terra, deslizava sombria sob um céu nublado… e parecia conduzir ao coração de imensas trevas.
***
Sobre o autor e o livro
Coração das Trevas (Heart of Darkness) é um romance escrito por Joseph Conrad. Antes da sua publicação em 1902, apareceu como uma série em três partes (1899) na ‘Blackwood’s Magazine’. É amplamente considerada como uma obra importante da literatura inglesa e parte do cânone ocidental.
Durante a narrativa, Conrad joga muito bem com os contrastes: luzes/trevas; branco/negro; quando aparece um selvagem opõe-se a ele um civilizado; se descreve a claridade, há uma obscuridade em volta dele e vice-versa; é, indubitavelmente, um dos maiores estilistas da ficção moderna, e ainda por cima, um bom contador de histórias.
A estrutura narrativa lembra ‘Wuthering Heights’ – ‘O Morro dos ventos Uivantes’ – de Emily Brontë, com uma narrativa em primeira pessoa dentro de outra narrativa em primeira pessoa e muita exposição num clima opressivo e tenebroso.
Para Jorge Luis Borges “O coração das trevas é o mais intenso de todos os relatos que a imaginação humana jamais concebeu.”
‘Coração das Trevas’ tenta alcançar o inexplicável Charles Marlow, um inglês que obteve trabalho junto de uma companhia de comércio belga como capitão de um barco a vapor num rio africano. Embora Conrad não identifique o rio, no Estado Livre do Congo, a localização do grande e importante rio Congo era à época uma colônia propriedade privada do rei Leopoldo II da Bélgica. Marlow é contratado para transportar marfim rio abaixo. No entanto, a sua tarefa mais urgente é devolver Kurtz, um famoso comerciante de marfim, à civilização.
Conrad construiu uma narrativa simbólica com uma história dentro da própria história: Marlow conta a um grupo de amigos a bordo de um navio ancorado no estuário do Tamisa, desde o anoitecer até de madrugada, a sua aventura congolesa. A passagem do tempo e o céu escurecendo-se com o pôr-do-sol sobre Londres, enquadram a atmosfera densa e pesada da história dentro da história.
O livro tem um caráter crítico e psicológico e, apesar de seu tamanho pequeno e fácil leitura em relação ao vocabulário, exige uma alta concentração do leitor por constituir uma narrativa simbólica e de rápidas conexões.
O livro inspirou o filme ‘Apocalypse Now’ de Francis Ford Coppola. Enquanto o livro se passa em tempos mais remotos, o filme se situa na guerra do Vietnã, colocando o Sr. Kurtz como um coronel americano que se refugia na selva. Apesar de ser diferente do livro, o filme consegue manter as críticas do livro, transportando elas à guerra, e consegue manter a história original apesar das adaptações de roteiro.
O livro possuiu similaridades com a vida de Conrad; ainda criança, contemplara um mapa e decidira um dia visitar o coração da África. Os abusos praticados na exploração colonial e presenciados pelo escritor deixaram-no profundamente abalado, conferindo-lhe uma visão crítica quanto à base moral das explorações coloniais e das atividades comerciais conduzidas nos países recentemente ‘descobertos’. Oito anos e meio antes de escrevê-lo, Conrad foi designado por uma companhia de comércio belga para trabalhar como capitão de um navio no Rio Congo. Na chegada a estação no Congo, ele descobriu que o navio que iria comandar sofreu danos e necessitava de reparo. No dia seguinte, ele subiu o rio em um navio diferente, chefiado por outra pessoa. Durante a jornada o capitão adoeceu e Conrad assumiu o comando. Eles buscaram o agente da estação mais longínqua da companhia, Georges-Antonie Klein, que morreu na viagem de volta. O próprio Conrad ficou muito doente e retornou para a Europa antes de completar os três anos de contrato que havia assinado com a companhia.
No início do livro, o leitor se vê perante uma narração em primeira pessoa de um dos tripulantes de uma embarcação no Tamisa. Ele fala sobre Marlow, um velho tripulante a bordo do navio, o único que ainda “seguia o mar.” Sem nada para fazer, já que a maré não era favorável à navegação, Marlow passa a contar a história que o levou a conhecer o lendário chefe de posto, o Sr. Kurtz. Marlow. Inicia a narrativa dizendo como conseguiu o posto na companhia marítima, através da ajuda e influência da tia, que conhecia a esposa de um alto dirigente da Administração. Ele se torna então comandante de um vapor: sua missão é resgatar um chefe de posto conhecido por Sr. Kurtz. Ao narrar sua aventura até encontrar o vapor, Joseph Conrad faz uma crítica em relação à falta de conectividade entre as regiões, à escravidão, ao aspecto burocrático e alheio dos comandantes e a falta de informação por parte destes; sem dúvida, uma bandeira fundamental na denúncia da insanidade da ação imperialista. Nesse processo, Marlow passa a ouvir muitos elogios ao Sr. Kurtz, como um ótimo chefe de posto, muito inteligente e brilhante. Marlow afirma em um ponto da narrativa que, ao pensar em Kurtz, via apenas um nome e era incapaz de enxergar a pessoa por trás da lenda. Para o infortúnio de Marlow, ele descobre que um comandante improvisado havia recebido ordens dois dias antes de sua chegada para subir o rio com o vapor, e, ao fazer isso, o vapor chocou-se contra pedras do fundo do rio e naufragou. Então, sem saber o que fazer, ele decide tentar consertar o barco, e gasta alguns meses fazendo-o. Após finalmente ter consertado o vapor, ele parte rio acima à procura de Kurtz, lidando com as dificuldades de navegação do rio e as dificuldades de operação do frágil vapor, já velho, deteriorado e com o motor defeituoso. É dessa forma que Marlow vai avançando lentamente em direção ao seu objetivo, encontrar o lendário, brilhante, mas agora louco Sr. Kurtz. Finalmente Marlow o encontra, após ter adentrado o coração das trevas, mas Kurtz está em seu leito de morte e as suas últimas palavras são: “O horror! O horror!”, palavras que revelam o que a civilização impõe ao homem.
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