Ler online: CORAÇÃO DAS TREVAS Joseph Conrad

 

 

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ISBN 978-85-7953-756-1 Todos os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98.  –  Conrad, Joseph  (Józef Teodor Konrad Korzeniowski – 1857 – 1924)   CORAÇÃO DAS TREVAS (Heart of Darkness) Tradução: Cao Ypiranga . Pará de Minas, MG, Brasil.

CORAÇÃO DAS TREVAS

Joseph Conrad

 



 

PARTE I

 

O Nellie, um escaler de cruzeiro, balançou quando a âncora
foi lançada, sem vibração alguma nas velas, e ficou em repouso. A enchente
tinha chegado, o vento estava quase calmo, e o destino do escaler era descer o
rio, mas a única coisa a fazer era esperar a virada da maré.

O estuário do Tâmisa se estendia diante de nós como o
início de uma hidrovia interminável. No horizonte, o mar e o céu pareciam
soldados um ao outro sem uma emenda, e, nesse espaço luminoso, as velas
curtidas das barcaças à deriva com a maré pareciam paralisadas compondo feixes
de pontiagudos triângulos vermelhos, onde cintilavam os reflexos de seus
mastros envernizados. Uma névoa descansava sobre as praias, que corria para o
mar e diluía no meio da bruma. O ar estava escuro acima de Gravesend, e, mais
para trás ainda, parecia condensado em uma melancolia magoada, imóvel, remoendo
sobre a maior e mais grandiosa cidade na terra. O diretor da Companhia era
nosso capitão e nosso anfitrião. Nós quatro observávamos afetivamente suas
costas, enquanto ele permanecia na proa olhando para o mar. Em todo o rio, não
havia nada que parecia mais náutico do que ele. Parecia-se com um piloto que,
entre marinheiros, personificava a lealdade. Era difícil admitir que o seu
trabalho não estivesse lá, no luminoso estuário, mas atrás dele, dentro da
escuridão envolvente.

Entre nós havia, como já disse em outra ocasião, o vínculo
com o mar. Além de manter os nossos corações unidos durante longos períodos de
separação, tinha o efeito de nos fazer tolerantes uns com os outros – e até
mesmo nas convicções. O advogado – o melhor dos velhos companheiros – teve, por
causa de seus muitos anos e muitas virtudes, a única almofada no convés e havia
deitado no único tapete. O Contador já tinha trazido uma caixa de dominó e
estava brincando de arquitetura com as peças ósseas. Marlow estava sentado à
popa, de pernas cruzadas, encostado no mastro da mezena. Ele tinha bochechas
afundadas, uma tez amarela, as costas retas, de um aspecto ascético, e, com
seus braços caídos, as palmas das mãos para cima, semelhante a um ídolo
indiano. O diretor, satisfeito com a posição da âncora, caminhou pela popa e
sentou-se entre nós. Trocamos algumas palavras preguiçosamente. Depois houve
silêncio a bordo do iate. Por algum motivo ou outro, não começou o jogo de
dominó. Sentíamos meditativos e aptos para nada, apenas em plácida
contemplação. O dia terminava com uma serenidade de brilho ainda requintado. A
água brilhava pacificamente; o céu, sem uma mancha, era uma imensidão de luz
benigna e sem mácula, a névoa excessiva sobre o pântano de Essex era como um
tecido transparente e radiante, pendurado sobre os morros arborizados do
interior e drapejando sobre as margens baixas, em dobras diáfanas. Só havia
tristeza para o oeste, pairando sobre o fluxo superior do rio, tornando-o mais
sombrio a cada minuto, como se estivesse irritado com a abordagem do sol.

E, finalmente, o sol, em sua queda oblíqua e imperceptível,
submergiu no horizonte, do branco brilhante mudou-se para um vermelho fosco,
sem raios e sem calor, como se estivesse prestes a se apagar de repente, ferido
de morte pelo toque de melancolia que pairava sobre a multidão de homens.

Imediatamente, veio uma mudança sobre as águas e a sua
serenidade tornou-se menos brilhante e mais profunda. O velho rio, em seu amplo
alcance, descansou sereno com o declínio do dia, depois de séculos de bons
serviços prestados aos que povoaram suas margens, alastrando-se com tranquila
dignidade de um canal que conduz aos confins da terra. Olhávamos para o
venerável fluxo, não no rubor vívido de um dia curto que vem e parte para
sempre, mas sob a augusta luz das memórias permanentes. E, de fato, nada é mais
fácil para um homem que tem, como se costuma dizer, “de seguir o mar”
com reverência e carinho, do que evocar o grande espírito do passado sobre o
fluxo inferior do rio Tâmisa. A corrente subia e descia em seu trabalho
incessante, repleta de lembranças de homens e navios que conduzira ao lar ou às
batalhas marítimas. Ele tinha conhecido e servido a todos os homens que fizeram
o orgulho da nação, de Sir Francis Drake a Sir John Franklin, todos os
cavaleiros, com título ou sem título – os grandes cavaleiros andantes do mar.
Conduzira todos os navios cujos nomes são como joias cintilando na noite dos tempos,
desde o Golden Hind, que retornou com seus largos costados entulhados de
tesouros, para ser visitado por Sua Majestade, a Rainha, e desapareceu em
seguida nos confins da História, até o Erebus e Terror, destinados a outras
conquistas – e que nunca mais regressaram. O rio tinha conhecido os navios e os
homens. Eles tinham navegado de Deptford, de Greenwich, de Erith – os
aventureiros e os colonizadores; navios de reis e navios de homens; capitães,
almirantes, os funestos intrusos do comércio do Oriente e os comissionados
generais das frotas das Índias Orientais. Caçadores de ouro ou perseguidores da
fama, todos eles tinham descido aquele rio, tendo a espada à mão e, muitas
vezes, a tocha, mensageiros dos poderosos da terra-firme, portadores de uma centelha
do fogo sagrado. Quanta grandeza não tinha flutuado sobre a vazante desse rio
até atingir o mistério de uma terra desconhecida!… Os sonhos dos homens, a
semente de repúblicas, os germes de impérios.

O sol se pôs, o anoitecer desceu sobre as águas e as luzes
começaram a surgir ao longo da costa. O farol de Chapman, uma coisa de três
pernas, fincado em uma lama lisa, brilhava fortemente. Luzes de navios
moviam-se ao longo do canal – uma grande agitação de luzes subindo e descendo.
E mais a oeste, no trecho superior do rio, ocupado pela monstruosa cidade,
ainda estava assinalado, agourentamente no céu, uma escuridão que dominava a
luz do sol, um clarão lúgubre sob as estrelas.

“E esse também”, disse Marlow, de repente,
“tem sido um dos lugares mais sombrios da terra.”

Ele era o único de nós que ainda “seguia o mar”.
O pior que poderia ser dito dele era que ele não representava a sua classe. Ele
era um marinheiro, mas era, também, um andarilho, enquanto a maioria dos
marinheiros leva, por assim dizer, uma vida sedentária. Eles são do tipo que
gosta de ficar em casa, e sua casa – o navio – está sempre com eles, o mesmo
acontecendo com o seu país – o mar. Um navio é muito semelhante a outro, e o
mar é sempre o mesmo. Na imutabilidade de seu meio ambiente, as terras
estrangeiras, os rostos estrangeiros, a variável mudança de vida, tudo passa
por eles dissimulado, não por uma sensação de mistério, mas por uma ignorância
levemente desdenhosa, e não há nada de misterioso a um marinheiro a não ser o
mar em si, que é o senhor de sua existência e tão inescrutável quanto o
Destino.  Quanto ao resto, depois de suas
horas de trabalho, um passeio casual ou uma farra eventual na costa são
suficientes para lhe revelar o segredo de todo um continente, e, na maioria das
vezes, descobre que não vale a pena conhecer o segredo. As histórias dos
marinheiros têm uma simplicidade direta, todo o significado delas cabe dentro
da casca de uma noz. Mas Marlow não era um marujo típico (a não ser por sua
disposição em contar histórias), e para ele o significado de um episódio não
situava no seu interior, como um caroço, mas do lado de fora, envolvendo a
narrativa que o exprimiu, tal como um brilho revela a névoa, à semelhança de um
desses enevoados halos que às vezes se tornam visíveis pela iluminação
espectral do luar.

Sua observação não pareceu de todo surpreendente. Era
típica de Marlow e foi aceita em silêncio. Ninguém se deu o trabalho nem sequer
de resmungar, e, em seguida, ele disse, muito lentamente:

“Eu estava pensando em tempos muito antigos, quando os
romanos chegaram aqui pela primeira vez, há novecentos anos – outro dia… A
luz surgiu neste rio a partir da época dos… dos Cavaleiros, dizem vocês?  Sim, mas como o fogo correndo pela planície,
como o faiscar de um relâmpago nas nuvens. Nós vivemos no brilho transitório –
que pode durar enquanto a velha terra girar. Mas até ontem a escuridão esteve
aqui. Imaginem o que devia sentir o comandante de um belo . . . como se chama
mesmo?… trirreme no Mediterrâneo, ao receber ordens repentinamente de vir
para o norte; ter de atravessar a terra dos gauleses o mais rápido possível; de
assumir o comando de uma dessas embarcações de legionários  – um maravilhoso grupo de homens práticos que
deve ter sido, também – usados para criar alguma civilização, aparentemente, às
centenas, em um mês ou dois, se é que podemos acreditar no que lemos a respeito
disso. Imaginem esse homem aqui – neste fim do mundo -, diante de um mar cor de
chumbo e um céu cor de fumaça, num tipo de navio que possuía a rigidez de uma
sanfona; e subindo o rio com sortimentos, ou ordens, ou o que você prefira;
bancos de areia, pântanos, selvas, selvagens – muito pouca coisa para se comer
apropriada a um homem civilizado, nada mais para beber a não ser a água do
Tâmisa, sem o vinho de Falerno, nada de descidas à terra.  Aqui e ali, um acampamento militar perdido em
uma restinga, como uma agulha no palheiro – 
frio, nevoeiro, tempestades, doenças, exílio e morte -, morte que se
esconde no ar, na água, no meio na selva. Eles deviam morrer como moscas,
aqui.  Oh, sim  – ele fez isso, fez isso muito bem, sem
dúvida, e sem pensar muito sobre esse assunto, a não ser mais tarde, talvez,
para se gabar de tudo que  havia passado
ali. Eram homens suficientes para enfrentar as trevas. E ele talvez estivesse
animado, de olho numa oportunidade de promoção para a frota em Ravenna, se ele
tivesse bons amigos em Roma e sobrevivesse ao clima terrível. Ou pensem num
jovem cidadão decente, com uma toga -, talvez envolvido demais com os dados, vocês
sabem -, vindo para cá na comitiva de algum prefeito, ou coletor de impostos,
ou até mesmo de um comerciante, para resgatar sua fortuna. Desembarga em um
pântano, marcha pela selva, e, em algum posto perdido no interior, sente a
selvageria, a selvageria plena, que se fecha em torno dele – toda aquela vida
misteriosa que amotina na selva, na selva, no coração dos homens selvagens. Mas
não existe uma iniciação em tais mistérios. Ele tem que viver no meio do
incompreensível, que também é detestável. E há um fascínio também, que vai agir
sobre ele – o fascínio do abominável -, vocês sabem, imaginem o arrependimento
crescente, o desejo de fugir, o nojo impotente, a entrega, o ódio.”

Ele fez uma pausa.

“Notem” – recomeçou ele, levantando o braço
dobrado em ângulo reto e a palma da mão virada para fora; antes, tinha a pose
de um Buda em pregação, vestido de roupas europeias e sem uma flor de lótus –
“notem, nenhum de nós se sentira exatamente assim. O que nos salva é a
eficiência, a devoção à eficiência. Mas esses sujeitos, realmente, não eram
grande coisa. Eles não eram colonizadores; sua administração era apenas
extrativista, e nada mais, suponho. Eram conquistadores, e para isso basta à
força bruta – nada para se vangloriar quando se tem, já que a sua força é apenas
um acidente decorrente da fraqueza dos outros. Eles pegavam o que podiam obter,
simplesmente, porque as coisas estavam ali para serem agarradas. Foi apenas
roubo com violência, agravado por homicídio em grande escala, e os homens vão
para isso às cegas – como é muito adequado aos que deparam com as trevas. A
conquista da terra, o que, de um modo geral, significa tomá-la daqueles que têm
uma pele de cor diferente da nossa ou um nariz ligeiramente mais achatado do
que o nosso, não muito agradável de ver quando observado por um tempo
demasiadamente longo. O que redime esses atos é apenas uma ideia subentendida;
não uma pretensão sentimental, mas uma ideia, uma crença altruísta na ideia –
algo que você pode estabelecer, curvar-se diante e oferecer um sacrifício
para…”

“Ele calou-se. Chamas deslizavam pelo rio, pequenas chamas
verdes, chamas vermelhas, chamas brancas, perseguindo-se, ultrapassando,
juntando-se e entrecruzando-se, para em seguida se separarem, de modo vagaroso
ou rápido. O tráfego da grande cidade continuava, enquanto a noite aprofundava
sobre o rio insone. Nós continuávamos olhando e esperando pacientemente – não
havia mais nada a fazer até a mudança da maré -, mas foi só depois de um longo
silêncio, que ele disse, com uma voz hesitante: “Suponho que vocês,
companheiros, recordem da ocasião em que fui marinheiro de água doce por um
tempo”; e estávamos fadados, antes da maré subir, a ouvir outra das
experiências inconclusivas de Marlow.

“Eu não quero incomodá-los demais com o que me
aconteceu pessoalmente”, ele começou, mostrando nesta observação a
fraqueza de muitos contadores de histórias que parecem, muitas vezes, ignorar o
que de fato o seu público gostaria de ouvir: “Contudo, para que
compreendam o efeito que ela teve em mim, vocês devem saber como eu cheguei lá,
o que eu vi, como subi aquele rio até o lugar onde encontrei aquele pobre
coitado. Ali era o ponto mais distante alcançado pela navegação fluvial e o
ponto culminante da minha experiência. Parecia, de  certa forma, que alguma luz tinha sido
lançada sobre mim, e sobre a minha mente também. Foi sombria o suficiente – e
lamentável-, de forma alguma extraordinária, nem muito clara; ainda assim,
parecia irradiar um tipo de luz.

“Eu acabara de retornar a Londres, como vocês se
lembram, depois de muito tempo pelo oceano Índico, Pacífico, e Mar da China –
uma dose regular do Oriente – seis anos mais ou menos, e eu estava vadiando
aproximadamente, incomodando vocês, companheiros, nos seus trabalhos, invadindo
seus lares, como se tivesse uma missão divina de civilizá-los.  Por algum tempo isso foi muito agradável, mas
acabei por me cansar de tanto descansar. Comecei, então, a procurar um navio –
que acho ser o trabalho mais difícil na terra. Mas os navios não queriam sequer
olhar para mim. E, também, logo me cansei desse jogo.

“Ora, quando eu era garoto tinha paixão por mapas. Ficava
olhando horas a fio para a América do Sul, a África, a Austrália, e sonhava com
todas as glórias da exploração. Naquela época, havia muitos espaços vazios na
terra, e quando eu vi um que parecia particularmente convidativo no mapa (e
todos eles pareciam que eram) eu colocava o dedo sobre ele e dizia: ‘Quando eu
crescer, eu vou visitá-lo.’ O Polo Norte era um desses lugares, lembro muito
bem. Bem, eu não fui lá, e não vou tentar agora. O encanto se quebrou.  Os outros lugares ficavam espalhados ao redor
do equador e em todas as latitudes possíveis, nos dois hemisférios. Estive em
alguns deles e… bem, não vamos falar sobre isso. Mas havia um – o maior, o
mais vazio, por assim dizer -, que me atraía ardentemente.

“É bem verdade que nessa época não era um espaço vazio.
Tinha sido preenchido, desde a minha infância, com rios e lagos e nomes. Ele
tinha deixado de ser um espaço vazio com seu delicioso mistério – uma mancha branca
sobre o qual um menino podia sonhar gloriosamente. Tornou-se um lugar de
trevas. Mas havia nele um rio especial, um poderoso rio desmedido, que você
pode ver no mapa, semelhante a uma cobra imensa e desenrolada, com a cabeça
mergulhada no mar, o corpo em repouso curvando-se na distância, ao longo de um
vasto país, e sua cauda perdida nas profundezas da terra; e, quanto eu olhei
para o mapa numa vitrine, ele me fascinou como uma serpente fascinaria um
pássaro – um pássaro pequeno e tolo. Então, lembrei-me que havia uma grande
empresa, uma Companhia que comercializava naquele rio. Com os diabos, falei
para mim mesmo, eles não podem negociar sem utilizar algum tipo de embarcação
nessa extensão de água doce – barcos a vapor! Por que não tentar obter o comando
de um deles? Fui andando pela Rua Fleet, mas sem conseguir me livrar da ideia.
A serpente tinha me encantado.

“Vocês compreendem, era uma empresa continental, aquela
sociedade comercial, mais eu tinha muitos bons contatos no Continente, pois
segundo eles a vida lá é mais barata, e não é tão detestável quanto parece.

“Lamento reconhecer que comecei a preocupá-los. Era um
recomeço para mim. Não estava acostumado a fazer as coisas dessa forma, vocês
sabem. Sempre segui o meu próprio caminho, com minhas próprias pernas, onde
minha mente me conduzisse. Eu mesmo não acreditaria que pudesse agir assim;
mas, então – vejam vocês – eu senti de alguma forma que devia chegar lá por bem
ou por mal. Então, eu os preocupava. Os homens disseram ‘Meu caro amigo’, e não
fizeram nada, então – vocês nem vão acreditar nisso – resolvi recorrer às
mulheres. Eu, Charlie Marlow, coloquei as mulheres para trabalhar a fim de
conseguir-me um emprego. Céus! Bem, vejam vocês, eu estava com ideia fixa. Eu
tinha uma tia, uma alma querida e entusiasmada. Ela escreveu: ‘Será um prazer,
estou pronta para fazer qualquer coisa, qualquer coisa por você. É uma ideia
gloriosa. Conheço a esposa de um alto diretor da administração e também um
homem que tem muita influência’, etc. Ela estava determinada a fazer muito
barulho para me nomear  capitão de um
barco a vapor fluvial, se essa era a minha fantasia.

“É claro que tive a minha nomeação. Consegui o posto com
rapidez. Parece que a Companhia havia recebido a notícia de que um dos seus
capitães tinha sido morto em uma briga com os nativos. Era a minha chance, e
isso me deixou ainda mais ansioso por partir. Somente muitos meses mais tarde,
quando eu procurei recuperar o que restou do meu corpo, eu soube a origem da
briga, um desentendimento por causa de algumas galinhas. Sim, duas galinhas
pretas. Fresleven – esse era o nome do sujeito, um dinamarquês – julgou-se
prejudicado de alguma forma no negócio, então ele foi à terra firme e começou a
espancar o chefe da aldeia com uma vara. Oh, não me surpreendi quando me
contaram isso, nem mesmo quando me falaram do comportamento de Fresleven, uma
criatura gentil, mais afável que já andou sobre duas pernas. Sem dúvida, que
ele era; mas já fazia dois anos que ele se encontrava ali, vocês sabem, e ele
provavelmente sentiu a necessidade de afirmar finalmente a sua autoestima, e
surrou o negro velho sem piedade, enquanto seu povo testemunhava atônito, até
que um homem (foi-me dito que era o filho do chefe) desesperado diante dos
gritos do ancião veio correndo e desferiu um golpe de lança no homem branco – e
é claro que foi muito fácil alojá-la entre suas omoplatas. Então, toda a
população correu para a selva, esperando que acontecesse todo tipo de
calamidades, enquanto, por outro lado, a tripulação do navio, antes comandada
por Fresleven, também se afastou em pânico, sob o comando do engenheiro, eu
acredito. Aparentemente, ninguém pareceu se incomodar muito com os restos
mortais de Fresleven, até eu chegar e assumir seu cargo. Mas eu não podia
deixar as coisas como estavam; quando, porém, surgiu afinal uma oportunidade de
conhecer o meu predecessor, a grama que crescia através de suas costelas era
alta o suficiente para esconder seus ossos. Eles estavam todos lá. O ser
sobrenatural não havia sido tocado depois de sua queda. E a aldeia estava
deserta, as cabanas enegrecidas e abandonadas, apodrecendo, tudo inclinado
dentro dos recintos desmantelados. Uma calamidade tinha chegado ali, com
certeza. As pessoas tinham desaparecido. Um terror louco os havia dispersado,
homens, mulheres e crianças desembestaram pela selva e nunca mais retornaram. O
que aconteceu às galinhas, não se sabe, mas presumo que, por causa do
progresso, foram dizimadas; no entanto, por causa deste glorioso caso, obtive a
minha nomeação, bem antes do que eu esperava.

“Corri como um louco para dar conta dos preparativos para a
viagem, e menos de quarenta e oito horas, estava atravessando o Canal para me
apresentar aos meus empregadores e assinar o contrato. Em poucas horas, cheguei
a uma cidade que sempre me faz pensar num sepulcro pintado de branco. Um
preconceito, sem dúvida. Não tive dificuldade em encontrar os escritórios da
Companhia. Era o negócio mais importante da cidade, e todo mundo que conheci
sentia-se orgulhoso por tê-lo. Eles iam fundar um império ultramarino e fazer
muito dinheiro com o comércio.

“Uma rua estreita e deserta, imersa nas sombras, casas
altas, janelas com inumeráveis venezianas, um silêncio mortal, capim brotando
entre as pedras, à direita e à esquerda, imensas e pesadas portas duplas
entreabertas. Esgueirei-me através de uma dessas fendas e subi uma escada
varrida e sem adornos, tão árida como um deserto, e abri a primeira porta que
encontrei. Duas mulheres, uma gorda e outra magra, sentadas em cadeiras de
palhinha, tricotando com lã preta. A magra levantou-se e caminhou na minha
direção – de olhos baixos e sem parar de tricotar – e no momento em que eu me
preparava para sair do seu caminho, como se estivesse diante de uma sonâmbula,
ela parou e ergueu os olhos. Seu vestido era tão simples e liso como o tecido
de um guarda-chuva; fez meia-volta e conduziu-me a uma sala de espera. Dei o
meu nome, e olhei em volta. Uma mesa de negociação no centro, cadeiras comuns
ao longo das paredes, e, em uma extremidade, um grande e brilhante mapa,
marcado com todas as cores do arco-íris. 
Havia uma grande quantidade de vermelho – bom de ver a qualquer momento,
porque se sabe que algum trabalho real está sendo realizado ali-; um ou dois
lotes de azul, um pouco de verde, manchas de laranja, e, na Costa Oriental, uma
mancha púrpura, para mostrar onde se agrupam os pioneiros do progresso e bebem
a boa cerveja Lager. No entanto, eu não estava indo para nenhum desses
lugares.  Meu destino era o amarelo. Bem
no centro. E ali estava o rio – fascinante, mortal – como uma cobra. Meu Deus!
Uma porta se abriu, e nela apareceu a cabeça branca e formal de um secretário,
mas com uma expressão de compaixão no rosto, e seu indicador magro me fez sinal
para entrar no santuário. A luz era fraca e uma pesada escrivaninha disposta
bem no meio. Atrás dela, via-se a estrutura adiposa e pálida metida numa
sobrecasaca. Era o grande homem em pessoa. Ele possuía um metro e setenta de
altura, pelo que julguei, mas tinha em suas mãos o controle de milhões.
Apertamos as mãos, imagino, ele murmurou coisas vagas, considerou satisfatório
o meu francês, ‘Bon Voyage’.

“Cerca de quarenta e cinco segundos mais tarde, vi-me de
novo na sala de espera, diante do compadecido secretário, que, cheio de
desolação e simpatia, fez-me assinar alguns documentos. Acredito que me
comprometi, entre outras coisas, a não divulgar nem um dos segredos comerciais.
Bem, não vou fazê-lo agora.

“Comecei a me sentir um pouco desconfortável. Vocês sabem
que não estou acostumado com esse cerimonial, e havia algo de sinistro na
atmosfera. Era como se tivesse passado a fazer parte de uma conspiração – não
sei bem – alguma coisa que não era muito correta. Senti alívio ao sair dali. Na
sala de entrada, as duas mulheres tricotavam febrilmente a sua lã preta. As pessoas
estavam chegando e a mais nova andava para lá e para cá encaminhando o pessoal.
A mais velha continuava sentada na sua cadeira. Seus chinelos de pano estavam
apoiados em um aquecedor de pés, e um gato repousava em seu colo. Usava uma
touca branca e engomada na cabeça, tinha uma verruga na bochecha, e óculos de
aros de prata pendurado na ponta do nariz. Olhou-me por cima dos óculos. A
rápida e a indiferente placidez daquele olhar me incomodaram. Dois jovens com
semblante  inocente e jovial estavam
sendo escoltados até a sala de espera e ela jogou para eles o mesmo olhar
rápido de sabedoria despreocupada. Ela parecia saber tudo sobre eles e sobre
mim, também. Uma sensação estranha tomou conta de mim. Parecia sinistra e
profética. Muitas vezes, longe dali, pensava nessas duas mulheres, que
guardavam a porta das Trevas, tricotando sua lã preta como se tecesse uma
mortalha, uma encaminhando, encaminhando continuamente ao desconhecido, a outra
examinando os rostos tolos e despreocupados com os seus velhos olhos
indiferentes.  Ave!  Velha tricoteira de lã preta. ‘Morituri te salutant’.  Não foram muitos, dentre todos aqueles que
seus olhos observaram, que ela tornou a por os olhos; nem a metade deles.

“Havia ainda uma visita ao médico. ‘Uma simples
formalidade’, assegurou-me o secretário, com um ar solidário a todas as minhas
enfermidades. Assim, surgiu um rapaz com um chapéu tombado sobre o olho
esquerdo, algum escriturário, supus – deve haver escriturários na Companhia,
embora a casa mantivesse tão silenciosa como se estivesse situada na cidade dos
mortos – veio de alguma parte do andar de cima e conduziu-me com ele. Vestia-se
de maneira pobre e descuidada, com manchas de tinta nas mangas da jaqueta e sua
gravata era grande e revolta sob um queixo que tinha a forma de um bico de bota
velha. Ainda era cedo e o médico não havia chegado, então eu propus uma bebida,
logo ele deixou transparecer a veia de jovialidade. Quando nos sentamos diante
de nossos vermutes, ele se pôs a glorificar os negócios da Companhia, e
expressei minha surpresa por ele não estar envolvido em um empreendimento de
além-mar. Ele ficou muito sério e contido de repente. ‘Eu não sou tão idiota
quanto pareço, como disse Platão a seus discípulos’, disse ele
sentenciosamente, esvaziou o copo com grande resolução e levantou-se.

“O velho médico sentiu meu pulso, evidentemente pensando em
outra coisa ao mesmo tempo. ‘Bom, muito bom’, ele murmurou, e depois com certa
ansiedade me perguntou se eu permitiria que medisse o meu crânio. Bastante
surpreendido, eu disse que sim, e ele então, usando uma espécie de calibrador,
começou a tomar todas as medidas e dimensões cranianas, tomando notas com muito
cuidado. Era um homenzinho com barba por fazer, metido num casaco puído, tipo
uma gabardine, com os pés enfiados em chinelos, considerei-o um tolo
inofensivo. ‘Sempre peço permissão, no interesse da Ciência, para medir os
crânios de quem vai para lá’, disse ele. ‘E quando voltam, também?’, perguntei.
‘Ah, nunca torno a vê-los’, ele comentou, ‘e, além disso, as mudanças acontecem
no interior, você sabe.’ Ele sorriu, como se houvesse dito uma piada. ‘Então,
está indo para lá. Excelente. Interessante, também.’ Lançou-me um olhar de
curiosidade e fez mais uma anotação. ‘Algum caso de loucura na família?’, ele
perguntou, em um tom prosaico. Senti-me muito irritado. ‘É uma pergunta no
interesse da Ciência, também?’ ‘Seria’, respondeu ele, sem tomar conhecimento
de minha irritação, ‘interessante para a Ciência observar as mudanças mentais
dos indivíduos, no local, mas…’  ‘O
senhor é um alienista?’, interrompi sua conclusão. ‘Todo médico deveria ser –
um pouco’, respondeu, de maneira imperturbável. ‘Tenho uma pequena teoria e os
senhores que vão para lá poderão me ajudar a provar. Essa é a minha parte nas
vantagens que meu país deve colher em posse de tal território tão
magnífico.  A mera riqueza, deixo para os
outros. Perdoe-me  pelas perguntas, mas é
o primeiro  cidadão inglês que tenho
oportunidade de examinar…’ Apressei-me a assegurar-lhe que não tinha nada
de  extraordinário. ‘Se eu fosse’,
afirmei, ‘não estaria falando assim com o senhor.’ ‘O que diz é muito profundo
e, provavelmente,  incorreto’, comentou
ele com uma risada. ‘Evite a irritação mais do que a exposição ao sol. ‘Adieu’. Como se diz em sua língua?
Adeus. Ah! Adeus. ‘Adieu’.  Nos trópicos, a pessoa deve conservar a calma
acima de tudo.’ Ergueu um dedo em sinal de advertência… ‘Du calme, du calme. Adieu.’

“Só mais uma coisa restava a fazer – dizer adeus à minha
excelente tia. Encontrei-a triunfante; tomamos uma xícara de chá – o último chá
decente que eu iria provar durante muito tempo – e, em uma sala
tranquilizadora, como seria de esperar a sala de estar de uma senhora, tivemos
uma longa e tranquila conversa junto à lareira. No curso dessas confidências,
ficou bastante claro para mim que eu tinha sido apresentado para a esposa de um
alto dignitário, e só Deus sabe para quantas pessoas mais, além disso, como uma
criatura excepcional e talentosa – uma ótima aquisição para a Companhia – um
homem que não se encontra todo dia. Deus do céu! Eu estava indo para comandar
rio acima um vapor ordinário, com um insignificante apito. Parecia, no entanto,
que eu também era um dos Trabalhadores, com inicial maiúscula, vocês sabem.
Algo parecido com um mensageiro da luz, algo como uma espécie de apóstolo de
qualidade inferior. Havia um monte de besteira sobre o assunto circulando na
imprensa e nas conversas daquele tempo, e a excelente senhora, vivendo bem no centro
de toda essa conversa fiada, deixou-se empolgar. Ela falou sobre ‘arrancar
todos aqueles milhões de criaturas ignorantes de seus abomináveis costumes’,
até que, palavra de honra, fui ficando bastante desconfortável. Aventurei-me a
insinuar que os objetivos da Companhia era visar o lucro.

“’Você esquece, querido Charlie, que o trabalhador é digno
de seu salário’, disse ela, animada. É estranho como as mulheres podem ficar
afastadas da verdade. Elas vivem em um mundo próprio, que não se parece com
nada que já existiu nem jamais existirá. É um mundo muito bonito, e se elas
fossem configurá-lo, cairia aos pedaços antes do primeiro pôr do sol. Algum
confuso fato, com o qual nós, os homens, aprendemos a conviver alegremente
desde o dia da criação, que fosse iniciado e logo se desfizesse.

“Depois disso, ela me abraçou, disse para usar flanela, e
não me esquecer de escrevê-la com frequência, e assim por diante – e saí. Na
rua – não sei por qual motivo – veio-me a estranha sensação de que era um
impostor; uma reação insólita que eu, acostumado a debandar para qualquer parte
do mundo num prazo de vinte e quatro horas, refletindo menos que a maioria dos
homens quando atravessa uma rua, tive por um momento – não vou dizer de
hesitação, mas uma pausa instável, diante dessa situação tão banal. A melhor
forma que posso explicar a vocês é dizer que, por um segundo ou dois, eu me
senti como se estivesse prestes a partir, não para o interior de um continente,
mas para o centro da terra.

“Parti num vapor francês, que fazia escala em todo maldito
porto que encontrava em sua rota, com o único propósito, pelo que pude
verificar, de desembarcar soldados e oficiais de alfândega. Pude contemplar o
litoral. Observei toda a costa enquanto o navio ia passando diante dela, era
como se eu tentasse solucionar um enigma. Ela se estendia ali diante de mim –
sorrindo, franzindo a testa, convidativa, grandiosa, insípida, ou selvagem, e
sempre muda, mas com um ar sussurrante: ‘venha me decifrar’. Era quase
inexpressiva, como se ainda em formação, com um aspecto de uma severidade
monótona. Bem à beira de uma selva colossal, tão verde-escura que parecia ser
quase negra, margeada por uma espumosa franja branca, correndo em linha reta,
como se fosse uma régua, longe, muito longe ao longo de um mar azul cujo brilho
era obscurecido por uma névoa rasteira. O sol estava forte, a terra parecia
brilhar e gotejar vapores. Aqui e ali surgiam manchas de um branco acinzentado,
agrupadas dentro da espuma branca, com uma bandeira tremulando acima delas.
Assentamentos com alguns séculos de existência, e ainda não maiores do que uma
cabeça de alfinete visto assim de longe. Nosso navio avançava, parava,
desembarcava soldados; prosseguia, e mais adiante desembarcava funcionários de
alfândegas que iam arrecadar impostos numa região que parecia um deserto
abandonado por Deus, em locais onde não havia mais que um barracão de zinco e
um mastro de bandeira, perdidos naqueles ermos; desembarcavam mais soldados –
para cuidar dos funcionários da Alfândega, presumivelmente. Alguns, eu ouvi
dizer, afogavam ao atravessar a arrebentação, se isso acontecia ou não, ninguém
parecia particularmente preocupado em averiguar. Eles eram apenas despejados na
praia, e nós continuávamos a viagem. Todo dia a costa continuava sendo a mesma como
se nunca saíssemos do lugar; passamos, porém, por vários lugares onde se fazia
comércio e cujos nomes, como por exemplo, Gran’ Bassam e Little Popo, pareciam
pertencer a alguma sórdida farsa representada diante de um pano de fundo
sinistro. A ociosidade de um passageiro, meu isolamento entre todos esses
homens com quem eu não tinha nenhum ponto de contato, a oleosidade e a
languidez do mar, as trevas quase uniformes da costa, parecia manter-me longe
da realidade das coisas, preso a uma ilusão tristonha e sem sentido. Ouvia a
voz das vagas na arrebentação com um prazer positivo, como se fosse o discurso
de um irmão. Era algo natural, que tinha suas razões, um significado. De vez em
quando, um barco vindo da costa, punha-nos em contato momentâneos com a realidade.
Aproximava-se conduzido por remadores negros. Podia-se ver de longe o branco de
seus olhos brilhando. Eles gritavam, cantavam, seus corpos banhados de suor,
seus rostos eram como máscaras grotescas – esses sujeitos tinham osso,
músculos, uma vitalidade selvagem, uma intensa energia em movimento, que era
tão natural e verdadeira como a arrebatação ao longo da costa. Sua presença ali
não precisava de uma justificativa. Era um conforto poder contemplá-los. Por um
tempo, sentia que pertencia ainda a um mundo de fatos simples, mas esse
sentimento não iria durar muito. Algo iria ocorrer para afastá-lo. Uma vez, eu
me lembro, deparamo-nos com um navio-de-guerra, ancorado ao largo da costa. Não
havia nem mesmo um galpão por lá, mas ele estava bombardeando os arbustos.
Parecia que os franceses travavam uma de suas guerras naquelas paragens. Seu
estandarte pendia frouxo do mastro, como um trapo, os canos dos longos canhões
de seis polegadas projetavam-se à frente ao longo do casco inferior, gorduroso
e viscoso, levantando e abaixando preguiçosamente, fazendo oscilar os delgados
mastros. Na imensidão desabitada da terra, céu e água, lá estava ele,
incompreensível, disparando contra um continente. Bum!, fazia um dos canhões de
seis polegadas, e uma chamazinha brilhava e desaparecia, um pouco de fumaça
branca surgia e desaparecia, um projétil pequeno dava um grito fraco – e nada
acontecia. Nada poderia acontecer. Havia um toque de insanidade naquela
operação, um sentido de gracejo lúgubre à vista; e não foi dissipado quando
alguém a bordo assegurando-me solenemente que havia um acampamento de nativos –
que ele os chamou de inimigos! – escondido em algum lugar fora do alcance dos
olhos.

“Entregamos-lhe suas correspondências (ouvi dizer que os
seus tripulantes estavam morrendo de febre à razão de três homens por dia), mas
seguimos em frente. Fizemos escalas em outros lugares de nomes burlescos, onde
a alegre dança da morte e comércio prosseguia numa atmosfera tão terrena e
silenciosa como a de uma superaquecida catacumba; ao longo de toda a costa
disforme, delimitada pela perigosa arrebentação, como se a natureza procurasse
afastar os intrusos; entrando e saindo de rios, córregos de morte em vida,
cujos bancos foram apodrecendo em lama, cujas águas, espessas e lodosas, invadiam
os manguezais contorcidos, que pareciam se contorcer diante de nós no auge de
um impotente desespero. Em nenhum lugar paramos por um tempo suficiente para
obter uma impressão particularizada, mas um abrangente sentimento de assombro
vago e opressivo crescia dentro de mim. Era como se fizéssemos uma peregrinação
exaustiva por lugares repletos de sugestões para pesadelos.

“Passaram-se mais de trinta dias antes que eu avistasse a
foz do grande rio. Ancoramos ao largo da sede do governo. Mas meu trabalho só
começaria a duzentas milhas adiante. Assim, tão logo me foi possível, continuei
a viagem até um lugar situado a trinta milhas dali.

“Comprei passagem para viajar num pequeno vapor marítimo. O
capitão era um sueco, e sabendo que eu era um homem do mar, convidou-me para a
ponte de comando. Era um moço magro, louro e taciturno, de cabelos longos e
escorridos e andar gingado. Ao deixarmos o miserável ancoradouro, ele balançou
a cabeça com desprezo na direção da terra: “Estava vivendo lá?”, perguntou.
Eu disse: ‘Sim’. ‘Gente fina, esses sujeitos do governo, não acha?’, continuou,
falando em inglês com grande precisão e considerável amargura. ‘É engraçado o
que algumas pessoas são capazes de fazer por uns poucos francos por mês.
Gostaria de saber o que acontece com esse tipo de gente quando embrenha no
interior dessas selvas.’ Eu disse a ele que esperava sabê-lo disso em breve.
‘Correto-o-o!’, exclamou ele. Ele se arrastou para o outro lado, mantendo o
olhar vigilante à frente. ‘Não esteja tão certo’, continuou ele. ‘Noutro dia,
recolhi um homem que se enforcou no caminho. Era sueco também’. ‘Enforcou-se!
Por quê, em nome de Deus?’, perguntei. Ele continuou com o olhar vigilante.
‘Quem sabe? Podia ser sol demais para ele, ou o lugar, talvez.’

“Finalmente chegamos a um cabo formado por rochas elevadas.
Um penhasco rochoso apareceu, montes de terra revolvida nas margens, casas em
um morro, outras com telhados de ferro, entre um desperdício de escavações, ou
dependuradas nas encostas. O ruído constante de corredeiras mais acima pairava
sobre esse cenário de devastação descampada. Muitas pessoas, em sua maioria,
negras e nuas, movimentavam-se como formigas. Um cais se projetava rio adentro.
Uma luz ofuscante afogava o cenário, às vezes, em um repentino brilho recrudescente.
‘Aí está o posto de sua Companhia’, disse o sueco, indicando três construções
de madeira parecendo galpões, numa encosta rochosa. ‘Vou mandar levar suas
coisas. Quatro caixas, não são mesmo? Então, adeus.’

“Deparei-me com uma caldeira se chafurdando na grama e,
logo adiante, encontrei uma trilha que levava morro acima. Ela seguia na
direção do penhasco e também passava por um local onde se achava emborcado um
vagão de ferrovia, sem uma das rodas. A coisa parecia tão morta quanto à
carcaça de um animal. Deparei-me com mais peças de máquinas em decomposição,
uma pilha de trilhos enferrujados. À esquerda, um grupo de árvores formava um
ponto obscuro, onde as coisas escuras pareciam agitar-se debilmente. Pisquei os
olhos, o caminho era íngreme. Um apito soou à minha direita e vi pessoas negras
correndo. Uma detonação pesada e maçante sacudiu o chão e uma nuvem de fumaça
saiu do penhasco, e isso foi tudo. Nenhuma mudança se tornou visível na
superfície da rocha. Estavam construindo uma ferrovia. O penhasco não era
obstáculo algum; mas essa  explosão sem
sentido demonstrava que todo o trabalho continuava em curso.

“Um leve tilintar atrás de mim fez-me virar a cabeça. Seis
homens negros avançavam em fila, labutando para subir a trilha. Andavam eretos
e devagar, equilibrando pequenos cestos cheios de terra sobre suas cabeças, o
tilintar marcava o ritmo de seus passos. Tiras de panos negros tinham sido
enroladas em torno de seus lombos e suas pontas curtas balançavam-se de um lado
para outro às suas costas, como caudas. Podia-se perceber todas as suas
costelas, e as articulações de seus membros eram como nós de uma corda; cada um
tinha um colar de ferro no pescoço e todos estavam conectados entre si por uma
corrente, cujos elos oscilavam entre eles, tilintando ritmicamente. Outro
estrondo no penhasco me fez lembrar de repente daquele navio-de-guerra que eu
havia visto bombardear o continente. Era o mesmo tipo de estrondo, de sinistra
voz; mas esses homens, por nenhum esforço de imaginação, poderiam ser chamados de
inimigos. Eram chamados de criminosos, e a lei, ultrajada, assim como os
canhões retumbantes, havia chegado a eles, como um mistério insolúvel do mar.
Seus peitos descarnados ofegavam juntos, as narinas dilatadas tremiam
violentamente, os olhos se mantinham fixos no alto da colina. Passaram a seis
polegadas de mim sem sequer me olharem, com aquela indiferença completa e
mortal de infelizes selvagens. Atrás dessa matéria bruta, um dos que haviam
sido resgatados da selvageria, o produto das novas forças de trabalho,  passeava com ar  desanimado, carregando um rifle a tiracolo.
Usava uma túnica militar na qual faltava um botão, e vendo um homem branco no
caminho, ajeitou a arma em seu ombro com entusiasmo. Um mero ato de prudência,
pois os homens brancos eram muito semelhantes entre si à certa distância, que
ele não saberia dizer quem eu era. Logo se tranquilizou, e com um largo sorriso
branco e maroto, e um rápido olhar nos acorrentados, pareceu-me querer
aproximação, exaltando a sua confiança. Afinal, eu também fazia parte da grande
causa, daqueles elevados e justos processos.

“Em vez de subir, virei à esquerda e comecei a descer.
Minha ideia era deixar o agrupamento de acorrentados sumir de vista antes que
subisse a colina. Vocês sabem que eu não sou particularmente emotivo. Já tive
de atacar e de me defender, por muitas vezes – sem medir as consequências -, de
acordo com as exigências ao tipo de vida que encontrei pela frente. Já encarei
o demônio da violência, o demônio da ganância, o demônio do desejo desmedido;
mas, por todas as estrelas!, tratava-se de demônios fortes, corpulentos, de
fogo nos olhos, que dominavam e conduziam homens – homens, eu digo vocês.  Mas ali, na encosta, eu previ, sob o sol
ofuscante daquela terra que eu iria conhecer outro tipo de demônio, frouxo,
fingido, de olhar pusilânime, de uma loucura voraz e impiedosa. Como ele
poderia ser, eu só iria descobrir vários meses depois, milhares de quilômetros
adiante. Por um momento, fiquei chocado, como se recebesse uma advertência.
Finalmente, desci obliquamente a colina, em direção ao grupo de árvores que
havia visto.

“Desviei-me de uma enorme cratera artificial que alguém
estivera cavando na encosta, cuja finalidade não me foi possível adivinhar. De
qualquer maneira, não se tratava de uma pedreira, nem de uma escavação para
extração de areia. Era apenas uma cratera. E é possível que tivesse ligado ao
desejo filantrópico de dar aos criminosos algo para fazer. Não sei. Então,
quase caí dentro de uma estreita ravina, pouco mais do que uma cicatriz na
encosta. Descobri que um lote de manilhas importado para a construção da
colônia tinha sido retirado dali. Não havia uma que não estivesse quebrada. Uma
destruição totalmente sem sentido. Alcancei por fim o grupo de árvores. Meu
objetivo era andar a sombra por alguns momentos; mas, uma vez ali, pareceu-me
que tinha entrado no círculo sombrio de algum Inferno. As corredeiras ficavam
próximas, e um ruído ininterrupto, uniforme, poderoso e violento, enchia o
silêncio lúgubre do bosque – em que nada agitava o ar e nem uma folha se mexia
-, de um som misterioso, como se o ritmo arrancado da terra no espaço se
houvesse, de repente, tornado audível.

“Escuras formas agachadas estavam ali, deitadas, sentadas
entre as árvores, encostadas nos troncos, agarradas a terra, meio visíveis,
meio ocultas pela penumbra, todas em atitudes de dor, abandono e desespero.
Outra mina explodiu no alto do penhasco, seguido de um leve tremor de terra sob
os meus pés. O trabalho continuava em andamento. Trabalho! E este era o lugar
para onde alguns dos ajudantes haviam se retirado para morrer.

“Eles estavam morrendo lentamente – era óbvio. Não eram
inimigos, não eram criminosos, e agora já nem seres terrenos eram; nada além de
sombras negras, doentes e famintas, deitadas confusamente, amontoadas na sombra
esverdeada. Foram trazidos de todos os recantos da costa, com toda a legalidade
legitimada por contratos temporários, perdidos nessas paragens ásperas,
alimentando-se com comidas estranhas, adoecendo, tornando-se ineficientes ao trabalho,
e, então, sendo autorizados a rastejar para longe e descansar. Estas formas
moribundas estavam livres como o ar – e quase tão translúcidas como ele.
Comecei a distinguir o brilho dos olhos sob as árvores. Então, olhando para
baixo, vi um rosto perto das minhas mãos. Os ossos negros reclinados, com um
ombro encostado na árvore, e, lentamente suas pálpebras se ergueram e os olhos
fundos se voltaram para mim, enormes e vazios, uma espécie de cegueira, uma
cintilação branca nas profundezas das órbitas, apagando-se lentamente. O homem
parecia jovem – quase um menino – mas vocês sabem, no caso deles, é difícil
dizer a idade com precisão.  Não me
ocorreu outra coisa a fazer senão lhe oferecer um dos excelentes biscoitos do
navio sueco que eu tinha em meu bolso. Os dedos fecharam-se lentamente sobre
ele e assim ficaram – sem nenhum outro movimento e sem nenhum outro olhar. Ele
havia amarrado um pouco de tecido de lã branca em volta de seu pescoço – Por
quê? Onde conseguiu aquilo?  Era como um
emblema – um ornamento, um amuleto – um ato propiciatório? Haveria realmente
alguma ideia associada àquela tira?  Era
surpreendente ver ao redor do seu pescoço negro, o pedaço de pano branco vindo
de além-mar.

“Perto da mesma árvore mais dois feixes escuros, cheios de
ângulos agudos, sentados com as pernas encolhidas. Um deles, com o queixo
apoiado sobre os joelhos, mantinha o olhar fixo no vácuo de uma maneira
chocante e intolerável. Seu irmão fantasma descansava sua testa sobre os
braços, como se tentasse superar o grande cansaço, e outros tantos estavam
espalhados por ali em todo tipo de pose, em contorcido colapso, como em algum
quadro de massacre ou peste. Enquanto eu permanecia ali parado, horrorizado,
uma dessas criaturas ergueu-se, apoiada nas mãos e nos joelhos, e saiu andando
de quatro até o rio, para beber água. Recolheu a água na mão em concha, bebeu,
em seguida, sentou-se à luz do sol, cruzando as canelas diante de si, depois de
um tempo, deixou a cabeça cair sobre o seu peito peludo.

“Eu não queria mais vadiar na sombra e tratei de apressar o
passo na direção do posto. Perto dos edifícios, encontrei um homem branco,
trajado com tão inesperada elegância que, no primeiro momento, imaginei estar
diante de uma visão. Vi um colarinho alto e engomado, punhos brancos, uma
jaqueta de alpaca fina, calças brancas, uma gravata imaculada e botas
envernizadas. Sem chapéu. O cabelo repartido, escovado e oleado, sob um
guarda-sol forrado de verde, seguro por uma mão branca e grande. Ele era
incrível, e trazia uma caneta atrás da orelha.

“Apertei as mãos desse milagre e soube que era chefe de
contabilidade da Companhia, e que todo o serviço de contabilidade era feito
naquele posto. Havia saído por um momento, disse ele, ‘para obter uma lufada de
ar fresco’. A expressão soava maravilhosamente estranha, como sugestão de uma
vida sedentária e burocrática. Eu não teria mencionado esse sujeito a vocês, se
não fosse o fato de ter sido de seus lábios que ouvi pela primeira vez o nome
do homem que está tão indissoluvelmente ligado às minhas lembranças dessa
época. Além disso, eu respeitava o sujeito. Sim; eu respeitava seus colarinhos,
seus punhos largos, seus cabelos escovados. Sua aparência era certamente o de
um manequim de cabeleireiro; em meio à grande desmoralização da terra, mantinha
a sua aparência. Isso era ter princípio. Seus colarinhos e camisas engomados
eram uma conquista do caráter. Já estava ali havia quase três anos, e não pude
deixar de lhe perguntar como ele conseguiu manter as roupas naquelas condições.
Ele corou e declarou com modéstia: ‘Tenho ensinado uma das mulheres nativas do
posto. Foi difícil. Ela detestava o trabalho.’ Assim, esse homem tinha
conseguido algo. Dedicava a seus  livros
de contabilidade, que se encontravam na mais perfeita ordem.

“Tudo o mais no posto estava em profunda desordem – as
mentes, as coisas, os edifícios. Levas de negros empoeirados e de pés chatos
chegavam e partiam; um estoque de bens manufaturados, algodão ordinário,
miçangas e rolos de arame fluíam para as profundezas da escuridão, recebendo em
troca um precioso filete de marfim.

“Tive de esperar no posto durante dez dias – uma
eternidade. Fiquei alojado em uma cabana situada no pátio, mas para me ver
livre do caos reinante, às vezes, refugiava-me no escritório do contador. Fora
construído de tábuas horizontais, tão mal rejuntadas que quando ele se
debruçava em sua mesa alta, ficava com o corpo todo cortado por finas estrias
de sol. Nem era preciso abrir a janela para iluminar a sala. E era quente, lá
dentro. Moscas enormes zumbiam de modo infernal e eram dotadas não de ferrões,
mas de punhais. Geralmente, eu sentava no chão, enquanto ele, em sua aparência
impecável (e até mesmo um pouco perfumado), empoleirado em um banco alto,
escrevia, escrevia. Às vezes, ele levantava-se para fazer exercícios.  Quando trouxeram para o seu escritório um
catre com um homem doente (um trabalhador qualquer vindo do interior), ele se
mostrou levemente aborrecido.  ‘Os
gemidos desse doente´, disse ele, ‘desviam a minha atenção. E é preciso muita
atenção para evitar erros na escritura, neste clima’.

“Um dia ele comentou, sem levantar a cabeça, ‘no interior,
o senhor com certeza irá conhecer o Sr. Kurtz.’ Quando lhe perguntei quem era o
Sr. Kurtz,  ele me explicou que se
tratava de um agente de primeira classe; vendo a minha decepção com essa
informação, acrescentou lentamente, 
largando a caneta na mesa: ‘Ele é uma pessoa muito notável’. Suscitei
mais perguntas, fazendo-o me revelar que o Sr. Kurtz  naquele presente momento era o encarregado de
um posto comercial muito importante, localizado em plena região do marfim, ‘bem
no centro da selva. Ele manda mais marfim para cá do que todos os outros
encarregados juntos…’ E voltou a escrever. O homem no catre já não tinha
forças para gemer. As moscas zumbiam numa grande paz.

“De repente, houve um murmúrio crescente de vozes e um
grande tropel de pés. Havia chegado uma caravana. Um murmúrio violento explodiu
do outro lado das pranchas. Todos os carregadores estavam falando juntos e, em
meio ao tumulto, ouvia-se a voz lamentável do agente principal
“desistindo’ de tudo pela vigésima vez naquele dia… O contador
levantou-se vagarosamente. ‘Que zoeira terrível’, disse ele. Atravessou o
quarto suavemente para ir observar o enfermo, e voltando, disse-me: ‘Ele não
ouve.’ ‘Como! Morreu?’, perguntei, assustado. ‘Não, ainda não’, ele respondeu,
com muita serenidade. Então, aludindo com um lance de cabeça para o tumulto no
pátio lá fora. ‘Quando alguém tem que fazer a escrituração correta, chega-se
odiar esses selvagens – odiá-los até a morte.’ Ele permaneceu pensativo por um
momento. ‘Quando encontrar com o Sr. Kurt’, continuou ele, ‘diga-lhe de minha
parte que tudo aqui’ –  olhou para a mesa
– ‘está muito satisfatório. Não gosto de escrever para ele – com os mensageiros
que temos, nunca se sabe quem pode se apossar de sua carta naquele Posto
Central.’ Ele me olhou por um momento com os olhos mansos e protuberantes. ‘Ah,
ele irá longe, muito longe’, ele recomeçou. ‘Ele será alguém na Administração
antes do tempo. Eles, lá em cima – o Conselho Europeu, o senhor sabe – tem
planos para ele’.

“Ele voltou ao seu trabalho. A algazarra lá fora tinha
cessado, e na saída, parei na porta. No burburinho constante das moscas, o
agente de regresso à pátria estava deitado febril e insensível; o outro,
debruçado sobre os seus livros, ia dando lançamentos corretos de transações
igualmente corretas, e uns quinze metros abaixo da soleira da porta, eu podia
ver as copas das árvores, estáticas, no bosque da morte.

“No dia seguinte, deixei finalmente o posto com uma
caravana de sessenta homens, para uma marcha de mais de trezentos quilômetros.

“Não há muito que contar sobre essa viagem. Trilhas e
trilhas, caminhos a espalhar sobre a terra vazia, passando através de vegetação
muito alta, através de vegetação queimada, através de selvagens, descendo e
subindo ravinas frias, para cima e para baixo por colinas escaldantes; e uma
solidão, uma imensa solidão, ninguém, nem uma cabana. A população havia partido
há muito tempo atrás. Bem, se um bando de negros misteriosos armados com todos
os tipos de armas terríveis, de repente, começasse a percorrer a estrada entre
Deal e Gravesend, obrigando os camponeses da direita e da esquerda a
transportar cargas pesadas para eles, aposto que em pouco tempo as redondezas
ficariam desertas. Só que naquelas imediações as habitações tinham desaparecido
também. Ainda passei por várias aldeias abandonadas. Há algo pateticamente
infantil nas ruínas de uma choça de palha. Dia após dia, com o tropel de
sessenta pares de pés descalços atrás de mim, cada par com uma carga de
sessenta libras. Acampar, cozinhar, dormir, levantar acampamento, marchar. De
vez em quando, um carregador, morto em plena labuta, era largado em repouso no
meio do capim alto à beira do caminho, com uma cabaça de água vazia e o
comprido cajado deitado ao seu lado. Um grande silêncio em torno e acima.
Talvez, em alguma noite tranquila, o rufar distante de tambores, sumindo,
aumentando, um imenso tremor, frouxo; um som estranho, atraente, sugestivo e
selvagem – e, talvez, com um significado tão profundo como o soar de sinos em
um país cristão. Certa vez, um homem branco, metido em um uniforme desabotoado,
acampou no meio do caminho, com uma escolta armada de esquálidos nativos de
Zanzibar, muito hospitaleiro e festivo – para não dizer embriagado -, declarou
que estava cuidando da manutenção da estrada. Posso dizer que não vi qualquer
estrada nem qualquer obra de manutenção, a não ser que o corpo de um negro de
meia-idade, com um buraco de bala na testa, no qual tropecei literalmente umas
três milhas mais adiante, pudesse ser considerado uma melhoria permanente. Eu
tinha um companheiro branco, também, não era um mau sujeito, mas era corpulento
demais e com o hábito exasperante de desmaiar quando subia as escaldantes
encostas das colinas, situadas a quilômetros de distância de qualquer sombra e
água fresca. É irritante, vocês sabem, ter de ficar segurando o próprio paletó
como um guarda-sol, sobre a cabeça de um homem, enquanto ele não recobre os
sentidos. Não pude deixar de lhe perguntar o que tinha ido fazer ali afinal.
‘Ganhar dinheiro, é claro. Que acha?’, respondeu com desdém. Então ele teve uma
febre e foi preciso ser transportado em uma rede pendurada numa vara na
horizontal.  Como pesava cem quilos, tive
brigas intermináveis com os carregadores. Eles empacavam ou fugiam, sumindo no
meio da noite com a sua carga – um verdadeiro motim. Então, uma noite, eu fiz
um discurso em inglês, com gestos, dos quais nem um só escapou aos sessenta
pares de olhos diante de mim, e na manhã seguinte partimos com a rede na frente
da comitiva. Uma hora depois, deparei-me com toda aquela geringonça destruída
em um arbusto – o homem, rede, gemidos, cobertores, horrores. A pesada vara
havia esfolado seu pobre nariz. Ele estava muito ansioso, queria que eu
salvasse alguém, mas não havia sequer a sombra de um carregador por perto.
Lembrei-me do velho médico – “Seria interessante para a Ciência monitorar
as mudanças mentais dos indivíduos na selva.” Eu senti que estava me
tornando cientificamente interessante. No entanto, tudo isso foi sem propósito
algum. Quinze dias depois, avistei novamente o grande rio e caminhei trôpego
para o Posto Central, situado num braço do rio, cercado por mato e selva, com
uma margem de lama fedorenta de um lado, e dos outros lados, delimitado por uma
desmantelada cerca de juncos. Uma lacuna negligenciada na cerca era o portão,
e, à primeira olhadela pelo local, seria o suficiente para saber que um diabo
frouxo comandava o espetáculo. Homens brancos com longos bastões nas mãos
apareceram apáticos entre os prédios, vieram dar uma olhada em mim, e depois,
meteram-se em algum lugar fora de minhas vistas. Um deles, gordo e falante, de
bigodes pretos, informou-me com grande volubilidade e muitas digressões, assim
que me apresentei, que o meu vapor estava no fundo do rio. Fiquei aturdido. O
quê? Como assim? Por quê? Oh, estava ‘tudo bem’, o gerente ‘em pessoa’ estava
lá. ‘Todo mundo se comportou magnificamente, esplendidamente!’ O senhor deve’,
disse ele numa agitação, ‘ir ver o gerente-geral agora mesmo. Ele o espera.’

“Não percebi logo o verdadeiro significado daquele
naufrágio. Imagino que só compreendi isso agora, mas não estou muito certo
ainda, nenhuma certeza, na verdade. Certamente, o acontecimento era muito
estúpido – quando penso nisso – para ser considerado totalmente natural. Ainda
assim… Mas naquele momento me pareceu apenas como um incômodo. O vapor tinha
afundado. Eles haviam partido dois dias antes, com uma pressa repentina, rios
acima, com o gerente a bordo, a cargo de um capitão voluntário, e menos de três
horas mais tarde, rasgaram a parte inferior do barco nas pedras e ele afundou
perto da margem sul. Perguntei a mim mesmo que iria eu fazer ali, agora que meu
barco estava perdido. Na realidade, ia ter trabalho de sobra tentando pescar a
embarcação no fundo do rio. Tratei de pôr mãos à obra logo no dia seguinte.
Isso, e os reparos que tive que fazer quando resgatei as peças avariadas
levaram alguns meses.

“Minha primeira entrevista com o gerente foi curiosa.
Ele não me convidou para se sentar depois da minha caminhada de vinte milhas
naquela manhã. Ele era comum na aparência, nas maneiras e na voz. Tinha altura
mediana e constituição normal. Seus olhos, de um azul comum, eram talvez
extremamente frios, e ele, certamente, poderia descer seu olhar sobre uma
pessoa tão afiado e pesado como um machado. Mas, mesmo nestes momentos, o resto
de sua pessoa parecia negar essa intenção. Fora isso, existia apenas uma expressão
indefinível e fraca nos seus lábios, algo furtivo… um sorriso – não chegava a
ser um sorriso – lembro-me disso, mas eu não posso explicar isso. Era
inconsciente, aquele sorriso, embora logo que acabasse de dizer alguma coisa a
expressão furtiva se intensificava por um instante. Ele chegava ao final de
seus discursos como um rótulo aplicado sobre as palavras para fazer o
significado da frase mais comum parecer absolutamente inescrutável.  Ele era um comerciante comum, desde a sua
juventude agia naquela região – nada mais. Ele era obedecido, mas não inspirava
nem o amor nem medo, nem mesmo o respeito. Inspirava inquietação. Era isso
mesmo: inquietação. Não era uma inquietação bem definitiva – apenas um
mal-estar – nada mais. Vocês não têm ideia como é eficaz de uma… uma
faculdade … como essa pode ser. Ele não possuía o menor talento para
organização; nem iniciativa, nem mesmo uma certa noção de ordem. Isso ficava
evidente diante do deplorável estado em que se encontrava o posto. Ele não
tinha instrução, nem inteligência. Seu cargo tinha chegado a ele – por quê?
Talvez porque ele jamais ficasse doente… Ele havia cumprido três mandatos de
três anos ali… Porque a saúde triunfante na debandada geral das constituições
é um tipo de poder em si mesmo. Quando ia para casa, de licença, farreava em
grande escala – pomposamente. Um marujo em terra – com uma diferença – na
aparência, isso era possível deduzir na sua conversa informal. Ele não criava
nada, somente mantinha a rotina – isso era tudo. Mas ele era grande. Mas era
grande pela simples razão de que era impossível dizer o que poderia controlar
um homem daquele tipo.

“Nunca revelou o seu segredo. Talvez não houvesse nada
dentro dele. Essa suspeita fazia pensar, pois naquelas bandas não havia
controles externos. Certa vez, quando várias doenças tropicais tinham derrubado
quase todos os agentes no posto, ouviram-no dizer: ‘Os homens que vêm pra cá
não deviam ter entranhas.’ Ele selou seu enunciado com aquele sorriso, como se
fosse uma porta que se abria para uma escuridão que ele tinha sob a sua guarda.
Vocês imaginam que eu tinha visto coisas, mas o selo estava lá. Quando se
irritou com as brigas constantes dos homens brancos sobre precedência na hora
das refeições, mandou fazer uma imensa mesa redonda, para a qual foi preciso
construir um galpão especial.  Passou a
ser ali o refeitório do posto. Ele sentava no lugar principal – todos os demais
eram nada. Sentia-se que possuía uma convicção inalterável. Ele não era civilizado
nem incivil. Era calado. Permitia que seu ‘garoto’ – um jovem negro e obeso da
costa – tratasse os homens brancos, na sua frente, com irritante insolência.

“Ele começou a falar logo que me viu. Que eu tinha
ficado muito tempo na estrada. Ele não podia esperar. Teve que começar sem mim.
Os postos situados rio acima precisavam ser reabastecidos. Houve tantos atrasos
que ele não sabia quem estaria morto e quem estaria vivo, e como estariam – e
assim por diante. Ele não prestou atenção às minhas explicações, enquanto
brincava com um bastão de lacre, repetiu várias vezes que a situação era ‘muito
grave, muito grave.’ Havia rumores de que um dos postos, de muita importância,
estava em perigo, e seu chefe, o Sr. Kurtz, estava doente. Esperava que isso
não fosse verdade. ‘Sr. Kurtz era…’ Eu me senti cansado e irritado.
Interrompi-o dizendo que ouvira falar sobre o Sr. Kurtz na costa. ‘Ah! Então
eles falam sobre ele por lá”, ele murmurou para si mesmo. Recomeçou,
assegurando-me de que o Sr. Kurtz era o melhor agente que possuíam, um excepcional
homem, da maior importância para a Companhia; portanto, eu podia entender sua
ansiedade. Ele estava, disse ele: ‘muito, muito preocupado’. Ele remexeu em sua
cadeira e exclamou: ‘Ah, Sr. Kurtz!’, quebrou o pau de lacre e pareceu
estupefato pelo acidente. Em seguida, quis saber ‘quanto tempo seria necessário
para’… eu o interrompi novamente. Estava faminto, vocês sabem, e mantinha-me
de pé, também. Eu estava com fome. ‘Como eu posso saber?’, indaguei: ‘Nem vi
ainda o naufrágio – alguns meses, sem dúvida.’ Toda essa conversa me pareceu
tão fútil. ‘Alguns meses’, ele disse. ‘Bem, vamos dizer que serão três meses
antes de partirmos. Sim, isso deve ser o tempo. Então, saí afoito de sua cabana
(ele morava sozinho numa cabana de barro que tinha uma espécie de varanda)
resmungando comigo mesmo o que pensava dele. Ele era um idiota tagarela. Depois
reformulei minha opinião, surpreendido pela sua minúcia extrema como havia
estimado o tempo necessário para o caso.

“Eu fui trabalhar no dia seguinte, voltando, por assim
dizer, às costas aquele posto. Parecia-me ser essa a única maneira de manter o
meu domínio sobre os fatos redentores da vida. Ainda assim, deve-se olhar em
nossa volta algumas vezes; então, eu vi esse posto, e todos aqueles homens
caminhando sem rumo sob o sol do pátio.

“Perguntava a mim mesmo que significava tudo aquilo. Eles
andavam daqui e prali com os seus longos e absurdos cajados nas mãos, como um
bando de peregrinos sem fé, enfeitiçados e aprisionados dentro de uma cerca
apodrecida. A palavra ‘marfim’ vibrava no ar, sussurrada, suspirada. Vocês
pensariam que eles estavam orando por meio dela. Uma mancha, de uma ganância
imbecil, explodia sobre tudo isso, como um sopro de um cadáver. Por Deus! Nunca
vi nada tão irreal na minha vida. E do lado de fora, a selva silenciosa em
torno desta partícula apurada de terra me pareceu algo grande e invencível,
como o mal ou a verdade, esperando pacientemente pelo fim daquela fantástica
invasão.

“Ah, aqueles meses! Bem, não importa. Várias coisas
aconteceram. Uma noite, uma choça de palha atulhada de peças de chita, estampas
de algodão, miçangas e não sei mais o quê, explodiu em um braseiro, tão
repentinamente, que se teria pensado que a terra se abrira para deixar um fogo
vingador consumir todo aquele lixo. Eu estava fumando o meu cachimbo,
tranquilamente, ao lado do meu desmantelado barco e vi todos eles com os braços
elevados, pulando desnorteados diante do clarão do fogo, quando o homem
corpulento, de bigodes, veio correndo para o rio, com um balde de lata na mão,
e garantiu-me que todo mundo estava se comportando ‘esplendidamente,
magnificamente’, recolheu cerca de um litro de água e regressou. Notei que
havia um buraco no fundo do balde.

“Dirigi-me calmamente até o local. Não havia pressa. A
coisa toda tinha pegado fogo como uma caixa de fósforos. Desde o princípio,
via-se que o caso era perdido. O fogo subiu a grande altura, obrigando todo
mundo a recuar, clareando tudo – e extinguiu. A cabana se transformou num monte
de cinzas incandescentes. Perto dali, um negro estava sendo espancado. Diziam
que ele, de alguma forma, havia causado o incêndio; seja como for, o fato é que
ele gritava espantosamente. Eu o vi sentado à sombra, durante vários dias,
parecendo muito doente e tentando se recuperar; algum tempo depois, levantou-se
e partiu – e a selva, sem um único som, recebeu-o em seu seio novamente. Quando
me aproximei do brilho, vindo das trevas, parei por acaso atrás de dois homens,
que conversavam. Ouvi o nome de Kurtz ser pronunciado, em seguida, as palavras:
‘aproveitar desse infeliz acidente.’ Um dos homens era o gerente, desejei-lhe
boa noite. ‘Você já viu algo assim – hein? É incrível’, ele disse, e
afastou-se. O outro homem permaneceu. Era um agente de primeira classe, jovem,
cavalheiro, um pouco reservado, com uma barba um pouco bifurcada e um nariz
adunco. Ele era retraído diante dos outros agentes; por sua vez, diziam que ele
os espionava, a serviço do gerente. Quanto a mim, mal havia falado com ele
antes. Começamos a conversar e fomo-nos afastando das ruínas sibilantes. Então
ele me convidou para ir até o seu quarto, que ficava no prédio principal do
posto. Ele riscou um fósforo e percebi que este jovem aristocrata não tinha
apenas um estojo de prata, mas também uma vela inteira só para ele. Naquela
época, o gerente era o único homem que deveria ter o direito a velas.  Esteiras nativas cobriam as paredes de barro,
e uma coleção de lanças, azagaias, escudos e facas estava pendurado em troféus.
O trabalho confiado a esse homem era a fabricação de tijolos – isso que  me informaram; mas não havia um fragmento
sequer de tijolo em qualquer parte do posto, e ele se encontrava ali há mais de
um ano – à  espera. Parece que ele não
poderia fazer tijolos por falta de alguma coisa, eu não sei o quê – palha,
talvez. De qualquer forma, essa palha não podia ser encontrada ali, e como era
provável que não pudesse vir da Europa, não pareceu claro para mim que ele
estivesse aguardando a palha por um ato de criação especial, talvez. No
entanto, eles estavam todos esperando – todos os dezesseis ou vinte peregrinos
– para alguma coisa parecida; dou-lhes a minha palavra que não pareceu uma
ocupação desagradável, do jeito que eles esperavam, embora a única coisa que
veio a eles foi a doença – tanto quanto eu pude observar. Passavam o tempo todo
fazendo intrigas e indispondo uns contra os outros de uma maneira inteiramente
estúpida. Havia um ar de conspiração sobre o posto, mas isso não deu em nada; é
claro que era tão irreal quanto qualquer outra coisa – a pretensão filantrópica
do empreendimento todo, como a sua conversa, o seu governo, como o seu falso
trabalho. O único sentimento real era o desejo de ser nomeado para um posto
comercial, onde o marfim obtido pudesse render-lhes boas porcentagens. Eles
viviam em meio às intrigas, às calúnias, odiavam-se apenas por causa disso –
mas para de fato poderem levantar um dedo que fosse -, oh, não. Por céus! Há
alguma coisa, afinal, num mundo que permite a um homem roubar um cavalo
enquanto outro não pode nem mesmo olhar para um cabresto. Roubar um cavalo sem
maiores cerimônias. Muito bem. Ele o fez. Talvez ele possa montar. Mas há uma
maneira de olhar para um cabresto que provocaria o mais caridoso dos santos a
dar um chute.

“Eu não tinha ideia do motivo de sua sociabilidade,
mas conversávamos lá dentro; de repente, ocorreu-me que o rapaz estava tentando
chegar a algum lugar. Na verdade, estava me sondando. Ele aludia constantemente
à Europa, às pessoas que eu deveria conhecer lá – fazendo perguntas
principalmente sobre meus conhecidos e contatos na cidade sepulcral, e assim
por diante. Seus olhinhos brilhavam como placas de mica – com muita curiosidade
– embora tentasse manter certo ar de indiferença. A princípio espantei, mas
logo fiquei muito curioso para saber o que pretendia descobrir através de mim.
Eu não poderia imaginar que houvesse em minha pessoa algo que valesse o seu
tempo. Era muito divertido ver como ele se confundia, pois, em verdade, meu
corpo estava apenas cheio de calafrios, e minha cabeça não tinha nada a não ser
a determinação de recuperar aquele miserável barco a vapor. Era evidente que
ele me tomou por um prevaricador perfeitamente sem vergonha. Finalmente, ele
ficou com raiva, e, para esconder a sua contrariedade furiosa, bocejou. Pus-me
de pé. Então, notei um pequeno esboço de uma pintura a óleo, em um painel,
representando uma mulher de olhos vendados, carregando uma tocha acesa. O fundo
era sombrio – quase negro. O movimento da mulher era imponente, e o efeito do
reflexo da tocha sobre seu rosto, sinistro.

“O quadro me prendeu a atenção, e ele também parou ao
meu lado, polidamente, segurando uma garrafa de champanhe vazia (um conforto
medicinal) com a vela enfiada no gargalo. Para a minha pergunta, ele disse que
o Sr. Kurtz tinha pintado aquilo – neste mesmo posto, fazia mais de um ano –
enquanto aguardava meios para chegar ao seu posto definitivo. ‘Diga-me, por
favor’, eu pedi, ‘quem é este Sr. Kurtz?’

“O chefe do Posto do Interior”, ele respondeu em um
tom curto, desviando o olhar. ‘Muito obrigado’, eu disse, rindo. ‘E o senhor é
o fabricante de tijolos do Posto Central. Todos sabem disso.’ Ele ficou em
silêncio por um tempo. ‘Ele é um prodígio’, falou, afinal. ‘Ele é um emissário
de piedade, da ciência e do progresso, e diabo sabe o que mais. Queremos’, ele
começou a declamar, de repente, ‘para a orientação da causa que nos foi
confiada pela Europa, por assim dizer, uma inteligência superior, largas
simpatias, uma unidade de propósito.’ ‘Quem diz isso?, perguntei. ‘Muitos deles
‘, respondeu ele. ‘Alguns chegaram mesmo a escrever a respeito, em vista disso,
ele veio para cá, um ser especial, como o senhor deve saber.’ ‘Por que eu
deveria saber?’, interrompi-o, realmente surpreso. Ele não prestou atenção.
‘Sim. Hoje ele é chefe do melhor posto, e, no próximo ano, será assistente do
gerente, dois anos a mais e… não ouso dizer o que o senhor já sabe o que ele
será em dois anos. O senhor é da turma nova – a turma dos virtuosos. As mesmas
pessoas que o enviaram especialmente para cá, também, enviaram o senhor. Oh,
não diga não, eu tenho os meus próprios olhos para confiar…´ Tive um lampejo
de compreensão. Os conhecidos influentes da minha querida tia estavam
produzindo um efeito inesperado sobre aquele jovem. Quase soltei uma
gargalhada. ‘Tem o hábito de ler a correspondência confidencial da Companhia?’,
indaguei-lhe. Ele não soube o que dizer. Foi muito divertido. ‘Quando o Sr.
Kurtz’, continuei, severamente, ‘for o Gerente Geral, o senhor não terá mais
essa oportunidade.’

“Ele apagou a vela de repente e nós saímos. A lua já tinha
nascido. Vultos negros andavam com passo lerdo de um lado para outro, jogando
água no braseiro, que chiava intermitentemente; o vapor subia à luz da lua, o
negro espancado gemia num canto qualquer. ‘Que zoeira faz esse animal!’,
comentou o incansável homem dos bigodes, aproximando-se de nós. ‘Bem merecido.
Transgressão – punição – bang! Sem a menor piedade, impiedade. Esse é o único
jeito. Isto irá prevenir a todos os incendiários no futuro. Acabei de dizer
isso ao gerente…’ Nesse momento ele notou quem era o meu companheiro, e ficou
cabisbaixo. ‘Não foi ainda para a sua cama’, disse ele, com uma espécie de
cordialidade servil; ‘Que é tão natural. Ah, perigo, agitação.’ Ele desapareceu
e  fui para a beira do rio, e o outro
seguiu-me. Ouvi um murmúrio sarcástico junto ao meu ouvido: ‘Bando de
imbecis… Vão para…’ Os peregrinos podiam ser visto em grupinhos,
gesticulando, discutindo. Vários tinham ainda os seus cajados nas mãos.
Acredito realmente que levavam os cajados para a cama. Além da cerca, a selva
erguia-se como um espectro ao luar, em débil agitação, através dos ruídos
abafados daquele deplorável pátio, o silêncio da terra vinha diretamente até o
coração da gente – com o seu mistério, sua grandeza, e a surpreendente
realidade da vida nela escondida. O negro ferido gemeu debilmente em algum
lugar próximo dali e depois foi buscar um profundo suspiro que me fez apressar
o ritmo dos passos, afastando-me dali. Senti que uma mão se enfiava sob meu
braço. ‘Meu caro senhor’, disse o sujeito: ‘Não quero ser mal interpretado,
especialmente pelo senhor, que vai ver o Sr. Kurtz muito antes que eu tenha
esse prazer. Não gostaria que ele fizesse uma ideia falsa de minha atitude…

“Eu deixei que aquele Mefistófeles de papel machê
prosseguisse, e pareceu-me que se eu tentasse, poderia enfiar meu dedo
indicador através dele, e não encontraria nada dentro, a não ser talvez, um
pouco de poeira solta. Vejam vocês que ele vinha planejando se tornar
assistente do gerente de comum acordo com o seu superior imediato, e eu pude
ver que a vinda de Kurtz havia perturbado os dois um pouco. Ele falava
precipitadamente, e eu não tentei impedi-lo. Meus ombros estavam apoiados nos
destroços do meu barco, que fora arrastado encosta acima como se fosse a
carcaça de um grande animal do rio. O cheiro de barro – de barro primevo, por
Deus! -, estava em minhas narinas, e a quietude elevada da selva primitiva
estava diante dos meus olhos; havia manchas brilhantes no riacho negro. A lua
havia espalhado por cima de tudo uma camada fina de prata – sobre a grama,
sobre a lama, em cima do muro de vegetação emaranhada, bem mais alto que a
parede de um templo, sobre o grande rio que eu podia ver através de um espaço
sombrio brilhante, reluzente, fluindo amplamente sem um murmúrio.

Tudo isso era grandioso, expectante, silente, enquanto
aquele homem tagarelava sobre si mesmo. Gostaria de saber se o silêncio sobre a
face da imensidão que nos contemplava significaria um apelo ou uma ameaça. Quem
éramos nós que estávamos ali perdidos? Seríamos capazes de dominar aquela mudez
ou ela que nos dominaria? Percebi como era grande, espantosamente grande,
aquela coisa que não podia falar, quem sabe, também não podia ouvir. Que
haveria no seu interior? Eu podia ver um pouco de marfim saindo de lá, e eu tinha
ouvido que o Sr. Kurtz estava lá, já tinha ouvido o suficiente sobre isso,
também – Deus sabe como! Não trouxe qualquer imagem com ele – não mais do que
se tivessem me dito que um anjo ou um demônio estava lá, eu acreditava nisso da
mesma forma que um de vocês pode acreditar que há habitantes no planeta Marte.
Conheci uma vez um marinheiro escocês que tinha certeza, a certeza absoluta, de
que havia pessoas em Marte. Se você pedia-lhe alguma ideia de como eles eram,
ele ficava desconcertado e resmungava que ‘andavam de quatro’. Se você
debochasse, ele – embora um homem de sessenta anos – desafiava-o para uma
briga. Eu não iria tão longe a ponto de lutar por causa de Kurtz, mas cheguei
perto o suficiente disso quando menti por ele. Vocês sabem que não admito,
detesto mentiras, não porque seja mais honesto do que o resto da humanidade,
mas simplesmente porque a ideia me assombra. Há uma nódoa de morte, um sabor de
mortalidade nas mentiras – que é exatamente o que eu odeio e detesto no mundo –
e procuro esquecer. Isso me faz infeliz e doente, como algo de podre que eu
mordesse me faria. Temperamento, eu suponho. Bem, eu fui perto disso o
suficiente ao deixar que aquele jovem tolo acreditasse que eu tinha de fato
alguma influência ou prestígio na Europa. Eu me transformei por alguns
instantes numa fraude tão grande quanto à representada por aquele bando de
peregrinos enfeitiçados que estavam ali. Isso simplesmente porque eu tinha uma
noção de que, de alguma forma, seria de grande ajuda para Kurtz, a quem na
época ainda não conhecia – vocês podem entender isso? Ele era apenas um nome
para mim; eu não via o homem nesse nome da mesma forma que vocês veem. Podem
enxergá-lo? Podem ver a sua história? Podem ver alguma coisa? Tenho a impressão
de estar tentando lhes contar um sonho – faço uma tentativa em vão, porque
relato algum de um sonho pode transmitir a sensação de sonho, essa mescla de
absurdo, surpresa e desconcerto, num tremor de revolta em que nos debatemos,
essa noção de ser capturado pelo inacreditável, que é da própria essência dos
sonhos…”

Ele ficou em silêncio por um tempo.

“… Não, é impossível; é impossível transmitir aos outros
as sensações, a sensação exata de qualquer época de nossa existência – o que
torna a sua verdade, o seu significado – a sua essência sutil e penetrante. É
impossível. Nós vivemos, como sonhamos – sozinhos…”

Ele parou de novo, como se refletindo, em seguida,
acrescentou:

“É claro, companheiros, que podem ver mais do que eu
poderia ver na ocasião. Vocês me veem e sabem quem sou…”

A escuridão se tornara tão profunda que nós, os ouvintes,
mal conseguíamos enxergar uns aos outros. Por um longo tempo ele, sentado à
parte, tinha sido não mais do que uma voz para nós. Não se ouviu uma palavra de
ninguém. Os outros podiam estar dormindo, mas eu estava acordado. Ouvia,
desperto, à espera da frase, da palavra que me desse a pista para o leve
mal-estar inspirado por essa narrativa que parecia se moldar sem ajuda de
lábios humanos, no denso ar noturno do rio.

“… Sim – eu deixei que ele prosseguisse”,
Marlow começou de novo, “e pensar o que quisesse sobre os poderes que
estavam atrás de mim! E não havia nada atrás de mim a não ser aquele miserável,
velho e mutilado barco a vapor contra o qual eu estava encostado, enquanto ele
falava fluentemente sobre: a necessidade de cada um chegar lá. E quando se
chega aqui, o senhor já sabe, que não é para olhar a lua. O Sr. Kurtz era um
‘gênio universal’, mas mesmo para um gênio seria mais fácil trabalhar com as
‘ferramentas mais adequadas – homens inteligentes’. Ele não fabricava tijolos –
por que, havia uma impossibilidade física no caminho – como eu estava bem
consciente, e se ele fazia o trabalho de um secretariado para um gerente, era
porque ‘nenhum homem sensato’ rejeita desenfreadamente a confiança de seus
superiores. Será que eu era capaz de entender? Sim, eu era. O que mais eu
queria? Pelos céus! O que eu realmente queria era rebites. Rebites para seguir
com o trabalho – para consertar a fenda no casco. Eu precisava de rebites.
Havia caixotes cheios deles no litoral – caixotes e mais caixotes, empilhados
uns sobre os outros, rachados, arrebentados! Você chutava rebites a cada passo
no pátio daquele posto lá no alto da encosta. Rebites desciam rolando para o
bosque da morte. Você poderia encher seus bolsos com rebites tendo dificuldade
apenas de se curvar – e não havia um rebite a ser encontrado onde você
realmente desejaria encontrá-lo. Tínhamos as placas de metal necessárias, mas
não dispúnhamos de nada com que prendê-las. E toda semana, o mensageiro, um
negro solitário, de bolsa no ombro e cajado na mão, deixava a nossa estação
para a costa; e, várias vezes por semana, uma caravana chegava com bens
comerciais – medonhas peças de algodão de estamparia berrante, que davam
arrepios na gente só de ver, contas de vidro valendo um centavo a grosa,
detestáveis lenços de algodão salpicados de pintas. E sem rebites. Três
carregadores bastariam para trazer toda a quantidade suficiente para pôr aquele
barco flutuando de novo.

“Ele estava se tornando confidencial agora, mas eu
penso que a minha atitude de indiferença deve tê-lo irritado afinal, porque
julgou necessário informar-me que não temia Deus nem o diabo, muito menos
qualquer reles ser humano. E eu lhe disse que podia ver isso muito bem, mas o
que eu queria era certa quantidade de rebites – e rebites era o que realmente
queria Kurtz, se ele soubesse da situação… ‘Meu caro senhor ‘, ele resmungou,
‘Eu escrevo a partir do que me é ditado.’ Exigi os rebites. Havia uma maneira
para isso – para um homem inteligente. Ele mudou de  atitude; tornou-se muito frio, e de repente
começou a falar sobre um hipopótamo; perguntou se dormia a bordo do navio (eu
não saía de perto do barco dia e noite, desde o resgate), eu não estava sendo
perturbado. Havia um velho hipopótamo que tinha o mau hábito de sair à noite
caminhando a esmo pelos terrenos do posto. Os peregrinos costumavam surgir em
bloco e descarregar todos os tipos de armas que conseguiam deitar a mão sobre o
animal. Alguns até chegavam mesmo a ficar de tocaia a noite inteira. Embora,
toda essa energia fosse desperdiçada. ‘Aquele animal tem o corpo fechado’, foi
o que ele disse, ‘mas pode acreditar que isso só sucede com os bichos daqui.
Nenhum homem – você me compreende? – homem algum aqui tem uma vida protegida assim.’
Ele ficou ali por um momento, à luz do luar, com seu delicado nariz
adunco,  um pouco torto e os seus olhos
de mica brilhando sem piscar; então, com um seco boa noite, afastou-se. Pude
ver que ele estava perturbado e consideravelmente perplexo, o que me fez sentir
mais esperançoso do que tinha estado até então. Foi um grande alívio para eu
deixar a companhia daquele sujeito e voltar ao meu influente amigo –  o maltratado, torcido e arruinado barco. Subi
a bordo. Retinia sob meus pés como uma lata de biscoito Huntley & Palmer
vazia, chutada ao longo de uma sarjeta; não era nada tão sólido e muito menos
bem acabado como uma dessas latas, mas eu tinha gasto bastante horas de
trabalho duro nele, o suficiente para amá-lo. Nenhum amigo influente poderia ter
me servido melhor. Ele tinha me dado a chance de me mostrar um pouco – de
descobrir o que eu poderia ser capaz de fazer. Não, eu não gosto de trabalhar.
Sempre preferi ficar à toa, pensando em todas as coisas boas que podem ser
feitas. Eu não gosto de trabalhar – homem algum gosta – mas eu gosto do que
está na obra – a chance de encontrar-se com a sua própria realidade – algo para
si mesmo, não para os outros – aquilo que nenhum outro homem jamais pode saber.
Eles só podem ver o resultado simples, e nunca podem perceber o que ele
realmente significa.

“Eu não fiquei surpreso ao ver alguém sentado à popa,
no convés, com as pernas balançando sobre a lama. Vocês compreendem, eu fiz
amizade com os poucos mecânicos que havia naquela estação, a quem os outros peregrinos
naturalmente desprezavam, devido às suas maneiras pouco educadas, suponho. Esse
era o capataz – sua profissão era a fabricação de caldeira – um bom
trabalhador. Ele era magro, ossudo, com cara amarelada e olhos grandes e
profundos. Possuía um ar preocupado e uma cabeça tão calva quanto à palma da
minha mão, mas o seu cabelo ao cair parecia ter grudado ao seu queixo e tinha
prosperado nessa nova localidade, pois a sua barba pendia até a sua cintura.
Ele era viúvo, com seis filhos (que ele havia deixado a cargo de uma irmã ao ir
para ali), e a paixão de sua vida era o voo dos pombos. Ele era um entusiasta e
conhecedor do assunto. Ele se deliciava com pombos. Depois de horas de
trabalho, vinha a minha cabana para uma conversa sobre seus filhos e seus pombos;
no trabalho, quando ele tinha que rastejar na lama sob o fundo do barco a
vapor, ele protegia a barba amarrando uma espécie de guardanapo que trazia
especialmente para esse fim, e que tinha alças passando sobre suas orelhas. À
noite, ele podia ser visto agachado à beira do rio lavando a capa de barba no
riacho, com grande cuidado, em seguida, estendendo-o solenemente em um arbusto
para secar.

“Eu dei um tapa nas costas dele e gritei: ‘Vamos ter
rebites!’  Ele ficou de pé, exclamando:
‘Não! Rebites!’, como se não pudesse acreditar no que ouvia. Então, em voz
baixa: ‘O senhor … hein?´ `Eu não sei por que nos comportamos como
lunáticos´. Coloquei meu dedo junto do meu nariz e balancei a cabeça
misteriosamente. ‘Bom para você!’, ele gritou, estalando os dedos acima da
cabeça, levantando um pé. Tentei cantarolar. Nós cabriolamos pelo convés de
ferro, fizemos um barulho terrível no casco que retumbou na selva virgem, na
outra margem do riacho, enviando de volta 
uma trovoada sobre o posto adormecido. 
O barulho deve ter feito alguns peregrinos se acordarem em seus
barracos. Uma figura escura eclipsou a porta iluminada da cabana do gerente,
desaparecendo em seguida e, um segundo ou mais, a porta  desapareceu, também. Paramos, e o silêncio,
expulso pelos nossos pés repercutiu outra vez no recessos da terra. A grande
muralha da vegetação, uma massa exuberante formada por um emaranhado de
troncos, ramos, folhas, galhos, folhagens, imóvel sob o luar, era como uma
invasão desordenada de vida sem som, uma onda veio rolando das plantas
empilhadas, encrespada, pronta para tombar sobre o rio, para varrer a nossa
insignificante existência. Mas isso continuou imóvel. Uma explosão amortecida
de arremessos poderosos e roncos chegou-nos de longe, como se um icthyosaurus
estivesse tomando um banho brilhante no grande rio. ‘Depois de tudo’, disse o
fabricante de caldeira, em um tom sensato, ‘por que não iríamos conseguir os
rebites?’ Por que não, de fato! Eu não sabia de nenhuma razão para  não obtê-los. ‘Eles vêm em três semanas’, eu
disse, confiante.

“Mas eles não chegaram. Ao invés de rebites veio uma
invasão, uma imposição, uma visitação. Veio em seções durante as próximas três
semanas, cada seção chefiada por um jumento carregando um homem branco em
roupas novas e sapatos marrons, curvados, balançando a cabeça à direita e à
esquerda para os impressionados peregrinos. Um bando de negros briguentos e
mal-encarados, com os pés em chagas, marchava atrás dos jumentos; muitas
barracas, bancos de acampamento, caixas de latas, caixas brancas e fardos
marrons eram atirados no pátio, e o ar de mistério se aprofundava um pouco mais
com a confusão do posto. Cinco parcelas vieram desse jeito com o ar absurdo de
uma fuga desordenada, como se tivessem saqueado inúmeras lojas de roupas e provisões;
e podia se pensar que, após o saque, eles estavam carregando os frutos dos
roubos para a selva, para uma divisão equitativa. Foi uma confusão inexplicável
de coisas decentes em si, mas que a estupidez humana fez olhar como os despojos
de ladrões.

“Aquele devotado bando dava a si próprio à denominação
de Expedição Exploradora do Eldorado, e eu acredito que tinham jurado algum
segredo. A conversa, no entanto, foi uma conversa de sórdidos piratas – eram
imprudentes sem ousadia, gananciosos sem audácia e cruéis sem coragem -; não
havia um átomo de previsão ou de intenção séria em todo batalhão, e eles não
pareciam cientes de que essas coisas são necessárias em qualquer trabalho neste
mundo. Seu desejo era extrair o tesouro das entranhas da terra, e a sua
finalidade moral não ia além dos assaltantes que arrombam um cofre. Quem pagou
as despesas dessa empresa nobre, eu não sei; mas o tio do nosso gerente era o
líder do bando.

“No exterior, ele parecia um açougueiro de um bairro
pobre, e seus olhos transmitiam uma astúcia sonolenta. Ostentava uma pança de
gordura sobre pernas curtas, e durante todo o tempo em que sua quadrilha
infestou o posto não falou com ninguém a não ser com o sobrinho. Podia-se ver
os dois perambulando o dia todo, com as cabeças unidas em uma eterna
confabulação.

“Eu já havia desistido de me preocupar com os rebites.
A nossa capacidade para esse tipo de loucura é mais limitada do que se pode
supor. Eu disse: ‘Danem-se!’ – e deixei as coisas correrem; eu tinha muito
tempo para a meditação e, de vez em quando, voltava meus pensamentos para
Kurtz. Não que eu estivesse muito interessado nele. Não. Ainda assim, eu estava
curioso para saber se esse homem, que tinha vindo para ali imbuído com ideias
morais de algum tipo, chegaria mesmo ao topo do poder, depois de tudo, e como
ele iria se definir sobre o seu trabalho, quando chegasse lá.”

 

 

PARTE 2

 

“Uma noite eu estava deitado no convés do meu barco a
vapor, ouvi vozes que se aproximavam – eram o sobrinho e o tio passeando ao
longo da margem do rio. Deixei a cabeça repousar de novo nos braços e já
começava a cochilar quando alguém falou, praticamente junto ao meu ouvido: ‘Eu
sou tão inofensivo como uma criança, mas não gosto que me deem ordens; sou o
gerente, ou não sou? Recebi ordens de mandá-lo para lá. Ele é incrível…’
Percebi que os dois estavam em pé, na praia, ao lado da proa do barco a vapor,
logo abaixo da minha cabeça; não me movi, não me ocorreu mover-me. Estava com
sono. ‘É desagradável!, resmungou o tio. ‘Ele pediu à Administração para ser
enviado para lá’, disse o outro, ‘com a ideia de mostrar o que podia fazer; e
fui instruído para ficar de acordo. Olhe a influência que o homem deve ter. É
terrível!’ Ambos concordaram que era terrível, então fizeram várias observações
bizarras: ‘Faça chuva e bom tempo – um homem – o Conselho – pelo nariz’ –
fragmentos de frases absurdas que acabaram levando a melhor sobre a minha
sonolência, de forma que eu já estava praticamente desperto e alerta quando o
tio disse: ‘O clima pode resolver essa dificuldade para você. Ele está sozinho
lá?’ ‘Sim’, respondeu o gerente; ‘ele enviou o seu assistente rio abaixo com um
bilhete para mim nos seguintes termos: Mande esse pobre diabo para longe daqui
e trate de não me arranjar mais ninguém dessa espécie. Prefiro ficar sozinho a
ter de aguentar o tipo de gente que vocês colocam ao meu dispor. Foi mais de um
ano atrás. Você pode imaginar maior atrevimento?’ ‘Qualquer outra coisa desde
então?’, perguntou o outro com a voz rouca. ‘Marfim’, falou o sobrinho, ‘muito
marfim… de primeira qualidade, aos montes, o que é irritante partindo dele.
‘E com isso?’, questionou com um ronco pesado. ‘Fatura’, foi a resposta
disparada para fora, por assim dizer. Então, fez-se silêncio. Eles estavam
falando a respeito de Kurtz.

“A essa altura eu já estava inteiramente desperto, mas
como me achava confortavelmente à vontade, continuei deitado ali, imóvel, não
encontrando nenhum incentivo para mudar de posição. ‘Como é que esse marfim
pôde vir de tão longe?’, rosnou o velho, que parecia muito irritado. O outro
explicou que tinha vindo numa frota de canoas a cargo de um mestiço inglês, auxiliar
de Kurtz e que, aparentemente, o próprio Kurtz tivera a intenção de vir também,
já que o seu posto, na ocasião, encontrava-se com as provisões inteiramente
esgotadas, mas depois de ter avançado cerca de trezentas milhas, ele decidiu,
de súbito, que voltaria, o que fez sozinho numa pequena canoa, com quatro
remadores, deixando que o mestiço continuasse descendo rio abaixo com o marfim.
Os dois companheiros pareciam surpresos que alguém tivesse tentado realizar tal
coisa. Não encontravam uma explicação adequada para aquela atitude. Quanto a
mim, parecia estar vendo Kurtz pela primeira vez. Foi uma ideia diferente: a
canoa, quatro selvagens a remar e o homem solitário branco a virar as costas de
repente para sede da empresa, para o alívio, em pensamentos para casa – talvez;
virando o seu rosto para as profundezas da selva, para o seu posto vazio e
desolado; eu não sabia o motivo. Talvez ele fosse simplesmente um sujeito
decente, preso ao seu trabalho para seu próprio bem. Seu nome, entendem, não
tinha sido pronunciado uma única vez. Ele era ‘o homem.’ O mestiço, que, tanto
quanto eu podia perceber, havia realizado uma viagem difícil, com grande
prudência e coragem, era invariavelmente mencionada como ‘aquele canalha’. O
‘canalha’ havia informado que o ‘homem’ estivera muito doente – e não tinha se
recuperado completamente. Os dois que estavam abaixo de mim se afastaram alguns
passos e caminharam de um lado para o outro mantendo certa distância; pude
ouvir pouco: ‘posto militar – médico – duzentas milhas – completamente sozinho
agora – atrasos inevitáveis – nove meses 
sem notícias – estranhos rumores’. Eles se aproximaram novamente, no
momento que o gerente ia dizendo: ‘Ninguém, que eu saiba, a não ser um tipo de
mercador ambulante – um sujeito pestilento -, marfim tirando dos nativos’. Quem
era esse sujeito de quem falavam agora? Deduzi, apanhando fragmentos da
conversa, que se tratava de alguém que estava agindo presumivelmente na área de
Kurtz e não era aprovado pelo gerente. ‘Nós não estaremos livres de uma
concorrência desleal até que um desses sujeitos seja enforcado como um
exemplo’, disse ele; ‘Certamente’, resmungou o outro; ‘pegá-lo e enforcá-lo.
Por que não? – qualquer coisa – qualquer coisa pode ser feita neste país, é o
que eu digo. Ninguém aqui, você entende, aqui, pode pôr em perigo a sua posição
– e por quê? Você suporta o clima – você vai sobreviver a todos eles. O perigo
está na Europa, mas lá, antes de partir, eu tomei o cuidado de…’ Eles se
afastaram e sussurraram algo, depois, suas vozes ficaram audíveis: ‘Essa
extraordinária série de atrasos não é culpa minha, fiz o meu melhor.’ O homem
gordo suspirou. ‘Muito triste’. ‘E o absurdo pestilento do seu discurso’,
continuou o outro, ‘ele me incomodou bastante quando esteve aqui. Cada posto deve
ser como um farol na estrada para melhorar as coisas, um centro de comércio,
claro, mas também para a humanização, instrução. Imagine – aquele idiota. E ele
quer ser gerente. Não, é…’ Nesse ponto ele parou, sufocado por uma indignação
sem limite, e eu levantei a cabeça um pouquinho e fiquei surpreso ao ver quão
perto eles estavam de mim – bem debaixo que eu poderia ter cuspido em seus
chapéus. Eles olhavam para o chão, absortos em seus pensamentos. O gerente dava
breves batidas na perna com um raminho: seu sagaz parente levantou a cabeça:
‘Você tem passado bem desde que veio para cá?, perguntou ele. O outro
recomeçou: ‘Quem? Eu? Oh, estou ótimo – ótimo mesmo. Mas o resto – oh, meu
Deus; todos doentes. Eles morrem tão rápido, também, que não tenho o tempo de
enviá-los para fora do país – é inacreditável!’ ‘Hum… é assim’, resmungou o
tio. ‘Ah, meu filho, confie nisso. Digo, confie nisso’. Eu o vi estender o
braço curto como se fosse uma nadadeira num gesto que envolveu a selva, o
riacho, a lama, o rio – parecia acenar perante a face iluminada da terra num
apelo traiçoeiro à morte que ali estava à espreita, ao mal oculto, à escuridão
profunda do seu coração. Foi tão assustador que eu me levantei de um salto e
olhei para a borda da selva, como se eu tivesse esperando algum tipo de
resposta qualquer àquela tenebrosa demonstração de confiança. Vocês conhecem as
noções tolas que chegam a um, por vezes. O silêncio confrontava com aquelas
duas figuras com a sua paciência sinistra, à espera do falecimento daquela fantástica
invasão.

“Ambos praguejaram em voz alta – de puro susto, creio
eu – e, fingindo não terem dado pela minha presença, deram meia-volta e
afastaram-se na direção do posto. O sol estava baixo, inclinando-se para
frente, e os dois, caminhando lado a lado, curvados para frente, pareciam
arrastar penosamente, encosta acima, suas ridículas sombras de dimensão
desigual, que os seguiam, vagarosas, deslizando por sobre o capim, sem
flexionar uma única folha.

“Poucos dias depois, a Expedição Eldorado partiu, adentrou
a paciente selva, que se fechou sobre eles como o mar sobre um mergulhador.
Muito tempo depois chegou a notícia de que todos os jumentos estavam mortos.
Nada sei sobre o destino dos animais de menor valor. Eles, sem dúvida, como o
resto de nós, encontraram o que mereciam. Não perguntei. Eu estava bastante
animado na ocasião com a perspectiva de me encontrar com Kurtz muito em breve.
Quando digo ‘em breve’, falo em termos relativos. Passaram-se dois meses a
partir do dia que deixamos o canal até o momento que chegamos à margem abaixo
do posto de Kurtz.

“Subir aquele rio era o mesmo que viajar para trás no
tempo até os primórdios do mundo, quando as vegetações se amotinaram sobre a
terra e as grandes árvores reinavam. Um rio vazio, um grande silêncio, uma
selva impenetrável. O ar estava quente, denso, abafado. Não havia nenhuma
alegria no brilho da luz do sol. Os longos trechos da hidrovia corriam,
abandonados, para dentro de sombrias distâncias. Nos prateados bancos de areia,
hipopótamos e jacarés tomavam sol lado a lado. As águas ampliadas fluíam por
entre uma multidão de ilhas arborizadas; uma pessoa se perdia facilmente
naquele rio, como se estivesse num deserto, e topava o dia todo contra os
bancos de areia, tentando encontrar o canal, até pensar que estivesse
enfeitiçado e separado para sempre de tudo aquilo que conhecera um dia – em
algum lugar distante – em outra existência talvez. Havia momentos em que o
passado voltava à mente, como, às vezes, acontece quando não se tem um momento
de sobra para si mesmo; mas veio na forma de um sonho inquieto, lembrado com
assombro entre as realidades esmagadoras deste estranho mundo de plantas, e
água, e silêncio. E essa calmaria da vida não se assemelhava à mínima paz. Era
a quietude de uma força implacável sobre uma intenção inescrutável. Ela olhava
para você com um aspecto vingativo, que eu me acostumei depois e não mais pude
vê-la; não tinha tempo; eu estava ocupado em adivinhar o caminho do canal. Tive
de discernir, na maioria das vezes, por inspiração, os sinais dos ocultos  bancos de areia; e ficar atento às pedras
submersas; eu estava aprendendo a cerrar os dentes espertamente, antes que meu
coração saísse pela boca, quando raspava por acaso algum obstáculo camuflado e
infernal que teria arrancado a vida daquele barco a vapor de lata, afogando
todos os peregrinos; eu tinha que manter um vigia para os sinais de madeira
morta que poderiam ser cortadas no meio da noite para uso no dia seguinte.
Quando você tem que se preocupar com esses tipo de coisas, com meros incidentes
de superfície, a realidade – a realidade, eu digo a vocês – desaparece. A
verdade interior está escondida – por sorte, felizmente. Mas eu a sentia do
mesmo modo, sentia muitas vezes o seu silêncio misterioso observando meus
truques de macaco, assim como observa vocês, companheiros, quando se equilibram
em suas respectivas cordas-bambas por… quanto é mesmo o valor? – meia-coroa
por cambalhota? 

“Tente ser mais educado, Marlow”, resmungou uma
voz, e eu soube que havia pelo menos um ouvinte acordado, além de mim.

“Peço-lhe seu perdão. Esqueci-me da dor profunda que
faz parte do resto do preço. E, de fato, o que é a questão dos preços, se o
truque for bem feito? Vocês fazem seus truques muito bem. Eu também não me saí
mal, já que consegui que o meu barco não afundasse logo na minha primeira
viagem. Isso me espanta até hoje. Imaginem um homem de olhos vendados que
dirige um coche por uma estrada esburacada. Eu suava e tremia consideravelmente
diante daquela empreitada, posso confessar a vocês. Afinal, para um marinheiro,
raspar o fundo da coisa que supostamente deveria apenas flutuar o tempo todo,
entregue sob seus cuidados, é um pecado imperdoável. Ninguém pode não saber
disso, mas esquece daquele baque – não é mesmo? É um golpe direto no coração.
Você se lembra dele, você sonha com ele, você acorda à noite pensando nele –
anos depois – suando frio novamente. Não tenho a pretensão de dizer que o vapor
flutuou o tempo todo. Por mais de uma vez teve de ser empurrado por vinte
canibais, que chapinhavam no lodo ao redor dele. Tínhamos alistados alguns
desses selvagens, para fazerem parte da tripulação. Bom pessoal – os canibais –
mas no seu devido lugar. Eram homens com os quais se podia trabalhar, sou grato
a eles e, afinal de contas, não devoraram uns aos outros diante de mim: haviam
trazido consigo uma provisão de carne de hipopótamo que apodrecera, fazendo com
que o mistério da selva começasse a feder nas minhas narinas. Ufa! Ainda agora
sinto aquele cheiro. Estavam a bordo comigo o gerente e três ou quatro
peregrinos com os seus cajados – todos completos. Às vezes nos deparávamos com
um posto à beira do rio, agarrados às saias do desconhecido, e os homens
brancos correndo para fora de um casebre desmantelado, com largos gestos de
alegria e surpresa e boas-vindas, o que nos parecia muito estranho – tinham a
aparência de serem mantidos ali em cativeiro por força de um feitiço. A palavra
marfim soava no ar por um tempo –  e
novamente voltávamos ao silêncio, ao longo dos trechos vazios, contornando as
pacíficas curvas do rio, entre os muros elevados de nosso caminho sinuoso,
reverberando em aplausos ocos as batidas das pás da roda na água. As árvores,
milhões de árvores, enormes, imensas, erguendo-se nas alturas e em seus pés,
abraçando as margens e contra a corrente, arrastava-se o pequeno e fuliginoso
vapor, como um besouro lento rastejando no chão de um pórtico imponente. Isso
nos fazia sentirmos muito pequenos, muito perdidos, mas sentimento ainda não
nos punha totalmente deprimentes. 
Afinal, se éramos pequenos, o besouro encardido ainda seguia rastejando
– e era exatamente o que queríamos.  Para
onde os peregrinos imaginavam que ele se arrastava, não sei dizer. Para algum
lugar onde eles esperavam obter algo; eu aposto! Para mim, ela se arrastava em
direção de Kurtz – exclusivamente; mas quando os canos de vapor começaram a
vazar nossa marcha se tornou muito vagarosa. O rio se abria diante de nós e
fechava-se atrás de nós, como se a selva tivesse estendido displicentemente
através das águas para impedir o nosso caminho de volta. Penetrávamos cada vez
mais profundamente no coração das trevas. Reinava uma grande quietude ali. À
noite, às vezes, o ruído dos tambores, por trás da cortina de árvores, subia o
rio e permanecia suspenso, fracamente, como se pairasse no ar bem acima de
nossas cabeças, até o primeiro clarão do dia. Se aquilo significava paz,
guerra, ou oração, não poderia dizer. As madrugadas eram anunciadas pela
descida de um frio silêncio; os lenhadores dormiam, as fogueiras quase
extintas, o estalido de um galho seco nos punha em sobressalto. Éramos
viajantes numa terra pré-histórica, numa terra que tinha o aspecto de um
planeta desconhecido. Poderíamos imaginar como os primeiros homens a tomarem
posse de uma herança amaldiçoada, a ser subjugada à custa de profunda angústia
excessiva e muita labuta. Mas, de repente, contornamos com dificuldade uma
curva do rio, vislumbramos paredes de junco, telhados pontiagudos de palha, e
uma explosão de gritos, um turbilhão de braços negros, uma massa de mãos batendo
palmas, de pés batendo no chão, de corpos oscilantes, de olhos revirados, sob a
inclinação de folhagem densa e imóvel. O vapor ia devagar à borda de um frenesi
negro e incompreensível. O homem pré-histórico estava nos amaldiçoando, rezando
para nós, acolhendo-nos – quem poderia dizer? Estávamos impedidos de
compreender o que nos cercava; nós deslizamos diante deles como fantasmas,
perplexos e secretamente chocados como fariam homens normais diante de uma
explosão de entusiasmo entre loucos, num hospício. Não conseguimos entender
porque estávamos distantes demais, e não podíamos nos lembrar porque estávamos
viajando na noite dos tempos primeiros, daqueles tempos que já se foram,
deixando dificilmente algum sinal – e nenhuma lembrança.

“A terra parecia sobrenatural. Estávamos acostumados a
vê-la como se fosse um monstro acorrentado e conquistado, mas ali – ali você
podia olhar para uma coisa monstruosa e livre, era sobrenatural, e os homens
eram – não, eles não eram inumanos. Bem, vocês sabem, essa era a pior parte – a
suspeita de serem inumanos. Eles viam lentamente. Eles uivavam e saltavam, e
giram, e faziam caretas horríveis; mas o que impressionava a gente era
precisamente a ideia de que eram criaturas humanas – como vocês – a ideia de
nosso parentesco remoto com esse tumulto selvagem e apaixonado. Horrível. Sim,
foi horrível o suficiente, mas se fossemos homem o suficiente, admitiríamos que
dentro de nós, havia, o menor traço, uma resposta à franqueza terrível daquele
alarido, uma suspeita fraca de haver um sentido ali que nós – tão remotos a
partir do crepúsculo das primitivas idades – poderíamos compreender. E por que
não? A mente do homem é capaz de qualquer coisa, porque tudo está dentro dela,
todo o passado, assim como todo o futuro. Que havia ali, afinal? Alegria, medo,
tristeza, devoção, bravura, ira – quem pode dizer? Mas a verdade – a verdade
despida de seu manto do tempo. Deixe que os tolos observem a cena e tremem – o
homem sabe, e pode encarar sem pestanejar. Mas ele tem de ser pelo menos tão
homem quanto aqueles que ali estão na margem do rio. Ele deve conhecer a
verdade – com a sua própria essência verdadeira – com sua própria força inata.
Princípios de nada servem. Aquisições, roupas, trapos bonitos – trapos que
voariam à primeira sacudidela. Não; o que se deseja é uma crença deliberada. Eu
ouço, eu admito, mas tenho uma voz, também, e para o bem ou para o mal é o meu
discurso que não pode ser silenciado. É claro que um tolo, apavorado e com bons
sentimentos, está sempre seguro. Quem é que está grunhindo aí? Vocês podem
imaginar que não fui à praia para uivar e dançar. Bem, não – eu não fui. Talvez
por causa de meus bons sentimentos; que meus bons sentimentos se danem! Eu não
tinha tempo. Eu tive que lidar com chumbo e tiras de cobertor de lã, ajudando a
consertar os vazamentos dos canos – eu digo a vocês – tinha também de cuidar do
leme e esforçar-me para burlar todos aqueles troncos submersos, numa tentativa
de manter à tona aquela lata-velha, por bem ou por mal. Havia superfície nessas
coisas suficiente para salvar um homem mais sábio. E para completar eu tinha de
tomar conta do indígena que exercia a função de foguista. Ele era um espécime
melhor; sabia acender uma caldeira vertical. Ele estava ali, abaixo de mim, e,
palavra de honra, olhar para ele era tão edificante quanto ver um cão em uma
paródia de calças e num chapéu de penas, andando sobre as patas traseiras. Uns
poucos meses de treinamento tinham feito alguma coisa por aquele sujeito
realmente aproveitável. Ele vigiava o manômetro e o medidor de água com um
evidente esforço de intrepidez – e tinha dentes limados, também, o pobre diabo,
a carapinha raspada em alguns lugares, em padrões bizarros e três cicatrizes
ornamentais em cada bochecha. Ele deveria ter ficado batendo palmas e os pés na
areia, em vez disso, ele estava trabalhando duro, um escravo de bruxaria
estranha, cheio de conhecimentos novos. Ele era útil porque ele tinha sido
instruído; e o que ele sabia era o seguinte – que se a água naquela coisa
transparente desaparecesse, o espírito maligno que havia dentro da caldeira se
zangaria por causa de sua grande sede e partiria para uma vingança terrível.
Assim, ele suava e esbofava-se para alimentar o fogo, observando temerosamente
o vidro com medo (com um amuleto improvisado, feito de trapos, atados a seu
braço, e um pedaço de osso polido, tão grande como um relógio, trespassado no
lábio inferior), enquanto as margens arborizadas deslizavam por nós lentamente,
o ruído curto era deixado para trás, as milhas intermináveis de silêncio – e
nós rastejávamos adiante, para Kurtz. Mas os troncos submersos eram numerosos,
a água traiçoeira e rasa, e a caldeira parecia ter mesmo um demônio ranzinza
dentro dela; em consequência, nem eu, nem o foguista tínhamos muito tempo para
perscrutar os nossos pensamentos assustadores.

“Cerca de cinquenta quilômetros abaixo do posto
interior, encontramos uma cabana de juncos, um poste inclinado e melancólico,
com os farrapos irreconhecíveis de algo que tinha sido uma bandeira de algum
tipo, tremulando ali, e uma quantidade de lenha cuidadosamente empilhada. Foi
um achado inesperado. Alcançamos a margem e sobre a pilha de lenha encontrada,
achamos um pedaço de tábua onde haviam sido escritas algumas palavras a lápis,
já desbotadas. Deciframos, dizia o seguinte: ‘Madeira para vocês. Apressem-se.
Aproximem-se com cautela.’ Havia uma assinatura, mas era ilegível – não era
Kurtz – era uma palavra muito mais comprida. Apressem-se. Para onde? Rio acima?
Aproximem-se com cautela. Nós não tínhamos feito isso. Mas o aviso não podia
dizer a respeito do lugar onde ele se encontrava, pois só poderia ser lido
depois que a pessoa se aproximasse. Algo estava errado lá em cima. Mas o quê –
o quanto? Essa era a questão. Fizemos vários comentários desfavoráveis sobre a
imbecilidade daquele estilo telegráfico. O mato em volta não dizia nada, e não
nos permitia enxergar além. Uma cortina rasgada de sarja vermelha pendurada na
porta da cabana oscilava com tristeza em nossos rostos. A habitação estava
abandonada; via-se, porém, que um homem branco tinha vivido ali não fazia muito
tempo. Permanecia ali uma mesa rústica – uma prancha apoiada em dois cavaletes;
uma pilha de lixo estava depositada em um canto escuro, e junto à porta,
apanhei um livro. Tinha perdido a capa, e suas páginas estavam reduzidas a um
estado de extrema sujeira e maciez, de tão manuseadas; a lombada, entretanto,
tinha sido caprichosamente recosturada com linha branca, que ainda se
conservava limpa. Foi uma descoberta extraordinária. Seu título era ‘Uma
Investigação Sobre Algumas Questões do Trabalho dos Marinheiros’, por um certo
Towser, Towson – um nome assim –  Mestre
da Marinha de Sua Majestade. A matéria parecia bastante enfadonha, com
diagramas ilustrativos e repulsivas tabelas de algarismos, e a edição era de
sessenta anos atrás. Manuseei aquela extraordinária relíquia com toda a
delicadeza possível, receoso de que se desintegrasse em minhas mãos. Dentro,
Towson ou Towser inquiria gravemente sobre a capacidade de resistência de
correntes e cabos de um navio, e coisas desse gênero e outras questões
semelhantes. Não era um livro muito cativante, mas à primeira vista você podia
perceber que havia uma sinceridade de intenção, uma honesta preocupação em
estabelecer a maneira correta de se executar um determinado tipo de trabalho, e
isso fazia com que aquelas modestas páginas, concebidas tantos anos antes,
brilhassem com uma luz que não era apenas profissional. O velho e simples
marinheiro, com sua conversa sobre correntes e cabrestantes, fez-me esquecer da
selva e os peregrinos, numa deliciosa sensação de ter encontrado algo
incontestavelmente real. O simples fato de estar aquele livro ali já era
maravilhoso; mais extraordinárias, porém, eram as anotações rabiscadas a lápis
na margem, indubitavelmente relativas ao texto. Eu mal podia acreditar em meus
olhos! Elas estavam em código! Isso mesmo, em código, ao que parecia. Imaginem
um homem ir parar naquele fim de mundo levando consigo um livro com aquelas
descrições, estudando-o – e fazendo anotações – usando códigos! Tratava-se de
um mistério extravagante.

“Por certo tempo, eu tinha estado vagamente consciente
de um barulho preocupante, e quando levantei os olhos percebi que a pilha de
lenha tinha desaparecido e que o gerente, acompanhado de todos os peregrinos,
gritava por mim da beira do rio. Enfiei o livro no bolso. Asseguro a vocês que
abandonar a sua leitura foi para mim o mesmo que deixar a proteção de uma velha
e sólida amizade.

“Dei partida no motor claudicante. ‘Deve ser aquele
comerciante miserável – aquele intruso’, observou o gerente, lançando um olhar
malévolo para o lugar onde tínhamos estado. ‘Ele deve ser inglês’, falei. `Isso
não vai impedir que se meta em encrencas, se não tiver cuidado’, resmungou o gerente
sombriamente. Com fingida inocência, observei que ninguém estava livre de
encrencas neste mundo.

“A correnteza era mais rápida agora, o vapor parecia
em seu último suspiro, a roda da popa girava frouxamente, e, de repente,
peguei-me ouvindo, na ponta dos pés, as próximas batidas do motor do barco. Eu
esperava que a coisa miserável fosse pifar a qualquer momento. Era como ver os
últimos suspiros de uma vida. Mas ainda nos arrastávamos. Às vezes, eu escolhia
uma árvore um pouco à frente para medir nosso progresso na direção de Kurtz,
mas a perdia, invariavelmente, antes de alcançá-la. Para manter os olhos fixos
em uma coisa era demais para a paciência humana. O gerente exibia uma
resignação maravilhosa. Eu estava nervoso e irritado e comecei a discutir comigo
mesmo se iria ou não conversar francamente com Kurtz, mas antes que eu pudesse
chegar a qualquer conclusão, ocorreu-me que falar ou ficar em silêncio, na
verdade, qualquer ação minha, seria uma mera futilidade. Que importa que
qualquer um de nós soubesse ou ignorasse? O que importa quem era gerente? Às
vezes, temos uns lampejos, uma percepção das coisas. O essencial nesse caso jaz
nas profundezas, bem abaixo da superfície, além do meu alcance, e além do meu
poder de interferir.

“Quando caía a noite do segundo dia, julgávamos estar
a cerca de oito milhas da estação de Kurtz. Eu queria prosseguir, mas o gerente
assumiu um ar grave e disse que a navegação lá em cima era tão perigosa que
seria aconselhável, estando o sol muito baixo, esperar onde estávamos até a
manhã seguinte. Além disso, ele salientou que, se o aviso para abordagem
cautelosa era para ser seguida, era preciso nos aproximarmos durante o dia –
não ao entardecer ou à noite. Foi uma decisão 
sensata. Oito milhas significava quase três horas de navegação a vapor
para nós; e eu também podia ver ondulações um tanto suspeitas na extremidade
superior do rio. No entanto, eu estava mais irritado do que posso dizer com
aquela demora, e sem razão, também, já que uma noite a mais não poderia fazer
muita diferença depois de tantos meses de espera. Como tínhamos muita lenha, e
cautela era a palavra de ordem, atracamos no meio da corrente. Naquele trecho,
o rio era estreito e reto, cercado por altos barrancos, lembrando o corte feito
por uma estrada de ferro. O crepúsculo veio antes de o sol se pôr. A corrente
corria suave e rápida, mas uma imobilidade muda assentou sobre as margens. As
árvores vivas, atadas umas às outras pelas trepadeiras e cada arbusto vivo do
mato, havia se transformado em pedra, mesmo o galho mais fino, a folha mais
leve. Não pareciam adormecidos – era artificial, como em um estado de
transe;  nem o som mais fraco, de
qualquer tipo, podia ser ouvido. Eu olhava espantado, e começava a suspeitar
que estivesse surdo – e, então, a noite veio de repente, e deixou-nos cegos,
também. Por volta das três da manhã, algum peixe de grande porte saltou na água
e o barulho alto do seu salto me fez pular como se uma arma tivesse sido
disparada. Quando o sol se levantou, havia uma névoa branca, muito quente e
pegajosa, e que nos pôs mais cegos do que a própria noite; ela não se
movimentava, nem passava, ela estava ali, estacionada a nossa volta, como algo
sólido. Às oito ou nove, talvez, ela se ergueu como uma persiana. Tivemos um
vislumbre da imponente multidão de árvores, da selva imensa e emaranhada, com a
bola do sol em chamas pairando sobre ela – tudo perfeitamente paralisado – e
depois a persiana branca veio de novo, suavemente, como se deslizando em sulcos
untados; eu pedi para que a âncora, que tinha começado a ser içada, para ser
solta novamente. Antes que parasse de correr com o seu guizo abafado, um grito,
um grito muito alto, como de uma desolação infinita, soou lentamente no ar
opaco. Ele cessou. Um clamor, modulado em desacordos selvagens, encheu nossos
ouvidos. Era tão inesperado lamento que fez meus cabelos se arrepiarem sob o
boné; eu não sei como ele atingiu os demais: para mim parecia que a própria
neblina tivesse gritado, assim de repente, e aparentemente vindo de todos os
lados ao mesmo tempo, de uma vez, despertando aquele alvoroço tumultuado, de
triste lamento. Isso culminou em um surto apressado de gritos quase
insuportavelmente excessivos, que parou, deixando-nos endurecidos em uma
variedade de atitudes tolas, e obstinadamente ouvindo o quase tão terrível e
excessivo silêncio. ‘Bom Deus! Qual é o significado?’, gaguejou junto do meu
cotovelo um dos peregrinos, um homenzinho gordo, com cabelo cor de areia e
costeletas vermelhas, que usava botas de borracha e pijama cor-de-rosa, enfiado
em suas meias. Dois outros permaneceram boquiabertos durante um minuto inteiro,
enquanto, em seguida, correram para dentro da pequena cabine, reapareceram em
poucos segundos, postando-se no convés com Winchesters engatilhadas nas mãos. O
que podíamos ver era apenas o navio em que achávamos, seus contornos embaçados
como se tivesse a ponto de dissolver, e uma faixa nublada de água, talvez dois
metros de largura, em volta dela – e isso era tudo. O resto do mundo estava
longe, tão longe quanto os nossos olhos e ouvidos estavam ocupados. Apenas em
algum lugar. Sumira, desaparecera; varrido, sem deixar um sussurro ou uma
sombra atrás de si.

“Encaminhei-me para a proa e dei ordem para que fosse
recolhida a maior parte da corrente, de maneira que pudéssemos levantar âncora
rapidamente, em caso de necessidade. ‘Será que eles vão atacar?’, sussurrou uma
voz reverente. ‘Vamos ser todos abatidos neste nevoeiro’, murmurou o outro. Os
rostos se contraíram com a tensão, as mãos tremeram um pouco, os olhos
esqueciam-se de piscar. Foi muito curioso notar o contraste entre as expressões
dos homens brancos e a dos negros de nossa tripulação, que eram igualmente
estranhos àquela parte do rio, embora suas casas estivessem apenas cerca de
oitocentas milhas de distância. Os brancos, naturalmente muito perturbados,
davam também a impressão de estarem dolorosamente chocados com aquela absurda
gritaria. Os outros tinham uma expressão alerta, naturalmente interessados; mas
seus rostos eram essencialmente tranquilos, mesmo os daqueles que mostravam os
dentes enquanto puxavam a corrente. Vários deles trocavam frases curtas,
resmungando, que pareciam resolver o assunto de modo satisfatório. Seu chefe,
um jovem negro, de peito largo, gravemente envolto num severo manto
azul-escuro, orlado de franjas, com narinas ferozes e seus cabelos
caprichosamente arrumados em lustrosos caracóis, estava perto de mim. ‘Aha!’,
eu disse, simplesmente em sinal de cordialidade. ‘Pega ele’, ele retrucou,
abrindo seus olhos injetados de sangue e mostrando os seus dentes afiados –
‘Pega eles! Dá eles pra nós’. ‘Para vocês?’, perguntei; ‘O que vocês fariam com
eles? ‘Comia eles’, ele disse secamente, e, apoiando seu cotovelo no gradil,
olhou para a névoa com um ar de grande dignidade e profundamente pensativo. Eu
teria, sem dúvida, ficado propriamente horrorizado, se não tivesse me ocorrido
que ele e seus amigos deviam estar famintos; que eles vinham se tornando cada
vez mais famintos, ao menos nesse último mês. Eles tinham sido contratados por
seis meses (não creio que qualquer um deles tivesse a mínima ideia da passagem
do tempo, como a que acabamos por adquirir ao final de eras incontáveis. Ainda
pertenciam aos primórdios do tempo – não tinham uma experiência herdada para
que pudéssemos ensinar-lhes), e, claro, desde que houvesse um pedaço de papel
escrito mais de acordo com uma lei ridícula elaborada abaixo do rio, ninguém se
importava com o modo como viveriam. Certamente eles trouxeram com eles alguma
carne podre de hipopótamo, que não poderia ter durado muito tempo, de qualquer
maneira, mesmo que os peregrinos não houvessem, em meio a sonoros protestos,
jogado uma quantidade considerável dela no rio. Parecia um procedimento
arbitrário, mais foi, realmente, uma questão de legítima defesa. Ninguém
consegue respirar as emanações de um hipopótamo morto acordando, dormindo, e
comendo, mantendo ao mesmo tempo o seu precário apego à existência. Além disso,
eles haviam recebido, todas as semanas, três pedaços de arame de bronze, cada
um com cerca de vinte centímetros de comprimento; teoricamente, podiam comprar
as suas provisões, usando aquilo como moeda, junto às aldeias ribeirinhas.
Vocês podem ver como aquilo funcionava. Ou não havia aldeias, ou os povos eram
hostis, ou então o diretor, que, tal como o resto de nós se alimentava de
enlatados, ocasionalmente misturados com carne de bode velho, não queria parar
o vapor por algum motivo mais ou menos recôndito. Então, a não ser que
engolissem o próprio fio de arame ou fizessem anzóis com ele para fisgar
peixes, não vejo que tipo de utilidade tinha para eles o seu extravagante
salário. Devo dizer que eles eram pagos com uma regularidade digna de uma
grande e respeitável empresa comercial e honrada. De resto, a única coisa para
comer – embora não parecesse comestível – que vi em sua posse eram uns bolos de
algo que parecia uma massa mal cozida, com uma cor de lavanda suja, que eles
mantinham embrulhados dentro de folhas e que, de tempos em tempos, engoliam um
pedaço, mas tão pequeno que dava a impressão de que se tratava mais de uma ação
simbólica sem qualquer propósito sério de alimentação. Por que, em nome de
todos os torturantes demônios da fome, eles não nos atacavam – eram trinta
contra cinco – para logo fazerem uma farta refeição? Espanta-me sempre quando
penso sobre isso hoje em dia. Eram homens grandes e poderosos, que não possuíam
uma grande capacidade de medir as consequências, corajosos, fortes até, embora
suas peles não mais fossem lustrosas e seus músculos tão rijos. E eu vi algo de
restrição, um desses mistérios, que desafiam todas as probabilidades, tinha
entrado em jogo ali. Eu olhava para eles com um interesse subitamente redobrado
– não porque me ocorrera que eu poderia ser devorado por eles em breve, embora,
confesso a vocês, que somente então percebi – sob uma nova luz, por assim dizer
– quão enfermos os peregrinos pareciam estar, e eu esperava, sim, positivamente
esperava que meu aspecto não fosse tão – como direi? – tão… pouco apetitoso:
um toque de fantástica vaidade que caiu bem com a sensação onírica que permeava
todos aqueles meus dias. Talvez eu estivesse um pouco febril, também. Não
podemos passar o tempo todo apalpando o próprio pulso. Frequentemente, eu tinha
‘um pouco de febre’, ou algum toque de algum outro sintoma – as patadas lúdicas
da selva, as trivialidades preliminares que antecediam as investidas mais
violentas que chegariam no tempo devido. Sim; eu olhava para eles como qualquer
outro ser humano faria, com uma curiosidade acerca de seus impulsos,
motivações, capacidades, fraquezas, quando fossem submetidos ao teste de uma
necessidade física inexorável.  Foi
superstição, nojo, medo, paciência, – ou algum tipo de honra primitiva. Nenhum
medo pode suportar a fome, nenhuma paciência pode saciá-la, o nojo simplesmente
não coexiste com a fome; e quanto à superstição, crenças, e aquilo que você
pode chamar de princípios são menos do que farelo soprado pelo vento. Vocês
conhecem a crueldade de uma fome prolongada, o seu tormento exasperante, seus
pensamentos obscuros, a ferocidade sombria que ela gera? Bem, eu conheço. Um
homem necessita de toda a sua força inata para lutar propriamente contra a
fome. É realmente mais fácil enfrentar com bravura a desonra e a perdição da
própria alma do que esse tipo de fome prolongada. Triste, mas verdadeiro. E
aqueles sujeitos, também, não tinham qualquer razão terrena de escrúpulos.
Freios! Eu esperaria o mesmo tipo de freio da parte de uma hiena rondando em
meio aos cadáveres em um campo de batalha. Mas havia o fato com que me
defrontava – o fato deslumbrante, para ser visto como a espuma sobre mares
profundos, como uma ondulação sobre um enigma imponderável, um mistério maior
-, quando pensei nele: o tom curioso e inexplicável de desespero naquele clamor
selvagem que passara por nós na margem do rio, por trás da cegante brancura da
neblina.

“Dois peregrinos estavam brigando, por meio de
sussurros apressados, a respeito de que margem seria, ‘Esquerda, ‘ ‘Não, não;
como poderia? Direita, é claro que é a direita’. ‘E muito sério’, soou a voz do
gerente atrás de mim; ‘eu ficaria desolado se algo de ruim ocorresse ao Sr.
Kurtz antes de o alcançarmos’. Olhei para ele e não tive a mínima dúvida de que
estava sendo sincero. Era exatamente o tipo de homem que gosta de manter as
aparências. Essa era a sua contenção. Mas quando murmurou algo a respeito de
partir de imediato, nem sequer me dei ao trabalho de respondê-lo. Eu sabia, e
ele sabia que isso não era possível. Se nos libertássemos daquilo que nos
mantinha presos no fundo, ficaríamos absolutamente soltos no ar, no espaço. Não
saberíamos precisar o rumo que tomaríamos – se rio acima ou rio abaixo, ou se o
atravessaríamos – até alcançarmos uma margem ou a outra – e então não
saberíamos, a princípio, em qual delas estaríamos. Evidentemente, não me movi.
Não me passava pela mente a ideia de um acidente. Não se poderia encontrar um
lugar mais letal para um naufrágio. Ainda que não morrêssemos prontamente
afogados, com certeza pereceríamos sem demora, de um modo ou de outro.
‘Autorizo-o a assumir todos os riscos’, disse ele, após um curto silêncio.
‘Recuso-me a assumir qualquer um’, respondi a seguir; que era exatamente a
resposta que ele esperava, embora o tom possa tê-lo surpreendido. ‘Bem, devo
acatar a sua decisão. O senhor é o capitão’, afirmou, com acentuada polidez.
Dei de ombros para ele em sinal de minha apreciação, e olhei através do
nevoeiro. Quanto tempo duraria? Era a espera mais desoladora. A aproximação a
esse Kurtz, escarafunchando marfim nesse mato miserável, assediado por muitos
perigos e dificuldades, como se tivesse sido uma princesa encantada a dormir em
um castelo fabuloso. ‘Será que eles vão atacar, que você acha?’, perguntou o
gerente, em tom confidencial.

“Eu não achava que eles atacariam, por uma série de
razões lógicas. O denso nevoeiro era a primeira. Se partissem das margens em
suas canoas, ficariam perdidos, do mesmo modo que nós, se tentássemos avançar.
Além disso, percebi que a selva em ambas as margens é praticamente impenetrável
– contudo havia olhos lá dentro, olhos que nos tinham avistado. A selva à beira
do rio era de fato muito fechada, mas a vegetação por trás dela era rala e de
fácil penetração.

As selvas ribeirinhas eram certamente muito densas, mas a
vegetação rasteira por trás era obviamente penetrável; entretanto, durante o
breve período em que a neblina subira; eu não tinha avistado qualquer canoa nas
redondezas – com certeza, nenhuma próxima do vapor. Mas o que fazia a ideia de
ataque algo inconcebível para mim era a natureza do ruído, dos grilos que
havíamos ouvido. Não tinham o caráter ameaçador que denotasse a intenção de
hostilidade imediata. Inesperados, selvagens e violentos como eles haviam sido,
deixaram em mim uma impressão irresistível de tristeza. O vislumbre do vapor
tinha por algum motivo enchido aqueles selvagens de uma dor incontida. Se
houvesse algum perigo, comentei, era o da nossa proximidade de uma grande
paixão humana liberada. Até mesmo o sofrimento extremo pode acabar se
transformando em violência, mas é mais comum que assuma a forma de apatia…

“Vocês precisavam ter visto o medo dos peregrinos.
Eles não encontravam ânimo para um sorriso forçado, nem mesmo para insultar-me;
mas creio que pensavam que estava louco – com medo, talvez. Pronunciei uma
palestra inteira. Meus caros amigos, não adiantava a gente se preocupar… Manter
um vigia? Bem, vocês podem imaginar que eu olhava para o nevoeiro procurando
sinais de que se ergueria, como um gato vigia um rato; mas para qualquer outra
função, nossos olhos eram tão úteis quanto se estivéssemos enterrados numa
profundidade de quilômetros, dentro de um monte de algodão em rama. Era assim
que nos sentíamos também – sufocados, quentes, asfixiados. Além do mais, tudo o
que eu disse, embora parecesse extravagante, mostrou-se de acordo com os fatos.
O que mais tarde imaginamos ter sido um ataque, foi realmente uma tentativa de
nos repelir. A ação estava muito longe de ser agressiva – não era sequer uma
ação defensiva, no sentido mais usual: ela foi tomada sob a tensão do
desespero, e sua essência era puramente defensiva.

 “Desenvolveu-se, devo dizer, duas horas
depois que a neblina subiu, e seu início deu-se num ponto, falando por alto,
perto de dois quilômetros abaixo do posto de Kurtz. Havíamos acabado de
contornar uma curva com grande dificuldade, quando avistei uma ilhota, um mero
montículo de relva verde brilhante, bem no meio do rio. Era a única do tipo;
porém, à medida que avançamos mais naquela área, notei que se tratava da cabeça
de um longo banco de areia, ou melhor, de uma cadeia de canteiros rasos que se
estendia no meio do rio. Eram incolores, à flor da água e o lodo podia ser
visto um pouco abaixo da superfície, exatamente como se vê a espinha de um
homem, descendo pelo meio de seu dorso, sob a pele. Pelo que pude perceber,
tanto fazia passar à direita ou à esquerda. É óbvio que eu não conhecia
qualquer um dos dois canais. As margens eram muito semelhantes, nos dois lados,
a profundidade parecia ser a mesma: mas como eu fora informado que o posto
ficava do lado ocidental, naturalmente, rumei para a passagem do oeste.

“Mal tínhamos penetrado nele quando me dei conta de
que era muito mais estreito do que eu tinha imaginado. À nossa esquerda, havia
um baixio longo e contínuo e, à direita, uma margem alta e íngreme coberta por
uma densa vegetação. Acima do mato, as árvores estavam em fileiras cerradas. Os
ramos pendiam cerrados sobre a correnteza, e de espaço em espaço, o galho de
alguma grande árvore projetava-se rigidamente sobre o córrego. A tarde ia bem
adiantada, o aspecto da selva era obscuro, e uma larga faixa de sombra já caía
sobre a água. Nessa sombra navegávamos – bem devagar, como vocês devem
imaginar. Desviei a embarcação para bem perto da margem, por ser maior a
profundidade ali, conforme me indicava a vara de sondagem.

“Um de meus amigos famintos e indulgentes fazia sondagens
na proa, bem abaixo de onde eu me encontrava naquele vapor – era exatamente
como uma barcaça com convés. No convés, havia duas pequenas casas com portas e
janelas. A caldeira ficava na extremidade e as máquinas bem à popa. Acima de
tudo havia um leve telhado, apoiado em pilares. A chaminé se projetava através
dessa coberta e, à sua frente, erguia-se uma pequena cabine feita de tábuas
finas, que funcionava como casa do leme. Lá dentro, havia um divã, dois bancos
de campanha, um rifle Martini-Henry carregado, encostado num canto, uma mesinha
e a roda do leme. Tinha uma porta larga na frente e uma ampla veneziana de cada
lado. Todas elas ficavam bem abertas, é claro. Eu passava os meus dias
empoleirado ali, na extremidade da proa naquele telhado, diante da porta. À
noite, eu dormia, ou tentava dormir, no divã. Um negro atlético pertencente a
uma tribo do litoral e instruído pelo meu infortunado predecessor era o
timoneiro. Ele ostentava um par de brincos de bronze, trajava-se com um pedaço
de tecido azul que ia da cintura aos tornozelos, e achava-se o dono do mundo.
Era o tipo mais instável e tolo que eu já conhecera. Segurava o leme cheio de
empáfia quando estávamos por perto: mas assim que nos afastávamos, ele se
tornava a presa instantânea de um pavor abjeto, permitindo que aquele vapor,
caindo aos pedaços, tomasse conta de si em um minuto. Eu estava olhando para
baixo, observando a vara de sondagem, e sentindo-me muito irritado de ver que a
cada nova tentativa, uma porção maior dela ficava fora do rio, quando vi o
sondador desistir do seu trabalho repentinamente, e estatelar-se sobre o
convés, sem ao menos se dar ao trabalho de recolher a sonda. Ele continuou
agarrado a ela, contudo, desenhando uma trilha na água. Ao mesmo tempo, o
foguista, que eu podia ver que estava embaixo de mim, sentou-se abruptamente
perante a sua fornalha e abaixou a cabeça. Fiquei perplexo. Então precisei
olhar para o rio com grande agilidade, pois havia um tronco submerso bem
adiante. Flechas, pequenas flechas estavam voando sobre nós – uma nuvem delas;
passavam zunindo diante do meu nariz, caindo aos meus pés, batendo atrás de
mim, na parede externa da minha cabine. Todo esse tempo, o rio, a praia, a
selva estavam muito silenciosos – perfeitamente silenciosos. Tudo o que eu podia
ouvir era o pesado baque da roda de popa sobre a água e o barulho dessas
coisas. Livramo-nos do tronco desajeitadamente. Flechas, por Deus! Estávamos
sendo atacados! Apressei-me para fechar a veneziana que dava para a margem. O
tolo timoneiro tinha as mãos à malagueta da roda do leme, erguia os joelhos bem
alto, batendo seus pés, rangendo os dentes, como um cavalo em rédeas. Que
loucura! E navegávamos em ziguezague a pouco mais de três metros da margem.
Tive de curvar-me inteiramente para puxar a pesada veneziana, e avistei um
rosto entre as folhas na mesma altura do meu, olhando-me furiosamente e com
firmeza e, então, repentinamente, como se um véu tivesse sido tirado de meus
olhos, divisei nas profundezas da entrelaçada escuridão, peitos desnudos, braços,
pernas, olhos fulgurantes – a selva estava infestada de membros humanos em
movimento, cintilantes, bronzeados. Os galhos se agitavam, oscilavam e
farfalhavam, as flechas voavam de dentro deles e, então, a veneziana fechou-se.
‘Mantenha o barco em linha reta’, eu disse ao timoneiro. Ele ergueu sua cabeça
rígida, com o rosto para frente; mas os seus olhos rolavam, ele continuou,
erguendo e baixando os seus pés gentilmente, sua boca espumava um pouco. ‘Fique
quieto’, afirmei furioso. Era como se tivesse dado ordens a uma árvore para que
não balançasse ao vento. No tombadilho, abaixo de mim, havia uma grande
balbúrdia de pés agitados; exclamações confusas; uma voz berrou: ‘Podemos
voltar?’ Vislumbrei adiante uma ondulação em forma de V. O quê? Outro tronco submerso!
Uma fuzilaria explodiu sob os meus pés. Os peregrinos tinham começado a atirar
com as suas Winchesters e estavam simplesmente descarregando chumbo a esmo
dentro daquela selva. Uma fumaceira infernal subiu e deslocou-se lentamente
para diante. Blasfemei contra aquilo. Agora não mais podia enxergar a ondulação
ou o tronco submerso. Fiquei na entrada da porta, perscrutando, e as flechas
chegavam a enxames. Elas poderiam estar envenenadas, mas sua aparência era a de
que não salvariam um gato. A selva começou a uivar. Nossos lenhadores soltaram
um grito de guerra; o estampido de um rifle atrás de mim foi ensurdecedor.
Olhei sobre o meu ombro, e a cabine de comando ainda estava repleta de ruídos e
de fumaça, quando me lancei sobre a roda do leme. O palerma do negro tinha
largado tudo, abrira o postigo e estava mandando fogo com o meu Martini-Henry.
Ergueu-se diante daquela imensa abertura, observando, e eu gritei para que ele
voltasse, enquanto endireitava a súbita guinada do vapor. Não havia espaço para
manobra, mesmo que eu quisesse, pois o tronco submerso estava em algum lugar
muito próximo, adiante de nós, naquela fumaça confusa; não havia tempo a
perder, de modo que eu apenas dirigi o barco para perto da margem, muito perto
mesmo, onde eu sabia que havia mais profundidade.

“Seguimos lentamente, acompanhando os arbustos que se
projetavam sobre a água, em meio a um remoinho de galhos quebrados e folhas que
voavam. A saraivada abaixo parou um momento, como previ que se daria, assim que
a munição se esgotasse. Joguei minha cabeça para trás quando o zunido de um
dardo atravessou a cabine de comando, entrando por uma veneziana e saindo pela
outra. Olhando para além daquele timoneiro maluco, que agitava o rifle
descarregado e bradando em direção à margem, enxerguei vagas formas de homens
correndo agachados, saltando, esgueirando-se, distintos, incompletos,
evanescentes. Algo grande surgiu no ar diante da janela, o rifle caiu na água,
e o homem deu um passo para trás rapidamente, olhou para mim por cima do ombro de
uma maneira extraordinária, profunda, familiar, e caiu aos meus pés. A lateral
de sua cabeça bateu duas vezes na roda do leme, e a extremidade de algo
parecido com uma bengala girou, fazendo um grande estrondo ao derrubar um
banquinho. Era como se, após ter arrancado aquilo de alguém na margem, ele
tivesse perdido o equilíbrio em razão do esforço. A fumaça fina havia
desaparecido, tínhamos nos livrado do tronco submerso, e olhando para frente eu
via que, dentro de uns cem metros, estaríamos livres para navegar para longe da
margem; mas eu sentia os meus pés tão quentes e molhados que tive de olhar para
baixo. O homem havia rolado sobre o próprio dorso e olhava fixamente para mim:
ambas as suas mãos agarravam aquela bengala. Era a haste de uma lança que, atirada
ou enfiada pela janela, atingira-o no lado, bem abaixo das costelas; a lâmina
estava enterrada em seu corpo, por um corte pavoroso; meus sapatos estavam
encharcados; uma poça de sangue vermelho-escuro brilhava imóvel sob o timão;
seus olhos brilhavam com um lustro surpreendente. A fuzilaria irrompeu
novamente. Ele olhou para mim ansioso, agarrando-se à lança como algo precioso,
apavorado com a possibilidade de que eu tentasse retirá-la dele. Eu precisava
fazer um grande esforço para libertar os meus olhos do seu olhar e cuidar do
leme. Com uma das mãos, apalpei minha cabeça para encontrar a corda do apito,
que acionei diversas vezes, nervosamente. O tumulto de raivosos brados de
guerra cessou no mesmo instante e, então, das profundezas da selva saiu um gemido
trêmulo e prolongado de temor e de extremo desespero, como se pode imaginar o
voo da última esperança da terra. Havia uma grande comoção na selva; a chuva de
flechas cessou, uns poucos dardos zuniram agudamente –  depois, silêncio, no qual o lânguido bater da
roda de popa chegava claramente até os meus ouvidos. Com dificuldade, virei o
leme a estibordo no instante em que o peregrino de pijama cor-de-rosa, muito
excitado e agitado, apareceu na entrada da porta. ‘O gerente me enviou…’,
começou ele a falar em um tom oficial, e parou imediatamente. ‘Meu Deus!’, ele
disse, olhando para o homem ferido.

“Nós ficamos ali – dois homens brancos – postados ao
lado dele, com o seu olhar brilhante e inquisidor a nos envolver. Declaro que
era como se ele fosse em breve nos fazer alguma pergunta numa linguagem
compreensível, mas ele morreu sem emitir um som, sem mover um membro, sem
contrair um único músculo. Só no último momento, como que em resposta a algum
sinal que não podíamos ver a algum sussurro que não podíamos ouvir, ele franziu
a testa fortemente, o que deu à sua negra máscara mortuária uma expressão
inimaginavelmente sombria, lúgubre e ameaçadora. O brilho inquisidor do seu
olhar desvaneceu-se rapidamente e em seu lugar ficou uma luz baça e vidrada.
“Pode dirigir?”, perguntei ao agente ansiosamente. Ele vacilou, mas eu o
agarrei pelo braço, o que o fez compreender que era minha intenção entregar-lhe
o leme, quer ele concordasse ou não. Para lhe dizer a verdade, eu estava
morbidamente ansioso para trocar os meus sapatos e as minhas meias. ‘Ele está
morto’, murmurou o sujeito, terrivelmente impressionado. ‘Não há dúvida a esse
respeito’, respondi, enquanto lutava desesperadamente com os cordões dos
sapatos.  ‘E, por sinal, imagino que o
Sr. Kurtz deve estar igualmente morto a essa altura’.

“Naquele momento, era essa a ideia predominante na
minha cabeça. A sensação que eu sentia era de profunda decepção, como se
acabasse de descobrir que tinha lutado por uma coisa totalmente inconsistente.
Eu não poderia ter ficado mais desgostoso se tivesse vindo de tão longe
expressamente para falar com o Sr. Kurtz. Falar com… joguei um sapato no rio,
e compreendi, nesse momento, que era exatamente com isso que eu estava contando
– com uma conversa com Kurtz. Fiz a estranha descoberta, vejam vocês, que eu
jamais o imaginara em ação, mas apenas conversando. Eu não havia dito a mim
mesmo: ‘Agora você nunca chegará a vê-lo’, ou ‘Agora nunca poderá apertar a sua
mão’, e sim, ‘Agora você nunca poderá ouvi-lo’. O homem me aparecia como uma
voz. Não que eu não o conectasse com algum tipo de ação. Não me haviam contado
com todos os tons de inveja e admiração que ele colecionara, negociara,
trapaceara ou roubara mais marfim do que todos os agentes unidos? Essa não era
a questão. A questão era que ele era uma criatura dotada de elevados dons e
que, dentre todos esses dons, o que mais sobressaía, o que fazia dele uma
presença real, era o seu talento para falar, para usar as palavras… o dom da
expressão, o desconcertante, o iluminador, o mais exaltado e mais desprezível,
o fluxo pulsante de luz, ou o fluxo enganoso do coração de uma escuridão
impenetrável.

“O outro pé de sapato voou para dentro do deus-demônio
daquele rio. Disse comigo mesmo. ‘Que diabo.’ Está tudo acabado. Chegamos tarde
demais; ele desapareceu – o dom desapareceu por meio de alguma lança, flecha ou
porrete. Jamais ouvirei a voz daquele sujeito, afinal. E a minha tristeza era
de uma emoção alarmante e extravagante, tal qual aquela que notara nos uivos de
lamento dos selvagens na selva.  Não
poderia sentir uma desolação mais solitária se me houvessem roubado uma crença
ou se eu tivesse perdido meu destino na vida… Por que alguém suspira assim,
desse modo horripilante? Absurdo? Bem, absurdo. Santo Deus! Não poderá nunca o homem…
olhe aqui, dá-me um pouco de tabaco.

“Houve uma pausa de profundo silêncio, depois um fósforo
incendiou-se, e o delgado rosto de Marlow surgiu consumido, oco, com dobras
despencadas e pálpebras caídas, e com um aspecto de concentrada atenção; e cada
vez que ele chupava vigorosamente o cachimbo, seu rosto parecia recuar e
avançar dentro da noite, ao lampejo intermitente da pequenina chama. O fósforo
apagou-se.

‘Absurdo!’, bradou, ‘É esse o mal de se tentar contar…
Aqui estão todos vocês, cada um atracado com dois bons endereços, como um casco
com duas âncoras, um açougueiro na esquina, um policial na outra, excelentes
apetites e temperatura normal – estão ouvindo – normal do começo ao fim do ano.
E alguém vem e diz-me, Absurdo! Absurdo… absurdo uma ova!’ Meus caros amigos,
o que se pode esperar de um homem que num momento de puro nervosismo acabara de
jogar pela amurada da embarcação um par de sapatos novos? Agora que penso
nisso, é incrível que eu não tenha derramado lágrimas. Orgulho-me, de modo
geral, de minha fortaleza interior. Eu tinha ficado chocado com a ideia de
haver perdido o supremo privilégio de ouvir o talentoso Kurtz. Mas estava
enganado, é claro. Oh, sim, ouvi mais que o suficiente. E também estava certo.
Uma voz. Ele era pouco mais que uma voz. E ouvi – a dele, dela, aquela voz,
outras vozes – todas elas eram um pouco mais que vozes – e a própria recordação
daquele período permanece em torno de mim, imponderável, como uma vibração
moribunda de uma imensa tagarelice, tola, atroz, sórdida, selvagem ou
simplesmente vil, sem qualquer espécie de sentido. Vozes, vozes – até mesmo a
própria moça – agora…”

Ele ficou em silêncio por um longo tempo.

“Eu fiz desaparecer o fantasma de seus dons contando
uma mentira”, ele começou, de repente. “Moça? O quê? Mencionei uma
moça? Oh, ela está fora disso – completamente fora. Elas – as mulheres, quero
dizer – estão fora disso. Devemos ajudá-las a se manterem no seu lindo mundo
particular, já que o nosso corre o risco de se tornar cada vez pior. Oh, ela
tinha de estar fora disso. Vocês deviam ter ouvido o desenterrado corpo do Sr.
Kurtz dizendo, ‘Minha Prometida’. Teriam logo notado como ela estava
inteiramente fora. E o elevado osso frontal do Sr. Kurtz! Dizem que os cabelos
continuam crescendo, às vezes, mas aquele… ah … espécime era
impressionantemente calvo. A selva havia tocado suavemente a sua cabeça, e,
vejam, era como uma bola… uma bola de marfim; a selva o havia acariciado,
e… vejam… ele se encolhera; ela o levara, amara-o, envolvera-o, entrara-lhe
nas veias, consumira-lhe a carne, e selara a alma dele com a sua própria por
meio de cerimônias inconcebíveis de alguma iniciação diabólica. Ele era o seu
mimado e paparicado favorito. Marfim? Eu diria que sim. Montanhas dele, pilhas
dele. A velha choupana de barro estava abarrotada até o teto. Era de presumir
que não houvesse sobrado uma única presa de elefante no país inteiro, em cima
ou embaixo da terra. ‘A maioria é fóssil’, comentou o gerente,
depreciativamente. Não eram mais fósseis do que eu: mas eles dizem tratar-se de
fóssil sempre que resulta de escavação. Parece que os negros enterram as presas
algumas vezes… mas evidentemente não poderiam enterrar aquele lote numa
profundidade suficiente para salvar o talentoso Sr. Kurtz de seu destino.
Enchemos o vapor com ele, e tivemos de empilhar uma boa parte no convés. Assim
ele podia ver e desfrutar enquanto pudesse ver, porque a apreciação desse favor
permanecera com ele até o fim. Vocês deviam tê-lo ouvido falar, ‘Meu marfim’.
Eu ouvi. ‘Minha prometida, meu marfim, meu posto, meu rio, meu . . .’ – tudo
pertencia a ele. Isso me fazia prender a respiração, à espera de ver a selva
explodir numa tremenda gargalhada que deslocaria do lugar as estrelas do céu. O
que importava era saber a quem ele pertencia, quais eram os poderes das trevas
que reivindicavam a sua posse. Essa era a reflexão que fazia com que nos
arrepiássemos pelo corpo inteiro. Era impossível – e nem adiantava – tentar
imaginar. Ele assumira uma alta posição entre os demônios da terra – quero
dizer, literalmente. Vocês não podem compreender. Como poderiam? – com um
sólido pavimento debaixo de seus pés, cercados por vizinhos gentis, prontos
para apoiá-los ou criticá-los, andando delicadamente entre o açougueiro e o
policial, no sagrado terror do escândalo, prisões e manicômios – como podem
imaginar a que região particular dos tempos primitivos os desembestados pés de
alguém podem levá-lo, por meio da solidão – solidão extrema, sem um policial –
por meio do silêncio – extremo silêncio, onde nenhuma voz de advertência de um
vizinho gentil pode ser ouvida, sussurrando a opinião pública? Essas coisas
pequenas fazem a grande diferença. Quando se vão, precisamos recobrar nossa
própria força inata, na própria capacidade de fidelidade. É evidente que
podemos ser tolos o bastante para não cometer erros – embotados demais até para
saber que estamos sendo assaltados pelos poderes das trevas. É verdade, nenhum
tolo jamais barganhou a sua própria alma com o diabo: o tolo é tolo em demasia
ou o demônio é demônio em demasia – não sei qual é o caso. Ou você pode ser uma
criatura tão elevada que chega a ser surda e cega para tudo o que não seja
visões e sons celestiais. Então a terra para você é apenas uma escala – e se
viver desse modo será um ganho ou uma perda, não pretenderei afirmar. Mas a
maioria de nós não se encaixa num perfil ou no outro. A terra para nós é um
lugar para se viver, onde também temos de nos defrontar com visões, com sons,
com cheiros, por Deus! Sentir o odor de hipopótamo morto, por assim dizer, sem
ser contaminado. E aí, não percebem? É aqui que entra a nossa força, a fé em
nossa habilidade para cavar buracos imperceptíveis para enterrar a coisa…
nosso poder de devoção, não a nós mesmos, mas a um obscuro e exaustivo
trabalho. E isso já é difícil o bastante. Vejam, não estou tentando desculpar
ou explicar – estou tentando atender a minha própria necessidade de
compreender… Aquele… O Sr. Kurtz… A sombra do Sr. Kurtz. Aquele iniciado
espectro vindo do fundo de lugar algum me honrou com sua espantosa confiança
antes de sumir inteiramente. Isso ocorreu porque podia falar inglês comigo. O
Kurtz original educara-se parcialmente na Inglaterra, e – como teve a bondade
de afirmar – suas simpatias estavam no lugar certo. A mãe era meio inglesa, seu
pai era meio francês. Toda a Europa havia contribuído para a fabricação de
Kurtz; e com o passar do tempo fiquei sabendo que, muito apropriadamente, a
Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Bárbaros tinha confiado a
ele o preparo de um relatório, que lhe iria servir de guia no futuro. Ele o
escrevera. Tive a oportunidade de vê-lo e de lê-lo. Era persuasivo, vibrava com
eloquência, mas complexo em demasia, penso. Havia encontrado tempo para
escrever dezessete páginas com letra miúda. Mas isso deve ter sido antes que os
seus – digamos – nervos sofressem alguns danos, levando-o a presidir certas
danças à meia-noite, que terminavam com rituais inenarráveis, os quais – até
onde pude relutantemente deduzir do que ouvi em diversas ocasiões – eram
oferecidos a ele – vocês entendem? – ao próprio Sr. Kurtz. Mas era uma bela
peça literária. O parágrafo inicial pareceu-me, entretanto, à luz de
informações posteriores, de mau presságio. Ele começava argumentando que nós,
os brancos, considerando o progresso que já tínhamos alcançado, ‘devemos
forçosamente ser encarados por eles (os selvagens) como seres sobrenaturais,
aproximamo-nos deles com o poder de uma divindade’, e assim por diante. ‘Pelo
simples exercício de nossa vontade podemos exercer um poder para o bem
praticamente ilimitado’, etc. A partir desse ponto, ele se erguia a uma grande
altura, levando-me consigo. O discurso era magnífico, embora difícil de
lembrar, vocês sabem. Dava-me a ideia de uma exótica imensidão, governada por
uma augusta benevolência. Fez-me arder de entusiasmo. Esse era o ilimitado
poder da eloquência – das palavras – das ardentes e nobres palavras. Não havia
dicas práticas para interromper o fluxo mágico das frases, a não ser que uma
espécie de nota de rodapé na última página, garatujada obviamente tempos
depois, numa caligrafia irregular, possa ser considerada como a exposição do
método. Era muito simples e, ao final desse comovente apelo, todos os
sentimentos altruístas brilhavam em nós, luminosos e terríficos, como um clarão
de relâmpago num céu sereno. ‘Exterminemos todos os bárbaros!’ A parte curiosa
é que ele aparentemente se esquecera inteiramente daquele valioso pós-escrito,
pois, mais tarde, quando num certo sentido ele voltou a si, rogou-me
repetidamente para que cuidasse bem do ‘meu panfleto’ (como o chamava), que,
certamente, no futuro poderia ter uma influência positiva em sua carreira. Eu
estava muito bem informado sobre todas essas coisas e, além do mais, acabei por
ficar também encarregado de zelar pela memória dele. Eu fizera o possível por
ela para ganhar o direito indiscutível, se assim preferisse, de relegá-la a um
eterno descanso na lata de lixo do progresso, entre todos os detritos e,
falando figurativamente, todos os gatos mortos da civilização. Mas aí vocês
veem, eu não posso escolher. Ele não será esquecido. O que quer que tenha sido,
não foi comum. Ele tinha o poder de encantar ou assustar as almas rudimentares,
conduzindo-as a uma condenada dança de feiticeiros em sua honra; também podia
encher as almas pequenas dos peregrinos com amargos pressentimentos: ele tinha
ao menos um amigo devotado, e conquistara uma alma no mundo que não era nem
rudimentar nem maculada pelo egoísmo. Não; não posso esquecê-lo, embora não
esteja preparado para afirmar que o sujeito valesse exatamente a vida que
perdemos para chegar até ele. Sentia uma terrível saudade do meu último
timoneiro; sentia saudades dele inclusive quando o seu corpo ainda se
encontrava estirado na cabine de comando. Talvez, vocês considerem um estranho
exagero o meu pesar por um selvagem que não significava mais que um grão de
areia num negro Saara. Bem, vocês não veem? Bem, vocês hão de compreender que
ele tinha feito alguma coisa, tinha pilotado o barco; durante alguns meses eu o
tive às minhas costas… um auxiliar… um instrumento. Era um tipo de
parceria. Ele pilotava para mim – eu tomava conta dele, preocupava-me com as
suas deficiências e, então, criara assim uma ligação sutil da qual só tomei
consciência quando se rompeu de repente. E a íntima profundidade daquele olhar
que ele me deu, quando foi ferido, permanece até hoje em minha memória – como a
reivindicação de um longínquo parentesco feita num momento supremo.

“Pobre infeliz! Se ao menos tivesse deixado aquela
janela em paz. Ele não podia ser contido, não podia – tal como Kurtz – uma
árvore balançada pelo vento. Assim que pus um par de chinelos secos, arrastei-o
para fora, não sem antes arrancar o chuço enterrado em seu flanco, operação que
confesso ter realizado com meus olhos bem fechados. Seus calcanhares saltaram
juntos sobre o pequeno degrau; seus ombros comprimiam o meu peito; eu o
abraçava por trás, desesperadamente. Oh, ele era pesado, muito pesado; mais
pesado que qualquer outro homem da terra, eu imaginava. Então, sem mais cerimônias,
eu o atirei por sobre a amurada. A corrente agarrou-o como se fosse um feixe de
relva, e ainda observei quando o corpo rolou duas vezes antes de perdê-lo de
vista para sempre. Todos os peregrinos estavam reunidos na coberta, junto com o
gerente, perto da cabine do piloto, tagarelando como um bando de gralhas
agitadas, e houve um murmúrio escandalizado no meio deles diante da desumana
presteza com que eu agira. Por que desejavam manter aquele cadáver ali eu não
posso imaginar. Embalsamá-lo, talvez? Mas eu também tinha ouvido um outro
murmúrio, e  muito sinistro, no convés de
baixo. Meus amigos lenhadores estavam igualmente escandalizados, e demonstravam
uma razão mais forte – embora eu confesse que o motivo era em si mesmo
inadmissível. Oh, inteiramente! Eu havia decidido que se o meu finado timoneiro
tivesse de ser comido, haveria de ser pelos peixes, unicamente. Fora um
timoneiro de segunda classe enquanto vivo, mas agora que estava morto, havia se
tornado uma tentação de primeira classe, e possivelmente cansaria algum
problema assustador. Além do mais, eu estava ansioso para assumir o comando, já
que o homem do pijama cor-de-rosa mostrava-se um pateta para lidar com o leme.

“Foi o que fiz assim que o simples funeral chegou ao
fim. Navegávamos à meia velocidade, mantendo-nos bem no centro do rio, e eu
ouvia a conversa à minha volta. Haviam desistido de Kurtz, haviam desistido do
posto; Kurtz estava morto, e o posto tinha sido incendiado – e assim por
diante. O peregrino ruivo não cabia em si mesmo com a ideia de que ao menos
aquele pobre Kurtz tinha sido devidamente vingado, ”Digam-me uma coisa, vocês
não acham que fizemos uma bela selvageria naquela selva, hein? O que você
acha?” Ele positivamente dançava o sanguinário e patife ruivinho. E quase
desmaiou quando viu o homem ferido! Não pude deixar de aproveitar o momento
para dizer: ‘De qualquer maneira, vocês fizeram uma bela fumaceira’.

“Eu havia notado, pelo jeito como a folhagem no topo
dos arbustos farfalhava e voava para todos os lados, que quase todos os tiros
tinham passado muito alto. Não se pode atingir um alvo se não fizer mira e
atirar tendo a arma apoiada no ombro: mas aqueles sujeitos atiravam tendo a
arma apoiada no quadril, e com os olhos fechados. Voltei a afirmar – e eu
estava certo – que a debandada fora causada pelo estridente apito do vapor.
Após isso, eles esqueceram Kurtz, e começaram a vaiar-me com protestos
indignados.

“O gerente estava de pé, junto ao timão, murmurando
confidencialmente a respeito da necessidade de descermos bastante o rio antes
do anoitecer, quando avistei na distância uma clareira nas margens do rio e o
contorno de algum tipo de edifício. ‘O que é aquilo? ‘, perguntei. Ele bateu
palmas, maravilhado, “O posto!’, gritou. Aproximei-me da margem imediatamente,
ainda a meia-velocidade.

“Com a ajuda do binóculo avistei a encosta de um morro
com umas poucas árvores e nenhuma vegetação rasteira. Um comprido edifício,
caindo aos pedaços, no topo, estava meio enterrado atrás do mato; os grandes
buracos no telhado de palha pareciam negros quando vistos de longe; a selva
fazia o pano de fundo. Não havia muro ou cerca de espécie alguma; mas havia
vestígios da existência prévia de algo assim, pois junto da casa meia dúzia de
finas estacas permaneciam de pé, enfileiradas, rudemente desbastadas, e com as
extremidades ornamentadas com bolas esculpidas. A cerca, ou o que quer que
houvesse entre ela havia desaparecido. É claro que a selva cercava tudo aquilo.
A margem do rio estava limpa e, na beira da água, vi um branco sob um chapéu
que parecia uma roda de carro, acenando insistentemente com o seu braço
estendido. Examinando a borda da selva, acima e abaixo, eu estava quase certo
de que enxergava movimentos – formas humanas deslizando aqui e ali. Naveguei
com prudência, depois desliguei os motores e deixei o vapor à deriva. O homem
na margem começou a gritar, apressando-nos ao desembarque. ‘Fomos atacados’,
bradou o gerente. ‘Eu sei, eu sei. Mas está tudo bem agora’, gritou de volta o
outro, com o máximo do entusiasmo. ‘Venham até cá. Está tudo bem. Estou
contente por vê-los.’

“Seu aspecto me fez lembrar alguma coisa que eu tinha
visto em algum lugar – alguma coisa engraçada. Enquanto manobrava para encostar
o barco, perguntava a mim mesmo, ‘Com quem se parece esse sujeito?’ De repente
me lembrei. Ele parecia um arlequim. Sua roupa, feita provavelmente de algodão
cru, estava inteiramente coberta de remendos de cores vivas – azuis, vermelhos,
amarelos… remendos nas costas, na frente, nos cotovelos, nos joelhos; um
debrum colorido no paletó, uma barra escarlate nas calças… E a luz do sol
dava a ele uma aparência ao mesmo tempo muito festiva e esmerada, pois se podia
perceber com que capricho aqueles remendos tinham sido feitos. Um rosto imberbe
e juvenil, uma pele muito clara, feições indefinidas, o nariz descascando,
afáveis olhos azuis, sorrisos e carrancas se sucedendo em sua fisionomia
franca, como o sol e a sombra numa planície varrida pelo vento.

‘Cuidado, capitão!’, gritou ele, ‘um tronco apareceu aí na
noite passada’. ‘O quê? Outro obstáculo?’ Confesso que praguejei
vergonhosamente. Por pouco não fazia um rombo no meu estropiado barco, para dar
o toque final naquela inefável viagem. O arlequim da beira do rio levantou para
mim o seu nariz achatado. ‘O senhor é inglês?’, perguntou, todo sorridente.
‘Você é?’, berrei do leme.

“Os sorrisos desapareceram e ele sacudiu a cabeça, com
pesar por me desapontar. Mas logo se animou de novo. ‘Isso não importa”,
exclamou, encorajadoramente. ‘Estamos com tempo?’, perguntei. ‘Ele está lá em
cima’, respondeu, com um aceno de cabeça na direção do alto do morro e
assumindo, de repente, um ar melancólico. Seu rosto era como um céu de outono –
nublado num momento, límpido no outro.

”Quando o gerente, escoltado pelos peregrinos, todos eles armados
até os dentes, dirigiram-se para a casa, esse sujeito subiu a bordo. ‘Sabe, eu
não gosto disso. Esses nativos estão nos arbustos’, afirmei. ‘Ele me assegurou
veementemente que tudo estava bem. ‘São pessoas simples’, acrescentou. ‘Bem,
estou feliz que tenham vindo. Precisei de todo o meu tempo para mantê-los
afastados’, ‘Mas o senhor disse que tudo estava bem’, exclamei. ‘Oh, eles não
querem fazer nenhum mal’, ele disse; e quando o olhei com espanto, ele se
corrigiu. ‘Não exatamente’. Depois, com vivacidade: ‘Meu Deus, a sua cabine de
comando precisa de uma limpeza!’ E logo a seguir me aconselhava a manter
bastante vapor na caldeira para fazer funcionar, caso houvesse algum problema.
‘Um bom apito fará mais por vocês do que todos os seus rifles. É um povo
simples’, repetiu. Tagarelava num ritmo tão acelerado que estava me deixando
aturdido. Parecia estar querendo compensar um longo período de silêncio e, na
verdade, chegou a insinuar isso, com uma risada. ‘Você não conversa com o Sr.
Kurtz?’, perguntei. ‘Não se pode conversar com aquele homem: só se pode
ouvi-lo’, exclamou, com severa exaltação. ‘Mas agora… ‘ Acenou o braço e, num
piscar de olhos, encontrava-se nas maiores profundezas da melancolia. Em um
momento recobrou a alegria com um salto, tomou as minhas mãos, balançou-as
continuamente, enquanto tagarelava: ‘… Irmão marinheiro… honra… prazer…
deleite… apresentar-me… russo… filho de um arcebispo… Governo de
Tambov… Quê? Tabaco! Tabaco inglês; o excelente tabaco inglês? Isso é generoso.
Se eu fumo? Onde já se viu um marujo que não fuma?’

“O cachimbo aliviou-o e gradualmente compreendi que
fugira da escola, ganhara o mar num navio russo; tornara a fugir; servira algum
tempo em navios ingleses; e estava agora reconciliado com o arcebispo. Insistiu
nisso. ‘Mas quando se é jovem, é preciso ver as coisas, adquirir experiência,
ter ideias, alargar a mente.’ ‘Aqui”, interrompi. ‘Nunca se sabe! Aqui eu
conheci o Sr. Kurtz’, afirmou, jovialmente solene e com censura. Segurei minha
língua depois disso. Parece que ele convencera uma empresa holandesa do litoral
a equipá-lo com mercadorias e partira rumo ao interior com o coração anuviado,
e sem ter ideia do que lhe aconteceria, tal qual um bebê. Andara peregrinando
por aquele rio ao longo de quase dois anos, sozinho, isolado de todos e de
tudo. ‘Segurei minha língua depois disso. ‘Não sou tão jovem quanto pareço.
Tenho vinte e cinco anos’, disse. ‘A princípio, o velho Van Shuyten me mandou
para o diabo’, narrou com intenso prazer. ‘Mas me agarrei a ele, e conversei e
conversei, até que finalmente ele teve medo que eu tomasse a pata traseira do
seu cão favorito, então,  deu-me algumas
mercadorias baratas e algumas armas, e disse-me que esperava jamais tornar a
ver o meu rosto novamente, o bom e velho holandês, Van Shuyten. Mandei-lhe um
pequeno carregamento de marfim há cerca de um ano, de modo que não me possa
chamar de pequeno ladrão quando eu retornar. Espero que ele tenha recebido.
Quanto ao mais, não me importo. Tenho um pouco de lenha empilhada para o
senhor. Ali, erguia-se a minha antiga casa. O senhor a viu?’

“Entreguei-lhe o livro de Towson. Ele fez um gesto
como se fosse me dar um beijo, mas se conteve. ‘O único livro que me restava, e
pensei que o tivesse perdido’, falou, contemplando-o com êxtase. ‘O senhor
sabe, acontecem tantos acidentes com um homem que viaja sozinho, o senhor sabe.
As canoas, às vezes, afundam e a gente tem de desaparecer quando as pessoas
ficam nervosas.’ Ele folheou as páginas. ‘O senhor escreveu essas notas em russo?’,
perguntei. Ele concordou com a cabeça. ‘Pensei que estavam escritas em código’,
falei. Ele riu, depois ficou sério. ‘Tive muitos problemas para manter essa
gente afastada’, afirmou. ‘Queriam matá-lo?’, indaguei. ‘Oh, não!’, ele
exclamou, e conteve-se. ‘E por que nos atacaram?’, prossegui. Ele hesitou,
depois falou contrafeito: ‘Não querem que ele se vá’. ‘Não querem?’, perguntei
curioso. Ele assentiu com a cabeça, num gesto cheio de mistério e sabedoria.
‘Estou lhe afirmando’, exclamou, ‘esse homem abriu a minha mente’. Abriu os
braços, olhando para mim com seus pequenos olhos azuis que eram perfeitamente
redondos.”

 

PARTE 3

 

 

      “Eu olhava para ele, cheio de
assombro. Lá estava ele diante de mim, envolto em seus retalhos, como se ele
tivesse fugido de uma trupe de mímicos, entusiasmados, fabulosos. Sua
existência era improvável, inexplicável, e completamente desconcertante. Ele
era um problema insolúvel. Era inconcebível o modo como sobrevivera, como havia
chegado tão longe, como havia conseguido permanecer ali. Por que não
desaparecera instantaneamente? ‘Eu ia avançando aos poucos’, disse, ‘e depois
mais um tanto, até que eu tivesse ido tão longe que não mais soubesse como
regressar. Eu tenho tempo de sobra. Eu me arranjo. O senhor deve levar Kurtz o
mais rápido – o mais rápido – é o que eu digo’. O brilho da juventude envolveu
os seus trapos multicoloridos, a sua indigência, a solidão da intrínseca
desolação de suas inúteis peregrinações. Meses a fio – anos a fio – sua vida
não valera o soldo de um dia; e ali estava galantemente e despreocupadamente
vivo, indestrutível para todos os efeitos, e tudo em virtude de uma decisão
tomada na juventude, num momento de audácia irrefletida. Fui seduzido por um
tipo de admiração – algo próximo à inveja. Havia um brilho que o fazia
prosseguir, a magia o conservara incólume. Era certo que ele nada queria da
selva além do espaço para respirar e para seguir adiante. Sua necessidade era
existir, e mover-se à custa dos maiores riscos, e com o máximo de privação. Se
algum dia, um espírito de aventura absolutamente puro, desinteressado e
desprovido de qualquer senso prático chegou a habitar um ente humano, esse ente
era aquele jovem coberto de remendos. Quase invejei a posse daquela chama
modesta e luminosa. Ela parecia ter consumido a sua ideia de ego tão
inteiramente, que mesmo enquanto conversava conosco, esquecíamo-nos que fora
ele – o homem diante de nossos olhos – que passara por tudo aquilo. Mas não
invejava sua dedicação a Kurtz. Ele não refletira sobre ela. A coisa acontecera
e ele a aceitara com impulsivo fatalismo. Devo dizer que a mim isso pareceu,
sob todos os aspectos, a coisa mais perigosa que lhe tinha acontecido até
então.

“Eles vieram juntos inevitavelmente, como dois navios
em calmaria, pertos um do outro e acabaram roçando seus flancos, afinal.
Suponho que Kurtz queria uma audiência, porque em certa ocasião, quando
acamparam na selva, eles conversaram a noite toda, ou, mais provavelmente,
Kurtz tinha falado. ‘Conversamos sobre tudo’, ele disse bastante arrebatado por
aquela lembrança, “Esqueci-me de que existia algo chamado sono. A noite
passou tão rápida quanto uma hora. Tudo! Tudo!… De amor, também’. ‘Ah, ele
lhe falou sobre o amor!’ eu disse, considerando o fato muito divertido. ‘Não é
o que o senhor está pensando’, exclamou, quase apaixonadamente. ‘Foi em termos
gerais. Ele me fez enxergar certas coisas… coisas’.

“Jogou seus braços para o alto. Estávamos no convés
naquela hora, e o chefe dos meus lenhadores, descansando por perto, voltou para
ele os seus olhos pesados e brilhantes. Olhei em volta, e não sei por que, mas
posso assegurar-lhes que jamais, jamais aquela terra, aquele rio, aquela seiva,
e o próprio arco daquele céu resplandecente me pareceram tão desprovidos de
esperança e tão sombrios, tão impenetráveis ao pensamento humano, tão
impiedosos às fraquezas humanas. ‘E, desde então, o senhor tem estado com ele,
é claro’, eu disse.

“Pelo contrário. Parece que o relacionamento entre
ambos havia sido rompido por motivos vários. Segundo informou-me orgulhoso, ele
havia conseguido tratar de Kurtz em duas ocasiões que estivera enfermo (ele fez
alusão a ela como se fosse a alguma façanha arriscada), mas em regra Kurtz
errava sozinho nas profundezas da selva. ‘Frequentemente, ao vir para este
posto, eu tinha de aguardar dias e mais dias até que ele aparecesse’, disse.
‘Ah, valia a pena aguardar! – às vezes’. ‘O que fazia ele? Explorações, ou o
quê?’, perguntei. ‘Oh, sim, evidente.’ Kurtz descobrira muitas aldeias, e um
lago também – ele não sabia exatamente em que direção; era perigoso perguntar
demais, mas quase sempre essas expedições eram em busca de marfim. ‘Mas ele não
tinha mercadorias com as quais negociar nesse período’, objetei. ‘Ainda há uma
sobra considerável de cartuchos’, respondeu, desviando seu olhar. ‘Falando
francamente, ele saqueou a região’, eu disse. Ele assentiu. ‘Não sozinho, é
claro! O homem murmurou algo a respeito das aldeias em torno do tal lago.
‘Kurtz conseguiu que a tribo o seguisse, não foi?’, sugeri. Ele mostrou-se um
pouco irrequieto. ‘Eles o adoravam’, disse. O tom dessas palavras foi tão
extraordinário que olhei para ele, em busca de uma compreensão mais profunda.
Estava curioso para ver sua ansiedade misturada com relutância em falar de
Kurtz. O homem enchia a sua vida, ocupava os seus pensamentos, influenciava as
suas emoções. ‘O que poderíamos esperar?’, explodiu; ‘ele chegou a eles como
com trovões e relâmpagos, o senhor sabe – e eles jamais tinham visto algo assim
– e tão terrível. Ele sabia como ser muito terrível. Não pode julgar o Sr.
Kurtz como se fosse um homem comum. Não, não, não agora – apenas para lhe dar
uma ideia – não me importo de dizer, senhor, ele queria me salvar também, um
dia – mas eu não o julgo.’ ‘Atirar no senhor!’, exclamei. ‘Por quê?’ ‘Bem, eu
tinha um pequeno carregamento de marfim com que o chefe daquela tribo vizinha à
minha casa me presenteara. Veja, eu costumava matar a caça para eles. Bem, ele
queria o marfim, e não queria ouvir meus argumentos. Declarou que atiraria em
mim se não lhe entregasse o marfim e depois sumisse da região, porque ele tinha
o poder para fazê-lo, e tinha vontade de fazê-lo, e não havia nada na terra que
poderia impedi-lo de matar quem ele bem entendesse. E isso era bem uma verdade.
Dei-lhe o marfim. Que me importava! Mas não desapareci. Não, não. Não poderia
deixá-lo. Tinha de ser cauteloso, é claro, até que pudéssemos voltar a ser
amigos. Ele ficou doente pela segunda vez. Depois tive de manter-me a
distância, mas eu não me importava. Ele passava a maior parte de seus dias
naquelas aldeias junto ao lago. Quando vinha até o rio, às vezes, acolhia-me
bem, outras vezes, eu precisava agir com toda a cautela. Aquele homem sofria
demais. Odiava tudo isto, mas por alguma razão não conseguia livrar-se daqui.
Quando tive uma chance, implorei-lhe que tentasse partir enquanto era tempo;
oferecia-me para regressar com ele. E ele dizia sim, e depois ele ficava;
partia em outra caçada ao marfim; desaparecia durante semanas; esquecia-se de
si mesmo em meio àquele povo… esquecia-se de si mesmo, o senhor sabe’. ‘Ora!
É um louco’, afirmei. Ele protestou indignado. ‘O Sr. Kurtz não podia estar
louco. Se eu pudesse ter ouvido o que ele havia dito fazia apenas dois dias não
teria ousado insinuar semelhante coisa…’ Eu tinha apanhado meu binóculo
enquanto conversávamos, e estava observando a margem, vasculhando o limite da
selva em cada lateral e atrás da casa. A consciência de que havia gente atrás
daqueles arbustos, gente tão silenciosa, tão quieta – tão silenciosa e quieta
quanto a casa arruinada na colina – deixava-me incomodado. Não havia sinal na
face da natureza daquela espantosa história que não estava sendo exatamente
contada, mas sugerida a mim, eram desoladas exclamações, completadas com
jogadas de ombro, frases interrompidas, insinuações que terminavam com suspiros
profundos. A selva estava imóvel, como uma máscara – pesada como a porta
fechada de uma prisão; eles olhavam com seu ar de oculta sabedoria, paciente
expectativa, inabordável silêncio. O russo estava explicando para mim que fazia
pouco tempo que o Sr. Kurtz tinha vindo para a beira do rio, trazendo consigo
todos os guerreiros da tribo do lago. Ele estivera ausente por vários meses –
fazendo-se adorar, suponho – e descera inesperadamente, com a intenção, a julgar
pelas aparências, de realizar uma incursão do outro lado do rio ou de descer a
correnteza. Evidentemente o apetite por mais marfim levara a melhor sobre –
como devo dizer? – as aspirações menos materiais. Todavia, sua saúde havia
piorado muito de repente. ‘Soube que ele estava prostrado, sem perspectivas de
melhoras, e então subi… assumi o risco’, disse isso. ‘Oh! Ele está mal, muito
mal.’ Dirigi o meu binóculo para a casa. Não havia sinais de vida, mas havia o
telhado arruinado, a comprida parede de barro aparecendo por sobre o mato, com
três pequenas janelas quadradas, sem qualquer simetria: tudo aquilo trazido ao
alcance de minha mão, por assim dizer. E, então, fiz um movimento brusco, e uma
das últimas estacas daquela cerca desaparecida saltou no campo de meu binóculo.
Vocês se lembram de que fiquei chocado, à distância, por certas tentativas de
ornamentação um tanto notáveis, no ruinoso aspecto do lugar? Agora, de repente,
eu via as coisas mais de perto, e minha primeira reação foi recuar bruscamente
a cabeça, como se tivesse recebido uma pancada. Comecei, então, a examinar com
o binóculo estaca por estaca, e percebi o meu engano. Aquelas bolas não eram
ornamentais, mas simbólicas; eram expressivas e perturbadoras, chocantes e
desconcertantes – alimento para o cérebro, mas também para os abutres, se
tivesse havido algum olhando do céu cá para baixo: mas de qualquer modo para
aquelas formigas que eram laboriosas o bastante para escalar as estacas. Teriam
sido ainda mais impressionantes aquelas cabeças nas estacas, se suas faces não
estivessem viradas para a casa. Apenas uma, a primeira que eu divisara, estava
voltada para mim. Não fiquei tão chocado quanto vocês possam imaginar. O pulo
que dei para trás não foi nada realmente, apenas um movimento de surpresa. O
que eu esperava ver ali era uma bola de madeira, vocês entendem. Retomei
deliberadamente à primeira que avistara – e lá estava ela, negra, seca murcha,
com olhos fechados – uma cabeça que parecia adormecida no alto daquela estaca e
que, com seus lábios secos e murchos, deixando à mostra uma estreita fileira de
dentes, estava sorrindo, também, sorrindo continuamente de algum sonho eterno e
jocoso, naquele eterno sono.

“Eu não estou a revelar quaisquer segredos comerciais.
Na verdade, o gerente disse depois que os métodos do Sr. Kurtz haviam arruinado
o posto. Não tenho opinião sobre esse ponto, mas eu quero que vocês entendam
claramente que não havia nada exatamente rentável no fato de aquelas cabeças
estarem ali. Elas só mostraram que o Sr. Kurtz não tinha restrição na
satisfação de suas várias paixões, que ele sentia falta de algo – alguma
materiazinha que, quando surgia a necessidade premente, não podia ser
encontrada embaixo de sua eloquência magnífica. Se ele sabia dessa deficiência,
não posso dizer; acho que o conhecimento lhe chegou afinal – mas somente bem no
final. Mas a selva descobrira-o cedo e lograra sobre ele uma terrível vingança
pela fantástica invasão. Acho que lhe sussurrou coisas sobre si mesmo que ele
não conhecia; coisas de que ele não tinha a concepção até que ele se aconselhou
com esta grande solidão – e o sussurro provou ser irresistivelmente fascinante.
Ecoava alto dentro dele porque ele no fundo era vazio… Abaixei o binóculo, e
a cabeça que tinha aparecido perto o suficiente para que eu falasse com ela,
pareceu ter saltado, de súbito, a uma distância inacessível de mim.

“O admirador do Sr. Kurtz estava um pouco cabisbaixo.
Com voz apressada, indistinta, pôs-se a assegurar-me que ele não se atrevera a
remover aqueles – digamos – símbolos. Ele não temia os nativos; eles não se
moveriam até que o Sr. Kurtz falasse. Sua ascendência era extraordinária. Os
acampamentos daquela gente cercavam o local, e os líderes iam ter com ele
diariamente. Eles se arrastavam… ‘Não tenho o menor interesse em saber qual o
ritual que usavam para se aproximar do Sr. Kurtz’, gritei. Curioso, a sensação
que me invadiu de que esses detalhes seriam mais intoleráveis do que a visão
daquelas cabeças espetadas nos paus, sob as janelas do Sr. Kurtz. Afinal, era apenas
uma visão selvagem, e enquanto eu parecia ter sido transportado, num único
lance, para alguma região sombria de horrores sutis, onde a pura e simples
selvageria era realmente um alívio, já que era algo que tinha o direito de
existir – obviamente – debaixo do sol. O jovem olhou-me com surpresa; suponho
não lhe haver ocorrido que o Sr. Kurtz não era nenhum ídolo meu. Ele esquecera
que eu não ouvira aqueles esplêndidos monólogos sobre… o quê, mesmo? –  o amor, a justiça, a conduta da vida e não
sei o que mais; ele se arrastava como se fosse o mais selvagem entre todos. ‘Eu
não fazia ideia das condições’, disse-me, ‘essas cabeças eram cabeças de
rebeldes’. Deixei-o profundamente chocado ao soltar uma risada. Rebeldes! Qual
seria a próxima definição que eu iria ouvir? Qual seria a definição seguinte
que eu estava para ouvir. Houvera inimigos, criminosos, e trabalhadores – e
esses eram rebeldes. Aquelas cabeças rebeladas pareciam-me bastante subjugadas
em cima daquelas estacas. ‘O senhor não pode imaginar como esse tipo de vida
representa uma verdadeira provação para um homem como Kurtz’, exclamou o último
discípulo de Kurtz. ‘Bem, e quanto ao senhor?’, indaguei. ‘Eu? Eu! Sou um homem
simples. Não tenho grandes pensamentos. Não quero coisa alguma de ninguém. Como
pode comparar-me ao…?’ Seus sentimentos estavam exaltados demais para falar
e, de repente, entrou em colapso. ‘Não compreendo’, gemeu. ‘Tenho feito o
possível para mantê-lo vivo, e isso é o que basta. Não tive participação em
nada disso. Não tenho habilidades. Há meses que não existe aqui uma só gota de
remédio ou qualquer coisa que sirva para a dieta de um doente. Ele foi
vergonhosamente abandonado. Um homem como ele, com todas aquelas ideias! É
vergonhoso… vergonhoso! Eu … eu… faz dez noites que não durmo…’

“Sua voz se perdeu no silêncio da noite. As longas
sombras da selva haviam deslizado pelo morro enquanto conversávamos e avançado
muito além da choupana arruinada e sua simbólica fileira de estacas. Tudo
aquilo fora envolvido pela escuridão, enquanto nós ali embaixo ainda nos
encontrávamos sob a luz do sol, e o trecho do rio adiante da clareira reluzia
num esplendor estático e deslumbrante, com uma curva lamacenta e obscurecida
acima e mais uma abaixo. Nem uma alma viva foi vista na costa. Os arbustos não
farfalhavam.

“De repente, da esquina da casa, um grupo de homens
apareceu, como se tivesse brotado do chão. Eles tinham mato pela cintura e
formavam um corpo compacto, carregando uma maca improvisada no meio deles.
Instantaneamente, no vazio da paisagem, ouviu-se um grito cuja estridência
perfurou o ar como uma flecha pontiaguda voando bem no rumo do coração da
terra, e, como por encanto, um caudal de seres humanos – todos nus – empunhando
chuços, arcos, escudos, de olhar desvairado e gestos selvagens, derramaram-se
na clareira pela selva sombreada e absorta. Os arbustos se agitaram, a relva
balançou durante algum tempo, e depois tudo ficou em silêncio, em atenta
imobilidade.

“‘Agora, se ele não disser a coisa certa a eles,
estamos todos terminados’, disse o russo junto de mim. O punhado de homens que
carregava a maca tinha parado também, a meio caminho do barco, como se
petrificados. Vi quando o homem na maca sentou-se, esguio e com o braço
erguido, acima da altura dos ombros dos carregadores. ‘Vamos esperar que o
homem que sabe falar tão bem sobre o amor em geral consiga encontrar alguma
razão particular para nos poupar desta vez’, eu disse. Ressentia-me amargamente
do absurdo perigo da situação em que nos encontrávamos, como se o fato de estar
à mercê daquele fantasma atroz fosse uma contingência desonrosa. Não ouvíamos
um único som, mas através do binóculo, enxerguei o fino braço estendido em
posição de comando, o queixo movendo-se, os olhos daquela aparição brilhando
sombriamente, distante, com a sua cabeça ossuda que acenava em convulsão
grotesca. Kurtz – Kurtz – isso significa curto em alemão, não é? Pois bem, o
nome tinha tanto de verdade quanto tudo o mais em sua vida – e em sua morte.
Parecia ter ao menos uns dois metros e dez centímetros de altura. A sua coberta
caíra, e seu corpo emergira miserável e apavorante como que de dentro de uma
mortalha. Eu enxergava as suas costelas que se agitavam todas, os ossos de seu
braço acenando. Era como se uma imagem animada da morte, esculpida em marfim
envelhecido, estivesse sacudindo a mão com ameaças a uma multidão paralisada de
homens feita de bronze escuro e reluzente. Vi-o abrir a boca enorme – e isso
lhe deu uma aparência sinistra e voraz, como se ele quisesse engolir todo o ar,
toda a terra, todos os homens que estavam à sua frente. Uma voz profunda
alcançou-me debilmente. Ele devia estar gritando. A maca estremeceu quando os
carregadores cambalearam adiante e, quase ao mesmo tempo, percebi que a
multidão de selvagens começava a se desvanecer sem que houvesse nenhum
movimento visível de recuo, como se a selva que havia expelido tão subitamente
aqueles seres, agora os sugasse de repente, como o ar é puxado numa longa
aspiração.

“Alguns dos peregrinos atrás das macas carregavam as
suas armas – duas espingardas, um potente rifle e um leve revólver carabina –
os raios daquele Júpiter lamentável. O gerente inclinou-se sobre ele
murmurando, enquanto ele andava ao lado de sua cabeça. Levaram-no para uma das
cabinas – um cômodo que comportava apenas uma cama e uns dois tamboretes, vocês
sabem. Havíamos trazido a sua correspondência atrasada, e muitos envelopes
rasgados e cartas abertas pareciam um lixo que enchia sua cama. A mão dele
remexia debilmente no meio dos papéis. Fiquei impressionado com o fogo que
brilhava nos seus olhos e a serena frouxidão de seu rosto. Ele não era o total
esgotamento da doença. Ele não dava a impressão de estar sentindo nenhuma dor.
Aquela sombra parecia saciada e calma, como se naquele momento estivesse
saturada de todas as emoções.

“Ele puxou uma das cartas, e, olhando direto nos meus
olhos, disse: ‘Estou alegre em conhecê-lo’. Alguém tinha escrito a ele sobre
mim. Aquelas recomendações especiais vinham à tona de novo. Uma voz! Uma voz!
Era grave, profunda, vibrante, enquanto o homem não parecia capaz de um
sussurro. No entanto, ele teve força suficiente dentro dele – sem dúvida
artificial – para quase acabar conosco, como vocês irão ver a seguir.

“O gerente surgiu silenciosamente à porta; eu saí
imediatamente e ele fechou a cortina à minha passagem. O russo, observado
curiosamente pelos peregrinos, olhava para a margem. Segui a direção do seu
olhar.

“Era possível distinguir, na distância, negros vultos
humanos, correndo indistintamente contra a sombria borda da selva e, perto do
rio, duas figuras de bronze, apoiando-se em lanças compridas, erguiam-se à luz
do sol sob fantásticos adornos de cabeça de peles malhadas, belicosos e
paralisados em um repouso de estátua. E da direita para a esquerda, ao longo da
praia ainda iluminada, aproximava-se uma estranha e deslumbrante aparição sob a
forma de uma mulher.

“Ela caminhava com passos medidos, envolta em tecidos
listrados com franjas, pisando a terra orgulhosamente, com um ligeiro tilintar
e o brilho de ornamentos bárbaros. Caminhava de cabeça erguida, o cabelo
arranjado ao feitio de um capacete; tinha perneiras de bronze até os joelhos,
luvas de fios de bronze até os cotovelos, uma pinta escarlate na face morena e
inumeráveis colares de contas de vidro à volta do pescoço; de seu corpo pendiam
bizarras coisas, amuletos, dádivas dos feiticeiros, que tremeluziam a cada
passo seu. O que trazia sobre a sua pessoa devia valer várias presas de
elefante. Era selvagem e soberba, tinha olhos selvagens e magníficos: havia
algo de sinistro e pomposo em seu passo deliberado. E no silêncio que se
estendeu subitamente por toda aquela entristecida terra, toda aquela vasta
solidão, o imenso corpo misterioso e fecundo da vida parecia contemplá-la,
meditativo, como se olhasse para a imagem de sua própria alma ardente e
apaixonada.

“Ela veio caminhando até chegar defronte do nosso
barco e, ali parou, virando-se para nós. A sua sombra comprida caía até a beira
da água. Seu rosto tinha um ar trágico e desvairado, reflexo de uma dor
profunda, surda, desesperada, em que se mesclava o temor de uma penosa
disposição prontamente delineada. Ela ficou parada a nos olhar, imóvel, e – à
semelhança da selva – com um ar de quem medita tristemente sobre algum
propósito inescrutável. Um minuto se passou e, então, ela deu um passo à
frente. Houve um tênue tilintar, um reluzir de metal dourado, uma agitação de
tecidos franjados, e ela parou como se o coração tivesse falhado. O rapaz ao
meu lado resmungou. Os peregrinos murmuraram às minhas costas. Ela olhou para
todos nós como se a sua vida dependesse da firmeza inabalável de seu olhar. De
repente, abriu os braços nus e ergueu-os rigidamente acima da cabeça, como que
tomada por um desejo incontrolável de tocar o céu e, ao mesmo tempo, as sombras
velozes projetavam-se pela terra, envolviam o rio e o vapor num abraço sombrio.
Um silêncio formidável pairava sobre a cena.

“Ela voltou-se lentamente e continuou o seu caminho,
seguindo ao longo da margem e penetrando na selva à esquerda. Apenas uma vez
seus olhos brilharam em nossa direção em meio à escuridão da selva, antes de
desaparecer.

“‘Se ela tivesse mostrado intenção de subir a bordo
acho que eu lhe daria um tiro’, disse o homem dos remendos, nervosamente. ‘Eu
tenho arriscando a minha vida diariamente nas duas últimas semanas tentando
mantê-la afastada da casa. Um dia, ela entrou e armou uma confusão danada por
causa desses míseros trapos que peguei no depósito para remendar minhas roupas.
Eu não estava decentemente vestido. Pelo menos achei que foi por isso, pois ela
esbravejou diante de Kurtz durante uma hora, apontando de vez em quando para
mim. Não entendo o dialeto da tribo. Para minha sorte, acho que Kurtz estava
doente demais naquele dia para se importar, ou teria me dado mal. Não consigo
entender… Não… é demais para mim. Ah, mas agora tudo acabou.’

“Nesse momento, ouvi a voz penetrante de Kurtz por
trás da cortina: ‘Salva-me!’  ‘Salvar o
marfim, você quer dizer’. ‘Não me venha com essa. Salva-me! Ora, já tive de
salvá-lo. Você está atrapalhando meus planos agora. Doente! Doente! Não estou
tão doente quanto você gostaria que estivesse. Mas isso não importa. Ainda
levarei avante as minhas ideias – eu voltarei. Mostrarei a você o que pode ser
feito. Você e suas ideias desprezíveis… você está interferindo comigo. Eu
voltarei. Eu… ‘

“O gerente saiu. Deu-me a honra de pegar-me pelo braço
e levar-me para um canto. ‘Ele está muito mal, muito mal’, disse. Ele
considerou necessário um suspiro, mas esqueceu de ser consistentemente triste.
‘Fizemos tudo o que podíamos por ele, não é verdade? Mas não há como esconder o
fato; o Sr. Kurtz causou mais prejuízos do que benefícios à Companhia. Ele não
percebeu que o momento ainda não era propício para uma ação mais enérgica.
Cautela … cautela… é esse o meu lema. Devemos ser cautelosos ainda. O posto
está fechado para nós temporariamente. Deplorável! O comércio todo vai sofrer
com isso. Não nego que exista marfim em grande quantidade – fóssil em sua maior
parte. Devemos salvá-lo,  a qualquer
custo… mas veja como nossa posição é precária… e por quê? Porque o método é
insano.’ ‘O senhor’, disse eu, olhando para a margem, ‘chama isso de método insano?’
‘Sem dúvida’, exclamou ele, com fervor. ‘Você não acha?’ ‘Mas não há método
algum’, murmurei após algum tempo. 
‘Exatamente’, exclamou. ‘Eu previa isso. Demonstra uma completa falta de
juízo. É meu dever apontar para isso da maneira apropriada.’ ‘Oh’, disse eu;
‘aquele sujeito… como é mesmo o nome dele?… o oleiro, fará um relatório
apresentável para o senhor.’ Ele pareceu perturbado por um instante. Tinha a
impressão que jamais havia respirado uma atmosfera tão vil, voltei meus
pensamentos para Kurtz, em busca de alívio – decididamente de alívio. ‘Apesar
de tudo, acho que o Sr. Kurtz é um homem notável’, disse eu, com ênfase. Ele
teve um sobressalto, atirou-me um olhar frio e pesado, disse bem baixinho que
‘ele era’ e deu as costas para mim. Minha hora de consideração acabara ali;
vi-me confundido como partidário de Kurtz e seus métodos para os quais o
momento não havia chegado: eu era insano. Ah, mas já era alguma coisa ter ao
menos uma opção entre pesadelos.

“Na realidade, eu havia me voltado para a selva, não
para o Sr. Kurtz, que devo admitir, estava praticamente morto e enterrado. E,
por um momento, pareceu-me que eu também fora enterrado em uma grande cova,
abarrotada de indizíveis segredos. Senti um peso intolerável oprimindo-me o
peito, o cheiro da terra molhada, a presença invisível de corrupção vitoriosa,
a escuridão de uma noite inacessível… O russo bateu-me no ombro. Ouvi-o
resmungar e gaguejar qualquer coisa a respeito de ‘irmão marinheiro’ – não
poderiam esconder – conhecimento de assuntos que afetam a reputação do Sr.
Kurtz.’ Esperei por ele, evidentemente, o Sr. Kurtz não estava no seu túmulo;
suspeito que, para ele, Kurtz era um dos imortais. ‘Bem!’, disse eu,
finalmente, ‘fale. Na verdade, eu sou amigo do Sr. Kurtz…por assim dizer.’

Ele declarou, com grande formalidade, que se nós não
tivéssemos a ‘mesma profissão’, ele manteria o assunto em segredo, sem se
importar com as consequências. ‘Suspeitava que houvesse muita má vontade da
parte daqueles brancos que…’ ‘Você tem razão’, disse eu, lembrando-me de
certa conversa que me chegara aos ouvidos. ‘Na opinião do gerente você devia
ser enforcado.’ A preocupação que ele mostrou ao ouvir isso me divertiu, a
princípio. ‘Acho bom eu dar o fora de mansinho’, disse ele sinceramente. ‘Nada
mais posso fazer por Kurtz agora, e eles logo encontrariam algum pretexto. O
que poderia impedi-los? Há um posto militar a trezentas milhas daqui.’ ‘E para
falar a verdade, o melhor que você faz é ir embora’, disse eu, ‘se tiver amigos
entre os selvagens das redondezas’. ‘Muitos’, respondeu, ‘São gente simples…
e eu nada quero, o senhor sabe.’ Ficou parado, mordendo os lábios, e depois
disse: ‘Não quero que nenhum mal aconteça a esses brancos daqui, mas, claro,
estava pensando na reputação do Sr. Kurtz… mas o senhor é ‘meu irmão do mar’
e …’ ‘Não se preocupe’, falei ao fim de algum tempo. ‘A reputação do Sr.
Kurtz está a salvo comigo.’ Eu não sabia o quanto havia de verdade nessas
minhas palavras.

“Informou-me, baixando a voz, que fora Kurtz quem ordenara
o ataque contra o vapor, ‘Às vezes, odiava a ideia de ser levado daqui… E,
outras vezes… Mas eu não entendo dessas coisas. Sou um homem simples. Ele
achou que poderia assustá-lo… que o senhor desistiria, imaginando que ele
estivesse morto. Eu não tinha meios de detê-lo. Oh, este último mês foi
terrível para mim… ‘ ‘Muito bem’, falei. ‘Ele está bem agora. ‘ ‘É…’,
murmurou ele, aparentemente sem muita convicção. ‘Obrigado’, falei; ‘vou manter
os olhos bem abertos.’ ‘Mas de maneira disfarçada…hein?’, pediu ele,
ansiosamente. ‘Mas em silêncio, hein?’ pediu ansiosamente. ‘Seria terrível para
a sua reputação se alguém aqui…’ Prometi discrição completa com uma expressão
de grande seriedade. ‘Tenho uma canoa e três negros à minha espera não muito
longe daqui. Vou-me embora. O senhor poderia me ceder alguns cartuchos de
Martini-Henry?’ Claro que podia, e foi o que fiz, com o necessário sigilo. Ele
se serviu também, dando-me uma piscadela, de um pouco do meu fumo. ‘Para um
homem do mar, o senhor entende o bom fumo inglês.’ À porta da cabine de
comando, ele se voltou, ‘Diga-me uma coisa, por acaso o senhor não terá aí um
par de sapatos sobrando?’ Ergueu uma perna. ‘Veja’. As solas estavam amarradas
por tiras que continham nós, como uma sandália, sob os pés nus. Alcancei um par
antigo, que ele olhou com admiração antes de enfiá-lo embaixo de seu braço
esquerdo. Em um de seus bolsos (vermelho) transbordavam os cartuchos, e de
outro (azul-escuro), espreitava a ponta da ‘Investigação de Towson’, etc., etc.
Ele parecia considerar-se perfeitamente equipado para um novo encontro com a
selva. ‘Ah, jamais, jamais me encontrarei com um homem daqueles de novo. O
senhor devia tê-lo ouvido recitar poesia – de sua própria autoria, além do
mais, ele me disse. Poesia!’ Ele revirava os olhos ao se lembrar dessas
delícias. ‘Oh, ele ampliou-me os horizontes!’ ‘Adeus”, eu disse. Ele
apertou-me a mão e desapareceu na noite. Às vezes, eu me pergunto se realmente
o vi, se é possível ter existido semelhante fenômeno!…

“Quando acordei pouco depois da meia-noite veio-me à
mente a sua advertência, com a velada alusão a um perigo que naquela escuridão
marchetada de estrelas me pareceu bastante real para me fazer levantar a fim de
dar uma olhada ao meu redor. Sobre a colina uma grande fogueira ardia,
devidamente iluminando um canto tortuoso da casa do posto. Um dos agentes, com
um piquete de alguns dos nossos negros, armados para esse fim, tomava conta do
marfim; mas nas profundezas da selva, rubros fulgores que balançavam, que pareciam
afundar e emergir do solo, em meio às confusas formas de coluna de imenso
negror, mostravam a exata posição do acampamento onde os adoradores do Sr.
Kurtz mantinham sua vigília inquieta. As monótonas batidas de um grande tambor
enchiam o ar de surdas vibrações e prolongadas ressonâncias. O constante e
frouxo som de muitos homens cantando, cada um para si mesmo; algum misterioso
encantamento saía da escura e lisa muralha da selva como o zunido das abelhas
saindo de uma colmeia, e tinha um estranho efeito narcótico sobre os meus
sentidos mal despertados. Acho que cochilei debruçado na amurada, até o momento
em que uma algazarra repentina, uma violenta explosão de delírio represado me
fez despertar, estarrecido e perplexo. O barulho cessou repentinamente, e a
fala frouxa baixa prosseguiu, com um efeito de um audível e tranquilizante
silêncio. Olhei casualmente para dentro da pequena cabine. Uma luz ardia
dentro, mas o Sr. Kurtz não se encontrava lá.

“Eu acho que eu teria levantado um clamor se eu
tivesse acreditado em meus olhos, mas não dei crédito a princípio – tal era a
impossibilidade da coisa. A coisa parecia tão impossível. O fato é que eu
estava completamente paralisado de terror, de puro e abstrato terror, que nada
tinha a ver com qualquer forma definida de perigo físico. O que tornou essa
emoção tão arrasadora foi – como poderei defini-lo? – o choque moral que
recebi, como se algo inteiramente monstruoso, intolerável ao pensamento e
odioso para a alma, tivesse sido lançado sobre mim inesperadamente. Isso durou,
é óbvio, apenas uma fração de segundo e, então, o senso comum de perigo vulgar,
a possibilidade de uma súbita investida e um massacre, ou algo desse tipo, que
eu percebia iminente, foi positivamente bem-vindo e reconfortante. Isso me
pacificou, de fato, tanto que não dei o alarme.

“Lá estava um agente todo abotoado dentro de um grande
casaco e dormindo numa cadeira sobre o convés, a menos de um metro de mim. A
gritaria não o tinha acordado; ele ressonava suavemente. Deixei-o entregue ao
seu sono e saltei para terra. Não traí o Sr. Kurtz – foi-me ordenado que eu
jamais o traísse – estava escrito que eu deveria ser leal ao pesadelo de minha
escolha. Estava ansioso para lidar sozinho com aquela sombra – e até hoje eu
não sei por que eu estava com tanto ciúme de compartilhar com qualquer um a
escuridão peculiar daquela experiência.

“Assim que cheguei à margem avistei uma trilha – uma
trilha larga que atravessava o mato. Recordo-me com que exultação disse a mim
mesmo: ‘Ele não pode andar – ele está engatinhando – peguei-o. ‘ A grama estava
molhada de orvalho. Comecei a andar depressa, com os punhos cerrados. Acho que
me passava vagamente pela cabeça a ideia de saltar sobre ele e dar-lhe uma
sova. Não estou bem certo. Tive alguns pensamentos imbecis. A velha que
tricotava com o gato no colo intrometeu-se em minhas lembranças como a pessoa
mais imprópria para estar sentada no outro lado de uma situação como aquela. Vi
uma fileira de peregrinos cuspindo chumbo no ar com suas Winchesters mantidas à
altura dos quadris. Pensei que jamais regressaria ao vapor, e imaginei-me
vivendo sozinho e desarmado na selva até uma idade bem avançada. Essas coisas
bobas, vocês sabem. Lembro-me também de ter confundido o toque do tambor com as
batidas do meu coração, tendo ficado satisfeito com a sua tranquila
regularidade.

“Continuei a seguir a trilha, entretanto, mais adiante
parei e fiquei à escuta. A noite estava muito clara; um escuro espaço azul
falseando de orvalho e com a luz das estrelas, no qual vultos negros erguiam-se
perfeitamente imóveis. Julguei perceber um movimento à minha frente. Eu me
sentia estranhamente seguro de tudo nessa noite. Na verdade, deixei a trilha e
saí correndo num largo semicírculo (creio piamente que rindo sozinho) para
adiantar-me àquela agitação, àquele movimento que eu avistara – se de fato eu
tinha visto algo. Eu circundava Kurtz como se aquilo fosse um jogo de meninos.

“Encontramo-nos de repente, e eu teria caído sobre ele
se ele não tivesse percebido minha aproximação e se levantado a tempo. Pôs-se
de pé, cambaleante – um vulto comprido, pálido, indistinto, como um vapor
exalando da terra, a oscilar ligeiramente, nebuloso e mudo, ali diante de mim,
enquanto, às minhas costas, as fogueiras tremeluziam no meio das árvores e, da
selva, subia o murmúrio de muitas vozes. Eu o interceptara astutamente; mas
quando de fato o confrontei, parece que retomei os meus sentidos, e enxerguei o
perigo em suas devidas proporções – Não estava de modo algum acabado.
Suponhamos que ele começasse a gritar? Embora mal pudesse ficar de pé, ainda
havia bastante energia em sua voz. ‘Vá embora… esconda-se’, disse ele, com
aquele tom profundo. Era horrível. Olhei para trás. Estávamos a trinta metros
da fogueira mais próxima. Um vulto negro ergueu-se, avançou com suas longas e
negras pernas, acenando com seus longos e negros braços através do clarão.
Tinha chifres – de antílope, creio – na cabeça. Algum bruxo ou feiticeiro, sem
dúvida, de aparência bastante demoníaca. ‘O senhor sabe o que está fazendo?’,
sussurrei. ‘Perfeitamente’, respondeu, elevando a voz para pronunciar essa
única palavra, que me soou muito distante e ainda assim alta, como uma saudação
num alto-falante. ‘Se fizer barulho, estamos perdidos’, pensei comigo.
Evidentemente, não era caso para troca de socos, mesmo sem levar em conta a
aversão natural que eu sentia em bater naquela sombra… naquela coisa errante
e atormentada. ‘O senhor estará perdido’, falei, ‘totalmente perdido.’ A gente
tem, de vez em quando, um lampejo de inspiração, vocês sabem. O fato é que eu
disse a coisa certa, embora, na verdade, fosse impossível a ele estar mais
irremediavelmente perdido do que já se achava naquele exato momento em que os
alicerces da nossa amizade estavam sendo assentados…para suportar…
suportar… até o fim… até muito além do fim.

“‘Eu tinha planos imensos’, ele murmurou indeciso.
‘Sim’, disse eu. ‘mas, se tentar gritar, esmago sua cabeça com…’ Não havia
nem um pau nem uma pedra por perto. ‘Vou lhe enforcar de verdade’, corrigi.
‘Estava no limiar de coisas grandes’, alegou, com voz saudosa e num tom tão
melancólico, que fez meu sangue correr gelado pelas artérias. ‘E agora me vem
esse patife, esse imbecil …’ ‘A sua fama na Europa está garantida de qualquer
forma’, declarei com firmeza. Eu não queria me ver forçado a enganá-lo,
entendem… Na verdade, do ponto de vista prático, isso seria de muito pouca
utilidade. Tentei quebrar o encanto – o pesado e mudo encanto da selva – que
parecia atraí-lo para seu impiedoso seio, ao despertar esquecidos e brutais
instintos, através da lembrança de paixões gratificantes e monstruosas. Eu
estava certo de que fora isso, unicamente isso, que o havia arrastado até a
borda da floresta, pelo meio do mato rasteiro, rumo ao clarão das fogueiras, ao
ritmo latejante dos tambores, ao murmúrio de encantamentos diabólicos;
unicamente isso havia seduzido sua alma desregrada, fazendo com que
ultrapassasse os limites das aspirações permitidas. E – não percebem? – o
terror daquela situação não residia no risco de levar uma paulada na cabeça –
embora eu tivesse vívida consciência desse perigo, também – mas no fato de eu
ter de lidar com um ser a quem eu não podia apelar em nome de coisa alguma,
elevada ou inferior. Tinha, como faziam os negros, de invocá-lo – a ele mesmo –
à sua própria exaltada e incrível degradação. Não havia nada acima ou abaixo
dele, eu sabia disso. Ele metera os pés na Terra, desvencilhando-se dela. O
homem era espantoso! Havia reduzido a própria Terra a pedaços – aos pontapés –
e agora estava só; e eu, defronte dele, não sabia dizer se pisava no chão ou
flutuava no ar. Tenho contado a vocês o que falamos… repetindo as frases que
pronunciamos, mas de que adianta? Eram palavras comuns, do dia a dia – os sons
familiares, vagos, trocados corriqueiramente ao despertar de cada manhã. Mas e
daí? Para mim, elas traziam em si a fabulosa insinuação de palavras ouvidas em
sonhos, de frases proferidas em pesadelos. E a sua alma! Se já houve alguém que
lutou com uma alma, esse alguém sou eu. E olhem que eu não estava discutindo
com nenhum demente. Acreditem ou não, sua mente encontrava-se em perfeita
lucidez, concentrada, é verdade, nele próprio com intensidade medonha, mas
lúcida: e nisso residia minha única oportunidade… a não ser, é claro, a de
matá-lo ali mesmo, o que não era uma boa ideia, pois faria um barulho
inevitável. Mas sua alma havia enlouquecido. Ficando sozinho na selva, olhara
para dentro de si mesmo e, por Deus! Garanto a vocês que enlouquecera. Eu tinha
– creio que para pagar meus pecados – de passar por aquela provação de olhar
para dentro dele também. Nenhum rasgo de eloquência seria capaz de destruir tão
arrasadoramente a nossa crença na humanidade quanto a sua crise final de
sinceridade. Lutava consigo mesmo, também. Eu a tudo assistia, vendo-o… ouvindo-o.
Vi o mistério inconcebível de uma alma que não conhecia barreiras, nem fé, nem
medo, embora lutasse cegamente contra si própria. Eu soube manter a cabeça
razoavelmente fria, mas quando finalmente consegui estendê-lo de novo no leito
minha testa estava banhada de suor e minhas pernas tremiam como se eu tivesse
carregado meia tonelada nas costas, por aquele morro abaixo. E, no entanto, eu
havia apenas servido de apoio, seus braços ossudos em volta do meu pescoço – e
ele não era muito mais pesado do que uma criança.

“Quando partimos no dia seguinte, ao meio-dia, a
multidão, de cuja presença atrás da cortina de árvores eu estivera extremamente
consciente durante o tempo todo, seguiu novamente para fora da selva, ocupando
a clareira e cobrindo toda a encosta do morro de corpos nus e bronzeados,
trêmulos e ofegantes. Fiz o vapor subir um pouco o rio, depois dei meia-volta e
comecei a descer a correnteza, com dois mil olhos acompanhando as evoluções
daquele assustador demônio do rio, que resfolegava e espadanava água com sua
medonha cauda, soprando fumaça negra no ar. Ao longo da margem do rio,
agrupados na frente da primeira fileira, três homens, cobertos da cabeça aos
pés com barro vermelho-fogo, pavoneavam-se de um lado para o outro, inquietos.
À beira do rio, na frente da primeira fila de gente, três homens lambuzados de
barro vermelho-vivo da cabeça aos pés caminhavam com ar pomposo de um lado para
outro, sem parar. Quando novamente nos emparelhamos a eles, todos se voltaram
para o rio, batendo os pés, agitando as cabeças enfeitadas com chifres e
oscilando seus corpos escarlates; depois, chacoalharam um punhado de penas
pretas, uma pele de bicho toda roída com uma cauda pendente, cuja forma
lembrava uma cabeça seca. Eles gritavam em coro, a intervalos regulares, uma
enfiada de palavras que em nada faziam lembrar os sons de uma linguagem humana;
e os profundos murmúrios da multidão, subitamente interrompidos, pareciam
respostas a alguma ladainha satânica.

“Tínhamos levado Kurtz para a casa do leme; havia mais
ar ali. Deitado no catre, ele olhava para fora, através do postigo. Houve um
rebuliço no meio da compacta massa humana, e a mulher das faces bronzeadas e
capacete na cabeça veio correndo até a borda extrema da água. Estendeu as mãos,
gritando uma coisa qualquer e toda multidão selvagem assumiu o grito em coro
estrondoso de articulado, elocução rápida, sem fôlego.

“‘O senhor entende isso?’, perguntei.

“Ele continuava olhando para fora com um olhar
ardente, anelante, em que havia um misto de ódio e melancolia. Nada respondeu,
mas percebi um sorriso, um sorriso de significado indecifrável, que aparecia em
seus lábios pálidos, e que logo se contorceram convulsivamente. ‘Se entendo?’,
disse ele devagar, ofegante, como se as palavras lhe tivessem sido arrancadas por
uma força sobrenatural.

“Puxei a corda do apito, e assim agi porque vi os
peregrinos, no convés, engatilhando os seus rifles com o ar de quem está
percebendo uma boa diversão. Diante do súbito e estridente apito houve um
movimento de abjeto terror no meio daquele compacto aglomerado de corpos. ‘Não
faça isso! Não os afugente!’, protestou alguém no convés, desconsoladamente.
Puxei o cordão várias vezes. Eles saíram em disparada, correndo sem rumo,
saltando, agachando-se, como se pudessem desviar do som aterrorizante que se
propagava pelo ar. Os três homens pintados de vermelho atiraram-se no chão, com
a cara voltada para a margem, como se tivessem sido mortalmente baleados.
Somente a mulher bárbara, soberba, continuou como se nada tivesse acontecido,
seus braços nus em nossa direção e sobre o rio lúgubre e reluzente.

“E depois que a multidão de imbecis foi para baixo, no
convés, começou sua pequena diversão, e eu não pude ver mais nada por causa da
fumaça.

“A correnteza barrenta fluía com velocidade para fora
do coração das trevas, levando-nos em direção ao mar com o dobro da velocidade
de nossa marcha rio acima; e a vida de Kurtz fluía também rapidamente,
esgotando-se, esgotando-se de seu coração para desaguar no mar do tempo
inexorável. O gerente tinha um ar plácido; não o afligia agora nenhuma
preocupação vital. Lançou sobre nós dois um rápido olhar, compreensivo e
satisfeito: o “caso” tinha sido resolvido de uma forma bastante
satisfatória. Percebi que havia de chegar o momento em que sobraria apenas eu
dentre os adeptos do ‘método ineficaz’. Os peregrinos me olhavam com desagrado.
Eu estava, por assim dizer, incluído entre os mortos. É estranho como eu
aceitara essa parceria infeliz, essa escolha forçada entre pesadelos de uma
terra tenebrosa invadida por fantasmas ordinários e gananciosos.

“Kurtz discursava. Uma voz! Uma voz! Uma voz, que
ressoou profundamente até o momento derradeiro. Uma voz que sobrevivera às suas
próprias forças para ocultar nas magníficas manobras da eloquência as trevas
infecundas de seu coração. Oh, ele lutava! ele lutava! O que restara de seu
cérebro exaurido era agora atormentado por imagens nebulosas – imagens de
riqueza e glória que giravam obsequiosamente em torno de seu inextinguível
talento para se exprimir com nobreza e arrogância. Minha Prometida, meu posto,
minha carreira, minhas ideias –  eram os
temas daquelas expressões ocasionais de sentimentos elevados. A sombra do Kurtz
original rondava a cabeceira do seu oco e vazio simulacro, cuja sina era ser
sepultado em breve no barro daquela terra primitiva. Mas tanto os amores
diabólicos como o ódio extraordinário dos mistérios em que havia peneirado
lutavam pela posse daquela alma saturada de emoções primárias, ávida de falsa
glória, de deferências enganosas e de todas as formas de sucesso e poder.

 “Às vezes, ele
era infantil. Desejava ser recebido por reis nas estações de estradas de ferro,
em seu retorno de alguma espectral e ignota região onde pretendia realizar
grandes feitos. ‘É só mostrar que somos capazes de realizar empreendimentos
lucrativos, e o reconhecimento de nossa capacidade será ilimitado”, dizia.
‘É claro que precisamos levar sempre em conta os motivos certos.’ Os longos
trechos do rio, que pareciam todos iguais, bem como as curvas monótonas, que
pareciam sempre as mesmas, passavam pelo vapor com sua multidão de árvores
seculares a contemplarem pacientemente a passagem daquele fuliginoso fragmento
de um outro mundo, precursor da mudança, de conquistas, de comércio, de
massacres, de bênçãos. Eu olhava para frente no comando. ‘Feche a janela’,
disse Kurtz, de repente, um dia. ‘Não suporto ficar olhando para isso.’ Fechei.
Houve um breve silêncio. ‘Oh, eu ainda esmago o seu coração!’, gritou ele para
a selva invisível.

“O motor enguiçou – como eu já esperava – e tivemos de
encostar à beira de uma ilha, para reparos. Esse atraso foi a primeira coisa
que abalou a confiança de Kurtz. Certa manhã, ele me deu um pacote de papéis e
uma fotografia – tudo amarrado com um cadarço de sapato- ‘Guarde isso para
mim’, disse. ‘Aquele imbecil (o gerente) é bem capaz de bisbilhotar as minhas
caixas quando eu não estiver por perto.’ À tarde, fui vê-lo. Estava deitado de
costas, de olhos fechados, e eu já me retirava silenciosamente quando o ouvi
murmurar, ‘Viver honestamente e morrer, morrer…’ Fiquei à escuta. Não houve
mais nada. Estaria ele ensaiando algum discurso em seu sono ou repetindo um
fragmento de uma frase de algum artigo de jornal? Ele andara escrevendo para
jornais e pretendia fazê-lo novamente, ‘para o aprofundamento das minhas
ideias. É um dever.’

 “Sua escuridão
era impenetrável”. Eu o olhava como quem observa um homem deitado no fundo
de um abismo, onde a luz do sol jamais brilha. Mas eu não tinha muito tempo
para perder com ele, porque estava ajudando o maquinista a desmontar os
cilindros com vazamento, a desentortar uma biela, dentre outros afazeres.
Passavam os dias em meio a uma confusão infernal de ferrugem, limalha,
parafusos, ferrolhos, chaves, martelos e furadeiras – coisas que eu abominava,
porque não sei lidar com elas. Cuidava da pequena forja que, por sorte,
tínhamos a bordo; trabalhava exausto sobre o maldito monte de ferro-velho, a
não ser quando as pernas tremiam demais para ficar de pé.

“Uma noite, ao entrar na cabina com uma vela ouvi-o
dizer com voz ligeiramente trêmula: ‘Estou deitado aqui no escuro esperando a
morte’. A luz estava a um palmo dos seus olhos. Forcei a mim próprio a
murmurar, ‘Oh, um absurdo!’, e fiquei sobre ele, como se paralisado.

“Ocorrera então uma mudança em sua fisionomia que eu
nunca tinha visto antes, e espero não tornar a ver. Oh, não que tivesse ficado
emocionado. Eu fiquei fascinado. Era como se um véu tivesse sido tirado.
Enxerguei naquele rosto de marfim uma sombra de orgulho, de poder impiedoso, de
terror covarde – de um intenso e irremediável desespero. Estaria ele revivendo
sua vida em cada detalhe, com seus desejos, tentações e entregas durante aquele
momento supremo de plena consciência? Gritou, então, num sussurro, para alguma
imagem, alguma visão – gritou duas vezes, um grito que não era mais que um
sopro:

‘O horror! O horror! ‘

“Apaguei a vela e saí da cabine. Os peregrinos estavam
no refeitório, jantando, e eu tomei o meu lugar defronte do gerente, que
levantou olhar interrogador. Ele se reclinou, sereno, com aquele seu sorriso
peculiar selando as profundezas inexprimíveis de sua mediocridade. Um enxame
contínuo de pequenas moscas voava pela lâmpada, pela toalha da mesa, pelas
nossas mãos e rostos. De repente, o garoto do gerente pôs a insolente cabeça
negra na porta e disse num tom de sarcástico desdém:

‘”O sinhô Kurtz… está morto.’

“Todos os peregrinos saíram correndo para ver. Eu
permaneci onde estava e continuei o meu jantar. Acho que fui considerado um
bruto insensível. No entanto, não comi muito. Havia uma lâmpada ali – uma luz,
compreendem?… e lá fora estava tão escuro, de uma escuridão abominável. Não
mais me aproximei do homem notável que havia pronunciado um julgamento sobre as
aventuras de sua alma sobre a terra. A voz se extinguira. Que mais havia
restado? Mas eu sei; é claro, que no dia seguinte os peregrinos enterraram algo
em um buraco lamacento.

“E depois, eles quase me enterraram.

“No entanto, como podem ver, não fui me juntar ao Sr.
Kurtz, não. Fiquei para sonhar o pesadelo até o fim e mostrar minha lealdade a
Kurtz mais uma vez. Destino. Meu destino! Coisa engraçada é a vida – misterioso
arranjo de lógica implacável para um propósito frívolo. O máximo que podemos
esperar dela é que nos proporcione um certo conhecimento de nós mesmos, que
chega tarde demais uma safra de remorsos inesgotável. Eu entrei em luta contra
a morte. É a batalha menos interessante que se pode imaginar. Desenrola-se em
meio a uma bruma cinza e impalpável, sem nada debaixo dos nossos pés e nada ao
nosso redor, sem espectadores, sem clamor nem glória, sem grande desejo de
vitória nem grande temor de derrota, num mórbido clima de morno ceticismo, sem
muita fé nos nossos próprios direitos, e menos ainda nos do nosso adversário. Se
este é o formato da última palavra em sabedoria, então a vida é um enigma maior
do que muitos de nós podem imaginar. Eu estava a um passo da minha última
oportunidade para me pronunciar, e descobri humilhado, que provavelmente não
teria nada para dizer. Esta é a razão pela qual afirmo que Kurtz foi um homem
notável. Ele teve alguma coisa para dizer; e disse. Depois que eu próprio
estive à beira do abismo, passei a compreender mais claramente o significado
daquele seu olhar estático, que não enxergava a chama da veia mas era
suficientemente amplo para abarcar o universo inteiro, suficientemente
penetrante para atingir todos os corações que pulsam nas trevas. Ele havia
recapitulado tudo – e feito o seu julgamento. ‘O horror!’ Era um homem notável.
Afinal, isso representava a expressão de alguma forma de fé; havia pureza,
convicção, e uma vibrante nota de revolta nesse grito sussurrado; representava
a face assustadora de uma verdade apenas entrevista uma estranha conjunção de
desejo e ódio. E não é da minha própria experiência que me recordo melhor – uma
visão cinzenta, sem forma, repleta de dor física, e de um desprezo pela
efemeridade de todas as coisas… Até mesmo da própria dor. Não! É a
experiência dele que tenho a impressão de ter vivido. É bem verdade que ele deu
o último passo, transpôs a borda do abismo ao passo que a mim me foi permitido
recuar, deter o pé que hesitava. E talvez nisso consista toda a diferença.
Talvez, toda a sabedoria, toda a verdade e toda a sinceridade estejam
condensadas nesse inapreciável momento no tempo durante o qual transpomos o
limiar do invisível. Talvez! Gosto de imaginar que minhas palavras finais não
teriam sido de desprezo ou indiferença. Melhor o seu grito – muito melhor! Era
um grito de afirmação, de vitória moral, conquistada por derrotas incontáveis,
por medos e prazeres abomináveis. Ainda assim, foi uma vitória! Foi por isso
que permaneci leal a Kurtz até o fim e, mesmo depois, quando, após muito tempo,
voltei a ouvir, não a sua própria voz, mas o eco de sua extraordinária
eloquência lançada em mim por uma alma de pureza tão translúcida como uma rocha
de cristal.

“Não, não me enterraram, embora tenha havido um
período do qual mal me recordo, estremecido de horror que estava, como uma
passagem por algum mundo incompreensível, onde não existia esperança nem
desejo. Achei-me de volta à cidade sepulcral, ressentindo o espetáculo das
pessoas a andar laboriosas pelas ruas, na pressa de surripiar dinheiro umas das
outras, de engolir sua comida infame e sua maldita cerveja, de sonhar seus
sonhos mesquinhos e idiotas. Elas invadiam meus pensamentos. Eram intrusos,
cujo conhecimento de vida era para mim uma pretensão irritante porque eu tinha
certeza de que eles não conheciam as mesmas coisas que eu conhecia. Suas
condutas, que eram simplesmente condutas de indivíduos comuns, tratando de seus
negócios para garantir uma segurança perfeita, eram ofensivas para mim como a
ultrajante ostentação da loucura diante de um perigo que ela é incapaz de
compreender. Não sentia nenhum desejo especial de esclarecê-los, mas sentia
alguma dificuldade em conter minha vontade de rir nas suas caras tão cheias de
estúpida autoridade. Acho que não me sentia muito bem naqueles dias. Circulava
pelas ruas – havia muitos assuntos para serem resolvidos – forçando um sorriso
amargo para as pessoas muito respeitáveis. Admito que o meu comportamento era
imperdoável; mas era certo, também, que minha temperatura naqueles dias
raramente se mantinha normal. Os esforços de minha prestimosa tia para me
“restaurar as forças” se concentravam num alvo totalmente errado. Não
eram as minhas forças que precisavam ser restauradas, era minha imaginação que
tinha de ser aquietada. Eu conservava o pacote de papéis que Kurtz me havia
dado, sem saber muito bem o que fazer com ele. Sua mãe morrera recentemente,
sendo velada, segundo me disseram, por sua Prometida. Um homem limpo e
barbeado, com modos de oficial e usando óculos de armação dourada, visitou-me
um dia e fez perguntas, a princípio indiretas, depois cuidadosamente mais contundentes
a respeito do que lhe agradava denominar certos ‘documentos’. Isso não me
causou surpresa, porque eu já tinha tido duas brigas com o gerente, lá na
selva, a respeito do assunto. Eu me havia recusado a abrir mão do mais
insignificante pedaço de papel contido naquele pacote, e mantive a mesma
atitude diante do homem dos óculos de ouro. Ele acabou por se mostrar
sinistramente ameaçador, argumentando com muita veemência que a Companhia tinha
o direito a todas as informações, por mais insignificantes que fossem,
referentes aos seus ‘territórios’. E acrescentou: ‘O conhecimento que o Sr.
Kurtz tinha de regiões inexploradas devia ser, forçosamente, muito vasto e
específico tendo em vista sua grande capacidade e as deploráveis circunstâncias
em que ele acabou por se envolver. Garanti a ele que o conhecimento do Sr.
Kurtz, embora abrangente, não contemplava os problemas do comércio ou da
administração. Invocou, então, o nome da ciência. ‘Seria uma perda imensurável,
se’, etc. Ofereci a ele o relatório sobre ‘A Repressão dos Costumes Selvagens’,
com o post-scriptum arrancado. Apanhou-o ansiosamente, mas terminou torcendo o
nariz com um ar de desprezo. ‘Não é isso o que tínhamos o direito de esperar’,
ressaltou. ‘Não espere mais do que isso’, respondi. ‘Existem apenas cartas
particulares.’ Ele se retirou depois de me ameaçar com um processo judicial, e
não voltei a vê-lo. Dois dias depois, entretanto, apareceu outro sujeito,
dizendo-se primo de Kurtz e mostrando-se ansioso por ouvir todos os pormenores
sobre os últimos momentos de seu estimado parente. Incidentalmente, deu-me a
entender que Kurtz teria sido, em essência, um grande músico, ‘Ali estava um
grande talento em potencial’, disse o homem, que era organista, imagino, com
cabelos grisalhos que escorriam pela gola engordurada de seu casaco. Eu não
tinha motivos para duvidar de sua afirmação, e até hoje não sou capaz de dizer
qual era a profissão de Kurtz, se é que teve alguma, nem qual era o maior dos
seus talentos. Achava que fosse um pintor que escrevia para jornais ou então um
jornalista que pintava, mas até mesmo seu primo (que cheirava rapé durante a
nossa conversa) não sabia dizer ao certo o que ele havia sido. Era um gênio
universal e, nesse particular, concordei com o velhote que, em seguida, assoou o
nariz ruidosamente num vasto lenço de algodão e se retirou numa agitação senil,
levando consigo algumas cartas da família e memorandos sem importância. Por
fim, apareceu um jornalista ansioso para saber alguma coisa sobre o destino de
seu ‘caro colega’. Esse visitante informou-me que a esfera apropriada para
Kurtz deveria ter sido a política ‘do lado popular’.

Tinha sobrancelhas grossas e retas, o cabelo espetado, à
escovinha, e um monóculo preso a uma larga fita; tornando-se expansivo,
confessou-me que, na sua opinião, Kurtz escrevia realmente muito mal ‘mas, por
Deus’, como aquele homem sabia falar! Era capaz de eletrizar multidões. Botava
fé naquilo que dizia… Entende… Fé! Tinha a capacidade de acreditar nas
coisas… Qualquer coisa. Teria sido um esplêndido líder de um partido
extremista. ‘ ‘Qual partido?’, perguntei, ‘Qualquer um’, respondeu. ‘Ele era
um… Um extremista.’  Eu também não
pensava assim? Admiti que pensava. ‘Você sabia’, perguntou, com um súbito
lampejo de curiosidade, ‘o que o induzira a ir para lá?’ ‘Sim’, respondi,
entregando-lhe imediatamente o famoso relatório para publicação, caso achasse
conveniente. Examinou o texto rapidamente, resmungando o tempo todo, julgou que
‘serviria’, e retirou-se com esse espólio.

“E assim me restou, no final, um delgado pacote de
cartas e o retrato da moça. Ela me parecia bela… quero dizer, tinha uma bela
expressão. Sei que a luminosidade pode criar efeitos ilusórios, mas dava para
ver que nenhum artifício de luz ou de ângulo poderia ter transferido tão
delicadas nuanças de autenticidade àqueles traços. Ela parecia predisposta a
ouvir, sem qualquer restrição mental, sem desconfiança, sem pensar um só
momento em si própria. Decidi que iria procurá-la para lhe entregar em mãos o
retrato e as cartas. Curiosidade? Sim… e um outro sentimento, talvez. Tudo
que havia pertencido a Kurtz tinha escapulido de minhas mãos: sua alma, seu
corpo, seu posto, seus pianos, seu marfim, sua carreira. Restavam apenas sua
memória e sua Prometida e de uma certa maneira eu queria entregar isso também
ao passado, para que tudo o que ainda restava dele em minhas mãos fosse enviado
pessoalmente por mim para esse olvido que é a última palavra do nosso destino
comum. Não estou me defendendo. Eu não tinha uma ideia clara do que realmente
desejava. Talvez fosse um impulso inconsciente de fidelidade ou da satisfação
de uma dessas necessidades que se ocultam por trás dos fatos da existência
humana. Não sei. Não sei dizer. Mas fui vê-la.

“Eu pensava que a lembrança dele era como a lembrança
de todos os mortos que se acumulam na vida de todo homem – uma tênue marca
deixada no cérebro por sombras que ali caíram em sua passagem rápida e final;
mas diante da porta alta e imponente, por entre as altas casas de uma rua tão
calma e recatada como uma bem cuidada alameda de um cemitério, veio-me à mente
a imagem dele na maca, abrindo a boca vorazmente, como se fosse devorar toda a
terra, com toda a humanidade. Ele voltou a viver, então, diante de mim; e
exatamente da maneira como sempre tinha vivido – como uma sombra que jamais se
saciara das grandiosas aparências, ou das terríveis realidades; uma sombra mais
negra que a sombra da noite, nobremente envolta nas dobras de uma soberba
eloquência. A visão parecia entrar na casa comigo – a maca, os carregadores,
fantasmas, a multidão selvagem de devotos obedientes, a escuridão da selva, o
brilho do rio entre as curvas tenebrosas, o bater do tambor, regular e abafado
como o bater de um coração – o coração de uma escuridão triunfante.

“Foi um momento de triunfo para a selva, um ataque invasor
e vingativo que me pareceu que teria de enfrentar sozinho pela salvação de
outra alma. E a lembrança do que eu ouvira Kurtz dizer lá longe, enquanto
vultos ornados de chifres se moviam atrás de mim ao clarão das fogueiras,
dentro da paciente mata, voltou à minha mente, e ouvi de novo aquelas frases
entrecortadas, em sua sinistra e aterradora simplicidade. Lembrei-me de sua
súplica abjeta, suas ameaças abjetas, a escala colossal de seus desejos vis, a
maldade, o tormento, a angústia tempestuosa de sua alma. Lembrei-me de suas
abjetas súplicas, de suas abjetas ameaças. E mais tarde, creio ter tido
oportunidade de ver o lado comedido, acomodado, de seu temperamento, quando ele
me disse um dia: ‘Esse lote de marfim agora é realmente meu. A Companhia não
pagou por ele. Eu mesmo o recolhi, à custa de risco pessoal. Contudo, temo que
tentem reclamá-lo como deles. Hum! Caso difícil, esse. Que é que o senhor acha
que devo fazer? Resistir? Hein? O que eu quero é apenas justiça.’ Ele só queria
justiça…somente justiça. Toquei a campainha da porta de mogno no térreo, e
enquanto esperava, parecia que ele encarava-me através do painel vítreo… a
fixar-me com aquele olhar amplo e imenso, abraçando, condenando, odiando todo o
universo. Pareceu-me ouvir seu grito sussurrado: ‘O horror! O horror!’

“A noite caía. Tive de esperar numa majestosa sala de
estar com três janelas compridas que iam do chão ao teto e assemelhavam-se a
três colunas luminosas e acortinadas. O dourado dos estofados e das pernas
curvilíneas das mobílias reluziam em curvas indistintas. A magnífica lareira de
mármore tinha uma brancura fria e monumental. Um piano de cauda repousava
pesadamente num canto, com negros reflexos nas superfícies planas, como um
soturno sarcófago envernizado. Uma porta alta se abriu e tornou a se fechar.
Levantei-me.

“Ela veio caminhando na minha direção como se
flutuasse na penumbra da sala, toda vestida de negro, o rosto pálido. Estava de
luto. Já havia passado mais de um ano desde a morte dele, mais de um ano desde
que a notícia havia chegado; ela parecia que ia lembrar e manter o luto para
sempre. Segurou minhas duas mãos nas suas e murmurou, ‘Fiquei sabendo que o
senhor vinha’. Notei que não era muito jovem… quero dizer, que não tinha um
ar juvenil. Tinha maturidade que a capacitava para a fidelidade, a crença e o
sofrimento. A sala parecia ter ficado mais escura, como se toda a triste
claridade daquele nublado entardecer se houvesse refugiado em sua fronte.
Aqueles cabelos louros, aquele rosto pálido, aquele semblante puro pareciam
cercados por um halo esmaecido, de onde seus olhos escuros me contemplavam. O
olhar era inocente, profundo, seguro e verdadeiro. Mantinha ereta aquela cabeça
sofredora como se sentisse orgulho do seu sofrimento, como quem dissesse:
‘Eu… somente eu sei lastimá-lo como merece’. Mas enquanto ainda segurávamos
as mãos um do outro perpassou pela sua fisionomia uma expressão de tão trágica
desolação que eu percebi não ser ela uma dessas criaturas que são joguetes do
Tempo. Para ela, Kurtz havia morrido no dia anterior. E, por Deus!, a impressão
que ela passou foi tão forte que também para mim ele parecia ter morrido na
véspera – não, naquele exato momento. Vislumbrei os dois, no mesmo lapso de
tempo – a morte dele e a dor dela; a dor dela, no mesmo instante da morte dele.
Compreendem? Eu os vi juntos – os ouvi juntos. Ela dissera, depois de respirar
fundo: ‘Eu sobrevivi’, enquanto meus ouvidos atentos pareciam ouvir
nitidamente, mesclado com seu tom de desesperado pesar, o sussurro que resumia
a eterna condenação dele. Perguntei a mim mesmo o que estava fazendo ali, e uma
sensação de pânico me dominou o coração, como se eu me tivesse metido num lugar
cheio de mistérios cruéis e absurdos, impróprios para serem vistos por um ser
humano. Ela apontou uma cadeira. Sentamo-nos. Depositei delicadamente o pacote
numa mesinha, e ela colocou a mão sobre ele… ‘O senhor o conheceu bem’,
murmurou, após um momento de pesaroso silêncio de luto.

“‘As amizades crescem depressa por lá’,
respondi”. ‘Conhecia-o tão bem quanto é possível a um homem conhecer
outro.’

“‘E o senhor o admirava’, disse ela. ‘Era impossível
conhecê-lo sem admirá-lo. Não era?’

‘”Era um homem notável’, disse, inseguro. Depois,
diante de seu olhar fixo e suplicante, que parecia esperar por mais palavras de
minha boca, prossegui: ‘Era impossível não… ‘

“‘Amá-lo’, completou, impetuosamente, silenciando-me,
numa mudez apavorante. ‘Como isso é verdade! Como isso é verdade! Mas quando se
pensa que ninguém o conheceu tão bem quanto eu! Eu possuía toda a sua nobre
confiança. Eu o conhecia melhor do que ninguém.’

“‘Ninguém o conheceu melhor’, repeti. E talvez fosse
verdade. Mas a cada palavra dita à sala tornava-se mais escura, e somente sua
fronte, lisa e branca, continuava iluminada pela inextinguível luz do amor e da
fé.

‘”O senhor foi amigo dele’, ela prosseguiu. ‘Amigo
dele’, repetiu, um pouco mais alto. ‘Deve ter sido, se ele lhe deu isto e o
enviou a mim. Sinto que posso falar com o senhor… e, oh, preciso falar. Quero
que o senhor… o senhor, que ouviu as suas últimas palavras… saiba que tenho
sido digna dele… Não se trai por orgulho… Sim! Tenho orgulho de saber que o
compreendi melhor do que qualquer um na terra… ele mesmo me disse isso. E
desde que sua mãe morreu, não tive mais ninguém… ninguém para…
para…”

“Eu a ouvia. A escuridão se adensava. Eu nem mesmo
tinha certeza de que ele me havia dado o pacote certo. Desconfio seriamente de
que desejara confiar as minhas mãos um outro pacote que, após a sua morte, vira
o gerente examinando sob uma lâmpada. E a moça continuava a falar, aliviando a
sua dor, certa da minha solidariedade. Falava com a mesma sofreguidão com que
um homem sedento bebe água. Fiquei sabendo que o seu noivado com Kurtz não
tinha tido a aprovação da família dela. E, na verdade, não estou muito certo de
que ele não tivesse sido pobre a vida inteira. Dera-me alguma razão para saber
que fora a insatisfação com sua relativa pobreza que o conduzira para lá.

“‘… Quem não se tornaria seu amigo, uma vez que o
ouvisse falar?’, dizia ela, ‘Ele despertava nas pessoas aquilo que elas tinham
de melhor.’ Olhava para mim com intensidade, ‘Esse é o dom dos grandes homens’,
prosseguiu, e o som de sua voz baixa parecia ser acompanhado de todos os outros
sons, carregados de mistério, desolação e dor – o murmúrio do rio, o farfalhar
das árvores sacudidas pelo vento, os sussurros da multidão, os débeis ecos de
incompreensíveis palavras gritadas de muito longe, o ciciar de uma voz que
falava do outro lado do umbral de trevas eternas. ‘Mas o senhor ouviu-o falar.
O senhor sabe!’ – exclamou ela.

“‘Sim, eu sei’, falei com desespero no coração, mas me
curvando diante da fé que havia nela, diante daquela grande e redentora ilusão
que brilhava com um fulgor sobrenatural na escuridão, na escuridão triunfante
da qual eu não poderia defendê-la… da qual eu não poderia nem sequer defender
de mim mesmo.

“‘Que perda para mim… para nós!’, corrigiu-se com
bela generosidade, acrescentando num murmúrio: ‘Para o mundo”.  Sob os últimos raios do crepúsculo, pude ver
o brilho de seus olhos, cheios de lágrimas… Lágrimas que se recusavam a cair.

”Eu fui muito feliz… muito afortunada… me sentia muito
orgulhosa’, prosseguiu. ‘Afortunada demais. Feliz demais por algum tempo. E
agora serei infeliz para… para o resto da vida.’

“Levantou-se; seus cabelos louros pareciam captar toda
a luz que restara, num brilho dourado. Levantei-me também.

“‘E de tudo isso’, prosseguiu lamentando, ‘de todas as
suas promessas, de toda sua grandeza, de sua mente generosa, do seu nobre
coração, nada restou… nada além de uma lembrança. O senhor e eu…’

”Lembraremos dele para sempre’, apressei-me em dizer.

“‘Não’, exclamou. ‘Não é possível que tudo isso se
perca – que uma vida assim seja sacrificada a não deixar nada… além de
tristeza. O senhor conhece os grandes planos que ele tinha. Eu os conhecia,
também… Talvez não pudesse compreendê-los… Mas outros sabiam deles. Alguma
coisa tem de ficar. Suas palavras, pelo menos, não morreram.’

‘”Suas palavras permanecerão’, disse eu.

“‘E seu exemplo’, murmurou para si mesma. ‘As pessoas
se inspiravam nele… Sua bondade brilhava em cada gesto. Seu exemplo… ‘

‘”É verdade’, disse eu. ‘Seu exemplo também. Sim, seu
exemplo. Havia me esquecido disso. ‘

“‘Mas eu não. Não posso… Não consigo acreditar…
Ainda não. Não consigo acreditar que nunca mais voltarei a vê-lo, que ninguém
nunca mais o verá novamente, jamais, jamais, jamais.’

“Esticou os braços, como que tentando alcançar um
vulto que se afastava, estendendo-os negros e com as pálidas mãos apertadas
através do estreito e esmaecido clarão da janela. ‘Nunca mais tornarei a vê-lo!
Eu o via com toda a nitidez. E hei de ver este persuasivo fantasma enquanto
viver, e eu a verei, uma sombra trágica e familiar, assemelhando-se naquele
gesto a outra, trágica também, enfeitada de amuletos inúteis, estendendo os
braços trigueiros e nus sobre o brilho do rio infernal, o rio das trevas.
Então, de repente, ela, disse bem baixinho: ‘Morreu como viveu’.

“‘O seu fim’, disse eu, com uma raiva surda agitando
minhas entranhas, ‘foi inteiramente digno de sua vida.’

“‘E eu não estava ao seu lado’, murmurou. Minha raiva
desvaneceu-se, abafada por um sentimento de infinita piedade.

“‘Tudo o que podia ter sido feito… ‘, resmunguei em
voz baixa.

“‘Ah, mas eu acreditava nele mais do que ninguém no
mundo, mais do que na própria mãe, mais do que ele próprio. Ele precisava de
mim! De mim! Eu teria guardado como se fosse um tesouro cada suspiro seu, cada
palavra, cada gesto, cada olhar.’

“‘Senti uma espécie de aperto no peito: ‘Não fique
assim’, disse eu, com voz abafada.

“‘Perdoe-me, eu”… Eu tenho chorado por muito
tempo em silêncio… Em silêncio… O senhor esteve com ele… Até o final,
penso na solidão dele. Ninguém perto para compreendê-lo como eu o teria
compreendido. Talvez ninguém para ouvi-lo…’

“‘Até o último momento”, disse eu, trêmulo, ‘Ouvi
suas últimas palavras…’ Calei-me, aterrorizado.

“‘Repita-as’, murmurou num tom de partir o coração,
‘Eu preciso… preciso… de alguma coisa… alguma coisa… para… poder
prosseguir vivendo.’

“Estive a ponto de gritar para ela: ‘Você não está
ouvindo?’ A escuridão repetia num murmúrio persistente à nossa volta, um
sussurro que parecia ir crescendo ameaçadoramente como os sussurros
premonitórios de um vendaval. ‘O horror! O horror! ‘

“‘Suas últimas palavras… para guardar para sempre’,
ela insistiu. ‘Não percebe que eu o amava… eu o amava… eu o amava!’

“Eu me recompus e disse, lentamente: ‘A última palavra
que ele pronunciou foi… o seu nome.’

“Eu ouvi um leve suspiro e depois o meu coração parou
emudecido por um grito terrível de exultação, um grito de inconcebível triunfo
e dor indescritível.

‘Eu sabia… Tinha certeza!’ Ela sabia. Ela tinha
certeza… Ouvi seu choro; ela havia escondido o rosto entre as mãos.
Pareceu-me que a casa iria entrar em colapso antes que eu pudesse escapar, que
os céus cairiam em cima de minha cabeça. Mas não aconteceu nada. Os céus não
caem por uma ninharia dessas. Teriam caído, por acaso, se eu tivesse conferido
a Kurtz a justiça que ele merecia? Ele não tinha dito que queria apenas
justiça? Mas não pude. Não pude dizer a ela. Teria sido muito tenebroso…
tenebroso demais…”

Marlow calou-se, e continuou sentado ali, um pouco
afastado, indistinto e mudo como um Buda em meditação. Ninguém se mexeu por um
tempo. ‘Perdemos o início da vazante’, disse o diretor de repente. Eu levantei
minha cabeça. A vista foi impedida por uma massa de nuvens escuras que escondia
o horizonte, e a correnteza tranquila, que conduzia aos extremos confins da
terra, deslizava sombria sob um céu nublado… e parecia conduzir ao coração de
imensas trevas.

 

 

***

 

 

Sobre o Autor e o livro

 

Coração das Trevas (Heart of Darkness) é um romance
escrito por Joseph Conrad. Antes da sua publicação em 1902, apareceu como uma
série em três partes (1899) na ‘Blackwood’s
Magazine’
. É amplamente considerada como uma obra importante da literatura inglesa
e parte do cânone ocidental.

Durante a narrativa, Conrad joga muito bem com os
contrastes: luzes/trevas; branco/negro; quando aparece um selvagem opõe-se a
ele um civilizado; se descreve a claridade, há uma obscuridade em volta dele e
vice-versa; é, indubitavelmente, um dos maiores estilistas da ficção moderna, e
ainda por cima, um bom contador de histórias.

A estrutura narrativa lembra ‘Wuthering Heights’ – ‘O Morro
dos ventos Uivantes’ – de Emily Brontë, com uma narrativa em primeira pessoa
dentro de outra narrativa em primeira pessoa e muita exposição num clima
opressivo e tenebroso.

Para Jorge Luis Borges “O coração das trevas é o mais
intenso de todos os relatos que a imaginação humana jamais concebeu.”

 Coração das Trevas’ tenta alcançar o inexplicável
Charles Marlow, um inglês que obteve trabalho junto de uma companhia de
comércio belga como capitão de um barco a vapor num rio africano. Embora Conrad
não identifique o rio, no Estado Livre do Congo, a localização do grande e
importante rio Congo era à época uma colônia propriedade privada do rei
Leopoldo II da Bélgica. Marlow é contratado para transportar marfim rio abaixo.
No entanto, a sua tarefa mais urgente é devolver Kurtz, um famoso comerciante
de marfim, à civilização.

Conrad construiu uma narrativa simbólica com uma história
dentro da própria história: Marlow conta a um grupo de amigos a bordo de um
navio ancorado no estuário do Tamisa, desde o anoitecer até de madrugada, a sua
aventura congolesa. A passagem do tempo e o céu escurecendo-se com o pôr-do-sol
sobre Londres, enquadram a atmosfera densa e pesada da história dentro da
história.

O livro tem um caráter crítico e psicológico e, apesar de
seu tamanho pequeno e fácil leitura em relação ao vocabulário, exige uma alta
concentração do leitor por constituir uma narrativa simbólica e de rápidas
conexões.

O livro inspirou o filme ‘Apocalypse Now’ de Francis Ford Coppola. Enquanto o livro se passa
em tempos mais remotos, o filme se situa na guerra do Vietnã, colocando o Sr.
Kurtz como um coronel americano que se refugia na selva. Apesar de ser
diferente do livro, o filme consegue manter as críticas do livro, transportando
elas à guerra, e consegue manter a história original apesar das adaptações de
roteiro.

O livro possuiu similaridades com a vida de Conrad; ainda
criança, contemplara um mapa e decidira um dia visitar o coração da África. Os
abusos praticados na exploração colonial e presenciados pelo escritor
deixaram-no profundamente abalado, conferindo-lhe uma visão crítica quanto à
base moral das explorações coloniais e das atividades comerciais conduzidas nos
países recentemente ‘descobertos’. Oito anos e meio antes de escrevê-lo, Conrad
foi designado por uma companhia de comércio belga para trabalhar como capitão
de um navio no Rio Congo. Na chegada a estação no Congo, ele descobriu que o
navio que iria comandar sofreu danos e necessitava de reparo. No dia seguinte,
ele subiu o rio em um navio diferente, chefiado por outra pessoa. Durante a
jornada o capitão adoeceu e Conrad assumiu o comando. Eles buscaram o agente da
estação mais longínqua da companhia, Georges-Antonie Klein, que morreu na
viagem de volta. O próprio Conrad ficou muito doente e retornou para a Europa
antes de completar os três anos de contrato que havia assinado com a companhia.

No início do livro, o leitor se vê perante uma narração em
primeira pessoa de um dos tripulantes de uma embarcação no Tamisa. Ele fala
sobre Marlow, um velho tripulante a bordo do navio, o único que ainda
“seguia o mar.” Sem nada para fazer, já que a maré não era favorável
à navegação, Marlow passa a contar a história que o levou a conhecer o lendário
chefe de posto, o Sr. Kurtz. Marlow. Inicia a narrativa dizendo como conseguiu
o posto na companhia marítima, através da ajuda e influência da tia, que
conhecia a esposa de um alto dirigente da Administração. Ele se torna então
comandante de um vapor: sua missão é resgatar um chefe de posto conhecido por
Sr. Kurtz. Ao narrar sua aventura até encontrar o vapor, Joseph Conrad faz uma
crítica em relação à falta de conectividade entre as regiões, à escravidão, ao
aspecto burocrático e alheio dos comandantes e a falta de informação por parte
destes; sem dúvida, uma bandeira fundamental na denúncia da insanidade da ação
imperialista. Nesse processo, Marlow passa a ouvir muitos elogios ao Sr. Kurtz,
como um ótimo chefe de posto, muito inteligente e brilhante. Marlow afirma em
um ponto da narrativa que, ao pensar em Kurtz, via apenas um nome e era incapaz
de enxergar a pessoa por trás da lenda. Para o infortúnio de Marlow, ele
descobre que um comandante improvisado havia recebido ordens dois dias antes de
sua chegada para subir o rio com o vapor, e, ao fazer isso, o vapor chocou-se
contra pedras do fundo do rio e naufragou. Então, sem saber o que fazer, ele
decide tentar consertar o barco, e gasta alguns meses fazendo-o. Após
finalmente ter consertado o vapor, ele parte rio acima à procura de Kurtz,
lidando com as dificuldades de navegação do rio e as dificuldades de operação
do frágil vapor, já velho, deteriorado e com o motor defeituoso. É dessa forma
que Marlow vai avançando lentamente em direção ao seu objetivo, encontrar o
lendário, brilhante, mas agora louco Sr. Kurtz. Finalmente Marlow o encontra,
após ter adentrado o coração das trevas, mas Kurtz está em seu leito de morte e
as suas últimas palavras são: “O horror!
O horror!”
, palavras que revelam o que a civilização impõe ao homem.

 



 

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APRENDENDO PORTUGUÊS – Lição 01 – MONTANDELA X MORTADELA



 

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